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academia
Retrospectiva 2022
Bruzzi e Gonçalves: A regulação bancária e de pagamentos em 2022
Notas introdutórias O ano de 2022 deu sequência à revolução na normatização do mercado financeiro, que tem ocorrido nos últimos anos. Essa revolução é, do ponto de vista institucional, materializada por meio da Agenda BC#, a qual tem como pilares a inclusão financeira, a competitividade, a transparência, a educação e a sustentabilidade. Neste texto, sem a intenção de abarcar todas as normas, apontamos algumas das mais relevantes alterações normativas realizadas, pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) e pelo Banco Central do Brasil (BCB), no âmbito: (1) do Pix; (2) do open finance; (3) do mercado de câmbio; (4) do registro e da gestão de recebíveis; (5) da regulação prudencial de instituições de pagamento; e (6) dos processos de autorização. Pix A primeira norma de 2022 que consideramos importante para destaque é a que tratou do bloqueio de transações realizadas por meio do arranjo de pagamento Pix. Em nova norma, que alterou o Regulamento Pix, o BCB determinou que uma transação deverá ser rejeitada pelo participante provedor de conta transacional do usuário pagador, por exemplo, quando: (1) houver problemas na autenticação do usuário pagador; (2) envolver movimentação de recursos oriundos de usuários pagadores sancionados por resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas, na forma prevista na Lei nº 13.810/2019, e conforme disciplina própria editada pelo BCB; e (3) houver inconsistência entre a transação e os parâmetros atribuídos às transações com finalidade de saque ou de troco, inclusive no que se refere aos limites de valor estabelecidos pelo BCB em documento específico, à natureza jurídica do usuário recebedor e aos participantes que podem iniciar transações com essas finalidades [1]. Também em 2022, foi publicado o regulamento do Sistema de Pagamentos Instantâneos (SPI), a infraestrutura centralizada de liquidação bruta em tempo real de pagamentos instantâneos que resultam em transferências de fundos entre seus participantes titulares de Conta PI no BCB. O Regulamento SPI estabelece que a participação é: (1) obrigatória, para os participantes do arranjo Pix, nos termos da regulamentação do arranjo, para fins de liquidação de pagamento instantâneo; (2) facultativa (2.1) para as câmaras e os prestadores de serviços de compensação e de liquidação, com o único objetivo de liquidar operações privadas de fornecimento de liquidez no âmbito do SPI realizadas entre os seus participantes e (2.2) para a Secretaria do Tesouro Nacional (STN), com a finalidade exclusiva de realizar recolhimentos e pagamentos relativos às suas atividades típicas [2]. Além de observarem os passos para participação no SPI, as instituições devem seguir o processo de adesão Pix, também tratado em norma de 2022, que é composto pelas etapas (1) cadastral; (2) homologatória; e (3) de operação restrita [3]. Certamente uma das alterações normativas que mais gerou inquietação a agentes econômicos do mercado financeiro foi a que tratou do Banking-as-a-Service (BaaS), no âmbito do Pix. A norma estabeleceu que a iniciação e o recebimento de operações firmadas via Pix apenas podem ser realizados por participantes do Pix, que, portanto, submeteram-se aos procedimentos destacados na normas referidas acima. Ainda é lícita a prestação de serviços Pix via intermediação, entretanto, esta não poderá ocorrer via conta transacional de terceiro que não é participante do Pix ou por conta transacional fornecida pelo participante do Pix ao terceiro — o que, no cotidiano do mercado, entende-se pela união entre "conta bolsão" e "contas gráficas" [4]. Com vistas a refletir essa alteração, o Manual de Penalidades do Pix passou a prever a infração de "atribuir a terceiro não participante do Pix a realização das atividades de que trata o art. 90-A do Regulamento do Pix", punível com multa com valor-base de R$ 1 milhão [5]. Fechando o ano de 2022, em dezembro, o BCB retirou a obrigatoriedade de limite por transação do Pix, mantendo apenas o limite por período de tempo [6]. Open finance O ecossistema do open finance pôde observar, em 2022, importante alteração normativa a respeito do encaminhamento de propostas de operações de crédito. Estabeleceu-se, assim, que as instituições contratantes deverão disponibilizar interfaces dedicadas para compartilhamento de serviço de encaminhamento de proposta de operação de crédito, que contemplem, no mínimo: (1) o recebimento das solicitações de propostas de operação de crédito; (2) o recebimento e envio de dados entre a instituição financeira contratante e o correspondente no país; (3) o envio das propostas de operação de crédito; e (4) o rastreamento das solicitações e das respectivas propostas de operação de crédito. A nova norma fez constar que é considerada instituição contratante, para os fins descritos em seu texto, a instituição financeira que mantenha contrato de correspondente no país que contemple a atividade de recepção e encaminhamento de propostas de operações de crédito e de arrendamento mercantil, por meio de plataforma eletrônica, nos termos da regulamentação de correspondente no país [6]. O BCB publicou ainda duas relevantes Resoluções Conjuntas. Uma delas, com o CMN, determinou a alteração, em todos os documentos normativos atinentes ao tema, do termo open banking para o termo open finance [8]. A outra, com a Superintendência de Seguros Privados (Susep), trata da interoperabilidade no ecossistema, classificando-a como o compartilhamento padronizado de dados, mediante consentimento de cliente, de forma segura, ágil e precisa, entre os participantes dos sistemas disciplinados pelos seguintes atos normativos: (1) Resolução Conjunta CMN-BC nº 01/2020; e (2) Resolução CNSP nº 415/2021 [9]. Mercado de câmbio Com fundamento na Lei nº 14.296/2021 (Marco Legal de Câmbio), o BCB publicou, em 2022, norma que dispõe que são princípios norteadores do funcionamento regular do mercado de câmbio: (1) a competição para a prestação de serviços ao público relacionados às operações do mercado de câmbio; (2) o atendimento das necessidades do público, em especial liberdade de escolha, privacidade, transparência e acesso a informações claras e completas sobre as condições das operações do mercado de câmbio; (3) a eficiência das operações realizadas no mercado de câmbio; (4) o estímulo à inovação, considerando a legalidade das operações, e à diversidade de modelos de negócio; (5) a redução de custos de transação no mercado de câmbio; (6) a inclusão financeira; (7) a confiabilidade e a qualidade dos produtos e serviços ofertados no mercado de câmbio; e (8) a integridade, a conformidade, a segurança e o sigilo das operações de câmbio ou das movimentações de valores [10]. Outra alteração que representará importante impacto no mercado de câmbio, principalmente sob o prisma concorrencial, é a que determinou que as instituições de pagamento poderão operar no mercado de câmbio somente a partir de 1º de julho de 2023 [11]. Registro e gestão de recebíveis No âmbito da regulação de recebíveis, é importante apontar norma que trata do uso proporcional ao risco de recebíveis constituídos e a constituir em garantia de operações de crédito [12]. O dispositivo direciona-se especificamente à gestão de risco em instituições financeiras que se valem desses recebíveis como garantia, possibilitando assim melhores condições aos tomadores de crédito. Quanto às credenciadoras, nova norma facultou o bloqueio de valores referentes às transações por elas capturadas com o propósito de (1) constituição de reserva financeira para gerenciamento de risco de sua relação contratual com seus respectivos usuários finais recebedores; e (2) compensação de valores devidos pelo usuário final recebedor, tais como: (2.1) multas; (2.2) estornos decorrentes de cancelamentos, contestações ou fraudes, no âmbito de arranjo de pagamento, de transações já liquidadas; e (2.3) outras compensações decorrentes de eventos previstos contratualmente [13]. Além disso, quanto às entidades registradoras, houve, em 2022, alteração normativa que estabeleceu os princípios a serem observados na implementação dos mecanismos de interoperabilidade, a exemplo (1) da promoção da concorrência entre os sistemas de registro e entre seus participantes; (2) da eficiência e efetividade na troca de informações; (3) da padronização tecnológica e de regras de negócio que viabilizem o cumprimento das disposições regulamentares e que sirvam de base para a harmonização dos procedimentos operacionais e de intercâmbio de informações; e (4) da transparência, segurança, privacidade e sigilo das informações transmitidas entre os sistemas de registro [14]. Regulação prudencial de instituições de pagamento A partir da edição de seu marco legal, a Lei nº 12.865/2013, as instituições de pagamento atingiram elevado grau de complexidade, de modo que a regulação prudencial até então aplicada a essas instituições se tornou inadequada. Ao longo dos quase dez anos de vigência da lei, as instituições de pagamento passaram a constituir instituições financeiras como subsidiárias ou fundos de investimento, e, consequentemente, passaram a incorrer em novos riscos, decorrentes da atuação expandida, especialmente o risco de crédito, mas, ainda, riscos de liquidez e de mercado. Considerando isso, foram publicadas, em março de 2022, diversas normas com o objetivo central de aprimorar a regulamentação prudencial aplicável às instituições que realizam serviços de pagamento, unificando-se o tratamento dispensado (1) aos conglomerados prudenciais liderados por instituição de pagamento e integrados por ao menos uma instituição financeira, (2) às instituições financeiras que realizam atividades de pagamento e (3) aos conglomerados prudenciais liderados por instituições financeiras integrados por ao menos uma instituição de pagamento [15][16][17][18][19][20][21]. Ao final de 2022, a entrada em vigor dessas normas foi adiada para julho de 2023 [22]. Processos de autorização A respeito dos processos de autorização, temos que duas alterações tiveram grande relevo quanto ao regramento das instiuições de pagamento. Em primeiro lugar, é possível citar a possibilidade de que fundos de investimento figurem como detentores de participação qualificada no âmbito da instituições de pagamento, em linha com o regramento das sociedades de crédito direto e das sociedades de empréstimo entre pessoas (fintechs de crédito) [23]. Com ainda maior impacto no mercado, foi realizada alteração em uma das principais normas de regência das instituições de pagamento, para prever que as emissoras de moeda eletrônica que iniciaram sua prestação de serviços anteriormente a março de 2021, podem, caso não atingidos certos volumes de transações, submeter pedido de autorização com prazo final somente em 31 de março de 2029 [24]. Os processos de autorização de diversas instituições também foram alterados ou consolidados em 2022. Por isso, para fins didáticos, elaboramos o quadro abaixo, a fim de resumir alguns dos principais pontos dessas normas.   Aspectos conclusivos Em 2022, a regulação bancária e de pagamentos adequou diversos aspectos relevantes para instituições reguladas e para os consumidores de serviços financeiros, tendo em vista a agenda institucional BC#. De modo geral, temos que a regulação emitida pelo CMN e pelo BCB tem se mostrado importante vetor de melhorias no âmbito do mercado financeiro.
