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academia
Retrospectiva 2022
Bruzzi e Gonçalves: A regulação bancária e de pagamentos em 2022
Notas introdutórias O ano de 2022 deu sequência à revolução na normatização do mercado financeiro, que tem ocorrido nos últimos anos. Essa revolução é, do ponto de vista institucional, materializada por meio da Agenda BC#, a qual tem como pilares a inclusão financeira, a competitividade, a transparência, a educação e a sustentabilidade. Neste texto, sem a intenção de abarcar todas as normas, apontamos algumas das mais relevantes alterações normativas realizadas, pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) e pelo Banco Central do Brasil (BCB), no âmbito: (1) do Pix; (2) do open finance; (3) do mercado de câmbio; (4) do registro e da gestão de recebíveis; (5) da regulação prudencial de instituições de pagamento; e (6) dos processos de autorização. Pix A primeira norma de 2022 que consideramos importante para destaque é a que tratou do bloqueio de transações realizadas por meio do arranjo de pagamento Pix. Em nova norma, que alterou o Regulamento Pix, o BCB determinou que uma transação deverá ser rejeitada pelo participante provedor de conta transacional do usuário pagador, por exemplo, quando: (1) houver problemas na autenticação do usuário pagador; (2) envolver movimentação de recursos oriundos de usuários pagadores sancionados por resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas, na forma prevista na Lei nº 13.810/2019, e conforme disciplina própria editada pelo BCB; e (3) houver inconsistência entre a transação e os parâmetros atribuídos às transações com finalidade de saque ou de troco, inclusive no que se refere aos limites de valor estabelecidos pelo BCB em documento específico, à natureza jurídica do usuário recebedor e aos participantes que podem iniciar transações com essas finalidades [1]. Também em 2022, foi publicado o regulamento do Sistema de Pagamentos Instantâneos (SPI), a infraestrutura centralizada de liquidação bruta em tempo real de pagamentos instantâneos que resultam em transferências de fundos entre seus participantes titulares de Conta PI no BCB. O Regulamento SPI estabelece que a participação é: (1) obrigatória, para os participantes do arranjo Pix, nos termos da regulamentação do arranjo, para fins de liquidação de pagamento instantâneo; (2) facultativa (2.1) para as câmaras e os prestadores de serviços de compensação e de liquidação, com o único objetivo de liquidar operações privadas de fornecimento de liquidez no âmbito do SPI realizadas entre os seus participantes e (2.2) para a Secretaria do Tesouro Nacional (STN), com a finalidade exclusiva de realizar recolhimentos e pagamentos relativos às suas atividades típicas [2]. Além de observarem os passos para participação no SPI, as instituições devem seguir o processo de adesão Pix, também tratado em norma de 2022, que é composto pelas etapas (1) cadastral; (2) homologatória; e (3) de operação restrita [3]. Certamente uma das alterações normativas que mais gerou inquietação a agentes econômicos do mercado financeiro foi a que tratou do Banking-as-a-Service (BaaS), no âmbito do Pix. A norma estabeleceu que a iniciação e o recebimento de operações firmadas via Pix apenas podem ser realizados por participantes do Pix, que, portanto, submeteram-se aos procedimentos destacados na normas referidas acima. Ainda é lícita a prestação de serviços Pix via intermediação, entretanto, esta não poderá ocorrer via conta transacional de terceiro que não é participante do Pix ou por conta transacional fornecida pelo participante do Pix ao terceiro — o que, no cotidiano do mercado, entende-se pela união entre "conta bolsão" e "contas gráficas" [4]. Com vistas a refletir essa alteração, o Manual de Penalidades do Pix passou a prever a infração de "atribuir a terceiro não participante do Pix a realização das atividades de que trata o art. 90-A do Regulamento do Pix", punível com multa com valor-base de R$ 1 milhão [5]. Fechando o ano de 2022, em dezembro, o BCB retirou a obrigatoriedade de limite por transação do Pix, mantendo apenas o limite por período de tempo [6]. Open finance O ecossistema do open finance pôde observar, em 2022, importante alteração normativa a respeito do encaminhamento de propostas de operações de crédito. Estabeleceu-se, assim, que as instituições contratantes deverão disponibilizar interfaces dedicadas para compartilhamento de serviço de encaminhamento de proposta de operação de crédito, que contemplem, no mínimo: (1) o recebimento das solicitações de propostas de operação de crédito; (2) o recebimento e envio de dados entre a instituição financeira contratante e o correspondente no país; (3) o envio das propostas de operação de crédito; e (4) o rastreamento das solicitações e das respectivas propostas de operação de crédito. A nova norma fez constar que é considerada instituição contratante, para os fins descritos em seu texto, a instituição financeira que mantenha contrato de correspondente no país que contemple a atividade de recepção e encaminhamento de propostas de operações de crédito e de arrendamento mercantil, por meio de plataforma eletrônica, nos termos da regulamentação de correspondente no país [6]. O BCB publicou ainda duas relevantes Resoluções Conjuntas. Uma delas, com o CMN, determinou a alteração, em todos os documentos normativos atinentes ao tema, do termo open banking para o termo open finance [8]. A outra, com a Superintendência de Seguros Privados (Susep), trata da interoperabilidade no ecossistema, classificando-a como o compartilhamento padronizado de dados, mediante consentimento de cliente, de forma segura, ágil e precisa, entre os participantes dos sistemas disciplinados pelos seguintes atos normativos: (1) Resolução Conjunta CMN-BC nº 01/2020; e (2) Resolução CNSP nº 415/2021 [9]. Mercado de câmbio Com fundamento na Lei nº 14.296/2021 (Marco Legal de Câmbio), o BCB publicou, em 2022, norma que dispõe que são princípios norteadores do funcionamento regular do mercado de câmbio: (1) a competição para a prestação de serviços ao público relacionados às operações do mercado de câmbio; (2) o atendimento das necessidades do público, em especial liberdade de escolha, privacidade, transparência e acesso a informações claras e completas sobre as condições das operações do mercado de câmbio; (3) a eficiência das operações realizadas no mercado de câmbio; (4) o estímulo à inovação, considerando a legalidade das operações, e à diversidade de modelos de negócio; (5) a redução de custos de transação no mercado de câmbio; (6) a inclusão financeira; (7) a confiabilidade e a qualidade dos produtos e serviços ofertados no mercado de câmbio; e (8) a integridade, a conformidade, a segurança e o sigilo das operações de câmbio ou das movimentações de valores [10]. Outra alteração que representará importante impacto no mercado de câmbio, principalmente sob o prisma concorrencial, é a que determinou que as instituições de pagamento poderão operar no mercado de câmbio somente a partir de 1º de julho de 2023 [11]. Registro e gestão de recebíveis No âmbito da regulação de recebíveis, é importante apontar norma que trata do uso proporcional ao risco de recebíveis constituídos e a constituir em garantia de operações de crédito [12]. O dispositivo direciona-se especificamente à gestão de risco em instituições financeiras que se valem desses recebíveis como garantia, possibilitando assim melhores condições aos tomadores de crédito. Quanto às credenciadoras, nova norma facultou o bloqueio de valores referentes às transações por elas capturadas com o propósito de (1) constituição de reserva financeira para gerenciamento de risco de sua relação contratual com seus respectivos usuários finais recebedores; e (2) compensação de valores devidos pelo usuário final recebedor, tais como: (2.1) multas; (2.2) estornos decorrentes de cancelamentos, contestações ou fraudes, no âmbito de arranjo de pagamento, de transações já liquidadas; e (2.3) outras compensações decorrentes de eventos previstos contratualmente [13]. Além disso, quanto às entidades registradoras, houve, em 2022, alteração normativa que estabeleceu os princípios a serem observados na implementação dos mecanismos de interoperabilidade, a exemplo (1) da promoção da concorrência entre os sistemas de registro e entre seus participantes; (2) da eficiência e efetividade na troca de informações; (3) da padronização tecnológica e de regras de negócio que viabilizem o cumprimento das disposições regulamentares e que sirvam de base para a harmonização dos procedimentos operacionais e de intercâmbio de informações; e (4) da transparência, segurança, privacidade e sigilo das informações transmitidas entre os sistemas de registro [14]. Regulação prudencial de instituições de pagamento A partir da edição de seu marco legal, a Lei nº 12.865/2013, as instituições de pagamento atingiram elevado grau de complexidade, de modo que a regulação prudencial até então aplicada a essas instituições se tornou inadequada. Ao longo dos quase dez anos de vigência da lei, as instituições de pagamento passaram a constituir instituições financeiras como subsidiárias ou fundos de investimento, e, consequentemente, passaram a incorrer em novos riscos, decorrentes da atuação expandida, especialmente o risco de crédito, mas, ainda, riscos de liquidez e de mercado. Considerando isso, foram publicadas, em março de 2022, diversas normas com o objetivo central de aprimorar a regulamentação prudencial aplicável às instituições que realizam serviços de pagamento, unificando-se o tratamento dispensado (1) aos conglomerados prudenciais liderados por instituição de pagamento e integrados por ao menos uma instituição financeira, (2) às instituições financeiras que realizam atividades de pagamento e (3) aos conglomerados prudenciais liderados por instituições financeiras integrados por ao menos uma instituição de pagamento [15][16][17][18][19][20][21]. Ao final de 2022, a entrada em vigor dessas normas foi adiada para julho de 2023 [22]. Processos de autorização A respeito dos processos de autorização, temos que duas alterações tiveram grande relevo quanto ao regramento das instiuições de pagamento. Em primeiro lugar, é possível citar a possibilidade de que fundos de investimento figurem como detentores de participação qualificada no âmbito da instituições de pagamento, em linha com o regramento das sociedades de crédito direto e das sociedades de empréstimo entre pessoas (fintechs de crédito) [23]. Com ainda maior impacto no mercado, foi realizada alteração em uma das principais normas de regência das instituições de pagamento, para prever que as emissoras de moeda eletrônica que iniciaram sua prestação de serviços anteriormente a março de 2021, podem, caso não atingidos certos volumes de transações, submeter pedido de autorização com prazo final somente em 31 de março de 2029 [24]. Os processos de autorização de diversas instituições também foram alterados ou consolidados em 2022. Por isso, para fins didáticos, elaboramos o quadro abaixo, a fim de resumir alguns dos principais pontos dessas normas.   Aspectos conclusivos Em 2022, a regulação bancária e de pagamentos adequou diversos aspectos relevantes para instituições reguladas e para os consumidores de serviços financeiros, tendo em vista a agenda institucional BC#. De modo geral, temos que a regulação emitida pelo CMN e pelo BCB tem se mostrado importante vetor de melhorias no âmbito do mercado financeiro.
2023-01-01T14:32-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-01/bruzzi-goncalves-regulacao-bancaria-pagamentos-2022
academia
Processo Familiar
A família pronta para o futuro e as perspectivas para 2023
Quando o valor da pessoa em sua exata dimensão de dignidade demanda direitos e a família congrega as pessoas em suas unidades de valor, busca-se consolidar as novas tendências do Direito das Famílias. Efetivá-las, com a maior extensão de suas realidades jurídicas, é o desafio atual. Dentro do seu amplo espectro, as perspectivas presentes exigem que a família seja regulada na ordem jurídica da melhor maneira possível. Designadamente, em face da reprodução assistida, dos institutos da socioafetividade e da multiparentalidade, e das diversas entidades familiares, em vieses jurídicos que coloquem, sempre, a pessoa como a prioridade maior. Como afirmam Rodrigo Cunha e Berenice Dias, a família "passou a ser muito mais um espaço para o desenvolvimento do companheirismo, do amor, e, acima de tudo, o núcleo formador da pessoa e elemento fundante do próprio sujeito" (1). Em ser assim, desburocratizam-se os conflitos, expurgam-se os achismos de ideias retrógradas que representam apenas teorias fundadas em opiniões ou intenções meramente pessoais; afastam-se entendimentos desprovidos de sustentação jurídica e que assumem papéis ultraconservadores. Enfim, privilegia-se o direito à busca da felicidade, com eficácia imediata e em respeito à autonomia da vontade e à liberdade dos sujeitos. Exemplos mais significantes desse direito são os: (a) do divórcio potestativo, que a Emenda Constitucional nº 66/2010 trouxe ao nosso ordenamento jurídico, sem mais necessidade de motivação (requisitos causais) ou de prazo (requisitos temporais) para a sua concessão. Suficiente para a dissolução do casamento, a simples manifestação de vontade de um membro do casal; (b) da recente Lei nº 14.340/2022, de 18 de maio, que efetivou importantes modificações na Lei da Alienação Parental (Lei nº 12.318/2012), dinamizando a atuação judicial e os mecanismos de proteção à melhor convivência familiar; (c) da recente Lei nº 14.382/2022, de 27 de junho, a permitir mudanças significativas no prenome e sobrenome das pessoas, com pedido apresentado diretamente a qualquer um dos 7.800 cartórios de registro civil do país, sem limite de prazo ao requerimento e sem a judicialização das alterações pretendidas; de forma simples, mais rápida e menos onerosa (2). Com a nova lei que libera a mudança de nome em cartório e sem ação judicial, cerca de cinco mil pessoas já obtiveram, nestes últimos seis meses, a alteração dos seus prenomes. Mas não é só. Dentre outras inovações, foi introduzido na Lei dos Registros Públicos (Lei 6.015/1973) o artigo 94-A, autorizando a formalização de termos declaratórios de união estável perante o Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN), em contributo saudável à desburocratização e aos menores custos do procedimento. A família coloca-se, assim, pronta ao seu futuro, diante dos recentes incrementos da doutrina e da legislação civil. A evolução do direito das famílias depende, sobretudo, do rumo das variadas soluções construtivas nas relações familiares e de uma visão operativa de novos paradigmas. É o que se espera para 2023. Vejamos: Reprodução assistida. A regulação jurídica das técnicas de reprodução medicamente assistida (RMA) apresenta-se como questão fulcral da legislação civil de família. Esse tema será debatido durante o Curso de Extensão "Análise jurídico-jurisprudencial do Direito das Famílias no sistema Luso-Brasileiro", a realizar-se na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, entre 16 e 20 do corrente mês. Os juristas Rafael Vale dos Reis (PT) e Fernanda Leão Barretto (BA-BR) tratarão de importantes aspectos como os da cessão de útero e suas normativas existentes e os dos embriões excedentários, sua utilização e seus efeitos, inclusive sucessórios. No Brasil, a Resolução nº 2.320, de 20 de setembro de 2022, do Conselho Federal de Medicina (CFM), entre tantas anteriores, é o único instrumento normativo que disciplina a matéria, tratando sobre normas éticas para a utilização das técnicas de RMA (3). O PLS n. 90/1999, que tratou da reprodução assistida e aprovado no Senado em 2003, pendente desde então, não teve a devida análise na Câmara sob o n. 1.184/2003. O texto tem merecido severas críticas quando o projeto proíbe a gestação por substituição, remove o anonimato dos doadores de gametas, limita a fertilização de apenas dois óvulos e obsta a biópsia embrionária (4). Mais recentemente, tramita o Projeto de Lei nº 1.851/2022, de 2 de julho. Ele altera o artigo 1.597 do Código Civil, com a inserção de dois parágrafos, para dispor sobre o consentimento presumido de implantação, pelo cônjuge ou companheiro sobrevivente, de embriões do casal que se submeteu conjuntamente à técnica de reprodução assistida e, ainda, define a responsabilidade das clínicas médicas, centros ou serviços responsáveis pela reprodução assistida. "A grande lacuna legislativa no nosso ordenamento jurídico sobre a reprodução assistida não encontra explicação lógica e razoável em debate algum sobre o tema", denunciou a senadora Mara Gabrilli na justificação do seu projeto. Uma vez aprovado, será um importante avanço legislativo (5). Lado outro, projeto originário da Câmara dos Deputados, o de nº 115/2015, apensado ao PL 4.892/2012, pretende instituir o "Estatuto da Reprodução Assistida", para regular a aplicação e utilização das técnicas e seus efeitos no âmbito das relações civis sociais (6). Interessante estudo foi desenvolvido durante o 19º Congresso Nacional de Iniciação Cientifica (Conic), tratando da análise jurídico-normativa de todos os dezessete projetos legislativos ora em curso sobre a RMA (7). Como se observa, urge um esforço legislativo para dotar o ordenamento jurídico nacional de um estatuto sobre reprodução assistida, colocando nosso país em linha de frente com a regulação necessária e de conformidade ao desenvolvimento do biodireito. No ponto, essa é uma das importantes perspectivas para 2023, sufragando os anseios das comunidades médica e jurídica. Mais ainda, quando se discute a questão dos embriões excedentários ou a legitimidade sucessória dos filhos havidos de reprodução assistida post mortem, com releitura do artigo 1.798 do Código Civil, no que tange à figura do embrião enquanto concepto ainda não gestado. Multiparentalidade. Interessante projeto, na Câmara de Deputados, disciplina a herança em caso de multiparentalidade, para incluir padrastos e madastras como herdeiros de alguém sem filhos que morra deixando cônjuge. O PL nº 5.774/2019 altera o artigo 1.837 do Código Civil para o caso de uma pessoa sem filhos morrer deixando cônjuge; mãe e/ou madrasta; e pai e/ou padrasto, a herança ser dividida em partes iguais entre cada um deles (8). O projeto atende as novas configurações familiares, certo que atualmente "cabe ao cônjuge 1/3 da herança, caso os dois pais do falecido sejam vivos. O cônjuge vivo recebe metade se "concorrer" apenas com o pai ou a mãe do falecido"; não considerando a multiparentalidade socioafetiva eventualmente existente. A propósito do direito sucessório, estudos do IBDFam deram origem a importante anteprojeto de reforma do Direito das Sucessões, alterando o Código Civil, que resultou na iniciativa do PLS nº 3.799/2019. A respeito dos efeitos do direito sucessório, nos casos de multiparentalidade, importante estudo de Catarina Oliveira Costa foi publicado em 3/6/2021 (9). Noutro giro, importa assinalar que a Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC), em sua IX Olimpíada de Conhecimento Jurídico 2022, destinada a universitários de Direito em instituições de ensino do país, incentivou em modalidade da prova de “Redação de Projeto de Lei”, textos relativos ao “Estatuto do Padrastio”. O texto premiado, de estudantes da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Lavras-MG (UFLA) servirá de proposição legislativa. Regime de bens. A norma do artigo 1.611, inciso I, do Código Civil, que estabelece a imposição do regime da separação obrigatória de bens para a pessoa maior de setenta anos, extensiva à união estável (STJ — Súmula 655), seguramente sob a eiva da inconstitucionalidade, exigirá, afinal, em 2023 o definitivo posicionamento do Supremo Tribunal Federal. Neste sentido, o tema, objeto de recurso extraordinário, teve repercussão geral reconhecida. afetado nos autos do Agravo no Recurso Extraordinário 1.309.642/SP, com a relatoria do ministro Luís Roberto Barroso (Tema 1.236). Processo Civil. Na questão processual, desponta diversas necessidades, "de lege ferenda", para eficiência de uma melhor jurisdição. Bastante situar: (a) o tempo dos processos de família deve ser aplicado, sob o filtro de relevância da dramaticidade dos problemas que neles subjazem, devendo o juiz enquanto gestor do litígio ser o verdadeiro curador da família em desajuste, na adoção de medidas de controle, de pacificação e de tutelas imediatas. Cada litígio pendente serve, aliás, de periclitação de direitos, sobretudo em prejuízo patrimonial da parte mais vulnerável. (b) A inexistência de regra explicita para a concessão liminar do divórcio, deve ser superada a permitir em razão de direito potestativo a decretação liminar. Com precisão, todavia, deve o CPC melhor cuidar da hipótese, afinal tendo-se em conta de se constituir pedido incontroverso, ante a potestatividade da pretensão deduzida em juízo. (c) Urge a revogação do artigo 734 do CPC, que exige para a alteração do regime de bens requerimento motivado por ambos os cônjuges, expostas as razões que justifiquem a alteração, ressalvados os direitos de terceiros. Em bom rigor, repete o artigo 1.639, § 2º do Código Civil. Ambos os dispositivos devem ser revogados em prestigio da plena autonomia da vontade dos cônjuges, a ser manifestada perante o próprio registro civil, sem prejuízo de futuras discussões judiciais de eventuais vícios do consentimento de um deles. (d) a prova pessoal no "delicado tema da psicologia do depoimento" deve ter sua produção e valoração com o destaque da era tecnológica, a dispensar precatórias, sobretudo prestigiando as narrativas em meios telepresenciais, com a sua colheita remota. Para além disso, a atuação da parte autora no litígio de decisivo interesse deve alcançar o seu depoimento pessoal, a requerimento próprio e não apenas da parte contrária, ampliando-se a regra do artigo 385 do CPC. De lege ferenda, propõe-se parágrafo único ao citado dispositivo: "Art. 385, § único. É facultada à parte autora a prova pessoal do seu depoimento, devido à incidência narrativa dos fatos articulados no pedido". Divórcio potestativo. A inclusão de nova modalidade de divórcio extrajudicial, sob a denominação de "divórcio impositivo" ou "divórcio unilateral", a ser efetivado em cartório de registro civil pela declaração de vontade de um dos cônjuges em se divorciar, tem a sua tramitação no Senado através do Projeto de Lei nº 3.457/2019 (10) já aprovado na Comissão de Constituição e Justiça, em 10/3/2020 Acrescenta ao Código de Processo Civil o artigo 733-A, permitindo que um dos cônjuges requeira a averbação do divórcio no cartório de registro civil ainda que o outro cônjuge não concorde, diante do manifesto direito potestativo daquele, invencível e inevitável. Inspirou-se em Provimento nº 06/2019, de 29 de abril, da Corregedoria Geral da Justiça de Pernambuco, de nossa autoria (11), que autorizava a dissolução do vínculo conjugal, de forma unilateral, em averbação à margem do assento de casamento, por declaração do cônjuge interessado na dissolução do vínculo. Ampla doutrina a respeito do novo instituto, subscrita por respeitáveis juristas, sustenta que tal divórcio confere ao interessado um importante papel no pleno exercício de sua liberdade e autodeterminação ao protegê-lo para de forma ágil e eficaz dissolver o casamento onde nele não mais deseja permanecer. Em suma, não deve ser privado, à conta de interesses outros, do seu legitimo direito de se divorciar, sem estorvos ou embaraços. Em efetiva liberdade de escolher os ditames de sua própria vida e que somente a ele(a) pertence. Bem de ver: O casamento não deve servir de óbice à plenitude de vida da parte (TJ-PR, 12ª. CC, Ap. 0041414-50.2020-8.16. relatora Rosana Girardi Fachin, j. em 24/9/2020). De efeito, expressa a melhor doutrina: "reconhecer a validade do ingresso do divórcio impositivo no ordenamento jurídico brasileiro é uma forma de tutelar, em essência, o direito à liberdade afetiva e a autodeterminação de cada indivíduo, tutelando, assim, seus direitos da personalidade, inclusive no que se refere aos aspectos psíquicos da pessoa, haja vista que processos demasiadamente longos e burocráticos. Especialmente quando se versa sobre divórcios litigiosos em que o cônjuge não requerente discorda com a decisão de rompimento do vínculo matrimonial do cônjuge requerente, normalmente produz-se efeitos trágicos no psicológico do cônjuge que só pretende colocar fim a um casamento que não mais deseja manter" (12). Conclusões. A maior segurança jurídica para as famílias em seus direitos fundamentais e um melhor direito das famílias devem partir da família ressignificada em uma cláusula geral de proteção da dignidade dos que a constituem, individual e institucionalmente. Fora dela, as famílias padecerão de infelicidades forçadas e não vencidas, arrostadas por desconstruções dialéticas. O XIV Congresso Brasileiro de Direito das Famílias e Sucessões, do IBDFAM, que acontece de 25 a 27 de outubro de 2023, em BH, sobre o tema "Efetividade dos direitos fundamentais" servirá de aviso e de resposta aos novos desafios. 2023 começa com um novo caminho de esperança aberto para todas as famílias, que resultarão mais visíveis e protegidas. Prontas ao seu melhor futuro.   Referências: (1) PEREIRA, Rodrigo da Cunha e DIAS, Maria Berenice, Direito de Família e o Novo Código Civil, 3ª.ed.; Belo Horizonte: Del Rey, 2003, pag. XIV; (2) ALVES, Jones Figueirêdo. Novo regime jurídico do nome civil e outros avanços do direito registral. Consultor Jurídico, 11.07.2022; Web: https://www.conjur.com.br/2022-jul-11/processo-familiar-regime-juridico-nome-civil-outros-avancos-direito-registral (3) https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2022/2320 (4) https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=137589 (5) https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9180662&ts=1657662548729&disposition=inline (6) https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1296985&filename=PL%20115/2015 (7) https://conic-semesp.org.br/anais/files/2019/trabalho-1000004219.pdf (8) https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1828271&filename=PL%205774/2019 (9) https://periodicos.ufba.br/index.php/conversascivilisticas/article/view/44702 (10) https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7964616&ts=1648156876433&disposition=inline (11) https://www.tjpe.jus.br/documents/29010/2103503/PROVIMENTO+N%C2%BA+06-2019-CGJ+ORIGINAL.pdf/80b8a35e-9a57-90c0-c536-9b72037741b2 (12) https://www.indexlaw.org/index.php/direitofamilia/article/view/8321
2023-01-01T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-01/processo-familiar-familia-pronta-futuro-perspectivas-2023
academia
Embargos Culturais
A atualidade da comédia Quase Ministro, de Machado de Assis
Na política hoje, muito atual e provocadora a peça Quase Ministro, de Machado de Assis. Comédia curtíssima, com apenas um ato, dividido em quatorze cenas. Na introdução (do próprio Machado) lê-se que a peça fora composta para um sarau de amigos, que teria ocorrido em 22 de novembro de 1862. Machado, inclusive no teatro, era aquela rara elegância de ser conciso, com uma sábia economia de palavras, pondo em evidência suas ideias, na imagem permanente de Lúcia Miguel Pereira. À época dessa peça era primeiro ministro Pedro de Araújo Lima, o Marquês de Olinda, que fora indicado por dom Pedro 2º em 1862, e que ficou até 15 de janeiro de 1864. O Marquês de Olinda fora um conservador dissidente, liderando grupo em torno de uma Liga Progressista. Havia no Brasil uma fórmula muito peculiar de parlamentarismo, denominado de "parlamentarismo às avessas". Ao contrário do parlamentarismo inglês, no qual as eleições apontavam o partido que escolheria o primeiro ministro, no nosso modelo o imperador escolhia o chefe do ministério e em seguida as eleições se faziam. No contexto desta deliciosa peça (trata-se de uma sátira política) há rumores de que um deputado (Luciano Martins) ocuparia uma pasta ministerial. Cético e realista, o deputado sabe que a informação não passa de um boato. Não recebera nenhum convite. Estava distante de qualquer especulação. Muito próximo do deputado o escritor apresenta-nos um primo do político, Silveira. Era maníaco por cavalos. A peça inicia-se com um relato feito por Silveira, que teria caído de um alazão enquanto cavalgava junto à praia de Botafogo. Era viciado em cavalos, um apaixonado, preferindo os cavalos a outros vícios, como o fumo, as mulheres e o jogo, nas palavras do dramaturgo. As palavras são de Machado de Assis, e não minhas, bem entendido. Silveira cumprimentou o primo, que era já um "quase-ministro". Nessa condição, "quase-ministro", o deputado recebe interesseiros e aduladores. O adulador é um tipo comum, que viceja até hoje. Não tem ideias ou personalidade próprias. Segue a todos, desde que alguma vantagem possa auferir. Afeiçoa-se a todas as metamorfoses e transformações. Bajula. É um sabujo. Havia muitos na capital do Império. Há muitos na atual capital da República. Há em todos os lugares. O primeiro adulador (Pacheco) mostra-se como um articulista de temas políticos. Afirma que "em política ser lógico é ser profeta". Uma vez aplicados certos princípios a certos fatos, a consequência seria sempre a mesma. Porém, insistia, deveria haver os fatos e os princípios. Diz ter adivinhado que o deputado seria ministro. Dizia ter planos para aumentar a renda pública, sem "lançar mão de empréstimos" e, ao mesmo tempo, diminuir impostos. Para o primo, o deputado constatava que o visitante era um parasita. Segue um poeta (Bastos), para quem poesia e política eram ligadas por um laço estreitíssimo. Intuía que o deputado não queria aceitar o cargo no ministério, e tentava convencê-lo; era enfático: "Quero ser dos primeiros que o abracem, quando vier a confirmação da notícia; quero antes de todos estreitar nos braços o ministro que vai salvar a nação". Sabujice maior não há. O quase ministro recebe então um inventor (Mateus), que lhe falou do "raio de Júpiter", um segredo, uma peça de artilharia que teria inventado. O invento colocaria na mão do País que o possuir a soberania do mundo. Para o inventor, o quase ministro tinha qualidades e inteligência, não perguntava ou consultava, dominava. Queria apoio do futuro ministro para registrar a invenção. A lista segue com Luís Pereira, que ao quase ministro queria oferecer um jantar. Depois se apresenta um empresário artístico (Müller) com a proposta de um "negócio da China" (sim, a expressão está também em Machado de Assis): pedia uma subvenção e traria os maiores talentos para o Rio de Janeiro. Montado o ministério, e excluídas as chances do deputado, que todos tinham como certas, os aduladores abandonam o recinto, na busca do verdadeiro novo ministro. O deputado foi um quase ministro, e nessa condição observou esse ponto ao mesmo tempo fascinante e deplorável da condição humana: a subserviência interesseira. Se podemos nos fiar na introdução, que é do próprio Machado de Assis, o escritor teria menos de 30 anos ao compor essa peça, que nos diz tanto sobre os interesses da política. Na expressão de nosso grande estudioso do teatro, Anatol Rosenfeld, "quando acontece a transformação do ator em personagem, o texto se transforma em elemento teatral". É o que constatamos hoje, no teatro da vida, quando comprovamos que na política a lógica é profecia. Muita gente por aí querendo ser ministro. Lembremo-nos o passo de Mateus 22: "pois muitos são chamados, mas poucos são escolhidos".
2023-01-01T08:00-0300
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Segunda Leitura
Estado-nação: modelo teórico que sofre para acompanhar tendências
Compreendido como a unidade política resultante das revoluções dos séculos XVIII e XIX, o Estado-nação tem como principais características "a soberania assentada sobre um território, a tripartição dos poderes e a paulatina implantação da democracia representativa" [1]. Sob tal modelo institucional, o Estado não se submete senão ao Direito constituído internamente ou ao Direito externo com o qual tenha consentido. Desde o final do século XX, no entanto, vem ganhando espaço a concepção teórica que identifica a insuficiência do Estado-nação frente às profundas transformações sociais resultantes da globalização e da evolução tecnológica. Desenvolve-se o conceito de transnacionalidade. No mundo transnacional, o conceito de soberania é relativizado sob a influência de uma sociedade interdependente. O mosaico de fontes normativas ultrapassa as fronteiras estatais e perde o rígido senso hierárquico. O conceito de Estado passa por uma transformação, determinada pelos movimentos de reconfiguração da realidade social. À época da concepção do Estado-nação, a ciência jurídica era compreendida como um fruto cultural tipicamente nacional, resultante dos dogmas estabelecidos pelas normas vigentes em cada Estado. A este respeito, resgatando a obra de Rudolf von Jhering, Leontin-Jean Constantinesco destacou que "a ciência jurídica foi degradada a ciência nacional; nela os confins científicos coincidem com aqueles políticos.” Os escritos revelam o juízo crítico de Jhering: “esta é uma coisa humilhante, indigna para uma ciência" [2]. Leontin-Jean Constantinesco foi professor na Faculdade de Direito e Economia da Universidade do Sarre, na Alemanha, conhecida também pelo seu Instituto de Estudos Europeus. Constantinesco foi diretor deste Instituto e estudou a identificação entre Estado e ordem jurídica, observando: "ordem jurídica e Estado constituem, pelo menos na evolução histórica europeia ou no desenvolvimento ao qual eles deram vida, fatores intimamente relacionados e que não se podem dissociar" [3]. Sob semelhante perspectiva, Marc Ancel fez referência às tendências de "unificação espontânea" do Direito [4]. Magistrado e teórico francês, Ancel foi presidente do Centro Francês de Direito Comparado e autor da obra Utilidade e métodos do direito comparado, de 1971. Ancel parece endossar a crítica de Jhering no sentido de que o direito nacional é um referencial insuficiente para a construção de uma ciência jurídica universal. Citando o pensamento de Stammler e Del Vecchio, Ancel observou a relatividade do direito nacional, que aparece como "expressão particular e, portanto, limitada, da ideia fundamental de Direito" [5]. Ganha evidência, então, o surgimento de uma sociedade globalizada. Aliás, já se disse que a modernidade é "inerentemente globalizante". Com esta afirmação, o britânico Anthony Giddens [6] estabeleceu uma relação clara entre a globalização e a transformação social. Giddens foi professor da Universidade de Cambridge e Diretor da London School of Economics and Politicas Science. Em 1990, publicou a edição original de seu livro As consequências da modernidade, no qual ofereceu uma proposta de interpretação para as transformações da modernidade. Estabeleceu relações entre modernidade, globalização, capitalismo e Estado-nação. Analisando o conjunto institucional da modernidade, Giddens identificou os dois motores centrais da expansão da sociedade moderna: o desenvolvimento do sistema capitalista e a ascensão do Estado-nação enquanto modelo de unidade política de relacionamento global. São acontecimentos que coincidem na cronologia dos fatos e acabam por se entrelaçar ao longo da história. Giddens observou que, na origem, os Estados-nação demonstraram boa capacidade para o exercício do poder administrativo centralizado em comparação aos modelos estatais anteriores, o que se traduziu em maior eficiência na mobilização de recursos sociais e econômicos. O avanço da globalização, no entanto, interferiu neste ambiente institucional. Segundo Giddens, os Estados estariam se tornando "progressivamente menos soberanos do que costumavam ser em termos de controle sobre os seus próprios negócios". Em síntese, "o Estado-nação se tornou muito pequeno para os grandes problemas da vida, e muito grande para os pequenos problemas da vida" [7]. Semelhante abordagem é encontrada na obra de André-Jean Arnaud. Em seu livro Introdução à análise sociológica dos sistemas jurídicos, o autor é categórico ao afirmar que, na conjuntura globalizante, o Estado é "um ator cada vez mais problemático" [8]. Arnaud observa que, a partir das características da sociedade globalizada, as fronteiras dos Estados mostram-se impotentes para reter fluxos transnacionais de informação, o que resulta no desenvolvimento de princípios, estratégias, normas e políticas de alcance mundial. Entre os sociólogos brasileiros do século XX, dedicou-se ao tema Octávio Ianni, professor em universidades do estado de São Paulo. Em seus últimos anos de produção intelectual, Ianni foi premiado pela publicação de A sociedade global. De acordo com o Ianni, a problemática surgida com o fenômeno da globalização traz um desafio para as ciências sociais, pois confere novos significados para conceitos consagrados. Na sua visão, não se trata de um fato acabado, mas de um processo em marcha, identificado como tendência, "relativo a tudo que é internacional, multinacional, transnacional, mundial e planetário" [9]. Ianni registrou que as noções de sociedade nacional ou de Estado nacional "parecem insuficientes, ou mesmo obsoletas" e observou o distanciamento histórico entre o conceito de Estado-nação e a sociedade contemporânea globalizada: "os conceitos envelheceram, ficaram descolados do real, já que o real continua a mover-se, transformar-se" [10]. Em sua visão, os Estados nacionais entraram em declínio diante do surgimento de centros decisórios dispersos em empresas e conglomerados. Aos poucos, emergem estruturas mais nítidas de poder econômico e político em nível mundial, "formas descoladas da sociedade nacional, do Estado-Nação, aos quais frequentemente se sobrepõem". Impactado pela grandeza do fenômeno da globalização, Ianni afirma: "parece não haver qualquer possibilidade de desenvolvimento econômico-social, político e cultural autônomo, nacional, independente e soberano" [11]. Numa síntese: a sociedade global é uma realidade incontestável, em termos econômicos, políticos, sociais e culturais. O modelo teórico do Estado-nação, por sua vez, foi concebido em "um mundo pré-Marx, pré-Darwin, pré-Freud, pré-Einstein", como adverte Paulo Márcio Cruz [12]. Neste contexto, caberá aos cientistas jurídicos e políticos a compatibilização do legado institucional da modernidade com as características da sociedade pós-moderna, tecnológica, transnacional e globalizada, pondo sob questionamento a definição tradicional de Estado. [1] CRUZ, Paulo Márcio. Da soberania à transnacionalidade: democracia, direito e estado no século XXI. Paulo Márcio Cruz, Emanuela Cristina Andrade Lacerda. Itajaí, SC: Univali, 2014, p. 33. [2] CONSTANTINESCO, Leontin-Jean. Tratado de direito comparado: introdução ao direito comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 26. [3] CONSTANTINESCO, Leontin-Jean. Op. cit., p. 30. [4] ANCEL, Marc. Utilidade e métodos do direito comparado. Tradução Sérgio José Porto. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1980, p. 94-5. [5] ANCEL, Marc. Op. cit., p. 141. [6] GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Tradução: Raul Fiker. São Paulo: Editora Unesp, 1991, p. 75. [7] GIDDENS, Anthony. Op. cit., p. 77-8. [8] ARNAUD, André-Jean; DULCE, María José Fariñas. Introdução à análise sociológica dos sistemas jurídicos, p. 354-5. [9] IANNI, Octavio. A sociedade global. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996, pp. 9 e 24. [10] IANNI, Octavio. Op. cit., p. 35-40. [11] IANNI, Octavio. Op. cit., p. 47. [12] CRUZ, Paulo Márcio. Op. cit., p. 25.
2023-01-01T08:00-0300
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Público & Pragmático
Combate à corrupção e à lavagem de dinheiro com criptomoedas
As criptomoedas foram concebidas nas décadas de 1980 e 1990, criadas nas décadas de 2000 e 2010 e aprimoradas nas décadas de 2010 e 2020. Precisamente, em 31 de outubro de 2008, Satoshi Nakamoto publicou o white paper Bitcoin: A Peer-To-Peer Electronic Cash System e principiou-se, então, a criptoeconomia [1]. Ao contrário das moedas fiduciárias de curso forçado — tais quais o Real, a unidade do Sistema Financeiro Nacional —, as criptomoedas são bens econômicos sem fidúcia e sem curso forçado, mas que performam como meios de troca, reservas de valor e unidades de conta, porquanto divisíveis, portáteis, duradouros e escassos [2]. Essencialmente, as criptomoedas não são bens econômicos materiais (tangíveis, ou físicos), mas imateriais (intangíveis, ou digitais), e, em suma, a imaterialidade das criptomoedas permite a realização de transações descentralizadas (sem intermédio de bancos, sejam públicos, sejam privados, por exemplo) desses bens econômicos. As criptomoedas viabilizam, portanto, transações diretas entre parte e contraparte, sem ingerência de terceiros. Basta, para isso, que parte e contraparte acessem as redes de criptomoedas e realizem transações, identificando-se por intermédio de chaves, ou, a rigor, credenciais, públicas (não criptografadas) e privadas (criptografadas). Essas transações são, descentralizada e publicamente, registradas em blockchains (correntes de blocos), e esses registros são, então, validados. Contudo, a descentralização das criptomoedas é, argumentativamente, passível de majorar a prática dos crimes de corrupção, tanto ativa quanto passiva, e de lavagem de dinheiro — tipificados, respectivamente, pelos artigos 317 e 333 do Código Penal e pelo artigo 1º da Lei nº 9.613/1998 — em razão do isolamento dos sistemas financeiros nacionais e internacionais do sistema criptofinanceiro [3]. É dizer: ainda que a identidade da parte e da contraparte sejam públicas, não há, necessariamente, identificação das pessoas naturais ou jurídicas que figuram como parte e contraparte nessas transações de criptomoedas, e, uma vez que transitem dos sistemas financeiros nacionais e internacionais para o sistema criptofinanceiro, não há ingerência de terceiros, inclusive do Estado, sobre as criptomoedas. As criptomoedas incrementam, decerto, a complexidade operacional dos crimes de corrupção e de lavagem de dinheiro, uma vez que viabilizam a dispersão, em relação aos sistemas financeiros nacionais e internacionais, do produto dos referidos crimes, que podem, inclusive, ser transacionados — por servidores públicos, por exemplo —, na forma de criptomoedas, a pessoas naturais ou jurídicas internacionais, não jurisdicionadas no Brasil. A despeito da conclusão de que criptomoedas são infimamente, se comparadas às moedas fiduciárias de curso forçado, utilizadas para praticar crimes de corrupção e de lavagem de dinheiro, decorrente de análises de dados on-chain de criptomoedas, coibir a prática de quaisquer crimes instrumentalizados por criptomoedas deve ser, e efetivamente é, a prioridade da produção de normas jurídicas em matéria de criptomoedas, sobretudo quando ponderados, no processo jurídico-normativo, os princípios da Administração Pública positivados pelo artigo 37 da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), quais sejam, os princípios de acordo com os quais a administração pública deve ser legal, impessoal, moral, pública e eficiente, dentre outros [4]. Assim, a preocupação com a prática dos crimes de corrupção e de lavagem de dinheiro, além de outros atos ilícitos, sobretudo concernentes à administração pública, está consignada nas normas jurídicas em matéria de criptomoedas, a exemplo dos Comunicados nº 25.306/2014 e nº 31.379/2017 do Banco Central do Brasil, que alertam, prospectivamente, acerca da possibilidade de o Estado investigar, em razão da prática de atos ilícitos, os usuários de criptomoedas, a despeito de boa ou má-fé. Analogamente, a Instrução Normativa nº 1.888/2019 da Receita Federal do Brasil prescreve que, havendo indício de prática do crime tipificado pelo artigo 1º da Lei nº 9.613/1998, qual seja, o crime de lavagem de dinheiro, a Receita Federal do Brasil deve, além de sancionar juridicamente com multa, comunicar oficialmente o Ministério Público Federal, ensejando, assim, investigação acerca da prática do crime de lavagem de dinheiro. Nada obstante, tem-se que a produção de normas jurídicas em matéria de criptomoedas, é, decerto, incipiente, preponderando, quantitativamente, não as leis, mas os projetos de lei, que, potencialmente, convolar-se-ão em normas jurídicas e orientarão o combate à prática dos crimes de corrupção e de lavagem de dinheiro, mormente no âmbito da administração pública. Dentre os principais projetos de lei propostos, destaca-se o Projeto de Lei nº 2.303/2015 (no Congresso Nacional), ou nº 4.401/2021 (no Senado Federal), que, atualmente, orienta os demais projetos de lei em matéria de criptomoedas. Especificamente, o artigo 2º do referido Projeto de Lei propõe a inclusão do § 4º ao artigo 11 da Lei nº 9.613/1998, para que o artigo 11, I, da Lei nº 9.613/1998, que prescreve o dever de pessoas naturais e jurídicas de dispensar especial atenção às transações de criptomoedas que indiciem a prática do crime de lavagem de dinheiro, incida sobre as transações de criptomoedas. Outrossim, o Projeto de Lei nº 2.234/2021 propõe a majoração da pena do crime de lavagem de dinheiro se praticado por intermédio de criptomoedas. Ademais, de acordo com o artigo 7º do Projeto de Lei nº 3.825/2019, as ICO (Initial Coin Offers, ou ofertas iniciais de moedas), recurso utilizado para a prática dos crimes de corrupção e de lavagem de dinheiro, deverão se submeter à Comissão de Valores Mobiliários, bem como ao Banco Central do Brasil e à Receita Federal do Brasil, para combater a prática dos referidos crimes. Analogamente, o Projeto de Lei nº 2.164/2021 prescreve que, para emitir criptoativos, a pessoa jurídica de direito público ou de direito privado deve ser estabelecida no Brasil e emiti-los de modo compatível com as atividades que desenvolve e com os mercados em que atua. Notadamente, o estado da arte do combate à prática dos crimes de corrupção e de lavagem de dinheiro por intermédio de criptomoedas é incipiente, mas, concomitantemente, é, também, o núcleo da produção de normas jurídicas em matéria de criptomoedas. Em regra, para que seja efetivo, o combate à prática desses crimes depende, mormente, da identificação das interseções entre os sistemas financeiros nacionais e internacionais e o sistema criptofinanceiro. No sistema criptofinanceiro, não há ingerência do Estado sobre as transações de criptomoedas, mas, nos demais sistemas, há. Consequentemente, o objeto (ou um dos objetos) das normas jurídicas devem ser as pessoas, sobretudo jurídicas, que performam como bancos ou como corretoras de criptomoedas. A esse respeito, observa-se que, também quando consideradas as implicações criminais, sobretudo no âmbito da Administração Pública, o Ofício Circular nº 4.081/2020 do Ministério da Economia subsiste. Isso porque, de acordo com o referido Ofício Circular, pode-se integralizar o capital de sociedades empresárias com criptomoedas, e, por um lado, o combate aos crimes de corrupção e de lavagem de dinheiro é combatido na interseção entre os sistemas financeiros nacionais e internacionais e o sistema criptofinanceiro e, por outro lado, a integralização de capital de sociedades empresárias com criptomoedas é uma dessas interseções. Hodiernamente, no Brasil, tornou-se enfático o combate à prática dos crimes de corrupção e de lavagem de dinheiro, o que contribui para a consignação da percepção de higidez da Administração Pública, sobretudo em face dos princípios, prescritos pelo artigo 37 da CRFB, de impessoalidade, de moral, de publicidade e de eficiência, dentre outros, aos quais a Administração Pública deve se adstringir [5]. Por isso, sem coibir as transações de criptomoedas, que, efetivamente, promovem os direitos fundamentais à liberdade, à propriedade e à liberdade monetária [6], a produção de normas jurídicas em matéria de criptomoedas deve identificar as interseções entre os sistemas financeiros nacionais e internacionais e o sistema criptofinanceiro e, então, jurisdicionar, dificultando ou facilitando, as formas como bens econômicos transitam entre os sistemas. Ademais, deve-se rememorar que, ao contrário das transações de moedas fiduciárias de curso forçado, as transações de criptomoedas são públicas, de modo que a análise de dados on-chain, isto é, dados das blockchains das criptomoedas, está, sempre, à disposição do Estado no combate à corrupção e à lavagem de dinheiro. Em síntese, tem-se que, como tecnologia, as criptomoedas podem promover os direitos fundamentais à liberdade, à propriedade e à liberdade monetária dos usuários de criptomoedas, e, porquanto públicas, podem, inclusive, promover o combate à prática dos crimes de corrupção e de lavagem de dinheiro. Para tanto, é preciso disciplinar as interseções entre os sistemas financeiros nacionais e internacionais e o sistema criptofinanceiro, sem, contudo, coibir as transações de criptomoedas. Desse modo, o ordenamento jurídico brasileiro disporá de recursos para promover a higidez da administração pública no contexto de transformações monetárias digitais.
2023-01-01T08:00-0300
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Opinião
Carlos Machado: Transação tributária e rebuliço hermenêutico
As relações sociais da contemporaneidade sugerem um feixe de complexidades que legitimam as vias plurais de prevenção e resolução de litígios, descortinando, também nos redutos do Direito Tributário, um modelo multiportas dotado de mecanismos diversos para o enfrentamento da conflitualidade. O paradigma multiportas reflete uma nova dogmática jusfilosófica que impõe revisitar os conceitos históricos que sustentaram a essencialidade do Estado em questões sensíveis, notadamente a dissipação de disputas jurídicas erigidas a partir de objetos outrora identificados com os chamados interesses (indisponíveis) públicos. No Brasil, só recentemente foram rompidas as fronteiras para algum avanço da consensualidade e da concertação em controvérsias envolvendo os créditos de natureza tributária, especialmente diante da postura mais compassiva da administração pública e de avanços significativos em termos legislativos. Esse cenário oferece contornos para a percepção de uma administração pública ressignificada, mais dialógica e menos ensimesmada, aberta ao colóquio pluralizado de interesses diversificados, corporificados no âmago de sociedades cada vez mais complexas, plurais e multifacetadas. É argumento prosaico que a lei sempre representou a segurança mais efetiva dos cidadãos contra arroubos autoritários dos poderes instituídos, todavia, hoje, tem sido justamente referenciada como um embrião de insegurança para o direito, diante da profusão demasiadamente complexa, excessiva e mal elaborada. Esse ambiente disruptivo passa a reconhecer, notadamente no Estado constitucional de direto, um postulado jurídico de envergadura mais abrangente, que atende por tutela jurisdicional efetiva, afirmando mecanismos mais adequados para a prevenção e resolução de conflitos, abertos à efetiva participação dos contribuintes e qualificados por equivalente dignidade jurídico-constitucional. Com o advento da Lei Federal nº 13.988, de 2020, fruto de conversão da Medida Provisória nº 899, de 2019, finalmente resultou regulamentado o artigo 171 do Código Tributário Nacional, revelador de uma disposição normativa geral, alvo de menoscabo longevo, já existente no ordenamento jurídico brasileiro desde o ano de 1966. O sucesso quase imediato da transação tributária na esfera federal, catapultado seguramente pela pandemia da Covid-19, impulsionou a concretização de milhares de negociações entabuladas entre os contribuintes e a Fazenda pública, abarcando os mais diferentes setores da economia nacional. Nada obstante, a consagração da transação tributária mais corriqueira, forjada a partir de mera adesão às regras propostas pela administração tributária, mediante condições editalícias rígidas, acabou elevando diversos debates sobre a natureza do instituto negocial. Isso porque, em seu anunciado fundamento teleológico, o modelo transacional elevou-se como um triunfo da consensualidade e da autonomia de vontades, objetivando uma ruptura com a sistemática indiscriminada dos parcelamentos. Malgrado o inegável avanço promovido pelo modelo transacional, ainda que distante de uma negociação em essência mais efetiva (o que ficou limitado às "propostas individuais"), remanesceram críticas razoáveis quando a negociação viceja reduzida à mera anuência das condições editalícias. Nessa linha, retomando a previsão em norma geral a respeito da transação tributária, que qualifica o instituto como modalidade de "extinção do crédito tributário", decorre indisputável controvérsia em cotejo com os tradicionais entendimentos manifestados pela doutrina e pelas enunciações recentes em formulações parlamentares. Daí porque é necessário resgatar a gênese dos institutos de ascendência privada que têm sido incorporados ao Direito Tributário, sob pena de indesejável sobreposição conceitual de proposições normativas com realidades e propósitos distintos. Como instituto de origem privada, a transação já revela controvérsia no próprio seio da disciplina civil. O Código Civil de 1916, hoje revogado, tratou da transação como causa/efeito extintivo das obrigações, não como modalidade de contrato. Já no atual Código Civil de 2002, a transação subsistiu como espécie contratual (artigo 840). O Código Tributário Nacional, por certo, sob a influência da legislação privada, enquadrou a transação tributária como modalidade de extinção do crédito tributário (artigo 156, III). A doutrina abalizada, já há tempos, vem tentando definir os contornos da transação internalizada pelo direito tributário e buscando responder as inúmeras controvérsias que circundam a hermenêutica do instituto [1]. Luís Eduardo Schoueri propôs que a transação tributária, uma vez concluída, "extingue o crédito tributário, por força do artigo 171 do Código Tributário Nacional. O que surge em seu lugar é um novo crédito, resultado da transação. Claro que esse crédito tem natureza pública, mas seu 'fato gerador' é a própria transação" [2]. Paulo de Barros Carvalho, por sua vez, afirma que "é curioso verificar que a extinção da obrigação não se dá propriamente por força das concessões recíprocas, e sim do pagamento. O processo de transação tão somente prepara o caminho para que o sujeito passivo quite sua dívida, promovendo o desaparecimento do vínculo" [3]. Em paralelo, Hugo de Bruto Machado destaca que "não se pode, entretanto, excluir a transação como causa da extinção do crédito tributário, na medida em que, havendo concessão por parte da Fazenda, como no caso em que ocorre dispensa, total ou parcial, de multa e juros, ou mesmo de parte do valor do tributo, é a transação que causa a extinção do vínculo, nessa parte consubstanciada pela concessão da Fazenda" [4]. A realidade que se impõe, no entanto, evidencia que os modelos de transação tributária edificados pela legislação ordinária (notadamente a Lei Federal nº 13.988, de 2020), quando confrontados com a norma geral, têm sido objeto de uma hermenêutica bem mais elastecida (que combina pagamento, parcelamento, moratória, remissão, garantias etc.), em alinhamento com o paradigma de consensualidade típico dos nossos tempos. Na verdade, a previsão da transação tributária sempre existiu por detrás de um véu de incertezas, restando implementada, só recentemente, como evidente medida de política fiscal para enfrentamento da litigiosidade endêmica. E a profusão de modalidades diversas de transação tributária, com configurações criativas e até mesmo desatreladas do conceito maternal (contemplado em norma geral), desnudou a potencialização do conceito vacilante. Nenhuma leitura das disposições codificadas sobre a transação tributária poderia ser mais autêntica, talvez, que a realizada por Rubens Gomes de Sousa, autor do Anteprojeto do Código Tributário Nacional, partindo declaradamente de uma análise do direito privado: "Transação, regulada pelo art. 1.025 do Código Civil, é o ajuste pelo qual as partes terminam um litígio ou evitam que ele se verifique, mediante concessões mútuas. Isto não seria possível no direito tributário, porque, como já vimos, a atividade administrativa do lançamento é vinculada e obrigatório (§ 25), o que significa que a autoridade fiscal não pode deixar de efetuar o lançamento exatamente como manda a lei, não podendo fazer concessões". Rubens Gomes de Sousa acrescenta, ademais, que uma única situação permitiria a transação no Direito Tributário: "Entretanto, existe uma exceção, quanto aos tributos federais, porém somente quando a questão já esteja sendo discutida em juízo: a Lei n. 1.341, de 31.1.51, que regula a atuação dos Procuradores da República, permite, mediante autorização expressa do Procurador Geral em cada caso, que os Procuradores Regionais façam acordos com o contribuinte para terminar o processo: é uma medida necessária quando se verifique que a Fazenda poderá perder parcialmente o processo, a fim de evitar demora, pagamento de custas, etc. (13)" [5]. Resgatando novamente o conceito geral do Código Tributário Nacional, que deve servir como ponto de partida para uma análise mais coerente do instituto (artigo 146, III, da CF/88), tem-se um resultado aparentemente tranquilo quanto à natureza jurídica da transação tributária, o que sugere compreender o instituto como uma modalidade de negociação entabulada com o propósito de extinguir o crédito tributário, mediante a realização de "pagamento imediato" — justamente por isso "extingue". Note-se que a norma geral é bastante clara, prevendo que é a própria transação que figura como causa de extinção do crédito tributário, sem qualquer espécie de ressalva ou de condicionamento. Nesse sentido, basta verificar, como ocorre noutras modalidades de extinção do crédito tributário, que a legislação complementar estabeleceu condicionantes. Significa dizer que o mero "pagamento antecipado", exclusivamente, naquelas hipóteses de tributos sujeitos a lançamento por homologação, não é suficientemente capaz de extinguir o crédito tributário, mas, sim, a efetiva homologação do pagamento, de maneira expressa ou tácita (artigo 156, VII). Também não é a "consignação em pagamento", per si, que extingue o crédito tributário, mas o julgamento de "procedência da ação proposta", quando, só então, o pagamento do crédito tributário se reputa efetuado (artigo 156, VIII). Resulta claro, portanto, que o elemento decisivo para o idealizador do Código Tributário Nacional, no tocante à extinção do crédito tributário pela transação, é a ideia de negociação tributária acompanhada do pagamento imediato. Sem embargo, a miscelânea de institutos incorporados aos modelos consensuais de transação tributária vem desnaturando (e ressignificando) a ideia forjada na década de 1960, quando editado o Código Tributário Nacional, sendo inegável que as moratórias e os parcelamentos, por exemplo, quando admitidos acessoriamente à negociação da dívida tributária, acabam trazendo intrincados problemas teóricos. Em suma, sob o recorte temporal da época, a transação tributária apontava para um mecanismo de natureza muito mais simples, até porque defender redutos de consensualidade no Direito Tributário há cinquenta anos soava como uma retumbante heresia. [1] A ideia de transação como "novação" nas cercanias do Direito Tributário foi peremptoriamente refutada pelo art. 12, § 3º, da Lei nº 13.988, de 2020: "A proposta de transação aceita não implica novação dos créditos por ela abrangidos". [2] SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 10. ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2021. p. 379. [3] CARVALHO, P. B. Curso de direito tributário. 31. ed. São Paulo: Noeses, 2021. p. 496. [4] MACHADO, Hugo de Brito. Transação e arbitragem no âmbito tributário. Revista Fórum de Direito Tributário (RFDT), Belo Horizonte: Fórum, ano 5, nº 28, p. 57, jul./ago. 2007. p. 57. [5] SOUSA, R. G. (Coord. IBET). Compêndio de legislação tributária. p. 116.
2023-01-02T15:16-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-02/carlos-machado-transacao-tributaria-rebulico-hermeneutico
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Direito de defesa
Novo governo acerta ao alterar espaço institucional do Coaf
Em janeiro de 2020, o Congresso Nacional converteu em lei uma medida provisória expedida por Jair Bolsonaro, que deslocava o Coaf do Ministério da Fazenda para o Banco Central. À época escrevi um artigo neste espaço da ConJur com críticas à medida, em especial porque a alteração parecia enfraquecer um órgão indispensável ao combate à lavagem de dinheiro. Passados três anos, o novo governo traz de volta o Coaf para o Ministério da Fazenda, em decisão que parece bastante acertada, pelos motivos que tomo a liberdade de repetir, na esteira das reflexões pretéritas. 1. As Unidades de Inteligência Financeira: os diversos modelos internacionais A melhor forma de combater organizações criminosas é identificar e bloquear seus bens. Para além da prisão de membros, a supressão de recursos é fundamental para esvaziar sua estrutura e capacidade de atuação. Os produtos dos crimes praticados por essas organizações são em geral escondidos e reinseridos na economia formal através de diversas modalidades de lavagem de dinheiro. Para isso, são utilizadas operações simuladas e fraudes para conferir aos recursos de origem criminosa uma aparência de licitude. Como o Estado não tem capacidade de fiscalizar todos os atos financeiros e comerciais usados para mascarar bens, diversos países — entre eles o Brasil — criaram um sistema de colaboração compulsória, pelo qual profissionais e entidades que trabalham em setores mais usados por criminosos para ocultação de recursos devem notificar autoridades públicas sempre que tomarem conhecimento de operações suspeitas, como transações com altos valores em espécie ou depósitos fracionados. Assim, bancos, prestadoras de serviços de ativos virtuais, cartórios, seguradoras, joalheiros, leiloeiros de arte, dentre outros, têm obrigação de colaborar com o poder público e comunicar atos de possível ocultação de bens ilícitos. Tais comunicações são feitas às Unidades de Inteligência Financeira (UIFs), órgãos públicos com atribuição de recolher dados, organizá-los e repassá-los às autoridades competentes para investigar a lavagem de dinheiro, como o Ministério Público. Diversas recomendações de entes internacionais de combate à lavagem de dinheiro recomendam a instituição de UIFs para sistematizar informações sobre movimentações atípicas de capital, aprimorar o combate à reciclagem de capitais e facilitar o intercâmbio de experiências em âmbito internacional. Nessa linha, o Gafi (Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo) recomendou que os países criassem Unidades de Informação Financeira (UIF) que servissem como centro para receber, analisar e transmitir declarações de operações suspeitas (Recomendação 29). A Diretriz 2018/843 do Conselho Europeu destaca a importância das UIFs no combate ao terrorismo e à lavagem de dinheiro e indica como "essencial reforçar a eficácia e a eficiência das UIFs" [1]. Diante disso, diversos países criaram UIFs, com diferentes estruturas, a depender de sua vocação institucional e tradição jurídica. Existem basicamente três espécies de Unidades de Inteligência Financeira: (1) judiciais (2) coercitivas, (3) administrativas — sem considerar as híbridas, que mesclam elementos de cada uma delas. As unidades judiciais são previstas, em geral, naqueles países nos quais o Ministério Público é parte integrante do Judiciário. Neles, as unidades têm natureza persecutória penal porque o próprio órgão responsável pela acusação possui os instrumentos de acompanhamento ou recebimento de informações sobre operações suspeitas. As unidades coercitivas têm natureza administrativa, mas podem determinar medidas cautelares como suspensão de transações, congelamento e sequestro de bens. Por fim, as administrativas têm atribuição exclusiva de sistematização de informações e produção de análises sobre possíveis operações ilegais ou atípicas. Não têm poder de determinar medidas de coerção ou de iniciar processos judiciais. Apenas colhem a informação e comunicam, provocam ou instruem os demais órgãos competentes para a persecução penal ou investigação, como o Ministério Público e a polícia, nos termos e limites da lei. Dado o papel central das UIFs no combate à lavagem de dinheiro, a comunidade internacional recomenda que os países se esforcem para garantir sua autonomia institucional, livrando-as de ingerências políticas e de manipulações que dificultem o exercício de suas funções. Em regra, tais entidades são ligadas diretamente a Ministérios da Fazenda ou da Justiça, com quadro próprio de servidores e estrutura orçamentária adequada. 2. O Coaf A unidade de inteligência brasileira é o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) — e tem natureza administrativa. Não se trata de órgão de investigação ou julgamento, nem de entidade com capacidade de promover medidas cautelares como quebras de sigilo ou bloqueio de bens. O Coaf é um órgão de inteligência, com atribuição estrita de receber, armazenar e sistematizar informações sobre operações suspeitas, elaborar relatórios sobre tais dados e enviá-los aos órgãos de investigação (polícia e Ministério Público), nos limites definidos em lei. A lei de lavagem de dinheiro elenca, em seu artigo 9º, as pessoas físicas ou jurídicas que têm a obrigação de comunicar ao Coaf atos suspeitos de lavagem de dinheiro praticados em seu setor. Trata-se de uma gama heterogênea de atividades, que vai daquelas estritamente reguladas por órgão específico, como bancos, custodiantes, emissores e distribuidores de valores mobiliários, empresas de seguro, capitalização ou previdência privada até outras sem órgão regulador próprio, como o comércio de joias, metais preciosos, pedras, objetos de arte e antiguidades. Justamente por receber informações de pessoas físicas e jurídicas de tantos e diferentes setores, o Coaf deve ser um órgão eclético, composto por representantes de diversos órgãos públicos, e não deve estar subordinado a uma autarquia específica, como o Banco Central. Por mais que esse órgão tenha experiência na prevenção à lavagem de dinheiro, suas funções não se confundem com as do Coaf. Aquele regulamenta e fiscaliza o sistema financeiro e as instituições financeiras. Esse é mais abrangente, pois recebe e sistematiza e informações de inúmeros setores, a maior parte deles sem qualquer relação com o sistema financeiro, como o comércio de bens de luxo, a corretagem de imóveis e a atividade notarial e de registros públicos. Apenas em 2022, o Coaf recebeu mais de 420 mil comunicados de notários e registradores, e mais de 320 mil oriundos do mercado segurador, não regulados pelo Banco Central, a revelar que o espectro de prevenção à lavagem de dinheiro é mais amplo do que as atividades reguladas por essa autarquia. A existência de um Coaf forte e independente é a chave para prevenir e combater a lavagem de dinheiro. Isso passa por garantir que o órgão tenha capacidade de interagir com setores regulados por diversas entidades, objetivo mais fácil de atingir quando não se é subordinado a uma autarquia específica, como Banco Central. Nesse sentido, merece elogios a medida tomada pelo novo governo. Que os próximos passos garantam uma política criminal efetiva, pautada pela legalidade no manejo dos dados pessoais e pela eficiência no tratamento das informações.   [1] Considerando 16 da DIRETIVA (UE) 2018/843 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 30 de maio de 2018 que altera a Diretiva (UE) 2015/849 relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo e que altera as Diretivas 2009/138/CE e 2013/36/UE [2] Lei 9.613/98. art. 16 e Decreto 9663/19, art. 3º [3] Gafi — Nota interpretativa 8 da Recomendação 29 (UIFs) [4] Gafi — Nota interpretativa da Recomendação 29 (UIFs) [5] Lei 83/2017, art. 83 [6] Gafi – Nota interpretativa da Recomendação 29 (UIFs)
2023-01-03T09:55-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-03/governo-acerta-alterar-espaco-institucional-coaf
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Opinião
Paulo de Bessa: A nova estrutura do Ministério do Meio Ambiente
Este artigo objetiva fazer uma análise preliminar das modificações introduzidas pela administração Lula na estrutura administrativa federal voltada para a proteção do meio ambiente e dos povos e populações tradicionais. É muito provável que surjam modificações nas novas estruturas, em função de acomodações políticas e solução de incompatibilidades e inconsistências entre os instrumentos normativos baixados. A Medida Provisória 1.154/2023 [MP] fez uma ampla reformulação da administração pública federal, com a instituição de novos ministérios e a transformação do Ministério do Meio Ambiente em Ministério do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas (MMA). Também merecem destaque na MP as criações do Ministério da Igualdade Racial (MIR) e o dos Povos Indígenas (MPI). Espera-se que tais inovações tenham impacto em vários assuntos de grande interesse para o país, tais como os direitos humanos, respeito aos direitos indígenas e de comunidades tradicionais, desflorestamento, atividades minerárias, infraestrutura, acesso à diversidade biológica e muitos outros. O artigo 33 da MP 1.154/2023, ao dispor sobre as competências do Ministério da Igualdade Racial estabeleceu competir ao novo ministério as políticas para quilombolas, povos e comunidades tradicionais, dentre outras. Neste ponto é importante observar que a inclusão dos povos e comunidades tradicionais como sujeitos à proteção do recém-criado ministério, nos permitiria supor que as questões relativas à aplicação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho a tais povos e comunidades tradicionais estariam sob o guarda-chuva do MIR. Contudo, a estrutura organizacional do MIR, aprovada pelo Decreto nº 11. 346/2023, em seu artigo 1º, III atribui competência para o novo ministério para "políticas para quilombolas, povos e comunidades tradicionais". Entretanto, os artigos 22, 23 e 24 não definem claramente, dentre as competências, as políticas para comunidades tradicionais que não estejam vinculadas à matriz africana, como caiçaras, por exemplo. O Decreto nº 11.338 que aprovou a estrutura regimental do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar faz menções genéricas às comunidades tradicionais, prevendo uma Secretaria de Territórios Produtivos Quilombolas e Tradicionais. Aqui há uma omissão que deve ser solucionada. O MMA, conforme o disposto no artigo 36 na MP 1.154/2023 [1], recuperou a competência sobre diversos temas que na administração passada haviam sido deslocados para outros ministérios. destaque maior, entretanto, é sobre as novas atribuições da pasta. Ressaltem-se as (1) estratégias, mecanismos e instrumentos regulatórios e econômicos para a melhoria da qualidade ambiental e o uso sustentável dos recursos naturais, as (2) políticas para a integração da proteção ambiental com a produção econômica e (3) as políticas para a integração entre a política ambiental e a política energética. Tais competência, ao mesmo em nível formal, dão ao novo MMA um inédito protagonismo, Entretanto, não se pode deixar de registar que ao Ministério das Minas e Energia foi reservada uma atribuição ambiental da maior importância, conforme o disposto no artigo 37, IX e XI da MP 1.154/2023, a saber as (1) políticas nacionais de sustentabilidade e de desenvolvimento econômico, social e ambiental dos recursos elétricos, energéticos e minerais e a (2) avaliação ambiental estratégica, quando couber, em conjunto com o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima e os demais órgãos relacionados. A AAE é uma medida de planejamento que, necessariamente, deve estar correlacionada ao Zoneamento econômico-ecológico, não fazendo sentido que fique fora do âmbito do MMA. A AAE terá a participação na elaboração do MMA "quando couber", o que é uma hipótese vaga e indefinida. A conversão da MP em lei, deveria realocar tal competência para o MMA, como parece ser o local evidente para tal AAE. Em relação à Agência Nacional de Águas (ANA) não há clareza sobre a sua localização na estrutura da administração federal, haja vista que a autarquia está presente no MMA [2] e no Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional [3], havendo também muitas competências em relação à água no Ministério das Cidades [4]. Esta situação merece um pronto esclarecimento. A determinação presidencial para a reorganização o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), em tal contexto, é muito relevante. Contudo, não se pode perder de vista que há um novo quadro normativo que, se mantido, exige uma nova estruturação do Conama que com ele seja compatível. Refiro-me, em especial, aos artigos 21 e 24 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb) [5] e a Lei de Liberdade Econômica. Esta última, em seu artigo 5º [6] e seu Regulamento (artigo 1º) determina que os órgãos da administração pública que produzam atos normativos de interesse geral de agentes econômicos, inclusive órgãos colegiados, deverão proceder previamente, à edição de novos atos, à chamada análise de impacto regulatório (AIR) [7]. Há hipótese de dispensa da AIR [8], com a exigência da elaboração de nota técnica sobre a matéria, justificando a dispensa. Veja-se que tais determinações são obrigatórias para o MMA e seus órgãos vinculados [9]. Ainda no âmbito do MMA, o Decreto nº 11.373/2023, alterou o Decreto 6.514/2008, em especial no que se refere ao processo sancionatório. O fato é que o Decreto 6.514/2008 é uma colcha de retalhos tendo em vistas as suas inúmeras alterações. Na parte processual da aplicação das sanções, é importante que a nova administração dê passos no sentido de criar uma instância autônoma e independente para o julgamento dos autos de infração. Os sistemas que foram até aqui utilizados são pouco eficientes e, na prática, atrapalham a própria arrecadação dos valores decorrentes de multas. Um novo modelo, entretanto, não se implanta em 24 horas. A estrutura básica do MMA sofreu uma reformulação interessante, na medida em que incorporou temas atuais. Merece destaque a Secretaria Nacional de Biodiversidade, Florestas e Direitos Animais que conta com um Departamento de Proteção, Defesa e Direitos Animais com atribuições para a promoção da proteção, defesa, bem-estar e direitos animais. No tema de bem-estar animal é possível imaginar que o MMA tenha embates com o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), pois o artigo 1º, XII do Decreto nº 11.332/2023 [10], institui competência para o Mapa no mesmo tema. Parece ser evidente que o MMA não se limitará a cuidar dos chamados animais de companhia (pets), sendo razoável supor que terá influência na situação dos animais para abate, "práticas esportivas", trabalho e outras. Naturalmente, as questões relativas às mudanças climáticas ganharam um merecido protagonismo, com estruturas compatíveis. A reorganização do Fundo Nacional do Meio Ambiente (Decreto nº 11.372/2023) é medida apropriada, pois recoloca a sociedade civil em papel de destaque na sua gestão. A revogação pura e simples do Decreto nº 10.966/2022 foi medida acertada, pois a norma revogada era um incentivo às práticas garimpeiras ilegais. O restabelecimento dos demais fundos ambientais também é medida para se celebrar. O Ministério dos Povos Indígenas é uma importante novidade que merece aplausos. Conforme o artigo 42 da MP nº 1.154/2023 são da competência do MPI a política indigenista em seu sentido amplo e, especialmente, o (1) reconhecimento, garantia e promoção dos direitos dos povos indígenas; o (2) reconhecimento, demarcação, defesa, usufruto exclusivo e gestão das terras e dos territórios indígenas; o (3) bem-viver dos povos indígenas; a (4) proteção dos povos indígenas isolados e de recente contato; e os (5) acordos e tratados internacionais, em especial a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), quando relacionados aos povos indígenas. É também, simbolicamente, relevante a nova denominação da Funai que passa a ostentar o noma de Fundação Nacional dos Povos Indígenas [11]. O consentimento prévio livre e informado, certamente, crescerá de importância com o MPI e a Funai revigorada. As modificações normativas são importantes e, certamente, são bem-vindas e oportunas, ainda que alguns ajustes se façam necessários. O novo MMA surge com uma estrutura mais robusta do que as anteriores, em especial devido à reativação os fundos ambientais que colaborarão com o financiamento das medidas necessárias. Somente a prática administrativa será capaz de definir o grau de relevância do MMA no interior da administração federal, bem como superar as superposições existentes com outros órgãos. [1] Art. 36. Constituem áreas de competência do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima: I - política nacional do meio ambiente; II - política nacional dos recursos hídricos; III - política nacional de segurança hídrica; IV - política nacional sobre mudança do clima; V - política de preservação, conservação e utilização sustentável de ecossistemas, biodiversidade e florestas; VI - gestão de florestas públicas para a produção sustentável; VII - gestão do Cadastro Ambiental Rural - CAR em âmbito federal; VIII - estratégias, mecanismos e instrumentos regulatórios e econômicos para a melhoria da qualidade ambiental e o uso sustentável dos recursos naturais; IX - políticas para a integração da proteção ambiental com a produção econômica; X - políticas para a integração entre a política ambiental e a política energética; XI - políticas de proteção e de recuperação da vegetação nativa; XII - políticas e programas ambientais para a Amazônia e para os demais biomas brasileiros; XIII - zoneamento ecológico-econômico e outros instrumentos de ordenamento territorial, incluído o planejamento espacial marinho, em articulação com outros Ministérios competentes; XIV - qualidade ambiental dos assentamentos humanos, em articulação com o Ministério das Cidades; XV - política nacional de educação ambiental, em articulação com o Ministério da Educação; e XVI - gestão compartilhada dos recursos pesqueiros, em articulação com o Ministério da Pesca e Aquicultura. [2] MP 1154/2023. Art. 60. A Lei nº 9.984, de 17 de julho de 2000, passa a vigorar com as seguintes alterações: "Art. 3º Fica criada a Agência Nacional de Águas - ANA, autarquia sob regime especial, com autonomia administrativa e financeira, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, com a finalidade de implementar, em sua esfera de atribuições, a Política Nacional de Recursos Hídricos, integrante do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. [3] Art. 2º O Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional tem a seguinte estrutura organizacional:...V - entidades vinculadas: a) autarquias: 5. Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA [4] MP 1153/2023. Art. 20. Constituem áreas de competência do Ministério das Cidades: ...II - políticas setoriais de habitação, de saneamento ambiental, de mobilidade e trânsito urbano, incluídas as políticas para os pequenos Municípios e a zona rural; III - promoção de ações e programas de urbanização, de habitação e de saneamento básico e ambiental, incluída a zona rural, de transporte urbano, de trânsito e de desenvolvimento urbano; V - planejamento, regulação, normatização e gestão da aplicação de recursos em políticas de desenvolvimento urbano, urbanização, habitação e saneamento básico e ambiental, incluídos a zona rural, a mobilidade e o trânsito urbanos; e VI - participação na formulação das diretrizes gerais para conservação dos sistemas urbanos de água e para adoção de bacias hidrográficas como unidades básicas do planejamento e da gestão do saneamento. [5] Art. 21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos......Art. 24. A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas Parágrafo único. Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público. [6] Lei nº 13.874/2019. Art. 5º — As propostas de edição e de alteração de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados, editadas por órgão ou entidade da administração pública federal, incluídas as autarquias e as fundações públicas, serão precedidas da realização de análise de impacto regulatório, que conterá informações e dados sobre os possíveis efeitos do ato normativo para verificar a razoabilidade do seu impacto econômico. Parágrafo único. Regulamento disporá sobre a data de início da exigência de que trata o caput deste artigo e sobre o conteúdo, a metodologia da análise de impacto regulatório, os quesitos mínimos a serem objeto de exame, as hipóteses em que será obrigatória sua realização e as hipóteses em que poderá ser dispensada. [7] Decreto nº 10.411/2020: Art. 1º Este Decreto regulamenta a análise de impacto regulatório, de que tratam o art. 5º da Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019, e o art. 6º da Lei nº 13.848, de 25 de junho de 2019, e dispõe sobre o seu conteúdo, os quesitos mínimos a serem objeto de exame, as hipóteses em que será obrigatória e as hipóteses em que poderá ser dispensada. § 1º. O disposto neste Decreto se aplica aos órgãos e às entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, quando da proposição de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados, no âmbito de suas competências. § 2º. O disposto neste Decreto aplica-se às propostas de atos normativos formuladas por colegiados por meio do órgão ou da entidade encarregado de lhe prestar apoio administrativo. [8] Art. 4º — A AIR poderá ser dispensada, desde que haja decisão fundamentada do órgão ou da entidade competente, nas hipóteses de: I - urgência; II - ato normativo destinado a disciplinar direitos ou obrigações definidos em norma hierarquicamente superior que não permita, técnica ou juridicamente, diferentes alternativas regulatórias; III - ato normativo considerado de baixo impacto; IV - ato normativo que vise à atualização ou à revogação de normas consideradas obsoletas, sem alteração de mérito; V - ato normativo que vise a preservar liquidez, solvência ou higidez: a) dos mercados de seguro, de resseguro, de capitalização e de previdência complementar; b) dos mercados financeiros, de capitais e de câmbio; ou c) dos sistemas de pagamentos; VI - ato normativo que vise a manter a convergência a padrões internacionais; VII - ato normativo que reduza exigências, obrigações, restrições, requerimentos ou especificações com o objetivo de diminuir os custos regulatórios; e VIII - ato normativo que revise normas desatualizadas para adequá-las ao desenvolvimento tecnológico consolidado internacionalmente, nos termos do disposto no Decreto nº 10.229, de 5 de fevereiro de 2020. § 1º Nas hipóteses de dispensa de AIR, será elaborada nota técnica ou documento equivalente que fundamente a proposta de edição ou de alteração do ato normativo. § 2º Na hipótese de dispensa de AIR em razão de urgência, a nota técnica ou o documento equivalente de que trata o § 1º deverá, obrigatoriamente, identificar o problema regulatório que se pretende solucionar e os objetivos que se pretende alcançar, de modo a subsidiar a elaboração da ARR, observado o disposto no art. 12. § 3º Ressalvadas informações com restrição de acesso, nos termos do disposto na Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, a nota técnica ou o documento equivalente de que tratam o § 1º e o § 2º serão disponibilizados no sítio eletrônico do órgão ou da entidade competente, conforme definido nas normas próprias. [9] Art. 24. Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação e produz efeitos em: I - 15 de abril de 2021, para: a) o Ministério da Economia; b) as agências reguladoras de que trata a Lei nº 13.848, de 2019; e c) o Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia - Inmetro; e II - 14 de outubro de 2021, para os demais órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. [10] Art. 1º. O Ministério da Agricultura e Pecuária, órgão da administração pública federal direta, tem como áreas de competência os seguintes assuntos:......XII - boas práticas agropecuárias e bem-estar animal. [11] MP 1153/2023. Art. 58. A Fundação Nacional do Índio (Funai), autarquia federal criada pela Lei nº 5.371, de 5 de dezembro de 1967, passa a ser denominada Fundação Nacional dos Povos Indígenas - Funai.
2023-01-04T06:16-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-04/paulo-bessa-nova-estrutura-ministerio-meio-ambiente
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Senso Incomum
TV e rádio em tempos néscios: a civilização fracassou
No que se transformou a TV? Vamos lá. Você paga TV a cabo e tem mais comerciais do que a TV aberta. Tem até um canal que se especializou em extrair espinhas e furúnculos. E tem comercial. De pomada para... espinhas e furúnculos. Tem gosto para tudo. A TV aberta dispensa comentários. Programas de quinta categoria com auditórios fake e quiz shows para psitacídeos. Os noticiários repetem o que já deu nas redes. E nessas os repórteres entram na enchente e ficam com água pela canela para explicar que ali há uma... enchente (ver aqui meu texto Antes de Adnet, mostrei o esgotamento de um "modelo" de reportagem). Bingo. Os programas esportivos? Imitam os programas de humor. E nada mais precisa ser dito sobre. Profundidade? Dos calcanhares de uma formiga. Escapam muito poucos (Kfouri, Casão, são exceções). Os programas religiosos estão na TV aberta e a cabo. Claro. Para atazanar a vida da malta. E dela tirar uma grana. Pastores-Pix-vendedores-de-curas-milagrosas (e até de Covid — o RR diz que curou mais de 100 mil, menos ele mesmo, que foi entubado) se multiplicam. Todas as religiões. Os católicos não podem oferecer cura a la pentecostes (para quem não sabe, há uma diferença entre o catolicismo e as religiões pentecostais e correlatas; por isso só há santos para católicos; lembram do pastor que chutou a santa?). Mas os católicos compensam com venda de remédio para crescer cabelo, bijuterias e quejandices. E ainda há os católicos carismáticos, espécie de ala bolsonarista da igreja. De todo modo, nesse ramo "espiritual", a cada dia aumenta o número de picaretas. Leva-se menos de meio dia para abrir uma igreja. O filósofo e jornalista Hélio Schwartsman testou o sistema e mostrou como isso funciona (leiam o texto O primeiro milagre do heliocentrismo, de 2009). Tem alguns que "vendem" seu peixe falando aramaico ou hebraico (decoram algumas palavras). A parte final dos programas é mais ou menos assim: não esqueçam de fazer a sua contribuição. E leem um trecho da bíblia para amedrontar o fiel. Alguns cantam. E mal. Ao lado dos canais religiosos estão os canais de culinária. Estão mais no segmento cabo. Uma autêntica picaretagem com canais de aproveitadores de todos os tipos que capitaneiam programas de viagens para comer de graça, pescadores que passam o dia pescando e atirando os peixes de volta depois de rebentar as suas bochechas (a dos peixes) e disputas de quem faz o melhor doce ou churrasco. E há os que pegam um cocô de mamute e demonstram que ali há havia pistas de alienígenas do passado. Sem esquecer Reco Reco, Bolão e Azeitona que eternamente buscam pistas do pé-grande. E tem os que reformam casas. E explicam cada passo in off. Essas "explicações" in off deveriam dar prisão em flagrante. E o que dizer de dublagem que tem palavrões com ruído sonoro para apagar o palavrão? Mas se é dublagem, por que tem de traduzir o palavrão e, ao mesmo tempo, apagar o som com um apito? É pura estupidez ou o quê? Há também programas "realitys" ridículos de largados pelados que arfam comendo larvas e explicando para o telespectador in off o gosto da larva e da cascavel. " — Ah, agora vou quebrar esse osso para comer o resto de tutano podre...". Pergunta-se: se o infeliz do telespectador acabou de ver o sujeito com sede, porque é necessário que o idiota faça uma fala in off dizendo: " — Aah, se eu não conseguir água posso morrer". O mundo vai acabar. Só isso explica tanta bobagem. A grande pandemia foi o surgimento das redes sociais. Momento em que os néscios saíram da toca (digo diferentemente do que disse Eco para não ser ironicamente repetitivo — e estou sendo irônico). E lá no cabo vêm programas de notícias que (se) repetem ad nauseam com opiniões repletas de truísmos e platitudes (quando não ultrarreacionárias, como na Jovem Klan). O engraçado é que os "democratas" da J. Klan pregam — e isso é fato — explicitamente golpe militar dia sim e dia também e dizem: estamos aqui pela ética e pela verdade. Em nome da democracia e da liberdade de opinião. Hum, hum. Tem um programa em TV aberta no RS que sustenta que a posse de Lula foi fake. Putz: então minha ida a Brasília foi em vão? E os presidentes dos Estados europeus? Perderam a viagem? Que coisa, não? Gostei da última: Mourão não poderia ter feito pronunciamento. Usurpou a função. Pausa para uma farfalhada. Outra (de uma rádio do Bispo Macedo): Mourão se aliou aos comunistas. Boa também. Vai para o Guiness. Mundo mundo, vasto mundo... Deveriam abrir espaço para os pentecostais que acreditam no Apocalipse. Cada programa deveria ser encerrado com uma pregação tipo Malafaia. Tem os programas mundo cão, que estão mais na TV aberta. Tipo Datena e o outro que comemora quando a polícia mata. Seu jargão: CPF cancelado. Todos riem. Como hienas. Como diz a canção de Jessé, abençoai as hienas... (veja aqui Paraíso das Hienas). E pensar que a malta paga impostos para que o Estado conceda direitos para alguém colocar uma TV... e produzir esse tipo de subcultura bazural. Televisão é isso. Ah, tem a Netflix (e outras plataformas). Algumas coisas escapam. Há filmes antigos. Mas os de produção própria... tem cada porcaria, bah. E as séries que enchem linguiça? Poderiam contar em três capítulos e fazem dez. E mais duas temporadas. O que resta? Um bom livro. Desde que se escolha bem. Ou pensam que a mediocridade está restrita à TV e ao rádio? Falando em rádio, ouvi, em viagem no dia 3 de janeiro, o programa Pretinho Básico, da Rádio Atlântida (Porto Alegre). Vejam como são "engraçados". Fizeram uma "charada": o que é que tem quatro patas por fora e duas mãozinhas por dentro? Reposta, com gargalhadas dos participantes: o cachorro do goleiro Bruno. Sim, foi isso mesmo que você leu. Lindo isso, não? E rádio é concessão pública. Para esse "humor". Ah, esse Umberto Eco... Alerta final para você que, comigo, deseja combater essa chinelagem-baixo-clerista descrita nesta coluna: cuidado ao sair com um livro na mão. Talvez encontre um néscio que diga: fale-me de cultura e livros... que eu saco uma arma.
2023-01-05T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-05/senso-incomum-tv-radio-tempos-nescios-prova-civilizacao-fracassou
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Opinião
Douglas Ibarra: O dolo específico em improbidade administrativa
Até novembro de 2022, a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral era pacífica de que, "para fim da inelegibilidade do art. 1º, I, g, da LC 64/90, não se exige dolo específico, mas apenas dolo genérico, que se caracteriza quando o administrador assume os riscos de não atender aos comandos constitucionais e legais que pautam os gastos públicos" [1]. Contudo, a partir da sessão de julgamento do dia 10/11/2022, o TSE enfrentou a temática a partir das mudanças advindas com Lei nº 14.230/2021, que trouxe alterações substanciais para a matéria de improbidade administrativa, ocasião em que a corte deliberou que, mesmo que o agente público não seja ordenador de despesas — função meramente formal —, é possível que ele responda por improbidade administrativa, e por isso mesmo, incorra em inelegibilidade, sem prejuízo de uma análise percuciente do caso concreto [2]. Na mesma assentada, ficou patente a necessidade de uma análise aprofundada do caso concreto, a fim de se averiguar, efetivamente, a métrica do dolo específico, que, naquele caso em julgamento, não se evidenciou, mesmo reconhecendo-se que, até aquele momento, o TSE ainda não possuía jurisprudência consolidada a respeito, notadamente a partir da nova lei de improbidade administrativa. A matéria evoluiu de forma substancial na sessão plenária do dia 22/11/2022 [3], hipótese em que, mesmo o TRE-SC não tendo apreciado a matéria a dizer com dolo específico na forma da nova lei de improbidade administrativa — que, na ocasião, ressaltou apenas a jurisprudência então reinante em torno do dolo genérico —, o TSE analisou a matéria, dada a ampla devolutividade do recurso ordinário eleitoral, evoluindo para assentar que, na hipótese de omissão de prestação de contas e não comprovação do uso do recurso público — em julgamentos do Tribunal de Contas da União —, inclusive com pagamento de débito e multa, manifesta é a finalidade do agente em vulnerar os cofres públicos, restando clarividente, por isso mesmo, a hipótese de dolo específico, nos termos da nova lei de improbidade. Neste último julgado, em resumo, o eminente relator destacou que: 1) não cabe à Justiça Eleitoral decidir sobre o acerto ou desacerto das decisões proferidas por outros órgãos do Judiciário ou dos Tribunais de Contas que configurem causa de inelegibilidade (Súmula TSE n. 41); 2) não obstante o silêncio da corte regional sobre o dolo específico, a ampla devolutividade do recurso ordinário permite a apreciação da matéria pelo TSE; e 3) é imprescindível uma análise aprofundada do acórdão do TCU, a permitir a conformação do caso concreto à métrica do dolo específico. Nesse contexto, as teses de imperícia técnica ou mera falta de diligência, que usualmente são sustentadas em prol de candidatos que são reputados inelegíveis em virtude da desaprovação das contas pelo TCU, não se mostraram subsistentes para TSE, especialmente nos casos em que não há nenhuma comprovação do destino dos recursos públicos envolvidos. Segundo a Corte Eleitoral, esses casos não retratam uma mera assunção de um risco pelo gestor, tendo em vista o dever de tratar coisa pública com transparência e eficiência. De fato, a prestação de contas é o pilar principal, é a regra, de toda e qualquer execução de um convênio, por exemplo. Não é um aspecto marginal, suscetível eventualmente a uma ponderação sobre eventuais irregularidades ou inaptidão do gestor. A prestação de contas é o núcleo duro da execução de convênios, notadamente aqueles que envolvem valores expressivos, sendo despicienda, na linha do que decidiu o TSE, qualquer nota de malversação, desvio ou locupletamento ilícito pelo TCU, para que se evidencie o dolo específico. Afinal, a falta de prestação de contas — casuisticamente verificável —, por si só, tem o condão de ensejar o reconhecimento de ato doloso de improbidade, considerando os matizes do caso concreto. Assim, se de um lado não é factível a responsabilidade objetiva em matéria de improbidade administrativa, de outro existe a possibilidade de um ato de improbidade atentatório, na forma do artigo 11, VI, da lei de regência, pautado na voluntariedade e consciência do agente em não prestar contas, e na ausência de comprovação do uso de recursos públicos, a denotar, com substância, o dolo específico do agente. Logo, o TSE, em mais de uma oportunidade, já apresentou um importante vetor jurisprudencial em torno das mudanças advindas da Lei nº 14.230/2021, em face da jurisprudência da corte em matéria de inelegibilidades, o que demonstra um esforço hermenêutico da corte em compatibilizar a nova lei de improbidade com a lei de inelegibilidades, sem esvaziar a normatividade da famigerada "alínea g", do artigo 1, inciso I, da Lei n. 64/90. [1] Nesse sentido, REspE nº 060015086, acórdão, relator(a) min. Luis Felipe Salomão, publicado em sessão, data 12/11/2020. [2] RO 060104626/RECIFE-PE, de relatoria do min. Ricardo Lewandowski. [3] RO 060076575/FLORIANÓPOLIS-SC, de relatoria do min. Carlos Horbach.
2023-01-05T07:17-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-05/douglas-ibarra-dolo-especifico-improbidade-administrativa
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Opinião
Pablo Domingues: "Operações" e medidas cautelares estigmatizantes
Não é incomum — aliás é vulgar, ordinário — que investigações policiais, ou presididas por outros órgãos de persecução, desdobrem em medidas cautelares que impliquem afastamentos de sigilo; buscas e apreensões; prisões temporárias e preventivas, dentre outras, dos investigados. As medidas, desde que necessárias, não devem atrair maiores atenções críticas. Também não se pretende, por meio desse breve ensaio, questionar o uso demasiado dessas medidas. Aqui, se poderia subdividir em três grandes equívocos que não raras vezes envolvem as medidas cautelares de natureza criminal: (1) excesso e abuso na postulação de determinada medida (como se fosse irrelevante a demonstração de necessidade, utilidade e, ainda, adequação do que se postula com o que se busca realizar em termos de produção de provas ou preservação do processo/investigação); (2) excesso e abuso na decisão judicial que defere tais medidas, novamente sem observância da necessidade, utilidade e, ainda, adequação do que se postula com o que se busca realizar em termos de produção de provas ou preservação do processo/inquérito (STJ - HC: 497699 MG 2019/0068160-8, relator: ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO); (3) excesso e abuso dos agentes responsáveis por cumprir estas medidas que, em muitas ocasiões, ignoram aspectos de legalidade que legitimam o ato (STJ - HC: 673489 SP 2021/0183180-5, relator: ministro OLINDO MENEZES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 1ª REGIÃO). Portanto, não é uma crítica aos excessos conhecidos e que rodeiam os atos de força autorizados pelo Estado. Para estas a jurisprudência reconhece as eventuais ilegalidades e a elas dá o respectivo tratamento, revogando decisões, reputando como nulos determinados atos, dentre outras medidas. O que se propõe é uma reflexão crítica sobre o que se cunhou denominar "operações" capitaneadas pelas polícias ou Ministérios Públicos, de forma integrada, ou não, com demais órgãos de controle e fiscalização, com o fim de se promover uma espécie de "batismo" de alguma(s) dessa(s) medidas, que mais comumente têm como alvos números consideráveis de investigados, alicerçadas com imposições a estes de medidas cautelares de diversas naturezas, de modo cumulado. Como consequência, de modo oficial, as autoridades que postulam essas medidas passam, então, à nomeá-las (as medidas cautelares aplicadas simultaneamente) como "operações", sempre acompanhadas de um substantivo ou adjetivo para rotulá-las, invariavelmente de modo negativo, atribuindo características que, ou desqualificam as pessoas dos investigados, promovendo-se, em muitos casos, trocadilhos com os ofícios desempenhados pelos destinatários das medidas, ou utilizando-se de expressões que denotariam uma necessária purificação dos envolvidos. Exemplo destes últimos é a própria operação "lava jato". Para os demais, tem-se "Operação Registro Espúrio"; "Operação Injusta Causa"; "Operação Faroeste", etc. Com efeito, com esses expedientes — tal qual ocorre na medicina quando uma equipe de cirurgiões — os "cirurgiões de polícia ou Ministério Público" igualmente promovem suas operações, tendo como paciente o tecido social, e daí inaugura-se uma verdadeira e novel categoria processual não prevista em lei. Afinal, não há lei em vigor, notadamente em Direito Penal material e Processual Penal, que assegure aos órgãos de persecução o direito (nem muito menos o dever) de apelidarem de "operações" as medidas cautelares que postulam e nem tampouco de as complementarem com termos depreciativos, antecipando um juízo de valor negativo sobre o objeto da investigação. A este respeito Paulo Henrique Drummond Monteiro (2019, p. 7) adverte que as teorias da Reação Social consideram que o delito é definido por meio dos processos de criminalização realizados pelos próprios sistemas de controle social. Portanto, o desvio de conduta não ostentaria uma matriz ontológica e, sim, definitória. Estes sistemas são seletivos, discriminatórios e capazes de rotular algumas pessoas, as quais sustentam um verdadeiro estigma. Voltando-se à hipótese do que se pretende aqui mentalizar, é de se ponderar que a adoção desses nomes e expressões para "batizar" as medidas cautelares refletem justamente o processo de criminalização, rotulação e estigmatização aferidos nas teorias da Reação Social. É dizer: ao alcunharem estes atos processuais, aqueles que se valem das medidas cautelares postuladas e deferidas criam o estigma necessário para os destinatários das medidas, para torná-los verdadeiros "criminosos". Tornam-se os corpos enfermos da medicina. Lá, os médicos cuidam de uma sociedade fisiologicamente doente. Aqui usa-se a força bruta do Estado para tentar (inutilmente) dar algum tratamento ao tecido social, compostos por pessoas agora identificadas, rotuladas. Pior: com cicatrizes que as demarcam processualmente. A partir daí, imergidos em uma categoria processual inominada e não autorizada por lei, estes sujeitos etiquetados travam com o Estado verdadeira disputa para se recolocarem em um ambiente em que possam exercer os seus direitos constitucionais mais comezinhos, sem que deixem toda a carga negativa e pecha de delinquente interferirem no devido processo legal, bem como na ampla defesa e contraditórios com todos os meios e recursos a ela inerentes. Aqui cabe melhor reflexão, precisamente no que se refere a capacidade de interferência que este etiquetamento é capaz de produzir. É que um ambiente de supressão de direitos passa a preponderar. As medidas de impugnações defensivas das pessoas que estejam envolvidas nas ditas "operações" não gozam, materialmente, dos mesmos alcances caso estivessem se defendendo num contexto a parte de uma operação. Significa dizer que um sujeito envolvido em uma dessas operações experimentará dificuldades muito além daquelas — já excessivas — encontradas por um indivíduo comum, atrelado a um inquérito que esteja em fase de persecução, porém sem submeter o investigado a medidas cautelares diversas e orquestradas. As "operações", sempre acompanhadas de uma cobertura dedicada dos veículos de impressa, são capazes, ainda que no subconsciente do senso comum ou no consciente daqueles que participam das "operações", de carimbar os seus pacientes (em termos médicos) ou os alvos (em termos jurídicos), para que passem a ser identificados, não apenas pela sociedade, pelo apelo público que geralmente essas medidas desvelam, mas, o que se reputa ainda mais grave, um tratamento categorizado e etiquetado no âmbito do próprio Poder Judiciário. O tratamento jurídico que o Poder Judiciário dispensa à determinadas pessoas quando precisam se defender no âmbito de um inquérito, instaurado para apurar práticas ilícitas penais isoladamente, é completamente diferente de quando, em análise dos mesmos tipos penais, esta pessoa precisa se defender em um inquérito demarcado com a mácula de ser fruto de uma "operação". A ideia (desvirtuada e falsa) que se passa com essa categorização ilegal (registre-se) é que os alvos — e são formalmente nomeados assim- precisam ser expostos (daí há um empenho para que o caso, em que pese sigiloso, tenha informações compartilhadas com a mídia) e, para além disso, por não serem meros investigados, também experimentam dificuldades reais de terem acolhidas as medidas de defesa implementadas. Todo o corpo julgador, por mais neutro que tente ser, estará, a esta altura, não mais tratando o sujeito como mais um investigado. Não. Este indivíduo agora carrega a cicatriz do sujeito que é investigado em uma "operação". Ainda que contra esse sujeito último não haja nada para confirmar a hipótese da Polícia ou outro órgão de persecução, seu(s) pleito(s) defensivo(s), para ser atendido(s), sempre terá(ão) de trilhar os caminhos tormentosos da descontaminação, cujo objetivo é tentar afastar um eventual não pertencimento ao corpo social estigmatizado. Numa ideia de que "faço parte da investigação, mas não possuo elos com demais investigados". Inicia-se, para a defesa técnica, o martírio da comprovação do "não-fato". Afinal, neste momento, o sistema do Judiciário já lhe recebe em seus assentamentos com qualificações aquilatadas de "investigado na operação…". Muda a categoria. Muda o tratamento que lhe é dispensado. Se, individualmente, o investigado faz postulações de revogações de medidas cautelares e este pleito é apreciado em curto lapso de tempo. Sujeitos carimbados e marcados por serem alvos de operações, reproduzem mesmos pleitos que demoram muito mais tempo para ser analisado. Afinal, e é a resposta que se acaba externando, por ser uma "operação", é preciso que os casos sejam analisados com ainda mais cuidado. Esta é uma perspectiva nefasta, mas que atinge, por enquanto, o caráter da celeridade e entrega jurisdicional. Em outro vértice, as "operações" angariam números significativos de investigados que, cada um com sua assistência técnica, ajuíza meios de impugnações autônomos e cria-se uma segunda dificuldade para aquelas rotulados como alvos nesta "operação": para além de demonstrar sua falta de vinculação com qualquer evento delitivo (novamente o não-ato), precisará evidenciar as razões pelas quais o meio de impugnação que está a utilizar tem fundamentos jurídicos diferentes de outro utilizado por outro alvo na operação e que já foi negado. O que se quer dizer é que esta "operação" cria estigmas indissociáveis aos investigados que, para se defenderem precisam sobrepor níveis ainda maiores para, legitimamente, desenvolverem o seu direito à ampla defesa e contraditório. Com legalidade completamente duvidosa, os próprios sistemas de controle processuais do Estado identificam medidas cautelares com os seus respectivos "apelidos". Forma-se um sequencial de números de registro do processo (ou inquérito) acompanhado, em inúmeras situações, da expressão "operação". Com efeito, institucionalizar esta medida traz consequências também de ordem institucionais e culturais. O alcance no imaginário de quem precisa tratar destas medidas cautelares de modo institucionalizado, atinge desde o servidor que cuida de tarefas cartorárias que envolvam este processo até os próprios julgadores, que sobre eles terão de entregar uma prestação jurisdicional. Em breve ensaio, se quer dizer que esse mecanismo de se impor cicatrizes nos investigados, compromete, em níveis diversos e com profundidade diferentes, o exercício regular da ampla defesa e contraditório. Compromete, ainda, a qualidade do julgamento, feito por julgadores que identificam seus jurisdicionados a partir das cicatrizes deixadas pelas "operações" feitas que, ao invés de representarem meras (e juridicamente suficientes) medidas cautelares em matéria penal, tornam-se ambiente de espetáculo, com seus alvos marcados, etiquetados e subcategorizados. Desnecessário, ilegal e ilegítimo.   MONTEIRO, Paulo Henrique Drummond. Papéis sociais, preconceito, estereótipo e estigma. A apresentação da imagem/voz de pessoas presas como instrumento do processo de degradação da personalidade. Revista do ICP - Instituto de Ciências Penais, Belo Horizonte, n. 4, p. 399-428, nov.. 2019. Disponível em: http://200.205.38.50/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=155390. Acesso em: 11 dez. 2022.