2023-01-01T14:32-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-01/bruzzi-goncalves-regulacao-bancaria-pagamentos-2022
academia
Processo Familiar
A família pronta para o futuro e as perspectivas para 2023
Quando o valor da pessoa em sua exata dimensão de dignidade demanda direitos e a família congrega as pessoas em suas unidades de valor, busca-se consolidar as novas tendências do Direito das Famílias. Efetivá-las, com a maior extensão de suas realidades jurídicas, é o desafio atual. Dentro do seu amplo espectro, as perspectivas presentes exigem que a família seja regulada na ordem jurídica da melhor maneira possível. Designadamente, em face da reprodução assistida, dos institutos da socioafetividade e da multiparentalidade, e das diversas entidades familiares, em vieses jurídicos que coloquem, sempre, a pessoa como a prioridade maior. Como afirmam Rodrigo Cunha e Berenice Dias, a família "passou a ser muito mais um espaço para o desenvolvimento do companheirismo, do amor, e, acima de tudo, o núcleo formador da pessoa e elemento fundante do próprio sujeito" (1). Em ser assim, desburocratizam-se os conflitos, expurgam-se os achismos de ideias retrógradas que representam apenas teorias fundadas em opiniões ou intenções meramente pessoais; afastam-se entendimentos desprovidos de sustentação jurídica e que assumem papéis ultraconservadores. Enfim, privilegia-se o direito à busca da felicidade, com eficácia imediata e em respeito à autonomia da vontade e à liberdade dos sujeitos. Exemplos mais significantes desse direito são os: (a) do divórcio potestativo, que a Emenda Constitucional nº 66/2010 trouxe ao nosso ordenamento jurídico, sem mais necessidade de motivação (requisitos causais) ou de prazo (requisitos temporais) para a sua concessão. Suficiente para a dissolução do casamento, a simples manifestação de vontade de um membro do casal; (b) da recente Lei nº 14.340/2022, de 18 de maio, que efetivou importantes modificações na Lei da Alienação Parental (Lei nº 12.318/2012), dinamizando a atuação judicial e os mecanismos de proteção à melhor convivência familiar; (c) da recente Lei nº 14.382/2022, de 27 de junho, a permitir mudanças significativas no prenome e sobrenome das pessoas, com pedido apresentado diretamente a qualquer um dos 7.800 cartórios de registro civil do país, sem limite de prazo ao requerimento e sem a judicialização das alterações pretendidas; de forma simples, mais rápida e menos onerosa (2). Com a nova lei que libera a mudança de nome em cartório e sem ação judicial, cerca de cinco mil pessoas já obtiveram, nestes últimos seis meses, a alteração dos seus prenomes. Mas não é só. Dentre outras inovações, foi introduzido na Lei dos Registros Públicos (Lei 6.015/1973) o artigo 94-A, autorizando a formalização de termos declaratórios de união estável perante o Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN), em contributo saudável à desburocratização e aos menores custos do procedimento. A família coloca-se, assim, pronta ao seu futuro, diante dos recentes incrementos da doutrina e da legislação civil. A evolução do direito das famílias depende, sobretudo, do rumo das variadas soluções construtivas nas relações familiares e de uma visão operativa de novos paradigmas. É o que se espera para 2023. Vejamos: Reprodução assistida. A regulação jurídica das técnicas de reprodução medicamente assistida (RMA) apresenta-se como questão fulcral da legislação civil de família. Esse tema será debatido durante o Curso de Extensão "Análise jurídico-jurisprudencial do Direito das Famílias no sistema Luso-Brasileiro", a realizar-se na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, entre 16 e 20 do corrente mês. Os juristas Rafael Vale dos Reis (PT) e Fernanda Leão Barretto (BA-BR) tratarão de importantes aspectos como os da cessão de útero e suas normativas existentes e os dos embriões excedentários, sua utilização e seus efeitos, inclusive sucessórios. No Brasil, a Resolução nº 2.320, de 20 de setembro de 2022, do Conselho Federal de Medicina (CFM), entre tantas anteriores, é o único instrumento normativo que disciplina a matéria, tratando sobre normas éticas para a utilização das técnicas de RMA (3). O PLS n. 90/1999, que tratou da reprodução assistida e aprovado no Senado em 2003, pendente desde então, não teve a devida análise na Câmara sob o n. 1.184/2003. O texto tem merecido severas críticas quando o projeto proíbe a gestação por substituição, remove o anonimato dos doadores de gametas, limita a fertilização de apenas dois óvulos e obsta a biópsia embrionária (4). Mais recentemente, tramita o Projeto de Lei nº 1.851/2022, de 2 de julho. Ele altera o artigo 1.597 do Código Civil, com a inserção de dois parágrafos, para dispor sobre o consentimento presumido de implantação, pelo cônjuge ou companheiro sobrevivente, de embriões do casal que se submeteu conjuntamente à técnica de reprodução assistida e, ainda, define a responsabilidade das clínicas médicas, centros ou serviços responsáveis pela reprodução assistida. "A grande lacuna legislativa no nosso ordenamento jurídico sobre a reprodução assistida não encontra explicação lógica e razoável em debate algum sobre o tema", denunciou a senadora Mara Gabrilli na justificação do seu projeto. Uma vez aprovado, será um importante avanço legislativo (5). Lado outro, projeto originário da Câmara dos Deputados, o de nº 115/2015, apensado ao PL 4.892/2012, pretende instituir o "Estatuto da Reprodução Assistida", para regular a aplicação e utilização das técnicas e seus efeitos no âmbito das relações civis sociais (6). Interessante estudo foi desenvolvido durante o 19º Congresso Nacional de Iniciação Cientifica (Conic), tratando da análise jurídico-normativa de todos os dezessete projetos legislativos ora em curso sobre a RMA (7). Como se observa, urge um esforço legislativo para dotar o ordenamento jurídico nacional de um estatuto sobre reprodução assistida, colocando nosso país em linha de frente com a regulação necessária e de conformidade ao desenvolvimento do biodireito. No ponto, essa é uma das importantes perspectivas para 2023, sufragando os anseios das comunidades médica e jurídica. Mais ainda, quando se discute a questão dos embriões excedentários ou a legitimidade sucessória dos filhos havidos de reprodução assistida post mortem, com releitura do artigo 1.798 do Código Civil, no que tange à figura do embrião enquanto concepto ainda não gestado. Multiparentalidade. Interessante projeto, na Câmara de Deputados, disciplina a herança em caso de multiparentalidade, para incluir padrastos e madastras como herdeiros de alguém sem filhos que morra deixando cônjuge. O PL nº 5.774/2019 altera o artigo 1.837 do Código Civil para o caso de uma pessoa sem filhos morrer deixando cônjuge; mãe e/ou madrasta; e pai e/ou padrasto, a herança ser dividida em partes iguais entre cada um deles (8). O projeto atende as novas configurações familiares, certo que atualmente "cabe ao cônjuge 1/3 da herança, caso os dois pais do falecido sejam vivos. O cônjuge vivo recebe metade se "concorrer" apenas com o pai ou a mãe do falecido"; não considerando a multiparentalidade socioafetiva eventualmente existente. A propósito do direito sucessório, estudos do IBDFam deram origem a importante anteprojeto de reforma do Direito das Sucessões, alterando o Código Civil, que resultou na iniciativa do PLS nº 3.799/2019. A respeito dos efeitos do direito sucessório, nos casos de multiparentalidade, importante estudo de Catarina Oliveira Costa foi publicado em 3/6/2021 (9). Noutro giro, importa assinalar que a Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC), em sua IX Olimpíada de Conhecimento Jurídico 2022, destinada a universitários de Direito em instituições de ensino do país, incentivou em modalidade da prova de “Redação de Projeto de Lei”, textos relativos ao “Estatuto do Padrastio”. O texto premiado, de estudantes da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Lavras-MG (UFLA) servirá de proposição legislativa. Regime de bens. A norma do artigo 1.611, inciso I, do Código Civil, que estabelece a imposição do regime da separação obrigatória de bens para a pessoa maior de setenta anos, extensiva à união estável (STJ — Súmula 655), seguramente sob a eiva da inconstitucionalidade, exigirá, afinal, em 2023 o definitivo posicionamento do Supremo Tribunal Federal. Neste sentido, o tema, objeto de recurso extraordinário, teve repercussão geral reconhecida. afetado nos autos do Agravo no Recurso Extraordinário 1.309.642/SP, com a relatoria do ministro Luís Roberto Barroso (Tema 1.236). Processo Civil. Na questão processual, desponta diversas necessidades, "de lege ferenda", para eficiência de uma melhor jurisdição. Bastante situar: (a) o tempo dos processos de família deve ser aplicado, sob o filtro de relevância da dramaticidade dos problemas que neles subjazem, devendo o juiz enquanto gestor do litígio ser o verdadeiro curador da família em desajuste, na adoção de medidas de controle, de pacificação e de tutelas imediatas. Cada litígio pendente serve, aliás, de periclitação de direitos, sobretudo em prejuízo patrimonial da parte mais vulnerável. (b) A inexistência de regra explicita para a concessão liminar do divórcio, deve ser superada a permitir em razão de direito potestativo a decretação liminar. Com precisão, todavia, deve o CPC melhor cuidar da hipótese, afinal tendo-se em conta de se constituir pedido incontroverso, ante a potestatividade da pretensão deduzida em juízo. (c) Urge a revogação do artigo 734 do CPC, que exige para a alteração do regime de bens requerimento motivado por ambos os cônjuges, expostas as razões que justifiquem a alteração, ressalvados os direitos de terceiros. Em bom rigor, repete o artigo 1.639, § 2º do Código Civil. Ambos os dispositivos devem ser revogados em prestigio da plena autonomia da vontade dos cônjuges, a ser manifestada perante o próprio registro civil, sem prejuízo de futuras discussões judiciais de eventuais vícios do consentimento de um deles. (d) a prova pessoal no "delicado tema da psicologia do depoimento" deve ter sua produção e valoração com o destaque da era tecnológica, a dispensar precatórias, sobretudo prestigiando as narrativas em meios telepresenciais, com a sua colheita remota. Para além disso, a atuação da parte autora no litígio de decisivo interesse deve alcançar o seu depoimento pessoal, a requerimento próprio e não apenas da parte contrária, ampliando-se a regra do artigo 385 do CPC. De lege ferenda, propõe-se parágrafo único ao citado dispositivo: "Art. 385, § único. É facultada à parte autora a prova pessoal do seu depoimento, devido à incidência narrativa dos fatos articulados no pedido". Divórcio potestativo. A inclusão de nova modalidade de divórcio extrajudicial, sob a denominação de "divórcio impositivo" ou "divórcio unilateral", a ser efetivado em cartório de registro civil pela declaração de vontade de um dos cônjuges em se divorciar, tem a sua tramitação no Senado através do Projeto de Lei nº 3.457/2019 (10) já aprovado na Comissão de Constituição e Justiça, em 10/3/2020 Acrescenta ao Código de Processo Civil o artigo 733-A, permitindo que um dos cônjuges requeira a averbação do divórcio no cartório de registro civil ainda que o outro cônjuge não concorde, diante do manifesto direito potestativo daquele, invencível e inevitável. Inspirou-se em Provimento nº 06/2019, de 29 de abril, da Corregedoria Geral da Justiça de Pernambuco, de nossa autoria (11), que autorizava a dissolução do vínculo conjugal, de forma unilateral, em averbação à margem do assento de casamento, por declaração do cônjuge interessado na dissolução do vínculo. Ampla doutrina a respeito do novo instituto, subscrita por respeitáveis juristas, sustenta que tal divórcio confere ao interessado um importante papel no pleno exercício de sua liberdade e autodeterminação ao protegê-lo para de forma ágil e eficaz dissolver o casamento onde nele não mais deseja permanecer. Em suma, não deve ser privado, à conta de interesses outros, do seu legitimo direito de se divorciar, sem estorvos ou embaraços. Em efetiva liberdade de escolher os ditames de sua própria vida e que somente a ele(a) pertence. Bem de ver: O casamento não deve servir de óbice à plenitude de vida da parte (TJ-PR, 12ª. CC, Ap. 0041414-50.2020-8.16. relatora Rosana Girardi Fachin, j. em 24/9/2020). De efeito, expressa a melhor doutrina: "reconhecer a validade do ingresso do divórcio impositivo no ordenamento jurídico brasileiro é uma forma de tutelar, em essência, o direito à liberdade afetiva e a autodeterminação de cada indivíduo, tutelando, assim, seus direitos da personalidade, inclusive no que se refere aos aspectos psíquicos da pessoa, haja vista que processos demasiadamente longos e burocráticos. Especialmente quando se versa sobre divórcios litigiosos em que o cônjuge não requerente discorda com a decisão de rompimento do vínculo matrimonial do cônjuge requerente, normalmente produz-se efeitos trágicos no psicológico do cônjuge que só pretende colocar fim a um casamento que não mais deseja manter" (12). Conclusões. A maior segurança jurídica para as famílias em seus direitos fundamentais e um melhor direito das famílias devem partir da família ressignificada em uma cláusula geral de proteção da dignidade dos que a constituem, individual e institucionalmente. Fora dela, as famílias padecerão de infelicidades forçadas e não vencidas, arrostadas por desconstruções dialéticas. O XIV Congresso Brasileiro de Direito das Famílias e Sucessões, do IBDFAM, que acontece de 25 a 27 de outubro de 2023, em BH, sobre o tema "Efetividade dos direitos fundamentais" servirá de aviso e de resposta aos novos desafios. 2023 começa com um novo caminho de esperança aberto para todas as famílias, que resultarão mais visíveis e protegidas. Prontas ao seu melhor futuro.   Referências: (1) PEREIRA, Rodrigo da Cunha e DIAS, Maria Berenice, Direito de Família e o Novo Código Civil, 3ª.ed.; Belo Horizonte: Del Rey, 2003, pag. XIV; (2) ALVES, Jones Figueirêdo. Novo regime jurídico do nome civil e outros avanços do direito registral. Consultor Jurídico, 11.07.2022; Web: https://www.conjur.com.br/2022-jul-11/processo-familiar-regime-juridico-nome-civil-outros-avancos-direito-registral (3) https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2022/2320 (4) https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=137589 (5) https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9180662&ts=1657662548729&disposition=inline (6) https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1296985&filename=PL%20115/2015 (7) https://conic-semesp.org.br/anais/files/2019/trabalho-1000004219.pdf (8) https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1828271&filename=PL%205774/2019 (9) https://periodicos.ufba.br/index.php/conversascivilisticas/article/view/44702 (10) https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7964616&ts=1648156876433&disposition=inline (11) https://www.tjpe.jus.br/documents/29010/2103503/PROVIMENTO+N%C2%BA+06-2019-CGJ+ORIGINAL.pdf/80b8a35e-9a57-90c0-c536-9b72037741b2 (12) https://www.indexlaw.org/index.php/direitofamilia/article/view/8321