2023-01-06T20:15-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-06/pablo-domingues-operacoes-medidas-cautelares-estigmatizantes
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Opinião
Streck e Berti: O indulto natalino de 2022 e o ornitorrinco jurídico
Como sabemos, o ornitorrinco é um animal esquisito. Quando Deus terminou a criação, pegou um restinho daqui, outro dali e, bingo, saiu um bicho com bico de pato e cauda achatada, que lembra a de um castor, põe ovos, seus filhotes se alimentam do leite materno que não sai de mamilos, mas de seus poros, são carnívoros e nadam. Pois o ex-presidente Bolsonaro produziu uma lei com restos de outras. Um jus-ornito. Explicaremos. Usando de sua prerrogativa constitucional, assinou o Decreto Presidencial nº 11.302, de 22 de dezembro de 2022 e distribuiu indultos a rodo. Ainda em dezembro de 2022, o PGR, Augusto Aras, protocolou perante o Supremo Tribunal Federal uma Ação Direta de Inconstitucionalidade com pedido de medida cautelar, ao argumento de que muito embora o presidente da República tenha a prerrogativa de conceder indulto estatal, o Decreto 11.302 afronta os limites materiais que condicionam e conformam a válida emanação da clemência soberana do Estado, previstos expressamente no artigo 5º, XLIII, da Constituição, ou como emanação direta dos limites constitucionais sistêmicos derivados do dever de observância dos tratados internacionais que a República Federativa do Brasil seja parte (artigos 1º, I e II, 4º, II e 5º, §§ 2º e 3º, da CF e artigo 7º do ADCT à CF/1988). Pede também a declaração da inconstitucionalidade da expressão "no momento da sua prática", contida no artigo 6º, caput, do Decreto 11.302/2022, fixando-se tese no sentido de que o indulto não alcança os crimes hediondos definidos em lei na data da edição do decreto presidencial que o concede, sendo irrelevante a ausência dessa qualificação legal na data da prática do fato delituoso, bem como a declaração da inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, da norma resultante da exclusão da expressão acima indicada, para afastar da incidência do art. 6º, caput e parágrafo único, c/c artigo 7º, § 3º, do Decreto 11.302/22, os crimes de lesa-humanidade, notadamente os cometidos no caso do Massacre do Carandiru, cuja persecução e efetiva responsabilização o Estado obrigou-se por compromisso internacional assumido voluntariamente pela República Federativa do Brasil. Mas para além do quanto argumentado na ADin proposta pela PGR e do modo como definiu a nulidade parcial sem redução de texto, restam mais problemas ainda no referido decreto. Vamos a elas. O último decreto presidencial de indulto — anterior ao 11.302/22 —, foi o de nº 9.246, de 21 de dezembro de 2017, assinado pelo então presidente Michel Temer. Nele, o presidente da República exigia um tempo mínimo de cumprimento de pena a fim de que o condenado fizesse jus à concessão do indulto [1]. Também em face do Decreto nº 9.246/17 houve a propositura de ADI (5874), que foi julgada improcedente por 7 votos a 4, vencedora a tese de que o indulto é ato privativo do presidente da República e não fere o princípio da separação de Poderes, e tendo sido o decreto editado dentro das hipóteses legais e legítimas, mesmo que se não concorde com ele, não se pode adentrar no mérito dessa concessão. Isso já não se discute, pois. Ocorre que, diferentemente dos decretos anteriores, o atual Decreto nº 11.302/22 não exige qualquer lapso temporal mínimo de cumprimento de pena como requisito para a concessão de indulto, pois nos termos do artigo 5º, caput, a única exigência refere-se tão somente a condenações por crimes cuja pena privativa de liberdade máxima em abstrato não seja superior a cinco anos, excluídos os crimes impeditivos (previstos no artigo 7º). Dispõe o artigo 5º do Decreto Presidencial nº 11.302/22 que será concedido indulto natalino às pessoas condenadas por crime cuja pena privativa de liberdade máxima em abstrato não seja superior a cinco anos, sendo que seu parágrafo único complementa que para fins do disposto no caput, na hipótese de concurso de crimes, será considerada, individualmente, a pena privativa de liberdade máxima em abstrato relativa a cada infração penal. Ora, a abrangência do artigo 5º do Decreto 11.302/22 é enorme, alcançando mais de uma centena e meia de crimes (daí nossa expressão "indulto a rodo"), passando por homicídio culposo, furto simples, apropriação indébita, estelionato, posse e porte ilegal de arma de fogo de uso permitido, entre inúmeros outros. Além de um aparente conflito entre o parágrafo único do artigo 5º com o artigo 11, o Decreto 11.302/22 estabelece diversas outras dúvidas. Assim: (i) Tendo em vista que o Decreto 11.302/22 não exige tempo mínimo de cumprimento de pena como requisito para a concessão de indulto, como ficam as penas eventualmente cumpridas, no todo ou em parte? (ii) Com o Decreto 11.302/22 tornaram-se indevidas e podem servir para detração penal de outra infração penal nos termos do artigo 42, do Código Penal? (iii) E eventual lapso temporal decorrente de prisão cautelar? (iv) Em face da inexistência de exigência pelo Decreto de lapso temporal mínimo de pena a ser cumprida, até quando retroage a decisão que concede o indulto? À data do decreto ou à data do cometimento do crime? Perdoa-se desde quando? (v) Em caso de concursos de crimes, aplica-se o parágrafo único do artigo 5º, ou o artigo 11? (vi) Aplica-se o princípio da especialidade devendo prevalecer o parágrafo único do art. 5º em relação ao artigo 11, ou o artigo 11 refere-se às penas em concreto eventualmente aplicadas ainda que as infrações não se enquadrem no requisito do caput do artigo 5º? Assim, além dos argumentos expedidos pelo PGR, temos os acréscimos aqui elencados. O que fica é que o Decreto nº 11.302/22 pode impactar sobremaneira o sistema penal/carcerário, beneficiando um número muito grande de condenados (e não estamos criticando isso especificamente), mas apenas constatando que Bolsonaro, ironicamente e em contradição própria [2], talvez tenha editado o decreto de indulto mais benéfico da história do país. O decreto de indulto é, assim, uma colcha de retalhos, produto de péssima técnica legislativa e eivado de contradições e inconstitucionalidades. Feito sob encomenda inclusive para crimes hediondos, como diz o PGR. O presidente da República pode muito. Mas não pode tudo. Não pode escolher, sem critérios, para quem deseja conceder indulto, porque isso provoca efeitos colaterais. Quando se decreta um indulto, há que fazer uma prognose, evitando surpresas decorrentes do sistema. O ornitorrinco tem bico de pato, bota ovos, mas seus filhotes mamam o leite da mãe. Na natureza dá certo. Afinal, se tem gente que põe o celular na cabeça esperando mensagem de disco voador, nada pode surpreender. Mas em termos legislativos, cada dispositivo legal deve ter coerência e integridade com o restante do sistema. Tem coisas que dá, tem coisas que não dá. No caso, no Decreto de indulto parece evidente que há mais "coisas que não dão". [1] Art. 1º — O indulto natalino coletivo será concedido às pessoas nacionais e estrangeiras que, até 25 de dezembro de 2017, tenham cumprido e seguem os requisitos (...).. [2] Em data de 28 de novembro de 2018, Bolsonaro publicou no Twitter que havia sido escolhido presidente do Brasil para atender aos anseios do povo brasileiro. Pegar pesado na questão da violência e criminalidade foi um dos nossos principais compromissos de campanha. Garanto a vocês, se houver indulto para criminosos neste ano, certamente será o último. https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1067787260244848640?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E1067787260244848640%7Ctwgr%5E947de303966ccbd56461762cb95d34b18d0a6b69%7Ctwcon%5Es1_&ref_url=https%3A%2F%2Fd-39704248301805383390.ampproject.net%2F2212151632002%2Fframe.html
2023-01-06T19:15-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-06/streck-berti-indulto-natalino-2022-ornitorrinco-juridico
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Opinião
Sammy Barbosa Lopes: Essa senhora chamada "democracia" (parte 1)
No dia 16 de janeiro de 1979, Mohammed Reza Pahlevi, xá do Irã, título equivalente no Ocidente ao de imperador, adquirido após um golpe militar coordenado pela CIA, a agência de inteligência norte-americana, deflagrado 25 anos antes, fugiu do seu país e seguiu rumo ao exílio. Terminava ali o reinado do monarca persa, marcado pelo autoritarismo, a desigualdade social, a corrupção, a violência contra o seu povo e, principalmente, a imposição do seu desejo pessoal de ocidentalização do Irã, que era visto pela maioria da população como uma afronta ao que consideravam princípios do Alcorão, o livro sagrado do islamismo [1]. O país estava em convulsão. O regime, apesar do apoio que detinha dos Estados Unidos, havia ruído. Ocorria a chamada "Revolução Iraniana" ou "Revolução Islâmica". Foi então que o Conselho de Regência, liderado pelo ministro Shapour Bakhtiar, que ficou com a missão de "tentar" governar a nação naquelas condições, convidou o líder religioso extremista, Ruhollah Khomeini, o "aiatolá Khomeini", mais elevado título na hierarquia da corrente xiita do islã, que liderava a oposição ao xá e a própria revolução do exílio, a retornar ao país e assumir o governo. Em 1º de fevereiro de 1979, o aitolá Khomeini retornou ao Irã como líder da revolução vitoriosa. Surgia então a República Islâmica Teocrática do Irã, um dos regimes políticos mais fechados do mundo até os dias atuais. Apenas para citar um exemplo, com o objetivo de agradar os aliados americanos, o xá Reza Pahlevi, apesar da dureza do seu regime, havia concedido, em fevereiro de 1963, às mulheres iranianas, o direito de votar e de serem eleitas para o Parlamento. Em setembro daquele ano, houve eleições parlamentares, e, pela primeira vez na sua história, seis mulheres foram eleitas para os Majlis, o Parlamento iraniano, e duas designadas pelo próprio xá para o Senado. Na ocasião, o aiatolá Khomeini, o futuro "líder supremo do Irã", declarou que: "dar às mulheres o direito de voto era equivalente a prostituição" [2]. A maioria da sua população apoiou e aparentemente — apesar dos últimos protestos realizados por conta da execução de Mahsa Amini, uma jovem de 22 anos, em 16 de setembro de 2022, pela "polícia da moralidade", na cidade de Teerã, por supostamente violar as leis que exigem que as mulheres cubram completamente os cabelos com um hijab, conjunto de vestimentas preconizado pela doutrina islâmica — ainda apoia o regime, notadamente sustentados em razões de caráter religioso. A questão que emerge é se esse apoio da ampla maioria, por si só, é capaz de fazer do Irã uma democracia. E a resposta é simples e direta: é óbvio que não! De forma alguma o Irã pode ser considerado uma democracia. Não há dúvidas de que, em uma democracia, por definição, "todo poder" emana do povo [3]. O próprio termo, utilizado por filósofos como Clístenes e Aristóteles, origina-se, etimologicamente, da junção de dois signos gregos antigos: "demos", que significa "povo" e "kratos", que significa "poder". O "poder do povo", portanto. Ocorre que democracia requer outros elementos caracterizadores, sem os quais, por definição, não se configura. Primeiro, nas democracias, tal como sua origem etimológica preconiza, o poder político tem a sua legitimação na "vontade soberana do povo" e somente nela. Caso contrário, não será uma democracia. Historicamente, pelo menos a partir da Revolução Francesa (1789), que marca o início da era moderna, isso significou a separação entre Estado e religião. E, consequentemente, a mudança de qualquer ideia de que o poder político se legitime em outra fonte, como a vontade de alguma divindade, por exemplo. Durante o "Ancien Régime" (o antigo regime) modificado pela Revolução Francesa, o "absolutismo monárquico" em vigor até então, o poder dos reis e imperadores era considerado como emanado dos céus, conferido por Deus. Razão pela qual, as coroas eram recebidas pelos monarcas, das mãos do mais elevado sacerdote e o seu poder absoluto era chancelado pela Igreja. Nesse cenário, não havia espaço para qualquer oposição, divergência ou contestação à figura do reinante e suas decisões. Afinal, contestar a decisão de alguém "ungido" por Deus não configurava apenas um crime perante a Lei dos homens, mas, sobretudo, um sacrilégio, perante a Lei de Deus. Na monarquia, Deus era, portanto, o grande (e único) eleitor. E a Igreja fazia as vezes de Justiça Eleitoral, a aferir a validade da escolha e empossar, em pompas e circunstâncias, o eleito. A coroa era o símbolo do poder, mas também da escolha divina. Dai a relação estreita entre o Estado e a religião. Deus era a fonte de onde emanava o poder. A relação política entre governantes e governados se dava na relação estabelecida entre o soberano e seus súditos. Ou melhor, na dimensão entre deveres absolutos dos súditos perante os poderes e direitos divinos e absolutos do soberano. Ou, como seria recentemente definido no Brasil: na ordem de "um manda e o outro obedece, simples assim". Com a Revolução Francesa, tudo muda de dimensão. A partir da proclamação da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, consagrando valores iluministas e humanistas, o poder político torna-se secular e provém exclusivamente da vontade dos "cidadãos", considerado, a partir de então, maior título a ser ostentado pelo indivíduo em sociedade, em substituição aos extintos títulos de nobreza hereditários e a nova relação política passa a ser estabelecida agora entre os "direitos" do "cidadão" (direitos fundamentais) perante os "deveres e obrigações" do "governante". Nessa nova relação, o antigo súdito, detentor de todas as obrigações e deveres, transforma-se no cidadão, detentor dos direitos e o antigo soberano, detentor de poderes absolutos e divinos, transforma-se no "governante", eleito pelos seus iguais, para um "mandato", ou seja, uma procuração representativa de poder, por "tempo limitado", garantida a alternância e não mais a vitaliciedade e a hereditariedade. Norberto Bobbio enxerga aí a grande revolução nas relações políticas [4]. Não por acaso, a democracia é o regime das liberdades e dos direitos Pouco tempo antes, outra revolução, movida pelos mesmos ideais, havia ocorrido bem mais perto de nós e também consagraria os valores da democracia [5]. Em 1776, as 13 colônias inglesas na América do Norte levantaram-se contra a Coroa britânica, declararam a sua independência e, posteriormente, promulgaram um documento jurídico e político a que deram o título de "Constituição", em 1789. Consagrando a liberdade como valor central, a república como forma de governo e cumprindo as três tarefas básicas de uma Constituição: assegurando um catálogo de direitos fundamentais, limitando o poder do governante e organizando o Estado. Posteriormente, a partir da luta dos povos, principalmente a partir das lutas e reivindicações empreendidas pelas camadas menos favorecidas e menos aquinhoadas das sociedades, notadamente em razão da sua organização e conscientização, outras nações passaram também a reconhecer e fizeram acrescer nas suas Constituições outras dimensões de direitos, como os direitos políticos e sociais, estabelecendo limites à jornada de trabalho, assegurando o direito a uma remuneração digna, que garantisse o "mínimo existencial", protegendo as relações trabalhistas, além da manutenção da dignidade na doença e na velhice, tais como o México, em sua Constituição de 1917, já no "breve" século XX, como o definiu o historiador Eric Hobsbawm [6]; a Alemanha, em sua Constituição de 1919 (Constituição de Weimar) e na Declaração de Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, da Revolução Russa, de 1918. Os horrores vivenciados na Segunda Guerra Mundial, no final da primeira metade do século XX, por outro lado, com as lamentáveis tentativas de despersonalização do ser humano, empreendidas por ideologias extremistas como o nazismo, na Alemanha e o fascismo, na Itália e os experimentos monstruosos praticados nos campos de concentração como de Auschwitz e Sobibor, levaram a humanidade a consagrar, com mais intensidade e veemência, os valores da democracia e da dignidade humana, consagrando direitos inerentes à própria essência humana e à sua existência digna, independente de qualquer condição, origem, opção, credo e até mesmo de personalidade ou índole: os chamados direitos humanos. Inafastáveis à própria condição humana em "qualquer" situação e pressupostos não apenas da democracia, mas da própria ideia de "civilização". Esse conjunto de experiências históricas, políticas e sociais nos levaram a perceber que democracia não se confunde, nem pode ser confundida, portanto, com "ditadura da maioria". Caso contrário, o Irã teria que ser considerado um país democrático, pelo simples apoio da maioria ao seu regime político, mesmo com uma religião hegemônica e obrigatória, imposta pelo Estado, que criminaliza a prática e o credo de qualquer outra religião que não a oficial, que impõe às mulheres uma condição de inferioridade e opressão, que impede e elimina a existência de qualquer oposição, que censura qualquer tipo de manifestação que não esteja conforme a opinião do governo, que adota a tortura e a pena de morte como políticas públicas, que impõe dogmas religiosos medievais como normas jurídicas cogentes, a serem cumpridas, obrigatoriamente, até mesmo por quem não é adepto da religião oficial. Democracia, portanto, por definição, pressupõe valores como a laicidade do Estado, ou seja, um Estado que não se confunda com qualquer religião, cujo poder emane da vontade do cidadão e não da divindade, e seja exercido em nome de seu povo, em caráter de representatividade, através de um "mandato" com tempo determinado, facultado a qualquer cidadão e corrente política a candidatura e o exercício do poder, desde que inspirado e comprometido com os valores da própria democracia, que pressupõe ainda a garantia das liberdades, incluída a liberdade religiosa, política, filosófica, sexual e etc, exigindo do Estado e toda sociedade, uma posição de tolerância e respeito à diversidade e à dignidade da pessoa humana. O regime da Democracia pressupõe, por fim, um Estado que aja, através de sua estrutura e de seus vários órgãos, notadamente aqueles destinados a garantir o direito fundamental à segurança pública, estritamente dentro dos seus valores consagradores e caracterizadores, que, por sua vez, devem estar positivados nas leis produzidas por seus órgãos legislativos, a partir dos princípios, regras e valores garantidos e emanados da sua Constituição. Como bem diz o professor Carlos Ayres Brito: "A democracia é o princípio continente, do qual todos os demais, inclusive os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, são conteúdos". A questão que fica para um próximo artigo é: os direitos, aí incluídos aqueles inerentes à liberdade de expressão, garantida constitucionalmente, são absolutos — em uma democracia posso fazer e dizer o que eu quiser? — ou experimentam algum tipo de limite? [1] Cf. KAPUSCINSKI, Ryzard. O Xá dos Xás: a queda do último Xá do Irã, que pretendia transformar o seu país numa superpotência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. [2] Camera, Andrea de la. Women's rights in iran during the years of the shah, ayatollah khomeini, and khamenei. University of Central Florida, 2015. p. 16. Disponível em: <https://stars.library.ucf.edu/ honorstheses1990-2015/1350>. [3] BRASIL, Constituição Federal, art. 1º, parágrafo único. [4] Cf. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. passim. [5] Cf. PAINE, Thomas. Senso Comum e outros escritos políticos. São Paulo: Martin Claret, 2005. [6] Cf. HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
2023-01-06T12:16-0300
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academia
Opinião
Antonio Carlos Will Ludwig: Democracia e Forças Armadas (parte 1)
Conforme dizem muitos cientistas sociais, nossos militares, no decorrer da história, sempre estiveram envolvidos com a política. Afirmam que desde a proclamação da República até a aplicação do golpe na década de 60 do século passado eles exerceram uma espécie de poder moderador. No transcurso dos 20 anos da ditadura, assumiram diretamente o exercício do governo. Encerrado o período autoritário com a entrega do poder aos civis, recolheram-se aos quartéis e dedicaram-se à atividade profissional. Embora de maneira bem menos ostensiva do que no passado, a ação política transcorreu segundo as normas do regime democrático por meio da prática do voto, candidaturas em eleições, formulação da estratégia de defesa nacional e fornecimento de colaboração nos períodos eleitorais. Entretanto, em 2018 ocorreu o julgamento de Lula no Supremo Tribunal Federal, o qual teve negado seu pedido de Habeas Corpus. Como é do conhecimento de muitos, essa não aceitação teve bastante a ver com o tuíte persuasivo emitido pelo general V. Bôas, movido pelas pressões oriundas dos ativos e inativos da família militar. Outro general já tinha admitido em entrevista que, caso ocorresse a concessão, o recurso à reação armada seria inevitável, porquanto constitui um dever militar restaurar a ordem. A Anistia Internacional, bem como a Ordem dos Advogados do Brasil, a Associação Nacional dos Procuradores da República e a Associação de Juízes Federais emitiram notas condenadoras do referido tuíte, por atentar contra a independência dos Poderes e se revelar como uma afronta ao Estado Democrático de Direito. Com Lula fora do páreo, a candidatura de Bolsonaro teve condições de avançar. Quanto a ela, vale dizer que foi construída pelos militares adeptos de valores conservadores e do sentimento antipetista que vislumbraram uma auspiciosa chance de alcançar o poder pela via democrática. Observe-se que logo após esse evento, houve um encontro de Bolsonaro com o general V. Bôas juntamente com integrantes do Alto Comando do Exército, no qual aconteceu o incremento de sua reabilitação no âmbito da força bem como o ganho de um relevante impulso à sua caminhada política rumo ao Planalto. O denominado partido da farda, partido militar ou partido verde-oliva encarregou-se de incentivar os integrantes da caserna a alinharem-se ao capitão candidato. O poder de sedução da onda bolsonarista estimulou inúmeros militares da ativa a violarem os regulamentos castrenses para fazerem campanha nas redes sociais. Uma das primeiras medidas tomadas por Bolsonaro após eleito foi nomear milhares de fardados para ocuparem cargos na esfera do governo. E, tendo em vista estreitar o máximo possível a relação com eles, concedeu aos mesmos benefícios financeiros, privilégios e agrados, dentre os quais se destacam verba extra para o Ministério da Defesa, salário acima do teto constitucional, reestruturação da carreira e alteração das regras de seguridade social. Essas retribuições não se mostraram apenas como um gesto de agradecimento, mas também, e principalmente, como uma tentativa de cooptação para apoio ao seu projeto populista de governo, o que chegou a entusiasmar uma facção dos fardados. Após a recente derrota eleitoral do mito, outras manifestações dos servidores de uniforme vieram à tona. Emergiu o aguardado relatório das urnas, que, em sua primeira versão, foi favorável à confiança nas eleições realizadas, porém em uma segunda versão tal confiança foi contestada. Alguns comandantes de quartéis se mostraram simpáticos e condescendentes com os lamuriantes patriotas postados em frente das guaritas vociferando por intervenção federal. Manifesto assinado por militares da reserva e da ativa contra uma suposta insegurança jurídica e uma instabilidade social e política no país foi postado como petição na internet. Um sargento que prestava serviços na administração federal bradou que Lula não iria subir a rampa. Os comandantes das três Forças, em desrespeito às normas militares, ameaçaram abandonar os cargos antes da posse do presidente eleito. E durante os quatro anos de governo a cúpula militar não veio nenhuma vez a público rechaçar a possibilidade da ocorrência de golpe, deixando pairar um sentimento de dúvida e de desconfiança na população. Embora se faça necessário destacar e enlevar os fardados por não terem  enveredado rumo a uma aventura golpista sob o comando de Bolsonaro, cabe acentuar que esse conjunto de acontecimentos emergidos no transcorrer da história revela, no mínimo, que nossos militares ainda não conseguiram se ajustar adequadamente às exigências do regime democrático. Ademais, essas ocorrências se mostram como sequelas do modo de pensar e sentir deles, que agrega o sentimento de superioridade em relação aos paisanos, o elevado grau de autonomia para tomar decisões e a concepção de que não só podem como devem exercer a tutela sobre o Estado e a sociedade. Além disso, e tão importante quanto elas, é o fato de o Brasil se encontrar bem distante das nações mais desenvolvidas no que diz respeito ao controle democrático das Forças Armadas. Com efeito, desde há muito tempo, governantes, parlamentares do Congresso Nacional, autoridades dos Poderes constituídos, elites dos vários setores e múltiplas organizações sociais têm demonstrado notória despreocupação e desinteresse para com o que ocorre no interior da caserna, apesar dos inúmeros estudos, das sugestões e das propostas advindos dos pesquisadores integrantes da comunidade acadêmica. Malgrado a existência deste manifesto descaso, revela-se imprescindível a exposição de um programa democrático para tornar as Forças Armadas mais ajustadas à democracia, conforme o que ocorre em outros países por ela regidos. Papel Constitucional: Nossa Carta Magna prevê para as Forças Armadas as tarefas de defesa da Pátria, de garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer um deles, da lei e da ordem. O grande problema desta finalidade se encontra na garantia da lei e da ordem, uma atividade que os militares exigiram que fosse mantida na Constituição atual para perpetuar a mesma função prevista naquelas que a antecederam. Tais dizeres são condizentes com toda estrutura jurídica de um país que apresenta as denominadas lacunas da lei. Os vazios e brancos da legislação não decorrem apenas de possíveis descuidos ou cegueira provocados pelo caráter ideológico de ocultação que faz parte do Direito. É intencional e atende ao interesse de incluir brechas para ir além da própria lei. Essa tarefa possibilita aos militares continuarem exercendo o antidemocrático poder moderador que veio à tona novamente durante o governo de Bolsonaro em suas contendas com o Judiciário. Não pode ser esquecido que as Forças Armadas de qualquer país do mundo, apesar do alto grau de autonomia que exibem, encontram-se ideologicamente atreladas aos segmentos dominantes da sociedade. Quando estes setores não conseguem ser hegemônicos na sociedade os militares aparecem em seu auxílio. Há, portanto, um claro apreço pelo ocultamento nestes segmentos porquanto permite a ocorrência de ações flexibilizadas as quais são muito importantes para a prática da hegemonia. Os termos ordem e lei permitem a eles utilizar as Forças Armadas em diversas circunstâncias, até naquelas em que pareça estar sendo violada a determinação legal. Cabe acrescentar que nos países de democracia consolidada não existe esta previsão legal. Em Portugal cabe às Forças Armadas a defesa militar da República e na Alemanha elas têm por funções a defesa do país e a intervenção nos casos em que a Lei Fundamental autoriza expressamente. Portanto, é preciso retirar da Constituição esta tarefa ou acrescentar nela seu explícito e objetivo significado. Ministério da Defesa: Durante os governos de Fernando Henrique, Lula da Silva e Dilma Rousseff a chefia do Ministério da Defesa foi entregue a um civil. Com Bolsonaro militares assumiram o comando. Pelo que se sabe os ministros civis apresentaram um bom desempenho em suas funções, embora deva ser lembrado que nas gestões deles ocorreram atos de resistência e insubordinação por parte dos fardados resultantes de um legado autoritário segundo estudo feito por Jorge Zaverucha. Recorde-se que nos Estados Unidos da América do Norte os comandantes que ocuparam o Departamento da Defesa, ou seja, os Secretários da Defesa, foram tanto civis quanto militares, mas os paisanos predominaram. Talvez o povo estadunidense até prefira um militar na chefia deste órgão porquanto o prestígio dos fardados perante a população é muito alto, gira em torno de oitenta por cento. Ademais os cidadãos norte americanos nutrem uma grande preferência pelas soluções militares aos vários tipos de problemas que afligem a sociedade. Em nosso país, ao contrário do que ocorreu nos Estados Unidos, os militares, no decorrer da história, interviram demasiadamente no jogo político e o prestígio das Forças Armadas recebeu vários arranhões. Para mudar o modo de pensar dos servidores de uniforme e conseguir a real subordinação deles aos civis eleitos pelo voto é imprescindível que a chefia do Ministério da Defesa seja endereçada apenas aos civis. Conquanto a história registre que todos os ministros da defesa foram indivíduos do sexo masculino, inclusive o atual já nomeado, a opção por uma mulher, pesquisadora de assuntos militares e com bom trânsito na caserna, seria bem-vinda. Veja-se que as mulheres, desde há muito tempo, estão sendo aceitas nas hostes castrenses em condições de igualdade com os homens nos diversos ramos da profissão militar. Elas são consideradas aptas física e mentalmente para exercer todas as funções destinadas aos fardados masculinos inclusive a de guerreira. Persistem demonstrando um bom desempenho nas atividades a elas destinadas e muitas vêm ocupando posições de destaque por meio do alcance do posto de general. Muitas dezenas de mulheres já ocuparam o cargo de Ministro da Defesa tais como Indira Gandhi na Índia, Elisabeth Rehn na Finlândia, Kim Kampbell no Canadá, Laura Miranda na Costa Rica, Kristin Devold na Noruega, Michelle Bachelet no Chile. Pelo que se sabe, mesmo enfrentado as dificuldades pertinentes todas alcançaram êxito em suas tarefas no decorrer do mandato. Ressalte-se que a atual ocupante da pasta na Alemanha é Christine Lambrecht. Ademais constitui uma forma de aumentar a presença delas em cargos de governo uma vez que a composição ministerial em nosso tem sido majoritariamente masculina. Ensino nas Academias: Com os trabalhos da atual equipe de transição, particularmente no âmbito da área da defesa, os militares apresentaram quatro pontos que eles não aceitam que sejam tocados, sendo um deles o ensino nas Academias. Em parte, eles possuem razão porquanto devem levar em conta que praticamente inexistem civis entendedores de ensino militar. A favor desta provável suposição mencione-se que nos cursos de Pedagogia não há especialidade em educação castrense e nem na área da pós-graduação. Os mesmos exibem atitude semelhante constatada em colegas estrangeiros, particularmente os da Bulgária, que alegam a falta de civis competentes neste setor de ensino. Malgrado esta suposição seja verdadeira é sabido que em outras nações tem ocorrido algum controle civil sobre a educação dos fardados. Na Inglaterra e na Alemanha, os alunos antes de frequentarem as Academias Militares precisam concluir uma licenciatura ou um bacharelato em universidades relativos a várias áreas do conhecimento, os quais encurtam a duração do preparo no interior da caserna. O ensino superior de todos os países integrantes da Comunidade Europeia é regido pelo alcunhado Processo de Bolonha complementado pela Estratégia de Lisboa e pela Estratégia Europa o qual visa facilitar o intercâmbio de graduados e adaptar o conteúdo dos estudos universitários às exigências sociais, melhorando a sua qualidade e competitividade através de uma maior transparência e uma aprendizagem baseada no estudante quantificada através dos créditos. Enquanto uma modalidade de ensino superior o ensino militar também é obrigado a seguir esta orientação e os órgãos centrais de educação de cada país têm a incumbência de monitorar as instituições de ensino castrenses em relação a esta obrigação. A Finlândia é uma nação que vem empreendendo esforços para seguir tal rumo. Para tanto as instituições militares de ensino já incluíram no currículo um conteúdo acadêmico composto de ciências humanas e naturais e instituíram os graus de bacharel, mestre e doutor em Ciências Militares dentre outras mudanças. Na Turquia o ensino superior militar é subordinado ao Ministério da Educação. Sua organização e seu funcionamento obedecem a Lei do Ensino Superior e as normas emanadas do Conselho de Ensino Superior. No caso brasileiro as três Academias Militares poderiam agregar um núcleo básico comum voltado para o estudo de certos temas tais como o papel das Forças Armadas, a defesa da democracia e as relações civis militares, o qual seria diretamente supervisionado pelo Ministério da Educação. É possível ir mais além e seguir os passos da Argentina que criou uma Universidade Nacional da Defesa subordinada ao Ministério da Educação e transferiu para ela a tarefa de formar seus servidores fardados.   Clique aqui para ler a parte 2
2023-01-06T06:32-0300
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academia
Observatório Constitucional
Intimidade e vida privada: passado, presente e futuro
01. Estimadas leitoras e caros leitores, feliz 2023! É uma alegria, porém também uma responsabilidade, escrever a primeira coluna deste ano do Observatório Constitucional, que completa dez anos de publicação semanal. Trata-se de projeto editorial de fôlego, devendo parabenizar os professores André Rufino do Vale e Fábio Quintas pela coordenação do expediente. Para alguns, as datas e a marcação do tempo não se revestem de grandes significados, sendo, por exemplo, apenas a contagem daquilo que já transcorreu ou a indicação de um período que virá. De outro lado, os momentos de transição, como os que vivemos hoje, com o advento de um novo ano civil e com as modificações nas práticas estatais brasileiras para a observância da democracia constitucional, são situações que impõem reflexão sobre o passado, análise acerca do presente e planejamento para o futuro. Nesse cenário, retomarei um tema que tratei originalmente há cerca de 15 anos [1], mas que contém desafios para o presente e o futuro: a intimidade e a vida privada. 02. A intimidade e a vida privada são fenômenos importantes e complexos nas sociedades moderna e contemporânea, tendo examinado Hannah Arendt as principais características, nos seguintes termos: "O que hoje chamamos de privado é um círculo de intimidade cujos primórdios podemos encontrar nos últimos períodos da civilização romana, (...) mas cujas peculiaridades, multiformidade e variedade eram certamente desconhecidas de qualquer período anterior à era moderna" [2]. Nesse contexto, as relações entre o público e privado foram modificadas, pois, de um lado, a "presença de outros que vêem o que vemos e ouvem o que ouvimos garante-nos a realidade do mundo e de nós mesmos", porém, de outra banda, "a intimidade de uma vida privada plenamente desenvolvida (...) sempre intensifica e enriquece grandemente toda a escala de emoções subjetivas e sentimentos privados, esta intensificação sempre ocorre às custas da garantia da realidade do mundo" [3]. Em síntese, existe uma gradativa valorização do espaço privado, em virtude do seu papel no desenvolvimento da personalidade humana, permitindo assim a vivência de experiências individuais, próprias e íntimas. Por sua vez, a exposição da intimidade e da vida privada é questão bastante complexa, visto que a "intimidade não pode ser trazida à tona da mesma forma que as questões públicas", no entanto não "se quer dizer que todas as questões íntimas devam, necessariamente, ser escondidas de todos e somente vividas pelo indivíduo" [4]. 03. No plano do direito constitucional positivo contemporâneo, o constituinte originário brasileiro positivou com precisão o direito fundamental à intimidade e à vida privada, no artigo 5º, X, Constituição Federal, além de o poder reformador incorporar expressamente o direito fundamental à proteção de dados pessoais, por meio da Emenda Constitucional nº 115/2022. Ainda, as instituições da sociedade civil e a jurisdição constitucional desempenham papéis de destaque nessa seara. Na Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6.649, sendo relator o ministro Gilmar Mendes e legitimado ativo o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, foi impugnado o Decreto 10.046/2019, o qual extrapolou o poder regulamentar da Presidência da República, violando a proteção de dados pessoais, a intimidade e a vida privada das pessoas naturais, pois promovia o compartilhamento e a integração de informações pessoais sem as devidas cautelas. À época, em conjunto com relevantes advogadas como Estela Aranha e Lucia Maria Teixeira Costa e com o saudoso amigo e brilhante jurista Danilo Doneda, redigimos a petição inicial, demonstrando a "violação direta aos artigos 1º, inciso III e 5º, caput, e incisos X, XII e LXXII da Constituição Federal, os quais asseguram, respectivamente a dignidade da pessoa humana; a inviolabilidade da intimidade, da privacidade e da vida privada" [5]. O voto do ministro Gilmar Mendes, na ADI nº 6649, enfrentou e resolveu a controvérsia constitucional com proficiência, apontando a) os dilemas da intimidade e da vida privada na era digital, b) que a jurisdição constitucional brasileira encontra-se atenta aos ataques contemporâneos à intimidade e à vida privada e c) "que a disciplina jurídica do processamento e da utilização de dados pessoais acaba por afetar o sistema de proteção de garantias individuais como um todo", devendo ocorrer "uma releitura de mecanismos clássicos de defesa das liberdades públicas" [6]. Na rica solução da questão, por meio de interpretação conforme à Constituição, determinou-se que o compartilhamento de dados pessoais entre órgãos e a administração pública pressupõe propósitos legítimos, específicos e explícitos, restando limitado ao mínimo necessário. 04. Apesar de importantes avanços no tratamento da temática pelo legislador, pelo poder reformador constitucional e pela jurisdição constitucional brasileira, são diversas as questões que precisam ser revistas ou enfrentadas sobre a intimidade e a vida privada na era digital. Vejamos algumas. O direito ao esquecimento surge originariamente no mundo pré-digital [7], levando em consideração especialmente a exposição de pessoas naturais pela televisão. Infelizmente, a jurisdição constitucional brasileira recentemente analisou o direito ao esquecimento, a partir de um caso analógico (programa de televisão que expôs novamente, em 2004, o homicídio ocorrido na década de cinquenta do século passado), no Recurso Extraordinário nº 1.010.606/RJ [8]. O contexto analógico é bastante diverso da vida atual mediada pela tecnologia digital, em virtude de inúmeras razões. Em primeiro lugar, as pessoas naturais interagem com frequência, nos âmbitos pessoal e profissional, por meio de aplicativos, redes sociais e demais instrumentos digitais, inexistindo essa intensidade de comunicação e de compartilhamento anteriormente. Em segundo lugar, a quantidade de informações e de dados pessoais armazenados, em arquivos e bancos de dados públicos e privados, é enorme, podendo impactar em quase todas as dimensões da existência humana e social. Em terceiro lugar, o desenvolvimento da personalidade dos seres humanos acontece com a utilização dos instrumentos digitais. Nesse novo tempo, o que era válido, no mundo quase que exclusivamente analógico, não pode permanecer sem alterações, impondo-se o exercício de uma hermenêutica constitucional renovada com a ampliação do âmbito de proteção de direitos fundamentais já fixados, como o direito à intimidade e à vida privada [9]. Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal fixou o Tema 876 sobre o direito ao esquecimento, no Recurso Extraordinário nº 1.010.606/RJ, contudo a primeira parte da tese é preocupante, tendo a seguinte redação: "É incompatível com a Constituição Federal a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social — analógicos ou digitais" [10] [11]. O rótulo do direito ao esquecimento, por boa parte da literatura especializada, é utilizado de maneira ampla para uma série de dimensões do desenvolvimento da personalidade, na sociedade digital. Desse modo, não é jurídica, constitucional e socialmente possível compreender e aceitar a incompatibilidade desse direito com a Constituição Federal brasileira de forma tão ampla, já que diversas dimensões do direito ao esquecimento são adotadas no direito estrangeiro e brasileiro [12]. Assim, uma interpretação restritiva da incompatibilidade do direito ao esquecimento com a Constituição Federal, para fins do Tema 876, é necessária, possuindo também guarida esse entendimento na segunda parte da tese firmada pelo Supremo Tribunal Federal: "Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais - especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral — e das expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível". 05. A questão da publicidade de informações pessoais e públicas continua muito atual, na tutela do direito fundamental à intimidade e à vida privada, nos marcos do Estado Democrático de Direito. O governo federal brasileiro anterior determinou o sigilo de até cem anos, para uma série de informações que são públicas, logo não se amoldam ao disposto no artigo 31, Lei Federal nº 12.527/2011. Dessa forma, corretamente o atual governo federal determinou à Controladoria Geral da União a reavaliação da concessão desse acesso restrito, buscando verificar a adequada aplicação da Lei de Acesso à Informação e a prevalência de questões públicas e de Estado em diversos assuntos cobertos por esses sigilos [13]. Situação diametralmente oposta sobre o resguardo versa sobre o direito à extimidade, o qual pode ser definido como o poder ou a faculdade "de usufruir, propositivamente, de informações da própria intimidade em ambientes de sociabilidade, por meio da sua exposição voluntária, sem a intenção consciente de tornar a informação veiculada pública, visando à emancipação e/ou ao empoderamento" [14]. Conforme defendi outrora, a intimidade é elemento central e paradoxal da vida privada e da vida em geral das pessoas naturais, ocorrendo muitas vezes a divulgação voluntária de informações pessoais pelo próprio titular. Isso não significa que a intimidade perdeu sua força, e sim que aspectos centrais da vida privada representam os principais elementos da personalidade humana [15]. Pelo exposto, faz todo o sentido proteger o direito à extimidade, nos moldos descritos acima, concretizando na era digital a autodeterminação das pessoas humanas. Mesmo reconhecendo a existência da extimidade, o alerta de Francisco Balaguer Callejón sobre a banalização da exposição da intimidade é essencial: "La escasa preocupación de los nativos digitales por su derecho a la intimidad se explica en gran medida porque han sido 'dopados' muy tempranamente por las compañías tecnológicas, con aplicaciones que están destinadas justamente a la exhibición pública" [16]. 06. A intimidade e a vida privada residem no coração do constitucionalismo, possuindo novos e velhos dilemas e necessitando de aprofundamento o debate na esfera pública e na comunidade jurídica. [13] "Art. 31. O tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais. § 1º. As informações pessoais, a que se refere este artigo, relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem: I - terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção, a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem; e II - poderão ter autorizada sua divulgação ou acesso por terceiros diante de previsão legal ou consentimento expresso da pessoa a que elas se referirem".
2023-01-07T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-07/observatorio-constitucional-intimidade-vida-privada-passado-presente-futuro
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Diário de Classe
Constelação familiar: a pseudociência em moda no mundo jurídico
Os fins justificam os meios? Trata-se de uma velha — mas sempre presente — questão. Neste começo de ano, é fundamental relembrar que as concepções que temos sobre o Direito (enquanto ciência, área do conhecimento humano) não são apenas importantes, mas determinantes na sua própria compreensão. As lições que podemos tirar sobre o emprego da "constelação familiar" não se limitam a essa prática, revelando também profundas verdades sobre o modo como o Direito é compreendido no Brasil. 1 - O que é a constelação familiar? Para o polêmico criador da "Teoria das Constelações Familiares", Bert Hellinger, temos conexões inconscientes com os destinos de nossos antepassados que precisam ser reveladas para a superação de nossos problemas. As sessões de terapia, grosso modo, visam (r)estabelecer a harmonia desse emaranhando de conexões, baseadas em "campos de energia" que conectam passado e presente. Os "traumas familiares", nesse sentido, estão associados à própria rede familiar em que estamos inseridos, repercutindo impressões e implicações em todos que a integram, mesmo que inconscientemente [1]. As dinâmicas podem ser realizadas de diversas maneiras, sendo usuais as que ocorrem em grupo, com a representação de cenas em que o "constelado" é sintonizado com seu campo familiar a partir de interpretações de participantes que representam seus familiares ou outros elementos relevantes para a situação. Nos últimos anos, a abordagem da constelação familiar tem sido alvo de escrutínio principalmente nos países de língua alemã onde surgiu, mas também no Brasil, onde tem sido questionada e desautorizada por órgãos de classe da área da saúde (como se verá logo mais). Os críticos questionam várias ideias de Hellinger, a começar pelas suas bases teóricas, que se assentam em restos de pseudociência, misturados com "misticismo quântico", assim como em supostas crenças sem embasamento adequado sobre a própria estrutura do sistema familiar. A título de exemplo, Hellinger chega a vincular a homossexualidade em um menino à necessidade de suprir os sentimentos de uma irmã falecida em uma família que não conte com outra figura feminina para tanto; em outro momento, ele afirma que o incesto e o estupro criam um "vínculo" ("apesar de tudo"), que não pode ser simplesmente rompido pela "luta", exigindo, na verdade, o reconhecimento de respeito ao perpetrador para restabelecimento do equilíbrio familiar. O pai das "constelações familiares", aliás, redigiu uma espécie de "ode a Hitler" em sua última obra (de 2004), reforçando uma pecha que já pairava sobre si de antissemita e mostrando uma abjeta distorção no nosso valor enquanto seres humanos [2]. 2 - O que o Direito tem a ver com isso? Trazer à tona esse "método terapêutico" não é mera curiosidade; em abril de 2018, noticiou o CNJ que a constelação familiar era adotada na Justiça em 16 estados e no Distrito Federal, alinhada à promoção de práticas que proporcionam tratamento adequado dos conflitos preconizada pela Resolução CNJ nº 125/2010 [3]. Supostamente, a pseudociência auxiliaria na "humanização" de práticas conciliatórias no âmbito forense, pessoalizando mais o ato judicial a partir das representações realizadas durante as sessões. O juiz de Direito Sami Storch, discípulo de Hellinger, é o precursor do uso da pseudociência no âmbito judicial, tendo inclusive publicado texto aqui na ConJur sobre o tema [4]. Em março de 2022, o assunto foi debatido no Senado Federal, motivado por requerimento do "campo quântico" que se manifestava na prática, "no qual a telepatia atua como resultado da interconexão entre os níveis energéticos das mentes humanas" [5]. Antes disso, a constelação familiar já havia sido incluída como prática integrativa e complementar (PICS) no Sistema Único de Saúde (SUS), por força da Portaria nº 702/2018, com base na hipotética "existência de um inconsciente familiar — além do inconsciente individual e do inconsciente coletivo — atuando em cada membro de uma família" [6]. Ademais, uma rápida pesquisa no Google acadêmico mostra diversos artigos de baixa densidade teórica defendendo o uso da constelação familiar no Direito [7]. Um dos argumentos mais empregados é o suposto incremento no número de acordos proporcionadas pelo método, sem avaliar a conformidade com a legislação ou qualidade desses ajustes. 3 - Encerrar processos a todo custo? É sintomático que um método fundado em supostos "campos de energia" e "conexões inconscientes" possa estar sendo aplicado sem tantos questionamentos no Judiciário brasileiro. No locus das discussões mais íntimas, mais divisivas, que podem significar a ruína ou a fortuna dos envolvidos, a constelação familiar é tratada como um procedimento terapêutico como qualquer outro, como se fosse validado e respaldado cientificamente. Tudo isso deveria causar certo espanto. O Conselho Federal de Psicologia se manifestou expressamente contra o Projeto de Lei nº 4887/2020 (Câmara dos Deputados), que visa regulamentar a profissão de "constelador familiar sistêmico ou terapeuta sistêmico". Aliás, para o Conselho Regional de Psicologia do Paraná, os princípios das constelações familiares fomentariam a "naturalização de lugares fixos dos membros de uma família, a partir de rígida hierarquia" [8], em desconformidade com achados mais recentes que demonstram a complexidade dos fenômenos psíquicos. Publicação do Conselho Federal de Medicina destacou exatamente a inexistência de resultados e eficácia comprovados cientificamente [9]. O óbvio muitas vezes precisa ser dito: uma terapia, para ser disponibilizada e aplicada no SUS, no Judiciário, ou em qualquer meio público no Brasil deve ser suficientemente respaldada em pesquisa científica. Políticas públicas não podem ser feitas de outra forma. Qualquer Estado com o mínimo de "moralidade" (pública) deve ser capaz de filtrar terapias "da moda" ou outras invenções que venham à tona — se eventualmente elas "passarem no teste" das evidências científicas, que sejam adotadas no sistema pública; caso contrário, não. Tratando-se do Direito, nunca se pode deixar de ressaltar que números, por si sós, podem ser enganadores. Não adianta mostrar que a constelação familiar tem resultado em x acordos todo mês no tribunal y. Existe a qualidade na prestação jurisdicional que dificilmente é captada pela quantidade que é baixada dia após dia. A Crença na Onipotência do Julgador também dá as caras quando aceitamos que um acordo judicial pode ser alcançado de qualquer forma. A constelação familiar se torna instrumento de aplicação da lei quando incorporada no sistema judiciário — daí por que precisamos exigir evidências científicas nas decisões judiciais.[10] Veja-se como isso é relevante: durante os debates no Senado em torno da constelação familiar, foram relatadas situações em que o método poderia até mesmo gerar "revitimização", principalmente em casos com mulheres que haviam sido vítimas de agressão no meio familiar. Assim, abusos psicológicos e físicos seriam reavivados, submetendo a mulher a situações de humilhação. Há até mesmo notícia de órgãos judiciais que agem de forma a forçar a realização do acordo [11]. Isso não é tudo. Em certos momentos — embora sempre ele o faça com ressalvas — Hellinger apresenta tons homofóbicos e sexistas em seus textos. Para ele, a "[h]omossexualidade significa que uma pessoa não está em sintonia com sua identidade sexual"[12], podendo ela ser muitas vezes derivada de problemas nesse inconsciente suposto. Em outro excerto, Hellinger indica que "[o] amor é geralmente bem servido quando uma mulher segue o marido na língua, na família e na cultura, e quando concorda que os filhos devem segui-lo também" [13]. Questões como essas integram a visão terapêutica por ele projetada e, de uma forma ou de outra, orientam a técnica. Se a interpretação jurídica requer um treinamento e um estudo específicos, a psicologia também. Juristas não são psicólogos. Isso significa que não pode ficar à livre disposição dos juízes a escolha pelos métodos terapêuticos que julgarem convenientes — ainda mais quando eles próprios passam a ser habilitados a conduzir, como no caso da constelação familiar. 4 - Levando o Direito a sério como ciência Que Direito queremos enquanto sociedade? No limite, o debate sobre a legitimação da constelação familiar como política pública — seja no SUS, seja em mediações judiciais — passa pelo sentido que atribuímos ao Direito enquanto área do conhecimento humano. Lenio Streck já demonstrou há muito que uma das principais chaves para compreensão do fenômeno jurídico é sua autonomia: o Direito só pode ser Direito na medida em que o visualizamos como um produto da política, da economia, da moral (para ficar apenas nessas) [14]. O Direito não é a política, ou a economia, ou a moral, mas um produto que é, em certo sentido, autônomo. Daí por que é possível sustentar, a partir disso, uma espécie de "blindagem" do discurso jurídico contra argumentos propriamente de política, economia ou moral — quanto mais de pseudociência. O juiz não pode dizer que uma lei diz x simplesmente porque essa é "sua opinião política". Da mesma forma o juiz não pode utilizar um método terapêutico pseudocientífico, baseado em vagas noções "quânticas" (aliás, o misticismo quântico está na moda), em sessões de mediação. O discurso jurídico exige compromissos institucionais. Assim como o juiz não deve apenas escolher uma interpretação legal, mas esforçar-se em buscar aquela que melhor considere o Direito como um todo (o Direito na sua melhor luz), também o juiz não pode ser livre para se valer de métodos questionáveis em audiência. De fato, o caminho proporcionado pela constelação familiar pode ser muitas vezes mais fácil. Todavia, ainda que se admitisse — e não há evidências robustas disso — que a técnica proporciona alto índice de acordos, ainda assim não seria correto o seu emprego. O Direito, acima de tudo, não pode ser entendido como uma questão de consequência, mas como questão de princípio. "Pacificar conflitos sociais" não equivale a pôr fim aos processos judiciais. O meio adequado importa. Relembrar traumas, com possibilidade de revitimização, é situação necessária na terapia? Os "campos energéticos familiares" existem? Quais são as implicações da constelação familiar em longo prazo? Ela é realmente benéfica, maléfica ou não faz nenhuma diferença? O Direito não pode responder a essas perguntas, isso é papel da ciência que investiga esses fenômenos (psicologia, medicina), a qual vem, inclusive, deslegitimando a prática. O perigo reside na ideia de que os juristas possam passar por cima dos elevados padrões do método científico nas suas lidas forenses. Esse tipo de constrangimento epistemológico [15] é essencial em uma época tão marcada pela relativização da verdade. Se não for pela dificuldade de se aceitarem argumentos pouco fundamentados de mecânica quântica, devemos duvidar ao menos da possibilidade de juízes, promotores e advogados lidarem com questões que não são de sua área de formação. Ainda, em um aspecto que não pode deixar de ser minimamente abordado, chega a ser embaraçoso ver a fenomenologia heideggeriana associada à constelação familiar. Com efeito, Hellinger frequentemente se refere ao des-velamento tão caro aos hermeneutas. O problema é que dificilmente um hermeneuta compraria ideias arrojadas de mecânica quântica sem o mínimo de investigação científica séria. Ir "às coisas mesmas" não significa "aceitar que meus sentimentos e impressões pessoais representam fielmente a verdade" — que é o que largamente move as pseudociências. Isso é o contrário do que pregam os hermeneutas, notórios defensores da necessidade de abertura à reavaliação de nossos preconceitos e pré-juízos. Toda vez que trazemos pseudociência para dentro do Direito, ela passa a integrar o "modo de vida", uma forma de manifestação do fenômeno. Aceitar que no Direito possa existir algo sem comprovação científica é, no limite, aceitar que o Direito é compatível com práticas não-científicas. Crer ou não crer nessas propostas "quânticas" e "energéticas" cabe a cada um, em sua individualidade. O problema é levar isso para dentro do Direito, empreendimento coletivo por excelência no qual decisões sobre métodos e técnicas devem ser tomadas de forma criteriosa. Posso ser cristão ou ateu, judeu ou agnóstico, mas não posso levar para a linguagem pública que constitui o Direito a Eucaristia ou a exigência da circuncisão. Todo cuidado é pouco. Com o andar da carruagem, logo, logo teremos um robô-juiz disponível para conciliação judicial por meio da constelação familiar. É viver para ver. [1] HELLINGER, Bert. Órdenes del amor: cursos seleccionados de Bert Hellinger. Traducción de Sylvia Kabelka. Barcelona: Herder Editorial S.L., 2001. p. 13-14. [2] Ótimo apanhado dessas (e outras) “estranhas ideias” que existem nos fundamentos da constelação familiar pode ser encontrado em CARROLL, Robert Todd. Bert Hellinger and family constellations. The Skeptic's Dictionary. Disponível em: https://www.skepdic.com/hellinger.html. Acesso em: 3 jan. 2022. [3] Informação disponível em: https://www.cnj.jus.br/constelacao-familiar-no-firmamento-da-justica-em-16-estados-e-no-df/. [4] Texto disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-jun-20/sami-storch-direito-sistemico-euma-luz-solucao-conflitos. [5] Para ver o requerimento: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8068824&ts=1648153039139&disposition=inline. [6] Portaria disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2018/prt0702_22_03_2018.html. [7] A título ilustrativo: https://recifaqui.faqui.edu.br/index.php/recifaqui/article/view/20. [8] Conforme nota técnica que segue: https://transparencia.cfp.org.br/wp-content/uploads/sites/9/2022/09/Nota-Tecnica-3-2022.pdf. [9] Texto em: https://portal.cfm.org.br/artigos/efeito-placebo-nos-postos-de-saude/. [10] Em referência a texto de Lenio Streck sobre a deficiência jurídica de exigir afirmações com base científica: https://www.conjur.com.br/2018-jun-07/senso-incomum-tal-exigir-evidencias-cientificas-decisoes-tribunal. [11] Conforme: https://www.metropoles.com/brasil/justica/apos-denuncias-cnj-analisa-uso-de-constelacoes-familiares-na-justica [12] HELLINGER, Bert. Desatando os laços do destino: constelações familiares com doentes de câncer. Tradução de Newton de Araújo Queiroz. São Paulo: Editora Cultrix, 2004. [13] HELLINGER, Bert; WEBER, Gunthard; BEAUMONT, Hunter. Love’s hidden symmetry: what makes love work in relationships. Phoenix: Zeig, Tucker & Co., 1998. p. 51. [14] Questão muito bem tratada no verbete Autonomia do direito. Cf. STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Letramento, 2020. p. 25-33. [15] Remeto o leitor ao (belíssimo) verbete Constrangimento epistemológico. Cf. STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Letramento, 2020. p. 61-66.
2023-01-07T08:00-0300
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Opinião
Antonio Carlos Will Ludwig: Democracia e Forças Armadas (parte 2)
- Clique aqui para ler a parte 1   Supervisão Parlamentar: A Câmara dos Deputados de nosso país possui uma área denominada Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional. Um exame das propostas e relatórios feitos pelos seus integrantes revela que seus parlamentares tem realizado muitas ações que cabem a ela por determinação legal. Entretanto, pelo exame de tais documentos verifica-se que a mesma se volta apenas para o desenvolvimento de funções burocráticas rotineiras. Observe-se que em alguns países do mundo há uma representação no parlamento que cuida de assuntos militares e desenvolve outros tipos de ações. Na Alemanha, por exemplo, existe a figura do Wehrbeauftragten des Deutschen Bundestages ou o Comissário Parlamentar das Forças Armadas atualmente exercido por Eva Högl. Essencialmente ele é um defensor dos interesses dos militares. Uma de suas principais funções é tomar as medidas cabíveis se constatar violação dos princípios de desenvolvimento de liderança e educação cívica ou de direitos básicos do Bundeswehr. Note-se que qualquer fardado, desde o soldado raso até o general, tem a opção de levar suas queixas diretamente ao Comissário Parlamentar das Forças Armadas sem aderir à cadeia de comando. O titular desta comissão está sempre se empenhando para obter informações detalhadas sobre as forças. Todos os anos costuma visitar vários locais onde se encontram quartéis das forças armadas. Durante suas visitas recebe informações não apenas de líderes militares, mas também em conversas diretas com os demais. O Comissário deve garantir o cumprimento dos exércitos ao Innere Führung, que é, em primeiro lugar, o conceito de soldado cidadão e militar totalmente integrado numa democracia liberal e numa sociedade pluralista. Na Bósnia e Herzegovina, o principal objetivo perseguido pelo comissário da defesa é de fortalecer o estado de direito, os direitos humanos e as liberdades dos militares conforme garantido pela Constituição e convenções internacionais ratificadas pelo país. Na Austrália existe a figura do ombudsman encarregado de receber denúncias de abuso praticados contra integrantes das Forças Armadas e investigar reclamações sobre medidas administrativas tomadas em instâncias superiores. A comissão de defesa brasileira poderia ampliar suas atividades e incluir a figura do comissário parlamentar, semelhante ao germânico, para se dedicar aos interesses dos fardados em relação à carreira, às condições de trabalho e ao salário bem como atentar aos seus reclamos e expectativas, colher opiniões, identificar concepções, monitorar suas ações e encaminhar suas reivindicações. Relações Com os Civis: Desde a criação dos Estados nacionais que geraram as Forças Armadas persiste a preocupação dos paisanos em relação aos fardados quanto à possibilidade de eles usarem seu poder para esmorecer e até inviabilizar a dinâmica do regime político. Para evitar a ocorrência de eventuais intervenções, os estudiosos do assunto propuseram duas alternativas básicas. Uma delas se centra na concessão pelos civis de autonomia profissional aos militares, na subordinação deles aos líderes políticos civis, na não intervenção dos mesmos na política e na não ingerência política nas Forças Armadas por parte dos civis. A outra é assentada no conceito de civilinização que é entendido como a presença ativa de civis nas instituições bélicas e o emprego nelas de noções civis. Sustenta que o avanço da tecnologia é o responsável pelo fenômeno da civilinização o qual aproxima cada vez mais os paisanos dos fardados, e desfaz a distinção entre civis e militares e suas organizações. A primeira alternativa, voltada para a persecução do apoliticismo, desde há muito tempo, vem tentando guiar a grande maioria das Forças Armadas, particularmente a nossa, entretanto ela tem se mostrado muito vulnerável devido não se coadunar com a realidade objetiva. Nos Estados Unidos o US Cyber Command tem sido utilizado na segurança eleitoral. Seus integrantes tem trabalhado para embotar campanhas de influência e determinar o que conta como conteúdo político aceitável e inaceitável. Ademais, em seu esforço para reprimir provocadores estrangeiros, inadvertidamente restringem a liberdade de expressão, especialmente quando agências de inteligência forasteiras supostamente vêm atraindo americanos de forma sorrateira, para escrever posts em sites falsos. Em Israel já foi evidenciado que reina uma falsa percepção quanto ao traço apolítico dos militares. De fato, os mesmos se vêm como um corpo profissional que atua segundo uma concepção apartidária. Acreditam que fazem parte de um exército cidadão que se apresenta como a nação em armas pois reflete os matizes da sociedade civil haja vista que os fardados são oriundos de todas as camadas sociais. Não visualizam as Forças Armadas pelo ângulo do profissionalismo militarista e sim segundo a ideia de Mamlachtiyut, que diz respeito a um ethos nacional estatista combinador da noção de pertencimento à mesma comunidade, condutas comuns e engajamento para o bem de Israel. Outrossim, em algumas nações europeias a proposta da profissionalização se revelou inconsistente. Veja-se o caso da França, que, na década de 60 do século passado, estava envolvida em uma guerra contra a Argélia. Receosa de perder mais uma colônia, chamou o general de Gaulle para administrar o conflito. Após conceder autodeterminação aos argelinos, emergiu a República da Argélia. Muitos franceses sentiram-se traídos e fundaram a denominada Organização do Exército Secreto que junto com alguns generais tentaram dar um golpe, porém fracassaram. Recentemente, emergiu um manifesto encabeçado por generais, contendo milhares de assinaturas, advertindo que frente ao crescimento do caos no país as Forças Armadas logo seriam convocadas para conter uma guerra civil. Após algumas semanas, apareceu outro de caráter anônimo, mas seus autores declararam ser militares da ativa. O conteúdo acusava o governo de se mostrar incapaz para enfrentar o avanço do islamismo, da imigração e da violência interna. Agregue-se também o caso da Grécia em 1967 quando emergiu o Plano Prometheus elaborado pelos militares com base na justificativa de salvar a nação de um suposto regime comunista que sustentou a alcunhada ditadura dos coronéis. Essa proposta do apoliticismo militar, que tem guiado a ação dos servidores de uniforme do nosso país desde há muito tempo, defendida por governantes, parlamentares, jornalistas, intelectuais e estudiosos de assuntos militares, não possui um mínimo de sustentação empírica. Não detém também nenhum suporte teórico. Note-se que a ideia do apoliticismo se ancora no pressuposto da neutralidade o qual não encontra base nem na Ciência e nem na Filosofia. Nesta somente a área da fenomenologia admite a epoché, que é a possibilidade da suspensão do juízo apenas no início de uma investigação científica. Esse alvitre é resultante da falsa concepção de estabilidade social, da criticável ideologia conservadora, da fragilidade do raciocínio assentado nos princípios da lógica formal e da insustentável cosmovisão funcionalista. Tendo em vista uma melhora radical nas relações civis-militares, é imprescindível abandonar de vez essa infundada teoria do apoliticismo, que teima em segregar inutilmente os militares no interior dos quartéis para se dedicarem inteiramente aos afazeres da defesa do país. Vale dizer que é esse isolamento que facilita a elaboração por parte deles de soluções muitas vezes nada democráticas para os problemas nacionais. É crucial abandonar também o uso do princípio da identidade, o qual induz a ideia de que militar é militar e civil é civil, bem como o pensamento de que essa ideia tem que persistir, haja vista que cabe a cada um deles tarefas pertinentes e específicas. Faz-se necessário ainda civilinizar cada vez mais as Forças Armadas, pois a civilinização é o destino inexorável das instituições castrenses nos países regidos pela democracia. A visível aproximação cada vez maior dos fardados aos paisanos, bem como de suas organizações, está contribuindo decisivamente para o desaparecimento das diferenças entre uns e outros até o ponto em que provavelmente ocorrerá o ato da fusão, cujo exemplo mais aproximado é a figura do citizen in uniform existente nos países da Europa, o qual é profissionalmente regido pela Carta Social Europeia voltada aos civis. Exercício do Comando: Muitas Forças Armadas do planeta e todas as pertencentes aos países autocráticos adotam um estilo linear de condução da tropa, isto é, na forma de uma estrutura piramidal em cujo vértice se encontra a autoridade máxima preservadora da unidade de comando. Assim sendo, é centralizadora, poucos mandam, haja vista que a quase totalidade das ordens são oriundas de uma só chefia. Nos escalões mais baixos, os indivíduos não se comunicam livremente, necessitam da intervenção dos respectivos chefes para a troca de informações. Cada setor age com autonomia, sujeitando-se somente em relação à autoridade de linha, ou seja, na vertical. Observe-se que não deve ter sido fácil para as nações do leste europeu que quiseram adentrar à comunidade europeia, após a queda do muro de Berlim, substituir o modo linear de comando em suas tropas. Nos Estados Unidos, o Exército usa a Gestão de Qualidade Total, que exige o emprego da técnica do brainstorming, requerente da busca de consenso entre ideias e opiniões. Na Suíça, os fardados empregam uma ferramenta da Gestão de Pessoas denominada liderança transformacional, cujo relacionamento é construído por meio do contato entre os integrantes da equipe. É um estilo de ação em que dirigentes e dirigidos se ajudam de forma mútua em busca de objetivos comuns. Em diversos países democráticos, a liderança dos agrupamentos militares se mostra bem diferente da forma linear. Na Alemanha o comando se assenta no estilo denominado Auftragstaktik, ou missão dada pela finalidade, o qual possibilita que todos os integrantes da pirâmide hierárquica, desde o soldado raso até o general comandante, exercitem seu espírito crítico, sua faculdade de julgamento, sua conduta autônoma e sua capacidade de tomar a iniciativa. O militar, qualquer que seja sua graduação, pode, até mesmo em circunstâncias especiais, modificar ou deixar de cumprir as tarefas que lhes foram confiadas por superiores hierárquicos, se ele considerar que isso está de acordo com a intenção do comandante responsável pela ordem expedida. Novamente citando os Estados Unidos, verifica-se, desde alguns anos, que vem sendo posto em prática um procedimento de liderança alcunhado de shared leadership, o qual pode ser traduzido como liderança compartilhada. Em tal modo de direção grupal, inexiste a figura de um indivíduo específico responsável pelo encaminhamento do grupo. A ênfase recai na interação dos membros da equipe, para possibilitar o exercício do comando coletivo, no qual a conduta de todos é resultante de protagonismos alternados. Ele se mostra bem adequado em operações militares carregadas de alto risco para todos os integrantes que participam dessas operações. Outro estilo também utilizado e empregado pelas tropas da Otan, o qual foi repassado de modo exitoso aos fardados da Ucrânia, se baseia no conceito de decentralized warfare. Ele confere agilidade aos agrupamentos combatentes porquanto possibilita aos líderes das pequenas e dispersas unidades pensarem e agirem por conta própria observando a opinião dos subordinados hierárquicos. Em nosso país o exercício do comando, de forma predominante, segue o modelo linear, embora não seja incomum a prática da inquirição aos subalternos para tomar decisões que pode não a levar em conta e a promoção do incentivo à tomada de iniciativa por todos os integrantes da escala hierárquica. É um estilo de liderança que acentua a tradicional conduta de imediata obediência às ordens expedidas. Tal automatismo comportamental não se coaduna com a natureza atual do combate exigente da avaliação pessoal relativa à busca das melhores respostas a determinados tipos de perigos. Portanto, se mostra necessário rever esta forma de gerenciamento de pessoas, no sentido da adoção cada vez mais ampla e intensa de procedimentos participativos, os quais, sem dúvida, estão em sintonia com a essência do regime político democrático.   - Clique aqui para ler a parte 3
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Segunda Leitura
O jurista transnacional e a nova arquitetura jurídica mundial
No início de 2022, a comunidade acadêmica foi contemplada com a obra A Transnacionalização do Direito como Forma de Miscigenação dos Sistemas Jurídicos, de Carla Della Bona, que é professora na Universidade de Passo Fundo (UPF), mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM e doutora em Direito pela Univali, com dupla titulação pela Universidade de Alicante, na Espanha. O livro contém a sua tese de doutoramento. Della Bona afirma que o Direito Transnacional faz parte de uma nova arquitetura jurídica mundial: "no mundo pós-moderno, em rápida transformação e com complexidade crescente, os juristas deverão ser capazes de oferecer respostas inovadoras que permitam estabilizar as relações e instituições" [1]. A autora enxerga no Direito Transnacional uma força irresistível e transformadora do ambiente que os juristas estão habituados a encontrar. Citando Oscar Vilhena Vieira, afirma que os profissionais do Direito da atualidade estão "muito mais expostos a operações que têm algum componente jurídico internacional do que estavam há uma década; e, provavelmente estarão ainda mais expostos num futuro próximo" [2]. Segundo Della Bona, as profissões jurídicas estão se transformando: "o jurista da era global deve forçosamente interessar-se na rica diversidade do Direito Transnacional, nas ordens jurídicas nacionais com as quais o Direito Transnacional interage"[3]. A fonte normativa já não está concentrada nas mãos do Estado: "os profissionais do Direito serão chamados a participar ativamente — muitas vezes fora do controle estatal — na construção de regimes transnacionais e supranacionais" [4]. A abordagem em questão reflete a essência do pensamento de André-Jean Arnaud, para quem as situações contenciosas tendem a passar cada vez menos pelas vias tradicionais do Estado, administrativas ou as judiciais [5]. Quanto ao papel do magistrado no ambiente jurídico transnacional, Della Bona observa que "o novo jurista não fica somente adstrito na figura do advogado, seja ele estatal ou privado, ele abrange igualmente a função do juiz", pois "ninguém ousaria mais sustentar que ele é apenas 'a boca da lei'" [6]. A globalização e a complexificação da sociedade moderna amplificaram o caráter interdisciplinar do Direito, traço que se projeta na função jurisdicional. Segundo Della Bona, o juiz transnacional é "dinâmico, mais administrador de situações conflituosas do que a voz que proclama do Direito" [7]. Esse novo profissional do Direito, segundo a autora, "deverá, ainda, ser um artífice da paz" [8]. E conclui: "parece que o jurista, no contexto transnacional, precisa ser também um sociólogo jurídico (não somente um filósofo do Direito) dentro de um contexto internacional" [9]. A transnacionalidade já se faz sentir na atividade judicial, bem como na formação profissional e acadêmica do magistrado contemporâneo. Um dos traços mais evidentes dessa transformação diz respeito ao crescimento do intercâmbio entre magistrados. É nesse contexto que se explicam as posturas inovadoras e transfronteiriças adotadas pelos juízes contemporâneos, que fundamentam suas decisões a partir de julgados estrangeiros; atuam junto a organismos internacionais na condição de membros ou ouvintes; buscam formação acadêmica no exterior; e cooperam com órgãos judiciais estrangeiros ou internacionais. Tudo isso ocorre sem uma necessária intermediação estatal, resultando, muitas vezes, de iniciativa, esforço e custeio individual do próprio magistrado. Pode-se dizer, então, que a atividade intelectual de natureza jurídica não está condicionada às limitações das estruturas estatais, podendo resultar de experiências transnacionais com características interdisciplinares, difusas e mesmo informais. Antoine Garapon e Julie Allard, em sua obra Os Juízes na Mundialização: a Nova Revolução do Direito, destacaram que "o Direito tornou-se num bem intercambiável. Transpõe as fronteiras como se fosse um produto de exportação. Passa de uma esfera nacional para outra, por vezes infiltrando-se sem visto de entrada" [10]. Antoine Garapon é magistrado francês e doutor em Direito. Foi docente na Escola Nacional da Magistratura francesa e é autor de diversas obras sobre Direito e Justiça, sendo conhecido em seu país pelos programas de rádio que realiza desenvolvendo seus temas. Julie Allard é professora de Filosofia do Direito na Universidade Livre de Bruxelas, onde dirige o Centro de Direito Público, e pesquisadora associada ao Instituto de Estudos Avançados em Justiça. Os referidos autores sustentam que a comunicação entre juízes de diferentes países aumentou consideravelmente nos últimos anos, flexibilizando as fronteiras políticas em relação à circulação do Direito. Os juízes são identificados como executores do direito estatal e participantes na discussão de um direito global: "até muito recentemente confinados ao território nacional, os juízes passam, de agora em diante, a estabelecer entre eles, e através das fronteiras, relações cada vez mais sólidas e confiantes" [11]. Este intercâmbio cultural e jurídico, que avança de modo gradativo, não parece ter a pretensão de transformar-se, formalmente, em um sistema jurídico supranacional. Na visão de Garapon e Allard, o fenômeno assemelha-se mais à construção de uma "vasta teia jurídica global". Na edição portuguesa da obra, os autores convencionaram a expressão comércio de juízes para simbolizar este intercâmbio judicial, e a posição sobre o tema em análise é no sentido de que "a mundialização do direito, tal como revelada pelo comércio de juízes, não dá sinais de enveredar por uma nova ordem jurídica mundial". Trata-se, portanto, de "um fórum informal de intercâmbios situado, na maior parte das vezes, à margem dos mecanismos institucionais" [12]. Parece adequado dizer que a magistratura acompanha a evolução do mundo e caminha no sentido de adotar um Direito mais móvel [13]. Afinal, como destacam os referidos autores, os juízes são "simultaneamente funcionários públicos e juristas independentes, executores de um direito estatal e participantes na discussão de um direito global", desempenhando um "papel de interligação no seio da mundialização" [14].   ALLARD, Julie, GARAPON, Antoine. Os juízes na mundialização: a nova revolução do direito. Tradução de Rogério Alves. Lisboa: Instituto Piaget, 2005. ARNAUD, André-Jean; DULCE, María José Fariñas. Introdução à análise sociológica dos sistemas jurídicos. Tradução do francês por Eduardo Pelew Wilson. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. BONA, Carla Della. A transnacionalização do direito como forma de miscigenação dos sistemas jurídicos: uma recomposição dos fundamentos do direito. São Paulo: Dialética. 2022. [1] BONA, Carla Della. A Transnacionalização do Direito como Forma de Miscigenação dos Sistemas Jurídicos: uma Recomposição dos Fundamentos do Direito, p. 254. [2] BONA, Carla Della. Op. Cit., p. 265. A obra de Oscar Vilhena Vieira citada pela autora é: "Desafios do Ensino Jurídico num Mundo em Transição". Rio de Janeiro: RDA — Revista de Direito Administrativo, v. 261, p. 376. [3] BONA, Carla Della. Op. Cit., p. 255. [4] BONA, Carla Della. Op. Cit., p. 264. [5] ARNAUD, André-Jean; DULCE, María José Fariñas. Introdução à Análise Sociológica dos Sistemas Jurídicos. Tradução do francês por Eduardo Pelew Wilson. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 357. [6] BONA, Carla Della. Op. Cit., p. 257-8. [7] BONA, Carla Della. Op. Cit., p. 264. [8] BONA, Carla Della. Op. Cit., p. 256. [9] BONA, Carla Della. Op. Cit., p. 266. [10] ALLARD, Julie, GARAPON, Antoine. Os Juízes na Mundialização: a Nova Revolução do Direito. Tradução de Rogério Alves. Lisboa: Instituto Piaget, 2005, p. 7. [11] ALLARD, Julie, GARAPON, Antoine. Op. Cit., p. 8. [12] ALLARD, Julie, GARAPON, Antoine. Op. Cit., p. 10-15. [13] ALLARD, Julie, GARAPON, Antoine. Op. Cit., p. 38. [14] ALLARD, Julie, GARAPON, Antoine. Op. Cit., p. 113.
2023-01-08T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-08/segunda-leitura-jurista-transnacional-arquitetura-juridica-mundial
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Embargos Culturais
Fake news e lawfare em O Beijo no Asfalto, de Nelson Rodrigues
O Beijo no Asfalto, de Nelson Rodrigues, estreou no Teatro Ginástico, no Rio de Janeiro, em 7 de julho de 1961. Definida pelo autor como "uma tragédia carioca em três atos e 13 quadros" a peça teria sido um pedido de Fernanda Montenegro, que protagonizou Selminha na primeira versão. Tem-se uma narrativa assustadora e atual. Um delegado corrupto (Cunha) e um jornalista inescrupuloso (Amado Ribeiro) engendram uma trama, a partir de um acidente de trânsito, imaginariamente ocorrido na Praça da Bandeira, no Rio de Janeiro. Um transeunte foi atropelado por uma lotação. Caiu no chão. Foi beijado por um outro transeunte que o socorreu. Tem-se início uma farsa sinistra. O repórter inescrupuloso assistiu a tudo. Correu para a delegacia. Iria pressionar o delegado e obter daí uma história estonteante. O delegado pretendia valer-se da tragédia para recompor sua imagem pública, que fora abalada por reportagens do jornalista inescrupuloso, ao qual se associa. Também havia sido violento com uma mulher grávida, o que lhe causara problemas com seus superiores. O jornalista queria vender o jornal. Está nítido que trabalha na Última Hora, de Samuel Wainer, aliado de Getúlio, inimigo de Carlos Lacerda. Nelson Rodrigues tinha um colega de trabalho com o nome do jornalista inescrupuloso (Amado Ribeiro). Gustavo Bernardo, em posfácio a uma das edições de O Beijo no Asfalto nos dá conta de que o verdadeiro Amado Ribeiro não teria se incomodado com a alusão, dizendo-se, inclusive, pior do que o jornalista da peça. A peça inicia-se com um pacto entre o delegado e o repórter. Este último narra ao delegado que tem uma história espetacular, que pode salvar a reputação do delegado. Refere-se ao atropelamento. Um transeunte (Arandir, o personagem principal) socorreu a vítima, a quem beijou, na frente de todos, inclusive do sogro (Aprígio). Tem-se a impressão de que o moribundo pedira o beijo. É um fato, o beijo existe. Lembra-nos Valmir Ayala que Arandir beijou a boca do homem atropelado, com testemunhas. Na leitura psicanalítica que Hélio Pelegrino fez da peça, há um mural primitivo pintado com sangue e excremento. O beijo no asfalto tem de fato uma conotação homossexual, e essa conotação será o fio condutor da peça. Aprígio, indignado, conta o ocorrido a sua filha (Selminha). Esta defende o marido, em quem confia, obstinadamente. Amar, segundo Nelson Rodrigues, é dar razão a quem não a tem. Mas Selminha vai mudar de opinião. O repórter publicou matéria noticiando o ocorrido, Arandir foi pressionado para confessar que espontaneamente beijara o atropelado. A vizinha fofoqueira (Dona Matilde) insinua com Selminha que Arandir a traíra com um homem, a quem beijara no acidente. Os colegas de trabalho de Arandir fazem brincadeiras grosseiras e o chamam de "viúvo". Isto é, teria perdido o marido no acidente, beijando-o em seguida. A viúva do atropelado é também pressionada pela polícia para reconhecer que seu marido conhecia Arandir. Selminha questiona o marido e paulatinamente deixa de mostrar a confiança que tinha até então, recusando-se inclusive a beija-lo. Arandir deixou o emprego. Tornou-se uma celebridade (negativa) e era reconhecido na rua. Envergonhava-se. Começou a duvidar das questões que o levaram ao beijo, para ao fim reconhecer que não se arrependia do que fez. Selminha foi conduzida ao encontro do delegado e do repórter, por quem foi despida e maltratada. A viúva, que também fora pressionada, foi levada a Selminha, para quem disse que o morto e Arandir tomaram banho juntos em sua própria casa. Em discussão com Selminha o pai insistiu que Arandir e o morto eram amantes. O jornal acusava Arandir de ter provocado o acidente, chamando-o de pederasta e criminoso. A cunhada (Dália) foi ao encontro de Arandir, para quem se declarou; desejava o cunhado. Na cena final o sogro (Aprígio) e Arandir se encontram. O desfecho é desconcertante. Não posso contar aqui. O leitor que leia a peça, ou que aguarde uma oportunidade para assisti-la, ou que então se informe com as três versões cinematográficas que há, respectivamente de 1964 (Flávio Tambellini), de 1981 (Bruno Barreto) e de 2018 (Murilo Benefício). Isto é, façamos de conta de que não há o google. O Beijo no Asfalto é uma fortíssima crítica à violência policial, à manipulação das notícias, tendo como pano de fundo insuspeitos dramas familiares. Extremamente apropriada para os dias de hoje, a peça preocupa-nos. Quando imprensa e autoridades policiais se aliam na busca de um inimigo comum não sobra pedra sobre pedra. Em O Beijo no Asfalto tem-se o enredo típico da destruição da imagem de uma pessoa, hoje em dia vista em episódios de "fake news" e de "lawfare". É a imprensa em associação com as autoridades constituídas para a destruição de uma pessoa. Em O Beijo no Asfalto, imprensa e polícia conseguiram, literalmente, ainda que o desate seja inesperado. Talvez todos os personagens da peça desprezam em Arandir o que não suportavam em si mesmos.
2023-01-08T08:00-0300
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Público & Pragmático
Breves impressões sobre a temida PEC dos Freios e Contrapesos
1. A proposta Após reclames da FPE (Frente Parlamentar do Empreendedorismo) quanto à amplitude das funções exercidas pelas agências reguladoras, foi assinada uma Proposta de Emenda Constitucional para remodelar consideravelmente as atividades executiva, normativa e julgadora no âmbito dessas entidades. O documento visa ao acréscimo do artigo 37-A à Constituição Federal, dispondo que a administração pública direta e indireta "será organizada e funcionará por meio da separação e autonomia entre os órgãos responsáveis pelas atividades executiva, normativa e de contencioso administrativa". Na condição de entidades integrantes da administração pública indireta, as agências reguladoras surgem como alvo desse acréscimo de norma constitucional e, sem o propósito de esgotar as impressões sobre a proposta, alguns pontos merecem ser refletidos diante da possibilidade de vingar a sua aprovação. 2. Redistribuição de competências As agências, que hoje exercem cumuladas atividades de natureza executiva, normativa e julgadora, passariam apenas a exercer alguma atividade de natureza executiva e de modo concorrente com outros órgãos. A tarefa de distribuir competências entre agências, secretarias, ministérios e autarquias acerca da implementação de políticas públicas, prestação direta de serviços públicos e fiscalização, caberia à norma infraconstitucional e, por ora, não se sabe quais dessas funções ainda restariam a cargo das agências. As alterações mais contundentes viriam nos planos da regulação e da estruturação dos julgamentos administrativos independentes, atividades essas hoje concentradas na esfera de atribuições das agências reguladoras. É sob essas duas facetas que analisaremos a proposta, abordando pontos negativos e positivos dessa possível mudança de perspectiva normativa. Tal investida é fruto da insatisfação de alguns setores regulados com a postura das agências reguladoras, que em sua maioria ainda adotam o modelo de comando e controle para a imposição de sanções, além de oferecerem julgamento de impugnações e recursos no próprio âmbito das agências, sugerindo certa desconfiança quanto a imparcialidade dos órgãos julgadores. 2.1. Poder normativo das agências reguladoras A começar pela parte nebulosa da proposta, a atividade normativa, hoje assumida pelas Agências, passaria a ser exercida por meio de Conselhos ligados aos Ministérios e secretarias que atuarão nas funções de regulação, deslegalização e edição de atos normativos infralegais. Nota-se um propósito de democratizar e, com isso, burocratizar o processo de produção de normas, tornando-o similar ao existente no Poder Legislativo: aumentar-se-iam os trâmites, as fases deliberativas e a participação de mais atores. Merece destaque também a menção de "deslegalização" de atos normativos infralegais. Apesar de parecer um termo inofensivo, deslegalizar, tecnicamente, é retirar a dependência da lei para tratamento de determinada matéria, cujo poder regulamentar passaria a ser exercido por atos normativos de menor envergadura, tais como regulamentos administrativos. A rigor, somente a própria lei teria aptidão para deslegalizar determinadas matérias, e sob elas, dirimir uma nova competência regulamentar. Isso porque a ideia de deslegalizar está associada a hierarquia normativa. No entanto, mesmo sem essas normas de estrutura ditadas pelo Poder Legislativo, o STF já vem reconhecendo a existência de espaços normativos ocupáveis pelas Agências, dado a complexidade técnica das matérias reguladas: trata-se da denominada reserva de regulação. Essa complexidade técnica das matérias submetidas a apreciação da administração pública denuncia até certa limitação sofrida pelo Poder Judiciário. O controle desses atos administrativos tende a ser reduzido [1], na medida em que a capacidade técnica dessas entidades lhes confere poder de atuação específico e direcionado na seara econômica, tendo seus atos maior capacidade de intervenção do que os emanados pelo Poder Legislativo, de caráter genérico [2]. Mas o projeto vai além. A "deslegalização" referida no texto assumiria um outro contexto, qual seja, o de deslegalizar aquilo que, como dito, já vem sendo "deslegalizado". Seja qual for o termo, não há ainda elementos que nos permitem aferir a capacidade técnica desses novos legitimados referidos no projeto para estabelecerem as regras antes ditadas pelas agências reguladoras. A identificação de uma reserva de regulação das agências reguladoras, mesmo que não seja absoluta, é fruto de uma constatação histórico-evolutiva dessas entidades, aliada a um juízo prospectivo positivo quanto à eficiência dos modelos de regulação testados e revistos, além dos mecanismos de aferição pragmática e teleológica (avaliação regulatória) dessas normas quanto ao resultado produzido nos setores regulados. Como denota a própria qualificação desses órgãos, a razão de ser das Agências é justamente a regulação. No Brasil, a criação desses órgãos se deu na década de 1990, fruto das novas feições de um paradigma de Estado Regulador, isto é, propenso a uma intervenção estatal de caráter mais regulatório e menos centralizador nos setores econômicos. Hoje, após mais de duas décadas, é possível atestar certa evolução no que tange ao exercício desse poder normativo, dado o empenho dos agentes públicos em estabelecer metodologias adequadas e demonstrar alta capacidade técnica. Merece destaque também a eficiência e dinamicidade com o qual se portam essas entidades regulatórias, na busca de um cenário mais adequado ao regulado, por vezes denunciando sua própria fragilidade e se propondo, inclusive, a reconfigurar todo seu modelo de regulação. Exemplo disso é a postura altruísta de diversas agências reguladoras em adotar um modelo de regulação responsiva, dado ao insucesso do método tradicional de "comando e controle". Esse novo modelo, que atualmente se encontra em fase de implantação, impõe uma atividade mais complexa ao regulador, na medida em que este não mais estaria reduzido ao trabalho de impor sanções pecuniárias aos regulados, mas sim incumbido de analisar cada caso concreto para então decidir, motivadamente, qual a providência razoável cabível. Esse tipo de esforço, que tende a tornar mais razoável a regulação de setores econômicos estratégicos, é um atestado de progresso regulatório no âmbito das agências, com vistas a valorizar o diálogo com os regulados e fornecer um cenário de segurança jurídica do qual a coletividade se beneficia. Interromper esse ciclo não parece ser uma medida acertada, mormente no momento em que esse promissor método responsivo de regulação começa a caminhar no Brasil, dado a iniciativa de diversas agências, como Anatel, Anac ANTT, dentre outras. Ademais, se após duas décadas de existência ainda não se vê total maturidade das agências reguladoras enquanto entes dotados de poder normativo, não se espera que outros órgãos, tais como conselhos esparsos, estariam substancialmente aptos a regular matérias de alta complexidade técnica. 2.2. Criação de tribunais administrativos Soa oportuna a ideia de retirar das agências reguladoras a competência judicante para apreciação dos fatos sob os quais essas próprias agências lançaram normas e exercitaram seu poder fiscalizatório. Editar normas, fiscalizar e principalmente julgar são ações independentes, que requerem predicados diversos e específicos ao agente competente. Não se pode exigir níveis de excelência em todas essas funções hoje abraçadas pelas agências, principalmente quanto à atividade julgadora, que se desenvolve adequadamente quando observados determinados nortes principiológicos constitucionais e infraconstitucionais. Esses últimos estão dispostos em normas procedimentais administrativas específicas e no Código de Processo Civil. Além do conhecimento do direito material, um julgador administrativo deve ser bem esclarecido quanto às normas processuais e conduzir o feito adequadamente, observando todos os princípios da isonomia processual, duração razoável do processo, primazia da decisão de mérito e, dentre outros, o princípio do devido processo legal, garantindo-se o direito à produção probatória, ao contraditório e à ampla defesa — além de princípios mais específicos aplicáveis ao julgador, como o da motivação das decisões e os referidos no artigo 1º do Código de Ética da Magistratura [3], com destaque para a independência e a imparcialidade. O princípio da motivação é o que valida e legitima as decisões. Em recente abordagem [4], pontuou-se que não é somente um dever da administração pública, mas afigura-se como um verdadeiro direito do administrado, pois visa proporcioná-lo o conhecimento dos pressupostos de fato e de direito que culminaram nas decisões estatais, mesmo porque, todo ato relevante que afete os direitos dos particulares ou implique em obrigações, exige plena motivação. Nery Júnior [5] observa que a Constituição não dita sanções, sendo simplesmente descritiva e principiológica, afirmando direitos e impondo deveres. No entanto, "a falta de motivação das decisões é vício de tamanha gravidade que o legislador constituinte, abandonando a técnica de elaboração normativa, cominou no próprio texto constitucional a pena de nulidade". Para além de um ônus meramente formal, a suficiência de motivação das decisões administrativas merece ser encarada com igual ou maior rigor que a exigência de motivação das decisões judiciais. Primeiro, por conter caráter de definitividade contra o Estado e, em segundo, por ditar os limites cognitivos da lide, delimitando-se a matéria possível de ser objeto de eventual controle judicial. Também a imparcialidade e a neutralidade são predicados desejáveis de se encontrar num julgador administrativo. Não necessariamente por dolo ou outro elemento espúrio, mas se nota certa dificuldade de um agente fiscalizador se manter equidistante de seu ofício primário quando se propõe a julgar os conflitos administrativos. Se cumuladas funções fiscalizatórias e judicantes, é natural que esse julgador tenha uma predisposição de salvaguardar os interesses que pressupõe ser do Estado. Há um abismo entre exercer a plenitude da atividade judicante e simplesmente buscar a chancela de imposições da administração. A neutralidade somente sobrevém na medida em que o julgador administrativo se liberta da função de representante de um potencial direito estatal, direcionando a sua expertise para a solução justa das controvérsias, sem qualquer interferência externa. Mais do que retidão de conduta, a imparcialidade de um julgador quer significar a sua condição de não parte, sua neutralidade, sua assubjetividade [6]. Destaca-se a existência de órgãos autônomos de julgamento que preveem o duplo grau de jurisdição administrativa com composição colegiada paritária, a fim de que a matéria tratada nas decisões singelas seja devolvida ao tribunal para uma revisão qualificada por julgadores oriundos da administração e de setores de interesses coletivos, transmitindo assim maiores feições de imparcialidade às decisões. De acordo com o § 3º da proposta, haveria de ser desenhada uma estrutura hierarquizada e organizada de um modelo de trâmite de processo administrativo no âmbito das agências reguladoras similar ao que ocorre em seara tributária de cada ente tributante em níveis federais (Carf) ou estaduais (TAT-MS, TIT-SP). Esses modelos de configuração de tribunais administrativos independentes seriam bons exemplos para dirimir sobre os litígios administrativos que envolvem as matérias regidas pelas agências reguladoras, possibilitando dispensar a administração pública indireta de um ônus judicante que seria mais bem desenvolvido em outro formato e sob outra competência. 3. Conclusão Apresentamos duas impressões sobre a polêmica PEC dos Freios e Contrapesos: Uma negativa, que exprime certa precipitação em extirpar o poder normativo das agências reguladoras, mormente em um momento de transição entre modelos regulatórios, fruto de reconhecimento dos próprios entes quanto à necessidade de adequação das providências e dosimetria das sanções impostas aos regulados. E outra, positiva, pois é oportuna a criação de órgãos de jurisdição independentes, estruturados sob duas instâncias e composição paritária, em busca da prestação imparcial da tutela administrativa.   [1] BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo; direitos fundamentais democracia e constitucionalização. 3ᵃ ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 41. [2] CUELLAR, Leila. As Agências Reguladoras e o seu Poder Normativo. São Paulo: Dialética, 2001, p. 129. [3] Trata-se dos princípios da independência, da imparcialidade, do conhecimento e capacitação, da cortesia, da transparência, do segredo profissional, da prudência, da diligência, da integridade profissional e pessoal, da dignidade, da honra e do decoro. [4] CHAVES, José Maciel Sousa. A Motivação das Decisões Administrativas Como Fator de Relevância Vinculante ao Controle Judicial. In: RIBAS, Lídia Maria; DECARLI, Gigliola Lilian. Acesso à Justiça: Mecanismos de Solução de Conflitos e Sustentabilidade Responsiva. São Paulo: Dialética, 2022, p. 306. [5] NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição federal. 8ᵃ ed. São Paulo: RT, 2004, p. 219. [6] WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI; Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil, v. I. 20ª ed. São Paulo: Thomsom Reuters Brasil, 2021, p 77.
2023-01-08T08:00-0300
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Opinião
Antonio Carlos Will Ludwig: Democracia e Forças Armadas (parte 3)
- Clique aqui para ler a parte 1 e aqui para a parte 2   Tribunais de Justiça: A história de nosso país registra que, no período imperial, paisanos foram julgados e incriminados por servidores fardados, decorrente de participação em ações contestatórias e atos de rebelião. Nos primórdios da República aconteceram perseguições aos correligionários da falecida monarquia. Na década de 30, houve a ação do Tribunal de Segurança Nacional sobre os comunistas de então. Durante o período ditatorial, a Justiça Militar perseguiu civis acusados de crimes contra a segurança nacional e a ordem econômica. Desde a redemocratização do país, os processos se baseiam no Código Penal Militar e no Código de Processo Penal Militar. Atualmente, os fardados alegam que a retirada da competência da Justiça Militar poderá provocar a descriminalização de qualquer conduta cometida por civil contra as instituições militares e seus membros. O STF estabeleceu que a submissão do civil, em tempo de paz, à Justiça Militar é excepcional, que só se legitima quando a conduta delituosa ofender bens jurídicos tipicamente associados às funções das Forças Armadas. Atente-se que, nos últimos anos houve mais de uma centena de processos contra paisanos acusados de crimes militares. No entanto, informações divulgadas apontam que a Justiça castrense revela condescendência ao julgar os fardados. Segundo consta, neste período, dos 29 processos criminais envolvendo militares, dez resultaram na suspensão da pena e em mais de 30 casos de homicídios praticados por eles não houve nenhuma condenação. O julgamento de civis por militares é um procedimento que acontece em alguns países do mundo. Nos Estados Unidos, qualquer civil que ajude ou tente ajudar pessoas consideradas como inimigos pode ser julgado por cortes marciais ou comissão militar. Em Uganda, recentemente, o Tribunal Constitucional determinou que as cortes militares não podem mais julgar civis. Em Israel, o comandante da área ocupada tem um imenso poder legislador e autoridade judiciária sobre as instituições e pessoas. Nos Estados Unidos, tal ocorrência reflete a expectativa majoritária da população. As Forças Armadas estadunidenses recebem um carinho especial dos cidadãos, seu prestígio perante a população é muito alto e os civis apreciam muito a adoção de soluções militares para os problemas cotidianos. Ademais, essa nação, consensualmente, se encontra bastante militarizada por causa dos acontecimentos de setembro de 2001. Quanto a Israel, sabe-se que suas Forças Armadas são consideradas as mais populares do mundo, e o país ocupa o primeiro lugar do planeta no ranking da militarização consentida devido ao fato de estar cercado de inimigos por todos os lados. Observe-se, entretanto, que em algumas nações inexiste o julgamento de civis por militares e nem o julgamento de militares por militares, mas sim o contrário, isto é, o julgamento de militares por civis. Tal é o caso da Holanda, que, a partir dos anos 70 do século anterior, instituiu câmaras militares em tribunais civis com juízes paisanos especializados ao lado da presença de um juiz fardado. Na Alemanha, desde o fim de Segunda Guerra os atos criminosos cometidos por soldados são julgados em tribunais criminais comuns por juízes civis e as infrações menores se vinculam a tribunais administrativos. Tende a ser viável, portanto, sugerir que nossos militares delituosos também venham a ser sentenciados pelos tribunais da Justiça paisana. Para tanto é preciso que os juízes indicados para examinar processos relativos aos fardados recebam uma formação especializada. Se faz necessário também criar neles uma vara apropriada e contar com a presença de um juiz militar ao lado dos juízes civis. Liberdade de Expressão: As Cartas Magnas dos países regidos pela democracia trazem em seu bojo o imprescindível direito à liberdade de expressão, o qual é relativo porque as ofensas verbalizadas por alguém contra outrem podem ser judicializadas. Porém, ao mesmo tempo, é absoluto porquanto os indivíduos mesmo tendo conhecimento das restrições legais e sabendo que podem sofrer impactos por causa delas falam o que consideram que deva ser falado e arcam com as consequências. Tal como já foi dito, em países europeus onde existe a figura do cidadão de uniforme, todos os direitos atribuídos aos civis valem também para ele. Apenas o direito de greve ainda não foi regulamentado para os fardados. No entanto a Organização Europeia de Associações Militares e Sindicatos, desde há muito tempo, se encontra seriamente empenhada em obter este direito. Como não poderia deixar de ser o direito à liberdade de expressão já é garantido aos militares que frequentemente fazem uso dele em suas reuniões sindicais, nos meios de comunicação e em passeatas nas ruas destinadas a reivindicações e críticas, porém em trajes civis, longe dos quartéis e fora do horário de expediente. Nos Estados Unidos, os militares também possuem o direito a essa exteriorização, porém ela apresenta características próprias. A ocorrência mais notória diz respeito à atitude da população. O elevado prestígio conferido pelos paisanos aos fardados contribui bastante para a construção da ideia de que eles exibem uma conduta apolítica mesmo quando exteriorizam um comportamento político. Auxilia muito também o notório uso do mecanismo da autocontenção por parte dos militares na área política. Além disso, tais manifestações se encontram devidamente regradas pelo Departamento de Defesa, o qual estabeleceu que o militar pode emitir opinião pessoal sobre candidatos em eleições; fazer contribuição financeira a partidos políticos; participar de reuniões políticas, comícios, debates como espectador e não uniformizado; colar um adesivo político em um veículo particular; usar um distintivo político em trajes civis; assinar petições para ações legislativas específicas; encaminhar texto ao editor de um jornal expressando opiniões pessoais sobre determinados problemas ou candidatos; solicitar ou arrecadar fundos, quando não estiver uniformizado e fora da base, para uma causa política partidária ou candidato; expor sua adesão a determinado partido político, cuja maioria pende para o lado do republicano. Em Israel acontece algo parecido aos Estados Unidos, porquanto os militares também podem fazer manifestações políticas. Entretanto, neste país o prestígio dos militares se encontra muito elevado, sendo o maior do mundo. Militares e civis praticamente não são vistos como personagens distintos porque a prestação do serviço castrense é bem longa e no decorrer dos anos aqueles que já serviram às Forças Armadas retornam periodicamente para a realização de treinamentos. Além disso os fardados estão sempre presentes em vários locais, circulam pelas ruas e praças, fazem exposições nas escolas, comemoram as datas cívicas junto com os paisanos e prestam inúmeros serviços à população rural e urbana. Reina no interior dos quartéis a norma da autocontenção que permeia a escala hierárquica e encontra respaldo no Ruach Tzahal, o código de ética rigorosamente seguido por eles, particularmente o tópico estabelecedor de que há que se tomar um especial cuidado para não injetar opiniões pessoais sobre questões sujeitas a controvérsia pública de natureza política, social e ideológica. No Brasil a situação é bem diferente. Os regulamentos militares congruentes com o período ditatorial do passado não possibilitam aos fardados fazerem manifestações de caráter político-partidário. Entretanto, nossa Constituição estabelece a garantia da livre manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato. E o Supremo Tribunal Federal já asseverou que a liberdade de expressão se constitui em direito fundamental do cidadão, envolvendo o pensamento, a expressão dos fatos atuais ou históricos e a crítica. Ambas as determinações não instauram a diferença entre fardados e paisanos. Isto significa que tais regulamentos se mostram dissonantes ao regime democrático atual e à legislação mais elevada, necessitando então serem alterados. Tal ajuste deve prever uma normatização da liberdade de expressão e a inclusão do princípio da autocontenção, porquanto a distinção entre civis e militares ainda é muito forte e persistente. Derradeiramente, cabe acrescentar mais dois tópicos. Um deles refere-se à atuação direta do parlamento sobre os militares o qual aparece como um procedimento bem adequado de submissão dos fardados aos civis. O exemplo vem dos Estados Unidos, onde o Congresso aprova anualmente a Lei de Autorização de Defesa, que determina o número de militares que podem permanecer na ativa e confere ao Senado a tarefa de referendar a promoção de oficiais generais. O outro diz respeito à ida de militares para trabalhar em órgãos do governo. Nos países democráticos eles se dirigem apenas aos setores onde cabe a presença deles. Na Argentina, por exemplo, a participação dos mesmos diminuiu bastante porque o fim da ditadura retirou deles a função de defesa interna. Em nosso país eles podem atuar no Ministério da Defesa e no Gabinete de Segurança Institucional, porém é necessário regulamentar o período de prestação do serviço. Quanto à promoção ao generalato a confirmação pelo Senado se mostra adequada haja vista que os cargos mais importantes da administração pública como o de ministro do Supremo Tribunal Federal e o de Procurador Geral da República exigem o aval desta instituição parlamentar. Diga-se de passagem, que é harmônica às práticas anteriormente expostas a recente proposta do ministro Lewandowski de incluir comandantes militares em processos de impeachment. Enfim, é necessário ressaltar que as proposituras aqui apresentadas não são exóticas e mirabolantes, tampouco originais e inovadoras, porquanto constituem ocorrências bem sucedidas que vêm se manifestando em países regidos pela democracia desde há muito tempo. Apesar desses aspectos positivos, o emprego delas nas Forças Armadas brasileiras é uma tarefa bastante difícil devido à provável atitude de resistência de nossos militares e da conduta de desinteresse própria dos governantes. Note-se que apenas o cargo de ministro civil para a pasta da Defesa foi estabelecido pelo presidente eleito, que não pretende, em hipótese alguma, criar turbulências na caserna e cujo indicado recebeu boa acolhida em seu interior decorrente de suas qualidades e de seu perfil conciliador. Ademais, sua prioridade máxima é garantir a governabilidade. Cabe expor também que a tentativa de concretizar qualquer uma delas tem que ser pautada pelo diálogo, pela negociação, pelo convencimento e pela anuência dos servidores uniformizados, uma vez que nenhuma atitude impositiva vai conseguir alcançar o efeito almejado.
2023-01-08T06:32-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-08/antonio-carlos-will-ludwig-democracia-forcas-armadas-parte
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Opinião
Opinião: Ataque de bolsonaristas é resultado de cadeia de omissões
Um deputado federal, no plenário da Câmara, exalta um torturador. Nada acontece com ele. Um presidente da República ataca diuturnamente a democracia e estimula um golpe de Estado. E nada. Um procurador-geral da República se depara com tudo isso e não age. E, também, nada acontece com ele.  Golpistas acampam na frente dos quartéis do Exército pedindo intervenção militar para manter no poder o presidente derrotado nas urnas. As Forças Armadas e as Polícias Militares não fazem nada. Em vários momentos, até fazem: estimulam os terroristas. Durante dias e dias, os golpistas anunciam aos quatro ventos que marcharão em direção à praça dos Três Poderes e invadirão os prédios públicos por não aceitarem a derrota do ex-presidente que fugiu para a Flórida para não passar a faixa ao vencedor do pleito eleitoral. O que fazem o governador e o secretário da Segurança Pública do Distrito Federal?  Mandam as forças de segurança escoltarem os golpistas até o local em que os crimes seriam cometidos. Esta é uma pequena amostra dos atos e omissões que levaram aos inadmissíveis ataques à democracia no último domingo (8/1) Jair Bolsonaro (PL) trabalhou durante todo o mandato para abalar os mecanismos de controle do poder público. Algo absolutamente previsível para aqueles que não aceitam os freios e contrapesos inerentes aos regimes democráticos. Poucos órgãos se mantiveram altivos no combate ao arbítrio. E os mais destacados foram, sem dúvida, o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral. Mas vimos que eles não bastam, especialmente se órgãos de Estado se presumem órgãos de governo —ou, pior, órgãos de um governante. Não custa lembrar as referências do então presidente ao "meu Exército". A tragédia anunciada perpassa pela captura das instituições. Causa perplexidade observar que o Ministério Público pouco ou nada fez ao longo de uma caminhada golpista que se arrasta há meses. Em especial quando se constata uma profunda inação após o país, estarrecido, tomar conhecimento de que uma bomba seria explodida no aeroporto de Brasília, fruto de um plano concebido em um dos acampamentos, que permaneceu intacto até a eclosão da tentativa de golpe. Não é necessário muito esforço para perceber a leniência de diversos policiais nos últimos meses. A tão propagada inteligência das polícias não funcionou, mesmo sendo óbvio que a trama ocorria publicamente, por meio das redes sociais. A pena do crime de prevaricação é ridícula. Não há recurso contra a inação do PGR, de procuradores e promotores quando pedem o arquivamento de inquéritos, mesmo que o crime seja evidente. É chegada a hora em que os fiscais da lei cumpram com suas funções, responsabilizem aqueles que praticam crimes contra a democracia e que atacam instituições de forma intolerável. Da mesma forma, é necessário criar mecanismos para proteger as instituições de forma que não venham mais servir a governos ou ideologias de ocasião. Sem embargo do rastro de destruição, é de dentro do Palácio do Planalto que nossa democracia mostra força, resiste. Com a presidente do Supremo. Com o presidente do Congresso. A pacificação do país é um objetivo a ser perseguido. Mas, diferentemente do que o Brasil tem feito em nome de supostas tréguas — como anistias, indultos, graças, perdões; enfim, esquecimentos — e que se comprovou contraproducente, é hora de cumprir a Constituição e as leis, é hora de responsabilizar, é hora de não esquecer. Só assim não precisaremos escrever a próxima crônica, a de uma tragédia anunciada.
2023-01-09T18:27-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-09/artx-opiniao-cronica-ataque-anunciado
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Opinião
Laércio Loureiro: Possibilidade de impeachment após o mandato
Tema que interessa aos profissionais do Direito é a possibilidade de impeachment após o encerramento do mandato. Numa primeira análise, a aparente resposta seria negativa, já que  o artigo 52, parágrafo único da Constituição Federal prevê a "perda do cargo" como sanção pelo crime de responsabilidade, assim reconhecido pelo Senado. A jurisprudência que se formou após a Constituição de 1988 tem apenas dois casos de presidentes da República para a utilização como parâmetros: Fernando Collor e Dilma Rousseff. Note-se que o órgão julgador do crime de responsabilidade é o Senado e não o Poder Judiciário. O STF restringe-se a analisar a legalidade/constitucionalidade da decisão do órgão julgador. A decisão da Câmara alta é discricionária, já que se trata de um crime político e não de um crime propriamente dito. Assim, aplica-se a vetusta súmula 473 do STF: "A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial" (grifos nossos). A participação do presidente do STF restringe-se ao acompanhamento, organização e proclamação do resultado do julgamento feito pelo Senado que é, repita-se, o órgão julgador do crime de responsabilidade. O mérito do ato administrativo/julgamento do crime de responsabilidade não será analisado pelo Poder Judiciário. No julgamento de Fernando Collor de Mello, a condenação por crime político incluiu a condenação por oito anos à inabilitação para o exercício da função pública. No caso de Dilma Rousseff, porém, a habilidade de seu defensor — o professor e procurador municipal José Eduardo Martins Cardozo (então advogado geral da União) — fez com que a jurisprudência do Senado se firmasse no sentido de que existem duas sanções distintas e autônomas no artigo 52, parágrafo único da Carta Federal: a inabilitação e a perda do cargo. Ora, se a perda do cargo é impossível de ser fixada no caso do término do mandato, o mesmo não pode ser dito sobre a outra sanção prevista constitucionalmente: a inabilitação que independente do exercício do cargo concomitantemente ao julgamento pelo Senado. Aliás, o próprio Fernando Collor havia renunciado e não estava mais no cargo quando foi condenado às penas do crime de responsabilidade. Assim, a independência das sanções já está consolidada no âmbito dos precedentes do Senado e pode, tranquilamente, ser implementada no caso de mandatários que já tenham encerrado seu mandato. Outro ponto relevante é acerca da omissão ou "silêncio" daquele que já exerceu o mandato sobre fatos que dariam ensejo ao julgamento do crime de responsabilidade pelo Senado. Sobre o tema do silêncio administrativo vale citar a lição do professor Georghio Alessandro Tomelin [1] que escreveu em 2001 sobre "Silêncio-inadimplemento no processo administrativo brasileiro". Assim, ensina o professor: "Não pode o administrador esconder-se atrás de suas prerrogativas funcionais para afogar os direitos do administrado na obscura maré dos escaninhos estatais." E prossegue sobre o silêncio administrativo: "Não há vazio em matéria de procedimento (ubiquidade das formas processuais)." Inobstante o respeitado professor tenha se referido ao processo administrativo da Lei federal nº 9.784/199, pensamos que é aplicável, também, ao processo do crime de responsabilidade a ser julgado pelo Senado após autorização da Câmara dos Deputados, já que presentes as mesmas razões previstas para o caso do "silêncio-inadimplemento" do ato administrativo. A questão central é saber se aquele que não exerce mais o cargo ainda mantém deveres jurídicos de não cometer crimes de responsabilidade tais como os previstos no artigo 6º, da Lei 1.079/1950 consistentes em "atentar contra o livre exercício dos poderes constitucionais". O artigo 6º prevê que: "São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos poderes legislativo e judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados:" Note-se que não há previsão (expressa) de atentar contra o Poder Executivo, embora a hermenêutica leve, inexoravelmente, à tal conclusão. De qualquer forma, a depredação das sedes dos três Poderes torna irrelevante a questão específica do atentado ao Poder Executivo. O mesmo artigo 6º prevê em suas alíneas 1 e 2: "1 - tentar dissolver o Congresso Nacional, impedir a reunião ou tentar impedir por qualquer modo o funcionamento de qualquer de suas Câmaras; 2 - usar de violência ou ameaça contra algum representante da Nação para afastá-lo da Câmara a que pertença ou para coagí-lo no modo de exercer o seu mandato bem como conseguir ou tentar conseguir o mesmo objetivo mediante suborno ou outras formas de corrupção;" (grifos nossos). O episódio do "capitólio tupiniquim" é, sem dúvida, exercício de intimidação aos Poderes constituídos (Executivo, Legislativo e Judiciário) e se enquadra na previsão da Lei federal nº 1.079/1950. O dever de urbanidade e de civilidade é norma implícita na própria convivência em sociedade e está consagrada na Constituição como princípio fundamental previsto no artigo 1º, III que prevê a "dignidade da pessoa humana" como vetor essencial (e preceito fundamental) da Constituição de 1988. Todo homem público (ainda que não exerça cargo público) mantém seus deveres elementares em relação ao Estado de Direito. Permanece íntegro o dever de defesa das instituições democráticas de forma expressa e ostensiva. Manifestações dúbias ou pusilânimes em relação às instituições democráticas configura "silêncio-inadimplemento" (parodiando as lições do professor Tomelin) dos deveres de mandatários (e mandatários de outrora) do cargo de presidente da República, No caso específico de agentes políticos que já exerceram o cargo de presidente da república, a Lei Federal nº 7.474/1986 prevê a garantia de sua incolumidade física e de sua dignidade com a previsão de aparato estatal de seguranças, motoristas e assessores. Assim prevê referida lei: "Art. 1º. O Presidente da República, terminado o seu mandato, tem direito a utilizar os serviços de quatro servidores, para segurança e apoio pessoal, bem como a dois veículos oficiais com motoristas, custeadas as despesas com dotações próprias da Presidência da República." E ainda no mesmo artigo: "§ 1o. Os quatro servidores e os motoristas de que trata o caput deste artigo, de livre indicação do ex-Presidente da República, ocuparão cargos em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores - DAS, até o nível 4, ou gratificações de representação, da estrutura da Presidência da República. § 2o. Além dos servidores de que trata o caput, os ex-Presidentes da República poderão contar, ainda, com o assessoramento de dois servidores ocupantes de cargos em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores - DAS, de nível 5." Se a dignidade humana do mandatário que já exerceu o cargo deve ser respeitada, é de obviedade ululante que o mesmo mandatário deve respeitar mesmo o princípio em relação aos demais mandatários dos Poderes constituídos, ainda que não exerça mais o cargo. Os deveres do presidente da República não se limitam aos quatro anos de mandato e por tal motivo é que ainda mantém vínculo inclusive no que se relaciona à sua incolumidade física, conforme previsão da Lei federal 7.474/1986. A relevância do cargo de presidente da República impõe a perenidade de direitos e deveres. O liame institucional daquele que exerceu o mandato de presidente da República é perene e permanece íntegro mesmo depois do exaurimento do lapso temporal do cargo. Não se afigura legítimo interpretar-se que aquele que exerceu o cargo de presidente tenha apenas direitos previstos na referida Lei federal nº 7.74/1986 e não tenha nenhuma contrapartida de deveres, sob pena de institucionalização do "enriquecimento sem causa" de todo aquele que exerceu o cargo de chefe do Poder Executivo da União numa subversão de toda a lógica do sistema jurídico. Seja como for, ainda que se entenda que haveria lacuna em nosso ordenamento, o preenchimento de tal suposta lacuna deve ser feito, conforme ensina Kelsen [2] em sua obra, pelo órgão julgador. Com a palavra a Câmara dos Deputados e o Senado Federal. [1] Revista de Direito Administrativo, outubro/dezembro de 2001, págs 281 a 292. [2] Teoria Pura do Direito, capítulo VII, "A interpretação", Ed. Martins Fontes, 1996.
2023-01-09T15:08-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-09/laercio-loureiro-possibilidade-impeachment-mandato
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Opinião
Claudia Spinassi: Indulto de Natal de 2022 e o concurso de crimes
Em resposta ao artigo publicado em 6/1/2023 pelos professores Lenio Luiz Streck e Marcio Guedes Berti   Que o ornitorrinco é um animal diferente, não há dúvidas. Pode ser feio para alguns, bonito para outros, afinal a beleza depende dos olhos de quem vê. Porém, assim como ocorre no mundo animal, também na seara jurídica, embora o diferente possa causar estranheza em um primeiro momento, é sempre muito bem-vindo. Aliás, no mundo jurídico quase nada costuma ser muito puro e original. Praticamente todas as normas resultam de um compilado de outras, e as novas teses, em geral, advêm da evolução das anteriores. Assim é a ciência, especialmente uma ciência social. O caso do Decreto de Indulto de Natal de 2022 (Decreto nº 11.302/2022) não é diferente. Ao publicá-lo, o então presidente da República repetiu algumas partes de outros e também inovou bastante em alguns artigos, criando um certo conflito aparente de normas. Cabe agora a nós, juristas, interpretar o decreto seguindo as regras de hermenêutica, especialmente aquelas do Direito Penal. Logo que publicado, o Decreto nº 11.302/2022 foi objeto da ADI nº 7.330, proposta pela PGR em 27/12/2022 (ainda sem decisão liminar), a qual ataca especialmente o artigo 6º, caput, alegando ofensa à Constituição Federal na medida em que permite indulto para crimes atualmente considerados hediondos. Segundo a PGR, para fins de indulto, a natureza dos crimes — se hediondos ou não — deve ser aferida no momento da publicação do decreto, e não no momento do cometimento do delito. Além disso, a PGR alega que especificamente os crimes cometidos no nominado "Massacre do Carandiru" são delitos de lesa-humanidade, cometidos com grave ofensa aos direitos humanos e já reconhecidos como tais pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, razão pela qual não podem ser indultados, uma vez que o Brasil se obrigou internacionalmente a combater essa espécie de crimes ao assinar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e poderá sofrer sanções internacionais caso descumpra a decisão da Corte. Quanto ao primeiro argumento da ADI nº 7.330, o STF tem posicionamento bastante dividido, havendo decisões em ambos os sentidos. Particularmente, comungo do entendimento de que a classificação de uma infração penal ocorre no momento de seu cometimento, em respeito ao princípio constitucional da irretroatividade da lei penal (artigo 5º, XL da CF). Essa classificação aplica-se para todos os institutos de Direito Penal. Aplica-se às regras de progressão de regime, ao livramento condicional e, inclusive, ao indulto. Não é possível, por meio da hermenêutica jurídica, transformar um crime não hediondo ao tempo de sua prática em hediondo apenas e tão-somente para fins de indulto. Um delito é hediondo ou não é. Essa exceção somente poderia ser criada pela Constituição Federal. Entender de forma contrária afronta as regras de interpretação do Direito Penal que determinam a proteção e ampliação dos direitos fundamentais. Por outro lado, no que tange especificamente aos delitos cometidos no evento conhecido como "Massacre do Carandiru", de fato há relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA declarando o Brasil responsável por graves violações a direitos protegidos pela Convenção Americana de Direitos Humanos e decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos determinando que o Brasil investigue e puna tais crimes. Indultar tais delitos viola o dever constitucional de observância dos tratados internacionais de direitos humanos (CF, artigos 1º, I e II; 4º, II, e 5º, §§ 2º e 3º), e da cláusula de vinculação do Brasil a tribunais internacionais de direitos humanos (ADCT/CF-1988, artigo 7º). Ocorre que por mais relevância nacional e internacional que esse tema possa ter, está longe de ser a parte mais polêmica, difícil de interpretar e de maiores reflexos práticos do decreto de indulto de 2022. Os principais pontos de dúvida do Decreto nº 11.302/2022 estão nos casos de concurso de crimes e na definição de seus efeitos retroativos. Explico. Tradicionalmente, os decretos de indulto exigiam o cumprimento de um percentual mínimo da pena para concessão do perdão da pena remanescente. Tanto é assim que o principal objeto da ADI nº 5.874 foi o fato de o presidente ter exigido o cumprimento de apenas 1/5 da pena de determinados crimes para a concessão do indulto. Naquela ocasião, o Supremo Tribunal Federal discutiu profundamente o tema e, em um extenso acordão de 318 páginas, decidiu que o decreto presidencial que concede o indulto configura ato de governo, caracterizado pela ampla discricionariedade, estando limitado apenas pelo disposto no artigo 5º, XLIII, da Constituição, que proíbe a graça [1] a determinados crimes. O Decreto de Natal de 2022 inovou, pois, deixou de exigir qualquer lapso temporal mínimo de cumprimento de pena como requisito para a concessão de indulto nos casos de condenação por crimes cuja pena privativa de liberdade máxima em abstrato não seja superior a cinco anos (artigo 5º). A abrangência do disposto no artigo 5º do Decreto nº 11.302/22 é enorme, alcançando mais de uma centena e meia de crimes só no Código Penal, passando por furto simples, estelionato, apropriação indébita, calunia, injúria, difamação, dano, associação criminosa, falsidade ideológica, desacato, etc. Além de muitos outros previstos em legislações esparsas, tais como posse e porte ilegal de arma de fogo de uso permitido, embriaguez ao volante, etc. Mais de 50% das pessoas presas, atualmente, devem ter condenação por ao menos um destes crimes. Todavia, raramente esses crimes aparecem de forma isolada. Na imensa maioria das vezes são cometidos em concurso e é aqui que se instaura a grande celeuma jurídica criada pelo Decreto nº 11.302/22, pois, ao passo que o parágrafo único do artigo 5º diz para considerar individualmente as infrações penais, o caput do artigo 11 determina que seja considerada a pena resultante da soma ou unificação. E aí, como bem indagam os professores Lenio e Berti, "aplica-se o parágrafo único do artigo 5º ou o artigo 11?". Para começar a destrinchar a questão é preciso estabelecer algumas premissas. A primeira é que concurso de crimes existe tanto no processo criminal quanto na execução penal. O instituto do concurso de crimes disciplina como devem ser aplicadas as penas quando alguém comete mais de uma infração penal. Essa aplicação pode ocorrer no mesmo processo criminal ou não. Se os diversos crimes são apurados no mesmo processo, o juiz aplica as regras do concurso de crimes na sentença criminal. Se são apurados em processos separados, o artigo 111 da Lei de Execução Penal dá a solução e determina ao juiz da execução penal que some (concurso material) ou unifique (concurso formal ou crime continuado) as penas. A segunda premissa é que estamos diante de um conflito aparente de normas e, em casos tais, devemos seguir as regras de hermenêutica jurídica. Aplicando o princípio da especialidade ao caso, observamos que o parágrafo único do artigo 5º é especial, ele se refere especialmente ao disposto no caput do artigo 5º — e isso está expresso em sua própria redação: Para fins do disposto no caput, na hipótese de concurso de crimes, será considerada, individualmente, a pena privativa de liberdade máxima em abstrato relativa a cada infração penal. Esse parágrafo foi criado para deixar claro que o concurso entre crimes do caput não desnatura a condição de "crime com pena privativa de liberdade em abstrato não superior a 5 anos". Logo, o parágrafo único do artigo 5º só pode ser aplicado às hipóteses de concurso entre crimes previstos no caput do mesmo artigo. A partir dessas premissas, podemos responder aos questionamentos feitos pelos professores Lenio e Berti, no artigo publicado em 6/1/2023. Vamos lá! Acerca do concurso de crimes, três diferentes situações podem surgir: 1ª) concurso entre infrações penais previstas no caput do artigo 5º; 2ª) concurso entre crimes do caput do artigo 5º e delitos do artigo 7º; 3ª) concurso entre crimes do caput do artigo 5º e outros não previstos no decreto. Seja qual for o tipo de concurso que se estabeleça, deverão ser aplicados conjuntamente o parágrafo único do artigo 5º E o artigo 11. Eles não se repelem, se complementam. Vejamos. No caso de concurso entre crimes previstos no caput do artigo 5º do Decreto — pena privativa de liberdade em abstrato não superior a 5 anos — aplica-se o disposto no parágrafo único do artigo 5º e, consequentemente, deverá ser considerada a pena de cada delito de forma individualizada. Vamos imaginar um concurso entre vários estelionatos, por exemplo. Não importa a espécie de concurso que ocorreu, se material, formal ou crime continuado; não importa se a pena total resultou da soma ou do aumento de pena; não importa quantos crimes são. Em qualquer das hipóteses a pena abstrata de cada uma das infrações penais deve ser considerada de forma individualizada e todos os crimes terão direito ao indulto. Diferentemente ocorre no caso de concurso entre crimes previstos no caput do artigo 5º e crimes listados no artigo 7º (crimes impeditivos). Nesta situação deve ser aplicado o disposto no parágrafo único do artigo 11, segundo o qual "não será concedido indulto natalino correspondente a crime não impeditivo enquanto a pessoa condenada não cumprir a pena pelo crime impeditivo do benefício". Pensemos, por exemplo, no concurso entre um furto simples e um tráfico. Para que o sentenciado tenha direito ao indulto do furto simples, precisará cumprir integramente (1/1) a pena do tráfico (crime impeditivo). Agora chegamos ao ponto de grande polêmica: os casos de concurso entre crimes do caput do artigo 5º e infrações penais não previstas no decreto como, por exemplo: furto simples e furto qualificado; estelionato e posse/porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, etc. Em casos tais, não pode ser aplicada a regra do parágrafo único do artigo 5º, porque ela é especial e se refere apenas ao caput, ou seja, somente pode ser invocada quando todas as infrações penais em concurso se enquadrarem no caput. Da mesma forma, não é caso de aplicação do disposto no parágrafo único do artigo 11, afinal não há concurso com crime impeditivo. O que deve ser aplicado, então? Deve ser aplicada a regra prevista no caput do artigo 11. Segundo este dispositivo, "as penas correspondentes a infrações diversas serão unificadas ou somadas até 25 de dezembro de 2022, nos termos do disposto no artigo 111 da LEP". Pois bem! Vamos imaginar que no nosso primeiro exemplo (concurso entre furto simples e furto qualificado) o sentenciado recebeu 3 anos de pena pelo furto simples e 4 anos pelo furto qualificado. Somando as penas, temos um total de 7 anos. Pensemos que ele já cumpriu 1 ano, tendo uma pena remanescente de 6 anos. Aí eu pergunto: que diferença isso faz para a aplicação do Decreto de indulto de 2022? Nenhuma. Essas penas são penas em concreto. O artigo 5º trata expressamente de pena em abstrato. A circunstância de a soma das penas privativas de liberdade resultar um total superior a 5 anos afasta o fato de o sujeito ter sido condenado por um crime cuja pena privativa de liberdade máxima em abstrato não supera 5 anos? Não. O caput do artigo 11 só se aplica aos casos em que exigido o cumprimento de um percentual mínimo da pena para a concessão do indulto, como por exemplo artigo 2º, II; artigo 4º e artigo 15. Quando o presidente opta por indultar uma classe de crimes selecionada a partir da pena fixada pelo legislador em abstrato, a soma ou unificação das penas aplicadas em concreto pelo Judiciário passa a não fazer diferença. É importante destacar que quando o decreto quis excetuar sua aplicação no concurso de crimes, ele o fez de forma expressa. Isso ocorreu no parágrafo único do artigo 5º, quando deixou claro que as penas em abstrato deveriam ser consideradas de forma individualizada, bem como no parágrafo único do artigo 11, quando exigiu o cumprimento integral da pena dos crimes impeditivos para concessão do indulto aos crimes não impeditivos. Não havendo regra alguma para o concurso com crimes não previstos no decreto, pode o interprete criar uma regra contrária ao direito à liberdade do sentenciado? A resposta mais condizente com todos os princípios do Direito Penal é não. Para finalizar e responder aos questionamentos apontados pelos professores Lenio e Berti nos itens (i), (ii) (iii) e (iv), acerca dos efeitos retroativos do indulto de Natal de 2022, temos como ponto essencial esclarecer que indulto não é absolvição. O indulto é um mecanismo do sistema de freios e contrapesos de nossa tripartição de poderes que permite ao Executivo certo controle sobre o Judiciário. Quando o presidente da República concede indulto ele apenas perdoa a pena, não apagando seus efeitos. Consequentemente, todo o período que a pessoa permaneceu presa até a edição do indulto, seja provisoriamente respondendo ao processo criminal ou já em cumprimento de pena, era devido, pois o indulto não torna o indivíduo inocente, apenas perdoa a pena que lhe foi imposta pelo Poder Judiciário. Da mesma forma, o indulto não macula o processo criminal ou de execução penal, tão-somente perdoa o restante da pena a cumprir, ainda que, no caso dos crimes previsto no artigo 5º, esse "restante" possa abranger a pena toda para aqueles que sequer tenham iniciado seu cumprimento. Deste modo, as penas eventualmente cumpridas até a data da publicação do decreto (i) permanecem como penas cumpridas para todos os fins, inclusive de alcance de direitos na execução penal, devendo ser computadas como requisito temporal; (ii) não serão consideradas indevidas, não podendo servir para fins de detração penal em processo criminal diverso. (iv) A decisão judicial que concede o indulto retroage à data da publicação do decreto, ainda que concedida posteriormente e, a partir da publicação do decreto, o tempo de pena cumprido não será mais computado no processo criminal indultado. É isso! Esta é minha opinião jurídica, fundada especialmente nas 318 páginas da decisão do STF na ADI 5.874, segundo a qual a concessão de indulto não está vinculada à política criminal estabelecida pelo Legislativo, tampouco adstrita à jurisprudência formada pela aplicação da legislação penal, muito menos ao prévio parecer consultivo do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, sob pena de total esvaziamento do instituto. A prevalecer posicionamento semelhante ao meu, os impactos que o decreto de Natal de 2022 gerará no sistema carcerário serão imensos, beneficiando um número muito grande de condenados, pois a extinção de algumas penas irá gerar reflexos em outras e, consequentemente, mudará para melhor o cálculo de pena de mais de metade da população carcerária. Todavia, ao contrário da conclusão dos professores Lenio e Marcio, no sentido de que O presidente da República pode muito. Mas não pode tudo. Não pode escolher, sem critérios, para quem deseja conceder indulto, porque isso provoca efeitos colaterais. Quando se decreta um indulto, há que fazer uma prognose, evitando surpresas decorrentes do sistema”, entendo que em termos de indulto, sendo ele instrumento de controle da separação de poderes, o presidente pode quase tudo, só não pode ofender a Constituição Federal e os tratados internacionais. Assim, embora os efeitos posam ser gigantescos na seara penitenciária, essa foi a opção de quem tinha a discricionariedade em mãos, não cabendo ao Poder Judiciário limitá-la. [1] Gênero do qual o indulto é espécie.