2023-01-01T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-01/processo-familiar-familia-pronta-futuro-perspectivas-2023
academia
Embargos Culturais
A atualidade da comédia Quase Ministro, de Machado de Assis
Na política hoje, muito atual e provocadora a peça Quase Ministro, de Machado de Assis. Comédia curtíssima, com apenas um ato, dividido em quatorze cenas. Na introdução (do próprio Machado) lê-se que a peça fora composta para um sarau de amigos, que teria ocorrido em 22 de novembro de 1862. Machado, inclusive no teatro, era aquela rara elegância de ser conciso, com uma sábia economia de palavras, pondo em evidência suas ideias, na imagem permanente de Lúcia Miguel Pereira. À época dessa peça era primeiro ministro Pedro de Araújo Lima, o Marquês de Olinda, que fora indicado por dom Pedro 2º em 1862, e que ficou até 15 de janeiro de 1864. O Marquês de Olinda fora um conservador dissidente, liderando grupo em torno de uma Liga Progressista. Havia no Brasil uma fórmula muito peculiar de parlamentarismo, denominado de "parlamentarismo às avessas". Ao contrário do parlamentarismo inglês, no qual as eleições apontavam o partido que escolheria o primeiro ministro, no nosso modelo o imperador escolhia o chefe do ministério e em seguida as eleições se faziam. No contexto desta deliciosa peça (trata-se de uma sátira política) há rumores de que um deputado (Luciano Martins) ocuparia uma pasta ministerial. Cético e realista, o deputado sabe que a informação não passa de um boato. Não recebera nenhum convite. Estava distante de qualquer especulação. Muito próximo do deputado o escritor apresenta-nos um primo do político, Silveira. Era maníaco por cavalos. A peça inicia-se com um relato feito por Silveira, que teria caído de um alazão enquanto cavalgava junto à praia de Botafogo. Era viciado em cavalos, um apaixonado, preferindo os cavalos a outros vícios, como o fumo, as mulheres e o jogo, nas palavras do dramaturgo. As palavras são de Machado de Assis, e não minhas, bem entendido. Silveira cumprimentou o primo, que era já um "quase-ministro". Nessa condição, "quase-ministro", o deputado recebe interesseiros e aduladores. O adulador é um tipo comum, que viceja até hoje. Não tem ideias ou personalidade próprias. Segue a todos, desde que alguma vantagem possa auferir. Afeiçoa-se a todas as metamorfoses e transformações. Bajula. É um sabujo. Havia muitos na capital do Império. Há muitos na atual capital da República. Há em todos os lugares. O primeiro adulador (Pacheco) mostra-se como um articulista de temas políticos. Afirma que "em política ser lógico é ser profeta". Uma vez aplicados certos princípios a certos fatos, a consequência seria sempre a mesma. Porém, insistia, deveria haver os fatos e os princípios. Diz ter adivinhado que o deputado seria ministro. Dizia ter planos para aumentar a renda pública, sem "lançar mão de empréstimos" e, ao mesmo tempo, diminuir impostos. Para o primo, o deputado constatava que o visitante era um parasita. Segue um poeta (Bastos), para quem poesia e política eram ligadas por um laço estreitíssimo. Intuía que o deputado não queria aceitar o cargo no ministério, e tentava convencê-lo; era enfático: "Quero ser dos primeiros que o abracem, quando vier a confirmação da notícia; quero antes de todos estreitar nos braços o ministro que vai salvar a nação". Sabujice maior não há. O quase ministro recebe então um inventor (Mateus), que lhe falou do "raio de Júpiter", um segredo, uma peça de artilharia que teria inventado. O invento colocaria na mão do País que o possuir a soberania do mundo. Para o inventor, o quase ministro tinha qualidades e inteligência, não perguntava ou consultava, dominava. Queria apoio do futuro ministro para registrar a invenção. A lista segue com Luís Pereira, que ao quase ministro queria oferecer um jantar. Depois se apresenta um empresário artístico (Müller) com a proposta de um "negócio da China" (sim, a expressão está também em Machado de Assis): pedia uma subvenção e traria os maiores talentos para o Rio de Janeiro. Montado o ministério, e excluídas as chances do deputado, que todos tinham como certas, os aduladores abandonam o recinto, na busca do verdadeiro novo ministro. O deputado foi um quase ministro, e nessa condição observou esse ponto ao mesmo tempo fascinante e deplorável da condição humana: a subserviência interesseira. Se podemos nos fiar na introdução, que é do próprio Machado de Assis, o escritor teria menos de 30 anos ao compor essa peça, que nos diz tanto sobre os interesses da política. Na expressão de nosso grande estudioso do teatro, Anatol Rosenfeld, "quando acontece a transformação do ator em personagem, o texto se transforma em elemento teatral". É o que constatamos hoje, no teatro da vida, quando comprovamos que na política a lógica é profecia. Muita gente por aí querendo ser ministro. Lembremo-nos o passo de Mateus 22: "pois muitos são chamados, mas poucos são escolhidos".
2023-01-01T08:00-0300
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Segunda Leitura
Estado-nação: modelo teórico que sofre para acompanhar tendências
Compreendido como a unidade política resultante das revoluções dos séculos XVIII e XIX, o Estado-nação tem como principais características "a soberania assentada sobre um território, a tripartição dos poderes e a paulatina implantação da democracia representativa" [1]. Sob tal modelo institucional, o Estado não se submete senão ao Direito constituído internamente ou ao Direito externo com o qual tenha consentido. Desde o final do século XX, no entanto, vem ganhando espaço a concepção teórica que identifica a insuficiência do Estado-nação frente às profundas transformações sociais resultantes da globalização e da evolução tecnológica. Desenvolve-se o conceito de transnacionalidade. No mundo transnacional, o conceito de soberania é relativizado sob a influência de uma sociedade interdependente. O mosaico de fontes normativas ultrapassa as fronteiras estatais e perde o rígido senso hierárquico. O conceito de Estado passa por uma transformação, determinada pelos movimentos de reconfiguração da realidade social. À época da concepção do Estado-nação, a ciência jurídica era compreendida como um fruto cultural tipicamente nacional, resultante dos dogmas estabelecidos pelas normas vigentes em cada Estado. A este respeito, resgatando a obra de Rudolf von Jhering, Leontin-Jean Constantinesco destacou que "a ciência jurídica foi degradada a ciência nacional; nela os confins científicos coincidem com aqueles políticos.” Os escritos revelam o juízo crítico de Jhering: “esta é uma coisa humilhante, indigna para uma ciência" [2]. Leontin-Jean Constantinesco foi professor na Faculdade de Direito e Economia da Universidade do Sarre, na Alemanha, conhecida também pelo seu Instituto de Estudos Europeus. Constantinesco foi diretor deste Instituto e estudou a identificação entre Estado e ordem jurídica, observando: "ordem jurídica e Estado constituem, pelo menos na evolução histórica europeia ou no desenvolvimento ao qual eles deram vida, fatores intimamente relacionados e que não se podem dissociar" [3]. Sob semelhante perspectiva, Marc Ancel fez referência às tendências de "unificação espontânea" do Direito [4]. Magistrado e teórico francês, Ancel foi presidente do Centro Francês de Direito Comparado e autor da obra Utilidade e métodos do direito comparado, de 1971. Ancel parece endossar a crítica de Jhering no sentido de que o direito nacional é um referencial insuficiente para a construção de uma ciência jurídica universal. Citando o pensamento de Stammler e Del Vecchio, Ancel observou a relatividade do direito nacional, que aparece como "expressão particular e, portanto, limitada, da ideia fundamental de Direito" [5]. Ganha evidência, então, o surgimento de uma sociedade globalizada. Aliás, já se disse que a modernidade é "inerentemente globalizante". Com esta afirmação, o britânico Anthony Giddens [6] estabeleceu uma relação clara entre a globalização e a transformação social. Giddens foi professor da Universidade de Cambridge e Diretor da London School of Economics and Politicas Science. Em 1990, publicou a edição original de seu livro As consequências da modernidade, no qual ofereceu uma proposta de interpretação para as transformações da modernidade. Estabeleceu relações entre modernidade, globalização, capitalismo e Estado-nação. Analisando o conjunto institucional da modernidade, Giddens identificou os dois motores centrais da expansão da sociedade moderna: o desenvolvimento do sistema capitalista e a ascensão do Estado-nação enquanto modelo de unidade política de relacionamento global. São acontecimentos que coincidem na cronologia dos fatos e acabam por se entrelaçar ao longo da história. Giddens observou que, na origem, os Estados-nação demonstraram boa capacidade para o exercício do poder administrativo centralizado em comparação aos modelos estatais anteriores, o que se traduziu em maior eficiência na mobilização de recursos sociais e econômicos. O avanço da globalização, no entanto, interferiu neste ambiente institucional. Segundo Giddens, os Estados estariam se tornando "progressivamente menos soberanos do que costumavam ser em termos de controle sobre os seus próprios negócios". Em síntese, "o Estado-nação se tornou muito pequeno para os grandes problemas da vida, e muito grande para os pequenos problemas da vida" [7]. Semelhante abordagem é encontrada na obra de André-Jean Arnaud. Em seu livro Introdução à análise sociológica dos sistemas jurídicos, o autor é categórico ao afirmar que, na conjuntura globalizante, o Estado é "um ator cada vez mais problemático" [8]. Arnaud observa que, a partir das características da sociedade globalizada, as fronteiras dos Estados mostram-se impotentes para reter fluxos transnacionais de informação, o que resulta no desenvolvimento de princípios, estratégias, normas e políticas de alcance mundial. Entre os sociólogos brasileiros do século XX, dedicou-se ao tema Octávio Ianni, professor em universidades do estado de São Paulo. Em seus últimos anos de produção intelectual, Ianni foi premiado pela publicação de A sociedade global. De acordo com o Ianni, a problemática surgida com o fenômeno da globalização traz um desafio para as ciências sociais, pois confere novos significados para conceitos consagrados. Na sua visão, não se trata de um fato acabado, mas de um processo em marcha, identificado como tendência, "relativo a tudo que é internacional, multinacional, transnacional, mundial e planetário" [9]. Ianni registrou que as noções de sociedade nacional ou de Estado nacional "parecem insuficientes, ou mesmo obsoletas" e observou o distanciamento histórico entre o conceito de Estado-nação e a sociedade contemporânea globalizada: "os conceitos envelheceram, ficaram descolados do real, já que o real continua a mover-se, transformar-se" [10]. Em sua visão, os Estados nacionais entraram em declínio diante do surgimento de centros decisórios dispersos em empresas e conglomerados. Aos poucos, emergem estruturas mais nítidas de poder econômico e político em nível mundial, "formas descoladas da sociedade nacional, do Estado-Nação, aos quais frequentemente se sobrepõem". Impactado pela grandeza do fenômeno da globalização, Ianni afirma: "parece não haver qualquer possibilidade de desenvolvimento econômico-social, político e cultural autônomo, nacional, independente e soberano" [11]. Numa síntese: a sociedade global é uma realidade incontestável, em termos econômicos, políticos, sociais e culturais. O modelo teórico do Estado-nação, por sua vez, foi concebido em "um mundo pré-Marx, pré-Darwin, pré-Freud, pré-Einstein", como adverte Paulo Márcio Cruz [12]. Neste contexto, caberá aos cientistas jurídicos e políticos a compatibilização do legado institucional da modernidade com as características da sociedade pós-moderna, tecnológica, transnacional e globalizada, pondo sob questionamento a definição tradicional de Estado. [1] CRUZ, Paulo Márcio. Da soberania à transnacionalidade: democracia, direito e estado no século XXI. Paulo Márcio Cruz, Emanuela Cristina Andrade Lacerda. Itajaí, SC: Univali, 2014, p. 33. [2] CONSTANTINESCO, Leontin-Jean. Tratado de direito comparado: introdução ao direito comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 26. [3] CONSTANTINESCO, Leontin-Jean. Op. cit., p. 30. [4] ANCEL, Marc. Utilidade e métodos do direito comparado. Tradução Sérgio José Porto. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1980, p. 94-5. [5] ANCEL, Marc. Op. cit., p. 141. [6] GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Tradução: Raul Fiker. São Paulo: Editora Unesp, 1991, p. 75. [7] GIDDENS, Anthony. Op. cit., p. 77-8. [8] ARNAUD, André-Jean; DULCE, María José Fariñas. Introdução à análise sociológica dos sistemas jurídicos, p. 354-5. [9] IANNI, Octavio. A sociedade global. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996, pp. 9 e 24. [10] IANNI, Octavio. Op. cit., p. 35-40. [11] IANNI, Octavio. Op. cit., p. 47. [12] CRUZ, Paulo Márcio. Op. cit., p. 25.