2023-01-09T14:15-0300
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Defesa da Democracia
Chefes dos três Poderes dizem estar unidos para punir terroristas
Representantes dos três Poderes da República divulgaram nota conjunta nesta segunda-feira (9/1) afirmando que estão unidos para tomar "providências institucionais" contra os responsáveis pela invasão e depredação do Supremo Tribunal Federal, do Congresso Nacional e do Palácio do Planalto, neste domingo (8/1). O texto, batizado de "Nota em defesa da democracia", é assinado pelos presidentes da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT); do STF, Rosa Weber; da Câmara, Arthur Lira (PP-AL); e pelo senador Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB), presidente em exercício da casa legislativa.  "Os poderes da República, defensores da democracia e da Carta Constitucional de 1988, rejeitam os atos terroristas, de vandalismo, criminosos e golpistas que aconteceram na tarde de ontem (domingo) em Brasília. Estamos unidos para que as providências institucionais sejam tomadas, nos termos das leis brasileiras", diz a nota.  "Conclamamos a sociedade a manter a serenidade, em defesa da paz e da democracia em nossa pátria. O país precisa de normalidade, respeito e trabalho para o progresso e justiça social da nação", conclui o texto.  Barbárie Um grupo de manifestantes bolsonaristas invadiu na tarde do domingo o prédio do Supremo Tribunal Federal, o Congresso Nacional e o Palácio do Planalto e promoveu um quebra-quebra nos locais. O plenário do STF foi destruído pelos terroristas, que não se conformam com a derrota de Jair Bolsonaro (PL) nas eleições presidenciais de 2022 e pedem um golpe militar no Brasil. Depois da invasão ao Congresso, os manifestantes avançaram para a Praça dos Três Poderes, onde houve confronto. A Polícia Militar utilizou bombas de efeito moral e balas de borracha contra os manifestantes terroristas, que revidaram com rojões. O presidente Lula decretou intervenção na segurança pública do DF por causa dos atos não reprimidos em Brasília. O decreto foi lido por ele em um pronunciamento em que condenou a atuação dos vândalos.  O acampamento bolsonarista no Distrito Federal está sendo desocupado nesta segunda-feira. Segundo o Ministério da Justiça, 1,2 mil pessoas foram presas e conduzidas à Polícia Federal. Na noite de domingo (8/1), o ministro da Justiça, Flávio Dino, disse que cerca de 40 ônibus que levaram os bolsonaristas ao DF foram apreendidos e que os financiadores dos veículos já foram identificados.   Segundo o ministro, sua pasta vai atuar a partir de quatro prioridades: restabelecer a ordem pública; prender em flagrante os envolvidos; apreender ônibus; e identificar todos os financiadores.  De acordo com o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal, 12 jornalistas foram agredidos durante os atos de domingo.  Na madrugada desta segunda, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, deu 24 horas para a polícia desocupar os acampamentos. Ele também afastou o governador do DF, Ibaneis Rocha (MDB), do cargo por causa da falta de repressão aos manifestantes.  Exército e Polícia Militar começaram a cumprir a ordem pela manhã. Cerca de 40 ônibus levaram os bolsonaristas para a superintendência da Polícia Federal. Parte dos extremistas fugiu quando o cerco começou. Outros observaram e pediram para permanecer nas intermediações dos quartéis. Um homem foi retirado algemado depois de resistir. 
2023-01-09T11:39-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-09/chefes-tres-poderes-dizem-estar-unidos-punir-terroristas
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Opinião
Marcelo Aith: Invasão em Brasília: crônica de uma morte anunciada
Dois anos após a invasão ao Capitólio nos Estados Unidos por apoiadores do ex-presidente Donald Trump, Brasília assiste a uma barbárie comandada por bolsonaristas desvairados. Conseguiram invadir sem muito esforço o Congresso Nacional, Palácio do Planalto (local de trabalho do presidente) e o Supremo Tribunal Federal. Os vândalos quebraram o patrimônio público e vilipendiaram o Estado Democrático de Direito debaixo das barbas da força policial da capital brasileira. Não se pode esquecer que o comando das forças policiais de Brasília está com o ex-ministro da Justiça Anderson Torres. Forças essas que estavam monitorando os movimentos dos vândalos, mas não foram "capazes" de realizar a contenção das invasões. Vergonhosa a condução do governador do Distrito Federal e do secretário de segurança, que foram flagrantemente lenientes no combate aos atos criminosos. Era uma crônica de uma morte anunciada. O governador Ibaneis Rocha e o Secretário de Segurança Anderson Torres devem ser responsabilizados diante da cegueira deliberada. A Teoria da Cegueira Deliberada é uma construção jurisprudencial originada no Direito anglo-saxônico que preconiza a possibilidade de punição do indivíduo que deliberadamente se mantém em estado de ignorância em relação à natureza ilícita de seus atos. Sabiam da intenção dos golpistas e fizeram vista grossa. A Procuradoria da República tem que tomar providências no sentido de apurar os fatos e, se demonstrada a deliberada negligência, denunciá-los pelos crimes cometidos. Além disso, a situação demanda medidas de intervenção na segurança pública de Brasília, tal como ocorreu no Rio de Janeiro em 2018. Pois bem, voltando à cena do crime, as forças policiais de Brasília têm a obrigação de recompor imediatamente a ordem pública e prender em flagrante todos os invasores pelo crime de "abolição violenta do Estado Democrático de Direito" e "golpe de Estado", previstos, respectivamente, nos artigos 359-L e 359-M, ambos do Código Penal, que dispõe: "Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais" e "Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído". Democracia é o regime de governo cuja origem do poder vem do povo. Em um governo democrático, todos os cidadãos possuem o mesmo estatuto e têm garantido o direito à participação política. No entanto, devem respeitar os comandos constitucionais e legais, não sendo autorizado, sob qualquer pretexto, a utilização da força contra as instituições públicas. A investigação sobre esses atos deve ser exauriente e todos os envolvidos severamente punidos, quer pela ação, quer pela omissão (negligência estatal), quer ainda pela incitação. O ex-presidente Bolsonaro e a cúpula do seu governo devem ser investigados e, apurada a responsabilidade pela instigação, punidos severamente. Oxalá não haja uma tragédia maior como aconteceu no Capitólio, com mortes dos invasores, agentes de segurança e civis.
2023-01-09T11:11-0300
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Opinião
Edésio Fernandes: Saídas para a crise da moradia e da cidade
Vivemos em um mundo em crise, crise essa que tem diversas dimensões — sanitária, energética, ambiental, econômica, fiscal, social, política, jurídica —, que são intrinsecamente articuladas, ainda que com ritmos distintos. Vivemos também em um mundo cheio de tensões geopolíticas — antigas, novas ou renovadas —, que em um número crescente de casos têm levado a conflitos e processos de separatismo, devolução, ocupação, guerra... Instituições político-jurídicas tradicionais ainda hegemônicas — democracia liberal representativa, Estado-Nação, independência dos Poderes, autodeterminação dos povos — estão cada vez mais em xeque. Faltam autoridades e instituições globais efetivas para enfrentar diversos problemas que são intrinsecamente globais, como vimos durante a pandemia e estamos começando a perceber no processo de aceleramento das mudanças climáticas. Ao esvaziamento generalizado dos processos de mobilização social tradicionais — sindicatos, associações, movimentos sociais — tem correspondido o aumento generalizado das desigualdades socioeconômicas e da pobreza. Como a pandemia também deixou claro, em que pesem suas muitas expressões, em última análise a crise global é a crise da cidade e da moradia: o "problema da moradia" é global. Em todas as suas dimensões, a crise se dá sobretudo na cidade, é da cidade, é da moradia, se dá na moradia. Nesse contexto, a precariedade habitacional — jurídica, econômica, material — é cada vez mais a regra, sendo que suas dimensões de raça, gênero, etnia e idade — crianças, jovens e idosos sendo mais diretamente afetados — ficaram ainda mais evidentes com a pandemia. Esse enorme fenômeno histórico não pode ser ignorado. Dentre as principais lições da pandemia está a necessidade de maior compreensão sobre a centralidade da questão da moradia, bem como da urgência de se fazer a crítica do modelo dominante de urbanização excludente e segregador correspondente que tem produzido a precarização da moradia: em especial, a questão fundiária que está na base desse modelo ficou escancarada e não pode mais ser subestimada. A pandemia nos mostrou a relação entre terra, moradia e saúde, entre políticas fundiárias, políticas de moradia e políticas de saúde, e revelou com dureza como as pessoas vivem, trabalham e se deslocam nas cidades, bem como a importância dos espaços públicos, áreas livres e verdes para a saúde humana. Também é fundamental que lições sejam urgentemente tiradas em face da previsão de novas pandemias no curto prazo, bem como para dar conta dos desafios contemporâneos decorrentes das mudanças climáticas em curso que têm provocado desastres cada vez mais extremos e mais regulares — inundações, alagamentos, deslizamentos, terremotos, ciclones, assim como secas, queimadas, poluição... —, inclusive em áreas urbanas densamente ocupadas. Dentre outros efeitos de tais mudanças, o crescimento da insegurança alimentar e o aumento da fome têm colocado em questão a natureza do modelo produtivo e de distribuição de alimentos dominante. Tudo isso tem sido agravado pelo avanço dos conflitos fundiários que se expressam por toda parte em remoções, despejos e aumento da população em situação de rua, bem como em disputas em torno do acesso e controle de recursos naturais, especialmente da água. Além das formas tradicionais da imigração política e econômica, está crescendo globalmente de maneira assustadora também a imigração por razões ambientais — sendo que os "refugiados ambientais" têm aumentado a pressão pelo acesso à moradia nas cidades dos países para onde se deslocam. Desde 2008 a população do mundo já é majoritariamente urbana e o processo de urbanização global tem crescido em ritmo impressionante especialmente na África, Ásia e Oriente Médio. Em contextos já urbanizados como a América Latina tem havido mudanças no ritmo da urbanização, com crescimento das cidades médias e pequenas, assim como com a metropolização crescente da economia — e da pobreza. O mesmo padrão histórico de segregação socioespacial e concentração de serviços e equipamentos tem levado à periferização crescente da população urbana agora na esfera global, e o acesso informal crescente ao solo urbano e à moradia tem aumentado a precariedade habitacional. Mais de um bilhão de pessoas já vivem atualmente em assentamentos informais precários. Também nas cidades o contexto político-econômico mais amplo tem causado impactos, com o avanço do neoliberalismo, a redução da produção habitacional de interesse social pelo poder público e privatização de serviços e empresas públicos, bem como com a adoção de diversas estratégias questionáveis de envolvimento do setor privado na gestão pública que têm gerado deslocamentos recordes de recursos públicos — terras, construções, créditos construtivos, subsídios, isenções, anistias, etc — para o setor privado. Mais do que nunca, cabe perguntar "políticas habitacionais para quem?" — já que o conjunto de créditos, subsídios, condições de financiamento e exigências variadas criado pelo poder público certamente não têm beneficiado os mais pobres, aqueles que efetivamente mais precisam das políticas públicas. As políticas publicas — econômicas, financeiras, urbanísticas e fundiárias — não chegam perto das possibilidades da maioria da população mais pobre, que tem de recorrer aos processos informais para acesso ao solo e à moradia nas cidades. Estratégias de "affordable housing" através do setor privado não têm funcionado e, pelo contrário, têm gerado novos problemas — e em muitas cidades há sérios problemas de manutenção dos estoques habitacionais públicos de interesse social existentes. A globalização crescente do mercado imobiliário tem determinado novos papeis para as cidades na nova economia pós-industrial e de serviços financeiros, e novos e obscuros atores têm surgido nesse contexto — fundos de investimento, fundos de pensão, fundos abutres... A financeirização da terra, da moradia e da cidade tem levado à formação de conglomerados poderosos de proprietários e mesmo o aluguel tem se tornado proibitivo em muitas cidades, afetando especialmente os mais jovens. A preocupação crescente com as implicações desse modelo perverso, insustentável, ineficiente, irracional e injusto de crescimento urbano tem provocado debates sobre como mudar o rumo do processo. Infelizmente, de modo geral efeitos têm sido tomados por causas e as novas políticas urbanas têm causado novos problemas. Nos mais diversos contextos, a resposta dominante a tantos desafios têm sido a liberalização e flexibilização das regras urbanísticas de forma incentivar mais construções, com críticas às políticas tradicionais de zoneamento e busca de uma "cidade compacta" que tem se dado em muitos casos pelo avanço da urbanização por áreas livres e cinturões verdes das cidades. Contudo, as "novas" políticas habitacionais continuam dissociadas das políticas fundiárias e outras, especialmente políticas de transporte, e não resolvem a crise da moradia — pelo contrário, fomentam o crescimento da informalidade. A proposta recorrente de produção de unidades cada vez menores de lotes e construções tampouco resolve a questão, já que a maior densidade física não significa uma maior densidade demográfica: o aumento de unidades vazias é generalizado nas cidades. Esse processo tem sido agravado em diversas cidades pelas práticas crescentes de trabalho remoto geradas pela pandemia, com o esvaziamento de centros e escritórios tradicionais. Muitas mudanças têm sido permitidas pelos avanços tecnológicos — mas, para quem? Quem tem se beneficiado das novas possibilidades — e que tipos de cidades têm sido geradas?   Mesmo nos raros casos em que existe uma política pública de moradia com uma escala significativa — Chile, África do Sul, México, Brasil — as causas do problema habitacional não têm sido devidamente atacadas, especialmente porque a estrutura fundiária das cidades não tem sido enfrentada. De modo geral, novos conjuntos habitacionais são construídos apenas nas áreas periféricas desprovidas de serviços e infraestrutura e sem a devida integração socioespacial. Terras e construções vazias — privadas e públicas — não têm cumprido uma função social, inclusive aqueles em áreas centrais. Soluções jurídicas coletivas de posse e propriedade não são consideradas. A informalidade habitacional continua crescendo, já que é a única solução possível de acesso à terra e à moradia nas cidades para tanta gente — em que pesem os muitos problemas de várias ordens que decorrem da informalidade. Pelas mesmas razões, também os poucos programas de regularização de assentamentos informais consolidados existentes — que em muitos casos são a única política habitacional existente, e não uma dimensão de uma política mais ampla e articulada como deveriam ser — não têm conseguido mudar o rumo do processo de urbanização e pelo contrário acabam por provocar novas distorções. Buscar novas soluções e novos caminhos, então, é essencial. Nesse contexto, em diversos países têm surgido algumas pistas interessantes e promissoras, começando com o reconhecimento da necessidade da promoção de mais e melhor produção habitacional em programas articulados de crédito, financiamento, subsídios e exigências variadas, a serem conduzidos não apenas pelo Estado, mas também por novos atores como cooperativas, associações, Community Land Trusts — CLTs/Termos Territoriais Coletivos. Autogestão e escala são fatores fundamentais, assim como a melhor utilização do patrimônio público existente. Políticas de aluguel — controle do aluguel, teto do aluguel, aluguel social, leasing — também têm sido adotadas em diversas cidades de diferentes países. No Brasil, os diversos processos de ocupações urbanas têm colocado o dedo nesse desafio da política fundiária. O enorme déficit habitacional do país convive com um número gigantesco de vazios urbanos com serviços, construções publicas e privadas vazias e/ou subutilizadas, bem como um enorme estoque de terra pública ociosa. O papel elitista, burocrático e segregador da legislação urbanística não pode mais ser ignorado. Se por um lado centenas de municípios têm reconhecido nas suas leis um número crescente de Zonas de Interesse Social (Zeis) correspondentes aos assentamentos informais existentes, a dificuldade de se criar no país Zeis em áreas vazias para possibilitar a produção habitacional de interesse social tem de ser superada. Estamos longe de um cenário plena aplicação do Estatuto da Cidade, especialmente porque não há esforços mínimos no sentido da recuperação pelo Poder Público da enorme valorização imobiliária gerada pela ação publica — através de obras, serviços e equipamentos, bem como pelas leis urbanísticas —, mas que tem sido gratuitamente apropriada pelos proprietários de imóveis. Outra pista importante da experiência internacional é que é inegável que soluções coletivas devem ser buscadas para problemas coletivos, inclusive no que diz respeito as políticas de moradia e especialmente quanto aos direitos envolvidos. Há tendências interessantes — "co-living", novas dinâmicas familiares, outras formas de moradia coletiva, novos arranjos entre jovens/estudantes e idosos, em alguns casos "volta ao campo" — que devem ser acompanhados. A lição fundamental certamente é que uma ampla e profunda mudança paradigmática é fundamental e urgente. A promoção de Reforma Urbana requer a materialização do princípio constitucional da função social da posse, da propriedade e da cidade, a afirmação do valor social da terra, o reconhecimento da moradia como direito e não como mera mercadoria, bem como da Importância das Zeis para que se dê a territorialização adequada do direito social à moradia digna. Tem ganhado força o movimento que vê a "cidade como bem comum", cenário que requer um novo marco de governança da terra urbana com participação direta de novos atores além do Estado. Além da questão central da produção habitacional, maior ênfase tem sido colocada na necessidade de mais espaços públicos, hortas comunitárias, planos urbanísticos comunitários, novas formas de mobilidade urbana e outras estratégias integradas que sejam democraticamente concebidas dentro de um novo marco de Governança da Terra Urbana e responsabilidade territorial do Estado. Tudo o que é estatal é público, mas nem tudo o que é publico é estatal, e o devido enfrentamento da crise das cidades e da moradia requer a construção de uma ampla e sólida esfera comunitária que seja plenamente traduzida também no território.
2023-01-09T07:16-0300
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Opinião
Mario Andrade: Lições argentinas: 1985 e as 'Leis do Perdão'
Em 2022, a Argentina conquistou o tricampeonato mundial de futebol, tendo o povo vizinho uma justa alegria, em meio a um cenário político e econômico de tantas agruras. Em contraponto, no Brasil o ano foi marcado pelo falecimento do Rei do futebol. Se para os hermanos, assim como para nós, o futebol é apontado, por vezes, como um outro "ópio do povo", ele é também um importante elemento de identidade coletiva, de efeitos políticos que não devem ser ignorados. Pelo menos, é o que ensinam as experiências históricas de Brasil e Argentina, em que tanto a ditadura militar brasileira instrumentalizou politicamente a conquista da Copa do Mundo de 1970, quanto a ditadura de Videla se valeu do bicampeonato argentino de 1978 como peça de propaganda do governo [1]. Contudo, se no país vizinho, o contexto político atual é de ampla rejeição ao regime antidemocrático, e os hermanos podem comemorar a conquista esportiva sem evocações aos elementos políticos daquele período ditatorial, o mesmo não se poderia dizer do Brasil. Aqui, temia-se até mesmo que eventual conquista do hexacampeonato fosse utilizada como lastro mobilizador da população para um golpe de Estado [2], hipótese que, apesar de caricata (ou, talvez, exatamente por isso), não é difícil de imaginar, diante de algumas manifestações após o resultado das eleições presidenciais. As ligações históricas entre o futebol e seu uso político-cultural na América Latina são amplamente conhecidas. Foi sintomático que, na Argentina, no dia 24 de março de 1976, o próprio dia do golpe de Estado, a programação de rádio e televisão foi interrompida para a leitura dos "comunicados" da Junta Militar que assumia o controle do país. Os comunicados informavam as primeiras medidas autoritárias do regime, como a dissolução do Congresso Nacional, a cassação de políticos e juízes, e a suspensão de direitos fundamentais, como as liberdades de manifestação e reunião. Contudo, após 22 comunicados proibitivos, o 23º era curiosamente permissivo, autorizando a transmissão do jogo entre Argentina e Polônia, programado para aquele mesmo dia, na Europa. Porém, os paralelos entre Brasil e Argentina parecem cessar aí, em especial, quanto a como ambos os países lidaram com a herança autoritária após suas respectivas redemocratizações, a despeito das conquistas futebolísticas que se seguiram. Nesse sentido, o ponto talvez mais emblemático seja a forma bem distinta como o Poder Judiciário dos dois países julgaram as leis de anistia. Em 2005, a Corte Suprema de Justiça da Nação Argentina julgou inconstitucional as chamadas "Leis do Perdão", como ficaram conhecidas as duas leis promulgadas durante o governo eleito de Raúl Alfonsín (1983-1989), a "Lei do Ponto Final" (1986), que estabelecia um prazo-limite de 60 dias para o ajuizamento de ações contra atos da repressão militar, e a "Lei de Obediência Devida" (1987), que impediu a responsabilização de oficiais subalternos. A decisão da Suprema Corte foi por um "placar" folgado de 7 a 1, com uma abstenção. Após o julgamento, o ex-presidente Raúl Alfonsín celebrou a decisão da corte, dizendo que a democracia argentina estava, agora, "definitivamente consolidada". Interessante notar como na avaliação de Alfonsin, que foi o primeiro presidente eleito após o fim da ditadura em 1983, a consolidação da democracia somente se completou com a decisão judicial, ao abrir a possibilidade de responsabilização pelas violações de direitos praticadas durante o regime ditatorial. Já no Brasil, em 2010, a ADPF 153, ajuizada pela OAB, que pedia a declaração de não recepção da Lei de Anistia (Lei nº 6.683/79), foi julgada improcedente pelo Supremo Tribunal Federal, por 7 a 2. Não apenas o Supremo Tribunal foi amplamente favorável ao reconhecimento da compatibilidade da anistia brasileira com a Constituição de 1988, como o ministro Cezar Peluso, então presidente da corte, qualificou seu questionamento judicial como anacrônico [3]. Na verdade, o caso argentino é ainda mais rico. Pouco tempo após a redemocratização argentina em 1983, alguns dos condutores da ditadura militar já eram levados ao banco dos réus, incluindo o general Jorge Rafael Videla, que governara o país entre 1976 e 1981. Nesse ponto, é simbólico que 2022 tenha sido não apenas o ano da conquista da Copa do Mundo pela Argentina, o que ocorreu pela primeira vez em 1978, durante a ditadura de Videla, mas também o ano do lançamento do filme Argentina, 1985, que trata, exatamente, do processo judicial contra os líderes da ditadura militar daquele país. O filme dramatiza as dificuldades e riscos enfrentados pela precária e jovem equipe do promotor Julio Strassera para conduzir a acusação na Justiça civil contra os membros das três primeiras juntas militares, pela prática de crimes como homicídio, sequestro e tortura. Ainda que o fio condutor esteja na figura do promotor, o filme destaca o trabalho da sua pequena equipe composta basicamente de jovens entre 20 e 27, na coleta dos depoimentos das vítimas da repressão. Sem romantismos ideológicos, podemos mesmo dizer que a equipe inexperiente representa a própria juventude da frágil democracia argentina na busca por justiça contra seus algozes. As cenas do julgamento ressaltam os depoimentos das vítimas, que expuseram para toda a sociedade as atrocidades praticadas pelo regime. O filme também destaca como a cobertura midiática do julgamento foi importante para sensibilizar a sociedade para o julgamento, que, mesmo conduzido de forma técnica, possuiu forte simbologia política. No momento atual, em que antigas e novas gerações flertam com posicionamentos antidemocráticos, Argentina, 1985 é um filme necessário, inclusive, para o Brasil, em que a praxe histórica parece ser a de sempre tentar contemporizar com o intolerável, de conciliar com o inconciliável, atribuindo ao mero passar do tempo a função de superar os erros passados. Reação e ameaças sempre sobrevirão a qualquer proposta de revisar o passado. As próprias "Leis do Perdão" julgadas como inconstitucionais pela Suprema Corte argentina já foram uma reação ao julgamento de 1985, tendo sido uma saída política diante dos levantes militares contra a perspectiva de responsabilização pelo regime democrático recentemente reinstalado. Agora, em 2023, em que um novo governo se inicia, com promessas de reconstrução institucional, o filme oferece mais do que entretenimento de qualidade — ele fornece uma lição histórica do papel das instituições e agentes públicos diante daqueles que atentam contra o Estado Democrático de Direito. Apesar de a decisão do STF de 2010 ter sido pela constitucionalidade da lei de anistia, ainda pende de julgamento Embargos de Declaração interpostos pela OAB, sob a alegação de omissão do tribunal quanto à jurisprudência da Corte Interamericana de rechaço a leis de autoanistia, como a brasileira. Por serem embargos de declaração, não são esperados efeitos substancialmente modificativos, pelo menos no bojo da própria ADPF 153, entretanto, esperamos que mais do que a recente conquista futebolística, o filme argentino de 2022 sirva de exemplo para o estado de coisas no Brasil, inclusive para o próprio STF. Por certo, derrotas passadas podem ser úteis se servirem de alerta para a necessidade de revisão dos erros cometidos. Nessa linha, os atuais questionamentos e reações afrontosas aos mais básicos procedimentos democráticos indicam que a cultura e as práticas autoritárias continuam persistentes no Brasil, como erros não corrigidos. Um dos pontos altos do filme está na fala final da acusação, quando o promotor Strassera, defrontando os mudos ditadores postos no banco dos réus, diz "Agora, que o povo argentino retomou o governo e o controle de suas instituições, eu assumo a responsabilidade de declarar, em seu nome, que o sadismo não é uma ideologia política, nem uma estratégia de guerra, mas uma perversão moral", e conclui seu discurso com uma frase-emblema: "Senhores juízes, nunca mais". O Estado de Direito e a democracia, assim como o bom futebol, dependem do respeito às regras do jogo, da dedicação de seus jogadores e da punição dos seus violadores, para que a alegação de estar jogando dentro das "quatro linhas da Constituição" seja efetiva, e não apenas um recurso retórico de autolegitimação e indulgência. As experiências esportiva e jurídica demonstram que, quando os juízes são omissos, o respeito às normas é substituído por sadismo e selvageria. O filme nos lembra que, na reconstrução da identidade argentina, entre 1978 e 2022, não houve apenas 1986, mas também 1985. Que 2023 seja para nós brasileiros também um período para a revisão e correção de erros, de enfrentamento do passivo ditatorial ainda persistente, um interregno para maiores conquistas, no futebol e na democracia.
2023-01-10T21:36-0300
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Opinião
Rodrigo Faucz e Aury Lopes Jr.: A responsabilização de Bolsonaro
Dia 8 de janeiro de 2023 ficará marcada como uma das páginas mais tristes da história brasileira. A invasão e destruição do Congresso, do Palácio do Planalto e da sede do Supremo Tribunal Federal constituiu uma tentativa (frustrada) de aniquilamento do modelo democrático. Mas também constituiu uma tentativa (bem-sucedida) de humilhar a imagem do país perante a comunidade internacional, de subjugar os símbolos da pátria e de achacar nossa moral cívica. A gravidade dos atos merece uma atuação diretamente proporcional das instituições responsáveis pela investigação, acusação e julgamento dos crimes cometidos. Mas aqui se faz necessário fazer a primeira ressalva: o processo penal jamais pode ser vilipendiado. Em um Estado Democrático de Direito não há espaço para revanchismos, excessos ou violações das regras processuais. As regras do devido processo penal valem para todos e sempre, nunca é demais recordar. Dentre os possíveis crimes cometidos pelos extremistas estão o dano qualificado, crimes contra o patrimônio nacional, associação criminosa e, principalmente, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (artigo 359-L, do CP, cuja pena é de 4 a 8 anos) e de tentativa de golpe do Estado (artigo 359-M, do CP, com pena de 4 a 12 anos). Perceba-se que os últimos dois são considerados crimes de atentado. Assim, o crime se caracteriza simplesmente com a "busca" de abolir violentamente a democracia ou o "empenho" para depor o governo legítimo. O delito se consuma a partir do momento em que se inicia a tentativa típica. Pelo que se viu, desde manifestações públicas de anos anteriores — mas principalmente nos dias que antecederam os atos —, os criminosos tinham a intenção declarada de remoção do governo eleito, inclusive com pedidos expressos de inversão da ordem democrática. O dolo estava enunciado nas páginas de internet, redes sociais, grupos de mensagens do WhatsApp e até nas faixas e cartazes carregados. Frente essas considerações, tem-se discutido sobre a eventual responsabilidade criminal do antigo mandatário brasileiro, tendo alguns juristas indicado que ele teria cometido um crime na modalidade omissiva. Todavia, deve-se verificar, pelo aspecto penal, as categorias de autoria e participação dos crimes. Primeiramente, o ordenamento jurídico pátrio admite a responsabilização do partícipe, ou seja, aquele que não comete diretamente o fato típico, mas que instiga ou atua como cúmplice. De acordo com o Código Penal, a instigação se materializa quando o sujeito cria na mente do executor do fato a ideia criminosa, a estimula ou mesmo a reforça. Na realidade, qualquer meio de influenciar a vontade do criminoso resta abarcada na figura do partícipe. É aquilo que se chama participação moral. Por outro lado, a cumplicidade se refere àquele que auxilia materialmente para o cometimento do delito. Como os que emprestam veículos, armas ou outros materiais para o intento criminoso. Também está prevista a cumplicidade por omissão, quando se tem o dever de agir para evitar o delito e, ainda assim, o agente se omite. Considerando o período desde que a Lei 14.197/2021 entrou em vigor [1], há inúmeras manifestações de Jair Bolsonaro no sentido de atacar as instituições, bem como, principalmente, de inflamar seus apoiadores, inclusive com ameaças expressas aos demais Poderes e desprezo ao resultado das eleições. Tais fatos, facilmente presenciados pela imprensa e pelo público, podem ser considerados como elementos indiciários que, em conjunto com os demais elementos que sejam produzidos durante o inquérito policial, poderão esclarecer a eventual participação do ex-presidente nos aludidos atos. Uma investigação responsável poderá descobrir (ou rechaçar), a participação moral de Bolsonaro, ou seja, se, de alguma maneira ele instigou a tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito ou se instigou a tentativa de depor o governo legitimamente constituído. Assim, a polícia judiciária precisará averiguar as condutas do ex-presidente, inclusive com a análise de dados telefônicos, mensagens, acesso a dados digitais e virtuais [2], verificação de documentos, realização de interrogatório, oitiva de testemunhas (inclusive daqueles que executaram os atos para examinar se foram, de fato, influenciados). Após a investigação, em havendo justa causa, o Ministério Público oferecerá uma denúncia. Já no âmbito do processo, a acusação terá que provar, além da dúvida razoável, a participação do ex-presidente. O direito de um julgamento justo é um princípio basilar da democracia que não pode, jamais, ser afastado, independentemente da gravidade do crime que se julga. E aqui entra a segunda ressalva: nas últimas décadas o Direito Penal tem conquistado um protagonismo indevido, como se fosse a panaceia para a redução da criminalidade. Apesar disto, a criminologia — também há décadas —, comprovou que o aumento da criminalização apenas alimenta o ciclo de violência. Assim, o Direito Penal deveria funcionar como ultima ratio, agindo apenas como último recurso, bem como deveria ser utilizado somente para proteção dos valores considerados como mais relevantes para a vida em sociedade. E, certamente, um desses valores essenciais é a democracia. Já pelo âmbito do sistema penal, reconhece-se que punir é necessário, aliás, é civilizatório — desde que seja feito dentro das regras do jogo [3]. Portanto, é caso sim de intervenção penal, pois o ataque à democracia e suas instituições, sem dúvida alguma, constitui a violação de bem jurídico relevantíssimo e que exige a intervenção penal para sua proteção e manutenção. Enfim, apesar de ter sido vítima, o Estado Democrático de Direito tem uma oportunidade de reforçar perante toda sociedade seus valores. E isso deve ser feito com uma investigação séria, uma produção probatória abrangente e uma tramitação processual justa, imparcial e que respeite todas as garantias penais e processuais. Apenas assim a punição será legítima, justa e transmitirá uma forte mensagem para a sociedade afetada pelo crime e fortalecerá a democracia. Não é porque ocorreu uma tentativa criminosa de aviltar a democracia, que o processo penal de responsabilização dos criminosos transgredirá os direitos e garantias constitucionais. O Estado Democrático de Direito exige a proteção absoluta aos direitos de todos, até dos inimigos da própria democracia. [1] Pelo princípio da irretroatividade da lei penal, os atos cometidos antes da entrada em vigor da lei não poderão ser objeto de responsabilização. [2] Claro que a quebra de sigilo fiscal, telefônico e de dados somente poderá ser realizado com a respectiva autorização judicial. [3] "Processo Penal pop obriga uma nova abordagem de ensino", publicado em 5 de agosto de 2016.
2023-01-10T18:34-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-10/rodrigo-faucz-aury-lopes-jr-responsabilizacao-bolsonaro
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Luiz Ros: Constitucionalismo abusivo e suas consequências
O conceito de "constitucionalismo abusivo", cunhado por LANDAU (2013) e TUSHNET (2015), busca explicar o fenômeno ocorrido em sociedades modernas em que governantes, eleitos democraticamente, subverterem o processo democrático e buscam ceifar o pluralismo, reduzindo o campo de abrangência da democracia, mas mantendo-se como um Estado constitucional. Esse Estado, supostamente constitucional, será regido por um regime constitucional deficitário, ou "the mere rule of law", como aponta TUSHNET (2015). A origem e crescimento desses fenômenos se dá, em regra, em situações de descrença política da sociedade em relação aos seus governantes e, normalmente partir da catalisação de outras esferas para além daquela essencialmente política, tais como crises econômicas e sociais. Tal fenômeno ocorreu no Peru na década de 1990 com a eleição de Fujimori, como bem exposto por LEVITSKY e ZIBLATT (2018, p. 59 e ss). Surgem contextos, líderes com ideais nacionalistas e que, a partir de tais condições, acabam por abraçar o populismo. Como exposto por GINSBURG e HUQ (2018), as democracias constitucionais liberais estão ameaçadas por dois tipos de fenômenos: o colapso autoritário — usualmente materializado por golpes militares ou paramilitares de Estado —; e a própria decadência das Constituições e do fenômeno constitucional como um todo, que serão alteradas para dar azo a um desenvolvimento de um novo tipo de governo, uma democracia limitada. Segundo BALKIN (2017), as quatro principais características que levam a formação desse segundo movimento são a (1) polarização política; (2) perda de confiança em governo; (3) aumento da desigualdade econômica; e (4) desastres políticos. Nesses casos, e apoiando-se na quebra da confiança na higidez institucional pela população, líderes populistas buscam minar a reputação das demais instituições que ordenam o processo democrático, principalmente os órgãos de controle e o próprio processo eleitoral e, paralelamente, buscam promover substanciais mudanças nas suas constituições. Buscam equipar as instituições com pessoas que pensam identicamente, para evitar que tenham seu projeto limitado, ou extingui-las para acabar com o controle exercido. Caso obtenham sucesso, há tentativas de mudanças constitucionais, por exemplo, para enfraquecer o campo eleitoral ou eliminar garantias democráticas contramajoritárias, como os direitos de grupos minoritários — tais como sociedades indígenas, negras e LGBTQIA+, bem como outras medidas que cerceiam o ambiente democrático. É justamente esse processo lento e gradual de mudança constitucional, que nem sempre é perceptível de forma isolada, mas apenas holisticamente, que acaba por promover a decadência de um Estado constitucional democrático pleno. Como aponta LANDAU (2013), o Constitucionalismo abusivo envolve o uso dos mecanismos de mudança constitucional — como, emendas e, até mesmo substituições constitucionais — para minar a democracia. Embora os métodos tradicionais de derrubada democrática, como golpes de Estado, estejam em declínio há décadas, o uso de ferramentas constitucionais para criar regimes autoritários e semiautoritários é cada vez mais prevalente. Presidentes e partidos hegemônicos em exercício podem engendrar mudanças constitucionais de modo a dificultar qualquer possibilidade de troca democrática de poder, desarmando checks democráticos de órgãos, como tribunais e cortes constitucionais. Nesse contexto, e ao contrário do que ocorria em outros tempos em que regimes autoritários eram formados e estabelecidos a partir de tomadas efetivas de poder — isto é, práticas que eram, desde o seu início, inconstitucionais —, tais governantes têm incentivos significativos para parecer jogar de acordo com as regras constitucionais. Tal encenação tem a finalidade de se manter algum grau de reputabilidade do governo, tanto internamente, como externamente. Nesse sentido, o novo tipo de governo não deixa de ser um regime constitucional, mas com um campo democrático reduzido. Segundo LANDAU (2013), tal fenômeno se daria, pois, a democracia será classificada em um espectro, existindo de um lado modelos democráticos e de outros autoritários e, ao longo desse percurso, modelos híbridos. Autores vão apresentam nomenclaturas diferentes a esse fenômeno, tais como chamam de regimes "autoritários competitivos", "autocracias eleitorais" ou simplesmente regimes "híbridos", fundindo alguns aspectos da democracia com alguns aspectos do autoritarismo. VAROL (2015, p. 1683), conceitua esse fenômeno como sendo regimes que residem em algum lugar entre os extremos opostos da democracia e do autoritarismo, combinando características de ambos. Acadêmicos têm rotulado esses regimes como "autoritarismo competitivo", "autoritarismo eleitoral", "semiautoritarismo", ou "Frankenestados". Embora haja diferenças conceituais entre esses rótulos, a maioria possui as mesmas características: competição eleitoral multipartidária existe, mas é injusta, porque os detentores do poder aproveitam-se de vantagens sistemáticas contra seus oponentes. Por consequência, eles tendem a ficar no poder indefinidamente, e o propósito central da democracia — eleições competitivas e a consequente alteração no poder — torna-se significativamente debilitado. Diversos são os exemplos de sociedades que podem ser usadas como exemplo, tais como Venezuela, Turquia e Hungria. Em todos esses casos verificou-se, a partir de mudanças constitucionais, os desmantelamentos de instituições que serviam para limitar o poder desses governos autoritários, fossem elas do judiciário ou os próprios opositores. O enfraquecimento e o descrédito dessas instituições é etapa essencial para a formação desses regimes autoritários, pois criam o cenário de um inimigo comum a ser combatido. Ocorre que, em alguns casos, como ocorreu nos EUA com eleição de Joe Biden em face de Donald Trump, o desenvolvimento de governos autoritários é interrompido, impedindo assim o sucesso de mudanças constitucionais de natureza autoritária. Entretanto, a retirada do líder autoritário, por si só, não faz esvaecer o sentimento golpista de determinado setor da sociedade civil. Outro exemplo ocorreu em Mianmar. A Constituição de Mianmar demorou cerca de 20 anos para ser redigida, com único objetivo de dificultar, ou evitar, que a Liga Nacional da Democracia chegasse ao poder. Em 2021, após esse partido chegar ao poder, há um golpe de Estado, com base na argumentação de que se trataria de fraude eleitoral, onde se decretou estado de sítio e se justificou um golpe militar. Esse sentimento, fortalecido pelo fenômeno da pós-verdade, onde somente se torna crível aquilo que eu acredito ser real, com base em apelos emocionais e crenças pessoais, faz com que cenas lamentáveis como a invasão do Capitólio ocorram. Situação similar parece viver o Brasil, cuja democracia foi vilipendiada por golpistas que, não tendo êxito em suceder a um golpe moderno, buscaram impor o caos e a barbárie requerendo um golpe militar. Como o quadro de Di Cavalcanti que foi apunhalado de forma vil, nossa democracia também o foi. Mas assim como a obra de arte será restaurada, nossa obra de arte moderna, a democracia, também será. Com instituições fortes, uma sociedade civil que repulsa tais manifestações e exemplar punição aos golpistas, não só aos que invadiram nossas instituições, mas aqueles que financiaram e incentivaram a barbárie e o ódio.   Balkin, Jack M., Constitutional Rot (June 14, 2017). Can It Happen Here: Authoritarianism in America, Cass R. Sunstein, ed. (2018, Forthcoming), Yale Law School, Public Law Research Paper No. 604, Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=2992961 GINSBURG, Tom, HUQ, Aziz. How to save a constitutional democracy. Chicago: The University of Chicago Press, 2018. LANDAU, David. Abusive Constitutionalism, University of California. Vol. 47, p. 189-259, 2013.) LEVITSKY, Steven. ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018 TUSHNET, Mark. Authoritit constitutionalism. Cornell Law Review, v. 393, p. 451-452, 2015. VAROL, Ozan O. Stealth Authoritarianism. Iowa Law Review, Estados Unidos, 2015, n. 100, p. 1673-1742.
2023-01-10T16:15-0300
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David e Granato: O geotagging usado como prova digital
O ministro do STF Alexandre de Moraes acolheu a petição [1] ajuizada pela AGU no âmbito dos Inquéritos 4.781 e 4.874, que tramitam no Supremo, requerendo uma série de medidas judiciais em resposta aos atos criminosos ocorridos no dia 8 de janeiro, na Praça dos Três Poderes, em Brasília, dentre elas as de imediata desocupação de todos os prédios públicos federais em todo o país, a dissolução dos atos antidemocráticos realizados nas imediações de quartéis e outras unidades militares, e inclusive, a determinação de afastamento cautelar do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha. Há que se destacar, por oportuno, as medidas 3 e 4, respectivamente, de prisão em flagrante de todos os envolvidos nos atos criminosos decorrentes da invasão de prédios públicos federais, inclusive o secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, bem como de interrupção de monetização de perfis e transmissão de mídias sociais que possam promover, de algum modo, atos de invasão e depredação de prédios públicos, "devem ser acompanhadas da determinação de guarda pelas plataformas de mídias e de redes sociais de todos os registros capazes de identificar materialidade e autoria dos ilícitos praticados, pelo prazo de cento e oitenta dias”. E nessa linha, a medida 7 busca a "determinação às empresas de telecomunicações, em particular as provedoras de serviço móvel pessoal que guardem pelo prazo de noventa dias os registros de conexão suficientes para a definição ou identificação de geolocalização dos usuários que estão nas imediações da Praça dos Três Poderes e do Quartel-General do Distrito Federal para apuração de responsabilidade nas datas dos eventos criminosos". A referida medida se define como providência de geotagging [2], já utilizado no caso Marielle Franco como meio de investigação na busca da identificação de possíveis suspeitos dos assassinatos a partir dos números de IPs de dispositivos móveis. Neste domingo do dia 8, a imprensa veiculou diversas matérias que mostravam criminosos postando cenas em suas redes sociais no momento exato em que dilapidavam o patrimônio público, exibindo o resultado da depredação como se fosse um troféu. Não contentes com a destruição de objetos históricos e obras de arte pertencentes à história de um país, os criminosos postavam fotos e vídeos com objetos em mãos, havendo inclusive imagens nas quais se exibia uma réplica da Constituição Federal de 1988, em poder dos criminosos. Como o geotagging envolve "marcar" uma localização geográfica para algo como uma atualização de status, um tweet, uma foto ou qualquer outra coisa que seja postada online, será possível inclusive, "hipoteticamente", recuperar objetos roubados pelos criminosos, visto que será obtida a geolocalização desses indivíduos em tempo real. Dentre os diversos tipos de meio de produção de provas digitais podemos incluir: 1) planilhas eletrônicas, documentos de texto e banco de dados; 2) arquivos em formatos digitais, 3) mensagens eletrônicas por e-mail, mensagens de texto (SMS), 4) áudios, vídeos, fotografias digitais, 5) conversas em aplicativos de mensagens ou em plataformas de rede social, 6) depoimentos por videoconferência etc. Esses documentos eletrônicos, sejam públicos ou particulares, podem ser considerados para fins de direito como documentos digitais (ou eletrônicos) [3] e possuem a natureza de prova documental a que se refere o artigo 212, inciso II do Código Civil. A prova digital, segundo o conceito de Maurício Tamer [4], pode ser entendida como "a demonstração de um fato ocorrido nos meios digitais" ressaltado que "a demonstração de sua ocorrência pode se dar por meios digitais". E no caso, o geotagging auxiliará na coleta de prova digital pelo processo de adicionar identificação geográfica a várias mídias, como uma fotografia ou vídeo, sites, mensagens SMS, códigos QR ou feeds RSS, que passam assim a ser ‘georreferenciados’ pela inserção de metadados geoespaciais. Esses dados consistem em coordenadas de latitude e longitude, que também possibilitam incluir altitude, orientação, distância, dados de precisão e nomes de lugares e em determinados casos um possível registro de data e hora. Com tal marcação geográfica a prova digital ficará enriquecida de informações, possibilitando, por meio da inserção de coordenadas de latitude e longitude, a localização de um dispositivo móvel e o encontro de imagens eventualmente colhidas perto de um determinado local. Os dados de localização geográfica usados em geotagging podem, em quase todos os casos, ser derivados do sistema de posicionamento global (GPS), e baseiam-se em um sistema de coordenadas de latitude/longitude. Como podemos observar, cada vez mais o Direito está ligado à tecnologia, e a sua relevância e uso crescente nos meio social acabam naturalmente interferindo na atividade probatória realizada no processo jurisdicional e na valoração dos elementos de prova. Nem se olvidando que as provas existentes no meio eletrônico/digital recebem o mesmo tratamento das informações documentadas no meio físico, no tocante às exigências legais. A Justiça, por sua vez, está se adaptando a essa nova realidade, por meio de Resoluções do CNJ e de cada tribunal do nosso país, e começa a "pensar e judicar digitalmente". Nem se fale, de resto, em "futuro do processo penal", pois esta já é uma realidade da era líquida.   REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CONARQ Disponível em: https://www.gov.br/conarq/pt-br/assuntos/camaras-tecnicas-setoriais-inativas/camara-tecnica-de-documentos-eletronicos-ctde/perguntas-mais-frequentes. Acesso em 9/1/2023 ADVOCACIA- GERAL DA UNIÃO: disponível em: https://www.gov.br/agu/pt-br/comunicacao/noticias/agu-envia-ao-stf-uma-serie-de-pedidos-em-resposta-aos-atos-criminosos-deste-domingo RODRIGUES, Marco Antônio; TAMER, Maurício, Justiça Digital: O Acesso Digital à Justiça e as Tecnologias da Informação na Resolução de Conflitos. São Paulo: Editora Jus Podivm, 2021. p. 291. RAMALHO, David Silva. Coletânea de Legislação sobre Cibercrime e Prova Digital: AAFDL Editora, 2021. PETIÇÃO ÍNTEGRA: disponível em: https://www.gov.br/agu/pt-br/comunicacao/noticias/agu-envia-ao-stf-uma-serie-de-pedidos-em-resposta-aos-atos-criminosos-deste-domingo/Petio08012023.pdf. Acesso em 09/01/2023 [1] https://www.gov.br/agu/pt-br/comunicacao/noticias/agu-envia-ao-stf-uma-serie-de-pedidos-em-resposta-aos-atos-criminosos-deste-domingo [2] O geotagging, também conhecido como geomarca é o processo de adicionar metadados de identificação geográfica para vários meios de comunicação marcados geograficamente como fotografias ou vídeo, sites, mensagens SMS, Código QR ou feeds de RSS e é uma forma de metadados geoespaciais. [3] Segundo o Conarq, "um documento eletrônico é acessível e interpretável por meio de um equipamento eletrônico (aparelho de videocassete, filmadora, computador), podendo ser registrado e codificado em forma analógica ou em dígitos binários. Já um documento digital é um documento eletrônico caracterizado pela codificação em dígitos binários e acessado por meio de sistema computacional. Assim, todo documento digital é eletrônico, mas nem todo documento eletrônico é digital". Disponível em: https://www.gov.br/conarq/pt-br/assuntos/camaras-tecnicas-setoriais-inativas/camara-tecnica-de-documentos-eletronicos-ctde/perguntas-mais-frequentes. Acesso em 9/1/2023. [4] RODRIGUES, Marco Antônio; TAMER, Maurício, Justiça Digital: O Acesso Digital à Justiça e as Tecnologias da Informação na Resolução de Conflitos. São Paulo: Editora Jus Podivm, 2021. p. 291).
2023-01-10T14:16-0300
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Rogério Fernando Taffarello: Terror jurídico e terror político
Após a destruição de muito do patrimônio histórico, artístico, cultural, arquitetônico e institucional brasileiros, perpetrada no coração de nossa democracia — as sedes dos três Poderes —, e iniciadas as necessárias e urgentes medidas de investigação para futura responsabilização de culpados, debatem-se quais os crimes a serem atribuídos a executores, organizadores, financiadores e mandantes dos atos antidemocráticos a que assistimos no domingo. Sem prejuízo de eventuais crimes de responsabilidade de agentes políticos que possam ter sido coniventes, as condutas evocam vasta pluralidade de delitos em sentido estrito: dano qualificado ao patrimônio da União; furtos qualificados e roubos agravados de objetos diversos, até mesmo de armas do Palácio do Planalto; ameaças, constrangimentos ilegais e lesões corporais praticadas contra jornalistas a trabalho e contra os poucos e honrados agentes de segurança que tentaram conter agressores; crimes contra a paz pública como a incitação, associação e organização criminosas, e, possivelmente, constituição de milícia privada; crime de destruição do patrimônio cultural, previsto na Lei dos Crimes Ambientais; crimes contra a administração pública como prevaricação, resistência e subtração de documentos públicos. Ainda mais importante, parecem presentes as gravíssimas infrações de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e tentativa de deposição de governo legitimamente constituído, previstas nos recém-instituídos artigos 359-L e 359-M do Código Penal. Dúvidas surgem, porém, em relação à figura delitiva que, ao lado das duas últimas, para alguns seria de importância central nos eventos de 8 de janeiro: estaria correto considerar que se praticaram, ali, crimes de terrorismo? A resposta não é óbvia, porquanto, ao mesmo tempo, negativa do ponto de vista jurídico, e afirmativa do ponto de vista político. A legislação brasileira define terrorismo como os atos praticados "por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública" (artigo 2º, Lei 13.260/16). Se estão claras a causação de terror social e generalizado e agressões a pessoas, patrimônio, paz pública e incolumidade pública, a motivação dos atos revela-se essencialmente política, e não de discriminação de grupos sociais; sendo distintos os motivos daqueles descritos em lei, não se está a tratar, propriamente, do crime de terrorismo. E ainda que, por hipótese, alguns agressores possam ter se movido também por razões discriminatórias, isso estaria presente apenas de forma secundária e como exceção; em âmbito criminal, a boa técnica jurídica impõe a interpretação restritiva, e não ampliativa, do alcance do tipo. Muita polêmica houve — primeiro em escolas de direito e de ciências políticas, e depois no Congresso Nacional — em torno de qual deveria ser o conceito legal de terrorismo, e se a motivação política de atos de terror social deveria ser contemplada na lei. O debate é antigo e, no Brasil, como em outros países, a escolha legislativa — a meu ver, acertada — foi no sentido de afastar essa motivação política da definição jurídica com vistas a prevenir possíveis usos desviados da lei para criminalizar movimentos sociais legítimos e facilitar perseguições de opositores políticos. Importa destacar, contudo, que a ressalva jurídica não impede, em absoluto, que se reputem de "atos terroristas" as violências praticadas — assim, aliás, referiram-se os presidentes dos três Poderes em nota conjunta na manhã de segunda-feira (9/1). O conteúdo semântico do vocábulo terrorismo transcende em muito a sua acepção legal, e, não à toa, entre suas definições trazidas pelo Dicionário Houaiss, encontra-se a "[...] prática de atentados e destruições por grupos cujo objetivo é a desorganização da sociedade existente e a tomada do poder", a qual descreve com fidelidade os atos de 8 de janeiro, expressão de um terror político que merece repúdio veemente de todos os democratas dos mais diferentes espectros políticos e ideológicos. Se necessário se faz o esclarecimento sobre os limites do crime de terrorismo tal qual previsto na legislação, é preciso lembrar que, como já dito pelo professor Conrado Hübner Mendes, "a lei e o direito não têm monopólio da linguagem crítica da política e da moral" [1]. Mais do que nunca em nossa jovem democracia, é preciso, neste momento, prevenir que peculiaridades próprias da linguagem e da operatividade jurídicas impeçam agentes políticos e imprensa de, cumprindo com suas elevadas responsabilidades públicas, assim como a sociedade civil, dar nome e gravidade adequados a tão lamentáveis atentados contra o Estado Democrático e suas mais fundamentais instituições. [1] MENDES, Conrado Hübner. Bolsonarismo aciona o modo terror. In: Folha de S.Paulo, 29/12/2022. Disponível on-line em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/conrado-hubner-mendes/2022/12/bolsonarismo-aciona-o-modo-terror.shtml, acesso em 9/1/2023.
2023-01-10T13:20-0300
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Dermeval Rocha: Não há liberdade geral contra a democracia
"O Brasil infelizmente não é um país de instituições, mas de homens", segundo Edvaldo Brito [1]. No último domingo (8/1), em Brasília, milhares de pessoas invadiram e depredaram prédios públicos de grande valor simbólico para o país, instrumentos que, mesmo imperfeitos, funcionam como grades de proteção da democracia [2] (Congresso Nacional, Palácio do Planalto e a sede do Supremo Tribunal Federal), fazendo-o descontentes com a derrota de seu candidato a presidente da República, a pretexto do exercício da liberdade de reunião, do direito de ir e vir e da livre circulação de pensamento. O que preocupa, porém, não é só a demonstração de força da multidão insatisfeita com o resultado das urnas, mas o que está por trás dessa força e pode gerar novos atos no mesmo sentido (a exemplo de fechamento de aeroportos e refinarias de petróleo). Com efeito, não basta perquirir sobre a força, mas a sua base ideológica, considerando que o poder precisa de uma base ideológica [3]. Ao que parece, já falando sobre essa base, eles são adeptos da livre circulação de ideias (que se materializaram em atos terroristas e golpistas), como se isto fosse um desdobramento da liberdade geral de ação e estivessem no exercício da liberdade negativa, aquela que impõe a todos o respeito ao direito individual de ação ou inação, tendo como limites apenas o quanto previsto na legislação, algo a ser julgado só depois. A partir dessa base ideológica, tais práticas não podem ser restringidas sumariamente, uma vez que a priori tudo seria permitido e os limites dessa liberdade viriam posteriormente do rechaço social e dos tribunais (inclusive usando a famigerada ponderação), o que é pior ainda. Essa linha de pensamento é nociva e merece reflexão à luz da dogmática dos direitos fundamentais porque serve de pano de fundo para outras práticas lamentáveis em nosso meio, notadamente as fake news e o chamado discurso de ódio. É o que se propõe a fazer aqui, ainda que de relance, à vista do curto espaço. E por que não se pode admitir esse liberou geral na seara dos direitos fundamentais? Primeiro, porque a liberdade geral de ação não embasa a livre circulação de ideias, ainda que estas violentem a nossa democracia e os meios de sua realização, como as instituições atingidas pela turba. Muito difícil, talvez impossível encontrar amparo para tais práticas na chamada liberdade negativa, desdobramento da liberdade geral de ação, um campo minado por uma série de dispositivos arrolados no texto constitucional em contrário (artigo 5º, incisos XLI e XLII, entre outros). Sobre esse campo minado, os manifestantes teriam que esquecer qualquer fundamentação em torno da liberdade negativa como desdobramento da liberdade geral de ação, mas tentar desconstruir o arcabouço normativo-constitucional erigido pelo direito pátrio (que se apresenta contra suas ideias), o que em alguns casos parece impossível, já que afrontaria cláusulas pétreas da Constituição. À conta de curiosidade, a Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos diz que o Congresso não fará nenhuma lei que restrinja a liberdade de expressão. A nossa Constituição não segue essa linha, daí não podermos importar a cultura norte americana para o nosso país, que tem uma outra ordem jurídica sobre o tema, com uma visão muito diferente. Na nossa Constituição, ao mesmo tempo em que há garantia do direito, é possível perceber limitações intrínsecas e também várias autorizações para que leis sejam aprovadas para limitar os direitos relacionados à circulação do pensamento, a exemplo da Lei nº 7.716/1989, que define os crimes resultantes do preconceito de raça e de cor. Aliás, nem lá os absolutistas da Primeira Emenda têm vez, já que, conforme lembra Jeremy Waldron [4], "há um ditado honroso, atribuído a Oliver Wendell Holmes, de que o princípio da liberdade de expressão inscrito na Primeira Emenda não privilegia o direito de gritar 'fogo' em um teatro lotado (que se sabe que não está pegando fogo)". A propósito, há um precedente norte americano no sentido de que espalhar fake news, sabendo dessa falsidade, não se constitui em liberdade de expressão. Segundo, porque não existe uma relação de antinomia entre direito e liberdade, como se a liberdade fosse uma reserva de arbítrio do indivíduo [5] juridicizada ou não pelo Estado. Na verdade, essa visão acaba deixando evidente a ideia de um indivíduo isolado da comunidade, exercendo essa esfera de liberdade com raízes no estado de natureza, como se a liberdade fosse um elemento extrajurídico ou estranho ao Estado. Terceiro, porque a liberdade que não está ligada a valores constitucionais equivale a arbitrariedade [6]. Com efeito, como autorizaria dizer Hans Kelsen [7], o descumprimento da lei que proíbe o furto não aniquila, mas a ratifica, ao contrário da apologia à ditadura, que aniquila a Constituição e a própria essência ou razão de ser da liberdade de expressão. Afirmar que a apologia à ditadura está coberta pela liberdade de expressão não só aniquila a Constituição que a proíbe, mas a própria liberdade, até porque o abuso de um direito o descaracteriza como tal [8]. Portanto, não há liberdade geral de ação para atentar contra a democracia, não havendo apoio constitucional para tanto.   Referências BRITO, Edvaldo. Aula ministrada na disciplina Jurisdição Constitucional Comparada e Novos Direitos, no Doutorado em Direito da Universidade Federal da Bahia, em 24 mai. 2021. HABERLE, Peter. La Garantía Del Contenido Esencial De Los Derechos Fundamentales. Traducción Joaquim Brage Camazano, 1 ed., Madrid, 2003. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2018. LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as Democracias Morrem. Tradução Renato Aguiar, 1 ed., Rio de Janeiro: Zaar. ROSS, Alf. Direito e Justiça. Tradução Edson Bini, 2 ed., São Paulo: Edipro, 2007. WALDROM, Jeremy. The Harm In Hate Speech. 1 ed., United States: Harvard University Press, 2014. [1] Aula ministrada pelo Prof. Dr. Edvaldo Brito, na disciplina Jurisdição Constitucional Comparada e Novos Direitos, no Doutorado em Direito da Universidade Federal da Bahia, em 24 mai. 2021.* [2]LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as Democracias Morrem. Tradução Renato Aguiar, 1 ed., Rio de Janeiro: Zaar, 2018, p. 99 e seguintes. [3] ROSS, Alf. Direito e Justiça. Tradução Edson Bini, 2 ed., São Paulo: Edipro, 2007, p. 82. [4] WALDROM, Jeremy. The Harm In Hate Speech. 1 ed., United States: Harvard University Press, 2014, p. 145. [5] HABERLE, Peter. La Garantía Del Contenido Esencial De Los Derechos Fundamentales. Traducción Joaquim Brage Camazano, 1 ed., Madrid, 2003, p. 141. [6] HABERLE, op. cit., p. 37. [7] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2018. p. 27. [8] HABERLE, op. cit., p. 119.
2023-01-10T12:18-0300
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Lenio Streck: 8/1/2023: o dia da infâmia para não ser esquecido!
Acompanhei pari passu os atos de terrorismo desde os primeiros momentos. Inacreditável o que se viu. Uma choldra, um valhacouto toma conta da capital federal. Mas uma súcia que tem gente por trás. Alguém financia. Há prolegômenos. Dias antes, um juiz concedeu um mandado de segurança reconhecendo, a um "patriota do bem" (sic), o direito fundamental de pedir golpe de estado em frente de um quartel em Belo Horizonte, levando o Brasil inexoravelmente aos píncaros do patético. Um deputado vestindo farda do Exército rindo com os atos terroristas. Um sujeito enrolado na bandeira grita palavras de ordens bolsonaristas na frente do Supremo Tribunal com a Constituição de cabeça para baixo que acabara de roubar do interior do prédio da Suprema Corte. Eis o retrato do Brasil dos "patriotas do bem". O dia 8 foi pior do que os episódios do Capitólio dos EUA. Aqui, foram os três palácios. Depredados. Quebraram, roubaram. Tinham granadas. E armas. A imitação saiu pior que o molde. Simbolicamente mostrou a vergonha nossa ao mundo. Terroristas (uso no sentido comum, político-sociológico do conceito) escoltados pelos guardas do DF. O Brasil vai ganhar o prêmio ig-Nobel. Vergonha nacional que se torna internacional. Papel de ridículo no palco do mundo. O bizarro: descobriram — e a notícia é do Guilherme Amado, repetida pela CNN — que no acampamento principal em frente ao comando do Exército havia a esposa de um ex-comandante e parentes de outros militares. Estavam acampados, pedindo golpe. E, pior: por isso o Exército, em um primeiro momento, não permitiu o desmanche do acampamento na noite do dia 8. As forças de segurança do DF e da PF negociaram com o Exército para que isso fosse feito pela manhã. Isso ocorreu depois das onze da noite. Claro, parece que assim daria tempo para que os militares da reserva e parentes dos da ativa pudessem "puxar o carro". Que coisa, não? O vivandeirismo assumindo um caráter nepotista, se me permitem. Parentes acampados na frente dos quartéis. Quem diria... O dia 8 foi o dia, mesmo, da infâmia. O corolário do lavajatismo, o ovo da serpente dessa infâmia. Tudo começou com o amaldicionamento da política. E chegaram os outsiders. Os que "odeiam a política" e nela se metem. Para fazer o "bem". Influencers de quinta categoria, bombadões quebradores de placas e defensores de armamentos e sedizentes defensores da segurança pública tomaram conta do parlamento. A antipolítica assumiu a pauta da política após sua criminalização, num longo processo ao qual eu e tantos outros já viemos avisando de há muito. Será que ainda existe quem negue o vínculo entre os dois fenômenos? Eis o resultado: as urnas eletrônicas são colocadas em dúvida ainda hoje, mesmo depois de tantas eleições. Cá entre nós, se as urnas foram fraudadas para dar vitória à Lula, os manipuladores devem ser punidos por incompetência. Afinal, esqueceram de fraudar a eleição de Ibaneis, por exemplo. Os manipuladores são gozadores? E por que deixaram Zambelli fazer mais de 800 mil votos? Esses fraudadores são uns pândegos. Tem um senso de humor bárbaro. Houve um episódio no dia 8 que bem mostra o que quero dizer: o ex-líder do governo, Ricardo Barros, chegou a justificar os atos do dia 8, dizendo que, afinal, o código fonte não foi mostrado etc. e que as pessoas tinham motivos para lá estarem porque não tinham confiança no processo eleitoral. Ao que levou uma carraspana da jornalista da CNN Daniela Lima, que deu uma aula para o parlamentar. Essa discussão entre a jornalista e o deputado simboliza o estado da arte do bolsonarismo. Vejam: bolsonarismo usado aqui como um conceito sócio-político que está para além de Jair Bolsonaro. O bolsonarismo antecede Jair. E é muito maior que ele. Assim como o lavajatismo está para além da operação em si e dos desmandos que perpetrou. Eis a questão. Quem não perceber essa fenomenologia não conseguirá compreender a dimensão do reacionarismo que exsurgiu no país nos últimos anos. Tanto quanto Moro e Deltan são sintomas de um punitivismo seletivo, mequetrefe, fruto de um direito sem epistemologia e pessimamente ensinado nas faculdades, Bolsonaro é sintoma de uma fascistização do discurso público. A tempestade tinha sua crônica anunciada de há muito. A política foi criminalizada. Poderíamos falar aqui sobre várias consequências gravíssimas para o país. O dia 8 foi um resumo perfeito da tragédia. Se alguém duvida do que estou dizendo, não assistiu aos atos do dia 8. Eles espancam... nossa cara e nossas dúvidas. O rescaldo do dia da infâmia: mais de 1.500 presos. Investigações em andamento. Há muitos tipos penais a serem colocados em denúncias do MP (por sinal, o grande ausente no caos desde há muito, tornando letra morta o artigo 127 da CF, infelizmente). Intervenção federal no DF; afastamento do governador; quadro de R$ 8 milhões destruído. Prejuízos de centenas de milhões. E tantas outras coisas. Onde foi que erramos? Como deixamos chegar a esse ponto? O direito fracassou? Não serve para nada? Não existe nenhum senso de vergonha institucional? Nada disso era para ter acontecido. Avisos não faltaram. Mas "não era bem assim". A Lava Jato "prendeu corruptos". E Bolsonaro "só falava algumas bobagens". Tsk tsk. Enganou-se quem quis. E que agora assuma a bronca. E a responsabilidade. E claro, nesse cenário todo não se pode esquecer o "doisladismo". A tese dos dois demônios. Ingenuidade, talvez? Será? Só aceita a leitura da ingenuidade quem é um tanto ingênuo. O resultado está aí para quem quiser ver. Avacalharam os três Poderes. Destruíram, pilharam, saquearam, fizeram fiasco. Alguém podia ter se machucado gravemente. E agora ameaçam com os caminhoneiros. Tudo armado no submundo das neocavernas. E financiadas pelos "novos patriotas". Pobre Brasil. Devemos ter jogado na Cruz de Cabrália. Ou algo assim. O horror. O horror, como na peça shakespeareana. Mas o maior prejuízo é o simbólico. A democracia foi violentada. Em seu nome. O direito foi ridicularizado. Também em seu nome. Parafraseando os filósofos de minha terra, quem não compreender isso é a mulher do padre. E, atenção: nada mais de passapanismo, um dos erros históricos constantemente repetidos. Aliás, precisamos aperfeiçoar o sistema legal: a lei antiterrorismo, consertar alguns crimes como o de prevaricação (veja-se o escândalo das milhares de atitudes criminosas ocorridas nos últimos tempos no país) que, para além da pena ridícula, tem um índice baixíssimo de aplicação — parece que há um monumento ao último condenado por prevaricação em algum lugar do país. E, como venho cobrando de há muito — mas de há muito mesmo — há que se construir mecanismos para punir autoridades omissas — para além da mera prevaricação. Enfim, a tarefa é hercúlea. Como a frase final da peroração do promotor do filme 1985, estrelado por Darin, "nunca más".
2023-01-10T10:17-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-10/lenio-streck-812023-dia-infamia-nao-esquecido
academia
Tribuna da Defensoria
Defensoria Pública: um convite à crise institucional
Após a publicação do texto Por uma Defensoria (sempre) profanada [1], acabei recebendo retornos bem interessantes. Para além de membros da carreira defensorial, magistrados, professores e acadêmicos acabaram encontrando um convite para a possibilidade de uma vida jurídica profanada. O que, para mim, soou como uma grata surpresa, já que, de uma reflexão institucional crítica, acabara surgindo uma provocação para o ethos jurídico em geral. Não obstante esse agradecido retorno, na perspectiva original, focando no público dos membros e membras da Defensoria Pública, e potenciais corajosos(as) para se juntar nessa peleja contramajoritária, percebi que, nesse recorte dos feedbacks, muitos tinham a expectativa de imediatas respostas para aquela desconstrução. Não foram poucos que, após lerem e concordarem com as críticas, sentiram um hiato específico quanto às respostas. Pois, se a Defensoria não deveria se encastelar, e evitar o risco de se tornar uma instituição autorreferente, o que poderia ser feito? De pronto, sem querer frustrar esse grupo de pacientes leitores e leitoras, já esclareço, com a transparência devida, que, nesse texto, ainda não serão apresentadas as decifrações desse enigma. E, assim o faço, não por falta de delineamento das soluções (possíveis tentativas) — que são várias, multifacetadas e complexas, com meandros sensíveis —, mas por compreender que, sequer, o exercício inicial, dessa anamnese institucional, fora devidamente iniciado. Obviamente, nessa coluna, não há objetivo para exaurir o tema. Porém, mesmo um mero exercício de oxigenação na práxis defensorial exige, em respeito à intelectualidade e ao tempo de quem pacientemente lê, uma provocação que não se espraie de maneira rasa e irresponsável. Se na reflexão anterior, o objetivo fora afastar a Defensoria do universo das deidades jurídicas (e profaná-la) com sua inserção na horizontalidade com os vulneráveis, nessa coluna, a ideia é delinear uma genuína crise de institucionalidade. E, obviamente, tal como na utilização do termo profanar, é fundamental contextualizar de que semântica me utilizo ao, surpreendentemente, como colunista e membro da instituição, desejar a crise da Defensoria Pública. Do grego krísis e do latim crise [2], o termo, em seu emaranhamento com a história da própria humanidade, assumiu percepções diversas — de cunho médico, político, sociológico e existencial — e, já atualmente, sentidos plurais (separação, julgamento, decisão, momento decisivo, juízo...). Contudo, como é perceptível, em geral, inclusive, provavelmente, para quem lê essa coluna e quem a escreveu, a primeira impressão é sempre negativa, pesarosa e exige uma postura defensiva. Dessa forma, é natural que esforços intelectuais e existenciais costumam ser erigidos para que situações críticas e limiares sejam evitadas. Porém, esse esperado mecanismo de defesa acaba por entabular o fluxo da existência tendenciosa à repetição e a manutenção do status quo — isto é, da continuidade dos mesmos erros e equívocos (até, então, vistos como mera normalidade). Nesse ponto, o seguinte trecho de perscrutação do verbete é esclarecedor: Sem crise de sentido, o mundo inteiro, nas suas mais diversas dimensões e aspectos, encontra-se desde sempre como 'explicado' — ou sua explicação definitiva consiste precisamente em não ter explicação nenhuma. Em um como em outro caso, o que se tem é uma situação estática, fechada, sufocada em si mesma, sem questionamento algum: uma totalidade fechada de sentido, tal como temos usado essa expressão: sem frestas, sem o respirar de uma temporalidade renovadora para além do maciço e do opaco, do opressivo automático dia a dia. Vida amortecida, talvez semivida [3]. Em sentido complementar, na obra interessante Dicionário do Pensamento Social do Século XX, o verbete foi assim explorado [4]: As crises decidem se uma coisa perdura ou não. (…) Em toda crise os envolvidos confrontam-se com a questão hamletiana: ser ou não ser. (…) Elas também sempre afetam a autocompreensão e a autodefinição de agentes, sistemas ou esferas, uma vez que sempre afetam sua 'identidade', isto é, uma vida ou situação de vida como um todo. Como se observa, a semântica utilizada para o convite à crise institucional gravita em torno da acepção enquanto momento decisivo e julgamento. Pois o que se delineia é que, como toda instituição, e como toda composição de membros e membras, não há um único perfil possível. Não existe somente uma filosofia institucional, uma práxis factível. Se assim não o fosse, e existisse a possibilidade de uma retidão constitucional perfeita e tangível, não faria sentido algum as críticas, provocações e o convite a uma autocrítica da entidade e da identidade de quem a compõe. Contudo, a ponderação é direcionada a um lugar estabelecido, vigente, espraiado – ou, pelo menos, por se tratar um cenário invariavelmente dentro da burocracia estatal, uma tendência a esse perfil. Nesse ponto, é interessante delinear claramente do perigo que se tem alertado e teleologicamente provocado: por estar situada dentro do contexto de poder, em que pese o delineamento constitucional pró-vulnerável, sem autocrítica e posicionamento dialógico e comunicativo com quem deve representar, a Defensoria será arrastada por uma agenda solipsista, limitada e de aparente alinhamento às causas das minorias. Com essa conjuntura problemática, atuações estratégicas em relações a grupos vulneráveis passarão a ser pensados, decididos e escolhidos baseado num conhecimento institucional que alijaria os genuínos protagonistas do processo de empoderamento. Em vez de ser instituição que dá voz aos vulneráveis no sistema de justiça, corre-se o risco de ser mais um instrumento de emudecimento. Em interessante reflexão, os defensores Jhny Fernandes Giffoni e Marco Aurélio Velloz Guterres já sinalizaram5: (…) a Defensoria não pode e não deve ser uma ilha onde não há conexão e nenhum elo com o público-alvo de seus serviços, os marginalizados. Deve haver total sintonia entre os marginalizados e o instrumento de superação, senão a enxada despreparada, quebrada, enferrujada ou cega, não terá condições de arar o solo em condições dignas de germinar o empoderamento do seu público. E, nesse ponto, trazendo suas contribuições pedagógicas e epistemológicas para essa reflexão institucional, Paulo Freire é insubstituível em suas lições (e referência teórica obrigatória para qualquer pessoa que se aproxime da rotina defensorial) [6]: Comportam-se, assim, como quem não crê no povo, ainda que nele falem. E crer no povo é a condição prévia, indispensável, à mudança revolucionária. Um revolucionário se reconhece mais por esta crença no povo, que o engaja, do que por mil ações sem ela. Àqueles que se comprometem autenticamente com o povo é indispensável que se revejam constantemente. (…) Dizer-se comprometido com a libertação e não ser capaz de comungar com o povo, a quem continua considerando absolutamente ignorante, é um doloroso equívoco. Portanto, não é possível persistir, numa concepção ingênua, de que a práxis defensorial – tanto no âmbito interno quanto no âmbito externo — não tenha outra origem, em suas escolhas, senão fruto de uma escolha ideológica e eticamente comprometida [7]. Nessas possibilidades, a instituição pode se voltar para si mesmo — focando, exclusivamente, em metas, números e estatísticas, numa lógica atuarial que produz, mas que não gera mudança estrutural — ou, cumprindo a agenda constitucional, direcionar os esforços para o empoderamento dos vulneráveis (caminho em que se busca, de forma concomitante e dialógica, resolver as demandas pontuais e, também, realizar esforços para resolver ou diminuir os cenários de desamparo estatal). Portanto, aqui está o paradoxo do convite à crise institucional da Defensoria Pública: o ensimesmamento institucional implica seu esvaziamento constitucional; e seu esvaziamento institucional (enquanto não-encastelamento e convergências aos vulneráveis) implica o cumprimento do mandato constitucional. Então, em síntese, para a Defensoria, cumprir seu papel perpassa, necessariamente, pelo esvaziamento de qualquer pretensão institucional autocentrada e narcisista. Mas, para não ficar apenas nessa des-construção, nesse ponto, gostaria de afirmar, utilizando categoria de Boaventura de Sousa Santos, que a umbilical proximidade entre a Defensoria e os grupos vulneráveis é que gera o "aquecimento da razão" [8] defensorial. Pois "o aquecimento da razão é o processo através do qual as ideias e os conceitos continuam a despertar emoções motivadoras, emoções criativas e capacitadoras que reforçam a determinação de lutar e a disponibilidade para correr riscos (…) o aquecimento não dispensa ideias, conceitos e teorias; apenas os transforma em problemas e desafios vitais, experiências concretas de expectativas próximas, seja para se lutar contra elas seja para se lutar por elas" [9]. Portanto, o aquecimento da razão defensorial, ou o corazonar, são os grupos vulneráveis: Corazonar significa experienciar o infortúnio ou o sofrimento injusto dos outros como se fossem próprios e estar disponível para se aliar à luta contra essa injustiça, ao ponto mesmo de correr riscos. Significa acabar com a passividade e fortalecer o inconformismo perante a injustiça. (…) Corazonar é uma forma amplificada de ser-com, pois faz crescer a reciprocidade e a comunhão. É o processo revitalizador de uma subjetividade que se envolve com as outras, destacando seletivamente aquilo que ajuda a fortalecer a partilha e a ser corresponsável. (…) Corazonar é sempre um exercício de autoaprendizagem, uma vez que a mudança do nosso entendimento de luta acompanha a par e passo a mudança do nosso entendimento de nós mesmos [10]. Portanto, sem qualquer idealismo irresponsável, o convite a esse paroxismo institucional objetiva apenas uma contínua revisitação da entidade e de seus membros e membras sobre as escolhas — jurídicas, sociais, éticas e administrativas —, tentando minorar os impactos do fordismo diário perante a gigantesca demanda. Sem crise, a Defensoria não alcançará a compreensão de porquê tolerara o intolerável [11]; por qual razão suportara o insuportável; as falhas que permitiram que práticas institucionais — ainda não diagnosticadas, nessa anamnesis ('ação de trazer à memória'), por exemplo, como racistas, machistas ou transfóbicas – ainda seriam replicadas na rotina defensorial interna [12]. Sem crise, a Defensoria não permite o desenvolvimento de sua capacidade de dialogar e compreender o universo dos vulneráveis que busca representar. Assim, nesse campo de poder e organização estatal, enquanto autoridades, os defensores e defensoras públicas, para terem capacidade de mudar algo precisam questionar sobre os limites da própria perspectiva egolátrica. E, para isso, invariavelmente, o processo de aprendizado surgirá por meio das crises nesse contato com o Outro-vulnerável. Sem crises, sem mudanças, apenas somaremos números ao grupo de privilegiados13 sem cumprir o papel constitucional.   ______________________ [1] Como será notado, as duas reflexões estão interligadas e, mesmo sendo possível a leitura direta da presente coluna, haverá prejuízo claro para compreensão da linha de raciocínio. Então, para melhor entendimento, aconselho a leitura do texto anterior. Vide Magdiel Pacheco Santos. Por uma Defensoria (sempre) profanada. ConJur. Publicada em 15 de novembro de 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-nov-15/magdiel-pacheco-defensoria-profanada. [2] Antenor Nascentes. Dicionário etimológico resumido. Brasília: Instituto Nacional do Livro/Ministério da Educação e Cultura, 1966, p. 219; Ricardo Timm de Souza, Sobre a construção do sentido: o pensar e o agir entre a vida e a filosofia. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 31; Nicola Abbagnano. Dicionário de Filosofia. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 222 e 223; Wiliam Outhwaite; Tom Bottomore (Coord.) (…). Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 156-160. [3] Ricardo Timm de Souza, Sobre a construção do sentido: o pensar e o agir entre a vida e a filosofia. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 57/58. [4] Wiliam Outhwaite; Tom Bottomore (Coord.) (…). Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 157. [5] Johny Fernandes Giffoni; Marco Aurélio Vellozo Guterres. Autonomia e vulnerabilidade: da opressão ao empoderamento. (…) Autonomia & Defensoria Pública (…), Salvador: JusPodivm, 2017, p. 364. [6] Paulo Freire. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 48. [7] "Interpretar a lei implica sempre na produção de definições eticamente comprometidas e, por isso, persuasivas" (Luis Alberto Warat. Introdução geral ao Direito: volume I (...). Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995, p. 33). [8] [9] Boaventura de Sousa Santos. O fim do império cognitivo (...) Belo Horizonte: Autênicaa Editora, 2019, p. 150 e 152. [10] Idem, p. 154 e 155. [11] "A catástrofe, a crise propriamente dita, em toda sua ambiguidade e profundidade, as precárias estrofes desalinhadas que constituem o contemporâneo, é tudo e nada, tudo ou nada: sinaliza o instante de decisão, que não é outro senão aquele no qual a decisão deve ser tomada, uma questão de vida ou morte, pois, em um mundo em que o grande mistério intelectual para qualquer um com um mínimo de sensibilidade humana e intelectual se constitui em entender finalmente como aprendemos a suportar o insuportável, como se fosse suportável (...)". (Ricardo Timm de Souza. Ética como fundamento II (...) Caixas do Sul, RS: Educs, 2016, p. 17). [12] Para deixar pontos bem práticos desses momentos de crises necessárias, é possível pontuar, em um rápido exercício, no âmbito interno, a evolução administrativa quanto à fixação de políticas internas antirracistas, antimachistas e demais interseccionalidades; aspecto da representatividade e diversidade nas comissões internas e cargos comissionados; a resposta institucional quanto a episódios machistas internos; a atuação da Ouvidoria e Corregedoria quanto a membros e membras sustentarem, em manifestações públicas, pautas contra minorias; remuneração proporcional à equipe de apoio — entre outros possíveis pontos de tensão e crise necessária nesse pensar defensorial. Como é claro, a questão se aproxima do equacionamento do discurso e prática externa com a dinâmica do trabalho interno, em todas as agendas que potencializam a diversidade e a dignidade humana nessa dinâmica orgânica na Defensoria Pública. [13] "(…) as autoridades que teriam capacidade de mudar algo são precisamente os privilegiados, os autoprivilegiados, que se beneficiam das injustiças de que são tão pródigos, em favor de seus ‘outros’, não totalmente outros" (Rogério Jolins Martins (...). Introdução a Lévinas: pensar a ética no século XXI. São Paulo: Paulus, 2014, p. 38).
2023-01-10T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-10/tribuna-defensoria-defensoria-publica-convite-crise-institucional
academia
Opinião
Leonam Liziero: Autonomia do DF foi erro dos Constituintes
As lamentáveis cenas de depredação dos prédios dos Três Poderes da República, em nosso triste "8 de Janeiro", como atos terroristas, trouxeram a lume uma anomalia federativa presente na Constituição de 1988: a autonomia política dos municípios. Não são raros os livros de Direito Constitucional em que o autor em determinado momento critica o fato de os municípios serem entes autônomos na federação brasileira como algo estranho ao federalismo em geral. Porém entendo como injusta: os municípios são parte essencial da construção do federalismo brasileiro e particularizam nosso Estado federal [1]. Uma anomalia mais evidente é a autonomia do Distrito Federal. Quase todas as federações possuem um Distrito Federal — ou ente equivalente para sediar o poder federal, como uma cidade autônoma. É o exemplo do Distrito de Columbia (Estados Unidos) e a Cidade Autônoma de Buenos Aires (Argentina). Para que serve um Distrito Federal em uma federação? Eminentemente para sediar a União. A União é o ente federativo que represente a soberania do Estado federal e é seu eixo. Porém a União não tem um território propriamente delimitado, uma vez que o alcance de sua jurisdição é o território nacional. Por isso a sede da União é uma demarcação territorialmente localizada dentro de um Estado federado (ou equivalente federativo como Länder ou províncias) ou entre dois Estados federados (que é justamente o caso de Washington D.C, localizado entre os Estados de Maryland e Virgínia). A União da federação brasileira tem sua sede há quase 63 anos no Distrito Federal constituído em Brasília. Como amplamente conhecido, Brasília foi fruto de um projeto demofóbico de isolamento do poder da União sob pretexto de desenvolvimento interiorano do Brasil [2]. O Distrito Federal passou se constituir em um perímetro retangular de cerca de 5.700 km² quase encravado no território do estado de Goiás, com pequena fronteira com o estado de Minas Gerais. A mudança foi prevista no artigo 4º do ADCT da Constituição (apesar de ter sido prevista também em Constituições pretéritas) e regulamentada pela Lei nº 2.874, de 19 de setembro de 1956, durante o governo JK. A transferência, conforme determinação da Lei Emival Caiado [3], foi realizada em 21 de abril de 1960. A nova capital provocou também enormes fluxos migratórios espontâneos, sobretudo provenientes da região Nordeste, para o Planalto Central. Em 10 anos, a população urbana do Distrito Federal teve crescimento de mais de 300% [4]. Parte da nova população, contudo, era formada por servidores públicos federais, cuja migração foi sendo induzida à medida em que os órgãos da União foram sendo transferidos do Rio de Janeiro para Brasília. O antigo Distrito Federal, correspondente à área da cidade do Rio de Janeiro, passou a constituir o estado da Guanabara, conforme o § 4º do mesmo artigo 4º do ADCT. A Lei nº 3.752, de 14 de abril de 1960 (conhecida também por Lei San Tiago Dantas), detalhou este ditame constitucional com as regras de transição. A sede e capital do novo Estado seria a própria cidade do Rio de Janeiro, e em outubro do mesmo ano estavam previstas as eleições para governador do estado e para a Assembleia Legislativa, que inicialmente teria a função de Constituinte. A antiga Câmara dos Vereadores, eleita em 1958 compôs com os deputados eleitos a Assembleia Legislativa do Estado da Guanabara[5]. O estado da Guanabara 15 anos depois foi vítima da violência federativa da ditadura militar com a fusão forçada com o estado do Rio de Janeiro, o que acarreta problemas até hoje na cidade do Rio de Janeiro, a antiga capital — e que até hoje sedia parte da União sem dela receber compensações, como recebe Brasília. A primeira tentativa de se conceber a autonomia do Distrito Federal foi com a Emenda Constitucional nº 2, de 3 de julho de 1956, que previu que o prefeito seria eleito por sufrágio direto, ao invés da nomeação pelo presidente da República. Porém, a emenda não teve efeito em tempo hábil. Era previsto que seria aplicável quando o novo presidente fosse eleito (que,  para nossa infelicidade, seria Jânio Quadros), mas a Emenda nº 3, de 24 de maio de 1961, retornou à situação da redação original de 1946: o prefeito do Distrito Federal seria nomeado pelo presidente da República, com aprovação do Senado Federal. A autoritária Constituição de 1967 e a Emenda nº 1 de 1969 mantiveram a normação do prefeito do Distrito Federal pelo presidente da República. A autonomia do Distrito Federal, como está prevista na Constituição, foi debatida na Constituinte nas audiências públicas da Subcomissão da União, Distrito Federal e Territórios e foi já prevista no anteprojeto desta subcomissão, no artigo 18 — que gerou, após todo o trâmite da Constituinte, o atual § 2º do artigo 32 da Constituição de 1988. No afã democrático do momento — afinal não há federalismo sem democracia — foi dada à sede da União a autonomia política para eleger seu chefe do Poder Executivo. A Constituição de 1988 é um marco civilizatório no Brasil, mas com algumas imperfeições. Entre tais, um grande erro foi justamente o reconhecimento de autonomia política ao Distrito Federal, sede da União. Diferentemente dos estados brasileiros, o Distrito Federal não possui a historicidade que justificaria a autonomia política. Brasília foi fruto de um projeto de isolamento da União, gestada como uma demarcação que deveria ter como única função sediar o poder federal. Brasília foi fundada para ser a sede da União; não tem a formação social citadina secular que motivasse realmente possuir autonomia política para escolher seu chefe do Executivo, responsável pela segurança da União. Desde a promulgação da Constituição de 1988, o Distrito Federal teve considerável desestabilidade institucional com seus governadores que renunciaram ou foram cassados, ensejando inclusive uma eleição indireta em 2010 após a cassação de José Roberto Arruda e a renúncia do vice-governador Paulo Octávio. E a tentativa de golpe de Estado promovida pelos apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro em 8 de janeiro de 2023 foi possível somente pela conivência e inaptidão do governador Ibaneis Rocha, afastado por decisão do ministro Alexandre de Moraes, assim como a provável participação do ex-secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, Anderson Torres, ex-ministro da Justiça de Jair Bolsonaro — e propagador do bolsonarismo, ideologia neofascista que é a motricidade dos atos criminosas que destruíram o patrimônio da União. O dano ao patrimônio histórico é irremediável. Confiar a segurança da sede da União — e de suas autoridades máximas da República brasileira — à Polícia Militar subordinada a um governador cujo propósito de existência de seu ente federativo é justamente sediar a União foi um infeliz erro de nossa Constituição de 1988 — que entendo ser possível de ser consertado por meio de emenda constitucional, uma vez que a limitação material de proteção à forma federativa não pode ser usado como justificativa plausível para impedir uma reforma que devolva à União o poder de nomeação do chefe do Executivo do Distrito Federal ao presidente da República com a aprovação pelo Senado. Isto não retira a autonomia do Distrito Federal, mas a adequa à sua finalidade na federação brasileira. [1] Defendo esse pondo de vista em artigo escrito em coautoria com o Prof. André Batalha. Conferir em: LIZIERO, Leonam; ALCÂNTARA, André Luiz Batalha. entre a cooperação e a coerção: como os estímulos institucionais enfraqueceram o sistema federativo brasileiro previsto em 1988. Revista de Direito da Cidade, v. 12, nº 1, p. 341-365, 2017. Disponível em https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rdc/article/viewFile/40470/33496 [2] Conferir em LYNCH, Christian Edward Cyril. Questão de urgência – o Rio como (2º) Distrito Federal. Insight Inteligência, n. 76, 2017. [3] Lei nº 3.273, de 1º de outubro de 1957. Seu art. 1º previa: “"Em cumprimento do artigo 4º e seu § 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias será transferida, no dia 21 de abril de 1960, a Capital da União para o novo Distrito Federal já delimitado no planalto central do País". [4] FERREIRA, Ignez Costa Barbosa; PAVIANI, Aldo. As correntes migratórias para o Distrito Federal. Revista Brasileira de Geografia, v. 35, n. 3, p. 133-60, 1973, p. 134. [5] Esta foi uma questão levantada na mensagem do Projeto de Lei nº 622, de 1959, de autoria do deputado Eloy Dutra. Conforme o parlamentar, entre os diversos envolvidos pela transformação do antigo Distrito Federal em estado da Guanabara, estava o do mandato dos Vereadores que foram eleitos em outubro de 1958. Se a transferência ocorreria em 21 de abril de 1960, aqueles vereadores teriam um mandato encurtado, uma vez que seria necessária a convocação uma Constituinte estadual para a Guanabara e, para tanto, a realização prévia de eleições parlamentares com tal finalidade. Em consulta do PSD ao Tribunal Regional Eleitoral em 1957, este decidiu que os vereadores eleitos em 3 de outubro de 1958 teriam um mandato tampão, o que gerou alguma reivindicação por parte destes. Conferir em BRASIL. Projeto de Lei nº 622, de 1957. Diário do Congresso Nacional. Capital Federal, ano XIV, n. 93. 14 de julho de 1959, Seção I, p. 4148. Para tanto, o art. 7º, § 1º da Lei nº 3.752/1960 trouxe expressamente o direito de terminarem o mandato: "Os membros da Assembléia Constituinte e os atuais vereadores integrarão, a partir da promulgação da Constituição e na forma que esta estabelecer, a Assembléia Legislativa do Estado da Guanabara, respeitada a duração dos respectivos mandatos".
2023-01-10T06:15-0300
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Opinião
Vinícius Magalhães: Lealdade federativa e intervenção federal
1. A sociedade assiste atônita, desde a tarde do dia 8 de janeiro de 2023, à grave tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito perpetrada por um grupo terrorista de extrema-direita por meio da prática, em diversos pontos do território nacional, de atos de violência, destruição, sabotagem e obstrução. Representativa desse execrável episódio foi a invasão das sedes dos três Poderes da República em Brasília, na qual foram registradas, em tempo real, atentados à integridade física de policiais e jornalistas que lá trabalhavam, para além de prejuízos inestimáveis a bens integrantes do patrimônio histórico-cultural que se encontravam guardados e expostos nos prédios públicos depredados. Uma das medidas adotadas para fazer frente ao movimento golpista foi a edição, pelo presidente da República, com base no artigo 84, caput, X, e no artigo 34, caput, III, da CF, do Decreto nº 11.337/2023, o qual determina a intervenção federal no Distrito Federal, até 31 de janeiro de 2023, com o objetivo de pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública, limitada à área de segurança pública, conforme o disposto no artigo 117-A da Lei Orgânica do Distrito Federal, sendo que as atribuições que não tiverem relação direta ou indireta com a segurança pública permanecerão sob a titularidade do governador (artigo 1º, caput e §§ 1º e 2º e artigo 3º, §4º, do Decreto). A intervenção federal é um mecanismo estabilizador previsto pelo constituinte para a preservação da existência do Estado, do equilíbrio da ordem federativa, das finanças estaduais e da própria ordem constitucional, consistindo em medida excepcional de levantamento temporário, completo ou setorial, da autonomia de um ente federado. Trata-se de instituto tradicional em nosso Direito, adotado como corolário do princípio federativo desde a primeira Constituição republicana, em 1891, e se mantendo em todas as Constituições posteriores, estando atualmente previsto nos artigos 34 a 36 da CF. Ponto ainda pouco explorado na literatura jurídica brasileira consiste no estabelecimento da relação entre a intervenção federal e a chamada lealdade federativa (Bundestreue) ou princípio da conduta federativa amistosa (Grundsatz des bundesfreundlichen Verhaltens) (item II). Com efeito, no contexto alemão, é corrente a compreensão de que os mecanismos da execução federal (Bundeszwang) e da intervenção federal (Bundesintervention) — em certa medida análogos, mas não idênticos ao modelo de intervenção federal do direito brasileiro —, consistem em corolários ou especificações do princípio mais geral da lealdade federativa. O objetivo destas breves anotações será, portanto, o de aproveitar a contingência do conturbado e lamentável momento político atual para elucidar algumas conexões sistemáticas entre os dois institutos, a partir de aportes do direito constitucional alemão, com o intuito de contribuir para o desenvolvimento da dogmática do Estado federal estabelecido pela Constituição vigente (item III) [1]. 2. A lealdade federativa é o princípio constitucional implícito ou não escrito que impõe aos entes federados o dever de proceder com lealdade nas suas relações recíprocas, buscando o entendimento mútuo na execução de suas tarefas e orientando-se pela coordenação e cooperação [2]. Sua função é vincular os entes federados aos interesses dos demais e ao interesse comum de todos quando do exercício de seus direitos e deveres, com o intuito de proteger e fortalecer o pacto federativo. Sua aplicação deve combater o uso excessivamente egoísta das competências constitucionais e os tensionamentos excessivos que tendam à dissolução da ordem federal global. A fidelidade federal serve como um mecanismo de correção ou de alívio das tensões inerentes ao Estado federal, em complementação aos institutos expressamente previstos na ordem constitucional escrita. Embora implícita, consubstancia o espírito informador das relações interfederativas, dando lugar a uma espécie de ética institucional objetivada, de caráter jurídico e não só político ou moral [3]. Trata-se, portanto, de instrumento que completa o quadro das formas de garantia da unidade e coordenação dos poderes públicos no Estado Federal, preenchendo, com um mandamento geral recíproco de lealdade, os "espaços vazios" no relacionamento entre as distintas esferas de governo, ou seja, aquelas situações concretas não atingidas de forma clara por regramento constitucional ou infraconstitucional [4]. Do ponto de vista da sua abrangência, o princípio da conduta federativa amistosa obriga não só os Estados perante a União como, da mesma forma, a União em face dos estados. Obriga também, naturalmente, os estados nas suas relações entre si. É, portanto, um princípio bilateral, que incide de forma isonômica, em conformidade com a ausência de hierarquia assentada do texto da Lei Fundamental e na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal [5]. Além do mais, costuma-se afirmar que o princípio da lealdade federativa teria um caráter de subsidiariedade na resolução de conflitos, de modo que, se um conflito interfederativo puder ser resolvido pela aplicação de uma norma constitucional explícita suficiente para a resolução do caso, o uso da lealdade federativa seria desnecessário, a menos que, excepcionalmente, possa ser utilizado para corrigir o resultado da aplicação literal do texto constitucional [6]. Ainda, considera-se que a lealdade federativa é dotada de acessoriedade, pressupondo sempre uma relação jurídica previamente estabelecida entre as partes envolvidas, não sendo capaz de ser fonte de relação jurídica autônoma, ou, ainda, de obrigações principais autônomas para os entes federados [7]. Por fim, aponta-se que tal princípio serviria como critério de interpretação [8] dos inúmeros dispositivos que, no direito positivo, explicitam aspectos ou elementos da ideia de lealdade federativa. Dessa maneira, as normas constitucionais, a legislação infraconstitucional e as cláusulas das avenças firmadas entre os entes federados, quando constituírem manifestações da lealdade federativa, devem ser interpretadas à luz deste princípio. As violações ao princípio da lealdade federativa não implicam que seja analisado qualquer elemento subjetivo de deslealdade ou culpa dos agentes incumbidos da representação oficial dos entes federados, ou seja, a apuração de violação à lealdade federativa parte de uma análise objetiva, que independe da aferição de culpa lato sensu [9]. Da lealdade federativa podem ser extraídas tanto obrigações adicionais específicas, de caráter positivo ou negativo, que vão daquelas estatuídas por normas expressas, quanto restrições concretas ao exercício das competências legislativas e materiais distribuídas na Constituição. 3. Como dito, o fundamento da intervenção, quando relacionada à preservação da ordem federativa, repousa no dever geral de fidelidade federal [10]. Cumpre sejam analisadas, assim, ainda que brevemente, as repercussões da lealdade federativa tanto para o ente interventor quanto para aquele que sofre a intervenção. A repercussão mais imediata sobre o ente interventor consiste em autorizar a utilização da intervenção apenas como ultima ratio, no intuito de preservar-se a autonomia dos entes federados [11]. Além do mais, a lealdade federativa impõe que a medida interventiva se submeta a um juízo de proporcionalidade, tanto em relação à verificação dos pressupostos de sua concretização quanto às medidas concretamente determinadas. Nesse sentido é que o Decreto Federal nº 11.337/23, para além de limitar no tempo a duração da intervenção e especificar as medidas que podem ser tomadas durante o período, optou por cingir a sua abrangência apenas à área da segurança pública, com a nomeação de um Interventor especificamente para esse âmbito de atuação, preservando a pessoa e funções do chefe do Executivo local com relação às suas demais competências. Trata-se da repetição de uma tendência que vem sendo adotada no Brasil desde 2018, consistente em privilegiar a ingerência pontual e cirúrgica da União em áreas setorizadas dos estados-membros, sem o afastamento do respectivo governador [12]. Muito embora o texto constitucional não obrigue a nomeação de interventor [13] em toda e qualquer hipótese, é certo que, na práxis constitucional pretérita a 1988, a intervenção ocorria com o afastamento do chefe do Executivo durante seu prazo de vigência, devendo-se reconduzir o mandatário eleito ao cargo quando do término da medida. Se poderia ser justificável, no plano teórico, uma intervenção federal "setorizada", à luz de uma interpretação do artigo 34 da CF que privilegia a lealdade federativa, é de se indagar se, no caso sob análise, a gravidade dos fatos, ações e, principalmente, omissões que deram azo à medida interventiva não demandariam o afastamento do governador de seu cargo durante o prazo da intervenção [14]. E isto até mesmo porque, como dito, a violação à lealdade federativa é analisada de um ponto de vista objetivo, independente da aferição de dolo ou culpa do agente ou de sua eventual posterior responsabilização política, administrativa ou penal. Por outro lado, a lealdade federativa serve como fundamento maior dos deveres que o Estado possui perante a federação e que, uma vez inadimplidos, dão azo à medida excepcional adotada pela União. No direito alemão, alguns entendem que o simples inadimplemento do dever genérico de lealdade federativa seria suficiente a priori para a decretação de uma medida interventiva [15]. Entre nós, dada a redação taxativa dos artigos 34 e 35, o melhor caminho parece ser o de privilegiar a função interpretativa do instituto em relação a cada um dos incisos que expressamente autorizam a intervenção. Assim, o inciso I do artigo 23 da CF estabelece a competência comum dos entes federados de zelar pelas instituições democráticas [16] e conservar o patrimônio público. Se, num primeiro momento, estas competências se referem ao patrimônio e às instituições do próprio ente federado, é certo que, com base no mandamento de lealdade federativa, o dever jurídico insculpido do artigo 23, I, da CF deve ser interpretado no sentido de que os entes também têm o dever de preservar o patrimônio e as instituições dos demais entes federados, mormente no caso dos ataques às sedes dos três Poderes, localizadas em Brasília. Como o artigo 23, I, da CF já estabelece um dever positivo para o Distrito Federal, cumpre-se o critério da acessoriedade acima descrito, de sorte que a lealdade federativa opera aqui como fonte de obrigações acessórias, mais especificamente, obrigações de ajuda e apoio à União [17]. A inação do Distrito Federal em prestar ajuda e apoio à União no caso da insurreição golpista pode ser qualificada, claramente, como uma violação à lealdade federativa e, na medida em que acirra a situação de grave comprometimento à ordem pública verificada, justifica, constitucionalmente, a intervenção federal (artigo 34, III, da CF). E isto porque, uma vez verificada a tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, bem como a destruição do patrimônio público, deveria ter o ente federado prestado, de imediato e à contento, todo o auxílio necessário à União, especialmente o de natureza policial, a fim de preservar-se a ordem democrática, as sedes dos Poderes constituídos e o patrimônio histórico-cultural conspurcado. [1] O princípio da lealdade federativa, sua fundamentação no direito brasileiro, seus critérios de aplicação no exercício da jurisdição constitucional e seus limites são objeto de dissertação de mestrado que estamos atualmente elaborando no âmbito do IDP-Brasília, sob orientação do prof. Ilton Norberto Robl Filho. As anotações contidas no item II foram extraídas de alguns tópicos do primeiro capítulo desta dissertação. [2] Nesse sentido: voto do min. Gilmar Mendes na ADI 6.341/DF MC Ref, rel. p/ acórdão min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, j. em 15/4/2020; ADI nº 5.166/SP, rel. min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, j. em 4/11/2020; ADPF 848 MC-Ref, rel. Min Rosa Weber, Tribunal pleno, j. em 28/6/2021. [3] ROVIRA, Enoch Alberti. Federalismo y cooperación en la Republica Federal Alemana. Madrid: Centro de Estudos Constitucionales, 1986, p. 247. [4] ROVIRA, ob. cit., p. 250. [5] BVerfGE, 12, 205. [6] DEGENHART, Christoph. Staatrecht I - Staatsorganisationsrecht, 2021, p. 199. [7] DEGENHART, ob. cit., p. 201. O caráter acessório da lealdade federativa é contestado em BAUER, Hartmut. Die Bundestreue. Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1992, p. 333. [8] BAUER, Hartmut. Artikel 20 [Verfassungsprinzipien; Widerstandsrecht]. Em: DREIER, Horst (Org). Grundgesetz – Kommentar. Artikel 20-82. 3ª Ed. Tübingen: Mohr Siebeck, 2015, p. 180 [9] BAUER, ob. cit., p. 178-181 [10] Como bem observa Hermann-Wilfried Bayer, uma das antinomias do Estado Federal consiste justamente no fato de a União poder se valer de mecanismos coercitivos contra os Estados para forçar a observância da lealdade federativa, ao passo que aos Estados compete apenas o recurso ao procedimento jurisdicional junto ao Tribunal Constitucional Federal. BAYER, Hermann-Wilfried. Die Bundestreue. Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1961, p. 99. [11] Certamente, a lealdade federativa também atua para reduzir o âmbito de discricionariedade do Presidente no caso de ser a intervenção solicitada por outro ente (art. 34, IV c/c art. 36, I, da CF). [12] LEWANDOWSKI. Enrique Ricardo. Pressupostos materiais e formais da intervenção federal no Brasil. 2ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 169. [13] É cioso dizer que, apesar da equivocada redação do art. 2º, parágrafo único, do Decreto Federal nº 9.288/2018, o cargo de Interventor tem natureza civil, ainda que seja eventualmente ocupado por um militar. E isto porque não existe intervenção militar no Brasil, destinando-se o instituto à manutenção da ordem constitucional, do pacto federativo e das finanças públicas. Nesse sentido: LEWANDOWSKI, ob. cit., p. 161. [14] O afastamento provisório do governador do DF veio a ser determinado, com base em fundamentação jurídica diversa, pelo STF, pelo prazo mais alargado de noventa dias, no âmbito do Inquérito 4.879/DF. [15] BAYER, ob. cit., p. 97-99, o que é, no entanto, discutível. [16] A defesa das instituições democráticas não é competência exclusiva de qualquer órgão estatal. Em especial, não é monopólio corporativista do Ministério Público (art. 128 da CF), o que se conclui a partir de simples leitura do texto constitucional (e.g. arts. 23, I e 134 da CF). [17] BAUER, Hartmut. Die Bundestreue, p. 343-346. Os deveres de ajuda e apoio impõem prestações positivas que obrigam os entes federados em caso de outro ente se encontrar necessitado. Não possuem caráter ilimitado e somente são exigíveis quando realmente necessário e, além disso, quando razoável, ou seja, quando sua prestação não for capaz de tumultuar as finanças do ente prestador.
2023-01-11T11:15-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-11/vinicius-magalhaes-lealdade-federativa-intervencao-federal
academia
Opinião
Ingrid Dantas: Politização do Judiciário e crise democrática
Iniciado o mandato do atual presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, não há dúvidas de que os desafios democráticos — vivenciados na última década e intensificados, sobremaneira, ao longo do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro — ainda se encontram entre os principais eixos de preocupação de gestores públicos, cientistas políticos, pesquisadores e, ouso dizer, de qualquer cidadão comprometido com os valores insculpidos na Constituição de 1988. A interação perniciosa entre o histórico de corrupção das instituições políticas do país, a ascendência de governo populista marcado pela disseminação de fake news e por condutas iliberais e a falta de gestão federal durante a famigerada pandemia produziu um cenário institucional e social de guerra. E, aqui, não cabem eufemismos. O inconformismo com o resultado do pleito eleitoral à Presidência culminou, no dia 8 de janeiro de 2023, em invasão de apoiadores radicais bolsonaristas aos prédios do Congresso Nacional, Planalto e STF. Os rastros de destruição deixados nas instalações dos três Poderes da República explicitam o ambiente hostil vivenciado, em que a alternância no poder e o respeito ao resultado democrático obtido no pleito eleitoral são combatidos com violência e vandalismo em atos antidemocráticos. Sem falar da fome e miséria que afetam mais de 33 milhões de pessoas no país [1]. Sendo esse o pano de fundo da presente análise, o seu objetivo não é discorrer sobre o que já foi dito — sem prejuízo do relevante papel de dizer o óbvio, sobretudo quando parece haver cegueira generalizada —, mas olhar para a participação, na crise democrática brasileira, do Poder Judiciário. Este, com ênfase no Supremo Tribunal Federal (STF), foi alvo de reiterados ataques desde 2018, respirando aliviado, no momento, com o desvio de atenção para a nova conjuntura política. É circunstancial. Basta uma nova decisão que afete interesse de um ou outro grupo político e seus apoiadores para que novamente a corte e seus ministros estejam na mira das críticas e da opinião popular que, no tribunal das redes, não hesita em condenar. Bravejam acusações de parcialidade, apadrinhamento e perseguição política, em clara expressão do descrédito institucional que atingiu também o judiciário. Aos que se dedicam a pesquisas relacionadas à teoria constitucional e à ciência política, não é surpresa dizer que juízes, de forma geral, são substantivamente impactados em suas decisões por questões alheias ao direito. A afirmação, no entanto, vai de encontro ao ideário popular relacionado ao mito da imparcialidade, em que juízes decidem de forma objetiva e desapaixonada. São diversas as produções acadêmicas nacionais e internacionais que analisam o processo de formação da decisão judicial, direcionando seus trabalhos a responder variações da pergunta: "o que, de fato, determina a decisão judicial?" [2]. As respostas perpassam tanto questões externas ao julgador, como a opinião pública, a mídia e pressões político-institucionais, abordadas pelo constitucionalismo popular; quanto aspectos internos ao magistrado, com ênfase em sua ideologia política, analisados pelo modelo atitudinal. Se academicamente há relativo consenso quanto à dita influência para além do Direito, a constatação factual de um agir político nas decisões judiciais provocou (e ainda provoca) revolta e descrédito popular em relação ao Poder Judiciário brasileiro. Assistimos paulatinamente à derrocada do que Conrado Hübner Mendes (2011, p. 58) denominou de retórica do "guardião entrincheirado", aquela ideia incutida no inconsciente coletivo de um magistrado herói, de capa preta, responsável por salvar a nação da política e de suas distorções. São vários os exemplos que explicitam a influência da política no âmbito do STF. Para fins deste artigo, foram escolhidos dois paradigmas decisórios, cada qual favorecendo um lado da polarização brasileira. Em ordem cronológica, lembremos do julgamento do Habeas Corpus 152.752/PR, que resultou na prisão de Lula, em 2018. O HC atacava decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que aplicou o entendimento firmado pelo STF em 2016 quanto à possibilidade da execução provisória da pena (HC 129.292/SP). A matéria de fundo que envolvia o remédio constitucional, notadamente a ofensa à presunção de inocência (artigo 5º, LVII da CR88) pela execução de sentença antes do trânsito em julgado, era igualmente objeto de duas ações de controle de constitucionalidade, as ADCs 43 e 44. Pois bem, a então presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, detendo o poder da pauta no âmbito do Plenário da corte, pautou o julgamento apenas do HC, o qual, como cediço, possui caráter subjetivo e escopo reduzido, limitado à verificação de abuso de poder ou manifesta ilegalidade no ato impugnado. Para deixar claro: caso optasse pela pauta das citadas ADCs, a matéria quanto à possibilidade de execução provisória da pena seria resolvida com efeitos vinculantes e erga omnes (para todos), inclusive, quanto ao objeto do HC, o que, diante da incerteza da posição de mérito a ser firmada pelo Tribunal, representava ameaça quanto a uma eventual candidatura de Lula. E isto, naquela época, não era admitido. Não diante dos intensos clamores sociais por uma resposta à impunidade de esquemas de corrupção que supostamente envolviam Lula e integrantes do seu governo. O resultado do julgamento foi a denegação da ordem, com voto de minerva da ministra Rosa Weber, que invocou o princípio da colegialidade para sustentar que o entendimento até então majoritário quanto à execução provisória da pena apenas poderia ser revisto nas ações constitucionais. Manobra bem sucedida de Cármen Lúcia, Lula estava fora das eleições de 2018. No outro lado do espectro político, são recentes e igualmente emblemáticos os entrechoques ocorridos entre a cúpula do Poder Judiciário e o ex-chefe do Poder Executivo do país. Na verdade, a relação conflituosa entre o STF e o ex-presidente Jair Bolsonaro foi marcante durante o mandato deste. Um dos episódios de maior tensão ocorreu no dia 4 de agosto de 2021, quando o ministro Alexandre de Moraes incluiu Bolsonaro na lista de investigados do inquérito das fake news (Inq 4.781/DF). A decisão ocorreu após notícia-crime encaminhada pelo TSE e se baseou na necessidade de apurar supostos crimes praticados pelo ex-presidente em detrimento do sistema eleitoral, das instituições e do Estado Democrático de Direito. Como esperado, ampliou-se o conflito entre o Executivo e o Judiciário. Para além de novas ameaças de Bolsonaro, que incluíam combater o decisório "fora das quatro linhas da Constituição", o ministro Luiz Fux, então presidente do STF, igualmente elevou o tom em defesa institucional da corte, encerrando, naquela oportunidade, qualquer tentativa de diálogo entre os Poderes. Mais ruptura e polarização — dentro e fora das instituições. Ainda que de forma breve, o que se pretende demonstrar ao invocar tais exemplos é que a politização do Judiciário não é uma novidade ou, ainda, exclusividade de um governo. Não o é no Brasil e, também, em outras democracias constitucionais, como evidenciado por SEGAL e SPAETH (2002) em análise da Suprema Corte norte-americana. Mais do que isso, a existência de abertura da corte a influências além do Direito, dentre elas a política, a cultura e valores sociais relevantes de cada tempo é necessária para fins de legitimação democrática de suas decisões (POST; SIEGEL, 2004, p. 1.038). Reconhecer o necessário diálogo do Judiciário com a política não representa ameaça, mas, justamente, garantia do princípio democrático que fundamenta o Estado brasileiro. Neste, as instituições devem permitir aos cidadãos se envolverem no processo de criação e interpretação do direito; do contrário, carecerão de legitimidade (DANTAS; FERNANDES, 2019). Influência, no entanto, não significa identificação com os desejos e paixões circunstanciais do povo. Os tribunais não devem se converter em uma instituição representativa como é o Legislativo. Por outro lado, devem compreender que a Constituição tem uma importante dimensão política, que deve estar refletida na decisão. O que atesta a crise democrática brasileira não é, então, a existência de politização do Judiciário, mas o seu limite. Esta, entretanto, é matéria para outra ocasião. Pelo dia, sobrevive a nossa democracia.   Referências bibliográficas DANTAS, Ingrid; FERNANDES, Bernardo. Constitucionalismo democrático: entre as teorias populares do constitucionalismo e um novo aporte do papel das cortes na democracia. In: Revista de Direito UFPR, v. 64, p. 61-88, 2019. FRIEDMAN, Barry. The politics of judicial review. In: Texas Law Review, vol. 84, nº 2, 2005. Disponível em http://ssrn.com/abstract=877328. Acesso em: 17 de outubro de 2022. MENDES, Conrado Hübner. Controle de constitucionalidade e democracia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. MOUNK, Yascha. O povo contra a democracia: por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. Tradução Cássio de Arantes Leite, Débora Landsberg. 1ª ed. São Paulo: Companhia de Letras, 2019. POST, Robert; SIEGEL, Reva. Roe rage: democratic constitutionalism and backlash. Harvard Civil-Rights Civil-Liberties Law Review, 2007. p. 373-433. Disponível em: http://digitalcommons.law.yale.edu/fss_papers/169. Acesso em 17 de outubro de 2016. SEGAL, Jeffrey A.; SPAETH, Harold J. The Supreme Court and the attitudinal model revisited. Cambridge University Press, 2002. [1] Informações constantes do II VIGISAN Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2022/10/14/olheestados-diagramacao-v4-r01-1-14-09-2022.pdf. [2] Ou seja, em uma inversão do paradigma teórico normativo que busca responder à questão: "como se deve julgar?". E, que, para parte da doutrina serve tão apenas para confortar o desejo acadêmico por uma justificativa racional da decisão. Aqui, cita-se SEGAL; SPAETH (2005, p. 53); FRIEDMAN (2005, p. 258); POST; SIEGEL (2007. p. 385).
2023-01-11T09:15-0300
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Retrospectiva 2022
Franca e Soares: Direito da Arte e a retomada dos grandes eventos
O ano que marcou os 80 anos de Milton Nascimento, Gilberto Gil e Caetano Veloso assinalou também o centenário da Semana de Arte Moderna, o bicentenário da Independência e a retomada dos grandes eventos culturais presenciais, interrompidos desde 2020, por conta da Covid-19. Nas comemorações, chamaram atenção o controverso traslado provisório do coração de Dom Pedro 1º e a reinauguração do Museu do Ipiranga, o projeto mais caro da história da Lei Rouanet, orçado em quase R$ 87 milhões, um presente para a sociedade brasileira, pela suas ricas curadoria e arquitetura. Neste ano de retomada, a beleza da loucura criativa ganhou destaque com a mostra de Arthur Bispo do Rosário no Itaú Cultural em São Paulo, com obras emblemáticas do artista sergipano que passou 50 anos internado na Colônia Juliano Moreira, e com a exposição itinerante Nise da Silveira - A Revolução pelo Afeto, no CCBB, sobre a psiquiatra brasileira que foi aluna de Freud e criou um método clínico centrado no afeto. Sob a ótica da memória coletiva, houve ainda uma outra importante homenagem a Nise da Silveira: a inscrição de seu nome no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. No exterior, puderam-se realizar as duas mais importantes mostras de arte do planeta: a Bienal de Veneza, cuja 59ª edição havia sido postergada em um ano; e a 15ª edição da Documenta de Kassel. A Bienal de Veneza contou com cinco brasileiros nesta edição, o maior número desde 2005. A mostra terminou com um anúncio animador: a próxima edição do evento, em 2024, terá pela primeira vez um latino-americano como curador-geral, o diretor artístico do Masp, Adriano Pedrosa. Trata-se de mais um sinal da relevância, no panorama artístico internacional, que o Brasil vem alcançando, quer como país-fonte quer como país-destino de bens culturais. A Documenta de 2022 contou com a participação da artista brasileira Graziela Kunsch, cujas obras frequentemente lidam com o tema do acesso à arte e do direito à cultura. Este ano, Graziela instalou, numa sala do Museu Fridericianum, o principal pavilhão da Documenta, a obra Public Daycare, uma creche inspirada na pedagogia da pediatra húngara Emmi Pikler. Graziela partiu de sua experiência dos primeiros meses como mãe e, ao inserir sua filha, ainda bebê, no cenário artístico, convidou o público, especialmente mães, a experimentarem a instalação. O reconhecimento das tarefas domésticas como trabalho (inclusive no âmbito jurídico) e a economia do cuidado, temas tão relevantes na busca da igualdade entre gêneros, são iluminados por Graziela Kunsch. A Documenta 15 também lembrou que acertos de contas com o passado nunca são lineares e vêm sempre repletos de paradoxos e incoerências. A polêmica em torno do mural People's Justice, do coletivo indonésio Taring Padi, causou constrangimento à organização da exposição e resultou na renúncia da diretora da mostra. O mural retratava uma figura soldadesca de aparência suína, com um lenço com a estrela de Davi e um capacete escrito "Mossad". Outra figura tinha os cachos laterais (peiot) cultivados por judeus ortodoxos, presas animalescas e um chapéu rabínico com uma insígnia da SS nazista. O trabalho foi retirado da Documenta depois que a embaixada israelense e representantes dos judeus alemães exigiram sua remoção. Os limites da expressão de liberdade artística de comediantes também foram questionados, desta vez a tapas, na edição do Oscar de 2022. O bofete foi dado por Will Smith no rosto do comediante Chris Rock, numa reação violenta por fazer uma piada sobre sua esposa, Jada Pinkett, que sofre de alopecia, uma doença autoimune. A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood baniu Will Smith do Oscar e de todos os eventos da Academia de Hollywood por dez anos. Sem participar da categoria Melhor Filme Internacional na premiação do Oscar de 2022, o Brasil centrou sua torcida no carioca Pedro Kos, que concorreu pela codireção do documentário Onde Eu Moro (2021), sobre o direito à moradia. Outros bons sinais sobre o prestígio internacional do Brasil nas artes foram divulgados ao longo do ano, como a indicação do advogado carioca Paulo Vieira como o primeiro não-europeu a assumir a presidência do Conselho Internacional da Tate, instituição inglesa que administra, em Londres, os museus Tate Britain e Tate Modern. E não foi só isso: segundo dados do banco suíço UBS, no último ano, nós exportamos USD 200 milhões em obras de arte. Além disso, o país tem consumido mais e mais bens culturais, de modo que nossos colecionadores apareceram pela primeira vez, em 2022, entre os atores globais de alta relevância. Nossas grandes coleções privadas só perdem para as francesas em números de obras (69 x 62, em média). Mas nem tudo foi flores na arena artística brasileira: o Masp foi acusado de vetar um conjunto de fotos do Movimento Sem Terra. Depois de muita polêmica e do constrangimento do pedido de demissão de sua primeira curadora indígena, Sandra Benites, as fotografias acabaram incluídas na exposição Histórias Brasileiras, em celebração ao Bicentenário da Independência. Outra notícia negativa foi a crítica do artista Maxwell Alexandre contra Inhotim, pedindo a remoção de sua obra, da série Novo Poder, da exposição temporária Quilombo: Vida, Problemas e Aspirações do Negro. O artista questionou a falta de pessoas negras na equipe do museu e a inexistência de um pavilhão para um artista negro. Se a ausência de artistas negros é um exemplo de racismo estrutural, houve iniciativas por aqui e no exterior que tentaram mitigar essa questão. Uma estátua em homenagem à escritora Carolina Maria de Jesus foi inaugurada, em julho, em São Paulo (SP). A escravidão no Brasil também foi lembrada pela 1ª exposição dos achados arqueológicos do Cais do Valongo no Rio de Janeiro, no Museu da História e da Cultura Afro-Brasileira (Muhcab). Em janeiro, o rei da Holanda anunciou a aposentadoria da carruagem dourada da realeza, veículo utilizado em cerimônias oficiais desde 1901. Na lateral da carruagem, havia um painel com a imagem de homens negros ajoelhados diante de seus senhores brancos e de crianças brancas supostamente civilizadas que doavam livros a crianças negras. Em dezembro, a Unesco divulgou a retirada da festa belga Ducasse d'Ath da lista de Patrimônio Imaterial da Humanidade, após queixas de racismo, já que o ponto alto da festividade é uma procissão que tem como protagonista uma imagem de um homem pintado de negro acorrentado, chamado de o Selvagem, que assusta as crianças ou "dá sorte". A retomada trouxe também um risco adicional ao patrimônio cultural: que obras de grandes mestres como Leonardo da Vinci, Van Gogh, Claude Monet e Sandro Botticelli virassem alvo de protestos de ativistas climáticos. Assustados, diretores de 92 instituições como o Louvre, o Prado e o MoMA divulgaram um comunicado alertando que os ataques a obras. Ainda no campo da museologia, em dezembro, o Papa Francisco anunciou a decisão unilateral do Vaticano de devolver à Grécia três esculturas que integravam o Partenon, na Acrópole. O debate sobre a devolução de bens culturais ganhou outro importante argumento nos últimos dias do ano, quando o British Museum sinalizou que pretende emprestar a longo prazo a Atenas os famosos mármores que compõem o conjunto escultórico que ficou conhecido como Mármores de Elgin. As peças estavam em Londres desde 1806. Segundo a atual legislação britânica, museus não podem se desfazer de obras de seus acervos. Essa é a justificativa para o empréstimo a longo prazo. Todavia, o Charities Act 2022, que deve entrar em vigor no segundo semestre, permite que instituições de caridade — incluindo museus — descartem objetos quando houver uma obrigação moral imperiosa de fazê-lo. Ainda sobre instituições museológicas, em agosto, o Conselho Internacional de Museus (Icom) divulgou uma nova definição de "museu" que, pela primeira vez, abrigou termos como "inclusão", "acessibilidade", "sustentabilidade" e "ética". Realmente, por vezes a ética é um problema na gestão de coleções. Em agosto, uma grande operação policial levou à prisão de Sabine Boghici, filha do marchand e colecionador Jean Boghici (1928-2015), acusada de roubar da mãe de 82 anos. A polícia descobriu 16 obras de arte roubadas, avaliadas em R$ 720 milhões, incluindo Sol poente e O sono, de Tarsila do Amaral. A política também descobriu que dois outros quadros, adquiridos em 2021 por Eduardo Costantini, fundador do Museu de Arte Latino-Americano de Buenos Aires (Malba), haviam sido roubados por Sabine Boghici da coleção dos pais e já estavam fora do país. Para tentar impedir que fatos assim se repitam, um grupo de colecionadores de arte contemporânea redigiu e publicou, em fevereiro, um código de conduta, a primeira experiência, segundo a professora Alessandra Donati, de um código deontológico para colecionadores de arte contemporânea, com o ambicioso objetivo de estabelecer um colecionismo ético e responsável, melhorando as relações entre colecionadores e os diversos protagonistas do mercado de arte contemporânea. A repressão cultural derivada da exigência de certas vestimentas foi um marco em 2022, em decorrência da onda de protestos após a morte de Mahsa Amini, vista viva pela última vez quando detida pela polícia da moralidade de Teerã por violar as regras suntuárias do país, que exigem que as mulheres cubram os cabelos com um hijab, um lenço de cabeça. Esses protestos chegaram a outros países. Na internet, foi bastante simbólica a divulgação de vídeo com mais de 50 artistas, no qual, ao som de Bella Ciao, Juliette Binoche e dezenas de personalidades usam o termo "por liberdade" como palavra de ordem para dar início ao corte de mechas de seu cabelo. Outro evento triste de 2022, que ainda perdura neste janeiro de 2023, é a Guerra na Ucrânia. O ataque violento da Rússia causou danos, alguns irreversíveis, aos valores e bens culturais, essenciais para viver com dignidade. A Unesco divulgou que, até dezembro de 2022, foram constatados danos em 231 lugares de valor cultural. 2022 foi o ano da 27ª edição da COP, cúpula da ONU sobre Mudanças do Clima, realizada em Sharm El Sheikh, Egito. A ligação entre o desequilíbrio ambiental e os impactos nos direitos e bens culturais tem merecido atenção da Unesco, da ONU, de países cujos seus patrimônios estão em maior risco e de instituições culturais. O enorme patrimônio cultural costeiro do Brasil, que inclui igrejas, fortificações militares, além de modos de fazer embarcações, habitações e alimentos, corre sério risco com a elevação do nível dos oceanos. No âmbito do Executivo federal, um passo importante foi a estruturação, na Polícia Federal, do Projeto G.O.I.A. (Guarda, Observação, Investigação e Análise de Bens Culturais e Obras de Arte), dedicado à fiscalização e gestão do patrimônio histórico e cultural nacional e ao auxílio nas demandas voltadas a apreensões de bens culturais e destinação das peças apreendidas. O projeto também pretende capacitar peritos para a análise de obras de arte e bens culturais, além de prever a criação de uma rede formada pela PF, por universidades e museus para a troca de informações. No âmbito do Judiciário, o STF manteve a decisão da ministra Cármen Lúcia de suspender uma medida provisória assinada pelo ex-presidente Bolsonaro que adiava pagamentos ao setor cultural, previstos nas leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc. Na decisão, a Cármen Lúcia argumentou que "cultura compõe o núcleo essencial da dignidade humana, princípio central do direito contemporâneo". Com raciocínio semelhante, o comitê de direito internacional do patrimônio cultural da International Law Association (ILA), depois de divulgar um detalhado relatório sobre a participação popular nas decisões sobre o patrimônio cultural, aprovou uma resolução em que exorta Estados e organizações internacionais a ampliarem a transparência e a participação popular quando da definição de políticas culturais. Por fim, quando a Convenção sobre o Patrimônio Natural e Cultural da Humanidade da Unesco, de 1972, acaba de completar 50 anos, o país começou a discutir a necessidade de uma legislação própria, única e mais eficaz para a proteção do seu patrimônio cultural e o combate à falsificação de obras de arte, à semelhança do fez a Itália, no início do ano. O debate sobre um novo marco regulatório federal tem chance de se fortalecer em 2023 com a recriação do Ministério da Cultura, instalado em 01 de janeiro com um orçamento recorde de cerca de R$ 10 bilhões e com as melhores expectativas para promoção e difusão dos saberes, das artes e da memória coletiva, numa perspectiva diversa e inclusiva, baseada na dignidade da pessoa humana. Os atos bárbaros praticados em Brasília, no último 8 de janeiro de 2023, contra o patrimônio cultural brasileiro indicam não apenas a intrínseca relação entre democracia e cultura, mas sobretudo a necessidade de normas e ações que, além de punir com rigor os responsáveis, também previnam efetivamente os danos, protejam os bens culturais e garantam o acesso e fruição transgeracional. A esperança está cravada na arena cultural brasileira de 2023, pois, como canta Milton Nascimento, "quem traz na pele essa marca possui a estranha mania de ter fé na vida".
2023-01-12T21:37-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-12/franca-soares-direito-arte-retomada-grandes-eventos
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Opinião
Luis Saavedra: O ataque às instituições e ao Estado de Direito
Para muitos, o prognóstico dos acontecimentos de domingo já era anunciado. Radicais e extremistas, derrotados nas urnas em 2022, insuflaram parcela da população a aderir a uma narrativa golpista em face das instituições de Estado, enquanto fruem do "american way of life" — inclusive o próprio ex-presidente. É consenso na comunidade jurídica, sobretudo na especializada, a veemente reprovação dos atos de vandalismo realizados na capital federal. Os atentados vistos merecem total repúdio, e em hipótese alguma podem ser classificados como livre manifestação. Há, notadamente, distinção entre manifestar descontentamento com o governo da pura e simples balbúrdia, ainda mais quando aglutinada com discursos golpistas de abolição do Estado de Direito. E frise-se, não se trata de fazer a defesa de um governo ou de um político em específico, trata-se exclusivamente de defender as instituições de Estado — a duras penas construídas —, posto que são a última trincheira para salvaguarda contra a barbárie. As medidas ainda brandas do governo federal, ao exarar o decreto para a intervenção federal no DF, podem vir a ser superadas em caso de os golpistas tornarem a cena do crime. As palavras são duras, mas não existe designação distinta no vernáculo para caracterização de ações dessa natureza. O decreto presidencial para intervenção federal, calcado nos artigos 84, caput, inciso X, e artigo 34, inciso III, ambos da CF/88, enuncia o objetivo de "pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública". Nessa linha, as medidas mais incisivas e passíveis de serem tomadas, a depender da continuidade da truculência dos supostos "manifestantes", são: primeiramente, a tão afamada entre os apoiadores do ex-presidente derrotado nas urnas em 2022, que é a Garantia da Lei e da Ordem [1] (GLO). Realizada exclusivamente por ordem do presidente da República, só ocorre nos casos em que há o esgotamento das forças tradicionais de segurança pública, em graves situações de perturbação da ordem. Esse instrumento concede aos militares, em caráter provisório, a faculdade de atuar com poder de polícia até o restabelecimento da normalidade. Nessas ações, as Forças Armadas agem de forma episódica, em área restrita e por tempo limitado, com o objetivo de preservar a ordem pública, a integridade da população e garantir o funcionamento regular das instituições. A decisão sobre o emprego excepcional das tropas é feita pelo presidente, seja por motivação ou não dos governadores ou dos presidentes dos demais Poderes. Em sequência, a legislação recepciona ainda o Estado de Defesa [2], que possibilita ao presidente, após ouvir os Conselho da República e de Defesa Nacional, decretá-lo para preservação ou pronto restabelecimento, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza. E, por fim, a mais drástica medida prevista para a defesa das instituições democráticas, o Estado de Sítio [3], que faculta ao presidente, também após ouvir os Conselhos da República e de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso — que decidirá por maioria absoluta — a autorização para a decretação, nos casos de: 1) comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa; ou 2) declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira. Muito do discurso golpista, falsamente trajado de patriotismo, vem de uma real insatisfação da população com o próprio Poder Judiciário. Pois bem, este um Poder essencialmente contramajoritário. Ou seja, age estritamente nos termos da lei, de forma inerte, pois só age se requisitado, e com a devida equidistância para o julgamento imparcial das partes envolvidas no litígio. Questiono, há necessidade de que uma instituição dessa natureza agrade a opinião leiga da maioria da população? A resposta cabalmente é não. Nunca foi e nunca esteve em pauta que as decisões técnicas do Poder Judiciário agradem parcela da coletividade. Sequer é essa a sua missão constitucional. O que por outro lado, evidentemente não impede que se critique ou proteste, de forma ordeira e dentro da legalidade, as decisões e os seus julgadores. Isso são os conceitos básicos do "rule of law" e do "judicial review", que são sinônimos de civilização. Essa é a missão precípua do Poder Judiciário, sobretudo dos tribunais constitucionais, que dizem o Direito em última instância, gostemos ou não da decisão. Em tempos sombrios como estes, o STF e o TSE foram fiadores da estabilidade democrática. Contudo, para muitos, pode surgir neste momento a indagação sobre a compatibilidade entre o controle de constitucionalidade exercido pelo Poder Judiciário e o regime democrático em si: como um magistrado não eleito pode impedir a vontade da representação nacional eleita pelo sufrágio democrático? Há legitimidade do juiz constitucional? Nesse sentido, duas são as teorias mais aceitas na doutrina constitucionalista. A primeira, a visão positivista, capitaneada por Hans Kelsen, e a segunda, a ótica jusnaturalista, proposta por Carl Schmitt. Na primeira, segundo o pensamento de Georges Vedel [4], o juiz constitucional não é incompatível com a democracia, pois não há outro que guarde o direito positivo — aquele imposto pelos homens em uma sociedade. Para Charles Eisenmann [5] — normativista e aluno de Kelsen —, mesmo não sendo eleito, o juiz constitucional não traz prejuízo à democracia, pois, o juiz constitucional exerce o controle processual, e não um controle de fontes. E ainda, o juiz possui um poder constituído — por óbvio, a ele concedido — e não um Poder Constituinte, sendo assim, não possui a última palavra em uma democracia, esta caberá ao Poder Constituinte, que promove a investidura no cargo de magistrado para que se exerça a judicatura. Nos dizeres do professor Alexandre Alain René Viala, na cadeira de "Controle de constitucionalidade no Direito Comparado", no curso de especialização em Direito Constitucional da ABDConst: "O Direito é produto da vontade, e submisso à arbitrariedade do poder público, sob a condição de que o processo seja respeitado e que a hierarquia de competências seja observada. Não há nada de essencialista no Direito, tudo é relativo e submisso à vontade do soberano". Em contraponto à segunda teoria, balizada pelo pensamento de Carl Schmitt, o pensamento de Eisenmann conduz à banalização do Poder Constituinte, pois permite — mediante maioria qualificada — a revisão e transgressão de princípios fundamentais. Nesse sentido, para Schmitt, oposicionista de Kelsen, a Constituição não seria uma norma como as outras [6]. A sua teoria, datada de 1928, diz que a Constituição é produto de uma decisão, e portanto, não é mera norma banal. Carl Schmitt era decisionista, o que significa dizer que, para ele, o fundamento do Direito não são as normas em si, mas a decisão do soberano [7]. Justifica a legitimidade do juiz constitucional para ser uma "fechadura". A hipótese de anular determinada lei, não representa perigo à democracia, vez que apenas encara o espírito da Constituição. O traduz como um oráculo, pois não emite vontade, apenas aplica o Direito Natural, aquele gravado no mármore da Constituição. Portanto, como emitem conhecimento e não vontade, os juízes constitucionais não podem ser considerados um Poder. E se não o são, não podem atentar contra a democracia. Nesse caso, a resposta trazida é a mesma da teoria positivista, de que o juiz constitucional não representa em si um atentado à democracia. Mas, sob o argumento distinto de que o juiz não guarda o direito positivo, o chamado por Eisenmann de "controlador do tráfego", mas sim a "fechadura" ou o "oráculo", pois mostra ao legislador ordinário o que é inderrogável. Se contenta em conhecer o que é sagrado, logo, não é um Poder e tampouco um perigo à democracia - mesmo que não lhe seja concedido mandato eletivo por meio do sufrágio democrático. Feita a breve conceituação teórica, voltemos aos fatos do último domingo. De um lado temos aqueles que destruíram parte da história da nação, destruíram patrimônios públicos tombados da capital federal, enquanto brincavam de revolucionários. A lista de destruição de símbolos nacionais é extensa, mas algumas merecem destaque, como: a pichação da escultura A Justiça, de Alfredo Ceschiatti, na praça dos três poderes; o furto de um dos únicos exemplares originais da CF de 1988; a destruição de obras de Di Cavalcanti e Athos Bulcão; os bustos de Ruy Barbosa e Joaquim Nabuco deixados aos pedaços, e a destruição da pintura de José Bonifácio — respectivamente, o maior jurista da história da República e duas enormes figuras, uma para a abolição da escravatura e a outra para a Independência do Brasil. Sim, de um lado temos o golpismo e a barbárie. Do outro, temos a civilidade, aqueles que têm como ponto comum, a liberdade para dialogar, se expressar e divergir, sem castrações ideológicas, mas com responsabilidade. Isso é democracia. Os cacos do reacionarismo, ainda estão em Brasília. Aos que se jactam por serem favoráveis às bandeiras do liberalismo e do conservadorismo, o façam por meio de uma oposição propositiva e responsável, para que se vença (e se convença) através das ideias e não da violência e da instituição das armas. Nessa linha, na reunião de urgência ocorrida entre o presidente, seus ministros de Estado, parlamentares, ministros do STF e governadores, a fala escorreita do ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, traduz a sensação de restauração da legalidade. Citou a semelhança da situação com uma avenida, em que uns podem transitar mais à direita e outros mais à esquerda, porém todos devem cumprir as mesmas regras de trânsito, transitem por onde transitarem. Outro ponto que merece destaque, é o de que as Forças Armadas brasileiras não sucumbiram ao canto das sereias, e não embarcaram na narrativa golpista. Em um momento de crise como este, o fato de as forças armadas sequer estarem sendo citadas, é preciso também reconhecer mérito na atuação do ministro da Defesa. Em uma normalidade democrática, não se estar falando de Forças Armadas — principalmente para quem viveu durante 21 anos sob as botas de uma ditadura militar como o Brasil —, significa estarmos vivendo uma possibilidade de Estado Democrático de Direito. Na mesma oportunidade, o ministro da Justiça terminou a fala dizendo "o melhor modo de enfrentamento do ódio e do terrorismo, é a calma, a ponderação, a serenidade e a união nacional. Não se combate extremismo com outro extremismo, se combate extremismo com contraste, sendo diferente dele." Após o findar da reunião, o Brasil se debruçou sobre a cena icônica do presidente eleito, chefe de Estado e de governo, juntamente com os representantes da Suprema Corte e o procurador-geral da República, representantes das duas casas legislativas do Congresso Nacional, líderes partidários, Governadores ou seus representantes, de todas as 27 unidades da federação, indo juntos pela praça dos três poderes, ao prédio destruído do Supremo Tribunal Federal, traduzindo a fala do que tanto era caro a Ulysses Guimarães: "A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo. A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério. Quando após tantos anos de lutas e sacrifícios promulgamos o Estatuto do Homem da Liberdade e da Democracia bradamos por imposição de sua honra. Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. [...] Foi a sociedade mobilizada nos colossais comícios das Diretas Já que pela transição e pela mudança derrotou o Estado usurpador. Termino com as palavras com que comecei esta fala. A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança. Que a promulgação seja o nosso grito. Mudar para vencer. Muda Brasil." Diante disso, os que choraram com o episódio, tiveram consigo a razão. E quem não chorou com os olhos, e é democrata, certamente, chorou com a alma. Tristemente, o cenário não acomete apenas o Brasil, pois o extremismo hoje é um mal que assola o mundo. Por aqui, a porteira do fascismo foi aberta à luz do dia. Primeiramente, com o questionamento da democracia, através do pedido de recontagem dos votos nas eleições presidenciais de 2014, em que os derrotados não aceitaram o resultado eleitoral. Culminando no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016, por pura e simples represália do ex-presidente da Câmara dos Deputados. Não bastando, o cenário foi majorado com ondas de fake news, que permearam tanto as eleições de 2018 quanto as de 2022. Nesta última, somada ainda, a mais uma contestação do resultado das urnas, estranhamente, apenas no plano do executivo nacional, sem questionar os resultados de governadores, senadores e deputados. Assim, gestando o inflamado discurso de descrença nas instituições, negação da política e desrespeito a voz da maioria. Conforme iniciei, os atos parodiando a invasão do Capitólio em 2021, eram mais que previsíveis, eram anunciados. Por logo, exige-se a responsabilização não apenas no âmbito criminal, mas também no âmbito cível, para a reparação dos danos ao patrimônio público e a memória nacional. No momento em que escrevo, ainda não se sabe de forma delimitada se houveram mandantes que patrocinaram os eventos, se foram ataques devidamente orquestrados, se houve omissão por parte das forças de segurança pública e do governador do Distrito Federal — já afastado por decisão do ministro Alexandre de Moraes. Neste ponto, se impõe que aguardemos as investigações antes de tecer mais comentários. Mesmo com o saldo extremamente negativo e com a escalada do autoritarismo no Brasil, arrisco dizer que a democracia sai fortalecida. Foi um tiro no próprio pé dos golpistas, isso porque demonstrou a união e a crença nas instituições nacionais, aglutinando forças entre o Executivo, Legislativo e Judiciário, na defesa uníssona e inegociável do Estado Democrático de Direito. [1] Art. 142, da Constituição Federal, Lei Complementar 97, de 1999, e Decreto 3897, de 2001. [2] Art. 136, da Constituição Federal. [3] Art. 137, da Constituição Federal. [4] (LOPES, Ana Maria D’Ávila. Bloco de constitucionalidade e princípios constitucionais: desafios do poder judiciário. Revista Seqüência, no 59, p. 43-60, dez. 2009). Georges Vedel, que afirmou que o juiz constitucional deveria apoiar-se somente nas disposições contidas expressamente nos citados textos constitucionais, e não em conceitos vagos. [5] (TAVARES, André Ramos. Justiça Constitucional e suas fundamentais funções. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 43 n. 171 jul./set. 2006). O Tribunal Constitucional, em realidade, mais do que aplicar, acaba por completar a Constituição, como concluiu Eisenmann (1986, p. 216). O grande perigo, nessa atuação dos tribunais constitucionais, encontra-se no assenhoreamento da Constituição e de seu significado. [6] (SCHMITT, 1996, p. 93-94). O poder constituinte origina uma Constituição que é dada ao Estado e à sociedade. Esse processo de produção de uma Constituição decorre de uma vontade política cuja força ou autoridade é capaz de adotar a concreta decisão de conjunto sobre modo e forma da própria existência política, determinando assim a existência da unidade política como um todo. [7] Carl Schmitt sustenta que o poder constituinte é poder político "existencial: soberano é quem, de fato, toma a decisão soberana" (SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: Teoria, histórias e método de trabalho. 1. ed. Belo Horizonte: Fórum Editora, 2012, p. 295).
2023-01-12T16:16-0300
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Opinião
Rocha e Lima: A necessária defesa do regime democrático
O artigo inaugural da Constituição de 1988 define a República Federativa do Brasil com um Estado Democrático de Direito, em que União, estados, Distrito Federal e municípios, além de formarem uma união indissolúvel, têm competência comum de zelar pela guarda das instituições democráticas (artigo 23, I). Demais Poderes e órgãos públicos devem se comprometer com o Estado Democrático de Direito, ficando responsáveis os partidos políticos pela mesma democracia, conforme o artigo 17. Eis a origem dos membros do Legislativo, que são responsáveis por resguardar o regime democrático, juntamente com a guarda da Constituição pelo Supremo Tribunal Federal. A Constituição desenhou, ainda, um complexo orgânico na "Organização dos Poderes" (Título IV), formado pelas instituições protagonistas do sistema de acesso à Justiça: Defensoria Pública, Ministério Público e advocacia pública e advocacia privada. Tais instituições foram inscritas topicamente em capítulo próprio, fora dos demais, que preveem os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e devem guardar em suas missões o valor máximo da defesa do regime democrático. De forma explícita, a Constituição incumbe ao Ministério Público a defesa do regime democrático e à Defensoria Pública o ser expressão e instrumento do regime democrático. Também a Constituição revela que a Advocacia-Geral da União é a instituição que representa a União, e, em sendo a esta incumbida a competência de zelar pela guarda das instituições democráticas, por uma decorrência lógica a execução das leis que buscam salvaguardar a democracia, deve ser realizada pelo Poder Executivo por todos os seus órgãos, inclusive pela AGU. Apesar dessa expressa missão conferida aos entes de direito público interno, houve estranhas surpresa e crítica quando, no dia 1º de janeiro de 2023, edição especial do Diário Oficial publicou o Decreto 11.328, que "Aprova Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança da Advocacia-Geral da União e remaneja cargos em comissão e funções de confiança", criando Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia (PNDD), cujas funções seriam: (1) representar a União, judicial e extrajudicialmente, em demandas e procedimentos para defesa da integridade da ação pública e da preservação da legitimação dos Poderes e de seus membros para exercício de suas funções constitucionais; e (2) representar a União, judicial e extrajudicialmente, em demandas e procedimentos para resposta e enfrentamento à desinformação sobre políticas públicas (artigo 47). A crítica à criação da PNDD se fundamentaria na ausência de definição de critérios e esclarecimentos sobre a atuação desta nova Procuradoria. A oposição à recém-criada Procuradoria tem feito críticas como um possível mecanismo de censura, ou de que suas funções caberiam melhor ao Ministério Público, como se este não já detivesse essa atribuição, na conformidade da solar redação do artigo 127 da Constituição. A partir dos estarrecedores, embora esperados, acontecimentos de dia 8 de janeiro de 2023 e da pronta atuação da Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia ante a inação de outros atores, parecem sem razão as críticas proferidas. Os atos praticados na capital da República, que destruíram as sedes dos três Poderes, podem ser considerados como uma obra conjunta: de terroristas, de grande parte da mídia, de políticos e de instituições que não funcionaram como e quando se esperava. Na ordem apresentada, os terroristas disfarçados de "patriotas" foram incentivados e organizados ao longo dos últimos seis anos para esse desfecho, especialmente por uma elite econômica que jamais aceitou a universalização de direitos, tampouco assimilou a ideia de uma democracia econômica para amplos setores de nossa sociedade. A empregada doméstica na Disney e sua filha nos bancos da faculdade de medicina incomodaram muito. Quanto à grande mídia, até um desatento observador saberia qual o resultado da equação promovida quando fora potencializada a criminalização e espetacularização da política, transformando a avareza econômica e intelectual de uma classe média em covarde e falsa indignação moral, em ódio aos mais fracos e pobres e idolatria aos fortes e ricos. Por sua vez, os políticos que deram apoio ao golpe de 2016 rapidamente compreenderam que o espaço para Bolsonaro e o bolsonarismo estava se abrindo. Embarcaram nessa aventura e, a despeito de pandemia, notícias de corrupção, aparelhamento da burocracia pública, benesses para apoiadores e destruição de nossa soberania econômica, não arredaram pé do apoio a um dos piores governos que o Brasil conheceu. Após 30 de outubro de 2022, muitos saltaram do barco. Outros ainda tocam seus violinos no convés. Quanto às instituições omissas, a marcha dos terroristas contra a institucionalidade democrática cruzou caminho com uma apática e aparentemente conivente força policial, que somente interveio quando as sedes dos Poderes da República estavam praticamente destruídas. Antes, entre 2014 até 2022, alguns membros do Ministério Público Federal e da Justiça Federal se constituíram em pivôs da instabilidade institucional do país, sendo necessário que o acaso providenciasse as provas do conluio da operação "lava jato", para que o Supremo Tribunal Federal revisse o estrago democrático, e procurasse salvar o que ainda poderia ser salvo. Como foi possível a sucessão de acontecimentos que levaram ao 8 de janeiro, quando já se sabia dos planos dos terroristas? Onde estavam as autoridades federais e do Distrito Federal que não se moveram para qualquer ação preventiva? O caldo fica mais entornado quando se sabe que o Ministério Público tem como obrigação constitucional do controle externo da atividade policial. Não sabiam do que se preparava, desconhecendo as ligações políticas de integrantes das forças policiais federais, estaduais e distritais com os partidários do bolsonarismo? Essas ligações são tão abertas que basta um desatento olhar para a representação política das bancadas da bala no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas e Câmara Distrital, e Câmaras Municipais. Não se pode admitir que o setor armado de nossa sociedade esteja nas mãos de dirigentes que sejam mais leais aos seus interesses localizados do que à institucionalidade democrática. Não se pode admitir que decida aquela que tem as armas: quem tema armas obedece; quem decide — os Poderes eleitos, isto é, Executivo e Legislativo — não tem armas. É assim que está na Constituição. Eis a inação institucional que também responde pelos episódios de 8 de janeiro de 2023, cujos atos de destruição — física e institucional — envergonharam o Brasil perante a comunidade internacional, como bem destacou Lenio Streck em sua coluna neste ConJur [1]. Decorrente dessa omissão, a Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia é uma necessidade, cuja implantação algumas sociedades já há muito tempo compreenderam, como a Alemanha que criou seu Serviço de Proteção Constitucional desde novembro de 1950. De lá para cá, nenhum governo de direita, de esquerda ou centro-esquerda da Alemanha foi acusado de censura. E a existência desse serviço não se confundiu com a atuação da persecução penal e civil sob a responsabilidade do Ministério Público ou com a atuação de porta de acesso à cidadania e à dignidade às pessoas e coletividades necessitadas a cargo da Defensoria Pública. O temor em torno da criação da PNDD resta ainda esvaziado com a publicação da Portaria Normativa nº 80/2023 da Advocacia-Geral da União, que cria um Grupo Especial de Defesa da Democracia (Gedd) para realizar o "acompanhamento das apurações e investigações relacionadas com os atos antidemocráticos praticados na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023, e outros danos a bens públicos federais correlatos", convidando a participar deste grupo representantes do Supremo Tribunal Federal, Senado Federal, Câmara dos Deputados, Casa Civil da Presidência da República, Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República e Ministério da Justiça e Segurança Pública [2]. O certo é que a promoção, consecução e defesa da democracia é atribuição de todos os entes, órgãos e agentes públicos, bem assim de todo e qualquer cidadão, não havendo respaldo constitucional para que qualquer um destes se arrogue na exclusiva competência de fazê-lo. As lições que tiramos desta tragédia recente brasileira somente serão conhecidas com o passar do tempo. O que temos até o momento, porém, é revelador da urgência do compromisso de formação de cultura democrática na burocracia nacional, para além dos Poderes constituídos e das instituições responsáveis pela defesa e pela guarda da Constituição, em especial, relativamente aos componentes das Forças Armadas e policiais, e se espera que a criação da Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia seja uma alentadora iniciativa neste sentido. [1] https://www.conjur.com.br/2023-jan-10/lenio-streck-812023-dia-infamia-nao-esquecido [2] http://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-normativa-agu-n-80-de-10-de-janeiro-de-2023-457076831
2023-01-12T14:16-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-12/rocha-lima-necessaria-defesa-regime-democratico
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Senso Incomum
Quem pariu o 8 de janeiro de 2023? Quem o embala?
O dia 8 de janeiro é o dia da infâmia, do estupro institucional. Da vergonha. Aquele dia que todos — todos — deveriam repudiar. Mas, lamentavelmente, muita gente — deputados, senadores, advogados (sim, causídicos), jornalistas e jornaleiros — em total dissonância cognitiva, buscam justificativas para esse ataque terrorista às instituições. O primeiro ingrediente desse caldo é a criminalização da política. Com a criminalização da política, a fragilização das instituições é (i)mediata. Vem a fome insana de autocratismo. Não é por nada que, dia sim e outro também, o artigo 142 da CF era invocado, para justificar intervenção militar e quejandices mil. Não havia dia em que o então presidente da República não invocasse alguma coisa para insinuar ou até pregar golpe de Estado. Presidente da República, militares, alguns juristas, rádios — todos transformados em vivandeiras. A bulir com os granadeiros...! Resultado: o dia 8 de janeiro. Na política exsurgiu o fanatismo e a violência. Já no direito — parece incrível, não? — surgiu o ius vivandeirismo. Fora o "recado" explícito, na base do chute na canela, dado via Twitter pelo general Villas Bôas, em clara ameaça ao STF, lembram? Ali começou a chover na terra, como dizia o poeta Eráclio Zepeda. Sem esquecer as ironias nada irônicas do general Augusto Heleno, que, infelizmente, não leu Rei Lear, do Bardo. Aliás, ambos, Bôas e Heleno, deveriam ler Rei Lear: na peça, o bobo da corte sintetiza o destino do rei: "Pobre Lear, que ficou velho antes de ficar sábio". O que o Bardo quis dizer? Simples: há que se saber envelhecer para colher o único fruto que a idade pode dar em troca de todas as outras perdas: o conhecimento. A sabedoria. Captaram? Quem pariu mateus que o embale? Ledo engano. Quem pariu o 8 de janeiro está ainda impune. Poucos se deram conta do(s) ovo(s) da(s) serpente(s). De 2014 em diante (tudo já estava se desenhando em 2013). Pergunto: quantos integrantes da comunidade jurídica perceberam que o lavajatismo incubava o autoritarismo e o próprio bolsonarismo que, paradoxalmente, já existia (dormitava) mesmo sem Bolsonaro? Muito poucos. Um pouco de poucos. O mais grave: até parte considerável dos progressistas apoiou o lavajatismo. Importantes advogados, jornalistas, jornaleiros e até partidos políticos se encantaram com o "novo jus tenentismo". A tentação sempre é grande. O moralismo ingênuo fragilizou, como sempre faz, a autonomia do direito. Resta confiar nas instituições democráticas. Como disseram bem Walfrido Warde e Rafael Valim, cenas de vandalismo deviam horrorizar o país e conduzir a uma unânime defesa do Estado Democrático de Direito. O escândalo? É que isso não aconteceu, lembram os articulistas. De efetivo, parece que muita gente não convive bem com a democracia. Por isso, há que se usar os rigores da lei. Se a choldra, o valhacouto, a rafanalha estuprou simbolicamente os prédios dos Poderes da República, há que se ter claro que esses foram instigados, financiados, empurrados, liderados e mandados para cometer o atentado ao Estado Democrático de Direito. Os próximos dias revelarão os cúmplices e coautores. Para o bem da República. E que aprendamos a ficar de olho no chocamento de ovos de serpentes. Quando a lava jato iniciou, os que compreenderam o fenômeno cabiam em um fusca. Depois em uma kombi. Hoje já há uma frota. O mais curioso de tudo isso é que existam advogados metidos nisso. E advogados defendendo golpismo. Que coisa. Onde foi que erramos? Eu sei. Escrevo sobre isso há décadas. Não cuidamos dos currículos das faculdades, dos concursos públicos (veja-se que um juiz chegou a conceder um mandado de segurança para, mutatis, mutandis, garantir o direito fundamental a pedir golpe de estado), enfim, desdenhamos do direito. Resultado: eles estão por aí. Na advocacia e nas carreiras de Estado. E na política. Como dizia o poeta mexicano, quando as águas da enchente descem a serra e cobrem a tudo e a todos, é porque de há muito começou a chover na serra. É que muita gente não se deu conta. Vamos repetir os mesmos erros? Ou vamos praticar passapanismo?
2023-01-12T08:00-0300
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Opinião
Rômulo Moreira: A nova Lei 14.532/23 e o crime de injúria racial
Foi promulgada pelo presidente da República, e publicada em edição extra do Diário Oficial da União do dia 11 de janeiro de 2023, a Lei nº 14.532, alterando a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989 (Lei do Crime Racial), e o Código Penal, para tipificar como crime de racismo a injúria racial, além de prever pena de suspensão de direito em caso de racismo praticado no contexto de atividade esportiva ou artística e pena para o racismo religioso e recreativo e para o praticado por funcionário público. Assim, e nos termos da nova lei, o artigo 2º da Lei nº 7.716/89 (que tipifica os crimes de racismo), passa a ter a seguinte redação: "Art. 2º-A. Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional. Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. Parágrafo único. A pena é aumentada de metade se o crime for cometido mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas" [1]. Na verdade, esse entendimento já se havia consolidado no Supremo Tribunal Federal quando, na sessão do dia 26 de novembro de 2020, iniciou o julgamento do Habeas Corpus nº 154.248, no qual se discutia a prescrição no crime de injúria racial, tendo o relator, ministro Edson Fachin, naquela oportunidade, votado pela denegação da ordem, pois, segundo ele, "a injúria racial traz em seu bojo o emprego de elementos associados ao que se define como raça, cor, etnia, religião ou origem para se ofender ou insultar alguém, havendo ataque à honra ou à imagem alheia, com violação de direitos, como os da personalidade, que estão ligados à dignidade da pessoa humana". Assim, ainda nos termos do voto do relator, "a injúria é uma forma de realizar o racismo, e agir dessa forma significa exteriorizar uma concepção odiosa e antagônica, revelando que é possível subjugar, diminuir, menosprezar alguém em razão de seu fenótipo, de sua descendência, de sua etnia, sendo possível enquadrar a conduta tanto no conceito de discriminação racial previsto em diplomas internacionais quanto na definição de racismo já empregada pelo Supremo (HC 82.424)". Para ele, "a atribuição de valor negativo ao indivíduo em razão de sua raça cria as condições ideológicas e culturais para a instituição e a manutenção da subordinação, tão necessária para o bloqueio de acessos que edificam o racismo estrutural, ampliando também o fardo desse manifesto atraso civilizatório e torna ainda mais difícil a já hercúlea tarefa de cicatrizar as feridas abertas pela escravidão para que se construa um país de fato à altura do projeto constitucional nesse aspecto". Suspenso, o julgamento foi retomado no dia 2 de dezembro de 2020, com o voto do ministro Nunes Marques que, divergindo do relator, entendeu que a injúria racial "não se equipara juridicamente ao racismo, ainda que não se desconsidere a gravidade do delito, não sendo possível a equiparação, porque os delitos tutelam bens jurídicos distintos". A sessão, então, foi adiada por um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes. Finalmente, na sessão do dia 28 de outubro do ano passado (2021), concluiu-se o julgamento do HC, decidindo-se que o crime de injúria racial configura racismo, sendo, portanto, e nos termos da CF, delito sujeito à imprescritibilidade. Nessa oportunidade, o ministro Alexandre de Moraes observou "que a Constituição é explícita ao declarar que o racismo é crime inafiançável, sem fazer distinção entre os diversos tipos penais que configuram essa prática, lembrando que, segundo os fatos narrados nos autos, a conduta da paciente foi uma manifestação ilícita, criminosa e preconceituosa em relação à condição de negra da vítima. Como dizer que isso não é a prática de racismo?" No mesmo sentido, o ministro Luís Roberto Barroso observou que, "embora com atraso, o país está reconhecendo a existência do racismo estrutural, salientando-se que não são apenas as ofensas, pois muitas vezes a linguagem naturalizada embute um preconceito, de tal maneira que não podemos ser condescendentes com essa continuidade de práticas e de linguagem que reproduzem o padrão discriminatório". Também para a ministra Rosa Weber as ofensas decorrentes da raça, da cor, da religião, da etnia ou da procedência nacional se inserem no âmbito conceitual do racismo e, por esse motivo, são inafiançáveis e imprescritíveis; no mesmo sentido, a ministra Cármen Lúcia considerou que o crime não é apenas contra a vítima, "pois a ofensa é contra a dignidade do ser humano, ressaltando que vivemos numa sociedade na qual o preconceito é enorme, e o preconceito contra pessoas negras é muito maior". Já o ministro Ricardo Lewandowski lembrou "que a CF, ao estabelecer que a prática de racismo é imprescritível, não estipulou nenhum tipo penal, exatamente porque, ao longo do tempo, essas condutas criminosas se diversificam e é necessário que os delitos específicos sejam definidos pelo Congresso", lembrando, outrossim, "que o Brasil é signatário de tratados e convenções internacionais em que se compromete a combater o racismo". No mesmo sentido, o ministro Luiz Fux afirmou que "a discussão sobre a questão racial veio se desenvolvendo para assegurar proteção às pessoas negras e vem passando por uma série de mutações, alcançando uma dimensão social, e não meramente biológica", ressaltando que "as normas constitucionais dessa sociedade, que já foi escravocrata durante 400 anos e um péssimo exemplo para todo o mundo, só se podem tornar efetivas através não só da previsão em abstrato, mas da punição". O ministro Dias Toffoli também acompanhou o voto do relator. Foi acertada a decisão da Suprema Corte, pois, induvidosamente, quem ofende a honra de alguém utilizando-se de elementos referentes à raça, à cor ou à etnia pratica, sem dúvidas, racismo, crime imprescritível conforme explicita a Constituição Federal, tratando-se de uma conduta extremamente reprovável sob todo e qualquer aspecto. O racismo é a causa determinante de uma infindável série de iniquidades que, ao longo da história do Brasil, atinge esta gente riquíssima, dentre outras coisas, por sua capacidade incrível de resistência e sua extraordinária inteligência e abundância cultural, nada obstante se saber "que desde o início da colonização, as culturas africanas, chegadas nos navios negreiros, foram mantidas num verdadeiro estado de sítio" (NASCIMENTO, 2016, p. 123). O Brasil, longe de se tratar de uma suposta e falsa (e mesmo hipócrita!) "democracia racial" (como costumam dizer alguns acadêmicos, ora mesmo racistas, ora ignorantes de nossa realidade e de nossa história), é um lugar onde o racismo está entranhado social, estrutural e institucionalmente, fato que (talvez) explique uma conivente apatia integrante de um lado sombrio que permeia a nossa elite econômica, social, acadêmica, política e jurídica, que aceita a normalização de uma violência específica e reiterada, como se fosse algo necessário para uma efetiva política pública de segurança pública, ou uma decorrência inevitável da pobreza que também assola principalmente a população negra no Brasil, desde sempre alijada da riqueza aqui produzida. É preciso estar atento e saber que "as lutas mais longas e mais cruentas que se travaram no Brasil foram a resistência indígena secular e a luta dos negros contra a escravidão, que duraram os séculos do escravismo. Tendo início quando começou o tráfico, só se encerrou com a abolição" (RIBEIRO, 2006, p. 202). É urgente também entender que "face ao racismo, não há compromisso possível. Não há tolerância possível. Só há uma resposta: a tolerância zero. Esta resposta pode parecer radical, mas é a única resposta concebível se quisermos adotar, em relação a este problema, uma atitude coerente e eficaz" (DELACAMPAGNE, 2013, p. 222). Por isso, é necessário, apesar dos "deslumbramentos ocidentais", saber-se negro, e sendo um negro, "cada vez mais negro, não ficar mudo diante desse deslumbramento" (CAMARGO, 1987, p. 9). No Brasil — antes e depois da escravização a que foram sujeitados homens, mulheres e crianças (a maioria sequestrada do continente africano) — o massacre do povo negro sempre foi uma realidade com a qual se convive, e se habitua ainda hoje, numa odiosa e farisaica complacência dos brancos em geral, que se alvoroçam todos em uníssono quando um dos seus é morto, e se compraz covardemente quando um dos outros é a vítima [2]. Portanto, o que já era um entendimento sufragado pela Suprema Corte passa agora, com a nova lei, a constar do respectivo texto legal. Oxalá, a nova lei seja o alvorecer de uma nova mentalidade dos que compõem o sistema de justiça criminal brasileiro, seletivo como sempre e como todos!   _____________ REFERÊNCIAS CAMARGO, Oswaldo de. O Negro Escrito – Apontamentos sobre a presença do negro na Literatura Brasileira. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1987, p. 9. DELACAMPAGNE, Christian. História da Escravatura – Da Antiguidade aos nossos dias. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2013, p. 222. GOMES, Laurentino. Escravidão – Volume I – Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. Rio de Janeiro: 2019, p. 62. NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do Negro Brasileiro – Processo de um Racismo Mascarado. São Paulo: Perspectivas, 2016, p. 123. RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras: 2006, p. 202. [1] Com a alteração legislativa, o § 3º. do art. 140 do Código Penal passou a ter a seguinte redação: "Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência: Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa". [2] Quando se visita, por exemplo, o Museu Imperial de Petrópolis, e se admira a coroa de D. Pedro II, não se pensa que aqueles 639 minúsculos diamantes que a adornam foram garimpados por pessoas escravizadas em Minas Gerais e outras regiões do Brasil (GOMES, Laurentino. Escravidão – Volume I – Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. Rio de Janeiro: 2019, p. 62).
2023-01-13T21:42-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-13/romulo-moreira-lei-1453223-crime-injuria-racial
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Opinião
Fauzi Choukr: A precária tutela penal do Estado de Direito
O Brasil redemocratizado em 1988 conheceu muito tardiamente a reconstrução de um aparato penal de tutela do Estado de Direito, previsões que só vieram ao mundo jurídico em 1º de setembro de 2021 pela Lei 14.197. Convivia-se, desde 1983, com a Lei 7.170 concebida ainda no regime de exceção e que atualizava outra norma daquele período, o Decreto Lei 898, de 29/9/1969. Tema que raramente frequenta o quotidiano das preocupações acadêmicas no campo jurídico [1], como, de resto, são os temas correlatos à Justiça de Transição, acostumou-se a ver com alguma naturalidade que a defesa penal do Estado de Direito se valesse de uma construção normativa construída ao longo de período ditatorial. A tramitação, por exatos 30 anos, do PL 2.462/1991 [2] do então deputado Helio Bicudo, que desencadeou o processo legislativo que culminaria com a lei de 2021, acelerado que foi pelo momento político vivido desde 2018, comprova a dificuldade não só jurídica de enfrentamento do tema como, de forma mais ampla, o reticente comportamento social de enfrentar, de maneira madura, as necessárias transformações sociais para consolidação da democracia. Ao final desse longo percurso legislativo chegou-se à revogação da então vigente Lei de Segurança Nacional procedendo-se as tipificações de conduta inseridas no artigo 359 A a N do Código Penal. Aparato legal que recai sobre a própria manutenção da democracia, tem-se que as penas mínimas cominadas em abstrato permitem, a priori, cumprimento de pena em regime aberto ou mesmo sua substituição por penas restritivas de direitos, se tomadas isoladamente cada uma das condutas tipificadas. A conduta de roubo, com todos seus possíveis desdobramentos e causas de aumento de pena é, proporcionalmente falando, apenada de forma mais gravosa e com consolidada interpretação de imposição de regime de cumprimento de pena mais gravoso. Há, contudo, lacunas sistêmicas e de tipificação que merecem ser refletidas. A conduta prevista na lei de terrorismo (Lei 13.260, de 16/3/2016) de financiamento aos atos definidos como tais precisaria ter sido espelhada na legislação renovada de proteção ao Estado de Direito, não apenas em relação a pessoas físicas, mas, também, tendo sua discussão ampliada para pessoas jurídicas [3]. No campo processual penal, tais condutas não haveriam de permitir, de qualquer forma, a possibilidade de formas alternativas de cumprimento de pena, cuja execução também deveria contar com regras específicas mais severas para a passagem, no transcurso da execução da pena, aos estágios institucionalmente menos controlados sobre a liberdade da pessoa sentenciada. Ao final, reitero posição assumida em outro texto: às potenciais críticas de que se trata de uma estratégia expansionista do sistema penal, algo que preocupa segmentos da comunidade acadêmica, em particular no estudo da criminologia, a resposta parece-nos uma só: que se há um campo que pode, ainda, legitimar o sistema penal é aquele da proteção do Estado de Direito e dos direitos fundamentais. Defendê-lo com o sistema penal, como última ratio, mas de maneira assertiva, é o mecanismo para tentar evitar sua ruptura. [1] Com raras exceções como Alexandre WUNDERLICH, em Crime político, segurança nacional e terrorismo. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020. Também DO TERRORISMO, ASCENSÃO. AS INICIATIVAS DE REFORMA À LEI DE SEGURANÇA NACIONAL NA CONSOLIDAÇÃO DA ATUAL DEMOCRACIA BRASILEIRA: DA INÉRCIA LEGISLATIVA NA DEFESA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO À. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 107, n. 2014, p. 265-305, 2014. [2] Que contou com inúmeras outras propostas legislativas ao longo dessas décadas. A ver em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2004075&filename=PPP+1+CEURG+%3D%3E+PL+2462/1991 [3] A respeito nosso recente artigo PESSOA JURÍDICA E SUA RESPONSABILIDADE EM ATOS ATENTATÓRIOS AO ESTADO DE DIREITO publicada em https://juridicamente.info/pessoa-juridica-e-sua-responsabilidade-em-atos-atentatorios-ao-estado-de-direito/
2023-01-13T16:17-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-13/fauzi-choukr-precaria-tutela-penal-estado-direito
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Opinião
Lenio Streck: Teoria do delito e os motivos para a decisão do STF
Depois da barbárie vista no domingo passado, dia 8/1, que certamente ficará na história do Brasil como uma mancha do que não é democracia e nunca poderia ter sido vista como atos democráticos ou de protestos políticos, veio a decisão monocrática do ministro Alexandre de Moraes e referendada pela corte. Sobre a responsabilidade penal dos afastados a omissão é patente. Há bons argumentos que, certamente, irão impor algum tipo de imputação penal aos agentes públicos que, por meio de sua inação, contribuíram significativamente para a ocorrência do resultado. A questão agora é delimitar os tipos penais e a inserção dos autores, coautores e partícipes no bojo da perspectiva delitiva. Entendo que há três possibilidades: (1) a participação através de um auxílio moral por meio da inação intencional do agente e o seu comprometimento com o resultado. Até mesmo é possível se questionar com base na exclusão mental hipotética: fosse a conduta do agente outra, o resultado teria sido o mesmo? (2) O crime comissivo por omissão depende de vários critérios. A decisão do ministro Alexandre dá a entender que há hipótese de ato comissivo por omissão. É preciso, porém, estabelecer a relação entre a fonte produtora do perigo (lei ou outro meio jurídico válido) e os seus devidos limites. Há uma obrigação clara de evitar o resultado? Talvez fique mais claro estabelecer a posição de garantia por meio de uma relação de causalidade fática como a alínea "c" do parágrafo 2º do artigo 13 do CP (por meio da conduta antecedente, criou o risco da ocorrência do resultado). Pelo que se viu, o antigo secretário de Segurança do DF saiu antecipadamente de férias e permitiu a destruição fascista, a quem ele se alia ideologicamente. Ademais, para o Direito Penal aquelas pessoas que estão na posição de garantidores não precisam realizar diretamente o fato criminoso, ou seja, praticá-lo pessoalmente, justamente porque o Código Penal transforma essa falta de ação em omissão. Em outras palavras, é como se essas autoridades tivessem agido diretamente praticando as condutas típicas previstas contra as instituições democráticas. Portanto, uma simples leitura do artigo 13, do Código Penal, já permitiria o enquadramento dos agentes políticos responsáveis pelos atos antidemocráticos praticados e todos os demais crimes. Na condição de garantidores eles não seriam nem partícipes do delito, mas autores diretos porque o fundamento da imputação está relacionado justamente ao fato de terem o dever legal (ou mesmo causal) de evitar o resultado. Os que invadiram, quebraram, depredaram o patrimônio público e atentaram contra o Estado Democrático de Direito respondem como autores diretos destes crimes. Os que podiam evitar e não o fizeram, respondem como autores direto de um crime comissivo por omissão. Tudo conforme preceitua a lei. Para ser mais simples: o ex-ministro Anderson (e isso vale para outros) tinha obrigação por lei de evitar o resultado. Não há sequer a necessidade de invocar a chamada ingerência. (3) a última possibilidade — e aqui considero como a mais remota dada a dimensão que tomou o caso — seria a responsabilização criminal por crime praticado por funcionário público contra a administração pública. O fato é saber se os agentes públicos, por uma aderência ideológica à causa golpista, deixaram de agir deliberadamente. Acredito que nesse ponto deverá se analisar o grau de censurabilidade da conduta para estabelecimento de uma imputação penal adequada ao fato. A pergunta que deve ser feita é se houve uma intenção preordenada para permitir o caos por mera aderência ideológica ou se havia comprometimento com eventual golpe de Estado. De outro lado, a assertiva de que a informação chegou de forma equivocada ou que não foi repassada corretamente para os gestores e administradores também não os socorre. Pensemos sempre de quem tinha a obrigação por lei de evitar o resultado! Sigo. Atualmente as cortes, na esteira dos precedentes anglo-saxões, admitem punir aquele que deliberadamente fecha os olhos para o que está ocorrendo. É a chamada teoria da "cegueira ou ignorância deliberada" ou "teoria do avestruz", enterrar a cabeça para se exibir da responsabilidade. Portanto, na linha dessa teoria o gestor ou administrador que podendo se informar do que ia ocorrer e, propositadamente, fecha os olhos, tem a sua conduta equiparada ao dolo eventual. Em outras palavras, assumiu o risco de produzir o resultado criminoso. Sobre a cegueira deliberada, é importante destacar que, a despeito dos posicionamentos firmes no sentido de aceitação da tese, não desconheço as críticas doutrinárias a ela endereçadas, fundamentalmente sobre o transplante jurídico acrítico desse instituto, dada a diferença significativa entre a teoria do delito daqui e a dos EUA. No Brasil, a doutrina da cegueira deliberada tem sido utilizada como uma ferramenta para se justificar a imputação do dolo eventual em hipóteses em que há clara conduta culposa, cujos critérios são normativos (exemplo do caso Kiss). O fato, no entanto, é que os tribunais, em grande parte, aderiram a essa perspectiva doutrinária. Não vou discutir isso aqui. Para adiantar, digo apenas que se trata de uma teoria difícil de aplicar por aqui em face da definição do dolo eventual como assunção do risco de produzir o resultado. Porém, como sabemos, a jurisprudência aceita a tese. É claro, pois, que a responsabilidade dos agentes do Estado deverá ser apurada e, inevitavelmente, dará margem para relevantes discussões jurídicas, especialmente no que concerne à teoria do delito. Isso é natural. Mesmo o julgamento de Adolf Eichmann — arquiteto da Solução Final Nazista — deu cabo a milhares de escritos a respeito da perspectiva jurídica que permeia a relação entre os comandantes e os subordinados (e executores) dos crimes praticados na Segunda Guerra Mundial. Evidente que todas essas digressões acima referidas são o instrumental material existente em nossa legislação e jurisprudência que emprestam respaldo à decisão do STF, ao menos de forma perfunctória. Justamente por isso que se trata de uma decisão de afastamento provisório sem a devida consequência penal que deverá ser aprofundada no curso de um inquérito policial e, posteriormente, na respectiva ação penal se houverem elementos que justifiquem a sua propositura. Isso tudo, claro, conferindo o exercício amplo do direito de defesa e das garantias constitucionais que alcançam os investigados, o que agora parece ter se tornado relevante para grande parte da extrema-direita fascista. De qualquer sorte, o importante é deixar claro que a teoria jurídica do delito tem bons elementos que permitem a construção sólida de responsabilidade penal não só para os autores diretos dos delitos contra as instituições democráticas, ou seja, que praticaram os atos vistos no último domingo, mas também para aqueles que deveriam impedi-los ou que prestaram efetivo auxílio moral. Isso tudo dentro do respeito aos preceitos que regem o Direito Penal. Por fim, esperemos o curso das investigações e as justificativas que serão apresentadas para verificarmos se terão os fundamentos jurídicos necessários para afastar a responsabilidade penal dos responsáveis.
2023-01-13T13:10-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-13/lenio-streck-teoria-delito-motivos-decisao-stf
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Observatório Constitucional
Para que nunca mais aconteça
O dia 8 de janeiro de 2023 marca a história brasileira pelo mais deplorável e lamentável ataque à democracia constitucional fundada em 1988. Deplorável pelas cenas de destruição e de irracional catarse coletiva afrontosas às instituições democráticas. Lamentável, porque tudo poderia ter sido evitado. Estupefatos ao acompanhar o horror dos acontecimentos, fomos todos levados a questionar: como chegamos a esse ponto? E o que poderemos fazer para que não se repita? A primeira atitude foi a do necessário repúdio, externado por centenas de instituições, públicas e privadas, nacionais e internacionais, dos mais diversos segmentos sociais, em uma clara demonstração cívica da defesa intransigente do regime democrático no Brasil. A essas pertinentes manifestações aderiram os professores e pesquisadores deste Observatório Constitucional, com uma contundente Nota em Defesa da Democracia, que está publicada em suas redes sociais. Mas manifestações de repúdio, apesar de necessárias, são insuficientes. Devem vir acompanhadas de uma obstinada procura pelas razões que levaram aos tristes episódios do último domingo em Brasília. Como todo processo histórico complexo, a atual crise da democracia brasileira é resultado de múltiplos fatores (políticos, sociais, culturais) e o espaço desta coluna é evidentemente curto para uma explanação adequada. Em obra recentemente lançada (Constitucionalismo e Democracia pós-2020, ed. Saraiva, 2022) [1], tento explicar, ao lado de outros autores, as semelhanças históricas e as razões das crises democráticas das décadas de 1920 e 2020, em diversos países. E, para um estudo específico da recente crise política brasileira, tenho indicado, entre outros, a obra Limites da Democracia (ed. Todavia, 2022), do professor Marcos Nobre (Unicamp, Cebrap), a qual retrata os momentos conturbados e as transformações das práticas políticas nacionais, desde as manifestações de junho de 2013 [2]. Para além das notas de repúdio e da busca incessante pelas razões de tudo que aconteceu, precisamos ser vigilantes na proteção da democracia e adotar prospectivamente atitudes cívicas que visem evitar novos ataques. Mais do que um dever das autoridades públicas, já incumbidas da persecução e responsabilização de todos os envolvidos (idealizadores, incentivadores, executores e financiadores), a defesa dos valores democráticos depende do engajamento de toda a sociedade. Atitudes individuais cotidianas, nas relações pessoais e profissionais, nos microssistemas sociais, podem fazer a diferença, nos momentos de crise, entre democracias resilientes e democracias decadentes. O mais importante neste momento é questionarmos o que cada um pode fazer em seu campo de ação pessoal para diuturnamente defender a democracia. Como guia, temos a história, repleta de lições importantes sobre o que os cidadãos de uma democracia devem fazer para protegê-la. E aqui é importante ressaltar que os fatos políticos e sociais da crise democrática brasileira não são completamente inéditos; ao contrário, reproduzem em boa parte padrões conhecidos na história e são bastante típicos de outras crises democráticas já vivenciadas e devidamente explicadas por historiadores, politólogos, sociólogos, antropólogos. Já possuímos, portanto, bastante conhecimento sobre comportamentos públicos e privados que tendem a proteger ou a enfraquecer uma democracia. Entre tantos outros, são relevantes os conselhos da obra Sobre a Tirania (ed. Companhia das Letras, 2019), um livro que precisa ser lido nos dias atuais. Nele, o historiador Timothy Snyder (Yale University) resume as vinte mais importantes lições do século XX para o presente, e ressalta: a história "nos mostra que as sociedades podem ruir, que as democracias podem entrar em colapso, que a ética pode ser aniquilada e que os homens comuns podem se ver diante de valas comuns com armas na mão. É importante hoje entendermos a razão disso". Faço aqui uma adaptação dos conselhos dessa obra para sugerir algumas atitudes individuais que podem contribuir para a defesa coletiva da nossa democracia: Defenda as instituições. Tenha sempre o propósito de cultivar a legitimidade e respeitar a autoridade institucional. Se for contrário a alguma decisão tomada pelas instituições democráticas de seu país, procure realizar críticas construtivas, que visem ao aperfeiçoamento e nunca à destruição institucional. Faça isso em foros públicos de debates, permitindo que suas propostas sejam conhecidas, discutidas e possivelmente incorporadas. Usar as redes sociais como trincheira privada para emitir meras opiniões desrespeitosas apenas terá o efeito negativo de alimentar e incentivar discursos de ódio que contribuem para deslegitimar, desautorizar e, a longo prazo, destruir a instituição. Se for especialista no assunto, escreva e publique artigos com as razões técnicas de sua divergência. Se for leigo, tenha plena confiança na capacidade técnica dos servidores públicos que participam dos procedimentos que resultam nas decisões. Exerça sua liberdade com responsabilidade. O direito à livre manifestação de convicções políticas não lhe concede poderes para proferir discursos de ódio e agredir pessoas ou instituições. Como fundamento do regime democrático, a liberdade de expressão não pode ser exercida com o fim de destruir a própria democracia. Seja tolerante e cultive o respeito, a consideração e a convivência pacífica com pessoas e ideias diferentes das suas. Mas esteja atento às ideias radicais antidemocráticas, pois em alguns casos não deve haver tolerância em relação aos intolerantes. Seja ético profissionalmente. Exerça suas funções profissionais com base nos princípios fundamentais e visando às missões precípuas de sua instituição ou empresa. Procure conhecer a fundo e cultivar os valores éticos de sua profissão. Não cumpra ou apoie ordens superiores que sabidamente sejam fundadas em ideologias políticas. Compreenda que seu comportamento ético tem o poder de incentivar outras pessoas e a assim criar uma corrente positiva na sociedade. Se for convidado a portar armas, reflita. Não há nenhuma comprovação histórica de que a quantidade de armas em circulação seja proporcional ao grau de liberdade dos cidadãos. Ao contrário, a história está repleta de exemplos, especialmente em regimes autoritários, de que políticas armamentistas tem o resultado de incentivar conflitos internos e guerras civis. Armas são fabricadas com apenas um propósito: matar pessoas. Por isso, elas devem estar apenas em mãos apropriadas para funções típicas e necessárias das forças de segurança do Estado. Esta é uma das lições mais claras e evidentes da história. Busque os fatos e acredite na verdade. Seja um curioso sobre a realidade. Procure a descrição dos fatos em fontes confiáveis. Investigue o mesmo fato em mais de um meio de comunicação, se possível em muitos. Se não tem certeza sobre a veracidade de uma notícia, não divulgue e não repasse em redes sociais. Saiba distinguir as notícias das opiniões sobre os fatos. Estude a história de seu país, em obras de historiadores reconhecidos e qualificados por universidades nacionais e estrangeiras. Preste atenção a palavras perigosas. Palavras carregam energias que nos fazem vibrar positiva ou negativamente. Palavras perigosas se transformam em ações destrutivas, como a história comprova exaustivamente. Conhecidos líderes autoritários iniciaram sua vida política com palavras de ódio. Desconfie de discursos destrutivos contra as instituições democráticas, pois eles têm o potencial de se transformar em ações concretas contra a democracia. Essas são apenas algumas das sábias lições retiradas da história das democracias. Creio que procurando compreendê-las e segui-las, na medida das possibilidades individuais, poderemos de alguma maneira ser mais responsáveis em relação à nossa atualmente pressionada democracia e com isso contribuir para que o dia 8 de janeiro nunca mais aconteça. Termino assim com a reflexão de Timothy Snyder: "A história nos permite ver padrões e fazer julgamentos. Ela esboça para nós as estruturas dentro das quais podemos procurar a liberdade. Revela momentos, cada um deles diferente, nenhum inteiramente regular. Compreender um momento é ver a possibilidade de participar da criação de outro momento. A história nos permite sermos responsáveis: não por tudo, mas por alguma coisa". [1] VALE, André Rufino do (org.). Constitucionalismo e Democracia Pós-2020: reflexões na ocasião do centenário do constitucionalismo de Weimar (1919-1933). São Paulo: Saraiva: 2022. [2] Entre outros, indico também a leitura do livro Linguagem da Destruição (ed. Companhia das Letras, 2022), da professora Heloísa Starling (UFMG), do prof. Miguel Lago (Sciences Po) e do prof. Newton Bignotto (UFMG), que analisam o atual momento político, especialmente os fenômenos do populismo e do crescimento de movimentos ultra-conservadores e de extrema direita, ressaltando os atuais riscos para a democracia no Brasil.
2023-01-14T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-14/observatorio-constitucional-nunca-aconteca
academia
Opinião
Otto Pereira: Textura aberta na norma regra e na norma princípio
Em sua Teoria dos Direitos Fundamentais [1], Robert Alexy desenvolve sua definição da estrutura das normas jurídicas de Direitos Fundamentais, elencando os critérios para a distinção entre as normas regras e as normas princípios. A proposta do jurista alemão contribui bastante para o aperfeiçoamento das teorias da interpretação e argumentação jurídicas, tendo em vista que este consegue propagar modelos mecânicos eficientes para as atividades dos juízes, principalmente no tocante ao conflito entre regras e à colisão de princípios. Para Alexy (2015, p. 85), a distinção entre regras e princípios é uma das mais importantes da ciência do Direito, sendo "um elemento fundamental não somente da dogmática dos direitos de liberdade e de igualdade, mas também dos direitos a proteção, a organização e procedimento e a prestações em sentido estrito". A contribuição do autor possui uma relevância pragmática intensa, não sendo uma mera formulação de caráter abstrato, ajudando em problemáticas, por exemplo, que versem sobre "os efeitos dos direitos fundamentais perante terceiros e a repartição de competências entre tribunal constitucional e parlamento" (2015, p. 85). Robert Alexy, no primeiro subtópico de seu terceiro capítulo da obra, diz que as normas jurídicas podem ser entendidas como Normas Regras ou como Normas Princípios; ambas são normas jurídicas, haja vista que tratam do dever ser, como afirmara Hans Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito [2]. Entretanto, mesmo possuindo uma natureza idêntica, sendo formuladas "por meio das expressões deônticas básicas do dever, da permissão e da proibição" (ALEXY, 2015, p. 87), estas possuem uma distinção, sendo espécies de normas jurídicas. Mas, afinal, do que trata esta distinção? Resumidamente, Alexy informa que inúmeros são os critérios de distinção entre as regras e os princípios, mas que o mais frequente destes seria o critério de generalidade. De acordo com este critério, as normas princípios são mais genéricas, em comparação com as normas regras; segundo as palavras do próprio autor, estas "são normas com grau de generalidade relativamente alto, enquanto o grau de general idade das regras é relativamente baixo" (2015, p. 87). Em outras palavras, os princípios se distinguem das regras por um fundamento de linguagem, tendo uma carga semântica bem mais complexa, no que se refere à sua descrição. Por outro lado, as normas regras são mais objetivas, categóricas, descrevem de forma mais específica a sua significação. Esta é a principal distinção entre as normas regras e normas princípios, segundo Alexy. Exemplificando a teoria, como norma regra, pode-se observar o caput do artigo cinquenta e três do Código Civil, que diz: "Constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos", ou, também, o artigo sessenta e dois da referida codificação, que afirma, em seu caput: "Para criar uma fundação, o seu instituidor fará, por escritura pública ou testamento, dotação especial de bens livres, especificando o fim a que se destina, e declarando, se quiser, a maneira de administrá-la". Com os exemplos anteriores, consegue-se notar o grau de especificidade dos dispositivos, não levando a um nível de generalização intenso. Contudo, ao observar os exemplos dos princípios, nota-se com mais facilidade este elemento, sendo estas normas mais vagas, ambíguas ou porosas, como no caso do artigo primeiro da Constituição da República, ao tratar da dignidade da pessoa humana. A carta magna prevê expressamente que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos do Estado de Direito Brasileiro, mas não traz a definição deste termo. Em verdade, o que significa "dignidade da pessoa humana"? É preciso de um grande embate hermenêutico para a busca desta significação, como ainda ocorre hoje em dia nas disputas argumentativas do Supremo Tribunal Federal. Com isso, compreende-se o nível de generalidade da norma princípio, e a extrema dificuldade de entendê-lo e descrevê-lo [3]. A partir das construções teoréticas anteriores, utilizando-se de todo o aparato desenvolvido por Alexy, é possível criar um nexo entre a teoria do jurista alemão com fundamentos de um outro autor, este, para muitos, o maior jusfilósofo do século XX, o inglês Herbert L. A. Hart. Hart afirma, em sua obra O Conceito de direito [4], que um dos elementos estruturantes do Direito é a sua textura aberta e o poder discricionário do juiz (este elemento em específico gerou um dos maiores debates acadêmicos da história da ciência e filosofia do Direito, ocasionado entre Herbert Hart e o jurista norte-americano Ronald Dworkin, defensor das teses do Juiz Hercules e do Direito como um romance em cadeia). Aqui, o que importará aos fins metodológicos do presente artigo é a definição de Hart sobre a textura aberta do Direito. A textura aberta do Direito pode ser observada, segundo o magistrado britânico, tanto sob a legislação quanto nas decisões judiciais. Deixar-se-á de lado o aspecto que envolve as decisões judiciais, delimitando as explicações em torno da textura aberta do Direito quanto à legislação, sendo esta a Textura Aberta da Norma Jurídica. Para Hart, a textura aberta da norma ocorre por conta de dois fatores: 1) a indeterminação linguística; e 2) a impossibilidade humana de fixar regras específicas prévias para a integralidade das ações e paixões [5] humanas. Segundo o jusfilósofo, "em todos os campos da experiência, e não só no das regras, há um limite, inerente à linguagem humana, quanto à orientação que a linguagem geral pode oferecer" (2009, p. 139); então, por conta desta circunstância lecionada por Hart, a textura aberta constitui essência, sendo uma natureza intrínseca da norma jurídica, seja ela regra ou princípio. Sendo assim, segundo a teoria hartiana, entende-se que a norma jurídica é, por definição, uma manifestação de textura aberta, sendo vaga, ambígua ou porosa. Além disso, sabe-se que tanto a norma regra como a norma princípio possuem esta textura aberta, mas, como assim expresso por Alexy, o princípio é mais vago, ambíguo ou poroso que a norma regra, por conta do elevado grau de generalidade que este possui. Então, juntando as duas conclusões, afirma-se, novamente, que a textura aberta corresponde a uma natureza intrínseca das normas regras e das normas princípios. Posteriormente, visa-se estudar os efeitos práticos desta conclusão conjunta na realidade jurisdicional brasileira, em um novo texto, buscando criar um nexo de concretude (ou, na linguagem kelseniana, de "ser") das fundamentações teóricas apresentadas neste texto. [1] ALEXY, Robert. Teoria Dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros Editores, 2015. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. [2] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998. [3] Ainda, em sua obra, Alexy traz outros critérios de distinção, mas que não são tão frequentes quanto o critério de generalidade, sendo estes "a determinabilidade dos casos de aplicação, a forma de seu surgimento — por exemplo, por meio da diferenciação entre normas 'criadas' e normas 'desenvolvidas' —, o caráter explícito de seu conteúdo axiológico, a referência à idéia de direito ou a uma lei jurídica suprema e a importância para a ordem jurídica" (2015, p. 88). [4] HART, Herbert L. A.. O Conceito de Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. [5] Aqui, o termo "paixão" segue a linha aristotélica: a paixão como categoria, como predicado. A paixão deve ser entendida como a antítese da ação, seu inverso; ou seja, a paixão é o predicado que nomeia aquele quem sofreu/recebeu alguma ação.
2023-01-15T07:17-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-15/otto-pereira-textura-aberta-norma-regra-ena-norma-principio
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Opinião
George Marmelstein: Desvendando os segredos da superaprendizagem
Você já ficou frustrado por tentar aprender uma habilidade nova e fracassar? Não me refiro apenas a uma disciplina acadêmica, mas a qualquer habilidade, como tocar um instrumento musical, falar uma língua estrangeira ou praticar um esporte difícil. Se sim, você não está só. Essa é a realidade da maioria. Na verdade, poucas pessoas dominam a habilidade de aprender com eficiência. Entre elas, algumas parecem desafiar todos os limites da capacidade humana. São os superaprendizes, pessoas aparentemente normais que adquiriram a habilidade de aprender qualquer coisa da forma mais eficiente possível. Veja, por exemplo, Josh Waitzkin, um enxadrista que inspirou o filme Lances Inocentes (A Search For Bobby Fischer). Josh começou a aprender xadrez ainda criança e se tornou um grande mestre aos 13 anos. Depois de ganhar vários torneios internacionais, abandonou o xadrez e se dedicou às artes marciais. Usando os mesmos princípios que desenvolveu para aprender xadrez, tornou-se campeão mundial de Tai Chi Chuan. Há outros iguais a ele. Scott Young, que também é um superaprendiz, escreveu o livro Ultra-Aprendizado para contar a história de pessoas que conseguem aprender uma nova língua em poucos meses ou tocar um instrumento musical após pouco tempo de treino. É como se fossem hackers que conseguiram quebrar o código da maestria e descobriram a melhor forma de aprender qualquer coisa com a máxima eficiência. Antes da internet, esse conhecimento era uma espécie de fórmula secreta compartilhada apenas por poucas pessoas. Mas alguns superaprendizes, como o próprio Josh Waitzkin e seu amigo Tim Ferriss, começaram a mostrar para o mundo como otimizar o processo de aprendizagem. Josh Waitzkin, por exemplo, escreveu The Art of Learning: An Inner Journey to Optimal Performance (A Arte da Aprendizagem: uma Jornada Pessoal à Ótima Performance) em que explica os fundamentos e as técnicas que utilizou para alcançar a excelência no xadrez e na luta. Do mesmo modo, Tim Ferriss publicou Ferramenta dos Titãs: as Estratégias, Hábitos e Rotinas de Bilionários, Celebridades e Atletas de Elite, que compila as táticas que vários top performers adotam para alcançar o sucesso. Inspirado por essa cultura, passei vários anos pesquisando os segredos da aprendizagem de alta performance e fiquei fascinado com a quantidade e a qualidade do conhecimento já produzido. Essa empolgação transformou-se no livro Superaprendizagem: a Ciência da Alta Performance Cognitiva, que sistematiza esse conhecimento e apresenta uma espécie de caixa de ferramentas para uma vida intelectualmente produtiva, com dicas práticas para realizar uma leitura de alto impacto, construir um sistema de anotação poderoso, aplicar técnicas efetivas de treino, montar uma rotina de acordo com o ciclo circadiano, aprimorar hábitos com sabedoria, e assim por diante. Pode até parecer inconveniente, mas dedicar algumas horas à compreensão da aprendizagem é a melhor forma de evoluir mais rápido. Por exemplo, você conhece o seu horário nobre biológico? Você organiza a sua rotina de acordo com o seu cronotipo? Você estimula o inconsciente a trabalhar de modo difuso nas horas em que seu cérebro está relaxado? Você programa o seu sono para maximizar a fixação do conteúdo assimilado? Você não faz nem ideia do que tudo isso significa? Se você não pensa sobre essas coisas, provavelmente está desperdiçando tempo, energia e dinheiro. É provável que você esteja contaminado pela ilusão de aprendizagem, achando que está evoluindo quando, no fundo, por não usar métodos eficientes, está apenas ocupando a mente com informações que serão rapidamente esquecidas. E o pior: está deixando de utilizar todo o seu potencial, pois quem não aplica os melhores métodos vive em estado subótimo de funcionamento e nem se dá conta disso. Quando adotamos as melhores estratégias para nos motivar, organizar o tempo, descansar corretamente, construir hábitos saudáveis e treinar com eficiência, a evolução é inevitável. E para adotar as melhores estratégias, é preciso conhecê-las. O SuperAprendizagem encurta caminhos, unificando todo esse conhecimento em um só livro, como se fosse um manual de autoaprimoramento pessoal. Apesar de ser suspeito, porque sou verdadeiramente fascinado pelo tema, acredito muito no poder transformador dessas ideias. Quando dominamos conceitos como prática deliberada, dificuldades desejáveis, flow, entre várias outras, somos capazes de otimizar o tempo para não desperdiçar energia com práticas ineficientes. Além disso, podemos aprender a formar hábitos para construir uma rotina produtiva e evoluir continuamente sem estresse e sem depender da força de vontade. Enfim, somos capazes de aprender mais, mais rápido e melhor. E essa é a mágica da superaprendizagem. Ela tem um efeito dominó que transforma o processo de evolução em algo prazeroso e que vai se tornando cada vez mais fácil de implementar. Não é preciso ter algum tipo especial de superpoder de transformação para se tornar um superaprendiz. Basta ter a capacidade de buscar a melhoria contínua em tudo o que podemos controlar. Para nossa sorte, essa capacidade já está pré-configurada em nossas mentes. Só precisamos dar uma forcinha para ativá-la e conhecer os melhores métodos para evoluir com eficiência. PS. Se quiser ser um dos primeiros a conhecer os segredos da superaprendizagem, clique aqui e adquira o livro.
2023-01-16T12:16-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-16/george-marmelstein-desvendando-segredos-superaprendizagem
academia
Direito Civil Atual
Embrião extracorpóreo, acesso à informação e dados sensíveis
Recente decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, sobre o acesso à informação quanto ao sexo de embriões criopreservados, descortinou questões jurídicas relevantes [1]. A negativa proferida pela clínica de fertilização, quanto ao acesso à informação, por previsão proibitiva em regulamento deontológico, culminou na judicialização da demanda, tendo, em sua argumentação jurídica central, a violação do direito à informação (a partir da ideia de que os dados embrionários simbolizavam dados sensíveis) e à autodeterminação informativa, evocando-se, por essência, a previsão contida na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). O relator do processo considerou improcedente a argumentação, afastando a incidência da LGPD, que tem como propósito preservar os direitos de liberdade e privacidade, mas não visa garantir indiscriminadamente o acesso a qualquer dado, que pode ser motivado por uma diversidade complexa de interesses. Pois bem. Sabe-se que a ação tramita em segredo de justiça, o que impede o conhecimento sobre a totalidade dos argumentos construídos pelo relator. A situação reclama análise epistemológica mais aprofundada, já que, no país, há dispositivos legais outros e decisão do Supremo Tribunal Federal com implicações diretamente relacionadas ao pleito. O ponto inicial de compreensão perpassa pela aferição da natureza ou condição jurídica do embrião humano em estado extracorpóreo (ou clinicamente criopreservado). O Supremo Tribunal Federal, no histórico julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.510, por maioria, reconheceu a inexistência de um direito à vida do embrião extracorpóreo, não imputando a ele a condição de pessoa e nem a condição de feto. A posição firmada foi de que juridicamente deve-se pensar a vida a partir de um fenômeno gradativo e dinâmico, portanto, sujeito a valorações normativas distintas, à medida em que se constate a evolução dos estados de embrião, feto e pessoa [2]. A posição do STF, associada às proibições contidas em legislações ordinárias quanto à manipulação e venda de embriões humanos, aponta para a real natureza jurídica embrionária: o embrião extracorpóreo tem status jurídico próprio, sua existência não deve ser equipara à condição de pessoa, nem explicada pela atribuição da natureza de coisa, revelando-se ente despersonalizado que assume a condição de categoria jurídica própria [3]. A condição ou natureza jurídica própria desse embrião evidencia que não é ele uma espécie de extensão corporal dos seus genitores, mas, sim, ente que goza de relativa proteção legal, justamente, pela relação com outros bens jurídicos já constitucionalmente protegidos. A proibição de acesso à informação quanto ao sexo embrionário é uma das formas de proteção aos valores constitucionais, como a diversidade, a não discriminação e a igualdade, assegurados quando preservada a naturalidade de manifestação do patrimônio genético humano. Os pontos anteriormente elucidados são muito importantes para que possamos, enfim, chegar às conclusões sobre a correção da decisão no que toca à discussão sobre ser aplicável no caso a proteção de dados pessoais sensíveis. Dado pessoal, como se sabe, é definido na LGPD como sendo qualquer "informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável". Por outro lado, não traz a lei em seu texto conceito sobre o que seriam dados pessoais sensíveis. Preferiu, em seu artigo 5°, II, enumerar certos dados os qualificando como sensíveis [4]. O entendimento sobre o que seriam dados pessoais sensíveis, no campo doutrinário, é vinculado à ideia de proteger dados que têm maior potencial discriminatório [5] e lesivo ao seu titular, seja por sua natureza, seja por determinado contexto. Em que pese haver na LGPD um rol elencando dados sensíveis, a interpretação da doutrina nacional tem sido no sentido de que se trata de rol exemplificativo [6]. Essa interpretação, inclusive, é a que melhor se alinha com o princípio da não discriminação, previsto no artigo 6°, XI, já que qualquer dado com maior potencial discriminatório deve ser categorizado como dado sensível. No caso sob análise, entretanto, essas digressões sobre ser o rol enunciativo nem se colocam como essenciais, já que o dado em questão seria um dado genético, textualmente previsto no artigo 5°, II. O foco da discussão, portanto, não se dá na questão de se dados genéticos são dados sensíveis, mas sim em se os dados relativos ao embrião extracorpóreo devem ser tratados como uma extensão da personalidade dos sujeitos que requereram a fertilização, ou mesmo se poderiam os dados ser tratados como propriedade desses. A resposta é negativa para ambas as questões. O embrião extracorpóreo, como explicado acima, é um ente diferenciado dos sujeitos que requereram a fertilização, não possuindo tampouco o status de coisa. Portanto, correto o magistrado ao não conferir a tutela requerida, já que os fundamentos que poderiam justificar decisão nesse sentido se mostram equivocados. Apesar de a resposta para esse caso ser razoavelmente simples, dela podem derivar outras questões para o futuro. Considerando o status do embrião extracorpóreo, enquanto ente despersonalizado, capaz de titularizar direitos, seria possível se pensar numa tutela de seus dados pessoais? É que, como já destacado, nos termos da LGPD, os dados pessoais são categoria de direitos fundamentais vinculados legalmente a uma única categoria de ente: a pessoa natural. Caberia, então, por alguma espécie de analogia, a proteção dos dados pessoais desses entes? E, caso se responda de modo afirmativo, quem seria o sujeito apto a agir como seu representante? Os médicos? O Estado? Os interessados na fertilização? Como se vê, diversas são as questões que se podem derivar a partir da resposta aqui oferecida, o que mostra que ainda há muito o que se refletir e explorar sobre o tema. [1] JOTA. Bioética. Casal não tem direito de saber sexo do embrião após fertilização in vitro, diz TJ-SP. São Paulo, 02 de janeiro de 2023. [2] MEIRELLES, Ana Thereza. A proteção ao ser humano no direito brasileiro: embrião, nascituro e pessoa e a condição de sujeito de direito. Rio de Janeiro: Lúmen Iuris, 2016. [3] BERNARDES DE MELLO, Marcos. Teoria do Fato Jurídico. Planos da Existência, Validade e Eficácia. São Paulo: Saraiva, 2019. [4] Art. 5º Para os fins desta Lei, considera-se: (...) II - dado pessoal sensível: dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural; [5] TEFFÉ, Chiara Spadaccini de. Dados pessoais sensíveis: qualificação, tratamento e boas práticas. Indaiatuba: Foco, 2022, p. 23. [6] KONDER, Carlos Nelson. O tratamento de dados sensíveis à luz da Lei 13.709/2018. In: TEPEDINO, Gustavo; FRAZÃO, Ana; OLIVA, Milena Donato. Lei geral de proteção de dados pessoais e suas repercussões no direito brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters, 2020, p. 451.
2023-01-16T12:11-0300
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Opinião
Anita Mattes: Propriedade intelectual e as indicações geográficas
O presente ano promete ser desafiador para o sistema de Indicações Geográficas (IG) na União Europeia. Isso porque, em 2022, a Comissão Europeia apresentou uma proposta de estudo e revisão da legislação do sistema de IG para produtos agrícolas, vinhos e bebidas alcoólicas [1], com o escopo de obter uma nova norma unificadora entre os estados até o final de 2023. As indicações geográficas — mecanismo jurídico destinado à proteção de direitos relativos à propriedade intelectual —, identificam e registram produtos com suas qualidades, características ou notoriedades decorrentes de fatores naturais e humanos ligados à sua origem territorial. Entre as mais famosas, temos o queijo parmigiano reggiano, o roquefort, o champagne, o prosecco e diversas outras. Elas constituem, assim, um direito de propriedade intelectual, reconhecido internacionalmente desde 1883 [2], destinado a promover a concorrência leal entre produtores, evitando usos de má-fé ou práticas fraudulentas e enganosas. Num período em que o valor da matéria-prima agrícola aumentou desmesuradamente, principalmente devido à pandemia de Covid-19, as cadeias produtivas de qualidade, como as IGs, causam um forte impacto na atividade econômica, cultural e social das regiões onde estão inseridas. Os produtos IGs possibilitam, deste modo, que os produtores locais permaneçam em seu território de origem e busquem caminhos alternativos de salvaguarda da sua paisagem nas dimensões cultural, espacial, ecológica e econômica [3]. Nesse contexto, as IGs, além de fazer parte do patrimônio cultural e gastronômico de um país, vem desempenhando, nas últimas décadas, um papel cada vez mais relevante nas negociações comerciais locais e internacionais. Na Europa, por exemplo, as vendas de produtos agrícolas, alimentares e bebidas protegidos por Indicação Geográfica resultaram, nos últimos anos, um valor aproximado de venda 74.760 milhões de euros, representando 15,5% do total das exportações agroalimentares da União Europeia [4]. Contudo, apesar de atualmente, na União Europeia, existir mais de 3.459 IGs devidamente registradas — sendo 1.624 denominações de vinho, 1.576 de produtos alimentares agrícolas e 259 de bebida alcoólica —, com um sistema que cumpre uma função importante, a Comissão Europeia crê ainda na necessidade do seu maior fortalecimento visando melhor fornecimento de alimentos de alta qualidade e proteção dos produtos autênticos agrícolas e alimentares locais em todo o território [5]. Deste modo, a proposta de estudo e revisão da legislação do sistema de IG para produtos agrícolas, vinhos e bebidas alcoólicas apresentada pela Comissão Europeia, a ser desenvolvida em 2023, tem como principais objetivos: a difusão do sistema em todo o território, a melhora da proteção e do controle das IG, em particular no âmbito da venda on-line, que vem se tornando um canal cada vez mais relevante e, por fim, a unificação, simplificação e aceleração dos procedimentos de registros das IGs juntos aos órgãos competentes. Outro ponto relevante da reforma é propiciar uma maior atenção na questão da sustentabilidade, consequência direta da política europeia Farm-to-Fork ("da fazenda ao garfo"), aprovada em 2022 pelo Parlamento Europeu [6], que visa, em dez anos, a implantação de um sistema alimentar voltado para medidas e objetivos que envolvem toda a cadeia alimentar, desde a produção, distribuição, até o consumo final. A competitividade dos produtos agroalimentares europeus está intimamente ligada ao conceito de qualidade e a sua proteção é uma componente fundamental das políticas da União Europeia. Nesse contexto, parece que 2023 será um ano de muito trabalho para o setor. Espera-se que do estudo e da revisão da legislação do sistema de IG proposta pela Comissão Europeia surjam iniciativas interessantes e concretas que possam melhorar os padrões e qualidade alimentar, aprimorando a defesa do patrimônio cultural, gastronômico e local, por meio de uma certificação célere e eficaz dos produtos típicos europeus.   Notas [1] Ver em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52022PC0134R(01)&from=EN. [2] Ver em: https://www.wipo.int/treaties/en/ip/paris [3] Veja mais sobre o assunto em tese de doutorado de Henrique Budal Arins, defendida em 19/12/2022, na Univille (Universidade da Região de Joinville) com o tema "Tensão nas narrativas de (des)uso da paisagem cultural: comunicação e sustentabilidade na denominação de origem da banana da região de Corupá". [4] Veja "Estudo sobre o valor econômico dos regimes de qualidade da UE, indicações geográficas (IGs) e especialidades tradicionais garantido (TSGs)", https://www.qualivita.it/wp-content/uploads/new/2020/04/20200420_VALORE-DOP-IGP-COMM.-UE.pdf [5] Disponível em https://www.qualivita.it/wp-content/uploads/2022/04/PROPOSTARIFORMAIG-ITA.pdf. [6] Disponível em: https://ec.europa.eu/food/system/files/2020-05/f2f_action-plan_2020_strategy-info_en.pdf
2023-01-16T09:45-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-16/anita-mattes-propriedade-intelectual-indicacoes-geograficas
academia
Opinião
Alexandre Wunderlich: Em defesa das instituições: não é terrorismo
Atendendo à tendência normativa internacional, a recente Lei 14.197/21 estabeleceu os crimes contra o Estado Democrático de Direito na Parte Especial do Código Penal, todos em franca tutela do Estado de Direito e das suas instituições democráticas — fundamentalmente, condutas contra a soberania nacional, as instituições democráticas, o funcionamento dessas instituições no processo eleitoral e a regularidade dos serviços públicos essenciais. Não se discute, portanto, a necessidade de intervenção penal no campo da ordem democrática, sobretudo em razão da expressiva relevância dos bens jurídicos que foram protegidos.  O capítulo II, do título XII, "Dos crimes contra as instituições democráticas", conta com dois tipos penais: abolição violenta do Estado Democrático de Direito (artigo 359-L) e golpe de Estado (artigo 359-M). Tais crimes tratam do Estado de Direito que se manifesta justamente por meio da regularidade e do funcionamento de suas instituições democráticas [1]. Seria tecnicamente melhor que o título do capítulo fosse também dedicado ao Estado Democrático de Direito, vinculando o nomen juris aos crimes seguintes, que não tratam especificamente da tutela das instituições democráticas, o que acarretaria uma qualificação jurídica mais adequada. De outro lado, não se pode esquecer que a novel legislação fulminou o modelo de segurança nacional imposto no Brasil, adotando, com a tutela das instituições democráticas, um modelo constitucional de proteção e defesa do Estado [2]. Em meu juízo, a opção pela criminalização não macula uma proposta de intervenção mínima de Direito Penal e contribui para a superação definitiva do antigo modelo autoritário, com a adequação ao paradigma trazido pelo texto constitucional [3], que protege a organização política do Estado, fundamentalmente em sua órbita interna. Ocorre que a lei não conceituou o que sejam as instituições democráticas e as figuras penais tutelam o próprio Estado de Direito — em sua essência, a manutenção da ordem democrática. No ponto, quando se trata de proteção das instituições democráticas não há empecilho para um conceito alargado. A expressão deve ser compreendida de forma ampla, como instrumento do Estado que opere em favor de sua integridade, seu funcionamento e de sua própria realização enquanto Estado de Direito. Logo, o Parlamento, o Executivo, o Judiciário e o serviço público essencial, pois a democracia é estruturada e se manifesta justamente por meio dessas instituições. A sua defesa representa a própria proteção da ordem democrática e a plena realização do Estado de Direito por meio da concretização dos direitos fundamentais [4]. Diante do quadro legal brasileiro, o que se viu na capital da República no último dia 8 de janeiro representa gravíssima ofensa a ordem democrática e suas instituições. Há indícios de crimes de alta repercussão. Os meios de comunicação mostraram uma série de crimes que foram praticados com violência e de forma grupal. É o que a doutrina denomina crime de multidão [5], do que são exemplos os linchamentos, as agressões de torcidas organizadas e as invasões coletivas de propriedades privadas ou de órgãos públicos. O que geralmente ocorre é que o tumulto praticado pela multidão que delinque deriva do sentimento de uma experiência de frustração que é comum a todos os membros do grupo, pessoas que, reunidas, com maior facilidade perdem os freios inibitórios, o que consequentemente acarreta o relaxamento do vínculo moral à lei. No plano jurídico-penal, essas situações enquadram-se na autoria coletiva, que torna típica qualquer conduta que integre o conjunto da ação criminosa da turba, havendo assunção de risco, ainda quando a prática é por instinto imitativo. No caso do crime previsto no artigo 359-L do Código Penal, que é classificado como comum e formal, o sujeito ativo não impõe qualquer condição especial, é aquele que tenta, com o preenchimento das exigências normativas, como a violência e a grave ameaça, a abolição da democracia. A doutrina trata a figura jurídica como um crime de atentado, também denominado crime de empreendimento, aquele em que se prevê na descrição típica o comportamento de se tentar o resultado naturalístico, afastando-se assim a possibilidade de reconhecimento da modalidade da tentativa [6]. É claro que o crime exige como elemento subjetivo o dolo específico, pois há um fim especial de agir, ainda que praticado em crime grupal. No caso, tem especial importância a elementar típica de impedimento ou restrição do exercício dos poderes constitucionais, entendidos como os três poderes do Estado — Executivo, Legislativo e Judiciário. Atacar violentamente a Corte de Justiça do país, por exemplo, é forma de impedir ou restringir o exercício do poder constitucional, transparecendo que o ataque da turba pretendia a abolição do Estado democrático de Direito. De outro lado, é um erro invocar a Lei Antiterror na situação dos ataques de Brasília, pois o crime de terrorismo no Brasil, ao contrário de outros países, é praticado por um ou mais indivíduos, desde que por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, e quando cometido com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública (artigo 2º, Lei 13.260/16). À primeira evidência, não estão presentes no ocorrido os imperativos legais do crime de terrorismo, além de faltar a essência do crime, qual seja: a finalidade de provocar terror social ou generalizado. Nesse ponto, há de se ter redobrada cautela, pois a própria lei nacional excepciona as manifestações políticas ao tratar da criminalidade terrorista (parágrafo 2º do artigo 2º: não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei).   Insistir no equívoco técnico é uma aventura jurídica arriscada. Aqui, o risco de uma interpretação alargada do crime de terrorismo pelo Supremo Tribunal Federal pode soar como usurpação de tarefa do legislativo. Além disso, a indevida ampliação ou inadequação técnica de eventual acusação gerará discussão jurídica desnecessária e retardará as punições dos crimes efetivamente praticados. Aliás, convém lembrar que o tratamento da criminalidade terrorista tem produzido efeitos deletérios no modelo garantista ao redor do mundo. É o que ocorreu após a publicação do Patriot Act, nos Estados Unidos, da Lei de Segurança Nacional e de Luta ao Terrorismo do Reino Unido e das declarações de Estado de emergência que acompanhamos na Europa, quando da guerra contra o terror [7]. O antiterrorismo possibilitou um discurso de ampliação dos poderes do Executivo, inclusive para rastrear e interceptar comunicações dos cidadãos. A experiência internacional revela a criação de uma série de limitações aos direitos fundamentais, notadamente dos direitos de liberdade, de comunicação, e do alargamento do tempo de prisão, assim como da limitação do habeas corpus, na redefinição do alcance da proibição da tortura e do tratamento cruel e degradante [8]. Até o momento, pouco se sabe sobre os eventuais agentes privados e públicos que realizaram, auxiliaram e/ou permitiram as práticas ilícitas perpetradas em Brasília. Os fatos dependem de pronta apuração. Há pessoas que praticaram crimes e outros tantos que se manifestaram e que não realizaram crime algum, provavelmente. Por outro ângulo, o que se percebe é que aqueles que organizaram e lideraram os ataques, para além de incidirem em crimes, conseguiram algo que não se viu nos últimos anos no Brasil, reuniram rapidamente, e do mesmo lado, o atual presidente da República e os chefes dos demais Poderes, os governadores dos estados, os ministros da Suprema Corte, o procurador-geral da República e os ministros de Estado. E como era de se esperar, reuniram-se todos em repúdio aos ataques ao patrimônio público e em favor da democracia. [1] WUNDERLICH, Alexandre, Crime político, segurança nacional e terrorismo, SP: Tirant lo Blanch, 2020, p. 46. [2] REALE JÚNIOR, Miguel; WUNDERLICH, Alexandre, "Parecer sobre a Lei de Segurança Nacional e a defesa do Estado de Direito no Brasil", Revista Brasileira de Ciências Criminais, SP: Revista dos Tribunais, n. 182, ano 29, ago./2021. [3] "Artigo 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] II − a cidadania; III − a dignidade da pessoa humana; [...] V − o pluralismo político"; "Artigo 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:[...] II − prevalência dos direitos humanos; [...] VI − defesa da paz; VII − solução pacífica dos conflitos; VIII − repúdio ao terrorismo [...],"; "Artigo 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: I − zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público [...]. No título V, consta: 'Da Defesa do Estado e Das Instituições Democráticas'". [4] WUNDERLICH, Alexandre, Crime político, segurança nacional e terrorismo, p. 272. [5] LIMA, Luiz Fernandes, "Os crimes das multidões", Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 53, p. 322-342, 1958. [Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/66299. Acesso em: 16 jan. 2023.] [6] SOUZA, Luciano Anderson, Direito Penal: Parte Especial: artigos 312 a 359-R do CP. 3ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p. 793. [7] VALENTE, Manuel Monteiro Guedes, Direito penal do inimigo e terrorismo: o "progresso ao retrocesso", 5ª ed., São Paulo: Almedina, 2021, p. 117 et seq; WUNDERLICH, Alexandre, "A criminalização do terrorismo no Brasil: a exceção do crime político a partir da Lei nº 13.260/2016", In: VALENTE, Manuel (coord.), Os desafios do Direito (penal) do Século XXI, Lisboa: Ledit Edições, 2018, p. 101-120. [8] PÉREZ ROYO, Javier (dir.); CARRASCO DURÁN, Manuel (coord.), Terrorismo, democracia y seguridad, en perspectiva constitucional, Madrid: Marcial Pons, 2010; especialmente: GÓMEZ CORONA, Esperanza, "Estados Unidos: política antiterrorista, derechos fundamentales y división de podres", p. 95; CARRASCO DURÁN, Manuel, "Medidas antiterroristas y Constituición, tras el 11 de septiembre de 2001", p. 27. Ver ainda: BACHMAIER WINTER, Lorena, Terrorismo, proceso penal y derechos fundamentales, Madrid: Marcial Pons, 2012 e HUSTER, Stefan; GARZÓN VALDÉS, Ernesto; MOLINA, Fernando, Terrorismo y derechos fundamentales, Madrid: Fundación Coloquio Jurídico Europeo, 2010.