2023-01-01T08:00-0300
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Público & Pragmático
Combate à corrupção e à lavagem de dinheiro com criptomoedas
As criptomoedas foram concebidas nas décadas de 1980 e 1990, criadas nas décadas de 2000 e 2010 e aprimoradas nas décadas de 2010 e 2020. Precisamente, em 31 de outubro de 2008, Satoshi Nakamoto publicou o white paper Bitcoin: A Peer-To-Peer Electronic Cash System e principiou-se, então, a criptoeconomia [1]. Ao contrário das moedas fiduciárias de curso forçado — tais quais o Real, a unidade do Sistema Financeiro Nacional —, as criptomoedas são bens econômicos sem fidúcia e sem curso forçado, mas que performam como meios de troca, reservas de valor e unidades de conta, porquanto divisíveis, portáteis, duradouros e escassos [2]. Essencialmente, as criptomoedas não são bens econômicos materiais (tangíveis, ou físicos), mas imateriais (intangíveis, ou digitais), e, em suma, a imaterialidade das criptomoedas permite a realização de transações descentralizadas (sem intermédio de bancos, sejam públicos, sejam privados, por exemplo) desses bens econômicos. As criptomoedas viabilizam, portanto, transações diretas entre parte e contraparte, sem ingerência de terceiros. Basta, para isso, que parte e contraparte acessem as redes de criptomoedas e realizem transações, identificando-se por intermédio de chaves, ou, a rigor, credenciais, públicas (não criptografadas) e privadas (criptografadas). Essas transações são, descentralizada e publicamente, registradas em blockchains (correntes de blocos), e esses registros são, então, validados. Contudo, a descentralização das criptomoedas é, argumentativamente, passível de majorar a prática dos crimes de corrupção, tanto ativa quanto passiva, e de lavagem de dinheiro — tipificados, respectivamente, pelos artigos 317 e 333 do Código Penal e pelo artigo 1º da Lei nº 9.613/1998 — em razão do isolamento dos sistemas financeiros nacionais e internacionais do sistema criptofinanceiro [3]. É dizer: ainda que a identidade da parte e da contraparte sejam públicas, não há, necessariamente, identificação das pessoas naturais ou jurídicas que figuram como parte e contraparte nessas transações de criptomoedas, e, uma vez que transitem dos sistemas financeiros nacionais e internacionais para o sistema criptofinanceiro, não há ingerência de terceiros, inclusive do Estado, sobre as criptomoedas. As criptomoedas incrementam, decerto, a complexidade operacional dos crimes de corrupção e de lavagem de dinheiro, uma vez que viabilizam a dispersão, em relação aos sistemas financeiros nacionais e internacionais, do produto dos referidos crimes, que podem, inclusive, ser transacionados — por servidores públicos, por exemplo —, na forma de criptomoedas, a pessoas naturais ou jurídicas internacionais, não jurisdicionadas no Brasil. A despeito da conclusão de que criptomoedas são infimamente, se comparadas às moedas fiduciárias de curso forçado, utilizadas para praticar crimes de corrupção e de lavagem de dinheiro, decorrente de análises de dados on-chain de criptomoedas, coibir a prática de quaisquer crimes instrumentalizados por criptomoedas deve ser, e efetivamente é, a prioridade da produção de normas jurídicas em matéria de criptomoedas, sobretudo quando ponderados, no processo jurídico-normativo, os princípios da Administração Pública positivados pelo artigo 37 da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), quais sejam, os princípios de acordo com os quais a administração pública deve ser legal, impessoal, moral, pública e eficiente, dentre outros [4]. Assim, a preocupação com a prática dos crimes de corrupção e de lavagem de dinheiro, além de outros atos ilícitos, sobretudo concernentes à administração pública, está consignada nas normas jurídicas em matéria de criptomoedas, a exemplo dos Comunicados nº 25.306/2014 e nº 31.379/2017 do Banco Central do Brasil, que alertam, prospectivamente, acerca da possibilidade de o Estado investigar, em razão da prática de atos ilícitos, os usuários de criptomoedas, a despeito de boa ou má-fé. Analogamente, a Instrução Normativa nº 1.888/2019 da Receita Federal do Brasil prescreve que, havendo indício de prática do crime tipificado pelo artigo 1º da Lei nº 9.613/1998, qual seja, o crime de lavagem de dinheiro, a Receita Federal do Brasil deve, além de sancionar juridicamente com multa, comunicar oficialmente o Ministério Público Federal, ensejando, assim, investigação acerca da prática do crime de lavagem de dinheiro. Nada obstante, tem-se que a produção de normas jurídicas em matéria de criptomoedas, é, decerto, incipiente, preponderando, quantitativamente, não as leis, mas os projetos de lei, que, potencialmente, convolar-se-ão em normas jurídicas e orientarão o combate à prática dos crimes de corrupção e de lavagem de dinheiro, mormente no âmbito da administração pública. Dentre os principais projetos de lei propostos, destaca-se o Projeto de Lei nº 2.303/2015 (no Congresso Nacional), ou nº 4.401/2021 (no Senado Federal), que, atualmente, orienta os demais projetos de lei em matéria de criptomoedas. Especificamente, o artigo 2º do referido Projeto de Lei propõe a inclusão do § 4º ao artigo 11 da Lei nº 9.613/1998, para que o artigo 11, I, da Lei nº 9.613/1998, que prescreve o dever de pessoas naturais e jurídicas de dispensar especial atenção às transações de criptomoedas que indiciem a prática do crime de lavagem de dinheiro, incida sobre as transações de criptomoedas. Outrossim, o Projeto de Lei nº 2.234/2021 propõe a majoração da pena do crime de lavagem de dinheiro se praticado por intermédio de criptomoedas. Ademais, de acordo com o artigo 7º do Projeto de Lei nº 3.825/2019, as ICO (Initial Coin Offers, ou ofertas iniciais de moedas), recurso utilizado para a prática dos crimes de corrupção e de lavagem de dinheiro, deverão se submeter à Comissão de Valores Mobiliários, bem como ao Banco Central do Brasil e à Receita Federal do Brasil, para combater a prática dos referidos crimes. Analogamente, o Projeto de Lei nº 2.164/2021 prescreve que, para emitir criptoativos, a pessoa jurídica de direito público ou de direito privado deve ser estabelecida no Brasil e emiti-los de modo compatível com as atividades que desenvolve e com os mercados em que atua. Notadamente, o estado da arte do combate à prática dos crimes de corrupção e de lavagem de dinheiro por intermédio de criptomoedas é incipiente, mas, concomitantemente, é, também, o núcleo da produção de normas jurídicas em matéria de criptomoedas. Em regra, para que seja efetivo, o combate à prática desses crimes depende, mormente, da identificação das interseções entre os sistemas financeiros nacionais e internacionais e o sistema criptofinanceiro. No sistema criptofinanceiro, não há ingerência do Estado sobre as transações de criptomoedas, mas, nos demais sistemas, há. Consequentemente, o objeto (ou um dos objetos) das normas jurídicas devem ser as pessoas, sobretudo jurídicas, que performam como bancos ou como corretoras de criptomoedas. A esse respeito, observa-se que, também quando consideradas as implicações criminais, sobretudo no âmbito da Administração Pública, o Ofício Circular nº 4.081/2020 do Ministério da Economia subsiste. Isso porque, de acordo com o referido Ofício Circular, pode-se integralizar o capital de sociedades empresárias com criptomoedas, e, por um lado, o combate aos crimes de corrupção e de lavagem de dinheiro é combatido na interseção entre os sistemas financeiros nacionais e internacionais e o sistema criptofinanceiro e, por outro lado, a integralização de capital de sociedades empresárias com criptomoedas é uma dessas interseções. Hodiernamente, no Brasil, tornou-se enfático o combate à prática dos crimes de corrupção e de lavagem de dinheiro, o que contribui para a consignação da percepção de higidez da Administração Pública, sobretudo em face dos princípios, prescritos pelo artigo 37 da CRFB, de impessoalidade, de moral, de publicidade e de eficiência, dentre outros, aos quais a Administração Pública deve se adstringir [5]. Por isso, sem coibir as transações de criptomoedas, que, efetivamente, promovem os direitos fundamentais à liberdade, à propriedade e à liberdade monetária [6], a produção de normas jurídicas em matéria de criptomoedas deve identificar as interseções entre os sistemas financeiros nacionais e internacionais e o sistema criptofinanceiro e, então, jurisdicionar, dificultando ou facilitando, as formas como bens econômicos transitam entre os sistemas. Ademais, deve-se rememorar que, ao contrário das transações de moedas fiduciárias de curso forçado, as transações de criptomoedas são públicas, de modo que a análise de dados on-chain, isto é, dados das blockchains das criptomoedas, está, sempre, à disposição do Estado no combate à corrupção e à lavagem de dinheiro. Em síntese, tem-se que, como tecnologia, as criptomoedas podem promover os direitos fundamentais à liberdade, à propriedade e à liberdade monetária dos usuários de criptomoedas, e, porquanto públicas, podem, inclusive, promover o combate à prática dos crimes de corrupção e de lavagem de dinheiro. Para tanto, é preciso disciplinar as interseções entre os sistemas financeiros nacionais e internacionais e o sistema criptofinanceiro, sem, contudo, coibir as transações de criptomoedas. Desse modo, o ordenamento jurídico brasileiro disporá de recursos para promover a higidez da administração pública no contexto de transformações monetárias digitais.
2023-01-01T08:00-0300
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Opinião
Carlos Machado: Transação tributária e rebuliço hermenêutico
As relações sociais da contemporaneidade sugerem um feixe de complexidades que legitimam as vias plurais de prevenção e resolução de litígios, descortinando, também nos redutos do Direito Tributário, um modelo multiportas dotado de mecanismos diversos para o enfrentamento da conflitualidade. O paradigma multiportas reflete uma nova dogmática jusfilosófica que impõe revisitar os conceitos históricos que sustentaram a essencialidade do Estado em questões sensíveis, notadamente a dissipação de disputas jurídicas erigidas a partir de objetos outrora identificados com os chamados interesses (indisponíveis) públicos. No Brasil, só recentemente foram rompidas as fronteiras para algum avanço da consensualidade e da concertação em controvérsias envolvendo os créditos de natureza tributária, especialmente diante da postura mais compassiva da administração pública e de avanços significativos em termos legislativos. Esse cenário oferece contornos para a percepção de uma administração pública ressignificada, mais dialógica e menos ensimesmada, aberta ao colóquio pluralizado de interesses diversificados, corporificados no âmago de sociedades cada vez mais complexas, plurais e multifacetadas. É argumento prosaico que a lei sempre representou a segurança mais efetiva dos cidadãos contra arroubos autoritários dos poderes instituídos, todavia, hoje, tem sido justamente referenciada como um embrião de insegurança para o direito, diante da profusão demasiadamente complexa, excessiva e mal elaborada. Esse ambiente disruptivo passa a reconhecer, notadamente no Estado constitucional de direto, um postulado jurídico de envergadura mais abrangente, que atende por tutela jurisdicional efetiva, afirmando mecanismos mais adequados para a prevenção e resolução de conflitos, abertos à efetiva participação dos contribuintes e qualificados por equivalente dignidade jurídico-constitucional. Com o advento da Lei Federal nº 13.988, de 2020, fruto de conversão da Medida Provisória nº 899, de 2019, finalmente resultou regulamentado o artigo 171 do Código Tributário Nacional, revelador de uma disposição normativa geral, alvo de menoscabo longevo, já existente no ordenamento jurídico brasileiro desde o ano de 1966. O sucesso quase imediato da transação tributária na esfera federal, catapultado seguramente pela pandemia da Covid-19, impulsionou a concretização de milhares de negociações entabuladas entre os contribuintes e a Fazenda pública, abarcando os mais diferentes setores da economia nacional. Nada obstante, a consagração da transação tributária mais corriqueira, forjada a partir de mera adesão às regras propostas pela administração tributária, mediante condições editalícias rígidas, acabou elevando diversos debates sobre a natureza do instituto negocial. Isso porque, em seu anunciado fundamento teleológico, o modelo transacional elevou-se como um triunfo da consensualidade e da autonomia de vontades, objetivando uma ruptura com a sistemática indiscriminada dos parcelamentos. Malgrado o inegável avanço promovido pelo modelo transacional, ainda que distante de uma negociação em essência mais efetiva (o que ficou limitado às "propostas individuais"), remanesceram críticas razoáveis quando a negociação viceja reduzida à mera anuência das condições editalícias. Nessa linha, retomando a previsão em norma geral a respeito da transação tributária, que qualifica o instituto como modalidade de "extinção do crédito tributário", decorre indisputável controvérsia em cotejo com os tradicionais entendimentos manifestados pela doutrina e pelas enunciações recentes em formulações parlamentares. Daí porque é necessário resgatar a gênese dos institutos de ascendência privada que têm sido incorporados ao Direito Tributário, sob pena de indesejável sobreposição conceitual de proposições normativas com realidades e propósitos distintos. Como instituto de origem privada, a transação já revela controvérsia no próprio seio da disciplina civil. O Código Civil de 1916, hoje revogado, tratou da transação como causa/efeito extintivo das obrigações, não como modalidade de contrato. Já no atual Código Civil de 2002, a transação subsistiu como espécie contratual (artigo 840). O Código Tributário Nacional, por certo, sob a influência da legislação privada, enquadrou a transação tributária como modalidade de extinção do crédito tributário (artigo 156, III). A doutrina abalizada, já há tempos, vem tentando definir os contornos da transação internalizada pelo direito tributário e buscando responder as inúmeras controvérsias que circundam a hermenêutica do instituto [1]. Luís Eduardo Schoueri propôs que a transação tributária, uma vez concluída, "extingue o crédito tributário, por força do artigo 171 do Código Tributário Nacional. O que surge em seu lugar é um novo crédito, resultado da transação. Claro que esse crédito tem natureza pública, mas seu 'fato gerador' é a própria transação" [2]. Paulo de Barros Carvalho, por sua vez, afirma que "é curioso verificar que a extinção da obrigação não se dá propriamente por força das concessões recíprocas, e sim do pagamento. O processo de transação tão somente prepara o caminho para que o sujeito passivo quite sua dívida, promovendo o desaparecimento do vínculo" [3]. Em paralelo, Hugo de Bruto Machado destaca que "não se pode, entretanto, excluir a transação como causa da extinção do crédito tributário, na medida em que, havendo concessão por parte da Fazenda, como no caso em que ocorre dispensa, total ou parcial, de multa e juros, ou mesmo de parte do valor do tributo, é a transação que causa a extinção do vínculo, nessa parte consubstanciada pela concessão da Fazenda" [4]. A realidade que se impõe, no entanto, evidencia que os modelos de transação tributária edificados pela legislação ordinária (notadamente a Lei Federal nº 13.988, de 2020), quando confrontados com a norma geral, têm sido objeto de uma hermenêutica bem mais elastecida (que combina pagamento, parcelamento, moratória, remissão, garantias etc.), em alinhamento com o paradigma de consensualidade típico dos nossos tempos. Na verdade, a previsão da transação tributária sempre existiu por detrás de um véu de incertezas, restando implementada, só recentemente, como evidente medida de política fiscal para enfrentamento da litigiosidade endêmica. E a profusão de modalidades diversas de transação tributária, com configurações criativas e até mesmo desatreladas do conceito maternal (contemplado em norma geral), desnudou a potencialização do conceito vacilante. Nenhuma leitura das disposições codificadas sobre a transação tributária poderia ser mais autêntica, talvez, que a realizada por Rubens Gomes de Sousa, autor do Anteprojeto do Código Tributário Nacional, partindo declaradamente de uma análise do direito privado: "Transação, regulada pelo art. 1.025 do Código Civil, é o ajuste pelo qual as partes terminam um litígio ou evitam que ele se verifique, mediante concessões mútuas. Isto não seria possível no direito tributário, porque, como já vimos, a atividade administrativa do lançamento é vinculada e obrigatório (§ 25), o que significa que a autoridade fiscal não pode deixar de efetuar o lançamento exatamente como manda a lei, não podendo fazer concessões". Rubens Gomes de Sousa acrescenta, ademais, que uma única situação permitiria a transação no Direito Tributário: "Entretanto, existe uma exceção, quanto aos tributos federais, porém somente quando a questão já esteja sendo discutida em juízo: a Lei n. 1.341, de 31.1.51, que regula a atuação dos Procuradores da República, permite, mediante autorização expressa do Procurador Geral em cada caso, que os Procuradores Regionais façam acordos com o contribuinte para terminar o processo: é uma medida necessária quando se verifique que a Fazenda poderá perder parcialmente o processo, a fim de evitar demora, pagamento de custas, etc. (13)" [5]. Resgatando novamente o conceito geral do Código Tributário Nacional, que deve servir como ponto de partida para uma análise mais coerente do instituto (artigo 146, III, da CF/88), tem-se um resultado aparentemente tranquilo quanto à natureza jurídica da transação tributária, o que sugere compreender o instituto como uma modalidade de negociação entabulada com o propósito de extinguir o crédito tributário, mediante a realização de "pagamento imediato" — justamente por isso "extingue". Note-se que a norma geral é bastante clara, prevendo que é a própria transação que figura como causa de extinção do crédito tributário, sem qualquer espécie de ressalva ou de condicionamento. Nesse sentido, basta verificar, como ocorre noutras modalidades de extinção do crédito tributário, que a legislação complementar estabeleceu condicionantes. Significa dizer que o mero "pagamento antecipado", exclusivamente, naquelas hipóteses de tributos sujeitos a lançamento por homologação, não é suficientemente capaz de extinguir o crédito tributário, mas, sim, a efetiva homologação do pagamento, de maneira expressa ou tácita (artigo 156, VII). Também não é a "consignação em pagamento", per si, que extingue o crédito tributário, mas o julgamento de "procedência da ação proposta", quando, só então, o pagamento do crédito tributário se reputa efetuado (artigo 156, VIII). Resulta claro, portanto, que o elemento decisivo para o idealizador do Código Tributário Nacional, no tocante à extinção do crédito tributário pela transação, é a ideia de negociação tributária acompanhada do pagamento imediato. Sem embargo, a miscelânea de institutos incorporados aos modelos consensuais de transação tributária vem desnaturando (e ressignificando) a ideia forjada na década de 1960, quando editado o Código Tributário Nacional, sendo inegável que as moratórias e os parcelamentos, por exemplo, quando admitidos acessoriamente à negociação da dívida tributária, acabam trazendo intrincados problemas teóricos. Em suma, sob o recorte temporal da época, a transação tributária apontava para um mecanismo de natureza muito mais simples, até porque defender redutos de consensualidade no Direito Tributário há cinquenta anos soava como uma retumbante heresia. [1] A ideia de transação como "novação" nas cercanias do Direito Tributário foi peremptoriamente refutada pelo art. 12, § 3º, da Lei nº 13.988, de 2020: "A proposta de transação aceita não implica novação dos créditos por ela abrangidos". [2] SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 10. ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2021. p. 379. [3] CARVALHO, P. B. Curso de direito tributário. 31. ed. São Paulo: Noeses, 2021. p. 496. [4] MACHADO, Hugo de Brito. Transação e arbitragem no âmbito tributário. Revista Fórum de Direito Tributário (RFDT), Belo Horizonte: Fórum, ano 5, nº 28, p. 57, jul./ago. 2007. p. 57. [5] SOUSA, R. G. (Coord. IBET). Compêndio de legislação tributária. p. 116.