2023-01-17T14:17-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-17/alexandre-wunderlich-defesa-instituicoes-nao-terrorismo
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Academia de Polícia
Comentários sobre a injúria racista recreativa
Breve histórico A Constituição de 1988 traz expresso o repúdio ao racismo, bem como, em seu artigo 5º, inciso XLII, impôs-lhe o rótulo da inafiançabilidade e da imprescritibilidade. Posteriormente, o legislador editou a Lei 7.716, de 1989, chamada de Lei Caó ou Lei do Racismo, a qual definia os crimes resultantes de preconceito de raça ou cor. Não que esta tenha sido a primeira lei a tratar da temática, até porque a Afonso Arinos (Lei nº 7.437/85) lhe precedia cronologicamente. Em 1997, atento aos outros tipos de preconceito, houve o primeiro ajuste substantivo no conceito de racismo, que, segundo a redação inicial da Lei 7.716/89, limitava-se a preconceitos de raça e cor. A partir da Lei 9.459/97, incluiu-se no seu conceito os motivos de etnia, religião e procedência nacional, bem como se criou o instituto da injúria preconceito ou racial no §3º do artigo 140 do Código Penal. O STF, em 2021, ao decidir o case do HC 154.248, entendeu que a injúria preconceito/racial do artigo 140, § 3º, do CP era espécie da racismo e, por sua vez, imprescritível, não importando se o tipo penal se encontra na Lei 7.716/89 ou no Código Penal. Por fim, recentemente, o Congresso nacional editou a Lei 14.532/2023, trazendo modificações na Lei de Racismo, incluindo o artigo 2º-A, o qual, à luz do princípio da continuidade normativo-típica, trouxe parte da injúria preconceito para o bojo da Lei 7.716/1989 "Art. 2º-A — Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional. Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. Parágrafo único. A pena é aumentada de metade se o crime for cometido mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas.” Em face dessa transposição de elementares, esvaziou-se a redação do §3º do artigo 140 do CP, que passou a trazer a seguinte redação: "Art. 140 (…) § 3º. Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência: Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa." Injúria preconceito x injúria racista Desde a Lei nº 9.459, de 1997, a doutrina vem rotulando o §3º do artigo 140 do CP com os nomes jurídicos injúria preconceito ou injúria racial, tratadas como expressões sinônimas. Ao passo que o legislador optou por realocar o núcleo central do referido tipo penal na Lei de Racismo, ou seja, o preconceito baseado em raça, cor, etnia ou procedência nacional, concluímos que não há mais motivos para o uso da terminologia racial ou racista para o referido dispositivo do Código Penal. Por isso, a nosso ver, a injúria inserida no artigo 2º-A da lei 7.716/89 é que deve ser tecnicamente intitulada de injúria racista ou racial, remanescendo para o artigo 140, §3º do CP a terminologia injúria preconceito, na qual se insere a injúria etária, religiosa e a capacitista. Injúria religiosa: entre o antissemitismo e a liberdade religiosa. A Lei 9.459/97 incluiu as circunstâncias de etnia, de religião e de procedência nacional na definição de injúria racial (artigo 140, §3º do CP); contudo essa lógica foi abandonada parcialmente na novel redação do artigo 2º-A. O legislador cometeu o equívoco de permitir que a discriminação religiosa remanesça no crime de injúria preconceito, não sendo transportada para o novel artigo 2º-A. Essa decisão chama a atenção pois a discriminação religiosa — em todas as suas facetas — foi pano de fundo de uma das atrocidades da história da humanidade. O holocausto se originou das entranhas da intolerância religiosa, enraizando-se, gradualmente, na sociedade, com a permissividade de grupos de interesse oportunistas que, almejando proveitos pessoais, promoveram atos de extirpação de incontáveis vidas. E, no Brasil, o debate sobre o antissemitismo foi objeto de case do STF (HC 82.424) no qual se reconheceu o racismo religioso. De outro turno, a decisão legislativa de não potencializar o status da injúria religiosa pode ter se dado para não criminalizar de forma mais ampla o proselitismo religioso, vez que o STF inclusive já reconheceu sua licitude (ROHC nº 134.682/ BA), permitindo-se que adeptos de uma religião busquem o resgate religioso de integrantes de outras religiões ou seitas. Conquanto a Lei nº 14.532/2023 tenha conferido causa de aumento de pena em face de condutas discriminatórias ou preconceituosas que ocorram no contexto de atividades religiosas (artigo 20, § 2º-A, da Lei nº 7.716/89), isso não significou a criminalização da atividade religiosa; na verdade, o legislador mitigou expressamente a incidência do referido tipo penal em outro ponto, imputando o mesmo gravame penal àqueles que obstam, impedem ou empregam violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas. O mesmo Direito Penal que protege a liberdade religiosa, incrimina também a intolerância religiosa em face de outros grupos. Em algumas circunstâncias, será difícil para o operador do direito resolver essa equação, principalmente porque alguns dogmas das religiões se confrontam com a percepção daqueles que não comungam das mesmas crenças de salvação e, portanto, sentem-se discriminados. E as diferentes perspectivas, a nosso ver, ainda que permeadas por falas acaloradas de proselitismo religioso, não são os objetos de incriminação do presente diploma. Se não há crime de divergência hermenêutica de normas jurídicas, menos razão ainda para se punir visões diferentes (e igualmente legítimas) da vida humana e da religiosidade intrínseca da humanidade. Tudo, é claro, se ocorrido sem abuso ou exagero. Mas toda essa discussão mais profunda não alcança a injúria religiosa, pois, como dito, o legislador optou por não internalizá-la na Lei nº 7.716/89, deixando-a à margem desse processo de endurecimento legal. Dolo específico ao quadrado Antes da Lei 14.532/2023, a jurisprudência dos Tribunais Superiores era pacífica acerca da necessidade da presença de elemento especial do dolo ou dolo específico, qual seja o animus injuriandi, para a configuração do crime de injúria (artigo 140, §3º, do CP). Necessário mostrar que a intenção do indivíduo era a de ofender a honra de outrem, portanto. Ratificando tal entendimento, o STJ, em seu ementário "Jurisprudência em Teses" de nº 130 [1], publicado em 9/8/2019, assim dispôs: "1) Para a configuração dos crimes contra a honra, exige-se a demonstração mínima do intento positivo e deliberado de ofender a honra alheia (dolo específico), o denominado animus caluniandi, diffamandi vel injuriandi." Contudo, à medida que a Lei 14.532 de 2023 trouxe causa de aumento inserida no artigo 20-A (contexto ou intenção recreativa), abriu-se a discussão sobre o possível abandono do animus injuriandi. "Art. 20-A. Os crimes previstos nesta Lei terão as penas aumentadas de 1/3 (um terço) até a metade, quando ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação. (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)" Antes de tecer comentários mais profundos sobre os referidos dolos específicos, importante evidenciar a estranha fórmula adotada pelo legislador. Equiparou contexto com intencionalidade para fins de majoração da pena. Perceba-se que "em contexto de recreação" é circunstância objetiva; por exemplo, é um palco de teatro, um show musical, uma festa ou uma roda de amigos. Trata-se de uma análise contextual que se traduz em objetividade. Por isso, não é motivação, mas sim circunstância. Já o segundo momento do tipo legal trata de motivação recreativa e, por esta razão, elemento motivacional/subjetivo, traduzido pela expressão "com o intuito de". Equipara o legislador inadvertidamente essas duas circunstâncias de diferentes naturezas. O elemento subjetivo especial "com intuito de recreação" (artigo 20-A) pode ser aplicado a todo e qualquer tipo penal da Lei nº 7.716/89. Quando aplicável a um tipo penal que não requer expressamente qualquer elemento subjetivo especial, não há nenhuma dificuldade prática em fazê-lo. O dolo específico serve para justificar a maior reprimenda legal, inclusive. Dúvidas maiores surgem quando nos deparamos com a necessidade de coexistência de elemento subjetivo específico previsto — implícita ou expressamente — no tipo penal e o outro do artigo 20-A (com o intuito de recreação). E a injúria racista majorada pelo intuito ou contexto recreativo se amolda a essa situação mais complexa de dois dolos específicos. Nesse caso, há se considerar a coexistência destes, ou seja, aplica-se o que chamamos de dolo específico ao quadrado. A intenção recreativa é a razão exponencial do animus injuriandi, pois facilita e potencializada a consolidação do preconceito nas estruturas sociais. Por isso, a nosso ver, a injúria racista ordinária requer somente o animus injuriandi para a sua consumação. Contudo, se as palavras racistas e injuriosas forem proferidas com intuito ou no contexto recreativos, servindo o autor de tal subterfúgio para camuflar o seu inequívoco intuito de ofender, torna-se possível a incidência da injúria racista majorada pelo contexto ou intuito recreativo. A conduta racista injuriosa, quando escamoteada pelo manto da menor reprovabilidade social, é estruturalmente mais grave do que a conduta realizada às claras e perceptível em sua intencionalidade real por todos. Por isso a possibilidade de majoração da pena, frisamos. E esse argumento sobre a maior reprovabilidade de condutas ardilosas é comum no Código Penal, quando, por exemplo, citamos o homicídio praticado com emboscada ou o furto mediante fraude. O motivo de tal construção legislativa parece ser a intenção de desestimular a defesa de que, por terem sido os dizeres propalados em circunstância ou intencionalidade recreativas, não há se considerar criminosa. Entretanto a jurisprudência já vinha se afastando de teses defensivas que utilizavam a comédia como justificativa para ofensas claras e deliberadas. Vejamos: "RECURSO ESPECIAL Nº 1934802 - RS (2021/0120690-7) DECISÃO Trata-se de recurso especial interposto em face de acórdão que deu parcial provimento ao apelo defensivo, assim ementado: PENAL. PROCESSUAL PENAL. DISCRIMINAÇÃO E PRECONCEITO DECORRENTE DE RAÇA, COR, ETNIA, RELIGIÃO OU PROCEDÊNCIA NACIONAL. ARTIGO 20, §§ 1. º E 2.º, DA LEI N.º 7.716/89. MATERIALIDADE. AUTORIA. DOLO REQUERIDO PELO TIPO. PRESENTES. DOSIMETRIA. FIXAÇÃO DA PENA-BASE AQUÉM DO MÍNIMO LEGAL NA SEGUNDA FASE DA DOSIMETRIA. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA CORRELAÇÃO. CRIME CONTINUADO. INEXISTÊNCIA DE OFENSA. NÚMERO DE DIAS- MULTA. INCOMPATIBILIDADE COM A PENA APLICADA. APELO PROVIDO PARA COMPATIBILIZAR COM A FRAÇÃO DE AUMENTO DO CRIME CONTINUADO. VALOR DO DIA-MULTA. PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA. MANTIDOS NOS TERMOS FIXADOS NA SENTENÇA. 1. O dolo requerido pelo tipo penal verificado presente. Ainda que afirme não haver pretendido menosprezar raça ou etnia, a cabal admissão no interrogatório de que sabia da possibilidade de repercussão penal das condutas praticadas demonstra o dolo. 2. A alegação de que estava praticando espécie de humor, não serve para afastar o delito. A jurisprudência registra precedente de exclusão do delito quando verificado o mero ânimo narrativo, inadmitindo a exclusão na presença de animus jocandi. (...)" Ainda que não baste a alegação de animus jocandi, não é possível a incidência de tal dispositivo incriminador (em sua forma fundamental ou majorada) quando não houver ânimo de ofender. Pelo exposto, a Lei 14.532 de 2023 não afastou a necessidade de animus injuriandi para a consumação do artigo 2º-A da Lei nº 7.716/89. Sob a alegação de necessidade de rompimento da tendência ao racismo estrutural, mas sem abandono do viés finalista do Direito Penal brasileiro, passou-se a agravar a situação daqueles que, com a inequívoca intenção de ofender racialmente uma pessoa, utilizarem-se de fins ou contextos recreativos para escamotearem seu desiderato espúrio. A interpretação equivocada de que o artigo 20-A, por trazer um outro dolo específico, torna desnecessária a intenção do agente de ofender pessoa ou grupo de pessoas determinados (animus injuriandi), afasta-se das balizas do finalismo, porquanto se preocupa mais com fatos e circunstâncias objetivas do que com a intencionalidade do agente. Sujeito passivo da injúria racista Tal qual se dava na injúria preconceito (artigo 140, §3º do CP), na novel injúria racista o sujeito passivo é grupo de pessoas ou pessoa determinada, vez que a conduta racista segregacionista, quando dirigida a pessoas indeterminadas, subsumir-se-ia ao artigo 20 da Lei de Racismo. Se assim não o fosse, estar-se-ia criminalizando a comédia, os comediantes e a liberdade de expressão, ainda que os dizeres de tais profissionais não estivessem embebidos claramente da intenção de ofender alguém ou a uma coletividade de pessoas determinadas. Ademais, criar-se-iam situações esdrúxulas, pois, independentemente de quem fala, o crime incidiria. Um negro fazendo piada sobre características negras, conduziria a incidência do tipo penal em comento? Filmes e séries antigos (que contenham conteúdo jocoso sobre tal temática), ao não serem tirados imediatamente do ar, colocariam seus difusores ou mantenedores sob a mira da referida infração penal? O dolo ao quadrado resolve bem essa celeuma, afastando a incidência de tal forma fundamental ou mesmo a majorada do crime. Imunidades O Código Penal, em seu artigo 142, contempla expressamente as imunidades judiciária, literária, artística e funcional, afastando a incidência da injúria e difamação nessas circunstâncias. Tais imunidades não abrangem a calúnia, vez que há maior grau de interesse público envolvido, pois a imputação versa sobre crime (ainda que falso ou inexistente). Não obstante o exposto, mantendo-se coerência com o que se defendeu sobre a necessidade de animus injuriandi, só há que se permitir a incidência da injúria racista se, utilizando-se das prerrogativas funcionais, ficar claro que as usa para criar subterfúgio para a prática de racismo. Se não existe direito absoluto na Constituição, também não existe imunidade absoluta no Código Penal. Qualquer pessoa que ofenda alguém, travestindo a sua intencionalidade racista de rótulos laborais, não se faz merecedor da proteção legal. Assentou-se, por fim, que, como qualquer direito individual, a garantia constitucional da liberdade de expressão não é absoluta, podendo ser afastada quando ultrapassar seus limites morais e jurídicos, como no caso de manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. Por isso, no caso concreto, a garantia da liberdade de expressão foi afastada em nome dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. (HC 82.424 - STF) O próprio legislador, na redação o inciso II do artigo 142 do Código Penal, deixa transparecer a lógica aqui defendida, principalmente quando menciona "salvo quando inequívoca a intenção de injuriar ou difamar”. Vejamos: "Exclusão do crime Art. 142 - Não constituem injúria ou difamação punível: I - a ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu procurador; II - a opinião desfavorável da crítica literária, artística ou científica, salvo quando inequívoca a intenção de injuriar ou difamar; III - o conceito desfavorável emitido por funcionário público, em apreciação ou informação que preste no cumprimento de dever do ofício." Grupos minoritários: elemento objetivo descritivo ou normativo do tipo? O artigo 20-C norteia a interpretação judicial voltando-se os olhos para a pessoa ou grupos minoritários. "Art. 20-C. Na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência. (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)" Inicialmente, destaca-se que o termo minorias foi despropositado, pois se presume que minoritários são os grupos avaliados numérica e proporcionalmente frente à quantidade da população em geral. Ainda que o aspecto sexista não seja o escopo da presente lei, mulheres são maioria, mas ainda assim precisam de proteção acentuada. Pardos (47%) e pretos (9%) são maioria no Brasil [2], mas ainda assim são beneficiados por políticas públicas de inserção social, a exemplo das cotas para ingresso em universidades e em concursos públicos. Por isso, a terminologia minorias parece despropositada. O objeto da proteção legal — e a sua melhor exegese — deve-se nortear pela necessidade de se construir um país livre de qualquer tipo de intolerância entre todos os seus habitantes, não reduzindo isso ao rótulo de minorias.
2023-01-17T11:16-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-17/comentarios-injuria-racista-recreativa
academia
Tribuna da Defensoria
O ANPP sob o enfoque do princípio da intervenção mínima
A Lei 13.964 de 24 de dezembro de 2019 trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), o qual surge na vertente internacional da expansão dos espaços de consenso e justiça negociada em âmbito penal [1]. Na vertente da Transação Penal e Suspensão Condicional do Processo, trazidos pela Lei 9.099 de 1995, o ANPP revela-se, de acordo com a majoritária doutrina e jurisprudência, mais um instituto de justiça penal negociada. Porém, para nós, e como abaixo será exposto, na mesma linha dos institutos acima mencionados, principalmente quanto a transação penal, o ANPP revela uma política criminal de intervenção mínima do Direito Penal, em apreço e obediência ao direito fundamental de liberdade, alternativa para uma episódica "descriminalização material" do fato formalmente previsto como crime e concretamente indiciado, a depender de presença de requisitos legalmente previstos, e aceitação e cumprimento de condições. Passados quase três anos de vigência da referida lei e das respectivas normas jurídicas, observa-se nos tribunais nacionais, bem como na doutrina, divergências acerca de sua conformação e aplicação. Insta referenciar que em amplitude, o tema da justiça penal negociada vem sendo objeto de analise e críticas em âmbito doutrinário. De modo amplo e geral observa-se que as divergências situam-se no embate da prevalência: a - de um lado do interesse do Indivíduo que sofre indiciamento/acusação penal por parte do Estado visando garantir seus Direitos Fundamentais; b - e de outro o interesse da coletividade, através da já comum vertente de aplicação da lei penal com vistas a pretensa proteção de determinados bens jurídicos, bem como e mais especificamente na temática em exame, de uma otimização e eficiência da prestação jurisdicional penal, com viés inclusive econômico em relação a diminuição de gastos [2]. Pode-se de forma geral, extrair da Constituição Brasileira de 1988, nos seus Fundamentos (artigo 1º); Objetivos (artigo 3º); Princípios (artigo 4º) e Direitos Fundamentais expressa ou implicitamente previstos, dentre outras normas, que ambos os interesses acima aduzidos encontram, em termos genéricos, embasamentos em nossa Lei Maior, pelo que e como não é novidade, sua conformação deve obrigatoriamente observar sopesamentos e ponderações para resolver colisões e conformar racionalmente os interesses com o bom e correto aproveitamento do instituto, de forma a preservar o núcleo essencial dos Direitos Fundamentais em jogo. Ancorado nos fundamentos e diretrizes constitucionais acima apontados, ambas as vertentes encontram suporte nos chamados enunciados gerais da liberdade e igualdade (vistos aqui inicialmente como Direitos Gerais [3]), aceitos como vigas mestras do Constitucionalismo Moderno/Contemporâneo e principalmente na nossa Carta Política que abriga tanto o Estado-Liberal quanto o Estado-Social. Uma analise minuciosa do ANPP em todas as suas nuances, revela a necessidade de profunda pesquisa que o presente ensaio não comporta. Neste momento e como acima apontado, será feita uma analise do instituo propondo uma visão de sua natureza preponderante de norma penal material, como meio alternativo de resolução do suposto conflito penal. Sem nenhuma pretensão de esgotar a discussão sobre a temática específica metodológica, tem-se certo consenso que verificar a natureza jurídica de um instituto, em síntese significa avaliar sua essência; principais características; onde ele se encaixa de acordo com as normas jurídicas as quais deve obediência; podendo ainda passar pela analise de sua finalidade almejada e suas consequências. Sabe-se por outro lado que definir a natureza jurídica de um instituto por vezes não é tarefa fácil e isenta de problemas, haja vista as dificuldades que podem decorrer de: existência da pluralidades de características; inexistência de catalogo específico no ordenamento jurídico; bem como de divergências doutrinárias. Nada obstante temos que, em respeito a Direitos Fundamentais catalogados, vedado será impor uma natureza jurídica a determinado instituto, com o fim de utilizá-lo para uma finalidade predeterminada com simples viés utilitário, ao arrepio de normas e fins constitucionais. Trilhando o caminho acima colocado, inicialmente podemos apontar que o ANPP encaixa-se genericamente como instituto jurídico que visa, através de determinadas regras e condições, regular de forma alternativa um conflito social decorrente de uma suposta conduta catalogada em lei como de natureza penal. Tal conclusão parte da analise da norma escrita no art. 28-A caput [4] do CPP, que remete sua incidência a determinados tipos penais e faz menção a sua necessidade e suficiência para reprovação e prevenção da conduta; bem como das normas escritas no artigo 28-A §§12 13 [5] do CPP que fixam a extinção da punibilidade como consequência de sua aplicação se satisfeitas as condições impostas, não gerando reincidência. Uma "descriminalização material episódica condicionada". Trata-se de uma intervenção mais branda na esfera de liberdade do individuo de acordo com os Princípios da Intervenção Mínima, da Última Ratio, e da Subsidiariedade, afetos ao Direito Penal. Um método alternativo de política criminal de caráter eminentemente penal material, reduzindo a interferência do Estado no Direito Geral de Liberdade do indivíduo em observância ao seu Direito Fundamental. Dentre outros podemos embasar a analise nos estudos e proposições do professor Alessandro Baratta [vi] quando realizando suas pesquisas através da sua criminologia crítica, elabora sistematização de Princípios de Direito Penal Mínimo dividindo-os inicialmente em dois grandes grupos, Intrassistemáticos e Extrassistemáticos, propondo entre esses últimos Princípios Metodológicos da Construção Alternativa dos Conflitos e dos Problemas Sociais, para especificar, dentre outros, o Princípio da Subtração Metodológica dos Conceitos de Criminalidade e de Pena, onde já previa a experimentação de métodos alternativos de resolução de conflitos penais. Propugna o professor Alessandro Baratta: "O Princípio da Subtração Metodológica dos Conceitos de Criminalidade e de Pena propõe o uso, em uma função heurística, de um experimento metodológico: a subtração hipotética de determinados conceitos de um arsenal preestabelecido ou a suspensão (epoché) de sua validade. Recomenda-se aos atores implicados na interpretação dos conflitos e problemas e na busca de soluções, realizar esse experimento, prescindindo, por certo tempo, do emprego dos conceitos de criminalidade e de pena, para verificar se e como os conflitos e os problemas poderiam ser construídos, bem como a respostas ótimas em uma ótica distinta da punitiva. (...)" [7]. Verifica-se na doutrina e na jurisprudência, intenso debate acerca da natureza jurídica do ANPP, se seria um instituto processual ou material penal, ou se teria mesmo caráter híbrido. A nós nos parece na linha acima proposta, que, sem embargo de aspectos processuais previstos para sua aplicação, bem como a sua total regulamentação em um código processual, o aspecto material impõe-se de forma imperativa, analisada sua essência, características, finalidades (autorizadas pela CRFB/1988) e consequências, em observância a obediência aos parâmetros constitucionais. Podemos de forma exemplificativa e hipotética, e na linha do que propugna o ANPP, colocar uma hipótese que bem evidenciaria o raciocínio aqui exposto. Imagine-se que o legislador decidisse por razões de política criminal, eleger que uma única e determinada conduta tipificada como crime, comportasse uma forma de satisfação daquele eventual conflito social penal de forma alternativa mais branda a depender de determinados requisitos e condições: "Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa. § 1º - A pena aumenta-se de um terço, se o crime é praticado durante o repouso noturno. § 2º - revogado. § 3º - Equipara-se à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico. §3º-A - Não sendo, de acordo com as regras processuais vigentes, caso de arquivamento da conduta prevista no caput e §1º deste artigo, e sendo o indiciado primário, o Ministério Público proporá, como opção à resolução do mérito, acordo de não persecução penal, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa ou alternativamente de acordo com as circunstâncias do caso concreto: I - reparar o dano ..... (...); § 3-B. Cumprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade. § 3-C. A celebração e o cumprimento do acordo de não persecução penal não constarão de certidão de antecedentes criminais." Por certo, na hipotética inovação legislativa acima exemplificada (em toda similar ao atual ANPP), ninguém discutiria tratar-se de norma penal material. Destas constatações pode-se arriscar um conceito para o ANPP como sendo instituto jurídico de resolução e satisfação alternativa de conflitos sociais penais de menor potencial ofensivo, de natureza jurídica direito penal material. Esclarece-se que a menção a infrações penais de menor potencial ofensivo no conceito acima proposto é usada de forma abstrata, geral e de acordo com o vernáculo, para situar, dentro da perspectiva do Princípio da Intervenção Mínima, e não no seu sentido jurídico normativo eleito naquele momento temporal pela Lei 9.099/1995 para delimitar naquelas hipóteses (além da menor relevância penal no sentido aqui proposto), a competência dos Juizados Especiais Criminais. Cabe lembrar que em duas oportunidades o legislador ordinário já alargou o concito de infração de menor potencial ofensivo (Lei nº 11.313, de 2006 e Lei 11.705 de 2008). Talvez a dificuldade de enxergar a preponderância da natureza penal material do ANPP, situe-se, na sua captura pela genérica seara da justiça penal negociada, bem como na forma como foi regulamentado. Porém temos que tal visão em muito trata-se do vicioso olhar sem critério e mero transplante jurídico [8] do plea bargaining norte americano, não se fazendo a devida analise de acordo com o que permite a CRFB/1998. Neste sentido, em muito auxilia a compreensão do que aqui proposto, as lições do professor Felipe da Costa De-Lorenzi (2020), que propõe uma tipologia para espécies de justiça penal negociada, propondo três grupos: a - Justiça negociada como alternativa à resolução de mérito; b - Justiça negociada como alternativa à instrução; c - Justiça negociada como colaboração para evitação de crimes ou para a persecução de terceiros [9]. Preleciona o referido autor: "Justiça negociada como alternativa à resolução de mérito. Um primeiro grupo reúne institutos de justiça penal negociada que objetivam evitar a resolução do mérito, ou seja, a decisão a respeito da existência ou não de uma infração penal. (...) Exemplos são a transação penal, a suspensão condicional do processo e os acordos de não persecução" [10]. "Justiça negociada como alternativa à instrução. A segunda manifestação da justiça penal negociada se dá por meio de institutos que objetivam facilitar a resolução do mérito, suprimindo ou reduzindo substancialmente a fase de instrução probatória. (...) utilizando uma manifestação do réu, na qual assume a responsabilidade ou aceita a pena e renuncia a produção de outras provas, com base para decisão de mérito. (...) Exemplos são os acordos para reconhecimento de culpa ou aplicação de pena (a plea bargaining nos Estados Unidos a Verstandigung na Alemanha, o pattegiamento na Itália, a conformidade negociada na Espanha), aos quais chamarei de acordos sobre a sentença" [11]. Tal tipologia nos mostra que vários podem ser os institutos que se enquadram na genérica seara da justiça penal negociada. Porém cada um deles tem suas especificas características, e deve cada qual na sua regulação e aplicação, serem obedientes aos parâmetros constitucionais locais, e guardar coerência com todo o ordenamento jurídico. Constata-se que o ANPP encaixa-se no tipo Justiça negociada como alternativa à resolução de mérito, não adentrando no exame da existência do fato e por tanto da culpa, sendo uma alternativa ao Direito Penal, demonstrando assim sua natureza penal material; ao passo que os acordos para reconhecimento de culpa, dentre eles o plea bargaining, são alternativa à instrução, que utilizando uma manifestação do réu como prova e base para decisão de mérito, demonstra ao contrário sua preponderância como norma de natureza penal processual. Em conclusão, temos que a natureza jurídica do ANPP, sendo norma incidente no Direito Fundamental de Liberdade do Indivíduo (ainda que de forma mais branda) com a finalidade de controle social de conflitos formalmente penais de forma alternativa, e tendo por consequência a extinção de punibilidade, não gerando reincidência, revela-se como norma de natureza jurídica penal material. Tal constatação revelará importância para futuras abordagens com a aplicação da Teoria dos Direitos Fundamentais para uma correta argumentação jurídica do ANPP em todas as suas nuances, para sua conformidade com a constituição brasileira enfrentando questões como, legalidade; retroatividade; isonomia; controle do Ministério Público na negativa de oferta; e a obrigatoriedade de confissão, e outras que podem surgir, mas que exigem cada qual analise e detalhamentos mais profundos.
2023-01-17T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-17/tribuna-defensoria-anpp-enfoque-principio-intervencao-minima
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Opinião
Adriana Cecilio: É preciso conter a degeneração dos Poderes
A origem dos três Poderes remonta à Idade Antiga. Platão, Aristóteles e, de forma mais completa, Políbio explicam esse desenvolvimento da tripartição do poder. Ensinam os mestres que as formas clássicas de governo — a monarquia, a aristocracia e a república —, quando exercidas em sua constituição pura, tendem a degenerar-se dada à falta de controle interno. A monarquia, governo de um só, tende a degenerar-se em tirania. A concentração de poder sem limites nas mãos de um só levará o exercente do poder a abusar dele, transformando-o de monarca em um tirano. A aristocracia, governo de alguns — "os melhores entre o povo", no dizer de Políbio —, tende a degenerar-se em oligarquia. A república, governo da maioria, tende a degenerar-se em anarquia. Assim, para evitar essa degeneração, foi desenvolvida, na Roma Antiga, a teoria da Constituição mista, que tinha por escopo misturar essas três formas de governo. À camada da sociedade composta pela realeza foram outorgados poderes próprios de uma monarquia. Ou seja, na figura do rei ou imperador ficavam concentradas decisões importantes que demandavam escolhas necessárias à administração da cidade-estado, facilitando assim a governabilidade. À nobreza foram atribuídas funções próprias da aristocracia. Cabia aos nobres, esse seleto grupo de pessoas bem preparadas, julgar temas complexos e assim tomar decisões com vistas à manutenção da paz dentro do corpo social. Ao povo, como é a maioria em qualquer nação, dentre outras competências, a mais significativa era a de criar as leis, a fim de as normas possuíssem a maior legitimidade possível. As funções assim divididas funcionavam de forma harmônica, pois a estrutura oferecia recursos para que um grupo pudesse frear a atuação de outro, caso seus atos se revelassem danosos ao interesse comum. Essa engenharia política foi assim desenhada em razão da clara compreensão, pautada pela história, de que sem a existência de controles recíprocos a tendência natural de qualquer agente que exerça o poder é cometer abusos. Séculos depois, esse conhecimento foi trazido novamente à tona com os ensinamentos de Montesquieu, na celebre obra Do Espírito das Leis. A separação dos Poderes foi incluída na Constituição dos Estados Unidos da América (1787) e na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). O Brasil importou todo o modelo de Estado estadunidense, com a Constituição de 1891, instituindo assim a tripartição dos Poderes em nosso país. Essa longa, mas necessária, digressão histórica é essencial para explicar o momento político que estamos vivendo. Os três Poderes possuem inspiração nas formas clássicas de governo: o Executivo, que administra o Estado, tem como parâmetro a monarquia; o Legislativo, que legisla e fiscaliza o Poder Executivo, remonta à república, e o Judiciário, que julga, tem a sua matriz histórica na aristocracia. Entretanto, a história revela que o poder que não encontra limites eficazes tende a degenerar-se. O sistema de freios e contrapesos estabelecido no texto constitucional brasileiro prevê instrumentos capazes de conter abusos, por exemplo, o Poder Executivo pode vetar uma lei criada pelo Poder Legislativo, buscando evitar a criação de leis com vícios de inconstitucionalidade ou que violem o interesse popular. Ao Legislativo é dado processar o impeachment do chefe do Poder Executivo e dos membros do Poder Judiciário, destacando-se especialmente os membros do Supremo Tribunal Federal, limitando assim a atuação desses agentes estritamente ao que lhes compete realizar dentro dos parâmetros estabelecidos na Constituição e na lei que regulamenta o processamento do impeachment. O Poder Judiciário julga e realiza o controle de constitucionalidade dos atos praticados pelos outros Poderes. Esses são alguns exemplos de mecanismos que compõem o sistema de freios e contrapesos previsto na Constituição brasileira. Esse sistema precisa funcionar de maneira eficiente para que os Poderes encontrem limites, evitando assim a prática de abusos por parte dos agentes que compõem essas funções estatais. Entretanto, o que vimos em nossa história recente foi que o impeachment não funcionou quando precisaria funcionar em relação ao chefe do Poder Executivo. O fato de o Poder Legislativo não fiscalizar com eficiência os atos praticados pelo presidente desencadearam uma forte reação por parte do Poder Judiciário, que adotou uma atuação de contenção de danos, por vezes talvez, ultrapassando os limites constitucionais, mas escorado na justificativa da necessidade de impedir ou evitar graves arbitrariedades. Essa análise nos leva aos seguintes apontamentos: A monarquia degenera-se em tirania quando o monarca é incapaz de estabelecer um vínculo de confiabilidade com o povo e passa então a governar pelo medo. Nos tempos antigos e em algumas experiências autocráticas pós-modernas, governar pelo medo ligava-se à repressão, medo da figura central que se encontrava no poder. O que vivenciamos foi uma forma diferente de expressar a tirania. O medo foi implantado através de fake news que envolveram uma parcela do povo em teorias da conspiração, levando as pessoas a crer em riscos e inimigos imaginários. Além dos abusos e violações constantes ao texto constitucional e do uso do poder para beneficiar parentes e amigos. O medo do "comunismo", que colocaria em risco a propriedade privada; da "ideologia de gênero", que corromperia as crianças; "dos banheiros unissex", que seriam espaço de promiscuidade; da "fraude nas eleições", que levaria ao desrespeito da decisão popular; essas e outras graves mentiras amplamente divulgadas pelo ex-presidente e seu staff levaram muitas pessoas a sentir um sério temor por algo que não existe e nunca existirá. Mas o medo foi uma estratégia necessária para que Jair Bolsonaro pudesse se colocar como salvador do povo... O único capaz de solucionar os terríveis problemas que ele mesmo criou de forma fictícia. Uma tirania high-tech. A república degenera-se em anarquia quando, ao invés de o grupo que está no poder cumprir o seu papel institucional buscando fazer leis que regulamente as relações sociais com vistas a buscar o bem comum, cada um visa seus próprios interesses. O desrespeito às leis e a ausência de uma atuação pautada pelo interesse comum geram uma anarquia que leva à ingovernabilidade. O orçamento secreto foi um expediente que viabilizou aos parlamentares manejar mais de 19 bilhões sem nenhuma supervisão efetiva. As decisões não foram tomadas pensando no bem comum, mas sim nos interesses de cada parlamentar e, em especial, no atendimento dos acordos realizados com os parlamentares da base aliada ao Poder Executivo. O resultado da ausência de fiscalização efetiva por parte do Poder Legislativo e o uso inadequado do dinheiro público culminaram em um governo que não realizou nenhuma política pública. E cabe também mencionar a aprovação de leis que em nada se ligam ao atendimento dos interesses do povo brasileiro. Ou seja, a anarquia clássica. Uma aristocracia degenera-se em oligarquia quando os membros do seleto grupo ao qual é confiado o poder passam a tomar decisões que eles julgam mais acertadas, em detrimento de se ater aos deveres que lhes foram confiados. No âmbito do Poder Judiciário, cabe aos seus membros atuar dentro dos limites legais e constitucionais. Agir para além do que o ordenamento jurídico permite configura-se no já conhecido e muito estudado ativismo judicial. Ativismo nada mais é do que o julgador agir de acordo com o seu pensamento, ao arrepio dos parâmetros previstos na legislação. Ainda que as intenções possam ser boas e até pareçam necessárias, não deixa de ser a manifestação de uma degeneração da atuação judicial. Vimos decisões extremamente importantes e corajosas ao longo desses quatro anos, porém, mais recentemente, algumas que podemos talvez questionar se não extrapolaram as fronteiras legais, como, por exemplo, a decisão que determinou a quebra de sigilo dos empresários bolsonaristas, em agosto de 2022. Portanto, para reconstruir o país é preciso que o Poder Executivo consiga conquistar a confiança do povo e debelar as teorias da conspiração que ainda amedrontam parcela significativa de cidadãos brasileiros. Cabe ao Poder Legislativo agir de forma transparente e cumprir seus desígnios fiscalizando de maneira adequada e isenta de interesses personalistas os atos do Poder Executivo. Para tanto, é essencial pôr fim ao orçamento secreto. E ao Poder Judiciário, que ainda está combatendo os atos antidemocráticos, cabe refletir sobre a necessidade de autocontenção em relação a algumas decisões. Todas as atitudes que ultrapassam as balizas constitucionais comprometem a estabilidade do Estado Democrático de Direito. Não existe atuação degenerada benéfica. A curto ou a longo prazo, os prejuízos se manifestarão. Apropriar-se desses conhecimentos fará com que essa fase tão difícil de nossa história recente não tenha sido em vão. Que esse aprendizado nos faça amadurecer e avançar como nação!   - Texto inspirado na obra A Separação dos Poderes e o Sistema de Freios e Contrapesos.
2023-01-18T13:18-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-18/adriana-cecilio-preciso-conter-degeneracao-poderes
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Opinião
Thiago Coutinho: Subaproveitamento das polícias e fatos atípicos
Nos introdutórios estudos do Direito Penal, um dos mais basilares temas a serem discutidos academicamente — para que se possa cogitar caminhar e avançar naquilo que se chama de "teoria do delito" — é a devida conceituação de crime. Tal análise é, inclusive, indispensável para entender quando o Estado pode atribuir a alguém a devida responsabilização por um eventual ferimento à norma penal incriminadora. Em outras palavras, quando há um fato contrário ao que o ordenamento jurídico penal quis proteger. Nessa senda, cumpre sopesar que, majoritariamente, a doutrina penal adota o "conceito analítico tripartite" de crime, o considerando como sendo todo fato típico, ilícito (ou antijurídico) e culpável. Nessa linha, Rogério Greco discorre que: "Isso porque é uma teoria mais garantista, em que para caracterização de um crime deve ser analisado os requisitos de uma forma mais divisível, observando o máximo do interior do crime, para que assim ele possa ser caracterizado ou não. Além de que se tirar a culpabilidade como requisita do crime, haveria um pleonasmo conceitual, visto que todos os requisitos do crime também são pressupostos de pena, e não somente a culpabilidade" [1]. Com isso, vale destacar que o denominado "fato típico" é originário de uma conduta humana indesejada pelas leis, pois carrega consigo um resultado que se amolda àquilo tido por "tipo penal" (que nada mais é do que uma definição estabelecida em lei acerca de comportamentos que violem o que deveria ser tutelado). Desta forma, o doutrinador Eugênio Raúl Zaffaroni pontua que: "A tipicidade penal é uma característica da conduta que se averigua mediante os tipos. Mas, a lei constrói os tipos de diversas formas, havendo quatro estruturas fundamentais, verificando-se a conduta do agente: comissiva, omissiva, dolosa e culposa" [2]. Assim, por óbvio, resta evidente que ante a ausência de um desses elementos não haverá crime! É o que se denomina, portanto, de fato atípico, atipicidade ou falta de tipicidade (quando a conduta humana não preencher algum daqueles elementos do tipo penal já apontados). Feita essa rápida introdução, cabe um paralelo reflexivo concernente à função constitucional das polícias civis e, logo, seu impacto direto na segurança pública. Afinal, se conforme a Constituição Federal (artigo 144, §4°) tal atribuição é a de apurar as infrações penais (exceto as militares), qual a necessidade das polícias civis registrarem fatos atípicos (que não são crimes)? Justamente ao encontro dessa reflexão, a brilhante equipe de inteligência do Núcleo de Estatística e Análise Criminal do Colegiado Superior de Segurança Pública e Perícia Oficial de Santa Catarina, apontou que 40% das ocorrências registradas pelas Polícias Civil e Militar em 2022 são de fatos atípicos! São 429.210 registros policiais que não envolvem crimes! Por conseguinte, resta dizer que todo esse volume de narrativas levadas ao conhecimento policial não guarda competência jurídica às polícias catarinenses, pois não diz respeito a qualquer tipo de infração penal! Logo, é como imaginar um indivíduo se dirigindo a uma concessionária de veículos para comprar um quilo carne; ou por outro lado, alguém que deseje adquirir algum automóvel indo até um açougue. Com o perdão da infame ironia, o fato é que todo esse volume altíssimo de demandas atípicas ocupam um tempo valiosíssimo do efetivo policial. Uma verdadeira piada sem graça! No ponto, a título de exemplificação, tem-se que os casos mais emblemáticos são aqueles envolvendo perda de documentos ou objetos e os acidentes de trânsito sem vítimas. Situações que não são de ordem penal e que, por isso, não competem às polícias. Notadamente, sublinha-se que todo esse tempo é gasto no atendimento "in loco", nos registros de ocorrências presenciais em delegacias ou, ainda, nas análises, validações e despachos daquelas situações noticiadas on-line. E por falar em gastos, há os custos com energia elétrica, impressão de papel, combustível, desgaste de viaturas e, principalmente, de mal emprego humano qualificado. Certamente, toda essa energia poderia ser destinada às investigações criminais e ocorrências que envolvessem, de fato, infrações penais. É como se o efetivo policial "aumentasse" em Santa Catarina, pois haveria maior eficácia e aproveitamento de toda essa força estatal tão importante para a mantença da ordem pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio, como aduz a Carta Magna. Entretanto, não restam dúvidas que há casos graves que demandam registro e que, depois de uma investigação policial se revelam atípicos; a exemplo de suicídios ou acidentes envolvendo vítimas. Todavia, como aqui exposto, bastaria um olhar acurado à gestão e o real desejo de aumentar a eficiência e a eficácia do serviço público policial para mudar esse cenário, que, inclusive, ensejaria em melhor disposição de efetivo, realocação de unidades policiais conforme real demanda criminal das respectivas regiões e, por fim, geraria maior motivação e sentimento de utilidade, importância e pertencimento aos nobres policiais que desempenhariam suas reais funções: investigar crimes!   Referências GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal — Parte Geral, v.1. 12ª Ed. Niterói. Impetus, 2011. ZAFFARONI, Eugênio Raúl; Alejandro Slokar; Alejandro Alagia. Manual de derecho penal, 2ª ed., 4ª reimp. Buenos Aires: Ediar, 2010, p. 355. BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 5/1/2023. [1] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal — Parte Geral, v.1. 12ª Ed. Niterói. Impetus, 2011. [2] ZAFFARONI, Eugênio Raúl; Alejandro Slokar; Alejandro Alagia. Manual de derecho penal, 2ª ed. 4ª reimp. Buenos Aires: Ediar, 2010, p. 355.
2023-01-18T10:40-0300
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Interesse Público
Avaliação de políticas públicas no marco zero da gestão
Inequívoco o amadurecimento da temática afeta à necessária relação entre Direito e políticas públicas num ordenamento constitucional como o brasileiro, em que se tem uma opção fundante em favor de um Estado — e, por via de consequência, de uma administração pública [1] — finalisticamente orientado. Tradução máxima do reconhecimento dessa conexão se teve na edição da Emenda 109/2021, que erigiu como dever das estruturas da administração pública "realizar avaliação das políticas públicas, inclusive com divulgação do objeto a ser avaliado e dos resultados alcançados, na forma da lei". Vivemos hoje primeiro momento de alternância de poder pela via do sufrágio, havido já sob a égide da referida determinação constitucional — e um componente relevante de sua compreensão parece merecer destaque, tendo em conta em especial as eventuais alternâncias de orientação política havidas por todo o território nacional. Refiro-me especificamente aos termos em que o dever constitucional de avaliação de políticas públicas se ponha em relação às novas gestões que se iniciaram há poucos dias. É da natureza mesmo da alternância do poder que se empreenda à consequente revisão da orientação política até então vigente; e constituirá desdobramento natural desse processo, a eventual reconfiguração de políticas públicas antes em curso. Duas questões, todavia, restam sugeridas pela instituição expressa do dever constitucional em relação à avaliação desses mesmos programas de ação: 1) se há um dever específico relacionado à avaliação, antecedente lógico da revisão decorrente da alternância democrática de poder; e 2) caso positiva a resposta à primeira indagação, quais sejam os achados suficientes a justificar a reconfiguração de políticas públicas em curso. Para o enfrentamento desses dois pontos da agenda investigativa que relaciona Direito e políticas públicas, será relevante esclarecer qual seja a concepção adotada em relação à etapa de avaliação: se uma inclinação de teor tecnicista, de simples conformidade entre os resultados de um programa em relação aos objetivos propostos [2]; ou se uma compreensão mais abrangente, alinhada com uma verdadeira sociologia política da administração pública, atenta às transformações nas condições de exercício do poder político e de sua legitimação [3]. A concepção que privilegia a dimensão de resultado, e tem em conta a aptidão da ação pública havida para gerar a entrega de bens ou serviços planejados, propõe relevantes informações sobre a dimensão de execução da política pública. Medição do desempenho governamental soa como ferramenta útil à aferição da eficiência da ação estatal, tanto quando esta seja determinada por uma simples lógica de alocação racional de recursos públicos disponíveis, quanto na hipótese em que a orientação seja a da alocação redistributiva de bens e serviços. Inequívoco o aprendizado potencial desse tipo de iniciativa, eis que é no plano concreto da ação estatal que se poderá aferir equívocos na formulação; a existência de bloqueios fáticos ou institucionais ao programa de ação inicialmente formulado, ou ainda tantos outros incidentes que podem conduzir a um resultado distinto do concebido no plano teórico. Na segunda compreensão da avaliação de políticas públicas – na qual as variáveis incidentes sobre o problema público e as estratégias eleitas para seu enfrentamento são igualmente consideradas, não só na formulação, mas em toda a implementação e avaliação — amplia-se o objeto de análise para além do (des)acerto das escolhas técnicas empreendidas pelo formulador da política pública. Mais do que uma simples aferição de adequação objetiva entre metas e indicadores, tem-se um verdadeiro exercício de política na avaliação das políticas públicas[4]. Esse juízo, que transcende a simples aferição técnica objetiva do alinhamento entre o planejado e as alterações determinadas pela implementação da política pública permitirá, por sua vez, distintos usos, identificados por Faria como (a) instrumental; (b) conceitual; (c) como instrumento de persuasão; e (d) para o "esclarecimento". Retomemos então a questão sugerida a este breve ensaio: a avaliação de políticas públicas, no singular momento do marco zero de uma nova gestão governamental, se apresenta como premissa à formulação de decisões de descontinuidade ou reformulação dessa mesma estratégia de enfrentamento de problemas públicos? A essa primeira indagação, a resposta, na compreensão desta articulista, é de ser inequivocamente positiva, e por várias razões. Em que pese o resultado do sufrágio indicar uma identidade do eleitorado com uma visão de mundo e de Estado detida pelo vencedor da eleição, dificilmente essa orientação ideológica compreende, em detalhes, quais sejam os termos de políticas públicas a serem conduzidas nas áreas "x" ou "y". Evidentemente, em situações extremas — que alguns dirão vivenciadas no momento — se pode identificar uma dissonância radical entre programas de governo, o que já indica a necessidade do câmbio. Mesmo em situações que tais, todavia, o princípio da eficiência, reforçado agora pelo dever constitucional de desenvolvimento de avaliação de políticas públicas, exige uma aproximação fundada em evidências, que permita "entender como uma política foi feita, destrinchar os seus resultados e amparar tecnicamente as decisões para eliminação, continuação ou ampliação de determinada política pública, privilegiando a análise técnica e uso otimizado dos recursos públicos às muitas necessidades sociais" [5]. Importante frisar que o que se defende é a necessidade da existência de elementos de avaliação que amparem o juízo de reformulação ou descontinuidade. Esses mesmos elementos podem ter sido produzidos inclusive pela equipe do governo que se finda — que tem em seu favor, é sempre relevante se destacar, a presunção de legalidade e veracidade. Inexistentes elementos com um mínimo de atualidade, imponível será o desenvolvimento dessa mesma avaliação de parte dos que chegam, como suporte de validade do juízo técnico a ser manifesto em relação à política pública antes em curso. Vale ainda dizer que a afirmação de que a avaliação em sentido estrito, identificada como consonância entre planejamento e execução; entre metas e resultados seja necessária, não afasta a possibilidade de se preservar as políticas públicas em curso no que se está chamando de "marco zero", para que se possa desenvolver a avaliação em sentido mais amplo, acima já referida — que, evidentemente, exige mais tempo. Tem-se então o tema suscitado na segunda questão: quais os achados decorrentes da avaliação de políticas públicas que autorizariam a reconfiguração das estratégias de ação? Essa é pergunta que não admite resposta em abstrato. É certo que o descumprimento do plano de ação, ou mesmo o inatendimento dos resultados inicialmente previstos, sinalizam a necessidade de uma análise quanto às causas deste outcome — mas não permitem por si só afirmar o dever de reconfiguração da estratégia inicialmente desenhada. As razões para o não atingimento dos objetivos previstos podem ser diversas, e possivelmente serão identificadas com mais precisão, a partir da realização de uma avaliação de escopo mais abrangente, que identifique e pondere externalidade negativas que tenham influído no resultado. De todo o exposto, o que resulta é que a legitimação democrática que recai sobre o vencedor do pleito, em especial no marco zero de nova gestão, não parece suficiente a autorizar redesenho ou descontinuidade de políticas públicas, sem a precedente informação originária de um exercício, ainda que mais recortado, de avaliação dos programas de ação antes em curso. Tenha-se em conta que mesmo na perspectiva da política, a avaliação pode se apresentar, como já indicado acima, como um relevante elemento de persuasão. Importante, todavia, tematizar a questão, inclusive para subsidiar a eventual edição da lei reguladora, prevista pelo artigo 37, § 16 CF, com a redação que lhe foi conferida pela Emenda Constitucional 109. Também neste domínio o Direito se vê chamado a resistir a velhos esquemas compreensivos cuja subsistência no imaginário do jurista leva à má compreensão do fenômeno das políticas públicas. Manifestação clara dessa irradiação das matrizes tradicionais do pensamento jurídico é a sobrevalorização que hoje se empreende no campo do Direito, à chamada avaliação ex ante de políticas públicas — que ecoa na verdade a ideia do processo legislativo ou regulatório, com uma preocupação predominante com o dever-ser. O ponto principal é que o marco zero a que se refere o título deste ensaio é de uma gestão — mas nunca da administração pública em si, ou de suas estratégias de enfrentamento de problemas públicos. Uma política pública pode ser reconfigurada ou descontinuada por várias razões — mas nunca pela exclusiva circunstância de que ela seja associada a alguém que foi apeado do poder. [1] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Moralidade administrativa - do conceito à efetivação. Revista de Direito Administrativo, v. 190, p. 1-44, 1992. [2] ALA-HARJA, Marjukka; HELGASON, Sigurdur. Em direção às melhores práticas de avaliação. Revista do Serviço Público, v. 51, nº 4, p. 5-60, 2000. [3] KÜBLER, Daniel e MAILLARD, Jacques de. Analyser les politiques publiques, France: Presses Universitaires de Grenoble, 2009, p. 13. [4] FARIA, Carlos Aurélio Pimenta de. A política da avaliação de políticas públicas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 20, p. 97-110, 2005. [5] MOTTA, Fabrício e BONIFÁCIO, Robert. Políticas públicas: o jabuti do bem. Coluna Interesse Público, Conjur, publicado em 1º de abril de 2021, disponível em https://www.conjur.com.br/2021-abr-01/interesse-publico-politicas-publicas-jabuti-bem, acesso em 18 de janeiro de 2023.
2023-01-19T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-19/interesse-publico-avaliacao-politicas-publicas-marco-zero
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Senso Incomum
Da lava jato à Presunção de Inocência: a procuração invisível!
1. Acepipes epistêmicos sobre os anos ius plúmbeos recentes Evandro Lins e Silva falava de um "mandato popular invisível" — como uma "procuração invisível" para defender ideias. Fernando Fernandes me lembrou disso há alguns dias. Aqui me permito fazer o mesmo — em 2.589 palavras. Reserve 12 minutos para a leitura. Passados os anos ius plúmbeos do império da lava jato e dos anos de suspensão da presunção de inocência, penso que devemos fazer um rescaldo, uma espécie de memória do que ocorreu. E verificar se fazemos (ou fizemos), com H.G. Gadamer, uma boa wirkungsgechichtliches Bewußtsein — isto é, uma análise acerca da força dos efeitos que a história tem sobre nós. A história ensina. Ou não. Ensina mostrando, mais do que dizendo, wittgensteinianamente. O dia 8 de janeiro é um cutuco da história. 2. O ovo da serpente e o feitiço do autoritarismo: ele sempre está à socapa Será que aprendemos com a história? Sentimos a força dos seus efeitos? Talvez. O ovo da serpente nunca é percebido suficientemente. Contar a história faz parte da própria historicidade, corretamente compreendida. Conto, logo existo. É o que estou fazendo aqui. Com a "procuração" (invisível) a la Evandro Lins e Silva. E com a responsabilidade epistêmica de um jurista comprometido com o debate público, com a democracia, e com respostas corretas (que podem ser demonstradas). Antes da lava jato houve o mensalão. Foi quando escrevi que "o direito, a partir de então, seria AM-DM (Antes e Depois do Mensalão). O texto é de 2012 (ver aqui). Uma pena que não errei. Avisei de há muito. O fato é que o projeto de poder da lava jato encantou (até no sentido de "enfeitiçou") a comunidade jurídica, midiática e política. O ovo da serpente foi também um encantador de serpentes. Como na Itália com a Mãos Limpas. O velho e atávico udenismo (às vezes veste toga) sempre está no cio. Fórmula agora aperfeiçoada: amaldiçoar os políticos e no seu lugar colocar outsiders. Bem se viu (e se vê) o que fazem outsiders. Basta olhar pela janela. Eis aí o 8J. O pesquisador Fábio de Sá e Silva sublinha, em bela entrevista à Folha: "Existe uma linha de continuidade entre Lava Jato e ataques golpistas". E eu digo: bingo, Fábio. 3. Destruíram a política. Com isso, de baciada, quase destruíram o país (eis o 8 J como prova). Explico e demonstro. Com a criminalização da política, a fragilização das instituições é (i)mediata. A sede insana de autocratismo. Não é por nada que, dia sim e outro também, o artigo 142 era invocado para justificar intervenção militar e quejandices mil. O direito contra o direito. Uma hermenêutica às raias da delinquência de Hermes. O então presidente da República, militares, gentes do direito, ex-frequentadores de bingos, radialistas, pastores (tem um monte deles presos) — todos transformados em vivandeiras. Gozavam, ao bulir com os granadeiros...! Poucos se deram conta do(s) ovo(s) da(s) serpente(s). De 2014 em diante (tudo já estava se desenhando em 2013). Pergunto: quantos integrantes da comunidade jurídica perceberam que o lavajatismo incubava o autoritarismo e o próprio bolsonarismo que, paradoxalmente, já existia (dormitava) mesmo sem Bolsonaro? Muito poucos. Um pouco de poucos. Muita gente progressista achou que a lava jato era a redenção... Mal sabiam que ali estava o ovo da crotalus terificus (cascavel). Por falar em nomes científicos, parabéns à OAB da Bahia. Lá propõem — e isso vai para ser apreciado na OAB nacional — que advogado que apoia golpe e golpismo "ganha" o certificado de inidôneo. Muito bom. Advogado que quer extinguir a democracia é um caracidio da espécie hoplas malabaricus (mais conhecido como traíra). 4. Do Fusca à Kombi, da Kombi ao ônibus e do ônibus à frota No princípio eram os resistentes. Que só possuíam o verbo. No princípio mal enchiam uma Kombi (há poucos dias ainda conversava sobre isso com o nosso capitão do time do Prerrô, o querido Marcelo Nobre; ele tem isso muito claro!). E sofremos muito. Lembro de meu debate com Moro em 2015. Tempos difíceis. Recordo de um texto que escrevi, em 2015, mostrando o panorama: diagnosticava então, que o direito seria, inexoravelmente, ALV-DLV (Antes da Lava Jato e Depois da Lava Jato). Avisei de novo. Em linguagem bélica, digamos que o lavajatismo foi uma blitzkrieg ou a guerra dos seis dias. À sorrelfa. Demorou para que os resistentes nos reorganizássemos. Juntar os cacos. Os tiros vinham de todos os lados. Mas não bastava combater os desmandos (hoje plenamente demonstrados) da lava jato, a ponto de até o juiz Bretas, hoje, se autodeclarar incompetente. A luta era desigual. Tudo era possível — e com o auxílio da grande mídia. Mas a lava jato tinha seu super trunfo. E qual era? Respondo: algo que o próprio governo petista ajudou a construir: a delação premiada, premiadíssima. Uma autêntica pedra filosofal para obter condenações, pela qual os próprios acusadores escolhiam os advogados dos delatores (isso ainda está pendente de um encontro com a história; a ave de Minerva ainda há de levantar voo). 5. O fim da presunção da inocência como vitamina para a lava jato Em 2016 a tempestade ficou mais que perfeita. Falo do turning point do STF na presunção da inocência (HC 126.292). Naquela tarde, sem aviso, o ministro Teori tirou da manga esse HC. E o STF, por maioria, disse ser inconstitucional aquilo que ele mesmo havia decidido (2009) e que, por isso mesmo, havia sido transformado em lei em 2011. O canto das sereias da "voz das ruas" fez com que se dissesse que a CF diz o que ela nunca disse. Fez com que se contrariasse dispositivo legal que repete exatamente o que diz a CF. Contrariando todo o espírito, toda a lógica estruturante da Carta, em sua densidade principiológica. Como o mundo é esférico e não quadrado, ele dá voltas, muita gente — agora enrolada — que antes esbravejava contra, ainda agradecerá a todos os que lutaram pela presunção da inocência. Sigo. Hoje é possível afirmar que o giro jurisprudencial do STF em 2016 foi o combustível que faltava à lava jato. Além de ser o triunfo do que pregavam Moro e o MPF, facilitava prisões. A imprensa vibrava. O gozo indizível de ver o moralismo triunfar. Repórteres, jornalistas e jornaleiros sabiam antes que os acusados das operações madrugadoras. Era a nova era da comunicação direta juiz-procuradores-imprensa. Rejeitaram a mediação até nisso. E o interessante é que quase 70% da comunidade jurídica (os números são sujeitos a uma auditoria, mas que não seja a das Lojas Americanas — mas é por esse entorno) era contra a presunção da inocência... e coincidentemente a favor da lava jato. Um espelhava o outro. 6. Para além da lava jato, surge uma nova frente de batalha: as ADCs 43, 44 e 54 Então, ao lado do enfrentamento do lavajatismo alimentado por um lawfare sem precedentes, tínhamos que enfrentar o novo posicionamento do STF que, naquele momento, parecia render-se aos encantos da lava jato. E entramos também de cabeça nessa nova frente. Fui um dos subscritores da ADC 44 (Kakay fizera minutos antes o protocolo da ADC 43 — os argumentos não eram exatamente iguais, frise-se, embora buscássemos a mesma coisa; a diferença era que a ADC 44, da OAB, não aceitava a "hipótese STJ", espécie de "terceira via"). Perdemos a liminar e aí começou a luta. Três longos anos. Longos, mesmo. De um lado, a poderosa lava jato e a mídia; de outro, a busca por pautar as ADCs. Até pautar era difícil. Pouca gente sabe, mas chegamos a ingressar com uma ADPF para demonstrar que a falta de pautamento das ADCs já era, em si, uma violação de preceito fundamental. O STF, porém, a fulminou. Para ver como foi difícil esse conjunto de batalhas. 7. A condução coercitiva, os processos e a condenação: o fator Lula A luta foi crescendo. Com o passar do tempo já enchíamos um ônibus, por assim dizer. Aí entra o "fator Lula". Explico: quando ingressamos com as ADCs, Lula não era nem indiciado. E, no meio do caminho, Lula foi indiciado, conduzido à força ilegalmente [1], denunciado e julgado. E preso. Por quase dois anos. Foram muitas frentes de lutas. Ainda por cima surgiu a guerra contra as Dez Medidas propostas por Moro e o MPF, que queriam introduzir — pasmem e se apavorem — prova ilícita de "boa-fé" e quase-acabar com o HC, entre outras barbaridades. Isso não é ficção. Existiu. Para verem que tempos vivenciamos. Sim, veja-se a ousadia do lavajatismo. A sorte nossa é que o projeto das Dez Medidas funcionou como o dilema do trapezista morto: ao se achar tão bom e tão magnifico, pensou que poderia voar. Sigo. Se de um lado fazíamos a peregrinação cotidiana pela presunção da inocência, de outro, sem procuração de Lula (porque ele tinha seus competentes advogados), lutávamos republicanamente por apontar aquilo que representava o começo do fim do devido processo legal em um Estado Democrático de Direito: um ministério público não-isento em conjuminação com o juiz pan(in)competente. Para piorar, no meio disso, até mesmo uma juíza tentou retirar as prerrogativas de ex-presidente de Lula, para cujos advogados fiz parecer pro bono mostrando os equívocos da decisão. Decisões injustas. Porque na democracia o critério público, publicamente verificável, de "justiça" é o direito. Não a opinião pessoal do juiz, da juíza, sua ou minha. Juiz decidindo por convicção, mesmo sem provas. Inventaram novos métodos. Faltou só usar o pintinho envenenado da Tribo dos Azende. O corolário de tudo foi a decisão do TRF-4, que explicitou a parcialidade e falta de isenção do MP. Disse a decisão (aqui): "Não é razoável exigir-se isenção dos procuradores da República, que promovem a ação penal". O que mais precisa(va) ser dito? 8. O Grupo Prerrogativas e a busca dos fundamentos dos fundamentos: o dever de fazer constrangimentos epistêmicos E aqui tenho de falar do Grupo Prerrogativas que se jogou de cabeça nessa "Operação Devido Processo Legal" (chamemo-la assim). Capitaneados por Marco Aurelio de Carvalho, não imaginávamos o nosso papel. Nem seu alcance, tamanho e dimensão política. Tentando explicar a complexidade desse nosso modus operandi: fizemos aquilo que venho chamando de há muito de "constrangimento epistemológico", uma derivação daquilo que o grande Bernd Rüthers denunciou da doutrina alemã quando da ascensão do nazismo. Por isso ele escreveu o premiadíssimo livro Die unbegrenzte Auslegung (Uma Interpretação Ilimitada ou, assim prefiro, uma Interpretação Não Constrangida). Sendo mais claro, fizemos por aqui, em terrae brasilis, o que a doutrina e a comunidade jurídica alemã não haviam feito naqueles anos plúmbeos da ascensão nazista. Denunciamos, nos processos da lava jato, o que Meier-Hayoz, endossado por Rüthers, chamou de — tenho adoração por esse conceito — "carência fundamental de fundamentos" (grundsätzliche Grundsatzlosigkeit). Isto é: o fundamento era o não fundamento — a simples vontade de poder. No caso das ADCs, fomos vencedores por atuação direta, três anos depois de perdermos a liminar. A luta terminou no segundo semestre de 2019, culminando com a libertação de Lula. Isso gerou o livro O Dia em que a Constituição foi Julgada, coordenado por mim e Juliano Breda em edição da RT. Nesse livro aparecem todos os protagonistas, como Defensoria e tantas entidades valorosas. Está tudo ali, tim tim por tim tim. Quanto à lava jato, tudo acabou com apertada maioria do STF julgando Moro incompetente e parcial. Nesse trabalho de convencimento, já aos poucos foi crescendo o número de juristas que se deram conta daquilo que o ovo da crotalus terrificus havia gestado, auxiliado que fomos nessa tarefa com o surgimento da Vaza Jato – cujos dados escabrosos nem foram necessários para a declaração da parcialidade de Moro, embora em termos de opinião pública tais revelações tenham sido de extrema importância. Inegável esse fato. Escrevemos, o Grupo Prerrô — dois livros sobre a parcialidade de Moro: O Livro das Suspeições abriu a trilogia, com o subtítulo O que fazer quando sabemos que sabemos que Moro era parcial e suspeito?, organizado por Carol Proner, Lenio Streck, Marco Aurelio de Carvalho e Fabiano da Silva Santos. O segundo foi O Livro das Parcialidades. Completando a trilogia, em breve lançaremos O Livro dos Julgamentos. E falta talvez um quarto livro: que deveria ser escrito por Rochinha e Manoel Caetano. Seria ótimo! Em termos de artigos, contabilizei incontáveis textos solo (são incontáveis mesmo) e mais outros tantos em coautoria com Marco Aurelio e Fabiano. Incluo aqui artigos publicados nesta ConJur, nos grandes jornais do país, mais periódicos e capítulos de livro. Foram mais de 200 escritos. E também centenas de entrevistas em rádio, TV e sites como DCM, 247, TVT, Fórum, My News, Pannunzio (TV Democracia) e ICL que fizeram uma muralha de resistência contra as investidas neo-udeno-lavajatistas como a de um famoso jornalista que, dia sim e outro também, tocava terror na população, dizendo que, vencêssemos a batalha da presunção da inocência, 170 mil corruptos, estupradores, proxenetas e quejandos seriam imediatamente liberados (e isso me deu muito trabalho respondendo a esse jornalista). Tudo sempre devidamente respondido nos grandes veículos (Folha, O Globo e Estadão). Era bateu, levou. Cumprindo assim um dever republicano de participação no debate público, na esfera pública, desmistificando lendas urbanas e mentiras — informações falsas. 8. De como nós, advogados, fôssemos médicos... haveria passeatas contra antibióticos ou "como garantias passaram a ser 'filigranas'" E as garantias processuais-constitucionais passaram a ser chamadas de "filigranas". Assim começa essa nova fase (filigrana foi a palavra usada por Dallagnol quando um colega seu perguntou sobre se o que estavam fazendo não feria a CF; ao que respondeu: isso é filigrana). Agora o termo "filigrana" passou a ser usado contra a anulação dos processos de Lula. Isto é, para quem pensou que a nossa "Operação Devido Processo Legal" havia terminado e os guerreiros pudessem descansar, iniciou a campanha política pela qual se desqualificava, cotidianamente, a decisão do STF que anulara as sentenças de Lula e considerara Moro suspeito-parcial. Muita gente da mídia (coincidentemente os mesmos que amaldiçoaram a presunção da inocência) chamou as decisões do STF de "filigraneiras". Isto é: anularam por anular. STF "usou de formulismo", diziam. E lá fomos nós novamente. Só nessa nova fase foram mais 60 artigos e mais de uma centena de lives e entrevistas em grandes e pequenos veículos. Somados com os 200 dos quais falei acima, calculemos tudo o que foi feito (falei disso também no Programa WW, CNN, dia 5/1/2023 — acesse aqui a entrevista). Somando tudo — rádio, TV, mídia alternativa, textos escritos — foram mais de 700 inserções. Isso de minha parte, na modalidade solo e em coautoria (Marco e Fabiano). Agora imaginem se adicionarmos o que fizeram os demais membros do Prerrô (Pedro Serrano, Carol Proner, Kakay, Mauro Menezes, Fernando Fernandes, Cattoni e tantos outros — impossível citar a todos; a listagem aqui é exemplificativa). Numa palavra final: como Evandro Lins e Silva, de posse de "procuração invisível", achei que "meus constituintes" mereciam uma accountabillity, a devida prestação de contas deste incomensurável "mandato sem papel e sem assinatura" que nos foi conferido — a mim e aos meus parceiros que primeiro enchiam uma kombi e que, ao final, enchemos muitos e muitos ônibus. E, é claro, sempre haverá quem queira, mesmo chegando atrasado, sentar-se à janela e pegar ar fresco. Mas isso faz parte da própria democracia. É do jogo. Até porque não se deve ter compromisso com os erros do passado — por omissão ou comissão. Pensamos que terminara? Chegou o dia 8 de janeiro. E lá vamos nós de novo! Cá estamos! [1] Sugiro a leitura de dois textos: Lenio critica condução coercitiva e Crítica aos HC 126.292, de Marcelo Cattoni, Diogo Bacha, Alexandre Bahia e Flávio Pedro
2023-01-19T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-19/senso-incomum-lava-jato-presuncao-inocencia-procuracao-invisivel
academia
Controvérsias Jurídicas
A vertente neorrealista e o uso da mentira como arma de guerra
John J. Mearsheimer, teórico das relações internacionais e das ciências políticas, professor titular da Universidade de Chicago, tornou-se um dos maiores nomes da vertente neorrealista das relações internacionais em função de seus escritos, que buscam compreender as razões da hegemonia das grandes potências na contemporaneidade, dentre os quais destaca-se The Tragedy of Great Power Politics. Na referida obra, o autor analisou a importância do poder para a manutenção do Estado, as origens da natureza anárquica do sistema internacional e as principais formas de os agentes estatais exercerem o poder diante de um sistema tão agressivo. Afirma também que, por conta de não existir uma autoridade que se sobreponha aos Estados, os atores políticos detentores do poder buscam constantemente a manutenção de sua hegemonia, cultivando um sentimento de desconfiança e perseguição mútua. "As grandes potências perceberam que a melhor forma de garantir sua segurança é conquistar a hegemonia, eliminando assim, qualquer possibilidade de um desafio por outra grande potência. Apenas um Estado insensato perderia a oportunidade de ser um Estado hegemônico do sistema por acreditar que já tenha poder suficiente para sobreviver" [1]. A corrente teórica neorrealista, ou do realismo ofensivo, caracteriza-se como uma vertente do realismo político, tendo como premissa a atuação predominante dos Estados nas relações internacionais. Trata-se, portanto, de uma teoria de abordagem estrutural que sustenta a imutabilidade da anarquia do sistema internacional (cada Estado procura satisfazer as suas necessidades e prevalecer perante os demais, independentemente do equilíbrio de poder entre as nações). Ainda de acordo com o autor, um dos principais pontos de instabilidade política das relações internacionais perpassa pela mentira, artifício utilizado por chefes de Estado e agências de inteligência para ludibriar outro Estado quanto às suas reais intenções. Na obra Por que os Líderes Mentem: Toda a Verdade sobre as Mentiras na Política Internacional" [2], Mearsheimer apresenta a justificativa utilizada pelo governo de George W. Bush de que Saddam Hussein possuiria grande arsenal de armas de destruição em massa, com o intuito de justificar a futura invasão do Iraque. Para que a investida no Oriente Médio se fundamentasse, sustenta o autor que o governo norte-americano se utilizou de falsas motivações: figuras-chave do governo alegaram a existência de armas de destruição em massa sob domínio iraquiano; afirmaram existir fortes evidências de que Saddam Hussein era aliado estratégico de Osama Bin Laden; sustentaram que o líder iraquiano tinha participado dos ataques ao World Trade Center em 11 de setembro de 2001; e que o objetivo principal da incursão norte-americana era a solução pacífica do conflito, quando, em verdade, a decisão pela invasão armada já estava tomada. Adverte que nenhuma das mentiras contadas pelos integrantes do governo foi para a obtenção de ganho pessoal, mas por acreditar estarem agindo em consonância com os interesses nacionais. Assim, utilizando-se da exegese utilitarista, afirma o autor que a mentira se tornou um importante instrumento de manipulação da opinião pública interna e das relações entre países em âmbito global. Mearsheimer apresenta duas categorias distintas de mentira: as mentiras estratégicas, utilizadas pelos governantes visando à sobrevivência de suas nações no caos das relações internacionais; e as mentiras egoístas, distintas daquelas ditadas por raison d'État, que visam à proteção dos interesses pessoais do governante, de seu grupo político ou de correligionários ideológicos. Centrando-se nas mentiras estratégicas, o cientista político afirma que no espectro da política externa, os líderes se utilizam de mecanismos de falseamento da verdade, que se constituem como invenção (criação de um fato inexistente), torção (inversão de um acontecimento que ensejou a ação) ou omissão (o não dizer de algo relevante para as relações dos países). As mentiras interestatais são aquelas direcionadas para outras nações com o objetivo de obtenção de superioridade estratégica (domínio na produção de alimentos, hegemonia das matrizes energéticas, dependência econômica ou domínio militar). Por sua vez, as mentiras de difusão do medo ocorrem quando um líder mente para seu próprio povo a respeito de uma suposta ameaça de política externa, distorcendo as reais motivações da ação do Estado. Os acobertamentos estratégicos se constituem em ocultação de políticas de governo fracassadas ou controversas, objetivando manter a unidade da opinião pública interna acerca de determinado fato. Tal estratégia, na maioria das vezes, caminha com as mentiras de caráter nacionalista, denominadas pelo autor como "mitificações". Nessas situações, os governantes mentem para seu próprio povo sobre o passado da nação, ensejando na criação de um falso sentimento de pertencimento de grupo que facilite a maior participação popular em conflitos armados. Finalmente, destacam-se as mentiras liberais, as mentiras de imperialismo social e os acobertamentos deploráveis. As mentiras liberais são aquelas destinadas a encobrir o comportamento do Estado ao contradizer amplo conjunto de normas liberais, denotando inequívoco caráter intervencionista e limitador das liberdades individuais. O imperialismo social se fundamenta na mentira contada acerca das reais intenções de outro Estado, de modo a promover seus próprios interesses econômicos, políticos ou militares. Já os acobertamentos deploráveis demonstram caráter personalíssimo, fundados no falseamento de políticas malsucedidas que visam a proteger a figura do líder de eventuais responsabilizações jurídicas. É de acordo com esses preceitos que John J. Mearsheimer também analisa o atual conflito entre Rússia e Ucrânia, o primeiro em continente europeu desde o fim da Segunda Guerra. Nesse contexto, Vladimir Putin se utilizou de várias estratégias para manipular a opinião pública interna, unir o país em torno de um propósito de defesa nacional e fundamentar suas ações perante os organismos internacionais. Operou também o acobertamento estratégico como forma de esconder do público interno e externo os revezes militares e possíveis crimes de guerra e ataques à população civil. Putin tirou proveito da dependência energética do seu continente nos gasodutos russos que vem abastecendo a Europa com intensidade cada vez maior desde o início dos anos 90. O aumento dessa dependência era indicativo de que não havia animosidades entre as nações e que a diminuição da autonomia russa estava absolutamente fora do radar. Outro pretexto utilizado pelo atual regime russo foi a aproximação entre a Ucrânia e a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), que, em tese, representaria ameaça à soberania russa frente aos países do leste europeu, principalmente aos antigos integrantes da Cortina de Ferro. Criada em 1949, durante a Guerra Fria, a Otan se constituiu ao longo do século 20 como meio de aumentar a influência militar norte-americana e garantir sua hegemonia sobre a parte ocidental da Europa. Em função da cláusula de ataque comum, a partir do momento em que quaisquer dos países integrantes do tratado sofrer ataque de nação estrangeira, a ação representará uma agressão a todos os países do grupo. Desse modo, a nação agredida passaria a se valer do poderio militar norte-americano e de outras grandes potências europeias para sua defesa e retaliação. Partindo sempre da premissa de que a aproximação da Ucrânia com a União Europeia representaria um risco à soberania russa, as tentativas de incursão em território ucraniano não são recentes. A Guerra da Crimeia já anunciava a escalada da tensão entre os países, na qual a Rússia anexou significativa parte do território da Ucrânia, fundamental para as relações internacionais por dar saída ao mar Negro e de Azov. Por outro lado, a temerária insistência da Otan em provocar a Rússia com os repetidos convites para o ingresso da Ucrânia contribuiu para dar a Putin a justificativa de que necessitava para a invasão. É fato que os Estados Unidos e a Otan mentiram para Gorbachev, logo após o fim da União Soviética, garantindo a ele que não avançariam "nenhuma polegada" em direção ao leste europeu. Com a queda do muro de Berlim e o fim da Guerra Fria, mesmo com a expressa promessa por parte do governo dos EUA de que a Otan não avançaria nos territórios da Cortina de Ferro, o que se viu a partir de 1991 foi a expansão do bloco, de modo que a Ucrânia e Belarus se tornaram as únicas áreas remanescentes sem influência direta norte-americana. Em 1999, Polônia, Hungria e Chéquia (antiga República Tcheca) ingressaram na Otan. O mesmo se deu com a Letônia, Estônia, Lituânia, Bulgária, Romênia, Eslováquia e Eslovênia em 2004, todos pertencentes à extinta União Soviética, restando claro o descumprimento do acordo firmado no final da década de 80. Logo após as primeiras incursões em território ucraniano, diante da fragilidade do exército resistente e da falta de estrutura das cidades dominadas, o Kremlin começou a propagar que uma das razões para a guerra seria o "processo de desnazificação" das tropas ucranianas, abandonando o motivo precípuo de receio quanto ao aumento de influência da Otan na região. Posteriormente, em mais uma guinada argumentativa, passou a justificar a ação militar em "defesa do povo russo residente em território ucraniano", como se o regime de Zelensky representasse algum tipo de ameaça aos povoados de Donbass. Ressalte-se, por fim, que a Guerra da Ucrânia serve como uma cartilha para o estudo da tragédia da política internacional. Outras mentiras, tais como a mitificação em torno do retorno do grande território russo (do qual a Ucrânia faria parte) serviram para unificar a opinião pública e mobilizar as tropas. Ainda assim, mal calculando o poder de reação da Ucrânia ante o envio de material bélico de alta tecnologia pelos EUA, o governante russo ainda acobertou estrategicamente a retomada de algumas cidades visando a esconder a defasagem de seu exército em comparação com as forças ocidentais. Zelensky, por sua vez, agiu com extrema falta de habilidade, servindo de instrumento para as inoportunas provocações da Otan e agora, embora tenha se tornado celebridade mundial, terá de conviver com o fato de ter arrastado o seu país para a destruição. Qualquer que seja o resultado final dessa guerra, dificilmente a União Europeia abrirá suas portas a um país economicamente destruído. Em todas as situações aqui narradas, muita dor e destruição foi causada e a única vencedora, que sempre colhe seu triunfo, foi a mentira. [1] MEARSHEIMER, John. A tragédia da política das grandes potências. Ed. Gradiva, 2007, p. 48. [2] MEARSHEIMER, John, Por que os líderes mentem: toda a verdade sobre as mentiras na política internacional. Ed. Zahar, 2012.
2023-01-20T11:40-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-20/vertente-neorrealista-uso-mentira-arma-guerra
academia
Opinião
Gabriela Birger: Hora de pautar a saúde mental para julgamento
A saúde mental é tema de enorme relevância e que vem obtendo cada vez mais espaço nas cenas pública e institucional, especialmente em tempos de alta exposição a telas, aceleração e ressaca pandêmica: apenas no ano de 2021, os casos de ansiedade e depressão aumentaram mais de 25% globalmente [1]. Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), atualizados até 2022, apontam que ao menos 1 bilhão de pessoas convivem com algum tipo de transtorno mental, sendo que cerca de 322 milhões de pessoas no mundo sofrem com depressão. Apesar de o tema ainda ser tratado como tabu, uma em cada cem mortes no mundo tem o suicídio como causa [2]. O Brasil, que exibe a imagem de um povo alegre e hospitaleiro, contraditoriamente, ostenta qualificações pouco invejáveis no campo da saúde mental. Somos o país mais ansioso do mundo, o 5º mais deprimido, e o 2º no ranking de países com maior número de casos de burnout. Ainda, segundo a OMS, 30% dos nossos trabalhadores apresentam algum tipo de transtorno mental [3]. A geração de jovens entrante no mercado de trabalho está especialmente exposta: 48% dos indivíduos da geração Z (nascidos entre 1995 e 2010) reportam altos níveis de ansiedade [4], e seu nível de bem-estar emocional é o pior entre todas as gerações [5]. Nesse sentido, a crescente preocupação com propósito, flexibilidade, qualidade de vida, bem como o movimento de quiet quitting podem ser entendidos como sintomas de esgotamento face a uma cultura de louvor ao excesso de trabalho, o que, por sua vez, representa um grande desafio para novas contratações, gerenciamento e planos de sucessão a médio e longo prazo de grandes bancas. No mercado jurídico, notadamente conhecido pelas longas e extenuantes horas de trabalho, prazos exíguos e elevada pressão de clientes (externos e internos), os índices de saúde mental são tão ou mais alarmantes. Com efeito, em que pesem os holofotes apenas mais recentemente recebidos — em parte, pela onda de conscientização sobre a temática (não institucional, diga-se), em parte, por alguns tristes incidentes que passaram a ser denunciados — tudo indica que a má qualidade da saúde mental entre advogados é um problema bastante antigo, mas cujo endereçamento vinha, até então, sendo retirado ou adiado de pauta, para ficar no jargão da classe. Outros países parecem estar à frente na organização e coleta de dados em caráter institucional. Nos Estados Unidos, por exemplo, a questão tem sido objeto de extensos estudos, majoritariamente conduzidos pela American Bar Association (ABA): em 2021, constatou-se que 67% dos advogados reportaram ansiedade, sendo que cerca de 20% admitiram já ter cogitado suicídio em algum ponto da carreira [6]. Ainda, de acordo com a mesma entidade, os advogados estão em 4º lugar entre as classes profissionais que mais cometem suicídio, e são cerca 3,6 vezes mais propensos a desenvolver depressão, quando comparados à população geral [7]. No Brasil, o cenário entre advogados parece não ser muito diferente. De acordo com os últimos dados disponibilizados pelo sistema Smartlab (Ministério Público do Trabalho), os transtornos mentais e comportamentais (burnout, depressão, ansiedade etc.) representaram 30% dos afastamentos de advogados entre 2012 e 2018 [8]. No entanto, as poucas pesquisas aqui realizadas costumam estar desatualizadas e geralmente citam referencias estrangeiras (e.g., a última Cartilha sobre Saúde Mental lançada pela OAB em 2021 toma como base dados da ABA de 2016 [9]). Consequentemente, diante da percepção de deterioração da saúde mental e da falta de estudos específicos no Brasil, conduzimos uma pesquisa sobre a temática entre operadores de direito abrangendo os diversos níveis de senioridade (estagiários, advogados juniores, plenos, seniores e sócios): - na primeira fase, foram realizadas entrevistas com 15 profissionais, de cerca de uma hora de duração, cada uma; - com base nas respostas obtidas, na segunda fase, foi elaborado formulário com 21 questões descritivas e de múltipla escolha, operações de ranking e qualificação com cerca de nove minutos de duração. Tal formulário foi veiculado em diversas mídias sociais e obteve 156 respostas. Abaixo, alguns dos principais insights e correlações [10] obtidos a partir das duas fases acima mencionadas: 1) Baixa qualidade de saúde mental: apenas 4% têm percepção positiva de saúde mental no escritório onde trabalham; 30% dos respondentes acreditam que trabalham em local com condição ruim ou péssima de saúde mental [11]; 2) Mau preparo de gestores: 63% entendem que gestores estão muito mal preparados para lidar com questões correlatas à saúde mental. Apenas 6% entendem que gestores estão bem preparados; 3) Dependência de comportamento de gestores: 75% têm percepção de que qualidade de saúde mental depende diretamente do comportamento dos gestores; 4) Tendência a mudar de emprego em face de melhores benefícios corporativos relacionados a bem-estar: 43% dos respondentes reconhecem alta propensão a aceitar trabalho com menor remuneração, mas que ofereça melhores benefícios ligados a bem-estar. Esse número aumenta para 75% entre aqueles que têm percepção ruim de saúde mental no ambiente de trabalho; 5) Impactos da deterioração de saúde mental: desmotivação e insegurança na execução de tarefas (91%); queda de produtividade (89%); maior dificuldade de se concentrar e piora na qualidade de trabalhos (85%); e maior irritabilidade e atrito entre colaboradores (77%). Demonstradas, portanto, as correlações entre saúde mental, preparo de gestores, produtividade e turnover de colaboradores,­ é tempo de os principais players do mercado jurídico se valerem de diagnósticos e desenho de soluções que efetivamente fortaleçam a percepção de saúde mental entre os advogados, além de promoverem a implementação de práticas ESG (environmental, social and governance) cuja conformidade vem sendo gradativamente exigida por parte da sociedade, investidores e clientes. Vale relembrar a conclusão de importante estudo realizado pela Gallup, com mais de 25 milhões de trabalhadores, segundo a qual as pessoas não deixam corporações — elas deixam equipes e gestores [12]. Concluindo, o presente artigo, longe de pretender exaurir o tema da saúde mental entre advogados, visa a introduzi-lo e, primordialmente sensibilizar seus interlocutores quanto à importância de pautá-lo a julgamento. É que, como já ensinava o pai da psicanálise acerca dos malefícios dos não ditos e estigmatização, "não se pode vencer um inimigo ausente ou fora do alcance" [13]. É preciso autorizar-se a falar e escutar. [1] Covid-19 pandemic triggers 25% increase in prevalence of anxiety and depression worldwide (who.int) [2] 1 bilhão de pessoas vivem com algum transtorno mental, afirma OMS | ONU News [3] World mental health report: Transforming mental health for all (who.int) [4] https://hbr.org/2022/10/a-guide-to-managing-your-mental-health [5] Addressing Gen Z mental health challenges | McKinsey [6] https://www.abajournal.com/news/article/19-of-surveyed-lawyers-and-staffers-said-they-considered-suicide-at-some-point-in-careers [7] Why are lawyers killing themselves? | CNN [8] Transtorno mental é principal causa de afastamento do trabalho | Legislação | Valor Econômico (globo.com) [9] 2018.09.25 - Cartilha Saúde Mental na Advocacia (vfinal) - alta resolução (oab.org.br) [10] A íntegra dos resultados e insights pode ser obtida mediante solicitação à autora da pesquisa. [11] Essa percepção pouco oscilou conforme o nível de senioridade dos respondentes, sendo ligeiramente melhor entre estagiários e sócios. [12] State of the American Workplace, Gallup, 2013. [13] FREUD, Sigmund. "Recordar, repetir e elaborar" (novas recomendações sobre a técnica da psicanálise II), in Obras Completas, Vol. XII, 1914.
2023-01-21T15:16-0300
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Diário de Classe
Argumentos pseudojurídicos alimentaram ataques de 8 de janeiro
No dia 8 de janeiro, uma semana após a posse de Luiz Inácio Lula da Silva, golpistas invadiram os Três Poderes para derrubar o Estado Democrático de Direito. Existem fortes indícios de que o objetivo naquele dia era instaurar o caos para justificar a intervenção das Forças Armadas. Durante quatro anos, o presidente Jair Messias Bolsonaro prometeu a seus apoiadores um regime de exceção inspirado na ditadura militar (1964-1985). Além de Bolsonaro, o golpismo hodierno também contou com o apoio de alguns juristas que elaboraram os fundamentos pseudojurídicos do ataque contra a Constituição de 1988. Esses fundamentos podem ser encontrados na campanha do lavajatismo, na tese do poder moderador das Forças Armadas e na interpretação militarista do artigo 142 da Constituição. Vejamos como cada um alimentou os extremistas que atacaram os três Poderes. No tempo em que a operação "lava jato" se colocava como uma entidade divina, a sociedade foi estimulada a odiar o Supremo Tribunal Federal. Bastava os ministros da corte contrariarem os posicionamentos do juiz Sergio Moro e seus procuradores para que os ataques contra o STF fossem feitos por meios das redes sociais, na maioria das vezes contando com respaldo de parcela significativa da grande imprensa. Os ataques ao STF se baseavam sempre no argumento da impunidade. Como a operação "lava jato" dizia estar em guerra contra a corrupção, por meio de uma campanha puramente moralista, o STF era atacado toda vez que fazia valer a força normativa da Constituição por meio da proteção das liberdades fundamentais. Parecia uma guerra santa contra ministros infiéis. O resultado desse discurso de ódio contra o STF foi a invasão ocorrida no dia oito de janeiro. Entre os três Poderes, o STF foi o que sofreu maior destruição. Muitos extremistas gritavam os seguintes dizeres no momento da invasão: "supremo é o povo". Outro argumento golpista que muito influenciou os extremistas foi a tese do poder moderador das Forças Armadas. Em primeiro lugar é importante destacar que a instituição do Poder Moderador somente existiu na Constituição de 1824, na época do Império. Seu artigo 10 dizia que os Poderes políticos do Império eram quatro: o Poder Legislativo, o Poder Moderador, o Poder Executivo e o Poder Judiciário. Além disso, o artigo 98 definia o Poder Moderador como a chave de toda engenharia política imperial e delegava exclusivamente ao imperador a prerrogativa institucional de exerce-lo na defesa do equilíbrio e da harmonia dos Poderes. Após o fim do Império, o Poder Moderador nunca mais apareceu nas várias Constituições da República. A recente movimentação militar para recuperar o protagonismo político perdido após a redemocratização trouxe de volta a tese do poder moderador das Forças Armadas. Essa tese se baseia no entendimento de que as Forças Armadas têm a prerrogativa de tutelar os demais Poderes em caso de crise política. Algo que inexiste na democracia, já que neste regime político a ordem militar encontra-se sempre em posição de subordinação em relação ao poder civil. E isso é assim por um motivo muito simples: o agente do Estado que tem a prerrogativa de andar armado não pode se beneficiar desta condição para se impor politicamente ou favorecer um grupo político em detrimento de outros. Outrossim, a tese do poder moderador das Forças Armadas se esqueceu de observar um detalhe muito importante: não existe quarto Poder na Constituição de 1988. Seu artigo 2º afirma que os Poderes da União são somente o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. É uma obviedade que não deveria gerar dúvidas entre juristas, mas que alguns distorcem para alimentar o golpismo que ronda o país. Foi nessa perspectiva golpista que a interpretação mirabolante do artigo 142 foi apresentada para os seguidores de Jair Bolsonaro. De acordo com os defensores do militarismo, o artigo 142 garantiria às Forças Armadas a função de moderar a relação entre os três Poderes. Algo que contraria totalmente a base principiológica do Estado Democrático de Direito. No constitucionalismo e na democracia, crises políticas entre os Poderes devem ser resolvidas pelos próprios agentes políticos dos Poderes, sempre na base do diálogo aberto, plural e republicano. Fora da relação entre os três Poderes não há espaço para que alguém se coloque como tutor da ordem institucional. Nesse sentido, é importante entender a natureza constitucional das Forças Armadas na democracia. A formação de carreiras militares profissionais esteve presente na origem do Estado moderno. Para a defesa do território e sustentação da soberania nacional, os Estados modernos elaboraram carreiras burocráticas e fortemente disciplinadas que deram origem às Forças Armadas. E para impedir que militares se utilizassem das armas para impor sua dominação, o constitucionalismo moderno estabeleceu o chefe de Estado na condição de comandante em chefe das Forças Armadas. É o que prescreve o artigo 142 da Constituição quando afirma que as Forças Armadas encontram-se sob a autoridade suprema do presidente da República. Desse modo, as Forças Armadas não são um Poder constituído, mas, sim, carreira burocrática do Estado brasileiro. Palavras têm efeito. Quem propagou os golpismos lavajatista e militarista com roupagem jurídica também se fez presente nos atos extremistas de 8 de janeiro. As pessoas que atacaram os três Poderes foram alimentadas pelo entendimento de que o STF era o grande símbolo da corrupção em Brasília e que as Forças Armadas podiam intervir para colocar "ordem" no país. O ódio acumulado contra as instituições não surgiu do dia para a noite. Ele foi propagado durante muitos anos com o objetivo de destruir a Nova República e trazer de volta os tempos da ditadura militar. E se o golpe tivesse se saído bem sucedido, certamente não faltariam juristas para no dia seguinte redigirem decretos e atos institucionais para o novo regime de exceção. Afinal, quem alimenta golpismos nunca se exime de sustentar ditaduras.
2023-01-21T08:00-0300
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Ambiente Jurídico
O Supremo Tribunal Federal e a regulação do aquecimento global
A litigância climática assumiu um papel sem precedentes no debate constitucional. Em boa hora, pois vivemos em uma geração acostumada a festejar a Carta Política de 1988, que, para além de possuir uma redação democrática, garantiu expressamente direitos constitucionais fundamentais multidimensionais e, ainda, pela riqueza de suas palavras, deixou o texto em aberto para que os hermeneutas, em uma perspectiva intergeracional, pudessem conferir-lhe apropriada interpretação e, até mesmo, [1] ampliar o rol de direitos e garantias e não permitir, evidentemente, o retrocesso dos mesmos. No artigo 102 inserto no Título IV, do Capítulo III, da Seção II, da CF, o Poder Constituinte prevê a estrutura e a competência constitucional do egrégio Supremo Tribunal Federal. Ao excelso pretório, portanto, é conferida, entre outras atribuições, a guarda da Constituição e o controle originário de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual (inciso I, alínea "a"). Neste contexto, parece evidente que caberá ao STF continuar criando os parâmetros e as definições do direito das mudanças climáticas brasileiro e aprofundando a constitucionalização do mesmo. Historicamente, aliás, o STF tem suprido com qualidade, erudição e elegância, lacunas deixadas pelos Poderes Executivo e Legislativo, que não raras vezes temem por desagradar setores da sociedade em temas polêmicos e, em última ratio, o seu próprio eleitorado, o que, igualmente, não deixa de ser compreensível no aspecto político. O aquecimento global e a sua regulação, por certo, é um destes temas sensíveis com os quais o STF já está literalmente convivendo em virtude da inércia dos políticos. O tema das mudanças climáticas, há pouco, era tratado de forma tímida pela doutrina e, de igual modo, os litígios climáticos ainda eram incipientes. Contudo, a situação mudou, considerando, em especial, que o governo do ex-presidente Bolsonaro, com uma agenda anticientífica na área ambiental, omitiu-se no cumprimento dos compromissos assumidos para manter a estabilidade do clima. Demonstração clara desse fenômeno é o conjunto de ações em trâmite e decididas pelo STF, STJ, TRFs e TJs que evidenciam pautas atreladas direta ou indiretamente às mudanças climáticas. Portanto, pode-se observar litígios climáticos diretos (próprios ou puros) e indiretos (impróprios ou impuros) tramitando em nossas cortes. Diretos, próprios ou puros, como já se teve a oportunidade de referir, são aqueles que em seu bojo constam pedidos diretos para o corte imediato de emissões de gases de efeito estufa, fechamento de centrais elétricas movidas pela queima do petróleo e do carvão, entre outros. Os litígios climáticos indiretos, impróprios ou impuros, por outro lado, são aqueles que envolvem a tutela direta da qualidade e quantidade da água, do solo, da qualidade do ar, da proteção da flora, da atmosfera e que, de modo indireto, ou por ricochete, colaboram para a diminuição das emissões antrópicas. Nesta categoria inserem-se aquelas ações mandamentais e igualmente aquelas medidas estruturantes de políticas públicas, tendo como base jurídica, especialmente, em seu bojo, os princípios da prevenção e da precaução, que colaboram para a descarbonização da economia, para a construção de prédios sustentáveis, para edificação de proteções artificiais contra eventos climáticos extremos, para regulação da geoengenharia, para compra de carros elétricos subsidiada, para a concessão de incentivos e subsídios fiscais para as energias renováveis, para a operacionalização da tributação do carbono, entre outras. Existe tendência que o Supremo Tribunal Federal avance de modo progressista para uma jurisprudência holística e descarbonizada em virtude de algumas medidas por este adotadas, como a criação da Pauta Verde de julgamento e, igualmente, pelo Conselho Nacional de Justiça que instituiu: a- o Prêmio Juízo Verde, criado para homenagear iniciativas voltadas à proteção do meio ambiente ou que contribuam com a produtividade do Poder Judiciário na área ambiental [2]; b- o Concurso Nacional de Decisões Interlocutórias, Sentenças e Acórdãos Ambientais [3]; c- o Grupo de Trabalho Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas do Poder Judiciário [4]. A constatação da incorporação dessa tendência de criação de uma jurisprudência sustentável no âmbito climático foi o desfecho, aliás, da ADPF 708, originariamente ajuizada como Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO 60), pelo Partido dos Trabalhadores (PT), pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) e pela Rede Sustentabilidade em que foram apontadas omissões do governo federal por não adotar providências para o funcionamento do Fundo Clima, que foi indevidamente paralisado em 2019 e 2020, além de diversas outras ações e omissões na área ambiental que levaram o Brasil a uma situação de retrocesso e de desproteção em matéria ambiental. No mérito, o STF proibiu de modo exemplar, após a realização de audiência pública multidisciplinar [5], o contingenciamento das receitas que integram o Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (Fundo Clima) e determinou ao governo federal que adote as providências necessárias ao seu funcionamento, com a consequente destinação de recursos. O STF reconheceu, ainda, a omissão da União devido à não alocação integral das verbas do fundo referentes ao ano de 2019. Para o STF, a vedação ao contingenciamento não se justifica em razão do grave contexto ambiental brasileiro, e é preciso ressaltar o dever constitucional de tutela ao meio ambiente (artigo 225 da Constituição Federal). Aliás, dados demonstrados, até por satélite, evidenciam que no ano de 2021 o desmatamento aumentou mais de 22% e alcançou uma área de 13.235 km² representando aumento de 76% no desmatamento anual em relação a 2018. Igualmente, litígio de natureza climática paradigmático foi a ADO-59/STF, sob a relatoria da ministra Rosa Weber, em que se discutia a omissão estatal em relação ao Fundo Amazônia, criado pelo Decreto nº 6.527/2008 [6]. Dados oficiais apresentados pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e inseridos na referida ADO, demonstravam o crescente aumento das taxas de desmatamento no bioma Amazônia nos últimos anos. A partir da captação de imagens de satélites e dados do Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real (Deter), o Inpe apontaram para uma evolução das taxas de desmatamento entre 2013 e 2019: 2013 (5.891 km2/ano), 2014 (5.012 km2/ano) 2015 (6.207 km2/ano), 2016 (7.893 km2/ano), 2017 (6.947 km2/ano), 2018 (7.536 km2/ano) e 2019 (10.129 km2/ano). A partir de tais dados, evidenciou-se que o litígio em questão estava diretamente relacionado a uma das causas do aquecimento global, que é o desflorestamento. A relação entre o desmatamento na Amazônia e o aquecimento global, aliás, já vem bem documentada em sede doutrinária já há alguns anos [7]. O Plenário da Corte, em 3/11/2022, por maioria, conheceu da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, rejeitando as preliminares arguidas, vencidos os ministros André Mendonça, Roberto Barroso, Luiz Fux e Ricardo Lewandowski, que dela conheciam como arguição de descumprimento de preceito fundamental, e o ministro Nunes Marques, que não conhecia da ação, quer como ADO quer como ADPF. Por unanimidade, converteu o julgamento da medida cautelar em julgamento definitivo do mérito. No mérito, por maioria, o tribunal julgou parcialmente procedente a ação e declarou a inconstitucionalidade do artigo 12, II, do Decreto nº 10.144/2019, e do artigo 1º do Decreto no 9.759/2019, no que se referem aos colegiados instituídos pelo Decreto no 6.527/2008; por perda superveniente de objeto, em razão do prejuízo, deixou de acolher o pedido de declaração de inconstitucionalidade do artigo 1º, CCII, do Decreto no 10.223/2020, no ponto em que extinguiu o Comitê Orientador do Fundo Amazônia, uma vez que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF 651, de relatoria da ministra Cármen Lúcia, ao deferir o aditamento à inicial, declarou a inconstitucionalidade desse dispositivo legal. Por fim, determinou à União Federal, no prazo de 60 dias, a adoção das providências administrativas necessárias para a reativação do Fundo Amazônia, nos limites de suas competências, com o formato de governança estabelecido no Decreto nº 6.527/2008. Restou vencido no julgado o ministro Nunes Marques, que julgou improcedentes os pedidos, e, em parte, o ministro André Mendonça [8]. Nas ADPF 748 e ADPF 749, o Partido dos Trabalhadores e a Rede Sustentabilidade, questionaram, dentre outros pontos, a alteração da Resolução 499/2020, do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que revogou a Resolução nº 264/1999, passando a autorizar o licenciamento ambiental [9] para a queima de resíduos sólidos em fornos de cimento nas indústrias, incluindo materiais com altíssimo potencial nocivo, como embalagens plásticas de agrotóxicos [10]. Nas demandas, argumentou-se que a queima desses resíduos poderia ocasionar desequilíbrio ambiental, afetar o clima e a saúde humana, pois o coprocessamento desses materiais emite CO2 e a queima de resíduos, principalmente embalagens de agrotóxicos, geram, além de outros gases de efeito estufa, gases extremamente tóxicos para os seres humanos, com impactos na saúde da população. Argumentou-se, também, que a liberação desses resíduos altamente tóxicos na atmosfera pode agravar o quadro já periclitante de poluição do ar em grande parte do país [11]. Nesse cenário, o Plenário do STF, em decisão unânime, declarou a inconstitucionalidade da Resolução 500/2020 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). A norma havia revogado três outras resoluções do órgão: 284/2001, 302/2002 e 303/2002. Elas dispunham, respectivamente, sobre o licenciamento de empreendimentos de irrigação; os parâmetros, definições e limites de áreas de preservação permanente de reservatórios artificiais e o regime de uso do entorno; e os parâmetros para definição de áreas de preservação permanente nas áreas de dunas, manguezais e restingas nas regiões costeiras do território brasileiro [12]. As aludidas demandas evidenciam que o Brasil vem sendo palco de litígios climáticos com potencial de notável repercussão, dando ensejo a um sólido debate científico e, especialmente, constitucional, sobre tema que ganhou grande importância, notadamente, após o Acordo de Paris, a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e a Encíclica Laudato Sì. Referidas demandas demonstram, outrossim, uma gradativa sofisticação doutrinária [13] na seara dos litígios climáticos, evidenciando que a matéria, antes objeto apenas de debates acessórios (na litigância climática indireta, imprópria ou impura), começam, pouco a pouco, a chegar aos tribunais com a causa de pedir e os pedidos bem definidos (focados nas causas e nas consequências do aquecimento global e na sua regulação), forçando um posicionamento do Poder Judiciário não apenas no aspecto infraconstitucional mas, necessariamente, constitucional, que pode ser chamado de constitucionalismo climático. Nesse sentido, nos próximos anos, o egrégio STF, que tantos serviços já prestou e tem prestado à nossa República, certamente fixará os limites subjetivos e objetivos dos direitos constitucionais fundamentais debatidos nessas contendas climáticas, em especial, com uma possível declaração de um direito constitucional fundamental ao clima estável apto a tutelar não apenas as gerações atuais, mas também as gerações futuras de seres humanos e não humanos. [1] GRAÇA, Cristina. Retrocessos ambientais e os efeitos no combate às mudanças climáticas. In: (Org.) GAIO, Alexandre. A política nacional das mudanças climáticas. Belo Horizonte, Abrampa, 2021. p. 73-90. [2] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Prêmio Juízo Verde. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/sustentabilidade/premio-juizo-verde/. Acesso em: 20 jul. 2022. [3] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Portaria 225 de 2022. Disponível em: https://www.stj.jus.br/internet_docs/biblioteca/clippinglegislacao/Prt_225_2022_CNJ.pdf. Acesso em: 20 jan. 2022. [4] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Grupo de Trabalho Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas do Poder Judiciário. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original1924252021121761bce3e9e9717.pdf. Acesso em: 9 julh. 2022. [5]BORGES; Caio; VASQUES, Pedro Henrique. STF e as mudanças climáticas: contribuições para o debate sobre o Fundo Clima (ADPF 708). Rio de Janeiro: Editora Telha, 2021. [6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADO nº 59/DF. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15344261377&ext=.pdf. Acesso em: 12 mar. 2021. [7]NEPSTAD, Daniel C; et al. Interactions among Amazon land use, forests and climate: prospects for a near-term forest tipping point. The Royal Society Publishing, v. 363, n. 1498, 2008. Disponível em: https://doi.org/10.1098/rstb.2007.0036. Acesso em: 13 mar. 2021. [8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF determina reativação do Fundo Amazônia no prazo de 60 dias. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=496793&ori=1. Acesso em: 20/11/2022. [9] Sobre o tema, consultar: MOREIRA, Danielle de Andrade et al. Litigância climática no Brasil: Argumentos jurídicos para a inserção da variável climática no licenciamento ambiental, 2022. Disponível em: Litigância climatica_final.pdf (puc-rio.br). Acesso em: 3/2/2022. [10] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Notícias STF: STF recebe novas ações contra revogação de resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=452777. Acesso em: 14 mar. 2021. [11] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Notícias STF: STF recebe novas ações contra revogação de resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=452777. Acesso em: 14 mar. 2021. [12]BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo 141. Disponível em: https://arquivos-trilhante-sp.s3.sa-east-1.amazonaws.com/documentos/informativos/informativo-1041-stf.pdf. Acesso em: 20 ago. 2022. [13] GERRARD, Michael; FREEMAN, Jody; BURGER, Michael (Ed.). Global Climate Change and U.S Law. 3rd Edition. New York: American Bar Association, 2023.
2023-01-21T08:00-0300
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Observatório Constitucional
Atos do dia 8/1: um 6 (sic) de janeiro para chamar de nosso
Há pouco mais de dois anos, em 6 de janeiro de 2021, o mundo assistiu estarrecido à invasão ao Capitólio dos Estados Unidos, centro do Poder Legislativo norte-americano. O ataque de apoiadores do ex-presidente Donald Trump, derrotado nas eleições presidenciais de 2020, ocorreu enquanto os membros do Congresso americano se reuniam para confirmar a vitória de Joe Biden e Kamala Harris. Os manifestantes conseguiram invadir o prédio — de onde os congressistas tiveram que ser retirados às pressas — e depredaram severamente o patrimônio público, inclusive peças de valor histórico. Cinco pessoas morreram [1]. Os paralelos entre os atos do último dia 8 de janeiro, ocorridos em Brasília, e o 6 de janeiro de 2021 são inevitáveis. Em ambos os casos, apoiadores de um presidente derrotado na eleição anterior, inconformados com o resultado, invadiram sedes do poder público, com o objetivo de impedir a transferência pacífica de poder que caracteriza uma democracia. Em ambos os casos, não tiveram sucesso, mas causaram graves danos à integridade física de pessoas e ao patrimônio público. Em ambos os casos, danos imensuráveis foram infligidos à própria ideia da democracia. Nos Estados Unidos, os ataques foram mais graves porque o Capitólio estava cheio de congressistas e autoridades públicas, e porque cinco pessoas morreram. No Brasil, os ataques foram mais graves porque foram atingidas as sedes dos três Poderes, numa simbologia nefasta. Mas a comparação entre o 6 de janeiro americano e o 8 de janeiro brasileiro não é útil para definirmos qual ato foi mais ou menos grave. O fundamental nessa comparação é entender não apenas que os Estados Unidos, como o Brasil, vinham enfrentando uma grave crise democrática nos anos que antecederam os ataques [2] — crise essa que ajuda a explicar por que cenas de manifestantes enfurecidos destruindo os símbolos da democracia se tornaram parte da história dos dois países — mas também que os dois anos que separam o 6 de janeiro do 8 de janeiro são uma janela para enxergamos o futuro, se soubermos aprender as lições certas. Uma primeira pergunta é do que estaremos falando em 8 de janeiro de 2024, quando os ataques completarem um ano. Muitos de nós gostaríamos de pensar que estaremos celebrando os efeitos a longo prazo da imediata e robusta resposta, em defesa da democracia, das instituições e da esfera pública aos ataques. Mas uma breve visita aos debates travados em torno de 6 de janeiro de 2022 nos Estados Unidos revela a alta complexidade de uma crise política que não começa e nem termina com os atos violentos de um único dia. Assim como temos lido e ouvido nos últimos dias no Brasil, no imediato pós do 6 de janeiro, os americanos esperavam que os ataques significassem o fim do trumpismo. A violência e o golpismo sem precedentes dos atos chocaram a sociedade americana, e levaram, num primeiro momento, a uma rejeição generalizada de Trump e seu projeto político. Mas no primeiro aniversário dos ataques, os observadores políticos já contavam uma história bem diferente [3][4][5]. O Partido Republicano, que todos esperavam que retornasse aos tempos moderados na era pós-Trump, se radicalizou. Essa é, certamente, uma leitura complexa, mas o fato é que uma minoria dentro do partido repudiou direta e absolutamente Trump e seu projeto político após o 6 de janeiro. Uma maioria seguiu apegada à noção de que o fenômeno político de Trump é a única alternativa viável para retomar o poder no curto prazo [6][7]. A possibilidade de Trump ser o candidato do partido republicano à presidência em 2024 — exceto se for legalmente impedido de concorrer [8] — é real. Os números mostram que os políticos republicanos estão certos em concluir que o trumpismo está vivo. Ele segue sustentado pela fantasiosa narrativa da fraude que teria roubado a vitória de Trump nas eleições de 2020. Por mais incrível que essa narrativa pareça, por mais que Trump tenha fracassado em sua tentativa de fazer a máquina pública embarcar em seu delírio, por mais que nenhum resquício de prova tenha sido apresentado, aproximadamente dois terços dos republicanos declararam, em 2022, que acreditavam que as eleições foram roubadas [9][10]. Talvez ainda mais incrível seja o fato de que a força da narrativa de Trump cresceu, ao invés de arrefecer, no ano que procedeu os ataques. As pesquisas mostram que o número de americanos que acreditam que Trump não teve nenhuma responsabilidade pelos atos ocorridos em 6 de janeiro de 2021 cresceu consideravelmente nos 12 meses seguintes, saindo de 24% para 32%; ao mesmo tempo, o número de pessoas que acreditam que Trump foi responsável pelos ataques caiu de 52% para 43%. Nem mesmo a ampla exposição dos trabalhos da comissão instalada no Congresso americano para investigar os ataques foi capaz de alterar esse quadro. Quase 80% dos republicanos declaram que não tem confiança de que as investigações da comissão são conduzidas de forma justa [11]. Não se trata de uma minoria isolada. São dezenas de milhões de pessoas sustentando uma narrativa completamente afastada da realidade. Entender como essa narrativa continua a crescer e florescer é parte fundamental da lição que podemos extrair dessa comparação com o 6 de janeiro americano. O professor da Harvard Kennedy School Alexander Keyssar, ao reconhecer a existência concomitante de duas narrativas completamente opostas sobre os ataques nos Estados Unidos, afirma que o problema está, em parte nas fontes. Keyssar descreve uma realidade que deve soar familiar a qualquer brasileiro em 2023; uma realidade na qual parte da população se informa através da grande mídia — da CNN ao New York Times — enquanto outra parte consome única e exclusivamente informações veiculadas através das redes sociais ou pelo canal de extrema direita Fox News, dentro de sua própria bolha ideológica [12]. Essas fontes desconectadas e diametralmente opostas de informação ajudam a construir sensos de realidade paralelos e opostos entre si. Não à toa o debate nos Estados Unidos tem se voltado cada vez mais à regulação de conteúdo nas redes, em como bloquear a desinformação e tentar verter os dois polos do país de volta a uma única realidade [13]. Esse debate também ecoa entre nós com cada vez mais força, e embora por razões bem diferentes das americanas, gera níveis igualmente altos de controvérsia. Os Estados Unidos estão presos a uma realidade jurídica construída ao longo de décadas, em que a liberdade de expressão foi tratada como um super princípio e as restrições a ela reduzidas ao extremo. O cenário deixado pela jurisprudência da primeira emenda relega a atores privados — primordialmente as próprias redes sociais — a tarefa de regulação de conteúdo [14]. Uma das grandes queixas dos progressistas americanos hoje está relacionada à recusa dos empresários das empresas de tecnologia em cumprir essa tarefa satisfatoriamente [15][16]. No Brasil, gravitamos para um cenário quase diametralmente oposto. Longe de deixar a regulação de conteúdo a cargo de atores privados, o estado judicial avançou sobre essa tarefa, que hoje está a cargo primordialmente do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral [17]. Essa escolha vem com seus próprios problemas, e é fundamental discuti-los a fundo. Mas é igualmente fundamental entender, a partir da experiência comparada daquele que foi, até o final do século XX, o grande modelo da democracia ocidental, que agir para mudar a realidade que as redes criaram na política é fundamental para o futuro da democracia. Keyssar afirmou que um dos únicos caminhos possíveis para reverter o cenário de polarização política que culminou na rejeição da própria democracia é uma rejeição generalizada dessa alternativa, que passa necessariamente pelo jurídico [18]. Punição e, sim, controle do discurso, são ferramentas de que o estado dispõe para preservar a democracia diante de graves ameaças a sua sobrevivência. A principal lição que podemos retirar do 6 de janeiro americano é que atos atentatórios à democracia não vão por um fim ao processo de erosão do qual não são mais que um sintoma. Por mais chocantes que sejam as cenas que se produzem nesses atos, o choque por si só não é suficiente para salvar o sistema democrático. A luta está apenas começando, e essa percepção deve guiar inclusive as (necessárias) críticas aos excessos eventualmente cometidos por qualquer dos braços do estado na reação aos ataques. O que não podemos fazer é nos esconder atrás de uma aparência de normalidade, e criticar qualquer atuação estatal como se fosse tomada em tempos comuns. Tal foi a estratégia adotada pelos republicanos nos Estados Unidos, que insistem em dizer que o país segue dando atenção demais aos acontecimentos de 6 de janeiro [19]. E tal tem sido o tom usado para criticar as ações energéticas e imediatas tomadas pelo Supremo Tribunal Federal após os ataques de 8 de janeiro. O Supremo, que foi a principal vítima dos atos de violência, está sujeito à accountability social, tal qual qualquer outro ramo do estado; mas nenhum estudioso de constitucionalismo e democracia pode duvidar que foi o Supremo que, acima de qualquer outra instituição, e muito antes de ver seu plenário completamente destruído por vândalos, agiu como um guardião da democracia frente aos sistemáticos abusos dos últimos quatro anos [20]. O Brasil após o 8 de janeiro de 2023 possui vantagens sobre os Estados Unidos após o 6 de janeiro de 2021. Vantagens que incluem não apenas uma autoridade eleitoral fortalecida e centralizada e uma Corte Constitucional que não foi capturada pelo governo derrotado, mas também o benefício do tempo, que nos permite aprender com os erros que foram cometidos lá fora e seguir o caminho dos acertos. Lutemos pela democracia, com as armas que temos. [1] FEUER, Alan; Broadwater, Luke; HABERMAN, Maggie; BENNER, Katie; SCHMIDT, Michael S. Jan. 6: the story so far. The New York Times, edição especial interativa, 2023. Disponível em: https://www.nytimes.com/interactive/2022/us/politics/jan-6-timeline.html?smid=url-share. [2] Sobre a crise constitucional americana, ver c.f. BALKIN, Jack M. How to do constitutional theory while your house burns down. Boston University Law Review, vol. 101, 2021. No Brasil, ver c.f. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Democracia em Crise no Brasil: Valores Constitucionais, Antagonismo Político e Dinâmica Institucional. São Paulo: Contracorrente, 2020. [3] ALMOND, Steve. Jan. 6 was supposed to be the end of Trumpism. But what if it was just the beginning? Wbur Cognoscenti, 5/1/2022, disponível em: https://www.wbur.org/cognoscenti/2022/01/05/jan-6-insurrection-donald-trump-democrats-steve-almond. [4] JONG-FAST, Molly. Instead of Disavowing Trump in the Year After January 6, Republicans Gave Up on Democracy. Vogue, 6/1/2022, disponível em: https://www.vogue.com/article/january-6-one-year-later. [5] BEAUCHAMP, Zack. How does this end? Where the crisis in American democracy might be headed. Vox, 03/01/2022, disponível em: https://www.vox.com/policy-and-politics/22814025/democracy-trump-january-6-capitol-riot-election-violence. [6] ZIMMER, Thomas. Republicans always choose radicalization to energize their electoral base. The Guardian, 22/10/2022, disponível em: https://www.theguardian.com/us-news/2022/oct/22/republicans-january-6-trumpism-radicalization-voters. [7] COLVIN, Jill. One year ago, Republicans condemned Jan. 6 insurrection. Yesterday, their response was far more muted. PBS News Hour, 07/01/2022, disponível em: https://www.pbs.org/newshour/politics/one-year-ago-republicans-condemned-jan-6-insurrection-yesterday-their-response-was-far-more-muted. [8] Ver, acerca das possibilidades jurídicas de impedir a candidatura de Trump, ACKERMAN, Bruce. MAGLIOCCA, Gerald. Criminal prosecution is the wrong idea. Use the 14th Amendment on Trump. The Washington Post, 27/12/2022, disponível em: https://www.washingtonpost.com/opinions/2022/12/27/trump-jan6-constitution-fourteenth-amendment/. [9] ALMOND, Jan. 6 was supposed to be the end of Trumpism. [10] BEAUCHAMP, How does this end? Where the crisis in American democracy might be headed. [11] Para esses e outros dados sobre a percepção dos americanos sobre os ataques de 6 de janeiro de 2021, ver JONES, Bradley. Fewer Americans now say Trump bears a lot of responsibility for the Jan. 6 riot. Pew Research Center, 8/2/2022, disponível em: https://www.pewresearch.org/fact-tank/2022/02/08/fewer-americans-now-say-trump-bears-a-lot-of-responsibility-for-the-jan-6-riot/. [12] PAZZANESE, Christina. Dark lessons of Jan. 6 Capitol assault. The Harvard Gazette, 1/1/2022, disponível em: https://news.harvard.edu/gazette/story/2022/01/dark-lessons-of-jan-6-capitol-assault/. [13] SCHEWE, Eric. After the Capitol Riot, Who Will Govern Speech Online? JStor Daily, 04/02/2022, disponível em: https://daily.jstor.org/after-the-capitol-riot-who-will-govern-speech-online/. [14] Ver, sobre o tema, BALKIN, Jack M. Free Speech is a Triangle. Columbia Law Review, vol. 118, n. 7, 2018. [15] ZAKRZEWSKI, Cat; LIMA, Cristiano; HARWELL, Drew. What the Jan. 6 probe found out about social media, but didn’t report. The Washington Post, 17/1/2023, disponível em: https://www.washingtonpost.com/technology/2023/01/17/jan6-committee-report-social-media/. [16] JONG-FAST, Instead of Disavowing Trump in the Year After January 6, Republicans Gave Up on Democracy. [17] Ver, sobre o tema, detalhes sobre o Plano de Combate à Desinformação lançado pelo STF (disponível em: https://portal.stf.jus.br/desinformacao/) e a Resolução aprovada pelo TSE resolução que dispõe sobre o enfrentamento da desinformação que compromete a integridade do processo eleitoral (disponível em: https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Outubro/tse-aprova-resolucao-para-dar-mais-efetividade-ao-combate-a-desinformacao-no-processo-eleitoral). [18] PAZZANESE, Dark lessons of Jan. 6 Capitol assault. [19] Segundo Jones, 65% dos Republicanos defendem que o país deve superar os debates sobre o 6 de janeiro. JONES, Fewer Americans now say Trump bears a lot of responsibility for the Jan. 6 riot. [20] Por todos, VIEIRA, Oscar Vilhena; GLEZER, Rubens; BARBOSA, Ana Laura Pereira. Supremocracia e Infralegalismo Autoritário: O Comportamento do Supremo Tribunal Federal Durante o Governo Bolsonaro. Novos Estudos, Cebrap – São Paulo, vol. 4, set-dez de 2022, p. 591-605.