2023-01-02T15:16-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-02/carlos-machado-transacao-tributaria-rebulico-hermeneutico
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Direito de defesa
Novo governo acerta ao alterar espaço institucional do Coaf
Em janeiro de 2020, o Congresso Nacional converteu em lei uma medida provisória expedida por Jair Bolsonaro, que deslocava o Coaf do Ministério da Fazenda para o Banco Central. À época escrevi um artigo neste espaço da ConJur com críticas à medida, em especial porque a alteração parecia enfraquecer um órgão indispensável ao combate à lavagem de dinheiro. Passados três anos, o novo governo traz de volta o Coaf para o Ministério da Fazenda, em decisão que parece bastante acertada, pelos motivos que tomo a liberdade de repetir, na esteira das reflexões pretéritas. 1. As Unidades de Inteligência Financeira: os diversos modelos internacionais A melhor forma de combater organizações criminosas é identificar e bloquear seus bens. Para além da prisão de membros, a supressão de recursos é fundamental para esvaziar sua estrutura e capacidade de atuação. Os produtos dos crimes praticados por essas organizações são em geral escondidos e reinseridos na economia formal através de diversas modalidades de lavagem de dinheiro. Para isso, são utilizadas operações simuladas e fraudes para conferir aos recursos de origem criminosa uma aparência de licitude. Como o Estado não tem capacidade de fiscalizar todos os atos financeiros e comerciais usados para mascarar bens, diversos países — entre eles o Brasil — criaram um sistema de colaboração compulsória, pelo qual profissionais e entidades que trabalham em setores mais usados por criminosos para ocultação de recursos devem notificar autoridades públicas sempre que tomarem conhecimento de operações suspeitas, como transações com altos valores em espécie ou depósitos fracionados. Assim, bancos, prestadoras de serviços de ativos virtuais, cartórios, seguradoras, joalheiros, leiloeiros de arte, dentre outros, têm obrigação de colaborar com o poder público e comunicar atos de possível ocultação de bens ilícitos. Tais comunicações são feitas às Unidades de Inteligência Financeira (UIFs), órgãos públicos com atribuição de recolher dados, organizá-los e repassá-los às autoridades competentes para investigar a lavagem de dinheiro, como o Ministério Público. Diversas recomendações de entes internacionais de combate à lavagem de dinheiro recomendam a instituição de UIFs para sistematizar informações sobre movimentações atípicas de capital, aprimorar o combate à reciclagem de capitais e facilitar o intercâmbio de experiências em âmbito internacional. Nessa linha, o Gafi (Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo) recomendou que os países criassem Unidades de Informação Financeira (UIF) que servissem como centro para receber, analisar e transmitir declarações de operações suspeitas (Recomendação 29). A Diretriz 2018/843 do Conselho Europeu destaca a importância das UIFs no combate ao terrorismo e à lavagem de dinheiro e indica como "essencial reforçar a eficácia e a eficiência das UIFs" [1]. Diante disso, diversos países criaram UIFs, com diferentes estruturas, a depender de sua vocação institucional e tradição jurídica. Existem basicamente três espécies de Unidades de Inteligência Financeira: (1) judiciais (2) coercitivas, (3) administrativas — sem considerar as híbridas, que mesclam elementos de cada uma delas. As unidades judiciais são previstas, em geral, naqueles países nos quais o Ministério Público é parte integrante do Judiciário. Neles, as unidades têm natureza persecutória penal porque o próprio órgão responsável pela acusação possui os instrumentos de acompanhamento ou recebimento de informações sobre operações suspeitas. As unidades coercitivas têm natureza administrativa, mas podem determinar medidas cautelares como suspensão de transações, congelamento e sequestro de bens. Por fim, as administrativas têm atribuição exclusiva de sistematização de informações e produção de análises sobre possíveis operações ilegais ou atípicas. Não têm poder de determinar medidas de coerção ou de iniciar processos judiciais. Apenas colhem a informação e comunicam, provocam ou instruem os demais órgãos competentes para a persecução penal ou investigação, como o Ministério Público e a polícia, nos termos e limites da lei. Dado o papel central das UIFs no combate à lavagem de dinheiro, a comunidade internacional recomenda que os países se esforcem para garantir sua autonomia institucional, livrando-as de ingerências políticas e de manipulações que dificultem o exercício de suas funções. Em regra, tais entidades são ligadas diretamente a Ministérios da Fazenda ou da Justiça, com quadro próprio de servidores e estrutura orçamentária adequada. 2. O Coaf A unidade de inteligência brasileira é o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) — e tem natureza administrativa. Não se trata de órgão de investigação ou julgamento, nem de entidade com capacidade de promover medidas cautelares como quebras de sigilo ou bloqueio de bens. O Coaf é um órgão de inteligência, com atribuição estrita de receber, armazenar e sistematizar informações sobre operações suspeitas, elaborar relatórios sobre tais dados e enviá-los aos órgãos de investigação (polícia e Ministério Público), nos limites definidos em lei. A lei de lavagem de dinheiro elenca, em seu artigo 9º, as pessoas físicas ou jurídicas que têm a obrigação de comunicar ao Coaf atos suspeitos de lavagem de dinheiro praticados em seu setor. Trata-se de uma gama heterogênea de atividades, que vai daquelas estritamente reguladas por órgão específico, como bancos, custodiantes, emissores e distribuidores de valores mobiliários, empresas de seguro, capitalização ou previdência privada até outras sem órgão regulador próprio, como o comércio de joias, metais preciosos, pedras, objetos de arte e antiguidades. Justamente por receber informações de pessoas físicas e jurídicas de tantos e diferentes setores, o Coaf deve ser um órgão eclético, composto por representantes de diversos órgãos públicos, e não deve estar subordinado a uma autarquia específica, como o Banco Central. Por mais que esse órgão tenha experiência na prevenção à lavagem de dinheiro, suas funções não se confundem com as do Coaf. Aquele regulamenta e fiscaliza o sistema financeiro e as instituições financeiras. Esse é mais abrangente, pois recebe e sistematiza e informações de inúmeros setores, a maior parte deles sem qualquer relação com o sistema financeiro, como o comércio de bens de luxo, a corretagem de imóveis e a atividade notarial e de registros públicos. Apenas em 2022, o Coaf recebeu mais de 420 mil comunicados de notários e registradores, e mais de 320 mil oriundos do mercado segurador, não regulados pelo Banco Central, a revelar que o espectro de prevenção à lavagem de dinheiro é mais amplo do que as atividades reguladas por essa autarquia. A existência de um Coaf forte e independente é a chave para prevenir e combater a lavagem de dinheiro. Isso passa por garantir que o órgão tenha capacidade de interagir com setores regulados por diversas entidades, objetivo mais fácil de atingir quando não se é subordinado a uma autarquia específica, como Banco Central. Nesse sentido, merece elogios a medida tomada pelo novo governo. Que os próximos passos garantam uma política criminal efetiva, pautada pela legalidade no manejo dos dados pessoais e pela eficiência no tratamento das informações.   [1] Considerando 16 da DIRETIVA (UE) 2018/843 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 30 de maio de 2018 que altera a Diretiva (UE) 2015/849 relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo e que altera as Diretivas 2009/138/CE e 2013/36/UE [2] Lei 9.613/98. art. 16 e Decreto 9663/19, art. 3º [3] Gafi — Nota interpretativa 8 da Recomendação 29 (UIFs) [4] Gafi — Nota interpretativa da Recomendação 29 (UIFs) [5] Lei 83/2017, art. 83 [6] Gafi – Nota interpretativa da Recomendação 29 (UIFs)
2023-01-03T09:55-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-03/governo-acerta-alterar-espaco-institucional-coaf
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Opinião
Paulo de Bessa: A nova estrutura do Ministério do Meio Ambiente
Este artigo objetiva fazer uma análise preliminar das modificações introduzidas pela administração Lula na estrutura administrativa federal voltada para a proteção do meio ambiente e dos povos e populações tradicionais. É muito provável que surjam modificações nas novas estruturas, em função de acomodações políticas e solução de incompatibilidades e inconsistências entre os instrumentos normativos baixados. A Medida Provisória 1.154/2023 [MP] fez uma ampla reformulação da administração pública federal, com a instituição de novos ministérios e a transformação do Ministério do Meio Ambiente em Ministério do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas (MMA). Também merecem destaque na MP as criações do Ministério da Igualdade Racial (MIR) e o dos Povos Indígenas (MPI). Espera-se que tais inovações tenham impacto em vários assuntos de grande interesse para o país, tais como os direitos humanos, respeito aos direitos indígenas e de comunidades tradicionais, desflorestamento, atividades minerárias, infraestrutura, acesso à diversidade biológica e muitos outros. O artigo 33 da MP 1.154/2023, ao dispor sobre as competências do Ministério da Igualdade Racial estabeleceu competir ao novo ministério as políticas para quilombolas, povos e comunidades tradicionais, dentre outras. Neste ponto é importante observar que a inclusão dos povos e comunidades tradicionais como sujeitos à proteção do recém-criado ministério, nos permitiria supor que as questões relativas à aplicação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho a tais povos e comunidades tradicionais estariam sob o guarda-chuva do MIR. Contudo, a estrutura organizacional do MIR, aprovada pelo Decreto nº 11. 346/2023, em seu artigo 1º, III atribui competência para o novo ministério para "políticas para quilombolas, povos e comunidades tradicionais". Entretanto, os artigos 22, 23 e 24 não definem claramente, dentre as competências, as políticas para comunidades tradicionais que não estejam vinculadas à matriz africana, como caiçaras, por exemplo. O Decreto nº 11.338 que aprovou a estrutura regimental do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar faz menções genéricas às comunidades tradicionais, prevendo uma Secretaria de Territórios Produtivos Quilombolas e Tradicionais. Aqui há uma omissão que deve ser solucionada. O MMA, conforme o disposto no artigo 36 na MP 1.154/2023 [1], recuperou a competência sobre diversos temas que na administração passada haviam sido deslocados para outros ministérios. destaque maior, entretanto, é sobre as novas atribuições da pasta. Ressaltem-se as (1) estratégias, mecanismos e instrumentos regulatórios e econômicos para a melhoria da qualidade ambiental e o uso sustentável dos recursos naturais, as (2) políticas para a integração da proteção ambiental com a produção econômica e (3) as políticas para a integração entre a política ambiental e a política energética. Tais competência, ao mesmo em nível formal, dão ao novo MMA um inédito protagonismo, Entretanto, não se pode deixar de registar que ao Ministério das Minas e Energia foi reservada uma atribuição ambiental da maior importância, conforme o disposto no artigo 37, IX e XI da MP 1.154/2023, a saber as (1) políticas nacionais de sustentabilidade e de desenvolvimento econômico, social e ambiental dos recursos elétricos, energéticos e minerais e a (2) avaliação ambiental estratégica, quando couber, em conjunto com o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima e os demais órgãos relacionados. A AAE é uma medida de planejamento que, necessariamente, deve estar correlacionada ao Zoneamento econômico-ecológico, não fazendo sentido que fique fora do âmbito do MMA. A AAE terá a participação na elaboração do MMA "quando couber", o que é uma hipótese vaga e indefinida. A conversão da MP em lei, deveria realocar tal competência para o MMA, como parece ser o local evidente para tal AAE. Em relação à Agência Nacional de Águas (ANA) não há clareza sobre a sua localização na estrutura da administração federal, haja vista que a autarquia está presente no MMA [2] e no Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional [3], havendo também muitas competências em relação à água no Ministério das Cidades [4]. Esta situação merece um pronto esclarecimento. A determinação presidencial para a reorganização o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), em tal contexto, é muito relevante. Contudo, não se pode perder de vista que há um novo quadro normativo que, se mantido, exige uma nova estruturação do Conama que com ele seja compatível. Refiro-me, em especial, aos artigos 21 e 24 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb) [5] e a Lei de Liberdade Econômica. Esta última, em seu artigo 5º [6] e seu Regulamento (artigo 1º) determina que os órgãos da administração pública que produzam atos normativos de interesse geral de agentes econômicos, inclusive órgãos colegiados, deverão proceder previamente, à edição de novos atos, à chamada análise de impacto regulatório (AIR) [7]. Há hipótese de dispensa da AIR [8], com a exigência da elaboração de nota técnica sobre a matéria, justificando a dispensa. Veja-se que tais determinações são obrigatórias para o MMA e seus órgãos vinculados [9]. Ainda no âmbito do MMA, o Decreto nº 11.373/2023, alterou o Decreto 6.514/2008, em especial no que se refere ao processo sancionatório. O fato é que o Decreto 6.514/2008 é uma colcha de retalhos tendo em vistas as suas inúmeras alterações. Na parte processual da aplicação das sanções, é importante que a nova administração dê passos no sentido de criar uma instância autônoma e independente para o julgamento dos autos de infração. Os sistemas que foram até aqui utilizados são pouco eficientes e, na prática, atrapalham a própria arrecadação dos valores decorrentes de multas. Um novo modelo, entretanto, não se implanta em 24 horas. A estrutura básica do MMA sofreu uma reformulação interessante, na medida em que incorporou temas atuais. Merece destaque a Secretaria Nacional de Biodiversidade, Florestas e Direitos Animais que conta com um Departamento de Proteção, Defesa e Direitos Animais com atribuições para a promoção da proteção, defesa, bem-estar e direitos animais. No tema de bem-estar animal é possível imaginar que o MMA tenha embates com o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), pois o artigo 1º, XII do Decreto nº 11.332/2023 [10], institui competência para o Mapa no mesmo tema. Parece ser evidente que o MMA não se limitará a cuidar dos chamados animais de companhia (pets), sendo razoável supor que terá influência na situação dos animais para abate, "práticas esportivas", trabalho e outras. Naturalmente, as questões relativas às mudanças climáticas ganharam um merecido protagonismo, com estruturas compatíveis. A reorganização do Fundo Nacional do Meio Ambiente (Decreto nº 11.372/2023) é medida apropriada, pois recoloca a sociedade civil em papel de destaque na sua gestão. A revogação pura e simples do Decreto nº 10.966/2022 foi medida acertada, pois a norma revogada era um incentivo às práticas garimpeiras ilegais. O restabelecimento dos demais fundos ambientais também é medida para se celebrar. O Ministério dos Povos Indígenas é uma importante novidade que merece aplausos. Conforme o artigo 42 da MP nº 1.154/2023 são da competência do MPI a política indigenista em seu sentido amplo e, especialmente, o (1) reconhecimento, garantia e promoção dos direitos dos povos indígenas; o (2) reconhecimento, demarcação, defesa, usufruto exclusivo e gestão das terras e dos territórios indígenas; o (3) bem-viver dos povos indígenas; a (4) proteção dos povos indígenas isolados e de recente contato; e os (5) acordos e tratados internacionais, em especial a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), quando relacionados aos povos indígenas. É também, simbolicamente, relevante a nova denominação da Funai que passa a ostentar o noma de Fundação Nacional dos Povos Indígenas [11]. O consentimento prévio livre e informado, certamente, crescerá de importância com o MPI e a Funai revigorada. As modificações normativas são importantes e, certamente, são bem-vindas e oportunas, ainda que alguns ajustes se façam necessários. O novo MMA surge com uma estrutura mais robusta do que as anteriores, em especial devido à reativação os fundos ambientais que colaborarão com o financiamento das medidas necessárias. Somente a prática administrativa será capaz de definir o grau de relevância do MMA no interior da administração federal, bem como superar as superposições existentes com outros órgãos. [1] Art. 36. Constituem áreas de competência do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima: I - política nacional do meio ambiente; II - política nacional dos recursos hídricos; III - política nacional de segurança hídrica; IV - política nacional sobre mudança do clima; V - política de preservação, conservação e utilização sustentável de ecossistemas, biodiversidade e florestas; VI - gestão de florestas públicas para a produção sustentável; VII - gestão do Cadastro Ambiental Rural - CAR em âmbito federal; VIII - estratégias, mecanismos e instrumentos regulatórios e econômicos para a melhoria da qualidade ambiental e o uso sustentável dos recursos naturais; IX - políticas para a integração da proteção ambiental com a produção econômica; X - políticas para a integração entre a política ambiental e a política energética; XI - políticas de proteção e de recuperação da vegetação nativa; XII - políticas e programas ambientais para a Amazônia e para os demais biomas brasileiros; XIII - zoneamento ecológico-econômico e outros instrumentos de ordenamento territorial, incluído o planejamento espacial marinho, em articulação com outros Ministérios competentes; XIV - qualidade ambiental dos assentamentos humanos, em articulação com o Ministério das Cidades; XV - política nacional de educação ambiental, em articulação com o Ministério da Educação; e XVI - gestão compartilhada dos recursos pesqueiros, em articulação com o Ministério da Pesca e Aquicultura. [2] MP 1154/2023. Art. 60. A Lei nº 9.984, de 17 de julho de 2000, passa a vigorar com as seguintes alterações: "Art. 3º Fica criada a Agência Nacional de Águas - ANA, autarquia sob regime especial, com autonomia administrativa e financeira, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, com a finalidade de implementar, em sua esfera de atribuições, a Política Nacional de Recursos Hídricos, integrante do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. [3] Art. 2º O Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional tem a seguinte estrutura organizacional:...V - entidades vinculadas: a) autarquias: 5. Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA [4] MP 1153/2023. Art. 20. Constituem áreas de competência do Ministério das Cidades: ...II - políticas setoriais de habitação, de saneamento ambiental, de mobilidade e trânsito urbano, incluídas as políticas para os pequenos Municípios e a zona rural; III - promoção de ações e programas de urbanização, de habitação e de saneamento básico e ambiental, incluída a zona rural, de transporte urbano, de trânsito e de desenvolvimento urbano; V - planejamento, regulação, normatização e gestão da aplicação de recursos em políticas de desenvolvimento urbano, urbanização, habitação e saneamento básico e ambiental, incluídos a zona rural, a mobilidade e o trânsito urbanos; e VI - participação na formulação das diretrizes gerais para conservação dos sistemas urbanos de água e para adoção de bacias hidrográficas como unidades básicas do planejamento e da gestão do saneamento. [5] Art. 21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos......Art. 24. A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas Parágrafo único. Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público. [6] Lei nº 13.874/2019. Art. 5º — As propostas de edição e de alteração de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados, editadas por órgão ou entidade da administração pública federal, incluídas as autarquias e as fundações públicas, serão precedidas da realização de análise de impacto regulatório, que conterá informações e dados sobre os possíveis efeitos do ato normativo para verificar a razoabilidade do seu impacto econômico. Parágrafo único. Regulamento disporá sobre a data de início da exigência de que trata o caput deste artigo e sobre o conteúdo, a metodologia da análise de impacto regulatório, os quesitos mínimos a serem objeto de exame, as hipóteses em que será obrigatória sua realização e as hipóteses em que poderá ser dispensada. [7] Decreto nº 10.411/2020: Art. 1º Este Decreto regulamenta a análise de impacto regulatório, de que tratam o art. 5º da Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019, e o art. 6º da Lei nº 13.848, de 25 de junho de 2019, e dispõe sobre o seu conteúdo, os quesitos mínimos a serem objeto de exame, as hipóteses em que será obrigatória e as hipóteses em que poderá ser dispensada. § 1º. O disposto neste Decreto se aplica aos órgãos e às entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, quando da proposição de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados, no âmbito de suas competências. § 2º. O disposto neste Decreto aplica-se às propostas de atos normativos formuladas por colegiados por meio do órgão ou da entidade encarregado de lhe prestar apoio administrativo. [8] Art. 4º — A AIR poderá ser dispensada, desde que haja decisão fundamentada do órgão ou da entidade competente, nas hipóteses de: I - urgência; II - ato normativo destinado a disciplinar direitos ou obrigações definidos em norma hierarquicamente superior que não permita, técnica ou juridicamente, diferentes alternativas regulatórias; III - ato normativo considerado de baixo impacto; IV - ato normativo que vise à atualização ou à revogação de normas consideradas obsoletas, sem alteração de mérito; V - ato normativo que vise a preservar liquidez, solvência ou higidez: a) dos mercados de seguro, de resseguro, de capitalização e de previdência complementar; b) dos mercados financeiros, de capitais e de câmbio; ou c) dos sistemas de pagamentos; VI - ato normativo que vise a manter a convergência a padrões internacionais; VII - ato normativo que reduza exigências, obrigações, restrições, requerimentos ou especificações com o objetivo de diminuir os custos regulatórios; e VIII - ato normativo que revise normas desatualizadas para adequá-las ao desenvolvimento tecnológico consolidado internacionalmente, nos termos do disposto no Decreto nº 10.229, de 5 de fevereiro de 2020. § 1º Nas hipóteses de dispensa de AIR, será elaborada nota técnica ou documento equivalente que fundamente a proposta de edição ou de alteração do ato normativo. § 2º Na hipótese de dispensa de AIR em razão de urgência, a nota técnica ou o documento equivalente de que trata o § 1º deverá, obrigatoriamente, identificar o problema regulatório que se pretende solucionar e os objetivos que se pretende alcançar, de modo a subsidiar a elaboração da ARR, observado o disposto no art. 12. § 3º Ressalvadas informações com restrição de acesso, nos termos do disposto na Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, a nota técnica ou o documento equivalente de que tratam o § 1º e o § 2º serão disponibilizados no sítio eletrônico do órgão ou da entidade competente, conforme definido nas normas próprias. [9] Art. 24. Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação e produz efeitos em: I - 15 de abril de 2021, para: a) o Ministério da Economia; b) as agências reguladoras de que trata a Lei nº 13.848, de 2019; e c) o Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia - Inmetro; e II - 14 de outubro de 2021, para os demais órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. [10] Art. 1º. O Ministério da Agricultura e Pecuária, órgão da administração pública federal direta, tem como áreas de competência os seguintes assuntos:......XII - boas práticas agropecuárias e bem-estar animal. [11] MP 1153/2023. Art. 58. A Fundação Nacional do Índio (Funai), autarquia federal criada pela Lei nº 5.371, de 5 de dezembro de 1967, passa a ser denominada Fundação Nacional dos Povos Indígenas - Funai.
2023-01-04T06:16-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-04/paulo-bessa-nova-estrutura-ministerio-meio-ambiente
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Senso Incomum
TV e rádio em tempos néscios: a civilização fracassou
No que se transformou a TV? Vamos lá. Você paga TV a cabo e tem mais comerciais do que a TV aberta. Tem até um canal que se especializou em extrair espinhas e furúnculos. E tem comercial. De pomada para... espinhas e furúnculos. Tem gosto para tudo. A TV aberta dispensa comentários. Programas de quinta categoria com auditórios fake e quiz shows para psitacídeos. Os noticiários repetem o que já deu nas redes. E nessas os repórteres entram na enchente e ficam com água pela canela para explicar que ali há uma... enchente (ver aqui meu texto Antes de Adnet, mostrei o esgotamento de um "modelo" de reportagem). Bingo. Os programas esportivos? Imitam os programas de humor. E nada mais precisa ser dito sobre. Profundidade? Dos calcanhares de uma formiga. Escapam muito poucos (Kfouri, Casão, são exceções). Os programas religiosos estão na TV aberta e a cabo. Claro. Para atazanar a vida da malta. E dela tirar uma grana. Pastores-Pix-vendedores-de-curas-milagrosas (e até de Covid — o RR diz que curou mais de 100 mil, menos ele mesmo, que foi entubado) se multiplicam. Todas as religiões. Os católicos não podem oferecer cura a la pentecostes (para quem não sabe, há uma diferença entre o catolicismo e as religiões pentecostais e correlatas; por isso só há santos para católicos; lembram do pastor que chutou a santa?). Mas os católicos compensam com venda de remédio para crescer cabelo, bijuterias e quejandices. E ainda há os católicos carismáticos, espécie de ala bolsonarista da igreja. De todo modo, nesse ramo "espiritual", a cada dia aumenta o número de picaretas. Leva-se menos de meio dia para abrir uma igreja. O filósofo e jornalista Hélio Schwartsman testou o sistema e mostrou como isso funciona (leiam o texto O primeiro milagre do heliocentrismo, de 2009). Tem alguns que "vendem" seu peixe falando aramaico ou hebraico (decoram algumas palavras). A parte final dos programas é mais ou menos assim: não esqueçam de fazer a sua contribuição. E leem um trecho da bíblia para amedrontar o fiel. Alguns cantam. E mal. Ao lado dos canais religiosos estão os canais de culinária. Estão mais no segmento cabo. Uma autêntica picaretagem com canais de aproveitadores de todos os tipos que capitaneiam programas de viagens para comer de graça, pescadores que passam o dia pescando e atirando os peixes de volta depois de rebentar as suas bochechas (a dos peixes) e disputas de quem faz o melhor doce ou churrasco. E há os que pegam um cocô de mamute e demonstram que ali há havia pistas de alienígenas do passado. Sem esquecer Reco Reco, Bolão e Azeitona que eternamente buscam pistas do pé-grande. E tem os que reformam casas. E explicam cada passo in off. Essas "explicações" in off deveriam dar prisão em flagrante. E o que dizer de dublagem que tem palavrões com ruído sonoro para apagar o palavrão? Mas se é dublagem, por que tem de traduzir o palavrão e, ao mesmo tempo, apagar o som com um apito? É pura estupidez ou o quê? Há também programas "realitys" ridículos de largados pelados que arfam comendo larvas e explicando para o telespectador in off o gosto da larva e da cascavel. " — Ah, agora vou quebrar esse osso para comer o resto de tutano podre...". Pergunta-se: se o infeliz do telespectador acabou de ver o sujeito com sede, porque é necessário que o idiota faça uma fala in off dizendo: " — Aah, se eu não conseguir água posso morrer". O mundo vai acabar. Só isso explica tanta bobagem. A grande pandemia foi o surgimento das redes sociais. Momento em que os néscios saíram da toca (digo diferentemente do que disse Eco para não ser ironicamente repetitivo — e estou sendo irônico). E lá no cabo vêm programas de notícias que (se) repetem ad nauseam com opiniões repletas de truísmos e platitudes (quando não ultrarreacionárias, como na Jovem Klan). O engraçado é que os "democratas" da J. Klan pregam — e isso é fato — explicitamente golpe militar dia sim e dia também e dizem: estamos aqui pela ética e pela verdade. Em nome da democracia e da liberdade de opinião. Hum, hum. Tem um programa em TV aberta no RS que sustenta que a posse de Lula foi fake. Putz: então minha ida a Brasília foi em vão? E os presidentes dos Estados europeus? Perderam a viagem? Que coisa, não? Gostei da última: Mourão não poderia ter feito pronunciamento. Usurpou a função. Pausa para uma farfalhada. Outra (de uma rádio do Bispo Macedo): Mourão se aliou aos comunistas. Boa também. Vai para o Guiness. Mundo mundo, vasto mundo... Deveriam abrir espaço para os pentecostais que acreditam no Apocalipse. Cada programa deveria ser encerrado com uma pregação tipo Malafaia. Tem os programas mundo cão, que estão mais na TV aberta. Tipo Datena e o outro que comemora quando a polícia mata. Seu jargão: CPF cancelado. Todos riem. Como hienas. Como diz a canção de Jessé, abençoai as hienas... (veja aqui Paraíso das Hienas). E pensar que a malta paga impostos para que o Estado conceda direitos para alguém colocar uma TV... e produzir esse tipo de subcultura bazural. Televisão é isso. Ah, tem a Netflix (e outras plataformas). Algumas coisas escapam. Há filmes antigos. Mas os de produção própria... tem cada porcaria, bah. E as séries que enchem linguiça? Poderiam contar em três capítulos e fazem dez. E mais duas temporadas. O que resta? Um bom livro. Desde que se escolha bem. Ou pensam que a mediocridade está restrita à TV e ao rádio? Falando em rádio, ouvi, em viagem no dia 3 de janeiro, o programa Pretinho Básico, da Rádio Atlântida (Porto Alegre). Vejam como são "engraçados". Fizeram uma "charada": o que é que tem quatro patas por fora e duas mãozinhas por dentro? Reposta, com gargalhadas dos participantes: o cachorro do goleiro Bruno. Sim, foi isso mesmo que você leu. Lindo isso, não? E rádio é concessão pública. Para esse "humor". Ah, esse Umberto Eco... Alerta final para você que, comigo, deseja combater essa chinelagem-baixo-clerista descrita nesta coluna: cuidado ao sair com um livro na mão. Talvez encontre um néscio que diga: fale-me de cultura e livros... que eu saco uma arma.