2023-01-21T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-21/observatorio-constitucional-atos-dia-81-sic-janeiro-chamar-nosso
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Tribunal do Júri
Precedentes importantes de 2022 em matéria do júri (parte 1)
No mês de janeiro, naturalmente fazemos uma retrospectiva do que se passou no ano pretérito e um prognóstico do ano que se inicia. Nesta coluna não poderia ser diferente, dada a dialética que entretece o tempo e o Direito [1]. Em relação ao Tribunal do Júri, os tribunais superiores firmaram precedentes importantes em 2022, criando um "espaço de experiência" que configura a compreensão e interpretação dos textos normativos no futuro [2], norteador do "horizonte de expectativa"” para 2023 [3]. Doravante, discorreremos brevemente sobre 12 questões tratadas em nove decisões paradigmáticas do ano passado, por conta dos limites espaciais do presente artigo. Os precedentes selecionados versam sobre o tratamento que o ordenamento jurídico concede a direitos fundamentais do acusado, o que impossibilita apresentá-las em ordem de maior ou menor relevância. Apenas por questões metodológicas, dividiremos o presente artigo em duas partes: a primeira inerente a temas de ordem processual, e a segunda referente a julgados sobre direito material ou de natureza híbrida. A primeira decisão selecionada versa sobre a prisão automática do réu solto, em razão da condenação não definitiva do Tribunal do Júri. Acórdão da 6ª Turma do STJ reconheceu a ilegalidade da medida em prestígio do princípio da presunção de inocência enquanto norma de tratamento (HC 737.749/MG, relator ministro Rogério Schietti Cruz, 6ª Turma, por unanimidade, j. em 28/6/2022). A despeito da existência de entendimento anterior semelhante da 5ª Turma do STJ, a matéria ainda está sendo debatida pelo STF sobre o Tema 1.068 (RE 1.235.340, relator ministro Roberto Barroso). Em novembro do ano passado, a matéria foi colocada em pauta na sessão de julgamento virtual. O ministro Luís Roberto Barroso, relator da matéria, propôs a aprovação da seguinte tese em: "A prisão de réu condenado por decisão do Tribunal do Júri, ainda que sujeita a recurso, não viola o princípio constitucional da presunção de inocência ou não-culpabilidade". Em contraposição à essa proposta, o ministro Gilmar Mendes, na mesma data, apresentou a tese: "A Constituição Federal, em razão da presunção de inocência (art. 5º, inciso LVII), e a Convenção Americana de Direitos Humanos, em razão do direito ao recurso ao condenado (art. 8.2.h) vedam a execução imediata das condenações proferidas por Tribunal do Júri, mas a prisão preventiva do condenado pode ser decretada motivadamente, nos termos do art. 312 CPP, pelo Juiz-Presidente e a partir dos fatos e fundamentos assentados pelos Jurados". O julgamento do Tema 1.068 encontra-se suspenso e já nos posicionamos aqui sobre a temática, defendendo a robustez constitucional e convencional da tese proposta pelo ministro. A criação, pela via infraconstitucional, de um marco de antecipação dos efeitos da sentença condenatória viola o princípio da presunção de inocência, pois o mandamento constitucional é expresso em estabelecer que o status de inocente do acusado o acompanha até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Embora um tribunal formado por juízes togados não possa revisitar o mérito da decisão condenatória dos jurados, subsiste a possibilidade de cassação dessa sentença, o que descredibiliza a prisão automática do réu em razão de decisão recorrível do Conselho de Sentença. Acrescenta-se que a redação do artigo 492, inciso I, "e" do CPP, para além de afrontar a presunção de inocência enquanto norma de tratamento, viola o princípio da isonomia, pois é ilegítima a diferenciação das regras prisionais entre um réu condenado a quinze anos e outro sentenciado em quatorze anos e dez meses pelo mesmo Conselho de Sentença. Tampouco existem critérios lógicos para sustentar a execução provisória da pena dos réus condenados em primeira instância por homicídio e a impossibilidade de execução provisória da pena de segundo grau a um condenado por crimes de natureza grave (estupro, latrocínio), por exemplo. O constituinte originário, consciente de todo o trâmite do processo penal, inclusive da existência do Tribunal do Júri, garantiu ao acusado o "estado de inocência" até a decisão da última instância judicial: trata-se de escolha representativa da conjugação dos direitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, da presunção de inocência e do devido processo legal. O segundo e terceiro precedentes que abordaremos dizem respeito à apelação da sentença do Tribunal do Júri, sob o fundamento de ser a decisão manifestação contrária à prova dos autos. Em acórdão da 6ª Turma do STJ, entendeu-se que: "O art. 563, inciso III, alínea d, do Código de Processo Penal deve ser interpretado de forma estrita, permitindo a rescisão do veredicto popular somente quando a conclusão alcançada pelos jurados for teratológica, completamente divorciada do conjunto probatório constante do processo" (AgRg no HC 482.056-SP, relator ministro Antonio Saldanha Palheiro, j. por unanimidade em 2/8/2022). Esse entendimento da 6ª Turma do STJ deita raízes na soberania dos veredictos (do latim vere dictum; "verdadeiramente dito"). Desde já, assenta-se que a soberania dos veredictos não implica intangibilidade das decisões dos jurados. Há possibilidade de se recorrer das sentenças do júri em situações legalmente preestabelecidas, quais sejam: (1) nulidade posterior à pronúncia; (2) quando for a sentença do juiz-presidente contrária à lei expressa ou à decisão dos jurados; (3) se houver erro ou injustiça no tocante a aplicação da pena ou de medida de segurança; ou (4) quando for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos. Essa última hipótese é justamente a gênese da celeuma ora debatida. Embora as decisões dos jurados sejam passíveis de impugnação, somente cabe apelação quando há total discrepância entre as provas dos autos e a sentença dos jurados, que decidem conforme sua íntima convicção e, por conseguinte, podem acatar uma tese juridicamente mais frágil. Coadunamos com esse entendimento no que diz respeito à sentença condenatória. Por outro lado, defendemos que não cabe impugnação do veredicto absolutório popular com base no argumento de contrariedade ao acervo probatório, ainda que considerada "manifesta" pelo representante do Ministério Público. A decisão soberana de absolvição dos jurados não é adstrita ao texto normativo, às teses contrapostas em plenário ou ao conteúdo dos autos processuais. Os jurados são constitucionalmente autorizados a absolver por questões metajurídicas [4]. Já nos posicionamentos aqui e aqui de forma mais pormenorizada sobre o tema. Em sentido diverso do nosso entendimento, a 6ª Turma do STJ negou, por unanimidade, provimento a agravo regimental, entendendo que a absolvição do réu pelos jurados, com base no artigo 483, III, do CPP, ainda que por clemência, não constitui decisão absoluta e irrevogável (AgRg no REsp nº 1.979.704/AM, relator ministro Sebastião Reis Júnior, j. em 27/9/2022). Esta decisão ratifica entendimento já sedimentado pela 3ª Seção do STJ (AgRg no AREsp nº 1.306.814/DF, ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, DJe de 2/4/2019). A matéria será objeto de discussão em plenário da Suprema Corte, no julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1.225.185, e, dada a relevância da discussão ventilada, por unanimidade, já foi reconhecida a repercussão geral da matéria (Tema 1.087). Embora não possamos antever o resultado do julgamento, é válido destacar que recentemente o ministro Nunes Marques se posicionou pela impossibilidade de apelação da decisão absolutória do Júri (HC 222.589, julgado em 22/11/2022) e assim também já se manifestou o ministro Gilmar Mendes (HC 178.856/RJ). O quarto julgado destacado no presente texto traz um distinguishing ao entendimento majoritário de que na fase do judicium accusationis, "o não oferecimento de alegações finais não é causa de nulidade do processo, pois o juízo de pronúncia é provisório, não havendo antecipação do mérito da ação penal, mas mero juízo de admissibilidade positivo ou negativo da acusação formulada, para que o réu seja submetido, ou não, a julgamento perante o Tribunal do Júri, juízo natural da causa" (STJ, RHC 103.562/PE). A 6ª Turma do STJ, acertadamente, mitigou esse posicionamento ao decidir que "na primeira fase do rito do Júri, o não oferecimento de alegações finais sem comprovação de desídia do réu, configura prejuízo a direito fundamental e nulidade da decisão de pronúncia, por violação à plenitude de defesa" (AgRg no HC 710.306/AM, rel. min. Olindo Menezes, julgado por unanimidade em 27/9/2022). Em homenagem à plenitude de defesa, norteadora do júri, quando a ausência de memoriais finais não decorrer de uma tática devidamente planejada, e com a anuência do acusado, resta configurada uma nulidade. O quinto julgado que selecionamos foi uma decisão da 5ª Turma do STJ, na qual definiu-se que "no âmbito do Tribunal do Júri, não há nulidade na formulação de quesito a respeito do dolo eventual, quando a defesa apresenta tese no sentido de desclassificar o crime para lesão corporal seguida de morte, ainda que a questão não tenha sido discutida em plenário" (AREsp 1.883.314-DF, rel. min. Joel Ilan Paciornik, por unanimidade, j. em 25/10/2022). Discordamos veementemente desta posição, eis que a admissão do desmembramento ou da criação de quesitos fora dos quadrantes legais implica interpretação extensiva em desfavor do acusado, além de repristinar a sistemática anterior à Lei 11.689/2008. Acrescenta-se que há nítido prejuízo ao acusado quando é acrescentado um quesito de ofício sobre dolo eventual, com base em tese defensiva. O sexto julgado trata de uma ordem de habeas corpus concedida pelo ministro Edson Fachin do STF no dia 18/12/2022, nos autos do HC 223.286/GO, para fins de determinar o desentranhamento do interrogatório feito em fase investigativa, bem como a aposição de tarjas sobre referências feitas em juízo pelos policiais em relação ao interrogatório ilícito. A nulidade da prova decorreu da ausência da advertência ao acusado quanto ao direito ao silêncio (o chamado Miranda Warnings) e à não autoincriminação. O ministro Fachin, corretamente, vislumbrou nítida possibilidade de prejuízo ao réu caso os jurados tivessem acesso ao conteúdo do interrogatório extrajudicial ilícito, porquanto tal prova provavelmente repercutiria na decisão do Conselho de Sentença. Na próxima semana, discorreremos sobre as consequências da confissão espontânea do acusado em sessão plenária, à luz do que restou preconizado nos autos do REsp 1.972.098/SC (STJ, 5ª Turma, rel. min. Ribeiro Dantas, por unanimidade, j. em 14/6/2022) e do AgRg no REsp 2.010.303-MG (STJ, rel. min. Antonio Saldanha Palheiro, j. por unanimidade em 14/11/2022), bem como focaremos no julgamento do REsp 1.973.397-MG (STJ, 5ª Turma, rel. min. Ribeiro Dantas, j. em 6/9/2022) — que tratou de diversas questões dignas de notas. São enfrentamentos decisórios sobre temas que devemos conhecer, debater e refletir sobre os principais efeitos teóricos e práticos não apenas para traçar uma perspectiva para 2023, mas também que poderão servir para a discussão do novo Código de Processo Penal. [1] OST, François. O tempo do direito. Lisboa: Instituto Piaget, p. 14. [2] MAIA, Alexandre da. Racionalidade e progresso nas teorias jurídicas: o problema do planejamento do futuro na história do direito pela legalidade e pelo conceito de direito subjetivo. ADEODATO, João Maurício; BRANDÃO, Cláudio; CAVALCANTI, Francisco. Principio da legalidade: da dogmática jurídica à teoria do direito. Rio de Janeiro, Forense, 2009, p. 7. [3] "Espaço de experiência" e "horizonte de expectativa" são categorias meta-históricas cunhadas por: KOSELLECK, Reinhart. "Espaço de experiência e horizonte de expectativa" In: KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-RJ, 2006, p. 305-327. [4] Sobre o tema, em estudo em direito comparado, sugerimos a leitura da série "Jury Nullification": Parte 1, Parte 2 e Parte final.
2023-01-21T08:00-0300
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Opinião
Magdaleno e Rigato: O 'fato gerador' segundo Ataliba e Carvalho
São várias as denominações sugeridas para o elemento "antecedente ou suposto das normas que prescrevem as prestações de índole fiscal" (CARVALHO, 2017, p. 268). Dentre essas formas, encontra-se a expressão "fato gerador", cunhada pelo jurista francês Gaston Jèze, em famoso artigo na Revista de Direito Administrativo, publicado em 1945.  Tal terminologia foi amplamente difundida na doutrina brasileira de Direito Tributário, porém não sem críticas severas à expressão. O reconhecimento da polêmica em torno dessa expressão é encontrado em diversos autores. Veja-se Regina Helena Costa, que afirma ser "expressão ensejadora de divergências" (COSTA, 2018,  p. 210), posto que a mesma expressão seria utilizada para designar realidades distinta; ou Isabela, Ricardo e Fernando Bonfá de Jesus que separam um tópico próprio em sua obra para discutir a expressão "fato gerador" (BONFÁ DE JESUS et al., 2016, p. 128).  O presente trabalho investiga a forma pela qual dois dos maiores tributaristas brasileiros criticam a noção de Gaston Jèze: Geraldo Ataliba e Paulo de Barros Carvalho. Porém, antes de esclarecer a crítica, o presente trabalho pretende esclarecer aquilo que Gaston Jèze se referia com a expressão "fato gerador" e, antes ainda, como o referente do "fato gerador" se insere no conceito de Tributo, tanto de Geraldo Ataliba, quando de Paulo de Barros Carvalho.  Para fazê-lo, o texto se articula em três momentos: 1. A conceituação de Tributo para Geraldo Ataliba e Paulo de Barros Carvalho e a importância do "fato gerador"; 2. Gaston Jèze e o "Fato Gerador"; 3. As críticas formuladas por Geraldo Ataliba e por Paulo de Barros Carvalho. Pretendemos, por fim, avaliar se as soluções propostas pelos autores cumprem o papel de melhor esclarecimento da natureza jurídica do fenômeno observado. A conceituação de Tributo para Geraldo Ataliba e Paulo de Barros Carvalho e a importância do "Fato Gerador" O objeto principal do tributo é "o comportamento consistente em levar dinheiro aos cofres públicos" (ATALIBA, 2010, p. 23). Isto porque, sem dúvidas alguma, ao analisarmos a essência da norma jurídica tributária, ao vasculhamos o seu mais íntimo recôndito, lá encontramos um mandamento principal, qual seja, a ordem para que seja entregue ao Estado (ou quem lhe faça às vezes) uma determinada soma em dinheiro. Porém, dentro da sistemática jurídico-tributária, o conceito de tributo possui caráter privativo, próprio, "tributo, para o direito, é coisa diversa de tributo como conceito para outras áreas" (ATALIBA, 2010, p. 25). Ora, por essa razão, além de ser privativo juridicamente tal conceito, a norma jurídico-tributária também possui uma estrutura absolutamente igualitária às demais normas jurídicas existentes. Assim como as demais normas, contém uma hipótese e um comando, sendo o comando unicamente aplicado quando associado à hipótese. Uma investigação dentre as obras de direito positivo, em lições de doutrina e jurisprudência, levou Paulo de Barros Carvalho (CARVALHO, 2018, p. 51 e ss.) a verificar que são usualmente apontados seis acepções diversas do vocábulo tributo: a) tributo como quantia em dinheiro; b) "tributo" como prestação correspondente ao dever jurídico do sujeito passivo; c) "tributo" como direito subjetivo de que é titular o sujeito ativo; d) "tributo" como sinônimo de relação jurídica tributária; e) "tributo" como sinônimo de relação jurídica tributária; e) "tributo" como norma jurídica tributária; f) "tributo" como norma, fato e relação jurídica. Geraldo Ataliba é um adepto da conceituação de "tributo" como relação jurídico tributária. Essa conceituação não parte do "conteúdo patrimonial do objeto", nem do dever jurídico do sujeito passivo da obrigação tributária ou do direito subjetivo do sujeito ativo de exigir o tributo. Ela repousa na própria relação jurídica entre os elementos, na obrigação, portanto, que incide sobre toda a relação (CARVALHO, 2018, p. 53). Eis a definição proposta por Geraldo Ataliba: Juridicamente define-se tributo como obrigação jurídica pecuniária, ex lege, que se não constitui em sanção de ato ilícito, cujo sujeito ativo é uma pessoa pública (ou delegado por lei desta), e cujo sujeito passivo é alguém nessa situação posto pela vontade da lei, obedecido os desígnios constitucionais (explícitos ou implícitos) (ATALIBA, 2010, p. 34) Ora, a norma jurídico-tributária é uma norma jurídica, mas que institui uma obrigação jurídica pecuniária decorrente da lei, sem que constitua-se essa sanção em ato ilícito. A obrigação jurídica vincula um sujeito ativo que pode exigir o tributo e um sujeito passivo, que deve prestá-lo. Porém, apenas isso não basta. Afinal, as normas jurídicas em regra contém uma hipótese e um comando, isto é, "Se algo x, então y".  No caso, segundo Ataliba, "essa relação jurídica (...) surge com a realização in concretu, num determinado momento, de um fato, previsto em lei anterior e que dela (lei) recebeu a força jurídica para determinar o nascimento de uma obrigação de pagar um tributo" (ATALIBA, 2010, p. 53). E eis aqui o nosso problema, pois a doutrina tradicional brasileira tende a denominar como "fato gerador" tanto a "figura conceptual e hipotética - consistente no enunciado descritivo do fato, contido na lei - como o próprio fato concreto(...)" (ATALIBA, 2010, p. 54). Por que isso ocorre? De onde provêm tal expressão? Para responder a isso, precisamos retornar a 1945. Gaston Jèze e o "fato gerando" Em 1945, na prestigiosa Revista de Direito Administrativo, foi publicado o artigo O Fato Gerador do Impôsto: contribuição à teoria do crédito do impôsto, da pena de Gaston Jèze, importante jurista francês vinculado à "École du Service Public" (KATO, 2015, p; 592). Algumas palavras sobre a trajetória de Gaston Jèze podem ser elucidadoras. O autor fez seus estudos jurídicos em Toulouse, onde obteve aos vinte e três anos o título de doutor após apresentar uma tese sobre o direito romano e o direito civil. Porém, essa formação civilista não perdurou muito tempo em sua carreira. Logo migrou para os estudos do direito público. Em 1898, com seu colega Max Boucard, publicou aquele que seria o primeiro trabalho sobre direito financeiro na França (área até então vista como um apêndice à economia política). Em 1901, tornou-se professor da Faculdade de Direito de Lille, onde obteve a titularidade em 1905.  Sua carreira efetivamente decolou a partir de 1903. Ele criará e publicará constantemente trabalhos em Direito Financeiro, mas especialmente será, com Maurice Hauriou, um daqueles que defenderá de maneira mais enfática a necessidade dos comentários jurisprudenciais pelos juristas. Quando ele se torna diretor da Revue de droit public et de la Science Politique, nela passará a escrever os seus comentários (KATO, 2015, p. 594). Em 1908, Gaston Jèze se tornará, ademais, diretor da Revue pratique du contentieux et des impôts, e em 1909 ele se tornará professor da Faculdade de Direito de Paris. A principal contribuição de Jèze ao Direito, apesar de ter sido um importante membro da "École du Service Public", pode ser vinculada ao seu método de trabalho jurídico. Isto é, como diria Molinier, "é antes de tudo pelo método de estudo dos fenômenos financeiros que ele formulou e utilizou que Gaston Jèze fez [uma] obra inovadora" (MOLINIER apud KATO, 2015, p. 597, tradução nossa). Qual é esse método? Basicamente, a necessidade de que os juristas observassem o direito como um fenômeno social, isso é, sem uma distinção entre normas e fatos sociais, o que produz uma ideia de "osmose estreita entre o direito e os fatos sociais que eram já sublinhados por Duguit e que Jèze retoma inteiramente por sua conta" (BEAUD apud KATO, 2015, p. 598, tradução nossa). Esse método fica bastante claro no texto sobre "o fato gerador do impôsto". Esse texto foi inicialmente publicado em 1937 na Revue de Droit Public et de la Science Politique. Nele, por óbvio, a discussão é historicamente situada e pretende discutir com o contexto francês. Para nossos propósitos, basta a discussão inicial do artigo. Jèze, no alvorecer do texto, diz que um elemento essencial para o debate sobre a técnica do crédito de imposto é o "fato gerador", uma expressão que constantemente aparecia à época nos estudos doutrinários e nas decisões dos tribunais. Porém, o que é ele? É "o fato ou o conjunto de fatos que permitem aos agentes do fisco exercerem sua competência legal de criar um crédito de tal importância, a título de tal tal impôsto, contra tal contribuinte" (JÈZE, 1945, p. 50). Como exemplo, ele nos dá a introdução na fronteira de uma mercadoria que, se compreendida nos termos da lei aduaneira, será o fato gerador do imposto de importação para o importador. À primeira vista, tal conceito não parece gerar maiores problemas e dúvidas. Mas, podemos nos perguntar: será que efetivamente é benéfica a aproximação da realidade social com a norma jurídica a ponto de romper qualquer tipo de distinção entre o fato previsto na norma e o fato previsto na realidade? Do ponto de vista de Gaston Jèze e seu método, sim. Porém, para Geraldo Ataliba e Paulo de Barros Carvalho, não. Vejamos o porquê. As críticas formuladas por Geraldo Ataliba e por Paulo de Barros Carvalho Como visto acima, são várias as denominações sugeridas para o elemento antecedente das normas que "prescrevem as prestações de índole fiscal" (CARVALHO, 2017, p. 268)e, dentre essas formas, prevaleceu durante muito tempo  a expressão "fato ferador", cunhada por Gaston Jèze, em famoso artigo na Revista de Direito Administrativo, publicado em 1973.  Apesar da doutrina tradicional brasileira utilizar tal terminologia, apesar de tal terminologia ser consagrada no artigo 4º do Código Tributário Nacional, Geraldo Ataliba sugere que ela produz uma confusão terminológica. Isso porque acaba levando-nos a denominar duas realidades distintas por uma mesma expressão. Quais são essas realidades? Ora, justamente 1) a descrição do fato previsto na norma e 2) o fato efetivamente acontecido na realidade, num determinado tempo e local, que faria nascer a obrigação tributária. Para a primeira realidade, o nome sugerido por Ataliba é "hipótese de incidência" e para a segunda, "fato imponível". Isso porque, segundo ele, "Há (...) dois momentos lógicos (e cronológicos): primeiramente, a lei descreve um fato e di-lo capaz (potencialmente) de gerar (dar nascimento a) uma obrigação. Depois, ocorre o fato; vale dizer: acontece, realiza-se". (ATALIBA, 2010, p. 55). Se o fato imponível se reveste das características previstas na hipótese de incidência, então a relação jurídica se estabelece e nasce a obrigação tributária. Geraldo Ataliba, ademais sugere que o vício terminológico de Gaston Jèze possui uma explicação psicológica. Essa explicação (que não é enunciada) deveria ser a mesma que levou, no direito penal, com a palavra crime, a "uma equivocidade nominal, já que crime designa a descrição hipotética legal de um fato, da mesma forma que designa a própria prática daquele fato" (ATALIBA, 2010, p. 55) Paulo de Barros Carvalho tece também críticas semelhantes à redução de duas realidades essencialmente diversas a uma mesma elocução. Isto porque a expressão "fato gerador" se referiria "a) a descrição legislativa do fato que faz nascer a relação jurídica tributária; e b) o próprio acontecimento relatado no antecedente da norma individual e concreta do ato de aplicação" (CARVALHO, 2016, p. 269). Ora, ao fazer tal redução se incorre em um "vício muito grave", pois como ensinara Bobbio, segundo Paulo de Barros Carvalho, "o rigoroso cuidado na terminologia não é exigência ditada pela gramática para a beleza do estilo, mas é uma exigência fundamental para construir qualquer ciência" (CARVALHO, 2016, 269-270). E que não se argumente no sentido de que a tradição disciplina a continuidade da utilização do termo e que a lei a prescreve. Pois, se assim for, o estudioso do Direito permaneceria na superfície do fenômeno, incapaz de conhecer as profundezas do direito vigente e — o que é pior! — seria incapaz de contribuir para o aperfeiçoamento das instituições jurídicas que são fortalecidas pela vigília crítica do jurista (CARVALHO, 2016, p. 270). O autor, então, sugere que empreguemos o termo Hipótese tributária para caracterizar "a descrição normativa de um evento que, concretizado no nível das realidades materiais e relatado no antecedente de norma individual e concreta, fará irromper o vínculo abstrato que o legislador estipulou na consequência" (CARVALHO, 2016, p. 270); e o termo Evento jurídico tributário para o efetivamente ocorrido no espaço e tempo (que, quando convertido no relato linguístico, torna-se fato jurídico tributário).  O exercício de estabelecer distinções realizado pelos autores, ao nosso entender, é essencial para o bom progresso da dogmática tributária brasileira. Essa é uma das razões pelas quais Geraldo Ataliba e Paulo de Barros Carvalho sempre serão mestres da disciplina e uma das razões pelas quais frequentar novamente os seus trabalhos e suas razões sempre será necessário para a renovação dos estudos tributaristas.   Referências ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. São Paulo: Malheiros, 2010. BONFÁ DE JESUS, Isabela; BONFÁ DE JESUS, Fernando; BONFÁ DE JESUS, Ricardo. Manual de Direito e Processo Tributário. São Paulo: Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2016. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: SaraivaJur, 2016. COSTA, Regina Helena. Curso de Direito Tributário: Constituição e Código Tributário Nacional. São Paulo: SaraivaJur, 2018. JEZE, G. P. A. O fato gerador do imposto. Revista de Direito Administrativo, [S. l.], v. 2, nº 1, p. 50–63, 1945. DOI: 10.12660/rda.v2.1945.8116. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/8116. Acesso em: 13 dez. 2022.. KATO, Mariana Almeida. La Vie et L'oeuvre de Gaston Jèze. Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Curitiba, 2015, vol. 7, n. 13, Jul.-Dez. p. 591-604.
2023-01-22T13:17-0300
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Opinião
Allan Magalhães: Direitos culturais e direitos fundamentais
Os direitos culturais aparecem no bojo da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 [1] em meio a outros dois direitos fundamentais (ou humanos) de segunda geração ou dimensão que colocam a sua efetividade num plano secundário ou terciário, em especial quando para a sua efetividade é necessário um agir estatal através de políticas públicas culturais para assegurar a todo ser humano dignidade e livre desenvolvimento da sua personalidade. A Revolução Francesa (século XVIII) é um marco na conquista de direitos em que a burguesia em ascensão se alia ao povo (por conveniência e interesse) sob os pilares de uma filosofia revolucionária das relações sociais que abala os pilares da organização social que fornecia sustentação ao Antigo Regime consistente numa sociedade estamental, sem mobilidade, cujo lugar do indivíduo na sociedade era definido pelo nascimento. Um dos principais expoentes dessa ideia revolucionária foi Emmanuel Joseph Sieyès [2] com a publicação, em 1788, do panfleto O que é o Terceiro Estado?, para defender a essencialidade da burguesia, mas por meio de um discurso dos interesses da nação (povo), em oposição aos interesses do clero e da nobreza que compunham o Primeiro e Segundo estamentos, vistos pelo Sieyès como desnecessários obstáculos para a concretização dos ideais revolucionários que prometem Liberdade, Igualdade e Fraternidade para os cidadãos (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789), mas que o avanço dos direitos fundamentais (humanos) passaram a concebê-los como sendo universais, pertencentes a todos os seres humanos. As promessas da Revolução Francesa são associadas às gerações ou dimensões dos direitos fundamentais. A primeira dimensão — Liberdade — busca resguardar os espaços privados do cidadão e que estão fora do campo de atuação estatal. A segunda — Igualdade — exige uma atuação estatal para garantir direitos indispensáveis à dignidade humana em que a tríade de direitos — econômicos, sociais e culturais — são os seus principais expoentes. A terceira dimensão — Fraternidade - percebe a existência de direitos que pertencem e são oponíveis a toda a humanidade, transcendendo os limites dos Estados soberanos como o meio ambiente ecologicamente equilibrado. Os direitos culturais, contudo, se fazem presentes, conforme destaca Francisco Humberto Cunha Filho (2000, p. 66) [3], em todas as dimensões dos direitos fundamentais. Na dimensão da liberdade, por exemplo, as relações jurídicas atinentes às artes configuram um direito cultural que está albergado pela liberdade de expressão artística e demanda do Estado abstenções de condutas que possam configurar censura ou mesmo qualquer tipo de regulamentação que limite referida liberdade. A dimensão dos direitos fundamentais de igualdade, local comumente reconhecido aos direitos culturais, se faz presente na obrigatoriedade de o Estado apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais, assim como proteger as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras. Mas, também, no dever do Estado de promover a educação, direito cultural por excelência. E por fim, na dimensão da Fraternidade, o direito ao patrimônio cultural é exemplo de direito de terceira dimensão, pois eles são os registros materiais e imateriais da história e da memória humana como são exemplos a cidade histórica de Ouro Preto (MG), O Parque Nacional da Serra da Capivara (PI), o Cais do Valongo (RJ), A Roda de Capoeira, o Círio de Nazaré (PA), entre outros. Os direitos culturais estão presentes também na quarta e quinta dimensão dos direitos fundamentais. Aquela representada pelo direito à democracia, informação e pluralismo, e esta pelo direito à paz, dimensões de direitos eminentemente culturais que pressupõem o direito cultural à diversidade. A Convenção da Unesco (2005) sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais deixa evidente a relevância da diversidade cultural, relacionando-a aos regimes democráticos que asseguram e respeitam os direitos das minorias, e que precisa promover um ambiente de liberdade de pensamento, expressão e informação, bem como de tolerância e mútuo respeito entre povos e culturas, o que é essencial para a paz e a segurança a nível local, nacional e internacional. As diferentes facetas dos direitos culturais permeiam todas as dimensões dos direitos fundamentais, mas quando colocados ao lado de direitos que salvaguardam a ordem econômica e social que lidam com questões tão emergentes quanto a proteção social do trabalhador, ou a prestação de serviços básicos como saúde e assistência social, os direitos culturais na competição pelos recursos públicos necessários à sua promoção tendem a ser preteridos. No campo dos direitos de liberdade, a dimensão artística tende a sofrer ataques de censura quanto questiona valores sociais consolidados. No âmbito dos direitos de fraternidade, o patrimônio cultural sofre com a sua deterioração e a ausência de políticas públicas de preservação e promoção. As tentativas ilegítimas de suprimir a diversidade cultural e de impor valores uniformizantes de padrões culturais atentam contra os direitos culturais e atingem a democracia e a pluralidade e o direito à informação, criando situações potenciais de instabilidade e conflito que vão na contramão do direito à paz. Assim, os direitos culturais localizam-se em todas as diferentes dimensões dos direitos fundamentais e a sua efetividade é essencial para assegurar os direitos econômicos e sociais, fortalecer a democracia e a cultura de paz e o respeito recíproco entre os diferentes povos e comunidades.   Notas [1] Artigo XXII. Todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito à segurança social, à realização pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade. [2] SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa: Qu’est-ce que le tiers État?. Trad. Norma Azevedo. 6 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2014. [3] CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Direitos culturais como direitos fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro. Brasília: Brasília Jurídica, 2000.
2023-01-22T12:18-0300
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Segunda Leitura
Reflexão sobre uma nova ética para a linguagem jurídica
Peço licença ao leitor para expressar o tema da coluna de hoje por meio de uma pergunta, que veicula também uma preocupação: será que nós, os operadores do Direito, estamos sendo minimamente compreendidos pelo cidadão destinatário do serviço público de prestação da justiça? Há tempos perturba-me ver que a maioria das pessoas tem grande dificuldade para entender o diálogo processual. Mais recentemente, comecei a questionar-me se nós, os operadores do Direito, não estamos falhando em nosso compromisso ético de promoção da cidadania, e se esta falha tem relação com o emprego de uma linguagem inacessível à população. Não pretendo dar tratamento simplista a uma questão profunda. Evidenciando o quão sofisticado é o desafio da comunicação jurídica, já disse Sidinei Agostinho Beneti [1]: "a linguagem processual é a mais complexa, é a linguagem da polêmica, porque necessariamente contém a contradição dialética. Na linguagem do contraditório processual a transmissão da mensagem complica-se extraordinariamente". O fato é que, aparentemente, o diálogo jurídico não tem acompanhado as mudanças comportamentais observadas nas últimas décadas. Até alguns anos atrás, os documentos processuais eram praticamente inacessíveis à população. As decisões judiciais e as petições eram manuseadas quase exclusivamente por profissionais da área jurídica e a circulação dessas informações ocorria por meio de cadernos físicos, os famosos autos processuais. Nos dias de hoje, instantes após a movimentação processual, inclusive em um julgamento do STF, o respectivo documento pode ser rapidamente exportado do processo. Pronto! Lá está o cidadão comum, com seu telefone celular, diante de um texto jurídico importante para a sua vida, mas fora do seu alcance linguístico. A Constituição de 1988, que carrega a inspiradora marca da cidadania, parece desejar que a atuação estatal seja voltada para a emancipação popular, uma emancipação que pressupõe a compreensão básica das leis que regem o país e dos atos estatais que concretizam o ordenamento jurídico. Enquanto isso, a comunicação jurídica parece não ter deixado o século XIX, seguindo dominada por um excessivo número de expressões protocolares que não exercem uma função textual intrínseca e servem apenas como elemento de estilo. Muitas vezes, a mesma informação poderia ser transmitida de outra forma, mais simples, sem prejuízo para a compreensão. Alguns exemplos podem ilustrar. Antes, porém, esclareço: venho em missão de paz! Este breve exercício não tem a pretensão de marginalizar nenhuma palavra da Língua Portuguesa ou recriminar quem prefere um estilo mais sofisticado na escrita. Trata-se de um simples convite à reflexão, a partir da ideia de que a simplificação da linguagem contribui para a democratização do debate jurídico e fortalece a cidadania. Presumida a disposição do leitor, passo ao breve exercício — claramente exagerado, para destacar o fenômeno. Em uma manifestação forense típica, a petição inicial torna-se peça exordial ou proemial, na qual o autor da ação pugna pela condenação do réu. Tem início a lide, querela, contenda ou cizânia. O tema debatido aparece em testilha e, na contestação, outrem surge redarguindo os argumentos, aqui e alhures. Outrossim, superada a fase do contraditório, fica autorizada a prolação da sentença, que causa espécie ao derrotado e vira o decisum objurgado. Os argumentos sobejam nos autos. O posicionamento de uma autoridade intelectual torna-se o seu escólio, e o fundamento, seu espeque. A penitenciária vira ergástulo público. O Código Penal transforma-se em Codex Repressivo. A Constituição Federal, maior alvo de todos, torna-se Carta Magna, Diploma Fundamental, Lei Maior, Carta da Primavera ou Pergaminho Superior. A compreensão deste peculiar vocabulário não costuma ser um problema para quem tem formação jurídica. Porém, as expressões destacadas são exemplos de barreiras comunicativas para a população em geral. Segundo o professor Beneti [2], tal complexidade é desnecessária em um texto jurídico. "O melhor é denominar os institutos pelos nomes que possuem, como denúncia, mesmo, petição inicial, sentença, decreto, ação possessória, e assim por diante, em vez de tentar a invenção de pretensos sinônimos alegóricos." Beneti [3] ainda destacou que "a decisão judicial legitima-se inclusive pela linguagem utilizada". Observou: "a sentença deve conter manifestação do juiz como se por seu intermédio falasse o povo, de modo que será bom que o povo compreenda a decisão". Em linha semelhante, sustentou José R. Nalini [4]: "constitui dever ético do juiz para com o semelhante habilitá-lo a ter direitos, a possuir a exata noção de que é titular de direitos fundamentais". Na prática, as barreiras de linguagem existentes no diálogo processual oprimem as pessoas leigas, impedem a sua emancipação cidadã e, nos casos mais extremos, comprometem a sua dignidade: se a Constituição traz a cidadania como símbolo e a dignidade como fundamento, existe uma relação direta entre a emancipação do indivíduo e a promoção da dignidade. Vejamos alguns exemplos práticos. Parece razoável dizer que um consumidor que perdeu uma disputa judicial tem interesse no conteúdo da sentença. A ausência de uma explicação direta e compreensível sobre a questão gera a sensação de desamparo institucional, inconformidade, injustiça ou revolta. A pessoa que teve negado pelo juiz um pedido de aposentadoria também tem o direito de entender minimamente os fundamentos da decisão. Isso serve não apenas para legitimar o ato, mas para que esta pessoa consiga planejar o próprio futuro, buscando preencher os requisitos para a obtenção do benefício. Além disso, permite que a pessoa transfira o conhecimento obtido sobre as exigências legais para a aposentadoria, em um claro exercício de emancipação coletiva sobre este importante direito. O mesmo vale para um empresário, que, ao submeter uma questão contratual ou tributária a julgamento, merece receber uma sentença minimamente ao seu alcance, inclusive para poder nortear suas futuras decisões comerciais. Luiz A. Nunes [5] analisou pesquisas que revelam índices elevados de insatisfação social quanto à atividade jurisdicional, concluindo que o julgamento negativo da população está relacionado à "dificuldade de entender o que se passa em termos processuais no Judiciário". O Judiciário exerce função de destaque na construção do ambiente para o exercício das liberdades existenciais. É adequada, então, a análise de Nalini [6], segundo a qual "o juiz, agente estatal, tem o dever de construir a dignidade de seu próximo". Segundo Miguel Reale [7], "o juiz que não está atualizado com a problemática do seu tempo não está em dia com o seu dever ético", pois o Direito deve ser vivido "em sua circunstancialidade cultural". Ao negar a necessidade de evoluir em sintonia com o seu tempo, o jurista frustra o papel que a sociedade lhe confia. E se a linguagem é ferramenta nuclear para o desempenho da função — pois o processo judicial é essencialmente comunicativo — impõe-se a este profissional o dever de comunicar-se como alguém que acompanha os movimentos culturais de sua época. [1] BENETI, Sidnei Agostinho. Deontologia da Linguagem do Juiz. In: NALINI, José Renato (coord.). Curso de Deontologia da Magistratura. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 115. [2] BENETI, Sidnei Agostinho. Op. Cit., p. 131. [3] BENETI, Sidnei Agostinho. Op. Cit., p. 139. [4] NALINI, José Renato. O Juiz e a Ética no Processo. In: NALINI, José Renato. Uma Nova Ética para o Juiz. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994, p. 105. [5] NUNES, Luiz Antonio. O Poder Judiciário, a Ética e o papel do Empresariado. In: NALINI, José Renato (Coord.). Uma Nova Ética para o Juiz. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994, p. 126. [6] NALINI, José Renato. Op. Cit., p. 104. [7] REALE, Miguel. A Ética do Juiz na Cultura Contemporânea. In: NALINI, José Renato (Coord.). Uma Nova Ética para o Juiz. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994, pp. 139 e 144.
2023-01-22T08:00-0300
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Público & Pragmático
Controle do exercício regulamentar de agências reguladoras
1. Introdução Em sede administrativa, casos concretos que reclamam regulamentação ou mesmo aqueles que visam se esquivar de regras antipáticas, geralmente evidenciam o Poder Judiciário como protagonista para a resolução de conflitos. Não raramente a Jurisdição Constitucional é provocada a responder por demandas cujo objeto emerge das necessidades dinâmicas do mundo contemporâneo não resolvidas pela administração pública. No âmbito das agências reguladoras, essa avocação sui generis de competência regulamentar pelo Poder Judiciário decorre de dois fatores: primeiro, da ausência ou inadequação do exercício de regulação administrativa e, em segundo, da ausência ou inadequação de regulação pelo Poder Legislativo. Essa última — ausência de regulação pelo Poder Legislativo — é a causa maior do que vem a ser chamado de ativismo judicial, cuja abordagem mais eufêmica a identifica como sendo uma atitude, uma escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance [1], mas que na prática revela-se um mecanismo que, se usado for, que seja em caráter excepcional e com imensa cautela, sob pena de tornar obsoleta a bem desenhada tripartição dos poderes e, o que é pior, permitir o pernicioso ressurgimento da discricionariedade judicial [2]. Por ora, não trataremos especificamente das nuances acerca da invasão dos espaços do Poder Legislativo pelo Poder Judiciário, mas sim de primeiro exaltar a existência de espaços específicos que, em regra, não devem ser usurpados entre os Poderes; e, em segundo, identificar o surgimento de uma nova espécie de regulação e sua evolução enquanto fonte primária. Tais noções nos permitem identificar a existência de uma reserva de regulação da administração pública no âmbito das agências reguladoras, mas que cuja inércia ou inadequação pode resultar na atuação substitutiva do Poder Legislativo, além da inafastável provocação do Poder Judiciário. 2. A reserva de regulação administrativa A reserva de regulação é uma variante da reserva de administração. Dentro do conceito de reserva de administração, há uma análise mais específica que se refere à atuação regulatória do Estado. Com apoio nas ideias de especialização funcional e capacitação técnica das entidades regulatórias administrativas, é possível, em tese, identificar a existência de uma reserva de regulação. Nesses contornos, a regulação aparece como função atípica de setores específicos da administração, resultando em uma atividade multifacetária, que perpassa diversas funções distintas e necessárias para a manutenção do equilíbrio sistêmico do objeto regulado [3]. A CF/88 adotou um modelo de Estado regulador quando, em seu artigo 174, salienta que "como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado". Da conjugação dessa norma com o artigo 173 da CF/88, conclui-se que há um direcionamento constitucional dirigido ao Estado no que toca ao dever de regular, interagir e integrar a realidade econômica brasileira. Com brilhantismo, Sérgio Guerra bem define que a regulação existe quando a classe política se libera de uma parte de seus poderes a favor de entidades não eleitas pelo povo, que são capazes de bloquear as decisões das eleitas [4], sendo que tal cenário reclama não somente a separação entre o os entes governamentais e os operadores, mas também o distanciamento entre o poder regulador e o governo, para que as decisões tomadas não sejam vulneráveis aos anseios de natureza política. Esse é um panorama desejável do que seria a reserva de regulação da administração pública Indireta. 3. As discussões sobre a regulação administrativa no âmbito do STF O tratamento da matéria se inaugura no âmbito das cortes superiores com a ADI 1.949, que discutia a constitucionalidade de previsões da Agência Reguladora do Rio Grande do Sul. No caso, discutia-se o julgamento de medida cautelar, cuja questão de fundo era a possibilidade de condicionar a nomeação de conselheiros à aprovação da Assembleia Legislativa e se os conselheiros, apesar de estar proibida a demissão ad nutum pelo Executivo, poderiam ser submetidos ao mesmo ato (demissão) pela própria Assembleia Legislativa. Essa última hipótese foi taxada inconstitucional pelo STF. A celeuma inaugural, portanto, era se essa nomeação poderia ser submetida ao exame da Assembleia, o que levantava a dúvida sobre a autonomia administrativa da agência reguladora. Tais questões colocam em xeque a própria existência das agências reguladoras enquanto produtoras de normas, já que não integram o Poder Legislativo. Passados 17 anos dessa discussão, o assunto novamente veio à tona através da interessantíssima ADI 5.501, que liminarmente suspendeu os efeitos da Lei 13.269/16, que autorizava a comercialização e o uso da fosfoetanolamina sintética (pílula do câncer). A referida lei foi declarada inconstitucional, por apertada maioria de votos [5], a partir do voto do relator. Ficou condensada a ideia de que o STF partiu da noção de separação de poderes e de especialização funcional para justificar a capacitação técnica da Anvisa como agência reguladora apta para realizar a análise da viabilidade de uso e comercialização de medicamentos. Tratou-se, portanto, de dirimir sobre a primazia normativa, cuja fonte primária de emissão normas, nesse caso, deve advir da agência reguladora respectiva. Posteriormente, sobreveio a ADI 4.874, cujo mérito foi julgado em 2018. A discussão tratava da possibilidade de adição de substâncias ao tabaco. O STF foi chamado a dirimir sobre a possibilidade de serem proibidas, pelas agências reguladoras, certas atividades econômicas, além de intervir na própria esfera particular dos indivíduos que desejavam consumir cigarros com determinados sabores. Aqui, o STF novamente assume um viés pró-reguladoras, deixando assentada a ideia de que a função normativa das agências não se confunde com a função regulamentadora da administração (artigo 84, IV, CF/88[6]), tampouco com a figura do regulamento autônomo (artigos 84, VI, 103-B, § 4º, I, e 237 da CF/88). A competência normativa, então, reassume novos contornos para a definição de sua amplitude quanto ao exercício do direito de regulação pela administração pública. Por fim, encerrando os precedentes mais importantes sobre a matéria, surge a ADI 6.276, cujo mérito foi julgado em setembro de 2021. Na referida via foi discutida a constitucionalidade da Lei 13.848, que novamente revisitou matérias apreciadas na ADI 1.949, mas de forma mais específica. No caso, a requerente da medida defendeu que os dispositivos legais impugnados estabeleceram restrições inconstitucionais para participação na estrutura diretiva de agências reguladoras, porquanto são discriminatórios no que toca às atividades sindicais. Apesar de ser afeto à atividade normativa das agências reguladoras, esse julgamento, na verdade, ressalta mais a competência do ente administrativo para tratar de questões interna corporis do que permitir a sua intervenção na atividade econômica. Diz respeito mais ao filtro que deve ser imposto para que as funções específicas do setor sejam atendidas de forma eficiente e adequada. O assunto ainda é nebuloso, embora sua compreensão venha galgando passos relevantes. Não quanto à possibilidade de que as agências reguladoras emitam normas e regulamentos, não quanto à existência de uma discricionariedade técnica que denotaria, em tese, capacitação do corpo funcional desses órgãos, mas sim quanto às matérias que estariam as agências reguladoras aptas a adentrar e em quais dimensões pessoais, temporais e espaciais tais influências poderiam molestar a atividade econômica e as liberdades individuais. 4. Invalidação e supressão de atos das agências reguladoras Dentro de um contexto moderno de direito administrativo, é inevitável que se reconheça o exercício regulamentar das agências regulatórias como uma função típica desses órgãos da administração, classificação essa que não destitui os conceitos clássicos de direito administrativo, mas propõe uma nova perspectiva da matéria, cujo estudo, em um futuro próximo, não será mais possível ser dissociado do direito econômico. Já há, na doutrina, vozes mais ousadas e otimistas quanto ao reconhecimento de uma trivalência de funções atribuídas às agências reguladoras [7]. Ao nosso sentir, essa positiva perspectiva ainda não condiz com estágio em que se encontram as discussões, principalmente em âmbito judicial, sobre a solidez e a extensão da competência normativa das agências reguladoras. Não por outra razão, o Poder Judiciário, ainda que venha se inclinando em sentido favorável à possibilidade de regulação das agências, se põe a enfrentar, de forma material, o conteúdo das normas emitidas. Ademais, até hoje se nota certo "mal-estar democrático" decorrente exclusivamente da criação das agências reguladoras [8], não sendo possível ainda o reconhecimento de uma estrutura sólida, polivalente e uniforme desses entes, com setores devidamente organizados e aptos a fornecer segurança jurídica aos administrados. Não poderia deixar de mencionar também a constante insatisfação dos regulados quanto ao modelo de regulação tradicional conhecido como "comando e controle", pautado essencialmente na emissão de pesados comandos sancionatórios que, na maioria das vezes, são ineficazes e estimulam a judicialização dos casos. Assim, os atos administrativos emanados na qualidade de normas produzidas pelas agências reguladoras ainda estão sujeitos ao controle pelo Poder Judiciário e, sim, ao possível exercício predatório de suas competências, pelo Poder Legislativo. Na medida em que fica evidenciado o propósito de se sedimentar a competência normativa das agências reguladores como fonte primária, a coexistência de um controle desses atos pelo Poder Judiciário se mostra, além de constitucionalmente inafastável, extremamente necessária. Ora, se ao Poder Judiciário cabe apreciar a inconstitucionalidade de normas advindas do Poder Legislativo, é evidente que também está credenciado a fazê-lo sob o âmbito das normas expedidas pelas agências reguladoras. Não por outra razão, já em 1997 o STF determinou a suspensão[9] da eficácia de dispositivo da Lei da Anatel que conferia à agência poderes normativos para dispor sobre o procedimento licitatório de outorga do serviço de telefonia de forma diversa da prevista na lei geral de licitações. Não se trataria mais de invasão do mérito administrativo, ou mesmo em uma intervenção fora das automáticas possibilidades de se controlar a legalidade [10]. Trata-se de um controle a ser feito pelo Judiciário sobre atos híbridos (administrativos e legislativos) emanados por órgãos que, na maioria das vezes, não detêm a organização de normas de estrutura densas [11] para que se promulguem normas de conduta que influirão diretamente na atividade econômica e nas liberdades individuais. Ademais, conforme lembra a boa doutrina de Processo Constitucional [12], as alterações promovidas na Lindb, em especial nos artigos 20 a 30, cuja leitura, em conjunto com o artigo 489 do CPC, constituem os mecanismos infraconstitucionais que buscam elencar critérios para se decidir adequadamente, inclusive temas complexos, e. g. invalidação de atos de Agências Reguladoras. Quanto à supressão da competência normativa das agências reguladoras pelo Poder Legislativo, tem-se que eventual embate entre regulação administrativa e determinada legislação sempre será virtual. Em um plano real, o que se terá é um confronto entre normas de estrutura (as que criam as agências e lhes conferem determinadas competências) e normas de conduta emanadas pelo Legislativo (que usurpam a competência não exercida, ou exercida inadequadamente, pela agência reguladora, avançando ao mérito da matéria). Sim, pois é insuficiente a disposição constitucional do artigo 174 para que se possibilite a existência das agências reguladoras. Estas, por óbvio, têm nascedouro através de lei cujas previsões disporão sobre a estrutura, organização e funcionamento desses órgãos, delimitando as competências a serem exercidas, dentre elas, a normativa. É inegável que exista um espaço de atuação de regulação da administração pública. No entanto, não é possível que a administração pública regule determinada matéria sem que esteja formalmente legitimada para tanto. E essa legitimidade deve decorrer exclusivamente da lei. Assim, a discussão passa pela identificação da competência, mas pode (e deve) percorrer o mérito, afinal, não é razoável que já possamos identificar certa incapacidade técnica do Poder Legislativo em detrimento de uma suposta especialização e capacitação das agências reguladoras. Com efeito, ante a necessidade de maior maturação e eficiência por parte de algumas agências reguladoras, inexiste razão para que a lei não possa assumir, ao menos em tempos atuais, uma competência normativa supletiva em casos de omissão ou inadequação do exercício da competência normativa atribuída às agências. 5. Conclusão A transferência de funções típicas entre Poderes, como visto, justifica-se em razão da alta complexidade dos setores econômicos [13]. Ainda em progressivo aprimoramento, essa reserva de regulação não detém totais condições para se firmar como absoluta, podendo o Poder Judiciário ou o Poder Legislativo, em hipóteses diferentes, realizar o controle desse exercício regulamentar quando não exercido ou quando exercido inadequadamente. Inobstante essa constatação, é preciso dar tempo ao tempo: o remédio não é recomeçar essa sistemática, transferindo a conselhos ou ministérios, por exemplo, a tarefa de produção normativa no âmbito das agências reguladoras. Em coexistindo a reserva de regulação administrativa com os Poderes Legislativo e Judiciário, é almejável o fortalecimento das funções híbridas da administração pública, hoje tão necessárias à efetividade e à segurança jurídica dos setores regulados. [1] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo, 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 442. [2] Lenio Streck bem pontua que a vontade e o conhecimento do magistrado não constituem salvo conduto para decidir como quiser (STRECK, Lenio. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas, 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 39) [3] FONSECA, Francisco José Defanti. Reserva de Regulação da Administração Pública. In: GUERRA, Sérgio. Teoria do Estado Regulador. Volume II. Curitiba: Juruá, 2016, p. 143. [4] GUERRA, Sérgio. Discricionariedade, Regulação e Reflexividade. Uma Nova Teoria Sobre Escolhas Administrativas. 3ᵃ ed. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 94-95. [5] Por maioria, foi concedida a liminar, eliminando os efeitos da autorização legal, vencidos os ministros Fachin, Rosa Weber, Dias Toffoli e Gilmar Mendes. [6] Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (...) IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução; [7] MARTINS, Ives Gandra. Perfil Constitucional Das Agências Reguladoras. In: COSTA, Daniel Castro Gomes da; FONSECA, Reynaldo Soares da. Direito Regulatório: Desafios e perspectivas para a Administração Pública. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 121-122. [8] Egon Bockman também parte da premissa de que existe um verdadeiro “mal-estar democrático” advindo especificamente do surgimento das agências reguladoras, o que faz com que sejam criados mecanismos aptos a lhe conferir legitimidade (MOREIRA, Egon Bockman. Agências Reguladoras Independentes, Déficit Democrático e a "Elaboração Processual de Normas". Belo Horizonte: Revista de Direito Público da Economia – RDPE, 2003, p. 222). [9] STF, ADIn 1.668, rel. min. Marco Aurélio de Mello, DJ 23.10.97. [10] Conforme as lições de Seabra Fagundes, "ao Poder Judiciário é vedado apreciar, no exercício do controle jurisdicional, o mérito dos atos administrativos. Cabe-lhe examiná-los, tão-somente, sob o prisma da legalidade. Este é o limite do controle, quanto à sua extensão" (FAGUNDES, M. Seabra. O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 145) [11] Aqui estamos a falar de normas de competência, de tramitação, de aprovação e demais técnicas legislativas das quais não a administração pública ainda não tem o efetivo domínio, se comparadas ao Poder Legislativo. [12] ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. 5ᵃ ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p. 347. [13] Nesse sentido: FONSECA, Francisco José Defanti. Op Cit., p. 159.
2023-01-22T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-22/publico-pragmatico-controle-exercicio-regulamentar-agencias-reguladoras
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Embargos Culturais
Plutarco, Ruy Castro, Lira Neto e o fascínio das biografias
A Cia. das Letras lançou no fim do ano passado dois livros que tratam do fascinante tema das biografias. O pai fundador do gênero seria Plutarco (46-120 d.C.), grego, que nasceu na Beócia, região de camponeses pouco ilustrados, justificando o adjetivo "beócio", aplicado aos mais rústicos e menos cultos. Teria visitado Alexandria, Roma, partes da Grécia e da Itália. Criador do gênero biográfico, comparou gregos e romanos, em Vidas Paralelas, que algumas traduções trazem como Vidas Comparadas. Plutarco enfatizou o exemplo moral, a virtude, o bom comportamento. Não desprezava uma anedota; é um escritor memorável. Plutarco traçou gregos virtuosos, campeões, paladinos. As biografias de Plutarco foram muito lidas. Em 1579 publicou-se a tradução inglesa, que não fora feita do grego, mas de uma versão francesa. Foi muito apreciada na Inglaterra elizabeteana (principalmente por Shakespeare) e também nos Estados Unidos, onde Plutarco era, ao lado da Bíblia, obra obrigatória nos lares da colônia. Em Plutarco é manifesta a intenção moralizante. Incontestável a apropriação do passado na construção de uma tábua de valores coerente com suas idiossincrasias. Patente o propósito didático. Entre nós a forma de escrever biografias foi marcada por uma revolução no gênero, no fim do século XX. Fernando Morais (Olga), Jorge Caldeira (Mauá), Albert Dines (Stefan Zweig), Ruy Castro (Nelson Rodrigues, Garrincha, Carmen Miranda), Lira Neto (José de Alencar, Padre Cícero, Getúlio) foram os protagonistas dessa revolução. Nas livrarias (que sobraram) há hoje sessões de biografia, que estão entre as mais procuradas. Há discussões gravíssimas sobre a liberdade do biógrafo (e Ruy Castro foi incomodado por isso). É exemplo do problema a celeuma causada em torno da biografia de Roberto Carlos, fonte de muito problemas para Paulo César de Araújo, que saiu vitorioso da contenda no Supremo Tribunal Federal. A questão foi debatida na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.815-DF, requerida pela Associação Nacional dos Editores de Livros (Anel) e relatada pela ministra Cármen Lúcia. A ministra relatora enfatizou que "(...) 5. Biografia é história. A vida não se desenvolve apenas a partir da soleira da porta de casa. 6. Autorização prévia para biografia constitui censura prévia particular. O recolhimento de obras é censura judicial, a substituir a administrativa. (...) 7. A liberdade é constitucionalmente garantida, não se podendo anular por outra norma constitucional (inc. IV do art. 60), menos ainda por norma de hierarquia inferior (lei civil), ainda que sob o argumento de se estar a resguardar e proteger outro direito constitucionalmente assegurado, qual seja, o da inviolabilidade do direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem (...)". Essa decisão é um marco no direito brasileiro. Aqueles que gostamos de biografias nos deliciamos com esses dois livros recentemente publicados pela Cia. da Letras. Ruy Castro (A Vida por Escrito, Ciência e Arte da Biografia) explora o significado de uma biografia, como documento literário, e também como documento histórico. Trata de aspectos operacionais que marcam essas empreitadas, a exemplo da escolha do biografado, da apuração de informações, do processo de escrita da biografia, da edição do livro. A revelação dos motivos pelos quais Ruy Castro havia optado por biografar Garrincha, por exemplo, vale a leitura do livro. É um exemplo de vida e de superação. Não há como se sensibilizar com os motivos pelos quais Ruy Castro biografou o famoso jogador de futebol. Ruy Castro inicia o livro narrando a história de um refém em sequestro ocorrido em 8 de dezembro de 1992, a quem os sequestradores deixaram como alternativa de leitura o cartapácio de Guimarães Rosa. O sequestrado, que era um empresário, pediu que o livro fosse trocado pela biografia que Ruy Castro havia escrito sobre Nelson Rodrigues. Essa narrativa, e seu desate, comprovam o poder que biografias exercem sobre nossas escolhas e comportamentos. Eu adoro biografias porque tenho a impressão de que estou vivendo outras vidas. Eu me senti Nelson Rodrigues quando li esse monumento literário que é O Anjo Pornográfico. Lira Neto (A Arte da Biografia, Como Escrever Histórias de Vida) apresenta-nos primeiramente uma história das biografias. Problematiza a extensão e limites da missão do biógrafo (o que quer e o que pode uma biografia?), sugere formas de trabalho (por onde começar a pesquisa?), fala um pouco do ofício (senso de detetive, olhar de antropólogo, espírito de arqueólogo), discorre sobre os limites éticos do biógrafo, que é quem detém o controle da narrativa (é o narrador quem tem as rédeas). Insiste que uma biografia deve ser uma leitura cativante (o leitor não pode cochilar). Para os interessados nesse gênero bibliográfico eu acrescentaria a leitura da obra-prima de François Dosse (O Desafio Biográfico — Escrever uma Vida, editado pela Edusp). Para esse historiador francês (que biografou intelectuais franceses como Paul Ricoeur, Michel de Certeau e Gilles Deleuze) a biografia é um verdadeiro romance, muitas vezes localizado entre o jornalismo e a história. Não nos esqueçamos que Ruy Castro e Lira Neto são também reconhecidos jornalistas. Não há acordo se biografia é literatura ou é ciência. Para atormentar o interessado há também o romance biográfico, que dissolveria essa última (ciência) em favor daquela primeira (literatura). De interesse para o Direito há as biografias de San Tiago Dantas (escrita por Pedro Dutra), de Pedro Lessa (escrita por Roberto Rosas), de Clóvis Beviláqua e de Teixeira de Freitas (ambas de Sílvio Meira), de Ruy Barbosa (de Luís Viana Filho) e de Tobias Barreto (de minha autoria).
2023-01-22T08:00-0300
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Opinião
Reis Friede: Da independência das funções judiciária e legislativa
Recentes polêmicas sobre uma suposta ampliação dos dispositivos que excluem, da tipificação de crime, a prática de aborto, na hipótese de feto anencéfalo (STF; ADPF nº 54, relator ministro MARCO AURÉLIO, 12/4/2012) e de abortamento procedido até o terceiro mês de gestação (STF; 1ª Turma, HC nº 124.306, relator ministro LUÍS ROBERTO BARROSO, 29/11/2016), surgidas através de interpretação, por parte do Supremo Tribunal Federal, quer por meio de Ação de Preceito Cominatório com efeitos erga omnes e vinculante, quer na oportunidade de julgamento de caso concreto desprovido de tais efeitos, têm conduzido a uma grande discussão sobre a eventual invasão de competência legislativa por parte do órgão de cúpula do Poder Judiciário. Em nossa obra intitulada Ciência do Direito, Norma, Interpretação e Hermenêutica Jurídica (9ª edição, Ed. Manole, Rio de Janeiro, 2015), temos defendido (enfaticamente) a tese segundo a qual os juízes continuam "escravos da lei" e, em particular, de sua correta e técnica interpretação, criticando aqueles julgadores que, através do que convencionalmente é denominado por Direito Alternativo, se arvoram no direito de legislar, criando uma nova categoria, não reconhecida pela Constituição Federal, que ousamos, naquela oportunidade, intitular de "Deputado Judiciário". Não é o caso, todavia, de ambas as corretas (e elogiáveis) decisões interpretativas, conduzidas pela Suprema Corte, nos casos anteriormente mencionados, bem como, de idêntica hipótese, perpetrada pelo Superior Tribunal de Justiça, no que concerne à descriminalização do crime de desacato (STJ, 5ª Turma, REsp nº 1.640.084/SP, relator ministro RIBEIRO DANTAS, 15/12/2016). Nunca é demais lembrar que o papel do Judiciário e, em particular, de seu órgão de cúpula, é, acima de tudo, proteger os anseios do povo diretamente consagrados por meio do Poder Constituinte e registrados na Carta Constitucional, ainda que, eventualmente, em efetiva contraposição crítica à suposta vontade popular (momentânea), indiretamente representada pelo Poder Constituído Legislativo. Assim é que (sempre) apresenta-se tecnicamente possível — e constitucionalmente autorizado — ao Poder Judiciário não propriamente criar leis excludentes de crimes previstos no Código Penal, mas, através de sua atuação rigorosamente nos estritos limites da Constituição, conceber o efeito prático destas mesmas excludentes penais por intermédio do reconhecimento (efeito concreto inter partes) ou da declaração (efeito abstrato erga omnes) de inconstitucionalidade (parcial, como no caso do aborto, ou total, como na hipótese do delito de desacato) das eventuais tipificações penais procedidas pelo Legislativo, no contexto de sua correspondente competência legiferante. Se assim não fosse, teríamos, por exemplo, a absurda situação de, na eventual ausência de expressa previsão legal quanto à hipótese de abortamento por risco de morte da gestante (artigo 128, I, do Código Penal), não se poder reconhecer o direito constitucionalmente assegurado à vida da mesma, pelo órgão judiciário, criando, desta feita (e por consequência lógica), o efeito prático de uma excludente penal, eventualmente não prevista (e concebida) pelo Legislativo. Também, nessa mesma linha de raciocínio, restaria impossível ao Judiciário reconhecer ou declarar a evidente impossibilidade do Estado de punir (retirando a eficácia jurídica da norma legislada e, por consequência, o espectro punitivo estatal) seus cidadãos em situações limítrofes em que, ocorresse, por completo absurdo, uma eventual tipificação penal que simplesmente proibisse os seres humanos de respirar. Destarte, não se pode jamais confundir (como aparentemente desejam os menos avisados) a competência de legislar (inerente ao Poder Legislativo) com a competência de retirar a eficácia jurídica das leis que, contaminadas por vício material ou formal, não convirjam com os imperativos constitucionais, sejam os mesmos normativos ou principiológicos. Ademais, nem se diga ser, política ou juridicamente, possível ao Judiciário se subtrair a esta função precípua, considerando que, uma vez provocado — por intermédio de ação típica ou de recurso de efeitos concretos ou, ainda, por meio de ação atípica originária de efeitos abstratos —, incumbe ao mesmo, no exclusivo âmbito de sua privativa competência constitucional, obrigatoriamente se pronunciar, ainda que necessariamente em decisão (tecnicamente) fundamentada (artigo 93, IX, da CF), no sentido de retirar (ou não) a validade material ou fática (eficácia jurídica) das leis infraconstitucionais concebidas pelo Poder Legislativo e vigentes no ordenamento normativo. Críticas à parte, não há, pois, como deixar de reconhecer ser esta uma inconteste atribuição constitucional delegada (exclusivamente) ao Judiciário e, em particular, ao Supremo Tribunal Federal. E, neste sentido, sequer é possível tecer críticas a um suposto (e exagerado) ativismo judiciário, considerando, sobretudo, que a jurisdição, por imperativo legal, é sempre inerte e somente é possível a realização da mesma mediante a devida provocação, nos exatos termos da legislação vigente, que resta determinada impositivamente, em última análise, pelo próprio Poder Legislativo.
2023-01-22T07:14-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-22/reis-friede-independencia-funcoes-judiciaria-legislativa
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Direito Eleitoral
Tiririca e Roberto Carlos: é possível paródia em eleições?
Em setembro, o humorista e deputado Francisco Everardo Tiririca Oliveira Silva (PL/SP), mais conhecido como Tiririca, voltou a entrar numa disputa judicial com o cantor Roberto Carlos. O motivo foi o uso de uma música de sua autoria. A controvérsia se deu, novamente, em torno da canção O Portão — a primeira vez ocorreu nas eleições de 2014, na qual o humorista fora reeleito para o segundo mandato. Desta vez o comediante e aspirante a mais uma reeleição fez uma paródia trocando os versos "Eu voltei/agora pra fica/ Porque aqui, aqui é meu lugar" para "Eu votei/De novo vou votar/Tiririca, Brasília é seu lugar" [1]. A paródia é definida da seguinte maneira pela Lei de Direitos Autorais (9.610/98), em seu artigo 47: "São livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito". A Constituição, ao passo que protege a livre manifestação de pensamento, também prevê proteção aos direitos de autores quanto a utilização de suas obras [2]. Os conceitos de "obra" e "utilização" possuem significados específicos quando o assunto é direito autoral, mais precisamente em relação à música. De forma breve e em termos familiares: "obra" é a letra e melodia da canção, que deve ser devidamente registrada para possibilitar a existência dos fonogramas que são, grosso modo, a materialização da música em suas diferentes versões. Como exemplo, a música que é tema deste artigo: há a obra original, O Portão, composição de Erasmo Carlos e Roberto Carlos. Existem diversos fonogramas dessa obra, de artistas que vão dos próprios compositores até Titãs, Kid Abelha, entre muitos outros. Contudo, temos a obra, ideia originária, abstração gestada pelo poder de criação humana, de um lado. Do outro (utilização), as gravações e seus diversos fonogramas, que geram custos e lucros que devem ser devidamente manejados em seus mais diversos formatos, seja no mundo digital ou físico. Esse trabalho, usualmente, fica a cargo das gravadoras, seus selos e editoras. Para isso, tais empresas ficam com uma porcentagem do lucro e possuem certa ingerência no manejo dos fonogramas. Feita essa distinção, há mais uma, para que possamos entender essa cisão entre abstrato e concreto. Ela envolve o que se entende por direito moral e direito patrimonial — frisando: "direito moral" no contexto do direito autoral. Acreditamos que seja de certa forma intuitivo captar o que cada conceito significa. De forma sintética, o direito moral diz respeito à música como ideia, e o patrimonial, à música como produto. Mesmo que o autor ceda para terceiros o gerenciamento do fonograma como produto, ainda terá direito, em certos casos, de vetar sua utilização [3]. Aqui chegamos ao caso concreto Tiririca versus Roberto Carlos. Os representantes do autor alegam que o humorista estaria se aproveitando e colhendo frutos da utilização da música sem a devida autorização e, ainda por cima, vinculando a imagem do compositor a um político, quando Roberto Carlos alega sustentar uma política de neutralidade nesse campo. No que diz respeito à proteção dos direitos do autor da canção original, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já se manifestou duas vezes. Na primeira delas, o STJ reiterou o caráter excepcional que esse tipo de criação derivada de uma obra possui, na ocasião do Recurso Especial (RESP) nº Nº 1.597.678/RJ [4]. No acórdão, de relatoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, é frisado que, desde que respeite os atributos de comicidade, distintividade e ausência de cunho depreciativo, a paródia coaduna-se com a exceção do já mencionado artigo 47 da Lei de Direitos Autorais, não ensejando indenização. Voltando ao primeiro caso de 2014, em segundo julgado o STJ se manifestou favoravelmente ao comediante no REsp 1.810.440, bem como corroborou com a decisão acima. Além disso, acrescente-se que o tom escrachado e de humor traz caráter discreto, o que gera uma autonomia na paródia, ou seja, obra nova. Inclusive, embora caso distinto, nos parece que a linha segue a liberdade de expressão e liberação de sátiras, consoante a ADIN 4.451/DF [5] No caso atual, os representantes do músico já acionaram o Supremo Tribunal Federal através de Reclamação Constitucional, com pedido denegado pelo ministro Ricardo Lewandowski [6]. Essa decisão não obsta a análise do caso pelas instâncias inferiores, porém, na própria argumentação do ministro, já fica claro que o caso não é de simples resolução. Por fim, cabem algumas questões: qual o peso dessa paródia para a reeleição do humorista? Vale dizer, aliás, que Tiririca também é cantor. Não será que o artigo 17 da Resolução 23.610/2019 não lhe dá respaldo para a paródia? [7] Há fim de crítica e comicidade nessa versão parodiada, ou apenas sua utilização pontual com o intuito de ganho financeiro, mesmo que indireto? Atualizar a paródia com referência a um recente caso de discussão do cantor com um fã contextualiza de forma diferente o conteúdo da criação humorística? É usual a paródia em época eleitoral, iremos restringir a liberdade de expressão? São questões a serem respondidas pelas diferentes instâncias judiciais. [1] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=T__c2QcSCVg&ab_channel=Poder360. Acesso em: 10/10/2022 [2] Constituição Federal, artigo 5º, inciso XXVII: "aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar". [3] COSTA NETTO, José Carlos. Direito autoral no Brasil. 3ª ed. São Paulo. Saraiva Educação, 2019. [4] Disponível em https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1741125&num_registro=201403219351&data=20180824&formato=PDF. Acesso em: 11/10/2022 [5] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-jun-29/direitos-fundamentais-stf-liberdade-expressao-liberacao-satiras-eleicoes. Acesso em: 11.10.2022 [6] https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RECLAMAaO55.800.pdf [7] Art. 17. É proibida a realização de showmício e de evento assemelhado, presencial ou transmitido pela internet, para promoção de candidatas e candidatos e a apresentação, remunerada ou não, de artistas com a finalidade de animar comício e reunião eleitoral, respondendo a pessoa infratora pelo emprego de processo de propaganda vedada e, se for o caso, pelo abuso de poder (STF: ADI nº 5.970/DF, j. em 7.10.2021, e TSE: CTA nº 0601243-23/DF, DJe de 23.9.2020). (Redação dada pela Resolução nº 23.671/2021) Parágrafo único. A proibição de que trata o caput deste artigo não se estende: (Redação dada pela Resolução nº 23.671/2021) I - às candidatas e aos candidatos que sejam profissionais da classe artística, cantoras, cantores, atrizes, atores, apresentadoras e apresentadores, que poderão exercer as atividades normais de sua profissão durante o período eleitoral, exceto em programas de rádio e de televisão, na animação de comício ou para divulgação, ainda que de forma dissimulada de sua candidatura ou de campanha eleitoral; e (Incluído pela Resolução nº 23.671/2021) II - às apresentações artísticas ou shows musicais em eventos de arrecadação de recursos para campanhas eleitorais previstos no art. 23, § 4º, V, da Lei nº 9.504/1997 (STF: ADI nº 5.970/DF, j. em 7.10.2021). (Incluído pela Resolução nº 23.671/2021)
2023-01-23T12:33-0300
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Opinião
Lenio Streck: A hermenêutica do curupira! E viva a OAB-BA!
No longínquo ano de 1893 um juiz foi condenado, pelo Superior Tribunal da Província do RS, pelo "crime de hermenêutica". Na verdade, ele havia cumprido a Constituição e declarado, em controle difuso, a inconstitucionalidade de um dispositivo ordinário. Seu advogado, Rui Barbosa, criou a tese da vedação do crime de hermenêutica. E o STF "absolveu" o magistrado. Desde então, há que se fazer uma distinção entre crime de hermenêutica e o uso da hermenêutica para fazer incitamentos de cometimento de crime(s). Trago dois exemplos contemporâneos que se enquadram na segunda hipótese — a da hermenêutica usada para incitamento de cometimento de crimes, o que chamo de "hermenêutica do curupira". O primeiro exemplo é o "sentido" dado ao artigo 142 da Constituição. Graças a essa leitura de pés virados (jus curupira), milhares de radialistas (por que a maioria dos radialistas são reacionários?), operadores jurídicos (tem dez advogados presos por incitação ao golpe e participação nos atos criminosos do dia 8 J), militares, pessoas comuns, uma choldra de pastores que nunca passou perto de um curso de teologia reconhecido, e ex-jogadores de bingo (com alto grau de sarcasmos, digo: sou a favor da volta dos bingos e pela taxação dos smartfones) passaram a ter a convicção de a Constituição continha uma espécie de dispositivo auto implosivo, um "reset" institucional. Essa ideia lhes foi "vendida". Como uma jus fakenews. Quem colocou esse jus jabuti na árvore? Gentes do direito, jornalistas, "influencers" e militares fizeram uma leitura do tipo "todo o poder emana das forças armadas". Tese tão absurda que o STF a chamou de terraplanismo jurídico (voto do ministro Barroso). Talvez entre no Guiness essa leitura Humpty Dumpty-Curupira do artigo 142 da CF, pela qual as Forças Armadas seriam o "poder moderador". Há que ter uma responsabilidade ética na interpretação de textos. O que quero dizer é que, por vezes, fazer um certo tipo de hermenêutica pode ser um incitamento ao crime. Mesmo que o intérprete não queira. As pessoas (leia-se militares, ex-jogadores de bingo, advogados, médicos, dentistas, caminhoneiros, pastores, presbíteros, missionários, néscios em geral e políticos reacionários) podem acreditar que, de fato, as Forças Armadas são o poder moderador. Por isso, juristas deveriam alertar, na bula — sim, Platão falava que a linguagem é como um Pharmacon —, que a sua interpretação pode causar efeitos colaterais como a invasão dos prédios dos três Poderes, como ocorreu no dia 8. Algo como a tarja das carteiras de cigarro: "o uso desta interpretação pode levar o usuário à prisão". Não se diga agora que os que difundiram essa interpretação enviesada do artigo 142 podem vir a "tirar o corpo fora". Há limites na interpretação de qualquer dispositivo. Se uma lei proíbe cães na plataforma, não se pode sair por aí dizendo que a lei permite que ursos passeiem lépidos pela plataforma. E crocodilos. E gorilas. E, da mesma forma, também não se pode proibir o cão-guia do cego. Até o general Augusto Heleno se meteu de pato a ganso no ramo da hermenêutica. Só que comprou a tese curupira. Dezenas de vezes falou — e uso aqui, na especificidade, o que disse em agosto de 2021 em uma rádio e TV — que "o artigo 142 é bem claro, basta ler com imparcialidade. Ele existe no texto constitucional, é sinal de que pode ser usado" (sic). À época denunciei isso. E avisei que os efeitos colaterais seriam terríveis. Mas poucos quiseram ler a bula. Assim agindo, somando com os incentivos que o general dava no sentido de intervenção militar, há que se perguntar: por que o MP não interpelou o general? O segundo exemplo de hermenêutica dos pés virados foi a de que a nova Lei de Defesa do Estado Democrático (14.197/2021) garantia a livre manifestação golpista, desde que pacífica. Vendeu-se no Brasil a tese de que "há um direito fundamental a defender golpe militar". Bom, um juiz de MG chegou até a conceder mandado de segurança assegurando a um gaiato esse "direito fundamental". Nessa linha, até os comandantes militares entraram nessa patacoada anti-hermenêutica. Leiamos a lei: "não constitui crime [...] a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais, por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais". Ora, eis a pergunta de um milhão de "alamdossantos": pedir, exigir e incitar golpe militar (em acampamentos e programas de rádio e TV) tem propósitos sociais? Percebem o fundo do poço em que nos metemos com interpretações curupira? Uma coisa é certa: sustentar que o artigo 142 era um dispositivo de "resetamento" (sim, inventaram isso: o artigo 142 seria um dispositivo auto implosivo do sistema!!!) da democracia e apregoar que era livre expressão pedir intervenção militar são dois exemplos do que uma má hermenêutica pode provocar. Sim, fazem-se coisas com palavras. Porque muita gente acreditou. Basta ver o que ocorreu dia 8 de janeiro. É o que chamo de "fator Navah": dar existência a coisas que não existem! Uma mistura do velho testamento com John Austin (o linguista). Quem colocou o Jabuti nos prédios dos três Poderes? Quem, quem? Parte da culpa é de uma má hermenêutica. Por dolo ou culpa. A história há de mandar a conta. Virá sob a rubrica "irresponsabilidade hermenêutica". Na coluna "hermenêutica sucupira". Post scriptum: para os jus haters! Antes que apareçam os jus haters de sempre dizendo "ah, e o Alexandre de Morais? Não vai falar nada, professor? E sobre a ditadura do STF?", eu me adianto e digo: poupem-me dessas jus pilhérias e jus nesciedades. E das currupirices antiargumentativas. Não fosse o STF e o TSE e nem estaríamos aqui debatendo o assunto. O golpe de Estado não ocorreu por pouco. Muito pouco. Então, vamos lá: fatos existem. E paremos de ficar nas bolhas das neocavernas. E alguns já podem (devem) voltar aos bingos. Legalização dos bingos já! E pela volta da boa ironia. E do bom e velho sarcasmo. Mais um detalhe: viva a OAB da Bahia, que está propondo que advogado que apoia intervenção militar deve ganhar automaticamente o certificado de "inidôneo". Viva a Bahia.
2023-01-23T11:20-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-23/lenio-streck-hermeneutica-curupira-viva-oab-ba
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Opinião
Genro e Favreto: Gilmar Mendes e o 2º Pacto Republicano
"No texto da Constituição de 1988 há um núcleo essencial, não cumprido, contendo um conjunto de promessas da modernidade, que deve ser resgatado. O problema é que em países como o Brasil, formou-se um 'silêncio eloquente', acerca do significado da Constituição, naquilo que ela tem de 'norma diretiva fundamental'. Numa palavra, sob o manto de uma 'baixa constitucionalidade', olvidou-se constituir a Constituição; mas muito pior do que o silêncio é não prestarmos atenção nele[1]." A resistência do Poder Judiciário, todavia, à superação da "baixa constitucionalidade" da Constituição Democrática — sempre lembrada pelos juristas de primeira grandeza — é uma das características importantes (negativas) da constitucionalização efetiva do nosso Estado de Direito, para imputar materialidade aos Direitos Fundamentais. O ministro Gilmar Mendes, ex-presidente do STF, foi um dos principais responsáveis, com os autores do presente artigo, estes em representação do Poder Executivo, para a formulação e implementação do "2º Pacto Republicano para a Reforma do Sistema de Justiça", na verdade um avanço contra "a baixa constitucionalidade" do nosso sistema geral de normas. Como presidente do Supremo, juntamente com o presidente Lula no seu segundo mandato presidencial, suas atitudes foram decisivas para que o fluxo das relações daquela Corte com o Poder Executivo e o Poder Legislativo avançasse de forma harmônica na busca de que a "vontade de Constituição" se expressasse diretamente na vida comum. Aliás, o estranhamento entre o sistema de normas da Constituição e a realidade objetiva da sua aplicação na vida social, é onde se situa o caminho aberto pela  "vontade" constituinte, para aproximar aquela vontade do pacto político com a vida real. Na apresentação do seu "Estado de Direito e Jurisdição Constitucional”[2], no qual o ministro Gilmar trabalhou, entre outros temas de relevância, decisões sobre o significado dos Direitos Humanos no ordenamento jurídico e outras questões-chaves, como as atinentes à liberdade de expressão, ficou assente que "é natural que a vontade de constituição, na feliz assertiva de Konrad Hesse" — asseverou o ministro — "busque expressão nas decisões do órgão de cúpula do Judiciário." O "Pacto de Estado" que ora noticiamos foi concebido com uma verdadeira estratégia institucional de gestão compartilhada dos interesses nacionais que, firmado em dezembro de 2008, demonstrou, não só a verdadeira possibilidade de que os poderes independentes podem ser harmônicos e "efetivos", mas também que são aptos para enfrentar as questões do sentido do interesse público nacional, atinentes ao Sistema de Justiça, Quem estranhou a rápida e recente reação do ministro Gilmar Mendes ao crime de genocídio, provavelmente cometido pelo governo que findou dia 31 de dezembro último, certamente não lembrava do seu empenho — na Corte Suprema da República — para buscar a efetividade da Constituição, sem recusar a necessidade de harmonizar os seus macro princípios para resolver as suas colisões "por dentro" do seu sistema de normas. Resolvê-los assim, não pelo impressionismo do espírito de turba, que caracteriza o que tem de pior hoje no populismo constitucional, que tem por escopo "ajudar" os violadores da ordem jurídica. "Ponderação" e "Proporcionalidade", recebidas como pressupostos metodológicos nos julgamentos concretos, para superar os eventuais conflitos no reconhecimento de dois direitos fundamentais eventualmente colidentes, é um símbolo desta conexão dos valores com fatos. E destes com as normas: "a Constituição confere ao legislador margem discricionária para avaliação, valoração e conformação, quanto às medidas eficazes e suficientes para a proteção do bem jurídico; no entanto a mesma Constituição impõe ao legislador os limites do dever do respeito ao princípio da proporcionalidade", salienta o ministro Gilmar Mendes, na obra referida.[3] Só juristas e personalidades operadoras do Direito, como é o ministro Gilmar, poderiam "empurrar", para um destino harmônico, um pacto da natureza deste — que ora lembramos — pois como recorda outro constitucionalista de excelência (Siqueira Castro) "a técnica exegética da ponderação dos interesses” é o que dá equilíbrio e sensatez, quando há confronto "entre princípios e normas constitucionais"[4] e a "busca da harmonização, entre os vários direitos em confronto, (vale-se) dos critérios da razoabilidade e da proporcionalidade na distribuição dos custos do conflito" (...) de forma a que não se sacrifique o núcleo essencial de cada direito ou liberdade protegidos, para ser o caminho mais justo e equilibrado": agrego — para salvar a essência do Estado de Direito da Democracia Constitucional.[5] Os elementos do Pacto, ora relembrados, apontam diretamente para a efetividade de direitos fundamentais e para sua instrumentalização legítima pelos cidadãos, que buscam a sua efetividade. O 2º Pacto Republicano de Estado, firmado em 13 de abril de 2009[6], pelos presidentes dos três Poderes da República, constituiu-se como um acordo político de cooperação entre os Poderes, visando a continuidade das reformas do Sistema de Justiça, oportunidade que priorizou a democratização do acesso à Justiça, a concretização dos direitos humanos e fundamentais e a agilização e efetividade da prestação jurisdicional. Outra orientação do 2º Pacto foi a sua amplitude temática, no sentido de contemplar todos os órgãos integrantes do Sistema de Justiça e não somente o Poder Judiciário. Por isso, o seu enfoque envolveu também o Ministério Público, Defensoria Pública e Advocacia, na compreensão de que todos têm responsabilidades e contribuições para o aperfeiçoamento e qualificação das suas instituições na prestação da Justiça. Definido o Sistema de Justiça como campo de abrangência, "adotamos a política de priorizar temas para orientar as reformas normativas, a fim de permitir maior flexibilidade na seleção dos projetos de leis e, especialmente aproveitar e prestigiar as inúmeras iniciativas legislativas dos parlamentares, bem como outras propostas pendentes do 1º Pacto (2004). Ao mesmo tempo, essa estratégia permitiu o envio de alguns novos projetos no momento da assinatura do Pacto, como a apresentação futura em temas ainda em discussão e construção".[7] Destacou-se, na documentação preparatória ao Pacto por parte do Ministério da Justiça, a importância que adquiriu o Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania) que, exemplificado como trabalho transversal partido do ministério — repassou recursos de vulto  (R$ 14 milhões de reais) por meio da Secretaria de Reforma do Judiciário, para um melhor aparelhamento da Defensoria Pública da União. O sucesso dessa pactuação republicana, balizada pela co-gestão dos poderes, com respeito a sua autonomia federativa, permitiu a aprovação de mais de duas dezenas de novas leis, cabendo destacar: i) a interiorização da Justiça Federal, com a criação de 230 novas varas para tornar aproximar a justiça do cidadão (Lei nº 12.011/09); ii) a criação da Lei Orgânica da Defensoria Pública, para fortalecer a instituição, criação de ouvidorias e priorização de estruturação em regiões com IDH mais baixo para garantia dos direitos dos cidadãos (LC nº 132/09); iii) Nova Lei do Mandado de Segurança, com a regulamentação do instrumento coletivo para proteção de direitos contra os abusos de autoridade (Lei nº12.016/09); iv) criação dos Juizados da Fazenda Pública permitindo aos cidadãos  instrumentos mais acessíveis e rápidos nas demandas contra os estados e municípios, por exemplo sobre questões tributárias, multas de trânsito e não atendimento de direitos de saúde, educação e assistência social (Lei nº 12.153/09); v) no plano de atuação do Supremo Tribunal Federal, cumpre destacar a Lei 12.063/09, que trouxe a disciplina processual para a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO), nos casos de omissão total ou parcial do cumprimento constitucional do dever de legislar. Ainda, a Lei 12.562/11, que dispõe sobre o processo e julgamento da representação interventiva perante o Supremo Tribunal Federal; vi) a lei que disciplina as medidas cautelares no processo penal (prisão processual, fiança, liberdade provisória e outras medidas), conferindo mecanismos a serem usados pelo juiz durante o processo, a fim de garantir a devida condução da investigação criminal e a preservação da ordem pública ( Lei nº 12.403/11); vii) atualização da Lei de Execução Penal, para prever a remissão da pena pelo tempo de estudo no sistema prisional, dentro das ações políticas do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) ( Lei 12.433/11): viii) aregulamentação do Teletrabalho, que passa a não fazer distinção entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador e o executado no domicílio do empregado ou realizado a distância (Lei nº 12.551/11); ix) a Lei 12.527/11, que disciplina o acesso à informação, contribuindo para tornar o Estado mais transparente e democrático, por meio da consulta de documentos públicos e informações de ações e políticas dos órgãos de governo aos cidadãos; x) a Lei define os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído (Lei nº 13.869/19). A memória do êxito dessa pactuação republicana teve singular contribuição do ministro Gilmar Mendes, em especial pela sua visão distinta e inovadora na gestão do Sistema de Justiça, associada a sua capacidade intelectual e de articulação política. Portanto, mais um registro importante ao jurista homenageado. NOTAS: [1]STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Uma Nova Crítica do Direito Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p.127. [7]Revista do II Pacto Republicano de Estado por um Sistema de Justiça mais Acessível, Ágil e Efetivo. Secretaria de Reforma do Judiciário – Ministério da Justiça. Brasília/DF, 2009, p. 12.
2023-01-24T18:02-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-24/genro-favreto-gilmar-mendes-pacto-republicano
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Fábrica de Leis
O "Mágico de Oz" e dois mitos do processo legislativo
"Os sonhos são como os deuses. Se não se acredita neles, deixam de existir." (Cícero)   Para uma jovem amiga que acaba de ser avó   Em O Mágico de Oz — é um spoiler, mas, vamos lá, o livro tem quase 123 anos — o personagem-título, quando é desmascarado, descoberto como impostor que é, explica o porquê de fingir ser um feiticeiro terrível e poderoso: "se não pensassem que eu era mais poderoso, teriam com certeza me destruído". Na política e no Direito, de resto, as coisas não vão muito longe disso: não raro algum poder cria teses que o fazem ser mais temido do que amado, e talvez mais respeitado do que deveria realmente ser. É, porém, chegada a época da derrubada de todos os mitos, com M ou m: por isso, vamos usar o espaço de hoje para tentar desmistificar duas ervas daninhas que grassam em qualquer campo fértil no qual se estuda ou pratica o processo legislativo. Dois mitos tão antigos quanto úteis — especialmente para as pretensões de agigantamento do Executivo e apequenamento do Legislativo, especialmente nos níveis estadual e municipal. O primeiro desses mitos — você provavelmente já o ouviu sendo recitado em algum parecer ou discurso ou reunião ou aula — é o de que não se pode por iniciativa do Legislativo criar despesas para o Poder Executivo. Falso, irritantemente falso. Se esquadrinharmos o texto constitucional, a doutrina e a jurisprudência, verificaremos que essa suposição não encontra apoio em nenhuma norma constitucional expressa ou implícita. Comodamente repetida por Executivos que querem amordaçar o Legislativo e por legisladores masoquistas, essa tese deriva, talvez, da extrapolação de algumas regras constitucionais bastante distintas. A primeira delas é de que o projeto de lei orçamentária anual é de iniciativa exclusiva do Chefe do Executivo (CF, artigo 165, I a III). Disso decorre, logicamente, que a apresentação do PLOA e dos projetos de abertura de crédito adicional só pode ser realizada pelo presidente, governador ou prefeito. Disso não decorre, contudo, que qualquer tipo de lei que acarrete alguma despesa em algum momento só possa ser iniciada pelo Executivo. Difundiu-se um falso paralelismo, segundo o qual, se não se pode alterar o Orçamento por iniciativa parlamentar, também não se poderia nem sequer iniciar o processo legislativo sobre algum tema que resultasse em despesas para o Executivo. Outra possível origem desse mito talvez seja o artigo 63, I, da CF, o qual veda o aumento da despesa por meio de emenda parlamentar nos projetos de lei de iniciativa exclusiva do Executivo. Ora, aqui o que se tem é algo de outra natureza: não se pode, via emenda parlamentar, gerar aumento da despesa prevista num PL que só o Executivo pode desencadear (é dizer, não pode o Legislativo "fazer cortesia com o chapéu alheio") — o que é totalmente diverso de se afirmar que um PL de autoria de parlamentar não pode criar despesa para o Executivo. Trata-se de um falso silogismo: uma coisa é não permitir que o Legislativo aprove um PL do Executivo com um aumento de gastos em relação à proposta original; outra, bastante diversa, é dizer que somente o Executivo poderia propor leis que acarretassem aumento de despesa. Na realidade, a CF não proíbe que parlamentares proponham leis que gerem aumento de despesas para o Executivo. Se assim fosse, aliás, o Legislativo estaria condenado a se transformar num grande grêmio recreativo, a propor projetos sobre criação de datas comemorativas e nomes de ruas — e olhe lá. Não há dispositivo algum da Constituição que impeça a instituição de despesas para o Executivo por iniciativa parlamentar, até porque, ao fim e ao cabo, toda legislação traz em si um custo de implementação implícito ou expresso — e cabe, afinal, ao Poder Executivo, por vocação lógica, executar os mandamentos gerais e abstratos emanados do Legislativo, ao menos segundo o esquema tradicional de organização do Poderes. A tese em questão chegou a ser positivada em algumas constituições estaduais — o que traz à baila a interessante discussão sobre os limites da autoconformação do processo legislativo estadual. É o caso, por exemplo, da Constituição do Estado de Pernambuco, cujo artigo 19, § 1º, II, insere na iniciativa privativa do Executivo as leis que acarretem "aumento de despesa pública, no âmbito do Poder Executivo". Na esfera federal, porém, assim como pelo menos nos estados cujas Constituições não contenham disposições semelhantes, os parlamentares podem, sim, propor leis que criem despesas para o Executivo, por absoluta falta de vedação constitucional [1]. O que não se pode, registre-se, é alterar diretamente a Lei Orçamentária anual. Trocando em miúdos: uma lei de iniciativa parlamentar pode prever que o Executivo instale câmeras de segurança em escolas públicas estaduais (caso concreto já apreciado pelo STF); logicamente, a implementação dessa lei terá um custo, que precisará ser previsto no orçamento: se isso vai ser feito no PLOA do exercício seguinte, ou mediante a abertura de um crédito adicional, aí, sim, trata-se de uma decisão do Executivo, e de sua iniciativa exclusiva. No caso da legitimidade constitucional de leis de iniciativa parlamentar que criem despesas ao Executivo, foi preciso que o STF julgasse em recurso extraordinário em regime de repercussão geral, para enfim, em 2016, fixar a tese de que "Não usurpa competência privativa do Chefe do Poder Executivo lei que, embora crie despesa para a Administração, não trata da sua estrutura ou da atribuição de seus órgãos nem do regime jurídico de servidores públicos (art. 61, § 1º, II, "a", "c" e "e", da Constituição Federal)" [2]. Nunca é demais lembrar, sobre o tema, a lição de Celso de Mello, para quem as hipóteses de iniciativa privativa do Executivo são a exceção, merecendo, por conseguinte, interpretação sempre restritiva [3]. Aliás, a advertência do ministro aposentado do STF vem bem a calhar quando se trata de desmascarar um outro despropósito correntemente invocado no processo legislativo: o de que o Legislativo não pode por iniciativa própria criar políticas públicas. Nesse caso, o Mágico de Oz do processo legislativo parece ter feito um trabalho tão exemplar de prestidigitação, que até mesmo em consultorias legislativas Brasil afora circulam esse mantra abjeto. Voltemos ao início: os parlamentares deste Brasil parecem ter feito realmente tábula rasa da iniciativa exclusiva do Executivo, ou criando diretamente órgãos e entidades do Executivo — o que viola o artigo 61, § 1º, II, e, da CF — ou, talvez pior, usando o deplorável artifício das "leis meramente autorizativas" (proibidas até pela Súmula nº 1, da Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados) para "autorizar" o Executivo a criar entidades. Desse abuso do poder de legislar derivou outro abuso, não menos censurável: o exagero de afirmar ser apenas o Executivo que pode propor projetos de lei que instituam políticas públicas. Do ponto de vista político, tal leitura é uma excrescência, porque se baseia na ideia de que apenas o Executivo teria expertise para planejar e formular uma política pública (sendo que, tradicionalmente e em vários países ocidentais, os programas de políticas públicas são gestados no Legislativo), esvaziando o Legislativo de um papel relevante no ciclo de tais políticas. E, do ponto de vista jurídico-dogmático, a tese não se sustenta, por absoluta (mais uma vez) falta de previsão constitucional. O que a norma constitucional fixa como iniciativa privativa do Executivo são as leis que criem ou extingam órgãos ou Ministérios (artigo 61, § 1º, II, e, c/c artigo 88). Isso até legitima uma leitura — não ampliativa, mas teleológica —, que veda também ao Legislativo criar sponte sua entidades do Executivo, ou redesenhar completamente atribuições de um ministério (por exemplo, atribuir a gestão do trânsito ao Ministério da Saúde, etc.). Disso não decorre, porém, nem de longe, a conclusão anos-luz distante de que só o Executivo poderia propor PL sobre instituição de política pública. Na esfera federal, estadual e municipal, inúmeros são os exemplos de leis de iniciativa parlamentar que instituíram programas (ou, pelo menos, ações) de políticas públicas e cuja legitimidade foi, ao final, confirmada pelo STF — também na esteira do Tema nº 917, confirmado por julgados posteriores. É incrivelmente frequente, no entanto, ouvir nos corredores do Congresso, ou das Assembleias Legislativas, ou mesmo ler acórdãos de Tribunais de Justiça "naturalizando" que "somente ao Executivo cabe propor projetos de lei sobre políticas públicas"... Mitologia, e de má qualidade – ou mitomania? Em suma: é preciso interpretar a Constituição não à luz de mantras ou mitos ou crenças repetidas, mas sim de seu texto, como ponto de partida inevitável, e da doutrina e jurisprudência, vozes relevantes para a sua compreensão. E, com base na intepretação constitucional predominante, são consideradas constitucionais as leis de iniciática parlamentar que instituem políticas públicas, desde que não alterem diretamente o Orçamento, não criem ou extingam órgãos e entidades do Executivo nem alterar de forma radical ("redesenho") suas atribuições. Não passam de mitos, portanto, as afirmações de que "o Legislativo não pode criar políticas públicas", ou de que "o Legislativo não pode criar despesas para o Executivo". Serem muito repetidas não torna essas máximas verdadeiras, e se não acreditarmos nelas, deixarão de existir. Aos que repetem culposamente esses mitos, cabe a lembrança dos versos de Augusto dos Anjos: é preciso erguer os gládios e brandir as hastas para quebrar a imagem desses sonhos (intranquilos), destruir os mitos criados para apequenar a atuação do Legislativo. Aos que os empregam dolosamente, a questão é lembrar mesmo o inevitável destino do Mágico de Oz: se a força do mito é que todos acreditam neles, agora, desmascarados e desmentidos inclusive pelo STF, o que será deles? [1] Questão distante é a exigência de avaliação de impacto, quando a lei instituir despesa de caráter continuado ou permanente, nos termos do art. 113 do ADCT. [2] ARE-RG 878.911, relator ministro Gilmar Mendes, DJe de 11/10/2016 (Tema 917). [3] STF, Pleno, ADI-MC nº 724/RS, relator ministro Celso de Mello, DJ de 27.4.2001. No mesmo sentido, aliás, a lição clássica de Carlos Maximiliano: MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 162 e seguintes.
2023-01-24T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-24/fabrica-leis-magico-oz-dois-mitos-antigos-processo-legislativo
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Opinião
Rômulo Moreira: Os 188 anos da Revolta dos Malês
"Seria real essa democracia racial brasileira? O que dizer da ampla e visível pobreza reinante no Brasil, sobretudo entre os negros? O que dizer do Ilê Aiyê e do Olodum, que surgiram, na década de 1970, devido à necessidade de assegurar aos negros (e mostrar isso aos brancos) que deviam ter orgulho das raízes africanas?"[2] Há 188 anos, numa madrugada quente, escura e abafada, em 1835, ocorreu em Salvador, a antiga província da Bahia, a maior revolta de escravizados negros no Brasil, levante histórico e sem precedentes até então, a Revolta dos Malês ou a Insurreição dos Malês.[3] Àquela época, já "saltava aos olhos a grande quantidade de revoltas e rebeliões praticadas pela população escrava e pela plebe livre que marcaram a vida dos habitantes de Salvador, palco das maiores rebeliões e revoltas de escravos do século 19".[4] Mas, de todas, nenhuma é comparável à Revolta dos Malês, sem dúvidas, "o mais sério levante urbano de escravos ocorrido no Brasil, que teve como palco as ruas e vielas de Salvador, contou com a adesão de cerca de 600 africanos e deixou um saldo de 70 mortos entre os rebeldes, massacrados pelas forças oficiais".[5] Além dos mortos, "300 revolucionários foram depois levados à Justiça e, ao fim dos processos, quatro acabaram fuzilados, 22 receberam pena de prisão e quarenta e quatro foram açoitados e mais de 500 africanos livres foram expulsos do país e tiveram que voltar para a África".[6] Conforme explica Granato, a Bahia, primeira capital do Brasil, fundada em 1549, "foi feita com sangue negro, e até 1763 funcionou como o coração de um país que servia para atender o modelo colonial de exploração das suas riquezas naturais a fim de satisfazer a demanda da coroa, em Portugal". Segundo o mesmo autor, houve três ciclos do tráfico de negros africanos para o Brasil que, antes mesmo, já era praticado entre a África e Portugal: o ciclo da Guiné, o de Angola e o do Benin.[7] O primeiro — funcionando quase de maneira experimental — foi o menor deles, "situando-se em torno de 1550, na fase em que o Brasil deixou de exportar escravos índios para importar negros, estimando-se que já em 1558 houvesse na Bahia cerca de 3.000 africanos, segundo estimativa do jesuíta José de Anchieta". O segundo ciclo, o angolano, iniciou-se no século 17, cem anos depois do primeiro, especialmente em razão de uma questão, digamos assim, logística: a viagem de Angola para o Brasil era menor, durando aproximadamente 40 dias, enquanto a primeira levava 70. Neste ciclo, "os bantos, etnia dos negros de Angola, foram os primeiros importados em grande escala para a Bahia, e viraram por um tempo a cara da Bahia, a ponto de em 1750 metade da população da capital baiana ser composta desses escravos". O terceiro ciclo — o maior de todos! — deu-se entre a Bahia e o Benin, nos séculos 18 e 19; ainda segundo Granato, nesta época, uma pessoa escravizada "valia de oito a dez rolos de fumo". Este terceiro ciclo, de tão intenso, "fez com que a Bahia ficasse superpovoada de escravos do Benin, embarcados no local onde hoje se situa a cidade de Ajudá, no litoral da atual República do Benin, onde existe uma comunidade de descendentes de cativos que nasceram ou estiveram no Brasil, que mantêm tradições brasileiras mesmo sem nunca ter pisado no país, festejando o Carnaval e comemorando o dia de Nosso Senhor do Bonfim; e, o mais curioso, usam o nome "Bahia" para designar, de um modo geral, todos os lugares situados fora da África.[8] De origem nagô, muitos desses africanos vindos do Benin eram muçulmanos e "alguns sabiam ler e escrever em árabe, chamados por isso de 'os filhos de Alá na Bahia', reconhecidos por portarem amuletos islâmicos, como saquinhos de couro que continham extratos do Corão, o livro sagrado do Islã, além de costumarem usar também anéis de ferro em vários dedos e repudiar a carne de porco, alimentando-se com a de carneiro". Os nagôs, ao contrário dos angolanos, "formaram um grande núcleo negro de reação, modificando o ambiente social da Bahia".[9] Com a chegada dos africanos nagôs, "somada à crise econômica e social da Bahia, ao aumento do trabalho e a piora nas condições de vida para os escravos, o século 19 foi marcado por revoltas, tanto urbanas como em áreas rurais da província".   A Revolta dos Malês foi "programada meticulosamente, com muita antecedência, para acontecer no amanhecer do domingo, 25 de janeiro, Dia de Nossa Senhora da Guia, data em que a cidade de Salvador estaria em festa e, portanto, os escravos ficariam mais livres da vigilância de seus senhores, e coincidia também com o fim do Ramadã, o mês sagrado dos muçulmanos praticantes do islã, como eram os africanos malês". O movimento, em virtude de uma delação, foi precipitada para o início da madrugada do próprio domingo, surpreendendo os seus líderes, o que facilitou a repressão das forças policiais e decretou o fracasso dos revoltosos, que não conseguiram, como era um dos objetivos do levante, libertar da cadeia pública da cidade uma importante liderança dos malês, Pacífico Licutan, o alufá Bilal Licutan.[10] Antes de serem derrotados, no entanto, os malês lutaram bravamente contra as forças do governo da província da Bahia, travando batalhas na Praça Tomé de Souza (ao lado do Elevador Lacerda), na Praça Castro Alves, no Mosteiro de São Bento, no Convento das Mercês, no Largo da Lapa, no Terreiro de Jesus, no Largo do Pelourinho, na Baixa do Sapateiro, entre outros locais, até que, na localidade de Água de Meninos (na área portuária de Salvador), quando os insurgentes, cientes da derrota, tentavam fugir para o recôncavo, ocorreu a última e a mais sangrenta batalha. Segundo Granato, "foi o momento mais dramático de toda a insurreição. Alguns africanos, feridos, conseguiram correr e se esconder no mato. Outros tentaram fugir a nado e acabaram se afogando no mar, sendo fuzilados dentro d'água aqueles que não haviam se afogado". A Revolta dos Malês foi, nas palavras do autor, "o maior levante de escravos do Brasil, dando início a uma perseguição implacável aos africanos". Alguns dos escravizados capturados foram condenados à pena de morte, outros à pena de prisão, vários à pena de açoites (como Pacífico Licutan, já um idoso, condenado a mil chibatadas[11]) e muitos, especialmente os negros libertos, ao banimento.[12] Em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, existe até hoje a Irmandade da Boa Morte, "instituição de mulheres negras cujo embrião se deu na Igreja da Barroquinha, na cidade de Salvador e, muito provavelmente, deslocou-se de lá em função da forte repressão aos africanos estabelecida depois da Revolta dos Malês". A Irmandade da Boa Morte, "conhecida como uma das primeiras instituições representantes do feminismo negro no Brasil, firmou-se desde o início como força de resistência ao escravismo, servindo, desde seus primórdios, como apoio aos injustiçados, fornecendo empréstimos para obtenção de alforrias, além de providenciar funerais dignos à sua gente, daí o nome 'boa morte'".[13] Viva os Malês! [2] GATES JR., Henry Louis. Os negros na América Latina. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 73. [3] A palavra malê provém de imale que, no idioma ioruba, significa muçulmano. [4] GRANATO, Fernando. Bahia de Todos os Negros – As rebeliões escravas do século XIX. Rio de Janeiro: História Real, 2021, pp. 9 e 10. [5] A Bahia, segundo relatos de viajantes estrangeiros que aqui passaram no século XIX, muitas vezes “recheados dos preconceitos inerentes ao colonizador europeu e mesmo ao norte-americano que aqui chegava, era superpovoada, suja, quente, com ruas estreitas e uma infinidade de becos que sobem e descem, mal iluminada por lampiões movidos a azeite de baleia que frequentemente apagavam, causando escuridão nas noites sem lua.” (GRANATO, Fernando, obra citada, p. 37). [6] GRANATO, Fernando. Obra citada, pp. 20 e 21. [7] É de 1444 o registro do primeiro leilão de africanos escravizados em Portugal, diante do infante dom Henrique na vila de Lagos, Algarve: “ao amanhecer de oito de agosto de 1944, os moradores de Lagos, então um pequeno vilarejo murado na região do Algarve, sul de Portugal, foram despertados pela notícia de um acontecimento extraordinário: dos porões de meia dúzia de caravelas começou a sair uma carga inusitada, 235 homens, mulheres e crianças, todos escravos que ali seriam arrematados em leilão.” (GOMES, Laurentino. Escravidão, Volume I – Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019, p. 51). [8] Em Salvador, inclusive, existe um espaço chamado Casa do Benin, inaugurado em 1988, situado em um casarão na Rua Padre Agostinho Gomes, no Pelourinho, que representa um pedaço da África. O espaço possui um importante acervo artístico e cultural afro-brasileiro e é mantido pela Fundação Gregório de Mattos. A Casa tem um acervo composto por cerca de 200 peças originárias do Golfo do Benin, colecionadas pelo fotógrafo francês Pierre Verger ao longo de suas viagens realizadas à África. Também possui peças relacionadas à cultura afrodiaspórica. Outro fato interessante é que tecidos coloridos estão pendurados dando ainda mais vida ao local, obra da artista plástica e designer Goya Lopes, uma das pioneiras a trabalhar de maneira criativa com a moda afro-brasileira. No casarão encontra-se também o Museu Pierre Verger, onde estão expostas as peças do acervo permanente com obras beninenses; a Sala de Exposição Lina Bo Bardi, que recebe mostras temporárias; e o Auditório Gilberto Gil, local de realização de eventos e oficinas de pequeno porte voltados para a comunidade. No pátio, existe o Espaço Gourmet Jeje Nagô, com arquitetura inspirada no estilo de restaurantes antigos das comunidades rurais beninenses. Além disso, a Casa do Benin realiza, promove, divulga e apoia, através das exposições, os artistas baianos que têm como inspiração a arte de matriz africana, contribuindo de maneira significativa com o reconhecimento e valorização dessa arte, além de incentivar os artistas que nela investem e se inspiram. Disponível em: https://www.salvadordabahia.com/experiencias/casa-do-benin/. Acesso em 10 de janeiro de 2022. [9] Segundo Luiz Viana Filho, citado na obra de Granato, “a Costa Mina não nos mandara apenas negros escravos, mas com eles exportaram uma fé.” (O Negro na Bahia. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1946). [10] Alufá é o líder religioso para os negros muçulmanos. [11] GOMES, Flávio dos Santos, LAURIANO, Jaime, SCHWARCZ, Lilia Moritz. Enciclopédia Negra. São Paulo: Companhia das Letras, 2021, p. 470. [12] A cerimônia de execução lembrava em muito as execuções do Santo Ofício, na Inquisição, durante quase toda a Idade Média: “algemados, os condenados rumaram pelas ruas num cortejo silencioso. No local destinado ao sacrifício, forcas novas, feitas especialmente para o punição daqueles rebeldes, não puderam ser usadas porque não houve candidato ao cargo de carrasco. Sendo assim, por determinação do presidente da província, eles foram fuzilados e em seguida sepultados numa cova coletiva.” (p. 97). [13] Todos os anos, sempre no mês de agosto, e durante três dias, na cidade de Cachoeira, há homenagens à Nossa Senhora da Boa Morte prestadas pela Irmandade e pelo povo da cidade. Disponível em https://www.geledes.org.br/irmandade-da-boa-morte-2/. Acesso em 11 de janeiro de 2021.
2023-01-25T06:04-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-25/romulo-moreira-188-anos-revolta-males
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Senso Incomum
Razões para responsabilização penal pelo genocídio yanomami
Dias atrás escrevi artigo sobre razões jurídicas (teoria do delito) para responsabilização dos autores dos atos golpistas do dia 8 de janeiro. Dias depois Juarez Tavares me instigou a escrever sobre o "caso yanomami", a partir de um comentário do jornalista Demétrio Magnoli na Globo News. Juarez se diz chocado — corretamente — com o que disse Demétrio, para quem o caso dos yanomamis não caracterizaria crime de genocídio por ausência da intenção de extermínio do grupo étnico. Veja-se o grau de responsabilidade de um comentarista político. Lembremos dos estragos causados pelos comentaristas (juristas e jornalistas) acerca do sentido do artigo 142 da CF. Deu no que deu. Sobre isso, escrevi aqui tratando da Hermenêutica de Curupira. Todos conhecemos a lei do genocídio (Lei 2.889/56, com suas alterações) e o Estatuto de Roma, que empregam a expressão "intenção" em sentido genérico. As palavras possuem sentido de acordo com o contexto. Disputar uma cadeira na Câmara não quer dizer "disputar um pedaço de um móvel do parlamento"! A polifonia das palavras a gente aprende quando, saindo para a rua pela primeira vez, ouvimos alguém dizendo "mamãe, mamãe"... Damo-nos conta, então, de que a nossa mãe não é a única. E que manga pode ser fruta, peça de roupa e goleiro do Botafogo. E aqui entra a ciência penal, da qual Juarez é expert, seguramente o maior dos experts que conhecemos. Essa expressão — intenção — tem que ser adequada aos conceitos de dolo do Código Penal, que servem de holding para todas as leis especiais. Isso é velho. O dolo direto pode comportar duas espécies: dolo direto de primeiro grau, quando o sujeito atua e dirige sua vontade no sentido do alcançar um objetivo final, e dolo direto de segundo grau, quando o agente atua e dirige sua vontade para realizar um fato que constitui uma circunstância necessária à produção do objetivo final. Depois, porém, da introdução da teoria da imputação objetiva no direito penal, alimentada pelo fundamento do aumento do risco, como proposto por Roxin, alterou-se um pouco a definição do dolo direto de segundo grau, para comportar a atuação do agente, que dirige sua vontade para realizar um fato que encerra uma condição de risco que irá conduzir, com certeza, ao alcance do resultado final. Assim, com Juarez, é possível dizer, contrariando Demétrio, que a atuação do governo, sob o comando de Bolsonaro, com suas ações, embora não se dirigisse à matança direta dos indígenas, materializou-se na realização de condições de risco que, certamente, conduziriam ao resultado de extermínio do grupo étnico. E foi o que aconteceu. Onde se enquadra, então, a intenção de que trata a lei do genocídio? No assim denominado dolo direto de segundo grau. Isto é, Bolsonaro — e seus coautores — ao permitirem o garimpo, ao deixar de mandar socorro, ao incentivar a invasão e degradação das condições ambientais, dirigiram sua vontade no sentido de realizar condições de risco que certamente levariam o grupo à extinção. Por isso Demétrio não tem razão. Juarez Tavares é quem tem razão. O enquadramento é bem possível. E nem se trata de invocar dolo eventual. O que houve foi uma ação ilegal consciente e com consciência de que certamente produziria um resultado como a morte e doenças de uma etnia. O resto todos sabem.
2023-01-26T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-26/senso-incomum-razoes-responsabilizacao-penal-genocidio-ianomami
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Limite Penal
Marina Gascón Abellán e sua contribuição à epistemologia jurídica
O ano era 2006. Uma estudante de direito chegava à Universidad Autónoma de Madrid para cursar um semestre de intercâmbio. Mesmo diante de tantas novidades, não demorou nada para que a disciplina Metodología y Argumentación Jurídica, oferecida por Juan Carlos Bayón, capturasse por completo a minha atenção. Foi aí que, pela primeira vez, vi a prova dos fatos ser encarada como um desafio argumentativo que ia além do passo-a-passo procedimental que a melhor dogmática processual já nos havia ensinado. O professor Bayón nos introduziu leituras instigantes que questionavam o fundamento das regras e práticas probatórias de diversas culturas jurídicas, a partir de uma abordagem pouco conhecida até então: a epistemologia jurídica. Nesta acepção, a epistemologia, enquanto subárea da filosofia, passou a ser aplicada aos fatos que, no direito, precisam ser conhecidos. A determinação dos fatos considerados juridicamente relevantes passa, então, a ser tratada como um problema de conhecimento. É justamente neste contexto em que tive o primeiro contato com o pensamento de Gascón Abellán, entre aqueles que desbravaram os caminhos da epistemologia jurídica na cultura jurídica íbero-americana. Junto dos escritos de Michele Taruffo (1992)[1], Jordi Ferrer Beltrán (2002) [2], Luigi Ferrajoli (1989) [3] e Perfecto Andrés Ibáñez (1992) [4], o seu "Los hechos en el derecho: bases argumentales de la prueba" (1999)[5] está entre as primeiras obras da disciplina publicadas no idioma de Cervantes. Recordo-me do encantamento instantâneo que essas leituras[6] produziram-me durante o curso do Prof. Bayón e, sem dúvidas, são obrigatórias aos estudiosos da prova. Mas a importância de Gascón Abellán vai além de sua destacada contribuição a essa fase inicial da epistemologia jurídica. Se é justo dizer que a professora catedrática de filosofia do direito da Universidad de Castilla-La Mancha participou com protagonismo da etapa fundacional, também é oportuno reconhecer que ela segue nos brindando conhecimento aprofundado sobre os desdobramentos probatórios mais atuais. Gascón Abellán tanto participou da construção dos alicerces da chamada concepção racionalista da prova nos idos dos anos 90, quanto deu continuidade a desenvolvimentos, sem dúvida, necessários à revisão do tratamento que concretamente se confere às regras e práticas probatórias nos sistemas jurídico-probatórios de nossa cultura jurídica. Não por outra razão, em páginas escritas por Gascón Abellán sempre é possível encontrar uma análise apurada, questionamentos intelectualmente afiados, sobre temas que merecem nossa redobrada atenção: as provas periciais e a relação que o direito tem com as ciências são um exemplo disso; o tratamento das provas ilícitas e a tensão entre a preservação dos direitos fundamentais dos cidadãos e o interesse na descoberta da verdade, outro. Assim, a obra "O problema de provar" que o leitor tem em mãos reúne assuntos probatórios diversos. Ela abarca uma cuidadosa apresentação de conceitos fundamentais ao tratamento epistemológico da prova judicial, bem como uma exposição perspicaz de desafios que ainda carecem de soluções adequadas nos sistemas jurídicos concretos. A filosofia do direito realizada por Gascón Abellán consiste em uma teoria efetivamente comprometida com a prática, com a melhoria do desenho institucional probatório que os sistemas de justiça devem desenvolver. É preciso errar menos na prestação jurisdicional e, para isso, Gascón Abellán reforça que é preciso saber mais de prova. Com isso em mente, a autora oferece-nos cinco capítulos. Em "Prova e argumentação I. Decidir sobre os fatos" (capítulo 1), Gascón Abellán trabalha a importância da prova para a argumentação jurídica. Se tradicionalmente a argumentação no direito sempre se concentrou nas razões que devem ser sustentadas para a construção da premissa maior do raciocínio judicial, já passou da hora de corrigir a falta de tratamento às razões capazes de prestar respaldo à premissa menor, isto é, às provas que devem ser exigidas para a incorporação de certas hipóteses fáticas à decisão judicial. A autora explora a valoração da prova como  espaço do raciocínio indutivo, o qual por sua vez, muito embora não traga certezas absolutas acerca da ocorrência dos fatos, tem, sim, a capacidade de justificar, probabilisticamente, uma melhor reconstrução dos fatos. O trajeto trilhado por Gascón Abellán perpassa modelos de valoração, argumentos de confirmação, sem se furtar a tecer uma análise crítica da velha distinção entre provas diretas e provas indiretas, revisitando também a diferença entre contexto de descoberta e contexto de justificação. Com esse amparo, já na sequência, em "Prova e argumentação II. Justificar a decisão" (capítulo 2), a autora aborda os standards probatórios e também o dever de motivação que pesa sobre o magistrado à hora de oferecer as boas razões que encontrou para haver selecionado a hipótese fática que apresenta em seu raciocínio decisório. Neste capítulo, a satisfação do grau de suficiência previamente estabelecido para que enunciados fáticos sejam considerados provados é o centro de atenção de Gascón Abellán. Isso faz com que, para além de dispor ao leitor como o domínio da categoria conceitual do standard probatório funciona como a ferramenta necessária à argumentação, a autora também faz questão de analisar algumas deficiências argumentativas comuns à práxis da motivação: a técnica do relato, a motivação não exaustiva e o entendimento equivocado de que as provas diretas não precisam ser objeto de motivação. O capítulo terceiro é dedicado à prova do nexo causal, por isso intitula-se "Incerteza causal. Probabilidade, standards probatórios e oportunidades perdidas". Trata, portanto, de um tema espinhoso e desafiante, que tem gerado soluções nem sempre satisfatórias à pretensão de justiça que a melhor prestação jurisdicional busca alcançar. As acuradas reflexões de Gascón Abellán encontram amparo em distinções fundamentais, como a que se põe entre os conceitos de causalidade e imputação, bem como na abordagem crítica da teoria da perda de uma chance como um standard de prova. Gascón Abellán analisa as vantagens da proposta sem se olvidar das debilidades que precisam ser sanadas. Em "Prevenção e educação: o caminho para uma melhor ciência forense no sistema de justiça" (capítulo 4), Gascón Abellán analisa a relação que direito e ciência devem desenvolver para a implementação de uma agenda de redução de erros à hora de determinar fatos. É preciso aproximar a prova judicial dos avanços conquistados pela ciência, mas isso não significa abraçar ingenuamente todo e qualquer conteúdo produzido originalmente pelo contexto científico. Não é o fato de que algo seja etiquetado como científico, muitas vezes de forma apressada, que faz com que deva ser incorporado automaticamente. A autora trata dos perigos provenientes da mitificação da ciência e explora a importância da combinação de estratégias de prevenção e de educação dos operadores jurídicos acerca dos conhecimentos científicos. Os desafios são robustos, e como ressalta Gascón Abellán, precisamos de uma abordagem crítica e epistemicamente comprometida para a construção de uma melhor ciência forense. Finalmente, em "Além da verdade: defesa dos direitos quando se buscam provas" (capítulo 5), Gascón Abellán enfrenta corajosamente a tensão entre a proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos e o interesse na descoberta da verdade. A autora examina os desenvolvimentos teóricos relativos à exclusão da prova ilícita e aponta para os riscos da sua relativização. Neste capítulo, o leitor poderá constatar a influência de autores como Luigi Ferrajoli, Luis Prieto Sanchís e Perfecto Andrés Ibáñez na forma em que Marina Gascón Abellán edifica o seu modelo epistemológico de determinação dos fatos judiciais. Gascón Abellán apresenta a verdade como um dos objetivos do processo, mas não o único. A epistemologia jurídica de Gascón Abellán caminha junto com o garantismo penal, não servindo de escusa para qualquer esvaziamento dos direitos prometidos por nossas cartas constitucionais. Assim, considero que as lentes conceituais e as discussões propostas nas páginas que se seguem contribuirão ao aperfeiçoamento de advogados, juízes, promotores de justiça, defensores públicos e policiais e, neste sentido, representam uma ferramenta teórica muito promissora à construção conjunta do sistema processual probatório que merecemos. Ao chamar sua obra de "O problema de provar", Gascón Abellán revela, mais uma vez, a humildade intelectual que acompanha os grandes mestres, que avançam propondo boas questões, boas perguntas, bons problemas, mas a verdade é que o leitor também encontrará aqui um frutífero caminho para o desenvolvimento de soluções aos déficits epistêmicos que estão presentes no interior dos sistemas de justiça em que atuamos. Enfim, por tudo o que Gascón Abellán me ensinou e ensina, estendo a todos o convite para que adentrem o rico horizonte probatório contido neste livro.  Ps: A Limite Penal desta semana reproduziu o prefácio que fiz ao último livro de Marina Gascón Abellán (traduzido por Lívia Moscatelli e Caio Badaró), publicado no fim de 2022 pela Editora Marcial Pons. Clique aqui para adquirir. [1]. Taruffo, M. "La prueba de los hechos". Trad. ao castelhano por Jordi Ferrer Beltrán. Madrid: Ed. Trotta, 2002; Taruffo, M. "La prova dei fatti giuridici", Milano: Giuffrè, 1992. [2]. Ferrer Beltrán, J. "Prueba y verdad en el derecho". Madrid: Marcial Pons, 2002. [3]. Ferrajoli, L. "Derecho y Razón. Teoría del garantismo penal". Trad. ao castelhano por P. Andrés Ibáñez, J. C. Bayón, R. Cantarero, A. Ruiz Miguel y J. Terradillos, Madrid: Ed. Trotta, 1995; Ferrajoli, L. "Diritto e ragione. Teoria del garantismo penale". Roma-Bari: Laterza & Figli, 1989. [4]. Andrés Ibáñez, P. “Acerca de la motivación de los hechos en la sentencia penal”. In Doxa, 1992. [5]. Gascón Abellán, M. “Los hechos en el derecho: bases argumentales de la prueba”, Madrid: Marcial Pons. Essa obra foi recentemente traduzida ao português. Gascón Abellán, M. “Os fatos no direito: bases argumentativas da prova”. Trad. ao português por Ravi Peixoto (Revisão de Vitor de Paula Ramos), Salvador: Ed. Juspodivm, 2022. [6]. As publicações mencionadas são as que, à época, foram trabalhadas conosco no curso.
2023-01-27T16:18-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-27/limite-penal-marina-gascon-abellan-contribuicao-epistemologia-juridica
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Controvérsias Jurídicas
Lei de Migração não aceita extradição para condenado à perpétua
A extradição ocorre quando um Estado entrega a outro país um indivíduo que cometeu um crime punível segundo seu sistema jurídico, a fim de que lá seja processado ou cumpra a pena por esse ilícito. Doutrinariamente, a extradição é subdividida em duas espécies, sendo a ativa referente ao pedido feito pelo Estado brasileiro a país estrangeiro acerca de foragido do seu sistema jurídico. Por sua vez, a extradição passiva diz respeito ao pedido recebido pelo Estado brasileiro para extraditar foragido ao sistema jurídico do solicitante. Cite-se como exemplo o notório caso de Cesare Battisti, condenado em território italiano por quatro homicídios com sentença penal transitada em julgado. Militante político de extrema esquerda, depois de integrar por anos o Partido Comunista Italiano (PCI), aderiu à Lotta Continua (LC), movimento de esquerda extraparlamentar ativo entre 1973 e 1979. Também fez parte do Autonomia Operária e, finalmente, foi introduzido ao Proletários Armados pelo Comunismo. De orientação marxista autonomista, o grupo foi responsabilizado pelos homicídios de Pierluigi Torregiani (fevereiro de 1979), Andrea Campagna (abril de 1979), Antonio Santoro (junho de 1978) e Lino Sabadin (junho de 1978), resultando na pena de prisão perpétua. Preso em 2007, no Brasil, em operação conjunta da Interpol com as polícias brasileira, italiana e francesa, Battisti solicitou o reconhecimento de sua condição de refugiado pelo Conare (Comitê Nacional de Refugiados) e a suspensão do prosseguimento do pedido de extradição feito pela Itália, nos termos do artigo 34 da Lei nº 9.474/97. Ocorre que, em decisão administrativa, o Conare indeferiu o pedido de refúgio, o que motivou interposição de recurso junto ao ministro da Justiça, o qual, por sua vez, diante da atuação política do extraditando, reconheceu sua condição de refugiado, nos termos do artigo 1º, I, da Lei nº 9.474/97. Em decorrência dessa decisão, a defesa requereu a imediata liberação de Battisti e a extinção do processo de extradição. Embora o ministro da Justiça tivesse decidido pela não extradição, a questão ainda teria de ser analisada pelo STF, nos termos do artigo 77, VII, c.c. os §§ 2º e 3º da Lei nº 6.815/80, a quem compete decidir em última instância acerca da natureza política dos delitos cometidos pelo extraditando, até mesmo em respeito à separação dos poderes, pressuposto do Estado democrático de Direito.  Submetido, então, ao exame do Supremo (Ext. 1.085), restava definir a natureza jurídica da decisão do ministro da Justiça e o grau de vinculação da Corte à deliberação administrativa de órgão. Sobre a questão, afirmou o ministro Gilmar Mendes: "É dizer que, para fins de aplicação do artigo 33 da Lei nº 9.474/97, a decisão administrativa do Conare ou do Ministério da Justiça, pela concessão de refúgio, não pode obstar, de modo absoluto, todo e qualquer pedido de extradição apresentado à Suprema Corte."[1] Em sessão realizada em 18 de novembro de 2009, decidiu o Supremo Tribunal Federal pela ilegalidade da concessão de status de refugiado político ao extraditando, tendo em vista que os crimes por ele cometidos em território italiano eram de natureza comum, em nada se relacionando com sua atuação política. Ademais, em observância à Lei nº 6.815/80 e ao tratado bilateral firmado entre Brasil e Itália, a Corte deferiu o pedido extradicional. Ao deferir o pedido italiano, a Corte comunicou aos órgãos competentes do Poder Executivo para dar prosseguimento à entrega do extraditando ao país solicitante, nos termos do artigo 86 da Lei n° 6.815/80. Nota-se, portanto, que a natureza jurídica da decisão emanada do STF é declaratória, não deixando margem para discussão da conveniência da extradição. Ao receber a comunicação da decisão do Poder Judiciário, restaria ao Ministério da Justiça proceder com os trâmites legais da extradição, tendo em vista o dever do Brasil de entregar o extraditando e o direito da Itália em recebê-lo. No entanto, mesmo diante da determinação do STF, o então presidente da República, em seu último dia de governo, concedeu a condição de refugiado político ao extraditando, renovando os argumentos de que o posicionamento político de Battisti foi determinante para o cometimento dos homicídios. O STF, novamente instado a se manifestar, decidiu por maioria de votos, que a última palavra sobre a entrega ou não do italiano caberia ao presidente da República, sob alegação de que a negativa consistiria em um ato de soberania nacional sem possibilidade de revisão pelo Judiciário (entendimento dos ministros Luiz Fux, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Ayres Brito e Marco Aurélio). Contrariamente, os ministros Gilmar Mentes, Ellen Gracie e Cezar Peluso votaram no sentido da cassação da decisão do Poder Executivo, determinando o envio do extraditando para a Itália. Reforçando a natureza jurídica declaratória da decisão do STF, Gilmar explicitou que o Estado brasileiro, representado na pessoa do presidente da República, seria obrigado a cumprir a decisão anterior de extradição, sob pena de caracterização de verdadeira ação rescisória ante a decisão do Supremo. "A decisão do Supremo, nesses casos, é de natureza preponderantemente declaratória, atestando certeza jurídica quanto à configuração dos requisitos para o cumprimento do tratado ou do pacto de reciprocidade pelo Brasil. Como toda decisão de conteúdo declaratório, estabelece um preceito, uma regra de conduta, consistente no dever de extraditar, pelo Brasil, e no direito de obter a extradição, pelo Estado requerente, em cumprimento ao pacto internacional. Não há na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entendimento que consagre ao Chefe do Poder Executivo irrestrita discricionariedade na execução da extradição já concedida[2]." Desta forma, embora tivesse declarado a ilegalidade da decisão do ministro da Justiça pela concessão de asilo político a Battisti, o STF acabou concordando que a palavra final ficasse com o presidente da República, frustrando-se assim, o pedido de extradição. Nossa posição coincide com a do entendimento divergente, tendo em vista que a existência de tratado bilateral de extradição gera o dever de cumprimento das obrigações pactuadas em âmbito internacional por parte do Poder Executivo. Ainda que exista certa margem de discricionariedade, sua dimensão não pode ser absoluta, posto que seu alcance será sempre limitado pelo ordenamento jurídico interno e pelo tratado internacional. Com efeito, "apesar de reconhecer a discricionariedade do presidente da República quanto à execução da decisão que deferiu o pedido extradicional, esta Corte deixou consignado que esta discricionariedade está delimitada pelos termos do tratado celebrado com a República da Itália. Tem o presidente da República, portanto, a obrigação de agir nos termos do Tratado celebrado com o Estado requerente".[3] A discricionariedade absoluta confronta com o ordenamento legal e constitucional, uma vez que o STF é o foro competente para a decisão final. Entendimento diverso implicaria na perda de efetividade das decisões do Judiciário e permitiria ao agente político o emprego dos mais variados pretextos para justificar o descumprimento de uma ordem judicial. O cenário de insegurança jurídica permaneceu e, em 12 de janeiro de 2019, o então presidente Jair Bolsonaro revogou a concessão do asilo político e acolheu o pedido de extradição de Césare Battisti, o qual finalmente foi preso na cidade de Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, quando já tentava empreender nova fuga. Imensurável, também, os prejuízos causados nas relações diplomáticas dos países. Se o debate tivesse assumido contornos mais jurídicos do que ideológicos, o pedido de extradição poderia ter enfrentado uma dificuldade inesperada, não por se tratar de crime político, o que não parece ser o caso, mas pela ameaça de imposição de prisão perpétua. Isso porque a Lei de Migração contempla esse tipo de penalidade como uma das situações de não acolhimento do pedido de extradição. Nossa jurisprudência já assentou que "o Brasil deve negar a extradição se houver possibilidade concreta de o Estado requerente condenar o extraditando a prisão perpétua ou a pena de morte, sanções que são expressamente proibidas pela Constituição brasileira (artigo 5º, XLVII). Além disso, é possível negar a extradição se houver uma excessiva abertura dos tipos penais no Estado requerente, o que viola o princípio da legalidade (CF, artigo 5º, XXXIX). As hipóteses previstas na lei nas quais a extradição é proibida podem ser expandidas pela jurisprudência para atender ao respeito a outros direitos fundamentais do extraditando".[4] Embora a extradição seja um ato de soberania interna, sempre caberá ao Poder Judiciário decidir se o pedido reúne condições à luz da nossa Constituição, dos tratados internacionais e do ordenamento infraconstitucional. Se ao presidente da República compete decidir sobre o pedido de extradição, cabe ao Poder Judiciário a última palavra sobre sua conformidade ao sistema jurídico interno e aos tratados internacionais. [1] MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 14ª edição, São Paulo. Ed. Saraiva Educação, 2019, p. 786. [2] MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 14ª edição, São Paulo. Ed. Saraiva Educação, 2019, p. 786. [3] STF. Plenário. Reclamação 11.243. Rel. Min. Luiz Fux, voto Min. Gilmar Mendes, j. 08/06/2011, p. 06. [4] STF. 2ª Turma. Ext. 1428/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 07/05/2019.
2023-01-27T13:27-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-27/controversias-juridicas-extradicao-quem-compete-palavra-final
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Opinião
Lenio Streck: Autópsia do ovo da serpente da lava jato
Antes de tudo, sim, eu sei que crotalus terrificus é o nome cientifico de uma serpente específica, a cascavel. O título é para mostrar o problema que poucos viram lá atrás: o ovo desse crotalus. Escrevo para dizer que é muito bom quando a epistemologia vem para mostrar que uma tese é correta. Uma boa pesquisa ilumina caminhos por vezes traçados intuitivamente. Todos sabem de minhas críticas à lava jato. Foram mais de cem textos escritos sobre esse específico tema. Sempre apontando para o perigo que a lava jato representaria para o futuro. Vejo, agora, que o professor Fábio de Sá e Silva, professor da Universidade de Oklahoma, nos Estados Unidos, fez profícuos estudos (veja a entrevista) sobre a lava jato e seus impactos no cenário brasileiro. O professor trata os acontecimentos do 8 de janeiro como uma linha de continuidade da lava jato e mostra que a atuação principalmente do ex-juiz Sergio Moro e do ex-procurador Deltan Dallagnol fomentaram o atual contexto sócio-político de terrae brasilis. Sá e Silva destaca que, depois de protagonizar barbaridades referendadas por um sistema de Justiça que cedeu ao canto das sereias, a lava jato começou a sofrer as primeiras derrotas perante os tribunais, e seus atores começaram a subir o tom contra as Cortes de Justiça, principalmente contra o STF e contra o Congresso. O produto dessa ofensiva, segundo o professor da Universidade de Oklahoma, foi uma acelerada indisposição de parcela da sociedade contra os poderes, como se as instituições estivessem tomadas pela corrupção e os tribunais fossem coniventes com isso. Ou seja, quando suas decisões começaram a ser alteradas, Moro e Dallagnol instilaram forte veneno contra o Supremo Tribunal. E buscaram desacreditar a todo custo o sistema de justiça. Dallagnol chegou a chamar garantias constitucionais de "filigranas". Portanto, a guerra contra o STF também tem na lava jato o seu "ab ovo". É fato. Dallagnol e Moro eram o centro dessa retórica contra o STF, principalmente em suas postagens e manifestações públicas. Sá e Silva mostra que a "troca" da carreira jurídica pela política otimizou o discurso de ambos, e a soltura de Lula foi instrumentalizada para alavancar essa tensão, com a criação, por exemplo, do termo "descondenado" (quantas vezes Dallagnol usou essa palavra?), amplamente utilizado por aqueles que pediram (e ainda pedem) o golpe. O STF virou "comunista". Discursos esses adotados por Bolsonaro e seus apoiadores. Sá e Silva confirma o que de há muito tenho dito: o ovo da serpente dos maiores males que enfrentamos, institucionalmente, foi e ainda é a lava jato — agora transformada em um imaginário golpista. Uma coisa levou à outra. O interessante é que o professor Sá e Silva vem sendo atacado principalmente por Dallagnol. No twitter, único lugar em que o agora deputado Dallagnoll consegue se comunicar, os ataques são constantes, buscando desqualificar o professor. Como se o professor fosse como alguns antigos "amiguinhos" jornalistas (e jornaleiros) que lhe fizeram a fama. O professor Sá e Silva mostra essa linha de continuidade: começa com a lava jato, criminaliza a política e enfraquece as instituições. Ingredientes para uma tempestade perfeita. E no meio ainda teve a tentativa de golpe de Dallagnol e Moro contra o direito brasileiro, ao gestarem o famigerado "Projeto das Dez Medidas". Ali estava um "ovinho" do golpismo, porque pretendia introduzir o uso de prova ilícita e acabar com o habeas corpus. É. Choveu muito na serra e poucos viram a enchente que vinha. O que o professor Sá e Silva faz é mostrar também as trovoadas. Bem isso. O resto todos sabemos. O dia 8 de janeiro foi o coroamento de uma crônica de uma anti institucionalidade anunciada. E a história há de mandar a conta. Com juros de cartão de crédito. De todo modo, isso não tem preço!
2023-01-27T11:04-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-27/lenio-streck-autopsia-ovo-serpente-lava-jato
academia
Direitos Fundamentais
Direito ao esquecimento segue lembrado, ao menos no TJUE
Ao passo que, como já discutido em momentos anteriores nesse mesmo espaço, no Brasil, em especial desde a controversa decisão do STF (RE-RG 1010606, relator: ministro Dias Toffoli, j. 11/2/2021), refutando (??) a existência de um direito ao esquecimento na ordem jurídica brasileira, o tema parece estar fadado, ao menos por ora, a desaparecer da agenda do Poder Judiciário, na doutrina a situação é completamente diversa, dada a existência, desde o precedente referido, de um expressivo número de publicações (inclusive no ConJur) sustentando, em maior ou menor medida, justamente o contrário, ou seja, a necessidade do reconhecimento daquele direito. Sem prejuízo da relevância da discussão travada no Brasil sobre o tema, ou mesmo da eventual possibilidade de uma reversão, ainda que parcial, da orientação adotada pelo STF, a depender do andar da carruagem, o que aqui se pretende, mais uma vez, destacar, é que em outros lugares, seja no que diz respeito a decisões proferidas por tribunais nacionais, em especial pelos Tribunais Superiores e pela Justiça Constitucional, seja relativamente aos julgados sobre o tema provenientes das instâncias judiciárias internacionais, o direito ao esquecimento não saiu de moda. Pelo contrário, embora não necessariamente em grande número, não há ano no qual não se registrem julgamentos sobre a matéria, em boa parte no sentido do reconhecimento do direito. Assim, para manter a chama acesa, trazemos à colação um julgamento recentíssimo do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE)  — Processo C-460/20 —, de 8/12/2022, envolvendo o direito ao apagamento de dados (direito a ser esquecido) consagrado no artigo 17 do Regulamento Geral Europeu de Proteção de Dados, no caso concreto, a obrigação do Google de suprimir um conteúdo inexato. De acordo com o Comunicado de Imprensa 197/22, de 8/12/22, do TJUE, que aqui será — e tomamos a liberdade de fazê-lo — substancialmente transcrito, (...) "Dois dirigentes de um grupo de sociedades de investimentos pediram à Google que suprimisse dos resultados numa pesquisa efetuada a partir dos seus nomes referências que incluam hiperligações para determinados artigos que apresentam de forma crítica o modelo de investimento do referido grupo. Argumentam que esses artigos contêm alegações inexatas. Além disso, pedem à Google que as suas fotografias, exibidas sob a forma de imagens de pré‑visualização (thumbnails), sejam suprimidas da lista de resultados de uma pesquisa de imagens efetuada a partir dos seus nomes. Essa lista exibia apenas imagens de pré‑visualização enquanto tais, sem incluir os elementos do contexto da publicação das fotografias na página Internet apresentada. Dito de outro modo, o contexto inicial da publicação das imagens não era indicado nem visível de outro modo no momento da exibição das imagens de pré-visualização" (....). O Google, por sua vez, "recusou dar seguimento a esses pedidos, remetendo para o contexto profissional em que se inseriam os referidos artigos e fotografias, e alegando que desconhecia se as informações contidas nos artigos são ou não exatas". No litígio, instaurado perante o Poder Judiciário da Alemanha, o Bundesgerichtshof (BGH), o Supremo Tribunal de Justiça Federal alemão que, em termos gerais, equivale ao STJ brasileiro, "solicitou ao Tribunal de Justiça a interpretação do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados, que regula nomeadamente o direito ao apagamento dos dados («direito a ser esquecido»), e da Diretiva relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais, à luz da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia". No seu acórdão ora noticiado, o TJUE, com base em decisões anteriores, "recorda que o direito à proteção dos dados pessoais não é um direito absoluto, mas deve ser tido em conta em relação à sua função na sociedade e ser equilibrado com outros direitos fundamentais, em conformidade com o princípio da proporcionalidade". Para o TJUE, "o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados prevê expressamente que o direito ao apagamento dos dados fica excluído quando o tratamento seja necessário ao exercício do direito relativo, nomeadamente, à liberdade de informação". Todavia, prossegue o Tribunal na sua argumentação, "os direitos da pessoa em causa, à proteção da vida privada e à proteção dos dados pessoais prevalecem, regra geral, sobre o interesse legítimo dos internautas potencialmente interessados em aceder à informação em questão. Este equilíbrio pode, todavia, depender das circunstâncias pertinentes de cada caso, nomeadamente da natureza dessa informação e da sua sensibilidade para a vida privada da pessoa em causa, bem como do interesse da Direção da Comunicação Unidade Imprensa e Informação, curia.europa.eu público, em dispor da referida informação, o qual pode variar, designadamente, em função do papel desempenhado por essa pessoa na vida pública". Além disso, o TJUE, destaca que "o direito à liberdade de expressão e de informação não pode ser tido em conta quando pelo menos uma parte das informações constantes do conteúdo exibido, que não apresenta uma importância menor, se revela inexata. No que respeita, por um lado, às obrigações que incumbem ao requerente da supressão de referências devido a um conteúdo inexato, o Tribunal de Justiça sublinha que cabe ao requerente provar a inexatidão manifesta das informações ou, pelo menos, de uma parte delas que não tenha importância menor. Todavia, a fim de evitar impor ao requerente um ónus excessivo suscetível de prejudicar o efeito útil do direito à supressão de referências, cabe-lhe unicamente fornecer os elementos de prova que lhe possa razoavelmente ser exigido que procure. Não é, pois, em princípio, obrigado a apresentar, desde a fase pré- contenciosa, uma decisão judicial obtida contra o editor do sítio Internet em causa, ainda que sob a forma de uma decisão proferida num processo de medidas provisórias" (...). Já no que diz respeito às obrigações e responsabilidades que incumbem ao operador do motor de busca, no caso, o Google, a corte "considera que, na sequência de um pedido de supressão de referências, este último se deve basear em todos os direitos e interesses envolvidos, bem como em todas as circunstâncias do caso concreto, para verificar se um conteúdo pode continuar a ser incluído na lista de resultados das pesquisas efetuadas por intermédio do seu motor de busca. Todavia, o referido operador não pode ser obrigado a exercer um papel ativo na pesquisa de elementos de facto que não sejam fundamentados pelo pedido de supressão de referências, para efeitos da determinação do seu mérito" (...). Note-se, que de acordo com a argumentação do TJUE, "no caso de o requerente da supressão de referências apresentar elementos de prova pertinentes e suficientes, adequados para fundamentar o seu pedido e demonstrar o caráter manifestamente inexato das informações que figuram no conteúdo apresentado, o operador do motor de busca é obrigado a deferir esse pedido. O mesmo acontece quando apresenta uma decisão judicial que o constata" (...). Importa destacar, todavia, que para o TJUE, "no caso de o caráter inexato das informações que figuram no conteúdo apresentado não se revelar de modo manifesto à luz dos elementos de prova fornecidos pelo requerente, esse operador não está obrigado, na falta de tal decisão judicial, a deferi-lo. Contudo, nesse caso, o requerente deve poder submeter o assunto à autoridade de controlo ou aos tribunais, para que estes efetuem as verificações necessárias e ordenem a esse responsável a tomada de medidas em conformidade". Calha destacar, que na hipótese acima referida, o Tribunal de Justiça "exige que o operador do motor de busca avise os internautas da existência de um processo administrativo ou judicial relativo ao caráter pretensamente inexato de um conteúdo, desde que tenha sido informado desse processo". Já no concernente "à exibição de fotografias sob a forma de imagens de pré-visualização (thumbnails), o Tribunal de Justiça sublinha que a exibição, na sequência de uma pesquisa por nome, sob a forma de imagens de pré-visualização, de fotografias da pessoa em causa, é suscetível de constituir uma ingerência particularmente importante nos direitos à proteção da vida privada e dos dados pessoais dessa pessoa". Por essa razão, "o Tribunal de Justiça salienta que, quando é apresentado ao operador de um motor de busca um pedido de supressão de referências relativo às fotografias exibidas sob a forma de imagens de pré-visualização, este deve verificar se a exibição dessas fotografias é necessária ao exercício do direito à liberdade de informação dos internautas potencialmente interessados em aceder às mesmas". Assume relevo, nessa quadra, que para o TJUE, "a contribuição para um debate de interesse geral constitui um elemento primordial a tomar em consideração na ponderação dos direitos fundamentais concorrentes", devendo ser levado em conta, "por um lado, quando estão em causa artigos com fotografias que, inseridos no seu contexto original, ilustram as informações fornecidas nesses artigos e as opiniões aí expressas, e, por outro, quando se trata de fotografias exibidas sob a forma de imagens de pré-visualização na lista de resultados de um motor de busca, fora do contexto em que foram publicadas na página Internet de origem". No que diz respeito à ponderação tendo por objeto as fotografias em causa no caso julgado, sob a forma de imagens de pré-visualização, "o Tribunal de Justiça conclui que se deve ter em conta o seu valor informativo sem tomar em consideração o contexto da sua publicação na página Internet da qual foram retiradas. No entanto, todos os elementos textuais que acompanhem diretamente a exibição das fotografias nos resultados de pesquisa e que sejam suscetíveis de esclarecer o valor informativo das mesmas devem ser tidos em conta". À vista do caso acima apresentado, tal como reproduzido pelo Boletim Informativo do próprio TJUE referido, é possível retomar linha argumentativa que já havíamos explorado noutras ocasiões, designadamente, a de que a despeito do indigitado julgamento do STF, de fevereiro de 2021, o reconhecimento de um direito de apagamento (exclusão), e mesmo retificação de dados — assim como eventualmente o reconhecimento de um direito à desindexação voltado contra os provedores de pesquisa (busca) na Internet, não é, ao fim e ao cabo, de ser refutado, desde que, é claro, respeitados uma série de critérios, devidamente chancelados pela legislação e que, ao fim e ao cabo, estejam em fina sintonia com a ordem constitucional. A prevalecer o entendimento da inexistência de um direito ao esquecimento na ordem jurídica brasileira, não faz sentido que tal orientação seja compreendida como pura e simplesmente atropelando uma série de conquistas na esfera da proteção dos dados pessoais, cujo marco regulatório — no nosso caso, a LGPD — assegura, na lista (aberta) dos direitos subjetivos do titular dos dados pessoais, o direito à retificação e ao apagamento – inclusive de dados contendo informações verídicas. Da mesma forma, não soa razoável, que permitindo a legislação que se requeira (e obtenha, inclusive pela via judiciária) a exclusão de dados, não se possa dar guarida (reitere-se, em determinadas situações e com base em critérios juridicamente legítimos) a um pleito no sentido da desindexação de determinados links de acesso em face dos operadores de buscas. De todo modo, sem termos a pretensão de aprofundar o tema, o que esperamos é que a apresentação do novo precedente do TJUE, contribua para manter o debate acesso também no Brasil, e, quem sabe, com isso possa, mais cedo ou mais tarde, levar o STF a repensar, ainda que em parte, o seu atual entendimento sobre a matéria.
2023-01-27T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-27/direitos-fundamentais-direito-esquecimento-segue-lembrado-ue2
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Opinião
Manoel Parreira: Teoria geral do direito do agronegócio
Central como objeto de estudo do direito do agronegócio, o complexo agroindustrial reúne a totalidade das operações agroindustriais realizadas no país, sendo seu adequado tratamento jurídico essencial para a superação de temas como insegurança jurídica nos negócios, cooperação entre os agentes econômicos e coordenação das atividades econômicas das cadeias agroindustriais. A preocupação com a formulação de uma construção científica do Direito, com base na integralidade do fenômeno jurídico, é antiga, e teve como escopo realizar uma descrição objetiva dos elementos da juridicidade [1]. Pontes de Miranda apresentou importante contribuição para o estudo da teoria do direito, como bem escreve Marcos Bernardes de Melo, pontuando que o jurista alagoano: "revelou a relação fundamental entre a norma jurídica, que define o mundo jurídico, o fato jurídico, que o compõe, e a eficácia jurídica, que o integra" [2]. O fenômeno do complexo agroindustrial poderia então ser analisado em termos de definição normativa, de conteúdo-composição e de integração-eficácia, os quais auxiliam na elaboração de uma teoria geral para o Direito do Agronegócio e o consequente aprofundamento da compreensão jurídica do funcionamento da complexa rede de operações que compõem o agronegócio. O presente artigo visa ilustrar — em esboço — a tese central de que o complexo agroindustrial é limitado pelo regime jurídico do agronegócio; composto pelas atividades econômicas organizadas (representadas na forma de sistemas/cadeias agroindustriais); e integrado pelo conceito de rede de negócios jurídicos agroindustriais. O elemento que define o que seriam os contornos (ou limites) do fenômeno do complexo agroindustrial é seu regime jurídico, composto pelas normas aplicáveis às atividades econômicas organizadas, que são tanto de natureza pública (normas legais) ou privada (contratos). Tais normas, uma vez reunidas e passíveis de aplicação ao caso concreto, formariam um modo de regulação própria [3] dos fatos da vida previstos em seus suportes fáticos, podendo tal conjunto de normas ser tomado como sistema. Sendo ramo especial do direito comercial, o direito do agronegócio teria como elemento regulador um microssistema próprio na seara daquele ramo principal, sendo tal ordem caracterizada por regras e princípios especializados, espécies do que seriam as normas jurídicas aplicáveis a seu objeto central: o complexo agroindustrial. No esforço de compreender o conjunto de normas aplicáveis ao setor, é de grande valia seu tratamento como microssistema próprio, possibilitando o estabelecimento do que seria um entendimento mais abrangente para explicação da relação entre as diversas normas aplicáveis. Tal conjunto de normas aplicáveis, tomado como microssistema, seria o que comumente se denomina "regime jurídico do agronegócio". O parâmetro central que delimita o conteúdo de cada microssistema, e naturalmente sua abertura/fechamento quanto ao ingresso de normas de outros ramos, é a adequação dessas regras e princípios externos à principiologia básica do microssistema, sempre considerada em relação a seu objeto de estudo. Dissertando sobre microssistemas jurídicos, o ministro Paulo de Tarso Sanseverino considera que tais sistemas, mesmo estabelecidos por lei especial, não perderiam sua característica de sistema relativamente aberto, preservando sua referência ao sistema geral do qual fazem parte. Em suas palavras: "Naturalmente, deve ser dada prevalência aos princípios orientadores do próprio microssistema normativo, mas sem o seu fechamento às influências de outros princípios e normas do sistema geral que não se mostram incompatíveis com a sua principiologia" [4].  Essa abertura relativa é o que permite, por exemplo, que o direito do agronegócio seja influenciado por normas e princípios constitucionais, ambientais, civis e comerciais, e ao mesmo tempo não perca sua especialidade. Nesse mesmo sentido, a multidisciplinaridade permitiria a contribuição de áreas externas ao direito como a Economia e a Política. Os princípios básicos do direito do agronegócio na visão de Fábio Ulhoa Coelho [5] são: a) função social da cadeia agroindustrial; b) desenvolvimento agroempresarial sustentável; c) proteção da cadeia agroindustrial; e d) integração das atividades da cadeia agroindustrial. Nota-se que todos esses princípios fazem referência direta a um conceito central, qual seja "cadeia agroindustrial". Essa poderia ser tomada como base comum de todos os princípios do direito do agronegócio, informando simultaneamente qual seria seu objeto de estudo. Uma cadeia agroindustrial (como será abordado em seguida) constitui, na verdade, tão somente um dos elos particulares de um conjunto maior de cadeias que, juntas, comporiam o que consideramos ser complexo agroindustrial, objeto do direito do agronegócio. No entanto, a necessária unidade do objeto de estudo desse ramo jurídico só poderia ser alcançada em termos de "complexo agroindustrial", já que este sim é fenômeno único, particular e abrangente, capaz de universalizar e sintetizar elementos comuns em todas as partes do sistema, não sendo acidental e transitório como um sistema agroindustrial, definido por um produto final específico. Logo, o regime jurídico do agronegócio, entendido como microssistema normativo, é delimitado pelos princípios que lhe são basilares e por seu objeto especial, que lhe concedem especialidade como sub-ramo jurídico. Quanto à composição do fenômeno do complexo agroindustrial, considera-se os elementos que lhe conferem conteúdo. Tais elementos seriam as atividades econômicas organizadas representadas na forma de sistemas ou cadeias agroindustriais. Segundo Renato Buranello [6], dentro do complexo agroindustrial macroeconômico, o sistema agroindustrial é a microeconomia de certo produto agropecuário. Cada sistema ou cadeia agroindustrial seria definida em função de um produto em particular, mas as atividades que comporiam cada um desses sistemas/cadeias compreenderiam todas as operações que se originam desde o fornecimento de insumos até a entrega do produto final ao consumidor. De fato, "cruzam-se" todos os setores da economia na conceituação do sistema agroindustrial, uma vez que envolve atividades próprias tanto do setor primário quanto do setor secundário e terciário. Tendo em vista a profissionalização nas atividades agroindustriais, às atividades econômicas desenvolvidas nos sistemas em questão é atribuída a qualidade de "organizadas". Sem dúvida, tem-se em mente aqui o conceito básico de empresa previsto no Código Civil, como sendo a atividade econômica organizada para produção ou circulação de bens ou serviços [7]. O produtor rural, ao exercer sua função de cultivo de commodities, destinando-as à comercialização, de fato assume função de empresário, integrando a rede de negócios que compõem o agronegócio brasileiro como um todo, mesmo que ainda localizado no início da longa cadeia. Da mesma forma, em termos conceituais, um sistema agroindustrial pode ser visto como "um conjunto de seis grupos de atores econômicos diferentes: agricultura e pesca, indústrias agroalimentares, distribuição agrícola e alimentar, consumidor final, comércio internacional e indústria e serviços de apoio" [8]. Visão essa que ressalta a integração evidente entre os setores produtivos e o que seria a agroindústria, característica marcante da modernização do setor que lançou as bases para a moderna teoria das organizações agroindustriais. Como elemento integrador do fenômeno do complexo agroindustrial, temos o conceito de "rede de negócios". Mais precisamente, correto seria falar-se em "rede de negócios jurídicos agroindustriais". Tal conceito envolveria a integração das atividades da cadeia agroindustrial, e demandaria o tratamento de temas como cooperação, coordenação, gerenciamento e interação entre os agentes econômicos.  É difundido o tema das redes contratuais, e Ana Frazão [9] abordando o assunto ressalta que "networks ou redes contratuais são conjuntos de contratos que, embora distintos e autônomos, são interdependentes do ponto de vista econômico e funcional. Trata-se de conceito próximo ou até mesmo coincidente com o que a doutrina chama de contratos coligados e contratos conexos, ainda que alguns autores reservem a expressão redes contratuais para aquelas pluralidades contratuais com maior grau de conexão". Mesmo em rede, cada um dos contratos celebrados ao longo da cadeia agroindustrial conserva sua qualidade de negócio jurídico por excelência. A negociação entre as partes, os ajustes e acordos, os fatos da vida que surgem pela atuação dos agentes econômicos, uma vez formalizados por contratos, operariam a aplicação de normas legais e a criação/aplicação da "lei entre as partes", juridicizando aqueles fatos, que se tornariam fatos jurídicos, mais precisamente, "negócios jurídicos agroindustriais".  Assim, o que realmente integraria o complexo agroindustrial (objeto do direito do agronegócio) seriam os negócios jurídicos que nascem a partir da incidência das normas contratuais e legais, e que têm como objeto as atividades que compõem o conteúdo daquele complexo. Os negócios jurídicos agroindustriais, uma vez existentes e válidos, produzem eficácia jurídica, passando a gerar efeitos sobre a esfera patrimonial dos agentes econômicos, na forma determinada pelo regime jurídico do agronegócio. Daí nasceriam todos direitos, obrigações e ações que os agentes econômicos teriam uns perante os outros [10]. Enfim, buscou-se apresentar, em breves notas, o que seria a proposta de uma organização teórica dos fundamentos do direito do agronegócio, estabelecendo seu marco regulatório (regime jurídico próprio através de microssistema), seu conteúdo (atividades econômicas organizadas dos sistemas agroindustriais) e, por fim, o elemento integrador, na forma do conceito de rede de negócios jurídicos agroindustriais. O atual estágio de desenvolvimento do agronegócio no Brasil, a complexidade dos arranjos e estruturas comerciais e financeiras verificadas na prática demandam um regime jurídico que espelhe essa complexidade e que seja capaz de coordenar os esforços de todos os agentes econômicos ao longo das cadeias agroindustriais. Nesse esforço, norma jurídica, atividade econômica e negócios em rede devem ser criados e aplicados de maneira coerente, estável, eficiente e segura, de modo que o ambiente de negócios se beneficie de um jogo justo e "dentro das quatro linhas". [1] https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/64/edicao-1/tridimensional-do-direito,-teoria [2] https://www.conjur.com.br/2021-dez-17/opiniao-pontes-miranda-contribuicao-ciencia-direito [3] https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/23/edicao-1/regime-juridico-unico [4] SANSEVERINO, Paulo de Tarso. Responsabilidade civil no Código do Consumidor e a defesa do fornecedor. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 84. [5] BURANELLO, Renato. Manual do direito do agronegócio. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, pos. 169 (Kindle). [6] Ibid, pos. 822 (Kindle) [7]  "Artigo 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços". [8] https://www.scielo.br/j/gp/a/KnnJKYd3jCdq6ZwgGBNYjNc/?lang=pt#:~:text=O%20sistema%20agroindustrial%20pode%20ser,ind%C3%BAstria%20e%20servi%C3%A7os%20de%20apoio [9] http://www.professoraanafrazao.com.br/files/publicacoes/2017-05-04-Networks_e_redes_contratuais.pdf [10] https://www.conjur.com.br/2021-dez-17/opiniao-pontes-miranda-contribuicao-ciencia-direito
2023-01-28T17:04-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-28/manoel-parreira-teoria-geral-direito-agronegocio
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Tribunal do Júri
Precedentes importantes de 2022 em matéria do júri (parte 2)
Dando continuidade à retrospectiva 2022 em que abordamos, na semana passada nesta coluna, os precedentes do Tribunal do Júri, um tema que se torna extremamente relevante e se tornou presente nas decisões dos Tribunais Superiores diz respeito à confissão espontânea do acusado em plenário do Júri. Em 2015, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 545 com o seguinte conteúdo: "quando a confissão for utilizada para a formação do convencimento do julgador, o réu fará jus à atenuante prevista no artigo 65, III, d, do Código Penal". É sabido que os jurados, com a preservação do sigilo das votações, podem tomar decisões até mesmo com base na sua íntima convicção [1]. No entanto, a ausência de fundamentação da decisão do Conselho de Sentença já foi utilizada como estratagema interpretativo para negar ao acusado o direito à atenuante da confissão espontânea. Considerando isso, a 5ª Turma do STJ se posicionou, acertadamente, pelo entendimento de que "o réu fará jus à atenuante do art. 65, inc. III, d do CP, quando houver admitido a autoria do crime perante a autoridade, independentemente de a confissão ser utilizada pelo juiz como um dos fundamentos da sentença condenatória, e mesmo que ela seja parcial, qualificada, extrajudicial ou retratada" (STJ, REsp 1.972.098/SC, 5ª Turma, relator ministro Ribeiro Dantas, por unanimidade, j. em 14/6/2022). Diante desse precedente, pode-se inclusive concluir que houve um alargamento da incidência da Súmula 545/STJ. Se o acusado faz jus à atenuante da confissão espontânea, ainda que o juiz togado não a utilize como fundamento no decreto condenatório, logicamente que a confissão em sessão plenária também precisa repercutir na dosimetria da pena fixada na sentença pelo juiz presidente. Nessa esteira, a 6ª Turma do STJ (AgRg no AREsp 2.102.735/MS, relatora ministra Laurita Vaz, j. em 2/8/2022) deliberou que a confissão espontânea do réu deve atenuar sua pena, ao menos na fração de 1/6, embora não se saiba, ao certo, se a palavra do acusado surtiu total relevância no veredicto dos jurados. Fato é que a abordagem sobre a confissão em plenário, especialmente pela acusação, gera um o fator persuasivo, ainda que de difícil valoração na proporção que foi determinante para a tomada de decisão. Essa já era a orientação da 5ª Turma do STJ (AgRg no AREsp 1.754.440/MT, relator ministra Ribeiro Dantas, julgado em 2/3/2021). Essa posição segue a naturalidade interpretativa do preceito legal e com a qual concordamos. O direito subjetivo do réu de ter sua pena atenuada se constitui no momento em que ele confessa. Condicionar esse direito a qualquer circunstância adicional — como a utilização da confissão na fundamentação da condenação _ violaria o princípio da legalidade. Outrossim, a exigência de que a confissão seja mencionada na sentença para fins de reconhecimento da atenuante viola o princípio da isonomia, pois abre a possibilidade de que réus, em circunstâncias processuais similares, recebam tratamentos divergentes do Judiciário, caso o decreto condenatório de um deles trate a confissão como uma das bases da condenação e a outra não o faça. Esse seria mais um grave alargamento ao princípio do livre convencimento do julgador (togado) na seara criminal que deve ser enfrentado e criticado [2]. Ademais — de forma divergente da colaboração premiada, que se embasa no impacto que as declarações do acusado podem causar no direcionamento da persecução penal — a atenuante da confissão espontânea decorre do "senso de responsabilidade pessoal do acusado", sem nenhuma exigência de que a admissão dos fatos, por si só, desemboque em efeitos "práticos" para o aparato punitivo estatal. Ressalta-se ainda que o Tribunal do Júri, assim como todo o sistema jurídico, deve proteger a expectativa da intenção da legislação penal. Por óbvio, o acusado, antes de negar ou admitir a autoria delitiva, reflete respectivamente entre a possibilidade de uma absolvição ou de uma condenação com pena atenuada. A partir do momento em que o Estado, com o nítido intuito de estimular a confissão, assegura legalmente ao acusado o direito à atenuante no caso de admissão dos fatos, não pode o mesmo Estado (julgador) condicionar a aplicação da lei a requisitos por ela não são exigidos. Ainda, no que tange à atenuante da confissão espontânea nos meandros do Tribunal do Júri, lançamos luzes sobre outro tema importante, abordado pela 6ª Turma do STJ, nos autos do AgRg no REsp 2.010.303-MG (relator ministro Antonio Saldanha Palheiro, por unanimidade, j. em 14/11/2022): "A atenuante da confissão, mesmo qualificada, pode ser compensada integralmente com qualificadora deslocada para a segunda fase da dosimetria em razão da pluralidade de qualificadoras". A celeuma circunda em torno da possibilidade de que eventual qualificadora sobejante, com força de agravante, tenha proeminência sobre a atenuante da confissão espontânea. Nos casos de homicídios com duas ou mais qualificadoras, há entendimento jurisprudencial pacifico no sentido de "uma delas deverá ser utilizada para qualificar a conduta, alterando o quantum da pena em abstrato, e as demais poderão ser valoradas na segunda fase da dosimetria, caso correspondam a uma das agravantes previstas na legislação penal, ou, ainda, como circunstância judicial, afastando a pena-base do mínimo legal" (HC 402.851/SC, relator ministro Felix Fischer, 5ª Turma, DJe 21/9/2017). A 6ª Turma, ao nosso ver acertadamente, decidiu pela compensação integral entre a atenuante da confissão e a qualificadora do motivo fútil, que fora rebaixada para a condição de agravante, em decorrência da existência de outras qualificadoras. Para tanto, os julgadores entenderam que ambas são circunstâncias igualmente preponderantes, à luz do que preconiza o artigo 67 do CP. Outro tema de importante expressão diz respeito aos efeitos práticos extraídos das decisões em grau recursal. Destacamos o REsp 1.973.397-MG julgado em 6/9/2022 pela 5ª Turma de relatoria do ministro Ribeiro Dantas que tratou de diversas temas importantes. O primeiro se relaciona à (des)necessidade de nova sessão plenária em razão de afastamento de qualificadora pelo órgão revisor quando a abordagem não versa sobre questão probatória. No acordão, restou assentado que "diversamente do que ocorre na hipótese de contrariedade entre o veredicto e as provas dos autos (art. 593, § 3º, do CPP), o afastamento de qualificadora por vício de quesitação não exige a submissão dos réus a novo júri". Consoante deliberado pela 5ª Turma do STJ, a exclusão de uma qualificadora só demanda a necessidade de uma nova sessão plenária se houver manifesta contrariedade entre o veredicto e as provas dos autos (artigo 593, § 3º, do CPP), pois nessa hipótese somente os jurados possuem competência para decidir sobre a matéria. Todavia, se o afastamento da qualificadora for adstrito à nulidade de quesitação, a questão é solucionada em sede de dosimetria da pena, razão pela qual o tribunal técnico é competente para realizar o juízo rescisório e rescindente. Também na perspectiva de que a competência para a dosimetria da pena é do juiz-presidente, no mesmo julgado ora debatido, asseverou-se que "embora seja necessária a quesitação aos jurados sobre a incidência de minorantes, a escolha do quantum de diminuição da pena cabe ao juiz sentenciante, e não ao júri". Ainda no julgamento do REsp 1.973.397-MG, a 5ª Turma do STJ destacou que "há nulidade no quesito que não questiona os jurados sobre a ciência dos mandantes do crime em relação ao modus operandi pelos executores diretos — emboscada —, já que as qualificadoras objetivas do homicídio só se comunicam entre os coautores desde que tenham ciência do fato que qualifica o crime". Consideramos acertado esse posicionamento. Se fosse prescindível o conhecimento do mandante sobre o modus operandi para a aplicação da qualificadora, restaria configurada a responsabilidade penal objetiva, vedada no ordenamento jurídico brasileiro. Como os juízes da causa são os jurados, esse ponto tem que lhes ser questionado, sob pena de nulidade. Por fim, nos autos do REsp 1.973.397-MG, debateu-se sobre a polêmica da (in)comunicabilidade da qualificadora da paga ao mandante do crime de homicídio. A despeito da compreensão em sentido contrário da 6ª Turma do STJ, a 5ª Turma assentou que "a qualificadora da paga (art. 121, 2º, I, do CP) não é aplicável aos mandantes do homicídio, porque o pagamento é, para eles, a conduta que os integra no concurso de pessoas, mas não o motivo do crime". Sobre a temática, coadunamos com o posicionamento da 5ª Turma do STJ com base em dois argumentos fundamentais. Em primeiro lugar, a qualificadora da paga deve ser aplicada ao agente que executou o crime motivado pela recompensa financeira; o mandante do crime age impelido por outras razões, que podem ser valoradas positivamente ou negativamente. Em segundo lugar, o pagamento efetivado pelo mandante tem o condão de formalizar o concurso de pessoas entre ele e o executor do crime. Por conseguinte, utilizar o pagamento para integrar o mandante na qualidade de autor mediato e aplicar a qualificadora da paga configuraria bis in idem. Conforme se depreende da leitura das duas partes da retrospectiva, em 2022 os tribunais superiores tomaram decisões importantes no cenário do Tribunal do Júri. Para 2023 ficamos na expectativa do julgamento dos Temas 1.068 e 1.087 pelo Supremo Tribunal Federal, que tratam, respectivamente, da (in)constitucionalidade da prisão automática do réu condenado pelo Tribunal do Júri a uma pena igual ou superior a 15 anos de reclusão (CPP, artigo 492, inciso I, "e") e da (im)possibilidade de apelação da sentença absolutória quando os jurados afirmam positivamente ao quesito obrigatório e genérico. O enquadramento topológico do tribunal do júri (artigo 5º, inciso XXXVIII, da CF) indica algo deveras importante: trata-se de um direito fundamental. Esperamos que, em 2023, a Corte Constitucional exerça seu papel de guardiã da Constituição Federal nos julgamentos referidos e reconheça, no julgamento do Tema 1.068, a inconstitucionalidade da prisão automática e, no Tema 1.087, a impossibilidade de apelação pela acusação quando a decisão não versar sobre a questão probatória, tudo em prestígio ao princípio da presunção de inocência, à plenitude de defesa e à soberania dos veredictos, que devem parametrizar o processo penal em um Estado Democrático de Direito [3]. Vale ressaltar que o processo penal de um país deve refletir o posicionamento autoritário ou democrático de sua Constituição. [1] Sobre o tema, recomendamos o artigo A ausência de motivação dos veredictos no júri, de 8 de outubro de 2022, bem como Tribunal do Júri: deliberação entre os jurados aumenta a qualidade das decisões, de 1 de abril de 2021. [2] SAMPAIO Denis. Valoração da Prova Penal. O problema do livre convencimento e a necessidade de fixação do método de constatação probatório como viável controle decisório. Florianópolis: Emais, 2022. [3] Já enfrentamos os dois temas aqui na coluna: A soberania do veredicto absolutório no Tribunal do Júri e a (im)possibilidade recursal, de 20 de agosto de 2022; Considerações sobre o recurso contra a decisão absolutória do júri, de 27 de agosto de 2022; A (in)subsistência da presunção de inocência no Tribunal do Júri, de 17 de dezembro de 2022.
2023-01-28T08:00-0300
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Embargos Culturais
O romance histórico Cafeína, de Maurício Torres Assumpção
Que livro! Uma resenha crítica que comece com uma exclamação dessas só pode ser o anúncio de um livro imbatível. E é. Cafeína, de Maurício Torres Assumpção, publicado em 2020, editado pela LeYa, desponta como um favorito no selo ficção histórica. É um romance histórico que tem muito romance e que tem muita história. Cafeína é um daqueles livros que se lê de uma sentada, sem pausa para nada. O leitor é envolvido por uma trama muitíssimo bem construída, com muitas surpresas, idas e vindas, tudo antecedendo um fim de tirar o fôlego. Difícil escolher a leitura seguinte. Cafeína contempla miríade de assuntos, que transitam da época da lei do ventre livre (1871) até o golpe de Vargas (1930). Um dos temas centrais (há muitos temas centrais) é a decadência da lavoura cafeeira da região de Vassouras, no Rio de Janeiro, o que ocorre ao longo do processo do desmonte da economia escravocrata, que de algum modo continuou em seus elementos estruturais de exploração: é o roteiro da senzala para a favela, que dava sequência ao roteiro macabro que começara na captura e no navio negreiro. É nosso grande problema, quem o diz é Jessé Souza, com quem concordo nesse pormenor. O livro trata de casamentos forçados, de um coroinha que estudava francês, da prostituição em Paris ao tempo da Belle Époque, de Ruy Barbosa, da crise do encilhamento, da República de Espada, da construção da Torre Eiffel, de Toulouse-Lautrec, da escravidão, do anarquismo, do assassinato de Sadi Carnot (presidente da França), de Isabel (a quem se refere como Condessa D'Eu), de Santos Dumont, de um personagem imaginário que só pode ser Eduardo Prado, entre tantos assuntos, e temas correlatos, que o autor costura com uma qualidade narrativa surpreendente. Há no livro um argumento histórico explorado de maneira instigante relativo às transformações políticas ocorridas no Brasil e a forma como as mudanças seriam exploradas como oportunidades para negócios. É, especialmente, a trajetória de Antonio, filho de um imigrante português que aproveitou a oportunidade de um casamento, enriquecendo com o café, que quase foi o Barão do Pau Vermelho. Por sugestão do Imperador, que preferia títulos de nobreza com argumentos e referências indígenas, o Barão ficou mesmo Barão de Ibirapiranga. Há uma referência ao "pau-brasil" ainda que talvez fosse mais provável o uso de "Ibirapitanga". Porém, o livro é mais ficção do que relato fitogeográfico, o que deixamos para a primeira parte dos Sertões de Euclides da Cunha. A narrativa é centrada em um menino, Sebastião Constantino do Rosário, o Tino, de algum modo envolvido numa comédia de erros, não fosse trágico tudo o que viveu. Protegido por um padre e por uma escrava forra o menino (sem saber), e em fuga, viaja para a Europa no mesmo vapor que conduzia D. Pedro 2º, então deposto. Concomitantemente, a narrativa gira em torno do sucessor do Barão de Ibirapiranga, que em Paris comandou a construção de torrefação de café, que de fato existe, e cujo endereço o autor registra ao fim do livro, inclusive ilustrando com fotografias do local, antes e hoje. A fronteira entre ficção e realidade, entre história e fatos é absolutamente enigmática. É encantadora a técnica narrativa, com abundância de pormenores, que transitam das "pastilhas terebentinas" aos cabarés parisienses da época. Há referências ao funeral de D. Pedro 2º, a tentativas de aviação com balões, ao início da história do cinema. Nesse último caso, o autor registra uma das primeiras exibições do cinematógrafo, na qual um trem que se movia na tela, na direção dos espectadores, fazia com que esses saíssem correndo. O autor, que é brasileiro (carioca), mas que me parece reside na Europa, havia publicado em 2014, também pela LeYa, A História do Brasil nas Ruas de Paris, de onde substancializou muita informação que retomou em Cafeína. O meu entusiasmo pelo livro decorre de sua técnica narrativa. Creio que as modernas técnicas de pesquisa (inclusive em fontes primárias) tornaram a parte histórica a menos difícil na composição da ficção histórica. Especialmente em relação a tempos mais recentes há uma profusão de jornais, revistas, entrevistas, documentários, biografias e autobiografias, sempre a serviço do ficcionista. No entanto, o escritor precisa de uma narrativa plausível, acreditável, verossímil e cativante que segure o leitor. Há aí um pouco de técnica de romance policial, que Jô Soares (O Xangô de Baker Street) e José Almeida Júnior (O Homem que Odiava Getúlio Vargas) exploraram muito bem. Em Cafeína esse requisito é plenamente satisfeito, o leitor que se prepare para muita surpresa. Um senão poderia se oposto a algum anacronismo (o caso do ministério público no século XIX) mas que o autor em outras partes do livro evita muito bem, quando cita os artigos do código penal então vigente, relativos ao estelionato. Um excelente livro que coloca ao leitor um problema: o que ler em seguida? Creio que essa pergunta, nada ingênua, melhor expressa o meu fascínio com um livro impressionante.
2023-01-29T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-29/embargos-culturais-livro-cafeina-mauricio-torres-assumpcao
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Segunda Leitura
Carta ao jovem profissional jurídico
Às vésperas de completar 20 anos de graduação em direito e 10 anos de magistratura federal, já me sinto "velho" o suficiente para dar alguns conselhos aos mais jovens. Isso porque, se eu tivesse a máquina do tempo, faria algumas coisas de forma um pouco diferente. É uma visão amadurecida daquelas experiências iniciais. São sete conselhos. 1 - Saboreie a leitura daquele livro basilar que está nas recomendações bibliográficas da sua matéria de estudo. Ele não está ali por acaso, mas para apresentar a você a visão tradicional de uma área do conhecimento. Com o tempo você verá que o mais importante nem era o conteúdo em si, mas a etapa da vida. Com os olhos de hoje, neste mundo cada vez mais acelerado, são deliciosas as memórias que tenho da leitura de autores como Washington de Barros Monteiro ou Hely Lopes Meirelles, leituras feitas nas mesas da biblioteca da universidade ou sob a sombra das árvores do campus — mesmo que muitas dessas leituras tenham sido feitas poucas horas antes de uma prova decisiva. Dificilmente você vai viver este tipo de sensação novamente depois de alguns anos de carreira. É algo próprio à juventude. E deixará saudades. 2 - Faça o que for preciso para acumular as suas primeiras experiências práticas. O mundo jurídico é teórico, com certeza, mas as habilidades práticas são fundamentais para você não "travar" nos primeiros anos de atuação profissional. Nada é melhor do que se formar já com algumas experiências, como um estágio em um órgão público ou a atuação voluntária em algum escritório, ainda que seja para fazer o que ninguém mais quer. Pelo menos, você estará lá, observando, ouvindo, aprendendo, fazendo contatos, eventualmente se apaixonando (por assuntos ou pessoas), e minimizará a sensação de despreparo que costuma assombrar o jovem profissional. São experiências de vida. Não há desculpas. Se você não encontrar absolutamente nenhuma oportunidade, vá até o fórum mais próximo, disfarce no corredor das audiências como se estivesse esperando alguém e tente se enfiar em qualquer lugar onde esteja acontecendo alguma coisa. Peça sempre licença e leve um livro ou uma constituição federal de emergência para eventuais momentos de tédio. 3 - Eleja uma área para chamar de sua. Na atividade jurídica, é bom saber um pouco de tudo, mas é valioso "saber tudo" de um pouco, de um assunto em especial. Ninguém consegue ser bom em tudo, mas é péssimo não ser bom em nada. Se você ainda não tem clareza sobre quais serão as suas especialidades (não precisa ser necessariamente apenas uma), então trate de priorizar esta definição, pois a mediocridade generalizada não é exatamente um destaque curricular. Além disso, a eleição de uma área como sua especialidade é uma estratégia naturalmente eficaz contra o "terror" do jovem acadêmico: a barreira inicial para a produção científica. Realmente, é difícil escrever um TCC, um artigo científico ou uma dissertação de mestrado se você não tem maior intimidade com nenhuma área. Vai escrever com propriedade sobre o quê? Lembre-se: mesmo que você não tenha maiores aspirações acadêmicas, precisará saber escrever bem e a produção de alguns ensaios científicos é uma excelente oficina para isso. Contraindico enfaticamente que os seus primeiros textos sejam as suas manifestações processuais. 4 - Tenha consciência de que você ainda é um aprendiz. É claro que é importante ter – e demonstrar – confiança, mas é bonito ver um jovem reconhecer que ainda tem muito a aprender, portando-se com o que eu gosto de chamar de "humildade curiosa", aquela disposição para ouvir mais do que falar. Aliás, é ditado popular: nessa vida, quanto menos se fala, menos se erra. E dificilmente você vai pronunciar a sua obra-prima aos vinte e poucos anos. Então, primeiro ouça, mas não desperdice oportunidades de ser útil e prestativo nos assuntos que costumam ser favoráveis aos mais jovens, como o uso de tecnologias. Será uma troca muito interessante, um típico ganha-ganha, e é sempre uma boa ideia ser aquela "pessoa de confiança para assuntos tecnológicos" de um experiente profissional jurídico que já não tem na visão de curta distância o seu melhor atributo. 5 - Habitue-se a pensar no longo prazo. O tempo é relativo, sabemos todos, mas isso não muda o fato de que, na experiência de uma vida humana, quando você piscar os olhos, terão passado dez anos. Pisque mais uma vez, e terão sido vinte. Para os cinquenta, é só mais um pulinho. Como dimensionar isso na carreira jurídica? Bem, se o seu sonho é advogar e você vier a receber de um escritório consagrado a promessa de uma participação inicial na sociedade depois de cinco anos como um modesto contratado, entenda isso como um grande elogio. O mesmo vale para a carreira pública: para quem pretende ser juiz, por exemplo, cinco anos é um prazo normal para se tornar competitivo nas provas. Eu mesmo levei dez anos para ingressar na carreira, estudando com seriedade durante todo este período. Exceções existem, é claro. Você pode ser de uma família de advogados e ter um espaço digno no escritório desde cedo, ou pode ter no seu círculo pessoal alguém que o inspire e direcione ao serviço público ainda na graduação. Mas o normal é que as grandes conquistas tenham um certo tempo de maturação. Minha dica: semeie, cultive com zelo e seja paciente. A constância costuma dar melhores resultados do que os esforços intensos de curto prazo. 6 - Esteja na vanguarda. Olhe para a frente, buscando enxergar longe. Esta postura converge com o conselho anterior, pois o tempo segue uma marcha implacável e quem primeiro reconhece as tendências do amanhã sai na vantagem. Preserve suas boas memórias, mas não deixe a nostalgia paralisá-lo. Não seja o saudosista lamentoso que deseja impedir o curso natural das coisas. Ainda: não postergue as tarefas de atualização e reciclagem, principalmente quando o assunto envolve tecnologia. Passe os olhos o quanto antes naquela novidade que você ouviu falar: metaverso, blockchain, Justiça 4.0, lawtechs em geral. Isso minimiza tanto receio do desconhecido quanto a ansiedade do "ainda falta fazer" — e evita constrangimentos em conversas inesperadas. 7 - Comece antes de estar pronto. A vida colocará no seu caminho oportunidades desafiadoras. Você será convidado a participar de um grupo de estudos; a escrever um artigo em coautoria; a expor um tema em um painel; a auxiliar numa tradução; a ser um conciliador voluntário eventual; ou para dar uma aula, por exemplo. Muitas pessoas recuam diante dessas oportunidades, acreditando não estarem suficientemente preparadas. "Estou sem tempo", dirão. Ou ainda: "não quero fazer algo superficial". Para com isso. É melhor o feito do que o perfeito. Quer a prova? Você provavelmente encontrará algum erro gramatical neste texto, que foi escrito no ritmo da vida (dentro de um avião), mas ele existe e não ficou eternamente retido no meu pensamento! Então, vai lá e encara o seu desafio. Enquanto você fica pensando, outro foi lá e já fez. Tempo ninguém tem nessa vida moderna. O negócio é colocar o compromisso na agenda e depois correr atrás de cumpri-lo. Costuma dar certo, mas, se não funcionar de primeira, ainda assim está tudo bem. Pelo menos, você tentou. Não tenha medo de falhar.
2023-01-29T08:00-0300
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Opinião
Matthäus Kroschinsky: Teubner e a "nova questão constitucional"
A descentralização da produção social do conhecimento conforma um modus social que afeta o Direito em suas fontes e força um deslocamento da compreensão de normatividade jurídica, que passa a ser entendida "como uma normatividade que não deriva simplesmente de um centro, estatal ou não, mas é gerada em um cenário de conexão lateral e horizontal entre Estado, organizações e sociedade, com sérias consequências para a modelagem da subjetividade jurídica envolvida neste contexto". O resultado disso é a assunção como Direito de conteúdos até então considerados pela tradição da teoria do direito como extralegais [1]. Daí que é cada vez mais urgente o reconhecimento de que o sistema jurídico opera de forma gradativamente mais especializada, e maior razão assiste a Georges Abboud [2] e Ricardo Campos [3] quanto às novas feições que a jurisdição constitucional assume hoje. O professor alemão Gunther Teubner é um dos mais ousados intérpretes da hipótese autopoiética de Niklas Luhmann e um dos maiores teóricos daquilo que vem sendo aglutinado debaixo do rótulo de "constitucionalismo global". De acordo com Teubner, Luhmann permaneceu excessivamente restrito a uma concepção de Constituição que estruturava a autopoiese recíproca entre Direito e política sem extrapolá-la para os demais sistemas sociais autônomos. Fazê-lo é, grosso modo, a "nova questão constitucional" de Teubner. Explicamos. Segundo o diagnóstico teubneriano, o constitucionalismo reduzido ao âmbito político ou às interrelações do Direito e da política representa um desperdício dos potenciais explicativos e integradores das Constituições. A concepção constitucional "clássica" — e mesmo aquela adaptada às exigências do Estado de bem-estar social — integra o paradigma que Gunther Teubner muito elegantemente chama a "antiga questão constitucional": "Se, naquela época [séculos XVIII e XIX, M.K.] tratava-se de liberar as energias do poder político do Estado Nacional e, ao mesmo tempo, de limitá-lo de modo eficiente com o Estado de Direito, os processos de constitucionalização atuais têm como objetivo restringir o desencadeamento de energias sociais totalmente diferentes (...)" [4]. A releitura que Teubner fez da teoria dos sistemas autopoiéticos revitalizou o direito vivo de Eugen Ehrlich [5] — sem que isso significasse uma adesão completa a ele — ao permitir que as capacidades de auto-organização e auto-observação do sistema jurídico observassem a prática do Direito de tal forma a poder "redefinir seus critérios de validade" e articular seu símbolo de vigência (lícito/ilícito) a nível mundial: "(a)s regras transformam-se em regras jurídicas assim que são referidas em atos comunicativos ao código binário direito/não direito e produzem microvariações na estrutura jurídica" [6]. É a partir daí que Teubner demonstrou como diversos processos sociais espontâneos, por vezes sequer reconduzíveis ao Estado Nacional, formam ordenamentos jurídicos sui generis oriundos do acoplamento estrutural entre Direito e discursos sociais autônomos e cuja fundamentação já não é encontrada no cume normativo da Constituição política pensada para o contexto do Estado Nacional [7]. O ponto aqui é o de que o constitucionalismo tem de conviver com a circunstância de que os sistemas funcionais se diferenciam a nível mundial em diferentes ritmos e a política leva a cabo somente uma "protoglobalidade" [8] que é "incapaz de manter o ritmo" em vista do alcance limitado que a ação do Estado Nacional tem no cenário internacional [9]. Grande parte das discussões do constitucionalismo global giram em torno da contenção do poder público [10] que se espraia a nível internacional através de entidades como a União Europeia, que tem seu poder regulado por tratados internacionais e não na forma de uma constitucionalização resultante de uma autodeterminação, ainda que o Bloco, segundo Dieter Grimm, possa efetivamente se constitucionalizar caso seus membros optem por renunciar aos seus poderes em favor da EU, transformando os respectivos tratados em uma Constituição [11]. É importante destacar que não há no mundo outra organização que possua a extensão dos poderes ou a densidade orgânica da União Europeia. Embora outros agentes internacionais, como a Organização das Nações Unidas, o Fundo Monetário Internacional ou a Organização Internacional do Trabalho, tenham alguma conformação jurídica, eles possuem competências muito seletas e organizam-se de forma não democrática, razão pela qual não se poderia falar, aqui, de uma efetiva constitucionalização [12]. Nesse contexto, Teubner vai além da discussão acerca da constitucionalização do direito internacional ou de uma "política interna mundial" à moda de Jürgen Habermas e identifica que há em curso uma efetiva constitucionalização de certos setores sociais que constituem ordenamentos jurídicos privados [13]. Tomando como referência inicial o conceito de constitucionalismo societal [societal constitutionalism] cunhado pelo sociólogo norte-americano David Sciulli, lido à luz da teoria dos sistemas autopoiéticos, Teubner crê que as organizações internacionais podem se "constitucionalizar" apenas na medida de produzir hierarquias internas de normas jurídicas, sem, com isso, desenvolver qualquer tipo de ordem democrática que vincule a contento o Estado e a sociedade. Decorre daí a necessidade de desvincular as Constituições de sua função de atar direito e política no contexto do Estado Nacional e expandir o potencial de constitucionalização a outros setores funcionalmente diferenciados da sociedade mundial [14]. Importa destacar que no contexto de uma sociedade artificialmente considerada de modo isolado — o modelo típico do Estado Nacional — o problema das racionalidades internas dos subsistemas sociais já existia em latência. À medida que a globalização avança e os sistemas parciais da sociedade se comunicam em nível global sua diferenciação é acentuada, como se diferenciação e globalização aparecessem como duas faces do mesmo fenômeno [15]. Agora são os diversos discursos sociais autônomos da sociedade que conduzem os processos de constitucionalização civil que a política já não consegue legitimar por si só, o que não impede que, por essa via, tais setores da sociedade sejam "democratizados" através da institucionalização de dissensos internos [16]. É importante ressaltar que isso possui consequências inclusive dentro do próprio pensamento teubneriano. Se lembrarmos que em seu direito reflexivo Teubner ainda considerava necessário que o Direito se utilizasse de forma racional do poder político — tal como no exemplo da corporate social responsability, na qual o Direito deveria promover intervenções jurídicas cirúrgicas, tal como propor certas mudanças estratégias de organização e procedimento dentro das empresas para que pudessem promover melhores consequências sociais ao invés de dispersar tal poder político em "esforços regulatórios permanentes" [17] — a tarefa essencial da regulação ainda era a manutenção da autopoiese recíproca dos sistemas reguladores (direito e política) e regulados (demais subsistemas sociais) [18][19]. No modelo de constitucionalização dos regimes transnacionais de Teubner, a política perde espaço como o poder da qual o Direito se utiliza para "intervir" nos demais subsistemas. O Direito passa a ter que se utilizar de sua própria autoridade criada reflexivamente no interior dos sistemas sociais, bem como das próprias idiossincrasias epistêmicas destes últimos. Num apanhado, Teubner nos convida a pensar que na situação de um mundo duplamente fragmentado — cultural e funcionalmente — as racionalidades subsistemáticas tendem a ser ultrarracionais em si mesmas, mas "cegas, descoordenadas, egoístas, caóticas, expansivas e imperialistas" em sua relação com a sociedade como um todo [20]. O resultado disso são tendências hiperexpansivas, centrífugas e patológicas dos subsistemas que ameaçam uns aos outros, bem como a sociedade em si, e cuja solução é a promoção das garantias do Estado de Direito em "direitos" sem Estado via Constituições reinterpretadas como mecanismos de desparadoxação recíproca que possam ir além das externalizações recíprocas das violence de la fondation do Direito e da política. [1] CAMPOS, Ricardo. Metamorfoses do Direito Global: Sobre a Interação entre Direito, Tempo e Tecnologia, São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 271. Cf. VESTING, Thomas. Gentleman, Gestor, Homo Digitalis: A Transformação da Subjetividade Jurídica na Modernidade, trad. Ricardo Campos e Gercélia Mendes, São Paulo: Contracorrente, 2022. [2] Cf. ABBOUD, Georges. Direito Constitucional Pós-Moderno, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, pp. 597 e ss; e ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro, 5ª Ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, pp. 536 e ss. [3] CAMPOS, Ricardo. "A Transformação da Jurisdição Constitucional e o Perigo do Consequencialismo", in: Consultor Jurídico, 11.2.2020. Disponível em [https://www.conjur.com.br/2020-fev-11/ricardo-campos-jurisdicao-constitucional-perigoconsequencialismo]. [4] TEUBNER, Gunther. "O Projeto da Sociologia Constitucional: Estímulos do Constitucionalismo de Estado Nacional", in: TEUBNER, Gunther/CAMPOS, Ricardo/FERREIRA VICTOR, Sérgio Antônio (org). Jurisprudência Sociológica: Perspectivas Teóricas e Aplicações Dogmáticas, trad. Geraldo Luiz de Carvalho Neto e Gercélia Batista de Oliveira Mendes, São Paulo: Saraiva, 2020, pp. 123-150 (p. 125). [5] Cf. EHRLICH, Eugen. Fundamental Principles of the Sociology of Law, trad. Walter L. Moll, Nova Iorque: Routledge, 2017. [6] TEUBNER, Gunther. "A Bukowina Global sobre a Emergência de um Pluralismo Jurídico Transnacional", in: Impulso, n. 14 (33), pp. 9-31 (pp. 17 e 19). [7] Cf. ELMAUER, Douglas. O Direito na Teoria Crítica dos Sistemas: Da Justiça Autossubversiva à Crítica Imanente do Direito. Dissertação de Mestrado, São Paulo: Faculdade de Direito da USP, 2015, pp. 238 e ss. [8] TEUBNER, Gunther. "A Bukowina Global sobre a Emergência de um Pluralismo Jurídico Transnacional", cit., p.13. [9] GRIMM, Dieter. Constitutionalism: Past, Present, and Future, Oxford: Oxford University Press, 2016, p. 340. [10] As obras de Chris Thornhill são excelentes exemplos disso. Cf. THORNHILL, Chris. A Sociology of Transnational Constitutions: Social Foundations of the Post-National Legal Structure, Cambridge: Cambridge University Press, 2016; THORNHILL, Chris. Crise Democrática e Direito Constitucional Global, trad. Diógenes Moura Breda e Glenda Vicenzi, São Paulo: Contracorrente, 2021. [11] GRIMM, Dieter. Constitutionalism: Past, Present, and Future, cit., p. 337. [12] GRIMM, Dieter. Constitutionalism: Past, Present, and Future, cit., pp. 337-338. [13] Cf. ELMAUER, Douglas. “Sociedade Global e Fragmentação Constitucional: Os Novos Desafios Para o Constitucionalismo Moderno”, in: Direito.UnB - Revista de Direito da Universidade de Brasília, s.1, v. 2, n. 2, pp. 11–43, 2016. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/revistadedireitounb/article/view/24485; HABERMAS, Jürgen. Der gespaltene Westen: Kleine Politische Schriften X, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2004. [14] TEUBNER, Gunther. "Autovinculação Exógena: Como os Subsistemas Sociais Externalizam Seus Paradoxos de Fundamentação", in: TEUBNER, Gunther/CAMPOS, Ricardo/FERREIRA VICTOR, Sérgio Antônio (org). Jurisprudência Sociológica: Perspectivas Teóricas e Aplicações Dogmáticas, trad. Geraldo Luiz de Carvalho Neto e Gercélia Batista de Oliveira Mendes, São Paulo: Saraiva, 2020, pp. 159-193; GRIMM, Dieter. Constitutionalism: Past, Present, and Future, cit., p. 338. [15] TEUBNER, Gunther. Fragmentos Constitucionais: Constitucionalismo Social na Globalização, 2ª Ed., São Paulo: Saraiva, Ricardo Campos (Coord.), 2016, p. 50. [16] TEUBNER, Gunther. "Quod Omnes Tangit (O Que Respeita A Todos): Constituições Transnacionais Sem Democracia?", in: ABBOUD, Georges/CAMPOS, Ricardo/TEUBNER, Gunther/LADEUR, Karl-Heinz/VOßKUHLE, Andreas. Constitucionalismo Global, São Paulo: Contracorrente, 2022, pp. 63-108 (p. 77) [17] TEUBNER, Gunther. "After Legal Instrumentalism? Strategic Models of Post-regulatory Law", in: TEUBNER, Gunther (Ed). Dilemmas of Law in the Welfare State, Nova Iorque-Berlim: Walter de Gruyter, 1988, pp. 299-325 (p. 317). [18] Por todos, TEUBNER, Gunther. "After Legal Instrumentalism? Strategic Models of Post-regulatory Law", cit., p. 310. Cf. TEUBNER, Gunther. "Substantive and Reflexive Elements in Modern Law", in: Law & Society Review, v. 17, n, 2, 1983, pp. 239-286. [19] Numa formulação emprestada de Dieter Grimm, podemos dizer que as funções do sistema político no contexto do Estado nacional eram as de "manter os egoísmos sistêmicos dos outros sistemas funcionais dentro dos limites do que é mutuamente tolerável", e que "são realizadas de forma extremamente ineficaz no nível internacional." GRIMM, Dieter. Constitutionalism: Past, Present, and Future, cit., p. 340. Cf. TEUBNER, Gunther. "Dealing With Paradoxes of Law: Derrida, Luhmann, Wiethölter", in: PEREZ, Oren/TEUBNER, Gunther (Eds.). Paradoxes and Inconsistencies in the Law, Oxford-Portland: Hart Publishing, 2006, pp. 41-75. [20] Cf. TEUBNER, Gunther. "The King's Many Bodies: The Self-Deconstruction of Law's Hierarchy", in: Law & Society Review, v. 31, n. 4, 1997, pp. 763-788.
2023-01-30T06:38-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-30/matthaus-kroschinsky-teubner-questao-constitucional
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Paradoxo da Corte
Arbitragem e hipossuficiência num recente precedente do TJ-SP
Numa obra pouco conhecida nos dias atuais, ressalta Manoel Martins da Costa Cruz que o bom juiz pode ser muito culto e conhecer bem as leis, mas para que ele seja justo nas suas decisões, deve entender a complexidade da condição humana que emerge da dinâmica dos fatos (O Advogado da Roça, Rio de Janeiro, Typ. Fonseca, 1917, pág. 28). Cada caso é um caso — como diria Calamandrei (Elogio dei Giudici Scritto da un Avvocato) — e o juiz consciente da dimensão de sua nobre função tem por dever ajustar a lei à situação examinanda, pautando-se pelos princípios gerais e pela razoabilidade na interpretação das normas jurídicas. Todos sabem que a convenção arbitral, celebrada livremente pelas partes contratantes, produz relevantes efeitos, implicando inclusive, quando arguida pelo requerido, a extinção do processo sem julgamento do mérito, a teor do disposto no artigo 485, inciso VII, do Código de Processo Civil. Foi exatamente o que ocorreu, num caso recentemente analisado, pela 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial de São Paulo, ao ensejo do julgamento do Apelação nº 1006072-45.2021.8.26.0100, com voto condutor do eminente desembargador Cesar Ciampolini. Em breve síntese, uma empresa franqueada ajuizou ação anulatória de contrato de franquia cumulada com pedido de indenização em face da franqueadora, que arguiu a existência de cláusula compromissória de arbitragem. Tal alegação restou acolhida pelo juiz de primeiro grau, com a consequente extinção do processo sem resolução do mérito. A requerente interpôs recurso de apelação contra a sentença, argumentando, como alicerce de suas respectivas razões, que teria dificuldade financeira para suportar os custos do processo arbitral, que não lhe foram devidamente informados ao ensejo da celebração do contrato de franquia. Pois bem, valendo-se de importante precedente da mesma turma julgadora (Apelação n. 1003513-24.2020.8.26.0271 — relator: desembargador Alexandre Lazzarini), o eminente desembargador Cesar Ciampolini, secundado pelos demais integrantes da turma julgadora, proveu a apelação da franqueada para anular a sentença. Merecendo todos os encômios, na precisa ratio decidendi do substancioso voto, o eminente desembargador Cesar Ciampolini, invocando os termos do anterior julgado, enfrentou a questão da hipossuficiência econômica da franqueada diante da franqueadora, ainda que aquela tenha manifestado livremente a sua vontade, concordando com a inserção da cláusula arbitral na oportunidade da assinatura do contrato. Reportando-se ao precedente acórdão, constou do voto condutor a seguinte fundamentação: "(...) Assim, irrelevante a discussão se o contrato é um contrato de adesão ou é um contrato padrão e as filigranas que os distinguem, inclusive pelo fato de que ninguém é obrigado a ser franqueado. Isso é feito, pois a parte vislumbra uma oportunidade, diante das informações recebidas, de que se trata de um bom negócio empresarial. Da mesma forma, a própria questão da posição de empresário franqueado. Por isso, a nova redação do art. 421 e parágrafo único e o novo art. 421A, ambos do Código Civil, conforme a Lei n. 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica) não trazem alteração a questão posta, pois basicamente positivaram o entendimento dos Tribunais a respeito das relações contratuais empresariais (simetria etc.). Ora, não é possível desconsiderar, independentemente da extensão interpretativa que se dê aos contratos de adesão e/ou padrão, que a ausência adequada da informação e do esclarecimento, que são inerentes ao contrato de franquia (e a razão da Circular de Oferta de Franquia — COF), fulmina o contrato, no que diz respeito a cláusula compromissória, pois inequívoca a sua patologia, da forma que é apresentada. A informação e o esclarecimento das condições do contrato de franquia, são fatores de validade da própria relação contratual...". Nessa linha de raciocínio, asseverou o desembargador Cesar Ciampolini que, "por qualquer ângulo que se analise a questão, conclui-se pela evidente violação dos deveres de informação e de transparência da franqueadora, ao que tudo indica com intuito de induzir investidores, muitos deles aplicando todas suas economias no negócio, como sói acontecer, a tornarem-se franqueados, correndo o risco de ver o negócio encerrado, caso reconhecida a apropriação indevida, pela ré, do know-how". Por fim, a turma julgadora, ressaltando que, ausente a devida informação quanto ao custo de um processo arbitral, a despeito de a cláusula compromissória encontrar-se formalmente hígida, à luz da imperiosidade de transparência e informação, que igualmente deve informar o contrato de franquia, irrompe ela acoimada de inafastável patologia, visto que colide, na situação concreta, com o disposto nos artigos 122, 187 e 422 do Código Civil. Diante de tais fundamentos, reconhecida a invalidade da cláusula de arbitragem, imposta pela franqueadora à demandante, a apelação foi provida para anular a sentença, determinando-se a remessa dos autos à 1ª Vara Empresarial e de Conflitos relacionados à Arbitragem, para que o processo tramite regulamente perante a justiça estatal.
2023-01-31T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-31/paradoxo-corte-arbitragem-hipossuficiencia-num-recente-precedente-tj-sp
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Controvérsias Jurídicas
Neoconstitucionalismo e o Estado democrático de Direito
A ascensão ao poder de Benito Mussolini (Itália-1922) e Adolf Hitler (Alemanha-1933) foram marcos históricos para a implementação das ideologias fascistas e nacional-socialistas em boa parte do território europeu. Baseado no patriotismo exacerbado e na total ingerência do Estado na vida dos particulares, tais ideologias foram responsáveis pelo redimensionamento do poder estatal, elevando seu espectro de alcance a esferas jamais vistas na história. O fascismo e o nacional socialismo enxergavam-se como a real materialização da vontade do povo, razão pela qual seus representantes políticos atuavam não apenas como integrantes de um Poder (com mandato preestabelecido e limitações de atribuições), como também como supremos procuradores da nação; encarnando, neles próprios, as representações do passado e os anseios futuros de um povo. Não era à toa que os líderes desses movimentos eram denominados como "Duce" e "Führer", verbetes italiano e alemão para designar o líder, o condutor máximo do país. Nesse período histórico, a Itália e a Alemanha assistiram à equiparação do poder político ao poder normativo, onde os líderes políticos determinavam a constitucionalidade das normas e sua aplicação na vida prática. Se levarmos em conta o contexto do período entre guerras, tal característica ganhará contornos ainda mais problemáticos, uma vez que boa parte dos filósofos, juristas, jornalistas e historiadores alemães contestaram a Constituição de 1919 por representar uma verdadeira guinada do país aos interesses das potências do oeste. A perda da Primeira Guerra Mundial e a decepção com o Tratado de Versalhes sedimentaram a ideia de que a Alemanha jamais se constituiria no modelo pangermânico se continuasse submetida ao modus vivendi de outras culturas. Nasce, assim, a ideia de formatação de uma só cultura, o Kultur baseado nos laços sanguíneos. Para que tal percepção ganhasse espaço no ambiente político, muitos juristas sustentaram que a origem e o fim das normas jurídicas são o Volk, e apenas o Volk. Tendo em vista que boa parte do arcabouço normativo alemão da época foi inspirado no Código Civil francês (Burgesliches Gesetzbuch) e as disposições da Constituição de Weimar nas leis supremas das democracias liberais ocidentais, os juristas nazistas contestaram a ordem legal vigente, proclamando a renovação do direito (Erneuerung Rechts). "Em um trabalho de 1936 sobre a Etnologia Jurídica, Kunsberg afirma que a ciência do direito e a etnologia têm em parte o mesmo objetivo. Repetindo a ladainha nazista segundo a qual nas épocas mais antigas, não é possível distinguir os costumes do direito nem o uso popular do uso jurídico, ele atribui aos juristas a missão de resgatar o direito que está enraizado nos costumes do povo. Desse modo, a etnologia jurídica estuda os costumes jurídicos vivos e se propõe a reuni-los para codificar um direito do povo e defendê-lo contra o direito escrito, coagulado e estrangeiro" [1]. O princípio da legalidade, que durante séculos funcionou como instrumento de proteção da sociedade ante os arbítrios de um monarca, passou a servir como meio legitimador para a implementação de regimes autoritários. O Parlamento, subjugado e aparelhado pelas figuras dos líderes, passou a servir como elemento legalizador de perseguições a dissidentes e adversários políticos, como também, a toda e qualquer parcela da sociedade que fosse considerada "degenerada" ou indesejável. A vitória dos Aliados (Estados Unidos, Inglaterra e União Soviética) na Segunda Guerra Mundial (1945) marcou o término dos regimes totalitários na Europa, revelando ao mundo o resultado das atrocidades que os sistemas legais da Itália e Alemanha impuseram ao continente. Mortes, prisões, trabalhos forçados, extermínio étnico e outras barbaridades foram produzidas sob a proteção de seus respectivos ordenamentos jurídicos, suscitando a reflexão acerca de qual deveria ser a dimensão da soberania do Parlamento e dos representantes do povo. O paradoxo trazido pela ascensão e queda de regimes totalitários fez com que fossem construídas formas de mitigação do poder do Parlamento, substituindo o que antes se denominava "Estado Legislativo de Direito" pelo "Estado Constitucional de Direito". As Constituições Federais, dotadas de carga valorativa, passaram a figurar como o centro do sistema jurídico. Dessa forma, a lei, os poderes públicos e a sociedade deviam não apenas observar a norma formal prescrita na Constituição, mas, acima de tudo, expressar os valores por ela edificados. A Constituição alemã de 1949 (Lei Fundamental de Bonn) e seu Tribunal Constitucional Federal (1951); a Constituição italiana de 1947 e a instalação de sua Corte Constitucional (1956); a Constituição portuguesa de 1976; a Constituição espanhola de 1978 e a Constituição brasileira de 1988 efetivaram a substituição do modelo de constitucionalismo moderno, pautado na hierarquia entre as normas e a limitação do poder do Estado; pelo modelo neoconstitucionalista, baseado na hierarquia axiológica e formal das normas e na concretização dos direitos e garantias fundamentais. Quanto ao novo modelo pós-constitucionalista, observa Pedro Lenza: "Visa-se, dentro dessa nova realidade, não mais atrelar o constitucionalismo à ideia de limitação do poder político, mas, acima de tudo, busca-se a eficácia da Constituição, deixando o texto de ter um caráter meramente retórico e passando a ser mais efetivo, sobretudo diante da expectativa da concretização dos direitos fundamentais" [2]. No mesmo sentido, Gilmar Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco: "Hoje, é possível falar em um momento de constitucionalismo que se caracteriza pela superação do Parlamento. O instante atual é marcado pela superioridade da Constituição, a que se subordinam todos os poderes por ela constituídos, garantida por mecanismos jurisdicionais de controle de constitucionalidade. A Constituição, além disso, se caracteriza pela absorção de valoras morais e políticos (fenômeno por vezes designado como materialização da Constituição), sobretudo em um sistema de direitos fundamentais autoaplicáveis" [3]. O sistema neoconstitucionalista é o que melhor promove o Estado democrático de Direito, consistente não apenas na subordinação de todo sistema jurídico ao mandamento constitucional, mas também na construção de um estado constitucional pautado sob fundamentos democráticos. Não seria outro o motivo pelo qual o artigo 1º, I a V, CF, explicita que: "A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em um Estado democrático de Direito" baseado na soberania popular; cidadania; dignidade da pessoa humana; valores sociais do trabalho e pluralismo político. A dignidade da pessoa humana é o centro axiológico da Constituição Federal de 1988, servindo como paradigma interpretativo dos demais princípios e dispositivos legais que integram o sistema jurídico. Para que a dignidade do cidadão seja alcançada em sua máxima amplitude, faz-se necessária a aplicação dos direitos sociais contidos no artigo 6º, CF, a saber: educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados. Nesse sentido, toda e qualquer atuação do Poder Legislativo, mesmo estando legitimada pelo voto popular, deve obedecer não apenas os ditames formais da Carta Magna, como também os valores por ela erigidos, norteando a elaboração das leis nos fundamentos da República (artigo 1º, CF), consubstanciados nos direitos sociais do artigo 6º, CF. Toda e qualquer ação que extrapole tais objetivos, por mais que legitimada pelo voto popular, usurpa a preponderância dos valores constitucionais trazidos pelo poder constituinte originário. Fiel e sincronizada com o neoconstitucionalismo, nossa Carta Magna marca a passagem do Estado formal de Direito, no qual a igualdade se esgota na submissão de todos às mesmas leis (todos são iguais porque a lei é igual para todos), para o Estado democrático de Direito, no qual o Estado tem um compromisso muito maior do que fixar leis iguais para todos e zelar pela sua observância. Estado democrático de Direito é aquele fundado no primado da dignidade humana e na missão de reduzir as desigualdades sociais, nos termos do artigo 3º da CF de 1988. [1] CHAPOUTOT, Johann. A revolução cultural nazista. . Rio de Janeiro. Ed. Da Vinci, 2022, p. 120/131. [2] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, 18ª edição, Saraiva, 2014, p. 72 [3] MENDES, Gilmar e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 14ª edição, Saraiva, 2019, p.53
2023-02-02T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-02/controversias-juridicas-neoconstitucionalismo-estado-democratico-direito
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Senso Incomum
Sistemas IA: e o menino nunca mais foi visto no aeroporto
Antes de tudo: enquanto o Facebook levou dez meses para alcançar um milhão de usuários, o ChatGPT levou apenas cinco dias. Dito isso, o jornal espanhol El País fez interessante editorial (edição de 29/1/2023) sobre a coqueluche do momento: a tal Inteligência Artificial ChatGPT. Para quem ainda não sabe, o modelo de linguagem ChatGPT, baseado no aprendizado de máquinas e redes neurais profundas, trouxe a inteligência artificial para o debate cotidiano. Com o tempo, cada vez mais os sistemas IA farão interfaces com nossos dispositivos e se tornarão uma espécie de oráculos de nossas atividades profissionais. É por isso que o jornal chama a atenção: há riscos nisso e devemos tomar medidas para mitigá-los antes que eles se tornem uma unanimidade e/ou uma IADependência (a palavra é minha). 1. Os prós: sua capacidade de analisar grandes quantidades de dados e fazer previsões oferece uma assistência valiosa na previsão de desastres, diagnóstico de doenças, gerenciamento de recursos a longo prazo e eficiência no transporte. Suas habilidades já aliviam muitos meios de comunicação de acompanhar as flutuações da bolsa de valores, transmitir o futebol de ligas menores ou prever o tempo. E servem à educação, oferecendo a possibilidade de reforço personalizado em disciplinas especializadas, desde a matemática até o latim. 2. Contra: o fato é que não podemos automatizar essas funções sem mitigar as prováveis desigualdades que cresceriam exponencialmente, por exemplo, entre aqueles que mantêm acesso cada vez mais privilegiado a médicos, professores, secretários e jornalistas. Isto é: uma IA excludente. 3. Efeitos colaterais: a automação de serviços oferece vantagens econômicas às empresas, que podem estar abertas 24 horas por dia, sete dias por semana, sem pagar salários ou previdência social. Ao mesmo tempo, porém, constitui um risco para a privacidade e o cuidado do usuário, paciente e cidadão. 4. O ponto fulcral: é imperativo estabelecer diretrizes e regulamentos claros que garantam um princípio de transparência e responsabilidade no desenvolvimento e implementação de modelos automatizados, particularmente em empréstimos, saúde, contratação ou justiça criminal. 5. Problemas éticos: a diretriz ética inegociável: nenhuma IA pode nos substituir ou tomar decisões por nós; apenas nos ajudar a decidir, diagnosticar, pensar melhor. E é claro que pode. Engana-se quem pensa ou diz que sou contra a tecnologia. Pelo contrário. Minha preocupação é com a dosagem do remédio que pode se tornar veneno. 6. Dilemas e perplexidades: como evitar assimetrias que surgirão entre aqueles com acesso privilegiado aos dados e a gestão de plataformas digitais e nossos interesses, necessidades e diretrizes regulatórias? Além disso, altos custos ambientais. Modelos de treinamento como o GPT-3 exigem grandes quantidades de solo, minerais, fluidos, energia e capacidade computacional, e geram quantidades industriais de resíduos e gases de efeito estufa. E como se dá a explanação e a verificação do modo como essas plataformas são estruturadas e organizadas? Isso é importante. Ou não é? 7. Conselho: devemos colocar nossa casa em ordem antes de deixá-la nas mãos da inteligência artificial. 8. Explicando o título da coluna: embarcávamos para a Europa — isso há uns cinco anos — e na hora do check in o menino da companhia disse "façam no totem". O jurássico aqui disse que gostaria que ele fizesse para nós. Ele explicou empolgado que o totem blá, blá e blá. Rosane disse: "esse totem vai tirar seu emprego". Ele disse "não, vai melhorar o atendimento" e blá e mais outro bla. Nunca mais o vimos. Descobri que foi demitido. Alguém dirá: Lenio está preocupado com os fabricantes de vela no advento da luz elétrica. Ou está preocupado com o emprego dos cocheiros em face do invento do automóvel... Já me disseram isso. Muito engraçado. Pândegos e galhofeiros. Primeiro, são coisas diferentes. Segundo, a precarização do trabalho é uma realidade. Por isso o oportuno editorial de El País. Vejam as agências bancárias, reduzidas a algumas mesas. Liguem para o banco. Atenderá um robô. Agora sofisticaram: há um whatsapp robô para sacanear. Qual é o assunto? Você diz "nenhum desses". Acabou a relação com o robô. Ligue para o SAC de empresas. Ligue para as Lojas Americanas... Reclame do Uber. Ligue para o Uber. Ah, não tem telefone? Pois é. Compre uma passagem aérea ligando para a companhia. Aliás, ligue para a companhia... E no direito? Bom, com o salário que recebem as carreiras no Brasil... querem, ainda assim, terceirizar para robôs. É o que se diz. Há uma paixão por metaverso. Dias desses até audiência por metaverso foi feita. Desculpem: já está acontecendo. Há robôs que fulminam recursos e julgam causas fiscais e quejandos. E volto à minha pergunta, até hoje não respondida pelos defensores da nova moda: quem programa o robô? "Ah, mas nas demandas repetitivas"... e é um robô que vai nos oferecer o conceito de um precedente, por exemplo? Algo que a dogmática e os tribunais, e digo com toda lhaneza, até hoje não fizeram? Hum, hum. O ChatGPT já faz textos melhores que a ampla maioria — mas ampla, mesmo — dos formados em direito. É provável, visto o nível do ensino jurídico. Então, por que somos capazes de construir máquinas que fazem as coisas melhores que nós? Não, não respondam. Ou respondam. Para si mesmos. Não é um tanto assustador? Encontrei uma senhora que estuda direito no sétimo semestre em uma faculdade por aí. Ela não junta lé com cré. Não conhece nenhum autor, a não ser os de direito desenhado e correlatos. Claro: o ChatGPT dá de dez nesse universo. O ChatGPT pode até resolver o problema dessa senhora. Jornal do fim de semana entrevistou uma máquina. Então. Quando ligo o rádio e a TV ou navego pelas redes, fico pensando o campo fértil de mercado que terá o ChatGPT. Vai vender mais que farmácia. E isso faz a gente entrar em pânico. Em face do paradoxo: se vencermos construindo essas máquinas, mostramos, ao mesmo tempo, nosso profundo fracasso. Ao vencer, perdemos. A vitória é pírrica. Como chegamos a um ponto tão baixo na organização de nossas vidas sociais? O meu ponto fundamental, insistindo novamente no óbvio: não sou contra a tecnologia (quem seria?). A questão fulcral eu resumo em uma palavra: accountability. Um dever de prestar explicações. E esse é um dever público. Abrir mão disso é abrir mão exatamente de todos os princípios que levam as pessoas a pedirem tecnologia...! Autonomia, racionalidade, inteligência. O mundo precisa dos chatos para colocar um freio na empolgação. Cinco dias e o Robô já atingiu um milhão de usuários? Só peço um pouquinho de prudência na hora de fazer as coisas. Só isso. Atenção: se os trabalhos escolares e os textos jornalísticos tiverem uma repentina melhora, fujamos para as montanhas. O robô entrou em campo. Ele venceu e nós fracassamos. Paradoxalmente. E onde estará o menino do aeroporto?
2023-02-02T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-02/senso-incomum-inteligencia-artificial-menino-nunca-foi-visto-aeroporto
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Interesse Público
Inquietações sobre ensino jurídico e políticas públicas
Em texto primoroso publicado há duas semanas neste mesmo espaço, a professora Vanice Valle defendeu que a avaliação de políticas públicas, no início de uma nova gestão governamental, é premissa para a formulação de decisões de descontinuidade ou reformulação dessa mesma estratégia de enfrentamento de problemas públicos [1]. O texto tem vários méritos; dentre eles destaco a importância de se insurgir jurídica e politicamente contra a cultura de descontinuidade administrativa, como se cada novo gestor público estivesse inaugurando, com sua posse, um novo município ou uma nova estrutura qualquer da administração. Essa cultura possui forte relação com a visão de políticas públicas como se compostas de etapas autônomas, segmentadas, que devessem ser consideradas de forma isolada, e não em seu dinâmico ciclo total. Essa visão — que considero inadequada e ultrapassada — possui forte amparo na tradição de nosso ensino jurídico, notadamente no ensino do direito público. O imaginário popular que consagra a visão de um estudioso do direito isolado, soberbo e autorreferente talvez encontre guarida na formação jurídica tradicional que consagra uma ciência que possui como uma de suas pretensões a resolução de conflitos, mas que paradoxalmente se desenvolve muitas vezes longe dos fatos reais e também distante de outras áreas do conhecimento. A pretensão de transformar a realidade e cumprir as muitas promessas sociais feitas pela Constituição de 1988 exige, primeiro, que se conheça a realidade; que sejam identificados os problemas; que esses problemas sejam incorporados à agenda pública para que, então, seja planejada uma solução a ser implementada, monitorada e avaliada. No que se refere ao direito público, pensar com o mindset das políticas públicas é reconhecer que o trabalho do jurista é, talvez, o mais fácil — o mais difícil será compreender a dinâmica dos movimentos, os papéis dos diferentes atores e o grau de institucionalização necessário. Políticas públicas não se confundem com as normas que lhes dão suporte, tampouco têm nas leis os seus exclusivos instrumentos. Organização, planejamento, ação, acompanhamento, controle, aprendizado — palavras soltas que podem ser consideradas como etapas impostas ao Estado para desenvolver suas muitas atividades utilizando a regulação jurídico normativa, mas não se limitando a ela [2]. No que se refere ao ensino jurídico do direito público, a discussão teórico-conceitual sobre políticas públicas encontra obstáculos na tradicional organização curricular; em consequência, nesse particular a ciência jurídica se encontra relativamente atrasada com relação a muitas outras. Interdisciplinaridade, formação de um repertório próprio na graduação e na pós-graduação foram alguns dos desafios discutidos, na série de webinários realizados pela Faculdade de Direito da USP intitulado "Direito e Políticas públicas na sala de aula", sob a coordenação da professora Maria Paula Dallari Bucci, uma das pioneiras na identificação dos desafios e na percepção de sua relevância. Uma primeira conexão interdisciplinar necessária para a abordagem jurídica das políticas públicas pode ser visualizada na compreensão de categorias que estão "na moda", por assim dizer, em razão de sua relevância e de sua origem em outros campos: refiro-me às categorias accountability, governança e compliance. Outra conexão resulta de componentes que possuem natureza sócio-política, muito embora juridicamente regulados, e que demandam novas reflexões quando visualizados no contexto dinâmico das políticas públicas, a exemplo da discricionariedade, participação democrática, procedimentalização e dos instrumentos de deliberação e controle social. A consideração das políticas públicas como processo à disposição do Estado para realização de suas finalidades reacende a importância da discussão do ferramental disponível para consecução dos direitos fundamentais e dos objetivos da República. Como lidar, juridicamente, com os muitos compromissos do Estado social, com a existência de políticas de governo legitimadas pelo voto e ainda assim respeitar escolhas e prioridades alocativas que já foram feitas (como, por exemplo, a aplicação de um valor mínimo em educação)? Não existem respostas prontas. Nestas considerações é possível perceber a necessidade de enfocar a categoria políticas públicas de forma transversal para, no ensino jurídico, estruturar adequadamente os muitos pontos de contato entre as disciplinas tradicionais. Como exemplo, no Direito Constitucional é preciso compreender adequadamente a distribuição de competências legislativas e administrativas, direitos fundamentais e controle social; no Direito Administrativo há o necessário contato com o estudo dos agentes públicos, organização administrativa, vias técnico-jurídicas de atuação e atividades da administração pública; no Direito Financeiro e Direito Tributário, finalmente, é importante considerar o federalismo fiscal, tributos, renúncias de receitas, restrições fiscais e leis orçamentárias, dentre outros. Além disso, habilidades que já são objeto de atenção em outras ciências talvez já mereçam abordagem que incorpore elementos jurídicos: construção de consensos, articulação, comparação e avaliação de alternativas, prototipagem de projetos e soluções e modelagem jurídica institucional são exemplos que se encaixam em momentos variados do ciclo de políticas públicas. Como treinar habilidades diferentes no cumprimento de currículos tradicionais? O leitor e a leitora mais antigos talvez tenham se lembrado do saudoso Chacrinha, o Velho Guerreiro, quando dizia que "eu não vim para explicar; eu vim para confundir". Este texto é mais propriamente intuitivo e opinativo do que científico, e não pretendo, pelo menos por enquanto, apresentar respostas. Basta-me, por enquanto, compartilhar a inquietação de quem entende necessária alguma mudança para que tenhamos políticas públicas que contribuam para os objetivos do Estado Social, com um grau mínimo de institucionalização jurídica que lhes assegure eficiência, eficácia e aprendizado. [1] https://www.conjur.com.br/2023-jan-19/interesse-publico-avaliacao-politicas-publicas-marco-zero [2] As ideias deste parágrafo foram desenvolvidas na elaboração do prefácio da obra A ineficiência da execução fiscal no Estado de Goiás como situação-problema na abordagem direito e políticas públicas, de Raimundo Nonato Pereira Diniz, no prelo.
2023-02-02T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-02/interesse-publico-inquietacoes-ensino-juridico-politicas-publicas
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Limite Penal
No Processo Penal Combo, o exercício da ampla defesa é brinde
Redefinição das bases da persecução penal O modelo clássico de processo penal foi paulatinamente transformado entre os fins da década de 1980 e o começo da década de 1990, devido, sobretudo, a cinco fatores[1]. Primeiro: o caso penal antimáfia em face de 475 imputados. Esse processo, contra a máfia de Palermo (Cosa Nostra), foi chamado de maxi processo devido às proporções monumentais, com um bunker construído especialmente para a realização da audiência (vide o documentário aqui). Ao processo de 1989 seguiu-se a edição da Lei Antimáfia de 1992, com a introdução de procedimento pré-investigatório: a inchieste preparatorie — reputada, por Renzo Orlandi, uma reedição da inquisitio generalis[2]. Esse procedimento reinaugura a tática de persecução penal consistente na busca ativa por notitia criminis, rompendo com a investigação, pois, como se sabe, a notitia criminis precede à investigação. Trata-se, então, de atividade de inteligência – algo que produz desequilíbrio na investigação defensiva e no tratamento de dados[3] — que, não se confunde com a investigação. A atividade de Inteligência era posterior, mediante a consolidação do resultado das investigações regulares. Desde então, a partir de práticas oportunistas, a denominada Inteligência Policial passou a ser o espaço desprovido de regras e de controles efetivos, em que os alvos são investigados sem qualquer fato objetivo, consoante se verifica nos relatórios do fisco, das incursões digitais e correlações de bancos de dados que, em geral, permanecem submersas durante os procedimentos de superfície, conforme veremos na razão quinta. A herança é a restrição das condições quanto ao exercício da ampla defesa, diz Diogo Malan. Segundo: o aparecimento de Técnicas Especiais de Investigação[4] (Ties) e a expansão da criminalização dos atos preparatórios. Na Lei Antimáfia também foram introduzidas diversas técnicas de investigação, às quais atribuiu-se a natureza jurídica de "meios de investigação de fonte de prova", bem como receberam tratamento legislativo distinto aos crimes comuns de "associação de pessoas" com a finalidade de praticar crimes. A associação, considerada ato preparatório impunível na doutrina penal clássica, passou a ser, por si só, criminalizada, ainda que ausente qualquer crime efetivo. Essas duas inovações produziram um efeito abraçadeira na persecução penal: por um lado, antecipando a consumação do crime, e, por outro, antecipando a sua persecução. Em consequência, ainda que sem elementos concretos relacionados a condutas penais, proliferaram investigações por suposições quanto à possível organização criminosa. Entre a possibilidade e a probabilidade está a causa provável, excluída pelo baypass legislativo que autoriza investigar meras ilações ou suspeitas. Terceiro: a antecipação da investigação ganhou novos contornos também em países de common law com a fishing expedition, por meio da qual "pode-se invadir silenciosamente as bases de dados público-privadas e se 'pescar' conteúdos anteriormente submetidos à proteção dos Direitos Fundamentais". "Os artefatos tecnológicos conferiram meios de penetração (invasão) silenciosa, à sorrelfa, no que se pode chamar de 'deep investigation', depois de encontrado/pescado o dado apto a sustentar acusações, promove-se a sua aparente descoberta."[5] Embora a fishing expedition seja considerada inadmissível no Brasil (AgRg no RMS 62.562, RHC 83.447 e RHC 83.233 do STJ etc.), as provas podem ser "lavadas" [6] — não somente na colaboração premiada. Muitas vezes são trazidas como fruto de investigações policiais, informes obtidos em campo, dentre outras táticas de esquiva. Alexandre José Mendes e Alexandre Morais da Rosa denominam de "armas matemáticas de investigação em massa". Quarto: por meio da Lei 12.850/13 estabeleceu-se um conceito demasiado poroso de organização criminosa, o que permite a manipulação das premissas para a qualificação jurídica de quase todos os comportamentos como crime de associação e, como consequência jurídica imediata, possibilita o uso de Ties em inúmeros crimes em face dos quais esse meio de obtenção de fonte de prova não poderia ser utilizado. Dentre as Ties, duas merecem destaque pela amplitude das devassas, a infiltração de agentes via malware (o meio de efetivamente da medida mais restritivo aos direitos fundamentais e não previsto na legislação[7]), e, o acesso autorizado a aparelhos eletrônicos, mormente os designados pelo adjetivo “smart” (tampouco autorizado em lei[8]). Em suma, normas restritivas de direitos fundamentais resultantes tão somente de uma interpretação do texto legal contra o próprio texto (mutatis mutandis, depois da sociedade contra o Estado, de Pierre Clastres, temos um caso de intérpretes contra o texto). Quinto: a diferença entre inteligência e investigação é descartada, na medida em que a atividade de inteligência é agenciada à investigação[9], possibilitando uma passagem dos elementos produzidos de maneira preparatória — ou preventiva — para a investigação. Como as atividades de inteligência não têm regramento, os elementos são juntados posteriormente aos procedimentos investigatórios (IP, PIC etc.) como se tivessem sido encontrados somente durante a investigação. O efeito imediato dessa alimentação da investigação por meio da inteligência é a transformação do procedimento bifásico (fase preliminar + fase judicial) em procedimento trifásico (fase preventiva + fase preliminar + fase judicial). A fishing expedition é ocultada ou "requentada" posteriormente, além do que o uso do malware permite transformá-la em phishing expedition, uma expedição de pescaria com hacking tools. Da lavagem de provas, passamos à lavagem de dados ilícitos (data laundering), há algum tempo conhecida pelos profissionais de segurança da informação. No caso da persecução penal, essa lavagem se dá com a conversão de dados em informações (converter dado em informação é o objetivo das atividades de inteligência) chamadas de "relatórios". Luis Guilherme Vieira e Alexandre apresentaram textos demonstrando o ponto da questão (Veto a uso das Agências de Inteligência e Nulidade das Investigações). Eis o giro estrutural. Nascimento do Processo Penal Combo O surgimento do Processo Penal Combo ou Big Processo, de cariz inquisitório, é efeito de dois fatores distintos. Por um lado, com o aumento da capacidade de processamento de dados dos computadores e da redução dos custos, foi possível fazer funcionar a inteligência artificial e armazenar grandes volumes de dados (big data[10]). Por outro, o processo eletrônico permitiu a introdução de um volume cada vez maior de arquivos em um único processo. O big data abriu a possibilidade do processo eletrônico e o processo eletrônico transformou o big data. A simbiose é incessante, com o incremento do data lake disponível aos agentes do Estado, enquanto a defesa, em geral, pesquisa no Google, porque além de não dispor de meios de paridade de armas digital, sequer é informada, na maioria dos casos, da jornada de mineração de dados realizada durante a investigação e omitida quando do processo judicial. O maxi processo italiano, pouco a pouco, deu lugar ao Processo Penal Combo ou Big processo. Já não se trata da quantidade de acusados ou mesmo da quantidade de imputações, senão do volume processual. Não por acaso, uma das táticas procedimentais mais utilizadas na persecução penal tem sido o flood: inúmeros arquivos irrelevantes e/ou repetidos que tumultuam e dificultam a atuação processual, teses imprecisas e confusas, denúncias fatiadas, delações com corroboração cruzada (processo de enunciação tautológico), "extrações" de dados[11], etc. Sintomático que várias peças sejam pouco objetivas ou, ainda que objetivas, bastante extensas. Longe de explicar, buscam confundir e, com táticas de despiste, dificultar o isolamento da conduta criminosa, abraçada pela aparente densidade de denúncias imensas, prolixas e frágeis. Daí que o uso de big data na persecução penal, por si só, pode criar uma sensação de situação sem saída para os imputados. A seleção dos dados na produção das informações, com silenciamentos propositais da existência de elementos relevantes para a defesa, é estratégia conhecida. A falta de uma disclosure rule expressa é condição de possibilidade das manipulações (quem sabe seja necessário começar a deduzir uma regra implícita do artigo 5º, XXXIII, da CRFB c/c artigo 7º da Lei 12.527/11). A transformação de um Processo Penal Combo em um big processo inquisitório ainda está em andamento e precisa de maior atenção. Por um lado, há anos caminhamos para um enxugamento da instrução processual em detrimento do aprofundamento das investigações, conforme Aury Lopes Jr. adverte há muito[12]. Por outro, uma investigação exauriente é incompatível com a presunção de inocência, uma vez que o caso está tão repleto de informações que resta pouco a fazer em prol dos imputados. Como observou John Spencer, a impressão em países como a França e a Bélgica, é de que a culpa é presumida[13]. Isso é sintoma, como Jacinto Coutinho adverte incessantemente, do procedimento misto[14]. O possível efeito da fusão entre um Processo Penal Combo ou Big processo e uma investigação exauriente é que, devido ao volume excessivo de dados e de informações, automatize-se demais as funções das partes, de modo que algum julgador pouco atento para essas transformações se contente com um papel de juiz que simplesmente assina com o certificado digital (anteriormente, poderíamos chamar de juiz carimbador). Ademais, a defesa muitas vezes sequer dispõe dos meios para leitura e verificação da conformidade, isto é, da cadeia de custódia da prova ofertada, como apontam Geraldo Prado, Janaína Matida, Marcella Mascarenhas Nardelli e Rachel Herdy. A par das discussões quanto aos sistemas processuais, tão bem destacadas por Jacinto Coutinho, a questão é que as atividades antecedentes, de monitoramento constante, por meio de algoritmos de rastreamento (web crawling), extração (web scraping), análise e armazenamento em bancos de dados, especialmente de fontes abertas (Osint), aponta Rodrigo Oliveira Camargo, restringiu a função democrática do processo penal. A cortina digital torna irrelevante a discussão quanto à gestão da prova, justamente porque ela “já está” pronta para o consumo jurisdicional, sem que, em geral, exija-se a comprovação da cadeia de custódia do momento antecedente. Os acessos, em geral, deixam rastros, motivo pelo qual se poderia identificar eventual pescaria probatória e/ou manipulação da investigação. Por enquanto, diria Rui Cunha Martins, ainda é um "ponto cego". A propriedade ou licença de uso de um algoritmo pelo Judiciário, por exemplo, é suficiente para afirmar que a gestão da prova não é dada ao juiz? Jacinto Coutinho nos responderia que não — negativa com a qual concordamos. Mas a multiplicação de algoritmos para o desempenho de funções distintas torna não somente a resposta mais difícil, mas também a pergunta. O risco é que as polícias, o Ministério Público, a advocacia e defensoria utilizem tantos argumentos que já não se saiba mais de onde vieram, nem quem geriu a prova... No Processo Penal Combo as etapas se fundem, sem distinção dos momentos, dos pressupostos, dos requisitos e das condições do Devido Processo Legal. Por isso afirmarmos no título que no Processo Penal Combo, o exercício da defesa é somente o brinde. P.S. Parabéns Marcella Mascarenhas Nardelli, nossa colega de Limite Penal, pelo níver. [1] A primeira versão do tema foi apresentada por Luiz Eduardo Cani, com o título “Investigação ilimitada: novas tecnologias e o big processo inquisitório”, no evento Ciências Criminais: Novos Desafios - Etapa Sul, organizado pelo IBCCRIM e pela ESA/SC e realizado em 19 de setembro de 2022 (disponível aqui). O texto é fruto dos nossos mais de 4 anos de diálogos sobre direito e tecnologia. Depois das conversas havidas nos últimos meses, decidimos ampliar algumas discussões e escrever este artigo. Começamos pela redefinição do contexto e do título porque não há somente uma “investigação” ilimitada, mas da “persecução penal” ilimitada, com restrições graves ao exercício da ampla defesa. Isso se deve à multiplicação produzida entre dois fatores distintos, cada qual com características próprias, tratados no artigo.
2023-02-03T14:24-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-03/limite-penal-processo-penal-combo-exercicio-ampla-defesa-brinde
academia
Opinião
George Marmelstein: Como os gênios produzem
Quando comecei a me interessar pela ciência da alta performance cognitiva, procurei a entender a rotina dos grandes gênios da humanidade. Meu objetivo era seguir a máxima de Newton de "subir nos ombros dos gigantes" e tentar descobrir os segredos desses gênios. Afinal, como é que pessoas como Albert Einstein, Marie Curie e Charles Dickens conseguiram produzir tanto conhecimento de qualidade em tão curta vida? Qual caminho eles trilharam para alcançar resultados tão grandiosos? E será que nós próprios podemos aproveitar alguma estratégia que eles utilizaram para atingir um nível parecido? Compilei o resultado no livro "SuperAprendizagem: a ciência da alta performance cognitiva" e irei aqui apresentar um panorama geral e simplificado de algumas ideias lá desenvolvidas, deixando claro que o livro vai muito além disso. Para começar, um quadro bem ilustrativo, que sintetiza a rotina de 28 gênios de várias áreas: É possível notar alguns detalhes bem interessantes. Em primeiro lugar, embora exista uma predominância de trabalho intenso no período da manhã, o padrão de rotinas é bem variado. Alguns como Voltaire, Kant e Benjamin Franklin acordavam antes de 6h e reservavam uma parte considerável da manhã para a realização de trabalho intelectualmente intenso. Outros, como Vladimir Nabokov, Thomas Mann e Tchaikovsky acordavam um pouco mais tarde (por volta de 7-8h), começavam a trabalhar no meio da manhã e esticavam o expediente intelectual até as primeiras horas da tarde. Kafka, Flaubert e Picasso, por sua vez, começavam a trabalhar no final da tarde e só paravam de madrugada, reservando o período da manhã para o sono. Por fim, há os que fogem dos padrões tradicionais, como Mozart, que dormia menos de 5 horas por dia e usava momentos intercalados do dia para o trabalho criativo. Como se vê, não existe uma "rotina ideal" que se amolda a todas as pessoas indistintamente. Os gênios souberam encontrar o seu timing perfeito e organizaram suas rotinas de trabalho em função disso. Muitos deles evitaram se curvar à agenda imposta pela sociedade, preferindo seguir as suas particulares potencialidades biológicas, emocionais e cognitivas. Em outras palavras: eles montaram suas rotinas de acordo com suas características individuais (cronotipo), tentando extrair o melhor resultado possível dentro de uma limitada janela de tempo. Mesmo tendo rotinas variadas, quase todos adotavam rituais diários muito consistentes, que envolviam alguns horários pré-estabelecidos para o trabalho focado, intercalados com momentos de relaxamento, introspecção e reflexão. Parece aleatório, mas há lógica na loucura. Veja, por exemplo, a rotina de Charles Dickens, descrita no livro Daily Rituals, de Mason Currey: "Os horários de trabalho de Dickens eram invariáveis. Seu filho mais novo disse que 'nenhum funcionário público era mais metódico ou ordeiro do que ele; nenhuma atividade burocrática, monótona e convencional poderia ser realizada com mais pontualidade ou com mais regularidade do que ele dedicava ao seu trabalho de imaginação e fantasia'. Ele acordava às 7h, tomava café da manhã às 8h, se dirigia ao seu gabinete por volta de 9h. Ele permanecia lá até 14h, dando um rápido intervalo para almoçar com sua família, durante o qual ele frequentemente parecia estar em transe, comendo mecanicamente e mal falando uma palavra antes de voltar para a sua mesa. Em um dia ordinário, ele podia escrever cerca de 2.000 palavras, mas, durante um voo de imaginação, ele às vezes alcançava o dobro. Outros dias, contudo, ele dificilmente escrevia alguma coisa; mesmo assim, ele continuava com sua rotina diária sem falhar, rabiscando e olhando pela janela para passar o tempo. Prontamente às 14h, Dickens deixava sua mesa para uma vigorosa caminhada de 3 horas pelos campos ou pelas ruas de Londres, continuando a pensar em sua história e, como ele descreveu, "procurando por algumas imagens que eu queria construir". Após voltar para casa, nas palavras de seu cunhado, "ele parecia a personificação da energia, que parecia emanar de todos os poros como se tivesse um reservatório oculto". As noites de Dickens, contudo, eram relaxadas: ele jantava às 18h, e passava o restante da noite com sua família ou amigos antes de dormir à meia-noite." Como se vê, é uma rotina simples: quatro horas de deep work (trabalho focado), seguidas de algumas horas de shallow work (trabalho superficial) ou de pensamento em modo difuso (caminhadas e conversas com amigos), criando as condições necessárias para a maturação de ideias, intercaladas com várias horas de descanso efetivo (relaxamento noturno). Em muitos momentos, Dickens estava em estado de flow ("em transe", em "voos de imaginação"). O flow (ou fluxo) é uma condição mental que pode ocorrer quando se está tão concentrado e engajado na realização de uma determinada atividade que o consciente e o inconsciente passam a trabalhar juntos na mesma direção. Nesse estado mental, o cérebro costuma processar muito mais informações do que em situações de normalidade, apesar de, paradoxalmente, fazer menos esforço cognitivo. É como se o cérebro "desligasse" os setores da mente que não são relevantes para aquela atividade e canalizasse toda a energia para realizar a tarefa do modo mais eficiente possível. Nesses momentos, a pessoa está tão profundamente compenetrada na atividade que nem nota o mundo a sua volta e mal sente o tempo passar. É uma sensação que gera muita satisfação, motivação e crescimento intelectual. Esportistas, artistas e cientistas de alto nível experimentam essa sensação com frequência e percebem que, ao alcançarem esse estado, estão no caminho certo. Outro ponto fundamental é a inclusão de momentos de descanso durante o trabalho focado. Charles Darwin era bem metódico quanto a isso. Ele fracionava o seu trabalho focado em três ciclos diários de 90 minutos, intercalados com períodos de relaxamento mais longos, nos quais ele caminhava, realizava atividades mais leves e interagia com seus amigos e familiares. O curioso é que, cem anos após a morte de Darwin, descobriu-se que o ritmo circadiano do ser humano envolve ciclos de aproximadamente 90-120 minutos. Ou seja, em um ciclo de 90 minutos, a energia mental aumenta até atingir o seu pico e, logo em seguida, diminui para o seu ponto mais baixo. Daí porque as melhores estratégias para gestão do tempo sugerem a adoção de alguma versão da técnica pomodoro, aproveitando ao máximo esse sobe e desce da capacidade cognitiva. Outro ponto intrigante é que praticamente todos os gênios devotavam cerca de 4 horas por dia para o trabalho profundo, criativo e mais intenso, não mais do que isso. Muito provavelmente, se houvesse um esforço para extrapolar esse limite, teriam um colapso mental e dificilmente conseguiriam produzir com qualidade. E quando não estavam em modo focado, muitos deles utilizam estratégias de relaxamento para ativar um modo de pensamento que hoje é conhecido como modo difuso (em inglês: diffuse mode). O modo difuso é uma técnica para criar associações de ideias quando a mente está relaxada. Os gênios da humanidade têm consciência disso. Por isso, eles usam estratégias deliberadas para ativar o pensamento difuso. Alguns adotam o hábito da soneca durante o expediente. Outros preferem uma caminhada ao ar livre ou um passeio com o animal de estimação. Há quem goste de um banho mais demorado ou uma conversa entre amigos. Enfim, são muitos hábitos possíveis para estimular o pensamento difuso. Para que o modo difuso seja ativado, é necessário que exista uma pré-disposição mental para o processamento inconsciente da informação e um constante estado de alerta para captar a informação quando surge. O pintor Salvador Dalí, no seu livro 50 Segredos Mágicos para Pintar, ensinou um modo bem peculiar de colocar essa ideia em prática. Ele denominou a técnica de "dormindo com a chave". Basicamente, ele sentava em uma poltrona em estilo espanhol, inclinava a cabeça para trás e mantinha as costas relaxadas na parte de trás da cadeira. As mãos ficavam penduradas para o lado de fora da poltrona, completamente relaxadas. Em uma das mãos, Dalí segurava uma chave grande. No chão, logo abaixo da chave, ele colocava um prato de cabeça para baixo. Próximo à poltrona, ele já deixava uma tela em branco com os pincéis preparados para a pintura. E dormia... Quando o sono vinha, o corpo relaxava, o braço soltava a chave, que espatifava no prato, produzindo um barulho suficiente para acordá-lo justamente no estágio do sono em que os pensamentos estavam mais difusos. Com frequência, uma ideia para uma nova tela aparecia do nada e era só começar a pintar! É provável que Salvador Dalí tenha imitado essa técnica de Thomas Edison, que também costumava tirar cochilos frequentes em seu local de trabalho para encontrar a solução de problemas intelectuais. Ele lia um texto ou um problema científico que o intrigava e simplesmente tentava dormir segurando uma bola de ferro na mão. Quando a bola caía, Thomas Edison acordava e tentava registrar todas as ideias que haviam surgido naquele instante. Tanto Salvador Dalí quanto Thomas Edison estavam colhendo os frutos de um estado mental conhecido como hypnagogia, que é um estágio de transição entre a consciência (vigília) e a inconsciência (sono). Nesse estado de semiconsciência, em que a pessoa nem está totalmente dormindo nem acordada, as conexões neurais são muito mais difusas e, portanto, há muito mais associações de ideias sendo realizadas. Hoje, sabemos que a hypnagogia tem efeitos colaterais, como alucinações ou outros distúrbios mentais. Por isso, não é uma técnica recomendada. Porém, o mais importante é perceber o princípio que a sustenta. Se você analisar com atenção, nem Salvador Dalí, nem Thomas Edison acreditavam que o sono por si só seria capaz de gerar ideias geniais. Havia uma preparação prévia para estimular o modo difuso de pensamento. Antes de entrar no estado de hypnagogia, eles usavam o deep work para forçar a mente a pensar em um determinado ponto focal. Somente depois é que eles diminuíam o foco e deixavam o inconsciente realizar o seu trabalho, preparando-se para registrar as ideias assim que surgissem. Ou seja, eles plantavam uma ideia no cérebro, desligavam o foco intenso e esperavam o momento certo para colher os frutos produzidos pela mente. Graças a esse intercâmbio frequente entre o modo focado e o modo difuso, as ideias costumavam surgir com muito mais riqueza. O sono também é um catalisador do pensamento difuso. São muitas as histórias em torno disso. Por exemplo, Paul McCartney confessou ter escrito a música "Yesterday" durante um sonho. Ele acordou com a melodia na cabeça, sentou-se em seu piano e simplesmente tocou a música! A música "(I Can’t Get No) Satisfaction", dos Rolling Stones, tem uma história ainda mais curiosa. Keith Richards costumava dormir com um gravador ao lado da cama. Em uma certa manhã, ao acordar, notou que o gravador estava ligado. Quando apertou o play, os acordes da música estavam todos lá, inclusive o famoso riff da introdução. Ele havia composto e gravado a música durante a noite, apesar de não se lembrar de nada do que havia acontecido! Há várias histórias semelhantes no campo das descobertas científicas. Além da famosa história da maçã que levou Isaac Newton a desenvolver a lei da gravidade, Dmitri Mendeleiv afirmou ter encontrado a solução para organizar a primeira versão da tabela periódica de elementos químicos após uma noite de sono. Ele acordou e montou a tabela praticamente sem erros. Do mesmo modo, August Kekulé contou que resolveu a intricada fórmula estrutural do benzeno após sonhar com uma cobra mordendo a própria cauda. O sono também produz o efeito Zeigarnik, um fenômeno psicológico que nos leva a lembrar melhor de tarefas inacabadas ou interrompidas do que de tarefas concluídas. Ernest Hemingway desenvolveu um método bem sofisticado para tirar proveito do efeito Zeigarnik. Ele costumava finalizar a sessão de escrita bem no meio de uma frase, mesmo que soubesse o que escrever depois. No dia seguinte, relia o que havia escrito no dia anterior, melhorava a redação e continuava a escrever de onde parou. Essa interrupção deliberada forçava o cérebro querer terminar o que havia sido iniciado. Hemingway dizia: "o melhor jeito é sempre parar quando você está indo bem e sabe o que vai acontecer depois. Se você fizer isso, nunca vai empacar". Além do efeito motivacional, esse método tem o potencial de estimular o pensamento em modo difuso, criando novas associações de ideias até então não imaginadas. Nas palavras de Hemingway, "aprendi a nunca esvaziar o poço da escrita, mas a sempre parar quando ainda havia algo lá na parte mais profunda do poço e deixá-lo reabastecer à noite nas nascentes que o alimentavam". Como se vê, os gênios da humanidade usaram métodos inteligentes para produzirem com eficiência e qualidade. Eles não alcançaram a excelência com sacrifícios extenuantes, nem adotavam a máxima "no pain no gain". Muito menos praticavam técnicas obscuras de “leitura dinâmica” ou "fórmulas infalíveis de aprendizagem". Na verdade, eles aderiram a um sistema de vida eficiente, capaz de propiciar o constante aprimoramento pessoal. Os resultados frutificaram por conta de seus pequenos hábitos cultivados diariamente. E esse é um dos segredos da superaprendizagem. Não é preciso ter algum tipo especial de superpoder intelectual para se tornar um gênio. Todos somos gênios em potencial. Basta ter a capacidade de buscar a melhoria contínua em tudo o que podemos controlar. Para nossa sorte, essa capacidade já está pré-configurada em nossas mentes. Só precisamos dar uma forcinha para ativá-la. PS. Se quiser saber mais, vale a leitura do livro "SuperAprendizagem: a ciência da alta performance cognitiva" (clique aqui para adquirir) que se alicerça na ciência da formação de hábitos (James Clear), na gestão do tempo (Daniel Pink), na ciência do sono (Matthew Walker), e muitos outros. Os rituais diários dos grandes gênios foram descritos no livro "Daily Rituals", de Mason Currey.
2023-02-03T06:33-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-03/george-marmelstein-genios-produzem
academia
Opinião
Moreira e Lorenzoni: Democracia e direitos humanos
Ao contrário do que se possa imaginar, a empatia não é algo natural. Esse exercício de se projetar sobre um objeto externo e tentar se colocar no lugar do outro, considerar a dor do outro como válida, é uma "invenção" recente da modernidade. Não à toa, no texto da Declaração da Independência dos Estados Unidos de 1776, Thomas Jefferson escreve: "Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade". Perceba: não são mais apenas alguns homens que merecem viver em dignidade, como era divinamente preestabelecido na Idade Média, e sim, todos os homens (lembrando que, historicamente, utilizava-se a expressão "homem" no lugar de pessoa). Na mesma linha, após a Revolução Francesa, redigiu-se a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na qual se lê que todos os homens são livres e iguais em direitos. Mais uma vez, nenhuma menção às potestades anteriores (reis, nobreza e clérigos), eliminando-se (formalmente) todo privilégio ou inferioridade pautados no nascimento nessa ou naquela casta. Esse é o processo pelo qual se desencadeou a chamada "invenção" dos direitos humanos. Evoluiu-se humanística e intelectualmente a ponto de se reconhecer que não é aceitável um direito divino desde logo excludente e determinista. Evidentemente, essa não foi a solução de todos os problemas que sociedades complexas apresentam, mas, sem dúvida, tratou-se de um grande salto rumo a uma conformação social mais igualitária e fraterna. Igualitarismo e fraternidade que estão na base daquilo o que hoje chamamos de democracia. Não estamos falando aqui de democracia conforme se entendia na Antiguidade Clássica. Tratamos nesse texto da democracia contemporânea, cuja trajetória em muito se confunde com a da formulação e ampliação dos direitos humanos. Enquanto o Império da Lei se estabelece no Ocidente com as insurreições burguesas do Setecentos, o Estado Democrático de Direito é erigido como modelo após virem à tona as atrocidades promovidas no holocausto. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 é filha direta desses acontecimentos (e da necessidade de jamais repeti-los). Portanto, é necessário deixar assentado: não existe democracia sem direitos humanos. Essa é uma árdua construção histórica sobre a qual não cabem revisionismos. Dito isso, questiona-se: seria a democracia uma parcimoniosa tolerância com absolutamente tudo e todos? A resposta, com base na realidade material e concreta, só pode ser negativa. Nenhum regime de governo suporta integralmente tudo. E mais: nenhum agrupamento humano subsiste sem consensos mínimos. Se a política é a vida na pluralidade, a memória coletiva é ingrediente fundamental à construção de um ambiente comum estável. É claro que a interpretação de fatos pretéritos é variável, afinal, nem todos pensamos da mesma forma (ainda bem!). Não obstante, isso não significa que fenômenos sociais (a exemplo da democracia) não tenham uma instância de verificação de verdade — verdade essa que é prática social e histórica, como é a natureza desses fenômenos. O que a história revela é uma luta perene dos movimentos democráticos contra autoritarismos de diversas matizes, em distintos tempos e espaços. Dado essencial da democracia, portanto, é a defesa das liberdades individuais a duras penas conquistadas na aurora da modernidade. Liberdades essas condizentes com a interpretação humanística que essa "virada empática" estabelece. Recentemente, no Brasil, algumas pessoas têm, "em nome da democracia", tentado suprimir justamente as liberdades e as instituições que a viabilizam. Essa é uma circunstância, no mínimo, curiosa! Como se sabe, a democracia, em sua forma estatal, para que se consubstancie na prática, necessita de exercício de poder com divisão e harmonia, a fim de se evitar a sobreposição de uma instituição sobre outra e, por conseguinte, a consumação de um governo tirano. Estamos falando de um regime, consequentemente, comprometido desde seus fundamentos com a limitação e regulação do poder. É o que se verifica na prática social e histórica. Há muito a teoria da linguagem já explicou que chamar uma coisa por um determinado nome não altera o seu real conteúdo. No clássico literário Alice através do espelho, de Lewis Carroll, aparece o icônico personagem Humpty Dumpty. Essa figura pitoresca, em seu imaginário solipsista, acredita que as palavras têm o sentido que se lhes quer atribuir. Ele diz, por exemplo, que o objeto afivelado em torno de sua circunferência abdominal não se chama "cinto", e sim, atende pelo nome de "gravata" — o que, naturalmente, não muda o fato de se tratar de um cinto. O advento da democracia moderna não pôs fim ao Estado de Direito. Em verdade, o aprimorou. Logo, o Império da Lei ainda se encontra em plena vigência e deve ser aplicado a quem atenta contra os alicerces sobre os quais se calca a República Democrática brasileira. Democracia é controle institucional e popular de poder, o que, logicamente, dá espaço a críticas e à liberdade de expressão e manifestação. Isso não significa, no entanto, tolerar todo e qualquer empreendimento contrário ao poder democraticamente instituído. Toda organização social, todo regime político têm o seu ponto de inflexão, sua linha-limite que não pode ser ultrapassada, sob pena de o cinto, de fato, se tornar gravata (e vice-e-versa). A curvatura pode trocar de sinal e continuar sendo chamada pelo nome anterior, mas isso não altera a realidade de seu novo ângulo. Para não repetir erros do passado, é preciso conhecer. É preciso ter memória. Esse é um trabalho incansável e interminável de todos e todas. Não há que se retroceder quanto às conquistas civilizatórias nos âmbitos da saúde, educação, trabalho, enfim, no conjunto da vida. Ao contrário, há que se aperfeiçoar esse constructo coletivo em movimento que é o viver democrático. Estaríamos nós, com tanto excesso de presente na era da hiperdistração tiktokiana, incautos e desmemoriados, a confundir cintos com gravatas? Na hora da dúvida, ainda bem que ainda temos a Educação e a Ciência para nos nortear com critérios de verdade mínimos. Aí, sim, podemos formar nossas opiniões individuais enquanto homens e mulheres conscientes e intelectualmente emancipados. Ufa! Um alívio para a alma, para o coração e para a vida que deseja compartilhar a experiência na Terra com outras e diferentes vidas.
2023-02-04T11:39-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-04/moreirae-lorenzoni-invencao-democracia-direitos-humanos
academia
Diário de Classe
Espiando a democracia através do espelho trincado: será possível?
Alice estava sentada. Após folhear o álbum de retratos, parou e passou a olhar o horizonte, pensativa... O que cogitava essa menina tão criativa e inteligente? O que havia naquele álbum de retratos? Uma intensa curiosidade aflorou e fomos bisbilhotar. Qual não foi nossa surpresa ao ver uma gama de fotografias da história de um país onde os símbolos dos Poderes da República se viram absurdamente golpeados. Não acreditamos ou não quisemos ver o que estava por detrás do espelho. Mas Alice, em sua ingenuidade, estava a olhar o que não queria ter visto... o que ela pensou? Não sabemos ainda. Provavelmente, o caos, o nonsense. Na verdade, estávamos, novamente, no país das maravilhas, espaço do ilógico, do irracional e, sinceramente, não sabíamos quando e se conseguiríamos sair de lá... A passagem da história de Alice, de Lewis Carroll, aqui subvertida, serve para introduzir questões fundamentais no contexto atual da política brasileira: o que sucedeu em nosso país? Será que não aprendemos com as experiências passadas? Abortamos o papel das supremas cortes e dos tribunais na democracia hodierna? Será que podemos fazer de conta que o golpe de Estado tentado (e anunciado), no dia 8 de janeiro de 2023, não abalou a democracia do país? Ao realizar tais questionamentos, Alice, resolveu adentrar nesse novo mundo que se descortinou à sua frente. Nunca imaginou que teria que realizar tal enfrentamento: como viver no Brasil, como viver no país das maravilhas? Ela não sabia como fazer isso, apesar de o faz de conta fazer parte de sua vida. Todavia, vendo que não tinha alternativa, resolveu abraçar essa nova realidade. Para isso, decidiu descobrir, porque, apesar da consciência de que seria muito difícil fugir do país das maravilhas, tinha a certeza de que não ia desistir. Após sua decisão, Alice foi conversar com a Rainha Vermelha e o Rei Vermelho, pois queria saber como tudo começou. Precisava descobrir como funcionava a jurisdição brasileira. O monarca e a monarca explicaram que a jurisdição constitucional, no Brasil, acompanhava o sistema norte-americano, inovando para um sistema misto, que assenta o critério de controle difuso resguardado pelo fundamento de controle concentrado pela ação direta de inconstitucionalidade, congregando a ação de inconstitucionalidade por omissão. Portanto, a competência do Supremo Tribunal Federal está na matéria constitucional. Esclareceram que o STF não tinha competência exclusiva para o exercício da jurisdição constitucional, uma vez que o sistema está alicerçado no critério difuso, ou seja, qualquer tribunal ou juiz está autorizado a conhecer a prejudicial de inconstitucionalidade, por meio de exceção [1]. O STF "constitui-se, no sistema brasileiro, na corte constitucional por excelência, embora configurada segundo um modelo muito diferente das cortes constitucionais europeias. Ele é, em outras palavras, o guarda da Constituição [...]" [2]. Disseram que a aplicação do Direito precisa obedecer a uma teoria da decisão judicial. Há de se buscar a resposta correta, a partir da Crítica Hermenêutica do Direito, atendendo ao que está disposto na Constituição Federal[3] — foram estas as suas palavras. Após a explicação, a Rainha Vermelha se arrependeu do que disse, se enfureceu e gritou: – Chegaaaaa! Mais uma pergunta e vou mandar cortar-lhe a cabeça! Nada disso você precisa saber! Vamos manter tudo como está! Só me obedeça! Então, qual é o papel das supremas cortes e tribunais constitucionais?, pensou Alice. E logo lhe veio a resposta: – Fazer cumprir a Constituição. Ponto. Como assim ponto? Onde ficou este ponto? Questionou a si mesma em voz alta. Logo, apareceu a Lebre de Março que disse: – Espere um minuto, Alice. Para começar, pegue ali, na prateleira central da estante, a obra Verdade e Consenso, de Lenio Streck, e veja o que o autor diz. Pena que só temos a edição de 2017! Leia, em voz alta e em bom som, e sinta o teor do primeiro parágrafo da página 447, concentrando-se naquilo que o professor explica: "[...] a afirmação de que sempre existirá uma resposta constitucionalmente adequada – que, em face de um caso concreto, será a resposta correta (nem a melhor nem a única) — decorre do fato de que uma regra somente se mantém se estiver em conformidade com a Constituição, seja a partir de uma parametricidade stricto sensu, seja a partir de uma parametricidade decorrente da resolução de conflitos de princípios. Mesmo na mais 'simples' resolução de um 'caso fácil' estará presente o exame da adequação constitucional, porque todo ato interpretativo é ato de filtragem hermenêutico-constitucional" [4]. (grifo nosso) – Alice! – chama a atenção a Lebre de Março – Entendeu? Você precisa estudar Alice! Não posso lhe dar as respostas prontas. Você já conhece a consequência do que ocorreu (ou parte dela), precisa refletir sobre a causa! Entretanto, Alice queria saber mais e foi perguntar ao Coelho Branco qual era a causa de tamanho disparate que aconteceu no Palácio da Alvorada e na Suprema Corte? O Coelho Branco, muito perspicaz, mas sempre com muita pressa, disse: – Alice, a democracia está em risco. – Como assim, Coelho Branco? – perguntou Alice. Coelho Branco respondeu: – Pense na história, Alice! Pense nos anos 30 na Europa, e nos anos 70 na América Latina, só para exemplificar. Mas, eu não tenho tempo agora, preciso correr. Alice ficou desolada com a falta de atenção que o Coelho lhe dispensou, mas o Gato Cheshire estava no recinto e, como ouviu toda a conversa, Alice pediu: – Gato Cheshire! Sente aqui comigo! Você acha que a tentativa de golpe realmente aconteceu? Por que ingressamos em uma crise democrática? Gato Cheshire respondeu: – Alice – reflita – a democracia morre nas mãos de homens armados [5]. Você recorda que, no ano de 1973, em Santiago, no Chile [6], o presidente Allende realizou um pronunciamento nacional na busca da defesa da democracia que em nada resultou? O povo não foi às ruas, e Allende foi morto. Com isso, terminou a democracia chilena. Da mesma forma, nesse período da Guerra Fria, outros golpes de Estado ocasionaram ruínas democráticas na Argentina, Brasil, Gana, Grécia, Guatemala, Nigéria, Paquistão, Peru, República Dominicana, Tailândia, Turquia e Uruguai. Mas Alice, tenha cuidado, pois a democracia também pode acabar através de líderes eleitos [7], quando estes subvertem o próprio processo que os levou a governar [8]. Hitler é um exemplo disso. – Por favor, explique mais, Gato – diz Alice. Gato Cheshire continua: – Alice, você não se lembra do holocausto? Do que aconteceu na Alemanha? Alice respondeu: – Gato, não me ensinaram isso ainda. Me conte! – Assim..., explicou o Gato Cheshire – na Alemanha, após a Primeira Guerra Mundial, o Movimento Revolucionário Conservador ou Revolução Conservadora, que se caracterizou por sua oposição à República de Weimar, ao liberalismo e ao comunismo se viu dissolvido com a chegada do partido nazista ao poder. Aqui vale um parênteses, Schmitt ingressou no Partido Nacional Socialista Alemão dos Trabalhadores, a convite de Martin Heidegger, em 1 de maio de 1933. Em questão de dias, Schmitt apoiou o partido na queima de livros de autores judeus, alegrou-se com a queima de material "não alemão" e "anti-alemão", e pediu um expurgo muito mais extenso, para incluir obras de autores influenciados por ideias judaicas. Foi ele o responsável por apresentar suas teorias como fundamento ideológico da ditadura nazista e uma justificativa do Estado Führer em relação à filosofia jurídica, particularmente, através do conceito de auctoritas. Pergunta Alice: - Gato... o que nos interessa isso? Respondeu o Gato Cheshire: – Interessa, e muito, porque os fundamentos, para aqueles que defendem a barbárie que foi realizada, estão nas ideias de estruturação do judiciário apresentada por Schmitt. Aí está o busílis: quem deve ser o guardião da Constituição? Prossegue o Gato Cheshire: – Kelsen salienta que o Direito e a Política devem estar separados. Schmitt defende a soberania do líder, o decisionismo. Sustenta que o soberano é quem cria a lei e, assim, concentra a vontade democrática. Ainda, justifica que, por isso, não está subordinado a lei que ele mesmo criou. Ora, ora, qual a garantia que a sociedade pode esperar? Alice, rapidamente, responde: – Eu sei. Primeiro, não admitir um "estado de normas" e um "estado de medidas" ou de "estado de exceção" como havia se estabelecido no nazismo [9] e, segundo, atentar para que os atos dos juízes e agentes políticos estejam em conformidade com Constituição [10]. O Gato Cheshire respira fundo e diz: – Isso, Alice, você está entendendo! A Lagarta, que acompanhava toda a conversa, resolveu concluir o assunto: – Alice e Gato, a conversa está boa, mas vamos objetivar isso. Não quero viver no país das maravilhas e vocês só estão mostrando que isso será muito difícil. Estou muito nervosa! Isso parece um jogo de xadrez e precisamos que a democracia vença e que a corte suprema e os tribunais garantam os direitos fundamentais. Para isso, todos os poderes precisam ser respeitados e o sistema jurídico precisa estar aparelhado e funcionar bem, pois é a espinha dorsal de todas as sociedades e economias. Preservá-lo, portanto, parece uma prioridade óbvia! Será que entendem o que é óbvioooooo?! Alice pondera: – Mas como o direito é um instrumento nas mãos de criaturas inventivas e interpretadoras chamadas seres humanos, ele pode ser usado para promover objetivos muito diferentes, inclusive, opostos. A resposta está no respeito a Constituição Federal que apresenta as possibilidades e os limites do sistema jurídico e dos tribunais na proteção da democracia [11] e do Estado de direito. Portanto, o que precisamos compreender é que muito pouco se pode esperar das cortes e tribunais, quando assolados por um regime opressivo. Segue Alice, em uma verborragia infindável: – Ora, um judiciário operante é a espinha dorsal de um sistema legal funcional que, por sua vez, é um pilar importante de uma sociedade bem organizada. Quando é que vamos aprender que a imposição da força, a destruição não é o melhor caminho? Vamos fazer de conta que nada disso aconteceu é o que, talvez, eu pudesse dizer... só que não... não tem como esquecer o que aconteceu. Alice chora e, aos soluços, pede ao Gato Cheshire: "Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para ir embora daqui?" "Depende bastante de para onde quer ir", respondeu o Gato. "Não me importa muito para onde", disse Alice. "Então não importa o caminho que tome", disse o Gato. "Contanto que eu chegue a algum lugar", Alice acrescentou à guisa de explicação. "Oh, isso certamente vai conseguir", afirmou o Gato, "desde que ande o bastante" [12]. Esse último diálogo, excerto retirado da obra de Lewis Carroll, serve de mote, e também de metáfora, para ilustrar a necessidade de chegar a "algum lugar" na política brasileira; no caso em pauta, esse lugar é o da democracia. Para isso, precisamos "andar bastante", como diz o Gato Cheshire. Os acontecimentos trágicos de afronta às instituições democráticas no dia 8 de janeiro assim o demonstram. Portanto, o espelho trincado que embaça a realidade desses acontecimentos, interpretando-os como manifestações legítimas precisa ser quebrado, e isso pode (e deve) ocorrer através da ação de todos os brasileiros conscientes da importância das instituições num regime democrático, mas especialmente dos poderes da República, dentre eles, o Poder Judiciário.   Referências CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá. Tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. DINAMARCO, Cândido Rangel; BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do Processo. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2021. LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. E-book. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 44. ed. São Paulo: Malheiros, 2022. STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais do direito à luz da crítica hermenêutica do direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2017. ______. Hermenêutica e Jurisdição: Diálogos com Lenio Streck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017. ______. Verdade e consenso. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. VENEMA, Mark. Supreme Courts under nazi Occupation. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2022. [1] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 44. ed. São Paulo: Malheiros, 2022. P. 564. [2] DINAMARCO, Cândido Rangel; BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do Processo. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2021. P. 213. [3] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais do direito à luz da crítica hermenêutica do direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2017. PP. 253-254. [4] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. P. 447. [5] LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. E-book. Posição 143. [6] “[...] O Chile estivera tomado pela inquietação social, a crise econômica e a paralisia política. [...] Cf. LEVITSKY; ZIBLATT, 2018. E-book. Posição 138. [7] "O paradoxo trágico da via eleitoral para o autoritarismo é que os assassinos da democracia." Cf. LEVITSKY; ZIBLATT, 2018. E-book. Posição 227. [8] LEVITSKY; ZIBLATT, 2018, Posição 151. [9] Cf. VENEMA, Mark. Supreme Courts under nazi Occupation. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2022. P. 20. [10] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e Jurisdição: Diálogos com Lenio Streck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017. P. 98. [11] "As democracias funcionam melhor – e sobrevivem mais tempo – onde as constituições são reforçadas por normas democráticas não escritas. Duas normas básicas preservaram os freios e contrapesos dos Estados Unidos, a ponto de a tomarmos como naturais: a tolerância mútua, ou o entendimento de que partes concorrentes se aceitem umas às outras como rivais legítimas, e a contenção, ou a ideia de que os políticos devem ser comedidos ao fazerem uso de suas prerrogativas institucionais. Essas duas normas sustentaram os Estados Unidos durante a maior parte do século XX." Cf. LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. E-book. Posição 236. [12] CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá. Tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. PP. 76-77.
2023-02-04T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-04/diario-classe-espiando-democracia-atraves-espelho-trincado-possivel
academia
Observatório Constitucional
Presidencialismo brasileiro será fortalecido a partir deste ano?
Um dos aspectos mais interessantes do processo eleitoral de 2022 foi a instantânea transferência do poder presidencial, ocorrida logo após a proclamação do resultado do segundo turno das eleições para o cargo de presidente da República. O imediato retorno de Luiz Inácio Lula da Silva ao centro gravitacional da política no Brasil, assim como o seu sucesso em praticamente todas as batalhas políticas vivenciadas desde a vitória eleitoral, fizeram ressurgir no cenário nacional questões importantes sobre as atuais mutações das práticas governamentais e, dessa forma, do próprio funcionamento do sistema de governo presidencialista brasileiro. Após mais de dez anos protagonizados por figuras presidenciais notoriamente fracas perante as forças políticas congressuais, uma delas afastada por impeachment, será o presidencialismo brasileiro fortalecido a partir deste ano de 2023? Quais as implicações das atuais mudanças nas conhecidas discussões sobre a necessidade de alteração formal do sistema de governo e adoção de modelos semipresidencialistas? Em conhecido estudo sobre o funcionamento do sistema presidencialista de governo, Giovanni Sartori diagnosticou, com acurada precisão, que o problema dos presidencialismos da América Latina costuma resultar da dinâmica da separação dos poderes, que mantém uma perene e instável oscilação entre o abuso e a ausência do poder presidencial [1]. De fato, os presidentes latino-americanos acabam ficando marcados na história pela intensidade dos seus poderes em face de partidos e legislativos. Quando conseguem manejar grandes coalizões políticas de governo, exercem com plenitude todas as competências e prerrogativas que as Constituições lhes conferem, tornando-se figuras presidenciais extremamente fortes. Mas quando carecem de capacidade política para a negociação com partidos dominantes no Congresso, tornam-se reféns das forças de oposição e, não raro, sucumbem em processos de impeachment ou golpes de Estado. No Brasil, a intensidade da força política presidencial sempre esteve muito atrelada, além de outros fatores, à popularidade do presidente, que pelas próprias características culturais e sociais do país (neste aspecto não muito diferentes dos demais países latinos), é diretamente proporcional à quantidade de carisma que ele é capaz de cultivar e preservar perante camadas majoritárias da população. Altos níveis de popularidade permitem sustentar elevados graus de poder político e geram capacidade suficiente para formar e controlar coalizões partidárias necessárias para um governo sem sobressaltos. A popularidade presidencial, nesse sentido, está umbilicalmente conectada às características pessoais do presidente. O personalismo é um dos fatores mais marcantes do presidencialismo brasileiro. A popularidade e a respectiva força política presidencial sempre foram condicionadas, em grande medida, pelas diferentes personalidades daqueles que ocupam o cargo. Notórias figuras registradas na história brasileira como alguns dos presidentes mais populares, como Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Fernando Henrique Cardoso e o próprio Luiz Inácio Lula da Silva, conquistaram essas posições históricas, entre diversos outros fatores, muito devido às suas distintas personalidades, as quais os dotaram de carisma e capacidades políticas incontestáveis. Seus governos ficaram assim marcados historicamente como exemplos do presidencialismo forte no Brasil. Ao longo dos últimos dez anos, o cargo de presidente da República foi ocupado por personalidades despidas de grande carisma (amplamente majoritário) e, assim, carentes dos percentuais de popularidade suficientes para que seus governos fossem dotados da necessária capacidade de fazer impor os poderes presidenciais em face das forças políticas congressuais. Em rápido olhar retrospectivo sobre a última década da política brasileira, parece evidente que ela está caracterizada pelo desenvolvimento de um presidencialismo fraco, cuja instabilidade política pode hoje ser vista como um dos principais fatores para o ressurgimento das teses que defendem reformas do sistema de governo e, especialmente, a adoção de novos desenhos institucionais aproximados ao parlamentarismo ou ao semipresidencialismo. O retorno de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República, especialmente os fatos políticos que marcaram os processos eleitoral e de transição governamental de 2022, colocam no cenário político atual novas questões sobre o futuro próximo do presidencialismo brasileiro. Em um sistema de governo acostumado a funcionar condicionado às personalidades presidenciais, a volta de um notório líder carismático e popular, já historicamente reconhecido por sua capacidade política de manejar grandes coalizões congressuais, suscita a hipótese bastante plausível do retorno do presidencialismo forte no Brasil. Alguns indícios dessa tendência podem ser verificados no cenário político atual. Desde a sua eleição, Lula assumiu o centro do jogo político brasileiro e até o momento teve habilidade para vencer todos os difíceis obstáculos impostos ao seu governo. No dia seguinte ao resultado das urnas, o presidente eleito já havia sido reconhecido como tal pelos chefes do Legislativo (Senado e Câmara) e do Judiciário, por líderes das principais potencias mundiais, e na inegável condição de principal liderança política do país, iniciava negociações exitosas com os maiores partidos em torno do projeto de emenda à Constituição (a famosa PEC da Transição) [2] considerada crucial para o seu primeiro ano de governo, a qual, em menos de dois meses, seria aprovada com ampla maioria nas duas casas do Congresso Nacional, mesmo antes de sua posse no cargo presidencial. O silêncio e a ausência no espaço público do candidato à reeleição perdedor (naquele momento presidente ainda formalmente no cargo) contribuíram, além de outros diversos fatores, para que o processo formal da transição fosse convertido, na prática, em antecipada assunção ao poder do presidente eleito. Uma semana após a posse, o grande respaldo político-institucional ao novo governo tornou possível a sobrevivência à intentona bolsonarista e a rápida superação, com ainda mais poder, dos deploráveis acontecimentos do dia 8 de janeiro de 2023. Os episódios seguintes demonstraram um aparente sucesso na resolução das relações de poder com os comandos faz Forças Armadas, preservada a autoridade presidencial e de seu ministério da Defesa (de caráter civil) em face da cúpula militar. Mas as vitórias a todas as investidas contra o novo governo não teriam sido suficientes se não fossem acompanhadas da necessária formação de uma ampla coalizão parlamentar, crucial para o regular funcionamento do presidencialismo brasileiro. A eleição dos candidatos apoiados pelo governo às presidências do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, no último 1° de fevereiro, parecem assim ter configurado um quadro político favorável à governabilidade e à sustentação política do presidente da República. Apesar de não integrarem os partidos formadores do núcleo da base parlamentar do governo — neste ponto, ressalte-se que compromisso partidário e apoio parlamentar são distintos quanto à intensidade do pacto político que podem gerar —, os eleitos presidentes das casas legislativas deram mostras suficientes de que trabalharão para a governabilidade e a sustentação presidencial. O governo estará submetido a desafios diuturnos para manter esse apoio ao longo da legislatura, mas no momento há uma indicação de que o cenário político está preparado para a aprovação dos projetos governamentais, especialmente de emendas constitucionais para grandes reformas. Após a decisão do Supremo Tribunal Federal que declarou a inconstitucionalidade do denominado "orçamento secreto" [3], provavelmente haverá uma reconfiguração das relações de poder entre o Executivo e o Legislativo, com possíveis condições políticas favoráveis para a reassunção dos plenos poderes presidenciais na definição do orçamento, um instrumento importante para o controle da coalizão de governo. O provável fortalecimento dos poderes presidenciais no primeiro ano do governo poderá impactar os debates (especialmente os acadêmicos) sobre reformas do sistema presidencialista no Brasil. Se a instabilidade causada pelo fraco presidencialismo da última década instigou novas teses sobre a reformulação dos desenhos constitucionais do sistema governamental, é plausível supor que o desenvolvimento de um presidencialismo forte poderá novamente enfraquecer a discussão. Assim como o conturbado ano eleitoral de 2022 tornou necessário o congelamento das teses sobre o semipresidencialismo (como defendi em artigo publicado nesta coluna em abril daquele ano), o presidencialismo forte que poderá marcar o ano de 2023 suscitará novas reflexões teóricas em torno do tema e fará repensar sobre outros momentos oportunos para o revigoramento do debate. Em um cenário político de constantes ataques à democracia constitucional, é sensato pensar que atualmente não existem condições políticas propícias para um debate mais aprofundado sobre reformas constitucionais do sistema de governo no Brasil. O desenvolvimento de um presidencialismo forte pode ser atualmente importante para a estabilidade governamental, o regular funcionamento do sistema político e, portanto, a proteção do regime democrático em face de novas intentonas antidemocráticas. A resiliência das instituições tem sido fundamental para a preservação da democracia constitucional fundada em 1988. Nesse contexto, é possível vislumbrar que o fortalecimento do presidencialismo como sistema de governo pode contribuir para o robustecimento e defesa das instituições democráticas. As forças antagônicas ao presidente da República, porém, serão igualmente potentes e imporão muitos obstáculos à governabilidade. O fortalecimento do presidencialismo certamente enfrentará muitos desafios. Em 2023, o regular funcionamento do sistema político brasileiro permanecerá dependendo da resiliência das instituições democráticas. [1] SARTORI, Giovanni. Ingeniería constitucional comparada: una investigación de estructuras, incentivos y resultados. Trad. de Roberto Reyes Mazzoni. 3ª Ed. México: Fondo de Cultura Económica; 2003, p. 110. [2] Projeto de Emenda à Constituição nº 32, de 2022, aprovado e promulgado como Emenda Constitucional nº 126, de 2022. [3] A expressão foi criada para denominar a prática de emendas do próprio parlamentar relator do orçamento para inclusão de novas despesas ou programações no projeto de lei orçamentária da União, retirando poderes do Poder Executivo para essa definição orçamentária. STF-ADPFs nº 850, 851, 854 e 1.014, rel. min. Rosa Weber, julg. Em 19/12/2022.
2023-02-04T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-04/observatorio-constitucional-presidencialismo-brasileiro-fortalecido-2023
academia
Tribunal do Júri
Lei Maria da Penha e "assistência qualificada" no Tribunal do Júri
A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006 — LMP) é reconhecida por ser um dos estatutos mais avançados do mundo no combate à violência de gênero. Porém, a preocupação do legislador brasileiro foi não apenas a de punir o agressor, mas de igualmente criar uma política de maior extensão preocupada na prevenção e assistência à mulher. Nesse caminho, a assistência jurídica foi consagrada nos artigos 27 e 28 da LMP, estabelecendo que em "todos os atos processuais, cíveis e criminais, a mulher em situação de violência doméstica e familiar" deverá ser assistida por profissional do Direito (advogado constituído, nomeado ou defensor público): "Art. 27. Em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a mulher em situação de violência doméstica e familiar deverá estar acompanhada de advogado, ressalvado o previsto no art. 19 desta Lei. Art. 28. É garantido a toda mulher em situação de violência doméstica e familiar o acesso aos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita, nos termos da lei, em sede policial e judicial, mediante atendimento específico e humanizado." Dessarte: (1) toda mulher em situação de violência doméstica e familiar deve ser imediatamente cientificada a respeito dos seus direitos (LMP, artigo 9º), dentre eles, o direito à assistência judiciária, objetivando preservar a sua integridade física e psicológica; e, (2) preenchendo os requisitos legais e, sendo esse o seu desejo, terá acesso ao serviço da Defensoria Pública ou de assistência judiciária gratuita, o qual deverá ser prestado mediante atendimento específico e humanizado. Com isso, na fase processual, em todos os momentos em que sua presença se fizer necessária, a mulher deverá "estar acompanhada de advogado" (LMP, artigo 27), independentemente da sua condição econômica. Tal auxílio, contudo, guarda estreita relação com a orientação para o ato específico ao qual a mulher se fará presente, objetivando informar-lhe quanto ao seu conteúdo jurídico e finalidade, abrangendo seus direitos e obrigações. Uma primeira questão que pode surgir, especialmente nas comarcas de pequeno porte, é o que fazer quando verificada a inexistência — ou não comparecimento — de um profissional para a audiência? Nesse caso, entendemos que a ausência do profissional (advogado constituído, dativo ou defensor público) para acompanhar o depoimento da vítima não implicará no adiamento ou nulidade do ato processual. Primeiro, porque que a lei (LMP ou CPP) não disciplina qualquer regra a respeito do tema. Segundo, porque preservar e garantir os direitos da mulher é função articulada (LMP, artigo 9º, caput) de todos os sujeitos processuais, em especial, do magistrado e do membro do Ministério Público, os quais, inclusive, podem ser penalizados caso descumpram tal mister. Para tanto, basta voltarmos os olhos para o disposto nos artigos 201, §6º, 400-A, 474-A, do CPP e artigo 37 da LMP [1]. Assim, nada impede (na verdade, recomenda-se) que antes da sua oitiva, a vítima seja alertada quanto aos seus direitos (e obrigações) pelo magistrado, promotor de justiça, ou, ainda, por profissionais que realizam o atendimento especializado da mulher, salvaguardando-se a sua integridade física, psíquica e emocional, evitando-se uma possível revitimização com a realização de qualquer tipo de julgamento moral ou comportamental. Mas qual é a abrangência da atuação do profissional que deverá acompanhar a mulher e atuar mediante um atendimento específico e humanizado? No que consiste a chamada "assistência qualificada"? A questão ganha relevo no Tribunal do Júri, especialmente quando a LMP não dá os necessários contornos dessa forma de assistência jurídica. Preliminarmente, entendemos que o acompanhamento da mulher não implica na atuação automática e indiscriminada de um advogado ou defensor público para todos os demais atos processuais e, tampouco autoriza uma participação diversa da prévia orientação e acompanhamento do depoimento. Ou seja, resta vedado que tal profissional passe a inquirir a vítima (ou testemunhas/informantes), interrogar o acusado, juntar documentos, oferecer alegações finais, etc. Para tanto, faz-se necessária a formalização da atuação como assistente de acusação, a qual, sem prejuízo de posterior adequação, pode ser autorizada no mesmo ato, fazendo-se constar da ata da audiência. Agir de modo contrário é subverter as regras de regência do rito do júri, ou seja, o CPP. Se a intenção da LMP fosse a de criar uma nova figura processual para além da assistência de acusação, ou, quando menos, equiparar a assistência qualificada às prerrogativas de tal figura processual, teria assim previsto expressamente na própria lei, ou acrescentado regra própria no corpo do CPP. Uma interpretação ampliativa de tal figura ("assistência qualificada") coloca em risco outras regras e princípios, em especial, o devido processo legal, a paridade de armas e a plenitude de defesa. A atuação no rito do júri, em especial, no plenário, é regida por regras específicas que estipulam prazo para a habilitação (CPP, artigo 430), juntada de documentos (CPP, artigo 479), nulidades de plenário (CPP, artigo 478), dentre outras, que visam equilibrar o julgamento e precisam ser respeitadas. Tal entendimento em nenhum momento contribuiria para que a vítima restasse desamparada ou deixasse de ter a visibilidade que a lei lhe conferiu, pois, mesmo não possuindo recursos para contratar um advogado, nada impediria que a própria Defensoria Pública atuasse na qualidade de assistente da acusação: "RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA COMO ASSISTENTE DE ACUSAÇÃO: POSSIBILIDADE. DESNECESSIDADE DE NORMA REGULAMENTAR ESTADUAL AUTORIZANDO O EXERCÍCIO DE TAL FUNÇÃO. INEXISTÊNCIA DE EMPECILHO A QUE A DEFENSORIA REPRESENTE, NO MESMO PROCESSO, VÍTIMA E RÉU. DIREITO DE ACESSO UNIVERSAL À JUSTIÇA. 1. Nos termos do art. 4º, XV, da Lei Complementar 80/1994, é função da Defensoria Pública, entre outras, patrocinar ação penal privada e a subsidiária da pública. Sob esse prisma, mostra-se importante a tese recursal, pois, se a função acusatória não se contrapõe às atribuições institucionais da Defensoria Pública, o mesmo ocorre com o exercício da assistência à acusação. Precedentes. 2. "A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, notadamente pela defesa, em todos os graus de jurisdição, dos necessitados (art. 134 da CR). Essa essencialidade pode ser traduzida pela vocação, que lhe foi conferida pelo constituinte originário, de ser um agente de transformação social, seja pela redução das desigualdades sociais, seja na afirmação do Estado Democrático de Direito ou na efetividade dos direitos humanos, mostrando-se, outrossim, eficiente mecanismo de implementação do direito fundamental previsto art. 5º, LXXIV, da C.R" (RHC 092.877, relatora: ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, julgado em 18/4/2018, publicado no DJe de 23/4/2018). 3. Para bem se desincumbir desse importante papel de garantir o direito de acesso à Justiça aos que não têm como arcar com os custos de um processo judiciário, o legislador assegurou à Defensoria Pública um extenso rol de prerrogativas, direitos, garantias e deveres, de estatura constitucional (artigo 134, §§ 1º, 2º e 4º, da CR) e legal (artigos 370, § 4º, do Código de Processo Penal, 5º, § 5º, da Lei nº 1.060/1950, 4º, V, e 44, I, da Lei Complementar nº 80/1994), permeados diretamente por princípios que singularizam tal instituição. Assim sendo, ainda que não houvesse disposição regulamentar estadual autorizando expressamente a atuação da Defensoria Pública como assistente de acusação, tal autorização derivaria tanto da teoria dos poderes implícitos, quanto das normas legais e constitucionais já mencionadas, todas elas concebidas com o escopo de possibilitar o bom desempenho da função constitucional atribuída à Defensoria Pública. 4. Não existe empecilho a que a Defensoria Pública represente, concomitantemente, através de defensores distintos, vítimas de um delito, habilitadas no feito como assistentes de acusação, e réus no mesmo processo, pois tal atuação não configura conflito de interesses, assim como não configura conflito de interesses a atuação do Ministério Público no mesmo feito como parte e custos legis, podendo oferecer opiniões divergentes sobre a mesma causa. Se assim não fosse, a alternativa restante implicaria reconhecer que caberia à Defensoria Pública escolher entre vítimas e réus num mesmo processo os que por ela seriam representados, excluindo uns em detrimento de outros. Em tal situação, o resultado seria sempre o de vedação do acesso à Justiça a alguns, resultado que jamais se coadunaria com os princípios basilares de igualdade e isonomia entre cidadãos que norteiam a Constituição, inclusive na forma de direitos e garantias fundamentais (artigo 5º, caput, CF) que constituem cláusula pétrea (artigo 60, § 4º, IV da CF). 5. Recurso ordinário a que se dá provimento, para reconhecer o direito dos impetrantes de se habilitarem como assistentes da acusação na ação penal, no estado em que ela se encontrar" (RMS n. 45.793/SC, relator: ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, julgado em 7/6/2018, DJe de 15/6/2018) [2]. Cientes somos da existência de forte e embasado entendimento em sentido diverso [3], porém, compreendemos que não é admissível a atuação no plenário do Tribunal do Júri — espaço iluminado pela plenitude de defesa — sem a adequação à vestimenta adequada, ou seja, desuniformizada de uma das figuradas delimitadas pelo Código de Processo Penal, pois, tal agir, seria forjar um novo corpo sem prévia fixação de seus direitos e obrigações. Ademais, a inarredável proteção das vítimas não pode solapar, em desmedida proporção, os direitos do acusado e o fair trial. Voltemos os olhos para o que reza o Estatuto de Roma (artigo 68, 1 e 3) quando trata da bilateralidade de direitos: "1. O Tribunal adotará as medidas adequadas para garantir a segurança, o bem-estar físico e psicológico, a dignidade e a vida privada das vítimas e testemunhas. Para tal, o Tribunal levará em conta todos os fatores pertinentes, incluindo a idade, o gênero tal como definido no parágrafo 3º. do artigo 7º., e o estado de saúde, assim como a natureza do crime, em particular, mas não apenas quando este envolva elementos de agressão sexual, de violência relacionada com a pertença a um determinado gênero ou de violência contra crianças. O Procurador adotará estas medidas, nomeadamente durante o inquérito e o procedimento criminal. Tais medidas não poderão prejudicar nem ser incompatíveis com os direitos do acusado ou com a realização de um julgamento equitativo e imparcial. 3. Se os interesses pessoais das vítimas forem afetados, o Tribunal permitir-lhes-á que expressem as suas opiniões e preocupações em fase processual que entenda apropriada e por forma a não prejudicar os direitos do acusado nem a ser incompatível com estes ou com a realização de um julgamento equitativo e imparcial. Os representantes legais das vítimas poderão apresentar as referidas opiniões e preocupações quando o Tribunal o considerar oportuno e em conformidade com o Regulamento Processual." Assim, tal entendimento não possui qualquer função limitativa dos direitos da mulher, e sim o oposto. Ter a compreensão de que a mulher pode se fazer ouvir em plenário pelo meio e modo adequado, qual seja, mediante a figura de assistente de acusação é garantir que sua participação seja ampliada, possibilitando-se, por exemplo, a juntada de documentos aos autos, a inquirição das testemunhas, a sustentação em plenário em voz até mesmo dissonante do membro do Ministério Público, o retorno em réplica, a interposição de recurso, etc. Por outro lado, a presença pelo meio e modo inadequado pode acarretar dois grandes problemas: (1) a vedação da sua atuação em plenário pelo magistrado; e, (2) a possível anulação do julgamento pelas vias recursais, momento em que a grande prejudicada será a própria vítima diante do atraso na prestação jurisdicional e na possibilidade de que o acusado, estando preso, seja colocado em liberdade. A luta contra a violência estrutural é uma bandeira de todos, mas qualquer batalha, para ser legítima, deve ser feita dentro do campo de batalha e com o necessário respeito às regras. [1] Quanto ao dever de zelar para as vítimas tenham participação efetiva na fase da investigação e no processo, recordamos ainda da Resolução nº 234 de 18/10/2021 do CNMP. Não podemos esquecer, ainda, que o desrespeito à honra da mulher pode acarretar a nulidade do ato processual, nos termos do que restou decidido na ADPF 779/DF, e é função do magistrado evitar a prática de qualquer ato passível de gerar tal vício. [2] No mesmo sentido: AgRg no REsp nº 1.733.623/SC, relator: ministro Sebastião Reis Júnior, 6ª Turma, julgado em 4/9/2018, DJe de 17/9/2018. [3] O Colégio Nacional dos Defensores Públicos-Gerais (Condege) por meio de sua Comissão de Defesa dos Direitos das Mulheres, elaborou o seguinte enunciado a respeito do tema: "Enunciado VI – Considerando o art. 4º, inciso XI e XVIII, da Lei Complementar 80/1994, a atuação da Defensoria Pública na defesa da mulher em situação de violência doméstica e familiar, conforme os artigos 27 e 28 da Lei Maria da Penha, é plena e não se confunde com a assistência de acusação dos artigos 268 e seguintes do CPP".
2023-02-04T08:00-0300
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Opinião
Reis Friede: Democracias líquidas ou meramente formalizantes
A pseudodemocracia brasileira, alternativamente muito bem rotulada como democracia líquida, democracia de fachada ou mesmo democracia meramente formalizante — a exemplo de tantas outras latino-americanas —, também se caracteriza (em maior ou menor grau) pelo absoluto descompasso entre o direito formal, descrito, por vezes até de modo extenuante, nas inúmeras leis, consolidações, códigos e na própria Constituição, e o direito substancial (real e verdadeiro), efetivamente aplicado pelo Estado e, igualmente, entre os particulares, em suas relações privadas. Uma das maiores provas desse inconteste fato é facilmente constatada no reconhecido distanciamento entre os Princípios Gerais do Direito (expostos, através de formidáveis teorias, na legislação vertente) e a aplicação cotidiana dos mesmos. Por exemplo, afirma-se (descritivamente), com extrema veemência, em todos os textos legais (sem qualquer exceção), a máxima segundo a qual "todos são inocentes até que se prove a sua correspondente culpa". Todavia, na vida real brasileira — com especial destaque — opera-se justamente o oposto: "todos são presumivelmente culpados até que cada um possa comprovar, de modo inequívoco, a sua inocência". Essa assertiva é tão genuína que o próprio Ministério Público, muitas vezes de forma até mesmo induzida ou inconsciente, acredita que, se o réu não consegue provar sua inocência, resta evidente que ele é culpado. O próprio cidadão, bastante comumente (e por inequívoco vício cultural), atribui a prolação de uma sentença de absolvição, por falta de provas, como uma inconteste comprovação de incompetência dos órgãos investigativos e acusatórios que, no escopo deste contexto analítico, não souberam comprovar a evidente culpa do réu, posto que, para o senso comum, praticamente não existem inocentes. Neste sentido, resta sempre conclusivo para o conjunto da sociedade (em sua maioria) que todos são corruptos e os poucos inocentes (que, excepcionalmente, existem) o são apenas e tão somente pela correspondente falta de oportunidade de não terem se corrompido. E não se trata aqui de uma simples aplicação, invertida, do princípio epigrafado (reputado universal no mundo democrático) por parte tão somente do Estado, considerando que, mesmo em relações estritamente privadas (ou naquelas em que envolvem o cidadão e agentes públicos), a simples "palavra" do indivíduo brasileiro é absolutamente irrelevante, em função da imperiosa necessidade de apresentação de provas documentais, com o correspondente reconhecimento de firma (e todos os demais tipos de burocracias cartorárias redundantes) para que se possa, muitas vezes, apenas e tão somente, comprovar que o nome que você afirma ter é, de fato, o seu nome verdadeiro. Não é, portanto, sem razão que a falsificação, a corrupção e tantos outros métodos reativos à esta realidade se apresentam com grande constância (e mesmo veemência), considerando que, em muitos casos, é muito mais fácil apresentar um documento falsificado (que cumpre com mais rigor e precisão os regulamentos formais, aparentando, por consequência, ser dotada de maior credibilidade) do que um documento verdadeiro e oficial que muitas vezes, aos olhos da autoridade ou mesmo dos particulares, simula não ostentar a verdade retratada. Destarte, a aparência (e particularmente o excessivo formalismo cartorário) representa, para a cultura brasileira, algo (supreendentemente) muito mais importante do que a substância material e a verdade real. Em várias situações cotidianas, o burocrata verde e amarelo prefere — mesmo reconhecendo não se tratar de algo verdadeiro e crível — o documento que se apresenta dotado de todos os requisitos a que ele está obrigado a exigir, do que seu correspondente original, mesmo que este venha a simplesmente comprovar uma pseudo verdade, posto que a forma é, no Brasil (de forma singular), muito mais importante que a substância. O servidor público, de modo geral (até por imposição cultural), não está (sinceramente) preocupado (e os brasileiros de modo geral também não estão) com a verdade real e sim (e muito particularmente) com o cumprimento rigoroso dos inúmeros (e muitas vezes desconexos e ilógicos) regulamentos normativos, como se não entendesse que as leis (de modo geral) são constituídas para serem interpretadas dentro de seu contexto finalístico e não na literalidade estrita de seus comandos, edificando (e constantemente reafirmando), desta feita, a concepção organicista segundo a qual todos os cidadãos nacionais são pessoas completamente desprovidas de um mínimo de inteligência racional e, portanto, necessitam (em qualquer circunstância e de modo permanente) da tutela estatal.
2023-02-04T06:07-0300
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Opinião
Rezende Lima: Seletividade na atuação policial
Em meados de maio de 2022, o Brasil foi impactado com a notícia da morte de Genivaldo de Jesus Santos, 38 anos, após uma abordagem de policiais rodoviários federais em Umbaúba, no sul de Sergipe. A conduta policial foi filmada por muitos que estavam presentes na ocasião e gerou extrema indignação em decorrência do despreparo profissional para lidar com a situação e, principalmente, pela violação frontal a direitos humanos básicos. A face da brutalidade resta visível no caso em apreço, resultante da atuação deveras desequilibrada e inaceitável dos profissionais que deveriam conduzir o ocorrido da forma mais cordata possível. No fatídico dia 25 de maio do ano supracitado, Genivaldo foi abordado pelos agentes William de Barros Noia, Kleber Nascimento Freitas e Paulo Rodolpho Lima Nascimento por não usar capacete enquanto dirigia uma motocicleta. Com o condão de imobilizar Genivaldo, os policias o agrediram fisicamente, assim como o algemaram e amarraram os pés do referido, a despeito da plena consciência dos aludidos acerca da condição de deficiente mental do falecido. Em seguida, Genivaldo é levado para o porta-malas do carro da PRF (Polícia Rodoviária Federal), circunstância na qual os profissionais de segurança pública jogam gás e fecham o compartimento. Com isso, Genivaldo se debate com os pés fora do porta-malas, ao mesmo tempo em que os agentes pressionam a porta para impedir a sua saída. As cenas são reveladoras da desumanidade e despreparo no exercício profissional dos policiais, os quais explicitamente vilipendiaram direitos primordiais inseridos na Carta Magna e nos tratados de Direitos Humanos, o que ensejou imediata revolta e posicionamento da Organização das Nações Unidas sobre o fato, haja vista a necessidade precípua de serem procedidas as investigações sobre o caso e a punição cabível dos infratores. Apesar de a utilização de gás pimenta e lacrimogênio ser corriqueira entre as polícias, geralmente com o intuito de dissipar multidões, não pode ser feito em ambientes fechados ou por períodos prolongados em uma pessoa porque a sua utilização indevida pode ocasionar a morte do indivíduo. Consoante Portaria Interministerial nº 4.226, de 2010, o uso da força pelos agentes de segurança pública deverá se pautar nos documentos internacionais de proteção aos direitos humanos e deverá obedecer aos princípios da legalidade, necessidade, proporcionalidade, moderação e conveniência. Indubitavelmente, a utilização de spray de pimenta e gás lacrimogênio como instrumento de menor potencial ofensivo deve ser concretizado mediante a observância dos procedimentos elencados na legislação, com distância mínima, por períodos curtos e jamais em ambientes fechados, sob o risco de acarretar a morte do indivíduo. Para além dos aspectos técnicos, é imprescindível pontuar o déficit humanitário na atuação dos profissionais de segurança pública mencionados, o que também pode revelar uma tendência de desvalorização dos Direitos Humanos na formação desses agentes, tendo em vista que o Curso de Formação de Direitos Humanos e Integridade foi extinto para os recém ingressos na PRF, sendo a temática apenas discutida de maneira transversal. Obviamente, a instituição não pode ser maculada em virtude da atuação de alguns profissionais que extrapolam no exercício da função, mas não devemos, enquanto cidadãos, ignorar as possíveis repercussões de uma sociedade que relega a um segundo plano o estudo de Direitos Humanos, ainda mais quando isso pode incentivar a prática de condutas permeadas de requintes de crueldade, conforme ocorreu com Genivaldo. Consoante Artigo 5° da Declaração Universal de Direitos Humanos, "ninguém será submetido à tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes", exemplificando uma cláusula pétrea da humanidade através da oposição a qualquer ação ou omissão que ocasione a degradação do ser humano. No ordenamento jurídico brasileiro, o crime de tortura resta caracterizado quando há a submissão de alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo, de acordo com o Artigo 1°, inciso II, da Lei n° 9.455/1997, a seguir exposto: "Art. 1º Constitui crime de tortura: II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Pena - reclusão, de dois a oito anos." No caso da tortura cometida em detrimento de Genivaldo, é possível concluir que a estigmatização das pessoas mais pobres, principalmente negras, contribui para o acirramento da violência policial nas regiões assoladas pela miserabilidade social. Para entender como ocorre tal processo de estigmatização do indivíduo é necessário buscar aporte teórico na criminologia, ciência empírica que estuda o fenômeno e as causas da criminalidade, a personalidade do delinquente e a forma de ressocializá-lo. O pensamento criminológico centrado na reação social adotada pelo sistema prisional relativamente à conduta criminosa do preso é conhecido como labelling approach ou teoria do etiquetamento. Essa tendência de pensamento não possui como foco o crime e o criminoso, mas o sistema de controle social e a reação social advinda dele. É mister ressaltar que apenas nos anos 60 surge um caldo cultural rico o suficiente para propiciar o surgimento da teoria do etiquetamento ou, como alguns costumam chamar, da rotulação social (Shecaira, pág. 305). Esta teoria parte do pressuposto de que a intervenção da Justiça interfere na criminalidade, de modo que a prisão contribua de alguma forma para sua ocorrência. Com isso, é notório que a teoria em apreço foca na delinquência resultante do processo de estigmatização. O controle exercido pela esfera estatal é seletivo e discriminatório, de maneira que, se uma pessoa for considerada perigosa, serão tomadas atitudes desagradáveis em relação a ela. Essa estigmatização desencadeia a desviação secundária e as carreiras criminais. Em suma, para os teóricos do labelling approach a conduta desviante resulta de uma reação social. Segundo Howard Becker, em sua obra Outsider, a conduta desviante é originada pela sociedade. A desviação é criada através do estabelecimento de regras cuja infração consiste em desviação, sendo as referidas pessoas rotuladas de outsiders. A conduta desviante é aquela que é considerada perigosa a ponto de conduzir à imposição de sanções para coibir as pessoas que apresentem tal postura (Shecaira, pág. 309). É fato inconteste que a sociedade sempre estipula regras a serem seguidas por todos. Aqueles que as infringem são vistos como outsiders, um tipo social peculiar, alguém em quem não se pode confiar, que provavelmente não viverá em consonância com os valores do grupo. Assim, surge a noção de estigma, a qual é delimitada por Erving Goffman, em seu livro O Estigma. Para um ato ser ou não desviante, isso depende de como as pessoas reagem a ele. O desvio não é algo simples, mas é resultante do processo que envolve reações de outras pessoas ao comportamento. A reação é essencial para definir a conduta desviada, também sendo diferente a depender da pessoa que pratica a conduta. Assim, o ato desviado depende tanto da natureza do ato, quanto da reação das outras pessoas no que atine ao ato. Concretizada a conduta desviante, virá à tona uma reação social e, com ela, uma nova relação, mudando a identidade do sujeito perante a sociedade. Muitas vezes a prática de uma única conduta criminosa é o suficiente para que surja uma referência estigmatizante dessa pessoa (Schecaira, pág. 311). Diante desse preâmbulo à seara da criminologia, são cabíveis alguns questionamentos: De acordo com Kant de Lima (2001), o sistema de Justiça brasileiro existe para ser um mecanismo de controle de uma camada da população, a saber daquela desprovida de recursos financeiros e sociais. As instituições de Justiça promovem tratamento diferenciado aos indivíduos a depender da classe social em que estejam inseridos, de modo que as pessoas mais abastadas possuem condições de se defender adequadamente em um processo e de afugentar punições mais gravosas enquanto os mais pobres vivem de maneira temerosa em face da atuação dos agentes policiais e judiciais. Sem dúvidas, o sistema de Justiça é bastante influenciado por questões socioeconômicas para a rotulação de alguém como perigoso e também para a edificação da ideia de crime, haja vista a impossibilidade de os mais pobres lograrem êxito na garantia dos seus direitos da forma mais plena possível e de se beneficiar de recursos aptos a fornecer a segurança necessária a uma vida digna. Pelo contrário, essas pessoas invariavelmente estão sujeitas a ocorrências violentas e a supressão de direitos humanos básicos. A ação seletiva do sistema, a qual prioriza a pobreza, demonstra como a teoria da rotulação social possui respaldo na realidade fática, pois o crime pode ser produzido por intermédio da relação entre os agentes detentores de legitimidade para imputar a outrem a característica de desviante e os que não têm recursos socioeconômicos para defender seus direitos eficazmente. A hierarquia social, condicionada por fatores como idade, sexo, raça e condição social, constitui fator primordial para definir o perfil de alguns indivíduos como criminosos e representa a mola propulsora da atuação dos policiais e do Poder Judiciário. Pelo exposto, depreende-se que há uma nítida associação entre o crime e a pobreza, de modo que o Estado apresenta os indivíduos pobres como mais propensos ao crime, sobretudo por meio de mecanismos de poder e coerção. Segundo Campos Coelho (1980), as classes estigmatizadas possuem chances mais robustas de serem rotuladas pelos policiais em suas operações rotineiras de vigilância, inclusive os crimes contra o patrimônio praticados por indivíduos pertencentes às classes baixas são tratados com mais firmeza pelo sistema de justiça criminal. Assim, resta patente que o caso ocorrido com Genivaldo não é pontual e isolado como tentam transparecer, mas decorre de um tratamento diferenciado e seletivo dos atores policiais e judiciais no que concerne àqueles que não têm condições financeiras e sociais de se proteger devidamente, estando suscetíveis a rótulos e atuações extremamente violentas. Nessa senda, o pobre se torna o estereótipo do criminoso e principal alvo da polícia, ao contrário dos mais abastados, que, mesmo quando praticam crimes contra a administração pública e contra o sistema financeiro, são protegidos por uma redoma de vidro praticamente impenetrável. Os privilégios, capital social e econômico, status e consequente posição hierárquica superior os livra de serem expostos e de sofrerem violações contundentes de direitos humanos mínimos. A morte de Genivaldo escancarou uma dura e cruel realidade vigente no Brasil: a criminalização da pobreza, a desigualdade na atuação estatal de acordo com as condições socioeconômicas do indivíduo e a desumanização da pessoa quando destituída de dinheiro, status e poder suficientes para socorrê-la contra excessos estatais em prol da sua inerente dignidade humana. Ainda não transcorreu um ano do ocorrido, mas podem passar mais 1.000 e, mesmo assim, seremos impactados pelo sofrimento vivenciado por um homem negro, pobre e covardemente torturado e assassinado em virtude de apenas estar dirigindo sua motocicleta sem capacete. A desproporcionalidade da resposta estatal recebida à sua conduta é, na verdade, uma confirmação da seletividade do sistema e da incapacidade de alguns agentes estatais de lidarem com situações complexas sem incorrer em vilipêndio aos direitos humanos básicos. A marca deixada pela morte de Genivaldo é indelével e nos estimula a criticar, discordar, questionar e se opor às injustiças cotidianamente perpetradas, sobretudo em relação aos mais frágeis e vulneráveis.   REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁGICAS: BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 6 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2016. BECKER, Howard Saul. Outsiders: Estudos da Sociologia do Desvio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. CAMPOS COELHO, Edmundo. Sobre sociólogos, pobreza e crimes. Dados, Rio de Janeiro, v. 23, n. 3, 1980. KANT DE LIMA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: o dilema brasileiro do espaço público. In: GOMES, Laura Graziela; BARBOSA, Lívia; DRUMMOND, Augusto (Org.). O Brasil não é para principiantes. Rio de Janeiro: FGV, 2001. SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.
2023-02-05T13:08-0300
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Segunda Leitura
Na carreira jurídica, sonhos dos pais nem sempre são os dos filhos
Os pais, regra geral, querem o melhor para os seus filhos. E se tiveram sucesso em alguma profissão jurídica, desejam que os filhos a sigam e tenham uma vida confortável, inclusive melhor do que as suas. A regra será caminho aplainado, passagem segura e existência feliz. Algo de errado nisso? É proibido sonhar? Não, absolutamente não. É um sentimento natural do ser humano. Atrás dele estão pais e mães dedicados. Mas até onde vai o limite de tal desejo? Onde está a linha divisória, a partir da qual a vontade do criador passa a ser uma intromissão na individualidade da criatura? Esse tipo de drama familiar está sempre presente entre nós profissionais do Direito, ou operadores jurídicos como preferem alguns. A primeira vez que me dei conta desse drama foi em Roma, Itália, 2005. Conversávamos em uma roda de palestrantes de uma conferência internacional, quando um consagrado professor e advogado ambientalista mexicano contou a sua frustração por ter que se desfazer de sua rica biblioteca porque nenhum filho estudou Direito. Não criticava ninguém, apenas externava a sua frustração pessoal. Por óbvio, o seu legítimo sonho de ter um descendente seguindo seus passos não se realizaria nunca. Kalil Gibram, na obra O Profeta, afirma que filhos são como dardos que, uma vez lançados, fogem ao controle dos pais. Têm as suas vidas, seus sonhos, que podem ser em profissões totalmente diferentes. Ou, algumas vezes, sonho nenhum, simplesmente não sabem o que fazer de seu destino. Assim, em um primeiro momento é possível concluir que os sonhos dos pais nem sempre são os dos filhos. Exemplos. Aquela mãe promotora de Justiça, que sonha ver sua filha ingressando no MP, talvez chore muito quando ela, aos 15 anos, revelar-se uma influencer digital, com 20 mil seguidores, sem o menor interesse em ler os livros que lhe são recomendados. Aquele juiz que deu ao filho as melhores escolas e experiências possíveis, que comemorou o seu ingresso na melhor faculdade de Direito da região, poderá receber dele, com tristeza, a informação de que após a formatura irá percorrer o mundo por dois anos, com uma mochila nas costas. Adeus concurso. Mas, então, que fazer? A ação mais elementar é a de os pais se darem conta de que seu poder de influência existe, porém é — e deve ser — limitado. Partindo dessa premissa, não devem questionar-se, a respeito de darem ou não a sua opinião sobre as escolhas dos filhos. Não opinar, não participar, não questionar, pode parecer um grande respeito à individualidade do outro, mas na verdade é um ato de comodismo e covardia. Se assim é, aos pais cabe manter uma posição de equilíbrio, sem impaciência ou alteração de voz, diante das mais imprevistas situações que possam surgir. Como reagir diante do filho, que cursa o quarto ano de Direito, ao avisar os pais de que pretender largar a faculdade para abrir um bar com um amigo, onde, ao seu dizer, ganhará muito dinheiro. O melhor a fazer é concordar que o bar pode ser o paraíso em vida, mas insistir, com delicada obstinação, que ele conclua o seu curso. Argumento: conhecer as leis poderá ajudá-lo no próprio negócio. Em outras situações a experiência fora do Direto pode ser aproveitada. Suponha-se que o filho tentou ser jogador de futebol e, após uma tentativa no Brasil e duas no exterior, voltou para casa desiludido e com os bolsos vazios. Os pais podem orientá-lo e continuar o curso de Direito interrompido, ou começá-lo, dedicando-se ao Direito Esportivo, que cresce a cada dia e movimenta milhões de dólares, aproveitando a experiência colhida na prática do futebol. Entre os que cursam Direito, um reduzido percentual, quiçá em torno de 10%, sabe exatamente qual profissão deseja seguir. Nesses casos a posição dos pais será mais fácil. Devem estimulá-los, mesmo que pensem não ser aquela a melhor opção. Devem, todavia, lembrar, ainda que sem desanimar, as dificuldade de algumas profissões. Disso o melhor exemplo é o da polícia, que atrai muito os jovens. Entre a pressão de acusados, por vezes ameaçadoras, e do Ministério Público a ver prevaricação nas suas condutas, tudo acompanhado de pouco reconhecimento de uma sociedade que não valoriza adequadamente os seus serviços. Por vezes o filho tem brilho incomum e quer ir além da conquista dos pais. Imagine-se a mãe advogada que tem um bom escritório empresarial em uma cidade rica de porte médio. É claro que desde a aprovação da filha no vestibular ela sonha com a possibilidade de trabalharem juntas cinco anos depois. Todavia, a estudante quer mais. Fala dois idiomas, só tira notas máximas, participa de atividades sociais e é respeitada pelos professores. Sonha em fazer uma pós-graduação na Inglaterra e dedicar-se à advocacia em um grande escritório, na área internacional. Isso significa residir no exterior ou, se ficar o Brasil, mudar para São Paulo. Cabe à mãe, ainda que com um aperto no coração, dar à filha todo o apoio de que disponha, ciente de que os sonhos dela vão além dos limites do município. No outro lado da moeda, a maioria dos estudantes, mesmo ao fim do curso, não sabe que destino tomar. Nessa hipótese, cabe aos pais abrir o diálogo. Aí um cuidado especial deve ser tomado, qual seja, não expor a própria opinião. Apenas deixar claro as vantagens dessa ou daquela profissão. Mas as possibilidades de sucesso nas profissões expostas devem ser vistas dentro de um contexto maior, que é a personalidade do filho. Introvertido ou extrovertido, intelectual ou prático, bem ou mal relacionado, quociente de inteligência alto ou baixo, ambicioso ou não, culto ou despreparado e assim por diante. Neste particular não devem os pais sonhar além dos limites dos filhos. Não convém desejar demais se o filho não tem as condições necessárias. Se ele no estudo do inglês não passou da escola do bairro e não conseguiu aprovação no Cambridge FCE, não adianta estimulá-lo a fazer um concurso para a carreira diplomática, pois não vai dar certo. Em outras palavras, sim, os pais devem conversar, orientar e dar o estímulo (se lhes for permitido), contudo tudo isso deve ser feito de acordo com as possibilidades do descendente. Por vezes, passada a euforia pós-formatura, frustradas duas tentativas do filho de abrir um escritório de advocacia ou três em concursos públicos mais difíceis, que fazer? Bem, nessa situação, há que se adequar os sonhos à realidade. Porque não estimular um concurso público mais básico? Há excelentes carreiras jurídicas de nível técnico, remuneradas acima do mercado de trabalho, que possibilitam uma vida confortável. Por exemplo, técnico judiciário da Justiça do Trabalho ou policial judicial dos tribunais. Mas pode acontecer que o sonho do filho seja , simplesmente, o de não atuar em nenhuma área do Direito. Nessa hipótese, cabe aos pais estimulá-lo a bem exercer a profissão escolhida. Fotografia, música, teatro, esporte, influencer digital, técnico de informática ou seja lá o que for, o importante é que ele seja bom e feliz na sua opção de vida. Claro que daí a ajuda dos pais será mínima. Mas a escolha foi dele, o que dispensa comentários. Em casos extremos, há os filhos que simplesmente não têm sonho algum. Nem no Direito e nem fora do Direito. Vão passando de uma faculdade a outra e percorrendo todas as baladas da região. Chegam aos 30 anos, avançam em direção aos 40, e nada. Não me parece bom os pais sustentarem tal tipo de conduta. Gostem ou não, terão que ter pulso e definir condições. Se necessário, com ajuda de profissional da psicologia. O filho pode não ter sonho algum, mas precisa saber que deve cuidar de seu próprio sustento. Se não quer lutar por nada, que exerça alguma atividade menos relevante para a qual ninguém é vocacionado. Mas deve assumir a responsabilidade. Em suma, o tema é tentador e complexo, sendo que a única certeza é a da incerteza. Se boas escolas e exemplos fossem suficientes, os filhos de milionários, após cursar escolas internacionais, deslanchariam para posições de grande destaque. Mas não é isso o que acontece. Na verdade, não há uma receita certa. O que há é a vontade de acertar, o diálogo amigo e franco, e a tomada firme de posição, quando necessário.
2023-02-05T08:00-0300
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Direito Civil atual
Veto presidencial ao PL 3.401/08 deve ser mantido pelo Congresso
Após longos anos de tramitação, o Projeto de Lei (PL) nº 3.401/2008, apresentado, na época, com a finalidade de disciplinar o procedimento judicial para a desconsideração da personalidade jurídica, foi vetado integralmente pela Presidência da República, em 14 de dezembro de 2022. Entre as motivações, há de se destacar a inconstitucionalidade e contrariedade ao interesse público, considerando existir regulamentação própria sobre a matéria nos artigos 134 a 137 do Código de Processo Civil e artigo 50 do Código Civil. O veto ocorreu após várias manifestações da comunidade jurídica, baseadas em diversas questões que serão suscitadas abaixo, principalmente no que concerne à contrariedade e falta de adequação à realidade legal e normativa, o que envolve os dispositivos atualmente em vigor e os julgamentos acerca do tema. Atualmente, o PL, apresentado em 13 de maio de 2008 pelo deputado Bruno Araújo, após longos anos de tramitação, encontra-se aguardando a apreciação do veto na Mesa Diretora da Câmara dos Deputados. Para elucidar os pontos controvertidos deste PL, cabe explicar, de forma breve, que a desconsideração da personalidade jurídica, com origem no direito anglo-americano (a partir do case Salomon versus Salomon & Company Ltd.), visa coibir o abuso da personalidade jurídica. Esta doutrina, também conhecida como "disregard of legal entity", busca revelar o propósito real que a pessoa jurídica encobre, a fim de responsabilizar o seu controlador pelos atos que importem em abuso de direito[1]; posto que (na feliz expressão de Otávio Luiz Rodrigues Jr e Rodrigo Xavier Leonardo): "a fórmula jurídica da personificação, destituída de realidade institucional, seria um mero subterfúgio para a prática de atos ilícitos".[2] As pessoas físicas ou jurídicas são criações do direito, visto que é o sistema jurídico que atribui direitos, deveres, pretensões, obrigações, ações e exceções a entes humanos ou entidades por eles criadas[3]. Destarte, ao atribuir personalidade jurídica a determinadas entidades, a lei as confere uma existência jurídica própria e independente das pessoas que a integram, de modo que "ser pessoa jurídica é ser capaz de direitos e deveres separadamente, isto é, distinguidos o seu patrimônio e os patrimônios dos que a compõem ou dirigem"[4]. A separação entre a pessoa jurídica e as pessoas que a integram tem como reflexo a autonomia patrimonial, compreensão segundo a qual o patrimônio da pessoa jurídica e o patrimônio dos seus integrantes não se confundem, de modo que a pessoa jurídica será dotada de patrimônio jurídico próprio, tanto moral quanto econômico, capaz de responder por suas próprias obrigações. Ademais, como já foi pontuado por Otávio Luiz Rodrigues Jr e Rodrigo Xavier Leonardo, o Estado termina por outorgar benefícios tributários para o desenvolvimento de uma série de atividades por pessoas jurídicas, de modo que a promoção de tais atividades "é menos oneroso se praticado por intermédio de pessoa jurídica". "Em síntese: pagam-se menos tributos por se contratar como pessoa jurídica".[5] Essa técnica é importante para a propulsão da atividade econômica, sendo ainda mais significativa quando somada com a limitação da responsabilidade, tendo em vista que, com exceção de alguns tipos societários, como as sociedades em comandita simples e as sociedades em nome coletivo, via de regra, o patrimônio dos integrantes da pessoa jurídica não respondem por atos por ela praticados. Contudo, em algumas situações, a separação patrimonial pode ser utilizada como um escudo protetor para práticas abusivas e lesivas em face de terceiros. Em razão disso, foi desenvolvida a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, como uma forma de excepcionar a regra geral de separação entre a pessoa jurídica e as pessoas dos seus integrantes. Para tanto, é indispensável o preenchimento dos requisitos previstos em lei, que variam, em nosso ordenamento, conforme a natureza da relação jurídica que fundamenta o pedido de desconsideração (se empresarial ou consumerista, por exemplo). Existe um regime geral, previsto no artigo 50, do Código Civil, que exige a prévia comprovação do abuso de personalidade, caracterizado pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial, conhecido como teoria maior da desconsideração da personalidade. Por outro lado, há também um regime especial, a teoria menor da desconsideração da personalidade, com requisitos mais flexíveis, acolhido na legislação consumeirista, trabalhista e de crimes ambientais. Para que haja a desconsideração nessas hipóteses, basta que a personalidade, de alguma forma, funcione como obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados aos credores[6]. Embora os requisitos materiais para a desconsideração da personalidade jurídica tenham sido positivados em nosso ordenamento jurídico, durante muito tempo não havia, entre nós, a regulamentação do procedimento necessário à aplicação do instituto, situação que trazia evidente insegurança jurídica. Isso porque o Código de Processo Civil de 1973 não previa os requisitos processuais para a desconsideração da personalidade. Foi nesse contexto que foi apresentado o PL de Lei nº 3.041 de 2008, buscando disciplinar "o procedimento de declaração judicial de desconsideração da personalidade jurídica". A justificativa ao PL apresentada pelo deputado Bruno Araújo evidencia a intenção de disciplinar o procedimento para a desconsideração da personalidade, uma vez que, segundo o autor da iniciativa, "a falta de um rito procedimental que assegure o exercício do contraditório, tem ocasionado uma aplicação desmesurada e inapropriada da Disregard Doctrine". Da justificativa do PL, também é possível depreender que as regras estabelecidas pretendiam se limitar ao direito processual, "sem qualquer abordagem de cunho material ou substantivo"[7]. Considerando a época em que foi apresentado, o PL, apesar das imprecisões conceituais, tinha uma finalidade oportuna. Mas, atualmente, o projeto de lei não se revela mais pertinente, vez que, durante os longos anos de sua tramitação, as alterações pretendidas foram supridas, com muito mais acuidade técnica, por legislações supervenientes. O Código de Processo Civil de 2015, supriu a lacuna deixada por seu antecessor e regulamentou o incidente de desconsideração da personalidade jurídica como modalidade de intervenção de terceiros, assegurando o contraditório e a ampla defesa como originalmente pretendido pelo PL nº 3.041 de 2008. Ademais, durante a tramitação do PL, também foi promulgada a Lei de Liberdade Econômica endurecendo os requisitos materiais para a desconsideração da personalidade jurídica e amadurecendo a matéria no ordenamento brasileiro. Neste ponto, a referida legislação, além de esclarecer os conceitos de desvio de finalidade e confusão patrimonial, também consagrou expressamente o princípio da autonomia patrimonial, ao prescrever que "a pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores". Apesar de todo o amadurecimento legislativo em matéria de desconsideração da personalidade jurídica, após 14 anos de tramitação legislativa, o PL nº 3.041 de 2008 retornou a pauta do Congresso ignorando as modificações supervenientes a respeito da matéria. Além do anacronismo, o PL, se aprovado, provocará um efeito contrário ao que originalmente se propôs, ao criar uma situação de antinomia com as legislações que atualmente regulam a matéria, consolidar imprecisões conceituais e agravar a situação de insegurança jurídica. Vejamos alguns exemplos. O artigo 2º do PL cria um ônus processual específico para a parte que postula a desconsideração da personalidade jurídica ou a responsabilidade pessoal de membros, instituidores, sócios ou administradores, ao impor a necessidade de indicar objetivamente os atos por eles praticados que ensejariam a respectiva responsabilização. No âmbito da teoria maior, em que o abuso de personalidade é condição necessária para a desconsideração, a previsão, de fato, se justifica. Contudo, este não é o caso da teoria menor, pois, neste caso, a desconsideração se opera com a simples comprovação de que a personalidade é obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos ocasionados pela pessoa jurídica. Dessa forma, caso não seja mantido o veto, a proposta inviabilizará a utilização do instituto nas searas ambiental, trabalhista e consumerista. Muito mais apropriada, nesse contexto, a previsão estipulada no §4º, do artigo 134, do Código de Processo Civil, ao dispor que "o requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica", permitindo que o requerente justifique os requisitos à luz da teoria aplicável ao caso, sejam eles atinentes à teoria menor ou maior. O artigo subsequente também cria algumas incompatibilidades com a legislação vigente. Ao exigir, obrigatoriamente, a instauração de um incidente em autos apartados, ignora a autorização contida no §2º, do artigo 134, do Código de Processo Civil, no sentido de que a desconsideração da personalidade jurídica poderá ser requerida na petição inicial, hipótese em que será dispensada a instauração do incidente processual. Além disso, como bem observado em nota do Instituto Brasileiro de Direito Processual sobre o PL em questão, o artigo "contém imprecisão no texto por assumir que o polo passivo do incidente será formado apenas por pessoa física, ao passo que a desconsideração poderá alcançar eventualmente outra pessoa jurídica"[8]. De fato, a doutrina amadureceu para reconhecer não somente a forma direta da desconsideração da personalidade jurídica, como também as formas de desconsideração classificadas como inversa, indireta e expansiva. Outra questão diz respeito à redação do §2º, do artigo 5º, do PL, ao consagrar que "a mera inexistência ou insuficiência de patrimônio para o pagamento de obrigações contraídas pela pessoa jurídica não autoriza a desconsideração da personalidade jurídica, quando ausentes os pressupostos legais". Mais uma vez, a norma ignora a teoria menor; vez que permite a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica quando se constata, p. ex., a ausência de patrimônio titularizado pela pessoa jurídica capaz de suportar a obrigação assumida, conforme já consolidado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça[9]. Destarte, é possível constatar que todas as modificações envolvendo a matéria foram ignoradas na redação final do PL. Não por acaso, durante a sua tramitação na Câmara, só foram propostas quatro emendas, todas com a finalidade de explicitar a necessidade de prévia decisão judicial para permitir a desconsideração da personalidade jurídica na via administrativa. A única menção ao anteprojeto que viria a resultar no Código de Processo Civil foi a sugestão da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania para modificar o prazo de defesa, uniformizando de dez para quinze dias[10]. Dentre os pontos suscitados no veto, vale destacar que a criação de hipótese de intervenção obrigatória  do Ministério Público ensejaria ainda mais lentidão na tramitação processual; e que a indicação objetiva dos atos que foram cometidos, por quem alega, alteraria integralmente a sistemática legal estabelecida no CDC, atribuindo ao consumidor o ônus integral da prova. Todos os fatos acima expostos nos levam a endossar a necessidade de manutenção do veto presidencial à proposição legislativa. O tempo percorrido entre sua propositura, votação e, por último, o acertado veto presidencial demonstram as contrariedades e a falta de adequação à nova realidade legal, confirmando a sua desnecessidade e a potencial insegurança jurídica que poderia causar por desconsiderar a normatização já estabelecida após a vigência da lei processual civil e da Lei da Liberdade Econômica. *Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM). [1] LÔBO, Paulo. Direito Civil: Parte Geral. 6 Ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 185. [2] RODRIGUES JR, Otávio Luiz; LEONARDO, Rodrigo Xavier. A “pejotização” e a esquizofrenia sancionatória brasileira (parte 2). Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-fev-10/direito-civil-atual-pejotizacao-esquizofrenia-sancionatoria-brasileira Acesso em: 20 de janeiro de 2023. [3] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado, Tomo I, Parte Geral: Pessoas físicas e Jurídicas. Atualizado por Judith Martins-Costa, Gustavo Haical e Jorge Cesa Ferreira da Silva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 399 [4] Idem, p. 406. [5] RODRIGUES JR, Otávio Luiz; LEONARDO, Rodrigo Xavier. Pessoa jurídica, “pejotização” e a esquizofrenia sancionatória brasileira. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-fev-03/direito-civil-atual-pessoa-juridica-pejotizacao-esquizofrenia-sancionatoria-brasileira Acesso em: 20 de janeiro de 2023. [6] Esta regra é prevista no §5º do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, aplicado por analogia ao âmbito trabalhista: “Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”. Igual previsão também foi prevista na Lei de Crimes Ambientais (Lei Federal nº 9.605 de 1998) ao prever em seu artigo 4º que: “Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.” [7] Essa pretensão fica ainda mais evidente pela leitura do seguinte trecho do projeto original: “Em suma, o presente Projeto de Lei, de natureza eminentemente adjetiva, pretende estabelecer regras processuais claras para aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, além de assegurar o prévio exercício do contraditório em hipóteses de responsabilidade pessoal de sócio por débito da pessoa jurídica”. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=562997&filename=PL%203401/2008. Acesso em 17 dez. 2022. [8] Disponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2022/12/E9B7E75C0FC942_IBDPProjetodeLei.pdf. Acesso em 17 dez. 2022. [9] Cf.: “O art. 50 do CC, que adota a teoria maior e permite a responsabilização do administrador não-sócio, não pode ser analisado em conjunto com o parágrafo 5º do art. 28 do CDC, que adota a teoria menor, pois este exclui a necessidade de preenchimento dos requisitos previstos no caput do art. 28 do CDC permitindo a desconsideração da personalidade jurídica, por exemplo, pelo simples inadimplemento ou pela ausência de bens suficientes para a satisfação do débito. Microssistemas independentes”. (REsp n. 1.658.648/SP, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 7/11/2017, DJe de 20/11/2017). [10] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1242103&filename=Tramitacao-PL%203401/2008. Acesso em 17 dez. 2022.
2023-02-06T18:12-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-06/direito-civil-atual-veto-pl-340108-presidencial-mantido-congresso
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Opinião
Streck: Se o robô é para casos simples, chamemos o porteiro!
Resumo: E já descobriram que precisam de um robô inteligente para fazer perguntas para o ChatGPT; os humanos não sabem fazer perguntas! (Ch)Oremos! 1. Diga-me o que comes... E o tal ChatGPT é o tema da moda. Há coisas óbvias: ele responde segundo a sua alimentação. Algo como "diga-me o que comes e...", se me permitem a blague. Há muita gente apaixonada. E, é claro, faturando. Logo, por aqui vão repetir o caso da Colômbia, em que o juiz delegou para o robô resolver um caso de consulta médica para criança autista. Ele resolveu. Corretamente. O que não foi dito: é tão obvio que a criança tem direito (está escrito em uma regulamentação do SUS deles) que até o porteiro ou a minha tia bolsonarista resolveria. 2. O porteiro pode resolver ou "eis aí um Cavalo de Troia" — uma trampa? Logo, qual é o busílis de colocar um robô? Se é só para essas coisas em que o porteiro (ou minha tia) resolveria, por que não dar emprego para "'resolvedores de casos óbvios"? Mais: se é tão simples, por que o juiz quer terceirizar? Para trabalhar menos? Parece que há um Cavalo de Troia embutido nisso. Logo passarão para o robô casos complexos. Aliás, no Brasil robôs já fulminam recursos. Logo, robôs julgam o seu recurso, uma vez que fulminar de plano um recurso é o mesmo que julgar o recurso. Robô julga. E julga também casos (já mostrei aqui e aqui semana passada) de tributos e quejandices outras. No caso da Colômbia há algo pior. Isto porque no Chile fizeram a mesma pergunta para o robô sobre criança autista e o robô disse o contrário – robô malvadão. 3. Se tudo é prego, vendamos martelos — o robô estelionatário A humanidade ingressa em um terreno perigoso. Na ânsia de vender martelos, transforma tudo em prego. Pedi para meus alunos verificarem com o robô sobre o que eu escrevo. O robô colocou obras minhas na conta de outros autores. Um robô estelionatário e plagiador. E isso tende a piorar. Como o robô fará a seleção do que é citação de um autor em outra obra? E as paráfrases? O robô dirá de quem é a autoria? Sinto picaretagem da grossa no ar. No campo da bioética o estimado Henderson Fürst já está denunciando o agir do robô. O jornalista Antonio Prata, na Folha, faz um espirituoso artigo sobre o novo robô (que ele chamou de "o pai da Alexa"). Está na edição de 5.2.2023. Mostra como os alunos não mais farão trabalhos de aula. E nada lerão. Já não leem hoje. 4. Já estão vendendo robôs para fazer perguntas ao ChatGPT: os burros não sabem nem perguntar Ou "quem lê Machado"? E o resto da malta? Hoje ninguém lê Machado. Ou Orwell. Toca-se de ouvido. Porque leem resuminhos. Agora com o robô...imaginem o tamanho da "epistemologia do estelionato intelectual". Alguém já disse que o ChatGPT é o santo Expedito dos preguiçosos. Pode surgir um paradoxo: se o ChatGPT dá certo, mesmo, nem mesmo os seus criadores, vendedores e louvadores ficarão empregados. Serão chutados para fora pela própria criatura. Bem-feito, diria minha tia bolsonarista, sem entender bem por quê. Se bem que já estão criando até novas plataformas para ensinar como se faz perguntas para o ChatGPT. Sim. É verdade. Fujamos para as montanhas. A humanidade é, realmente, estúpida. Cria um respondedor e não sabe fazer perguntar. Bleargh (onomatopeia para...bleargh). 5. Tout vas très bien, Madame! Muito, muito bem! E a preguiça há de vencer! Leio que no âmbito da publicidade robôs fazem desenhos rapidamente e até bolam anúncios e isso coloca parcela dos protagonistas em pânico. E eu digo: publicitários de todo mundo, uni-vos contra os ChatGPT. Nada tendes a perder... Ou tendes muito... Mientras, tentem ligar para a Claro-NET. Ou para o SAC das Americanas. Ou para o seu banco. Reclame do Mercado Livre. Liga. Melhor: fale com o robô do Santander. Ah: eles não são ChatGPT. Sim, eu sei. Pior ainda. Isso quer dizer que estamos à beira do caos. Vai ver que eu é que sou o chato. Tudo vai muito bem. Tout vas très bien, Madame La Marquise. O castelo pegou fogo, a égua morreu, o marido se suicidou, os filhos são bêbados... mas tudo vai muito bem, madame! E vamos fabricando mais martelos. Afinal, o resto do mundo é prego!
2023-02-06T14:06-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-06/lenio-streck-robo-casos-simples-chamemos-porteiro-ofensa
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Justiça Tributária
Garantia plutocrática: o governo quer o Carf só para ricos
A Medida Provisória 1.160/23 introduziu duas medidas negativas: uma principiológica, pois fez retornar o famigerado voto de qualidade, quando o princípio jurídico é in dubio pro contribuinte, vigorando assim a presunção de inocência, o que já comentei; e outra plutocrática, isto é, em prol dos ricos (plutocracia = ploutos que significa riqueza + kratos, que significa poder), ao elevar exponencialmente os valores para admissibilidade de recurso ao Carf. É fácil a compreensão: após a MP 1.160/23 o "contencioso de pequeno valor" passou a ser de 1.000 salários-mínimos (R$ 1,3 milhão); antes era de 60 salários-mínimos (R$ 78.120,00). Teoricamente quem tem problemas fiscais acima de R$ 1,3 milhão possui muito maior capacidade econômica do que aqueles que possuem problemas fiscais da ordem de R$ 78.120. É claro que isso é um pressuposto, pois pode ocorrer de uma riquíssima pessoa, física ou jurídica, ter um problema tributário de pequeno valor; e outra, paupérrima, ter um problema de grande monta. Mas, convenhamos, esta segunda hipótese é muito menos provável em se tratando de imposto de renda, Pis, Cofins e outros tributos federais, que dimensionam a receita a partir do porte econômico dos contribuintes. Ocorre que a alteração efetuada acarretou a seguinte esdrúxula situação: ao 1º grupo (o "rico") está assegurado o duplo grau de julgamento, através de um colegiado composto de forma paritária entre servidores fiscais e contribuintes (o Carf); quem está no 2º grupo (o "pobre") não terá direito a novo julgamento administrativo, por órgão nenhum. Para os "pobres" restará confiar apenas no 1º grau de julgamento, que são as Delegacias da Receita Federal do Brasil de Julgamento (DRJs), compostas de forma colegiada exclusivamente por servidores fazendários. O problema não está em serem servidores da Receita Federal, mas em não haver a possibilidade de recurso voluntário, em caso de decisão contrária ao contribuinte que impugnar um Auto de Infração de valor inferior ao novo valor de alçada (R$ 1,3 milhão). Além disso, como alerta Hugo de Brito Machado Segundo, os julgadores de 1ª instância estão vinculados a toda uma gama de normas administrativas, muitas demais ilegais, que só o Carf tem poder para afastar. O pior é a justificativa constante da Exposição de Motivos da MP 1.160/23, onde se lê que esse parâmetro advém do "valor estipulado no inciso I do §3º do art. 496 do CPC, que dispõe sobre o limite de alçada da remessa necessária, no caso de sentença proferida contra a União ou que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução fiscal". Que leitura torta! "Remessa necessária", conforme o CPC, decorre de decisão contrária à Fazenda Pública; no caso do contencioso administrativo-fiscal, o que foi travado pela alta alçada estabelecida é o recurso voluntário do contribuinte que perdeu o julgamento em 1ª instância! Melhor seria manter os 60 salários-mínimos, correlacionando com a limitação dos Juizados Especiais Cíveis (JECs) dos estados e municípios, como destacou Suzy Hoffmann. Consta ainda da Exposição de Motivos que "a ampliação do limite de alçada poderá reduzir em cerca de 70% (setenta por cento) a quantidade de processos encaminhados ao Carf, o que poderá reduzir o tempo médio para o órgão entrar no fluxo para 2,27 anos". Só esse dado demonstra que o volume de processos (e de pessoas) atingidas pela norma será gigantesco, exatamente o grupo que é pretensamente "mais pobre". Cabe lembrar que o Carf é um tribunal administrativo amplamente democrático, não só pela sua composição paritária, mas também porque prescinde de advogados para nele atuar. Conheço incontáveis processos em que o próprio contribuinte pessoa física apresentou sua defesa e foi vitorioso. Empresários e seus contadores também estão habilitados a defender diretamente seus direitos perante o Carf. Claro que estarão sempre melhor defendidos por advogados especializados na matéria sob análise, mas a possibilidade de defesa pelo próprio contribuinte é uma das características desse conselho. O que vai desafogar o Carf em número de processos, entulhará o Judiciário. E, ainda pior, é rotina no Judiciário exigir que seja efetuada garantia dos valores em discussão, o que implica na oferta de bens ou na contratação de caríssimos seguros ou cartas de fiança bancária para o exercício de sua defesa. Ou seja, a vida piorará para quem tem um problema fiscal abaixo de R$ 1,3 milhão. Se isto não for considerado uma garantia plutocrática não sei o que mais poderá ser. Diversas inconstitucionalidades podem ser identificadas nessa medida, mas prefiro seguir outro caminho e ser propositivo: que tal estabelecer que para esses processos abaixo da alçada a exigibilidade do crédito só possa ocorrer após decisão de segunda instância judicial? A Fazenda Nacional poderá até promover a execução fiscal, mas as CNDs continuarão a ser expedidas com efeito negativo, e a defesa poderá ocorrer através de embargos sem apresentação de garantia. Será que a União topa essa alteração no sistema?
2023-02-06T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-fev-06/justica-tributaria-garantia-plutocratica-governo-carf-ricos