2023-01-05T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-05/senso-incomum-tv-radio-tempos-nescios-prova-civilizacao-fracassou
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Opinião
Douglas Ibarra: O dolo específico em improbidade administrativa
Até novembro de 2022, a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral era pacífica de que, "para fim da inelegibilidade do art. 1º, I, g, da LC 64/90, não se exige dolo específico, mas apenas dolo genérico, que se caracteriza quando o administrador assume os riscos de não atender aos comandos constitucionais e legais que pautam os gastos públicos" [1]. Contudo, a partir da sessão de julgamento do dia 10/11/2022, o TSE enfrentou a temática a partir das mudanças advindas com Lei nº 14.230/2021, que trouxe alterações substanciais para a matéria de improbidade administrativa, ocasião em que a corte deliberou que, mesmo que o agente público não seja ordenador de despesas — função meramente formal —, é possível que ele responda por improbidade administrativa, e por isso mesmo, incorra em inelegibilidade, sem prejuízo de uma análise percuciente do caso concreto [2]. Na mesma assentada, ficou patente a necessidade de uma análise aprofundada do caso concreto, a fim de se averiguar, efetivamente, a métrica do dolo específico, que, naquele caso em julgamento, não se evidenciou, mesmo reconhecendo-se que, até aquele momento, o TSE ainda não possuía jurisprudência consolidada a respeito, notadamente a partir da nova lei de improbidade administrativa. A matéria evoluiu de forma substancial na sessão plenária do dia 22/11/2022 [3], hipótese em que, mesmo o TRE-SC não tendo apreciado a matéria a dizer com dolo específico na forma da nova lei de improbidade administrativa — que, na ocasião, ressaltou apenas a jurisprudência então reinante em torno do dolo genérico —, o TSE analisou a matéria, dada a ampla devolutividade do recurso ordinário eleitoral, evoluindo para assentar que, na hipótese de omissão de prestação de contas e não comprovação do uso do recurso público — em julgamentos do Tribunal de Contas da União —, inclusive com pagamento de débito e multa, manifesta é a finalidade do agente em vulnerar os cofres públicos, restando clarividente, por isso mesmo, a hipótese de dolo específico, nos termos da nova lei de improbidade. Neste último julgado, em resumo, o eminente relator destacou que: 1) não cabe à Justiça Eleitoral decidir sobre o acerto ou desacerto das decisões proferidas por outros órgãos do Judiciário ou dos Tribunais de Contas que configurem causa de inelegibilidade (Súmula TSE n. 41); 2) não obstante o silêncio da corte regional sobre o dolo específico, a ampla devolutividade do recurso ordinário permite a apreciação da matéria pelo TSE; e 3) é imprescindível uma análise aprofundada do acórdão do TCU, a permitir a conformação do caso concreto à métrica do dolo específico. Nesse contexto, as teses de imperícia técnica ou mera falta de diligência, que usualmente são sustentadas em prol de candidatos que são reputados inelegíveis em virtude da desaprovação das contas pelo TCU, não se mostraram subsistentes para TSE, especialmente nos casos em que não há nenhuma comprovação do destino dos recursos públicos envolvidos. Segundo a Corte Eleitoral, esses casos não retratam uma mera assunção de um risco pelo gestor, tendo em vista o dever de tratar coisa pública com transparência e eficiência. De fato, a prestação de contas é o pilar principal, é a regra, de toda e qualquer execução de um convênio, por exemplo. Não é um aspecto marginal, suscetível eventualmente a uma ponderação sobre eventuais irregularidades ou inaptidão do gestor. A prestação de contas é o núcleo duro da execução de convênios, notadamente aqueles que envolvem valores expressivos, sendo despicienda, na linha do que decidiu o TSE, qualquer nota de malversação, desvio ou locupletamento ilícito pelo TCU, para que se evidencie o dolo específico. Afinal, a falta de prestação de contas — casuisticamente verificável —, por si só, tem o condão de ensejar o reconhecimento de ato doloso de improbidade, considerando os matizes do caso concreto. Assim, se de um lado não é factível a responsabilidade objetiva em matéria de improbidade administrativa, de outro existe a possibilidade de um ato de improbidade atentatório, na forma do artigo 11, VI, da lei de regência, pautado na voluntariedade e consciência do agente em não prestar contas, e na ausência de comprovação do uso de recursos públicos, a denotar, com substância, o dolo específico do agente. Logo, o TSE, em mais de uma oportunidade, já apresentou um importante vetor jurisprudencial em torno das mudanças advindas da Lei nº 14.230/2021, em face da jurisprudência da corte em matéria de inelegibilidades, o que demonstra um esforço hermenêutico da corte em compatibilizar a nova lei de improbidade com a lei de inelegibilidades, sem esvaziar a normatividade da famigerada "alínea g", do artigo 1, inciso I, da Lei n. 64/90. [1] Nesse sentido, REspE nº 060015086, acórdão, relator(a) min. Luis Felipe Salomão, publicado em sessão, data 12/11/2020. [2] RO 060104626/RECIFE-PE, de relatoria do min. Ricardo Lewandowski. [3] RO 060076575/FLORIANÓPOLIS-SC, de relatoria do min. Carlos Horbach.
2023-01-05T07:17-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-05/douglas-ibarra-dolo-especifico-improbidade-administrativa
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Opinião
Pablo Domingues: "Operações" e medidas cautelares estigmatizantes
Não é incomum — aliás é vulgar, ordinário — que investigações policiais, ou presididas por outros órgãos de persecução, desdobrem em medidas cautelares que impliquem afastamentos de sigilo; buscas e apreensões; prisões temporárias e preventivas, dentre outras, dos investigados. As medidas, desde que necessárias, não devem atrair maiores atenções críticas. Também não se pretende, por meio desse breve ensaio, questionar o uso demasiado dessas medidas. Aqui, se poderia subdividir em três grandes equívocos que não raras vezes envolvem as medidas cautelares de natureza criminal: (1) excesso e abuso na postulação de determinada medida (como se fosse irrelevante a demonstração de necessidade, utilidade e, ainda, adequação do que se postula com o que se busca realizar em termos de produção de provas ou preservação do processo/investigação); (2) excesso e abuso na decisão judicial que defere tais medidas, novamente sem observância da necessidade, utilidade e, ainda, adequação do que se postula com o que se busca realizar em termos de produção de provas ou preservação do processo/inquérito (STJ - HC: 497699 MG 2019/0068160-8, relator: ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO); (3) excesso e abuso dos agentes responsáveis por cumprir estas medidas que, em muitas ocasiões, ignoram aspectos de legalidade que legitimam o ato (STJ - HC: 673489 SP 2021/0183180-5, relator: ministro OLINDO MENEZES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 1ª REGIÃO). Portanto, não é uma crítica aos excessos conhecidos e que rodeiam os atos de força autorizados pelo Estado. Para estas a jurisprudência reconhece as eventuais ilegalidades e a elas dá o respectivo tratamento, revogando decisões, reputando como nulos determinados atos, dentre outras medidas. O que se propõe é uma reflexão crítica sobre o que se cunhou denominar "operações" capitaneadas pelas polícias ou Ministérios Públicos, de forma integrada, ou não, com demais órgãos de controle e fiscalização, com o fim de se promover uma espécie de "batismo" de alguma(s) dessa(s) medidas, que mais comumente têm como alvos números consideráveis de investigados, alicerçadas com imposições a estes de medidas cautelares de diversas naturezas, de modo cumulado. Como consequência, de modo oficial, as autoridades que postulam essas medidas passam, então, à nomeá-las (as medidas cautelares aplicadas simultaneamente) como "operações", sempre acompanhadas de um substantivo ou adjetivo para rotulá-las, invariavelmente de modo negativo, atribuindo características que, ou desqualificam as pessoas dos investigados, promovendo-se, em muitos casos, trocadilhos com os ofícios desempenhados pelos destinatários das medidas, ou utilizando-se de expressões que denotariam uma necessária purificação dos envolvidos. Exemplo destes últimos é a própria operação "lava jato". Para os demais, tem-se "Operação Registro Espúrio"; "Operação Injusta Causa"; "Operação Faroeste", etc. Com efeito, com esses expedientes — tal qual ocorre na medicina quando uma equipe de cirurgiões — os "cirurgiões de polícia ou Ministério Público" igualmente promovem suas operações, tendo como paciente o tecido social, e daí inaugura-se uma verdadeira e novel categoria processual não prevista em lei. Afinal, não há lei em vigor, notadamente em Direito Penal material e Processual Penal, que assegure aos órgãos de persecução o direito (nem muito menos o dever) de apelidarem de "operações" as medidas cautelares que postulam e nem tampouco de as complementarem com termos depreciativos, antecipando um juízo de valor negativo sobre o objeto da investigação. A este respeito Paulo Henrique Drummond Monteiro (2019, p. 7) adverte que as teorias da Reação Social consideram que o delito é definido por meio dos processos de criminalização realizados pelos próprios sistemas de controle social. Portanto, o desvio de conduta não ostentaria uma matriz ontológica e, sim, definitória. Estes sistemas são seletivos, discriminatórios e capazes de rotular algumas pessoas, as quais sustentam um verdadeiro estigma. Voltando-se à hipótese do que se pretende aqui mentalizar, é de se ponderar que a adoção desses nomes e expressões para "batizar" as medidas cautelares refletem justamente o processo de criminalização, rotulação e estigmatização aferidos nas teorias da Reação Social. É dizer: ao alcunharem estes atos processuais, aqueles que se valem das medidas cautelares postuladas e deferidas criam o estigma necessário para os destinatários das medidas, para torná-los verdadeiros "criminosos". Tornam-se os corpos enfermos da medicina. Lá, os médicos cuidam de uma sociedade fisiologicamente doente. Aqui usa-se a força bruta do Estado para tentar (inutilmente) dar algum tratamento ao tecido social, compostos por pessoas agora identificadas, rotuladas. Pior: com cicatrizes que as demarcam processualmente. A partir daí, imergidos em uma categoria processual inominada e não autorizada por lei, estes sujeitos etiquetados travam com o Estado verdadeira disputa para se recolocarem em um ambiente em que possam exercer os seus direitos constitucionais mais comezinhos, sem que deixem toda a carga negativa e pecha de delinquente interferirem no devido processo legal, bem como na ampla defesa e contraditórios com todos os meios e recursos a ela inerentes. Aqui cabe melhor reflexão, precisamente no que se refere a capacidade de interferência que este etiquetamento é capaz de produzir. É que um ambiente de supressão de direitos passa a preponderar. As medidas de impugnações defensivas das pessoas que estejam envolvidas nas ditas "operações" não gozam, materialmente, dos mesmos alcances caso estivessem se defendendo num contexto a parte de uma operação. Significa dizer que um sujeito envolvido em uma dessas operações experimentará dificuldades muito além daquelas — já excessivas — encontradas por um indivíduo comum, atrelado a um inquérito que esteja em fase de persecução, porém sem submeter o investigado a medidas cautelares diversas e orquestradas. As "operações", sempre acompanhadas de uma cobertura dedicada dos veículos de impressa, são capazes, ainda que no subconsciente do senso comum ou no consciente daqueles que participam das "operações", de carimbar os seus pacientes (em termos médicos) ou os alvos (em termos jurídicos), para que passem a ser identificados, não apenas pela sociedade, pelo apelo público que geralmente essas medidas desvelam, mas, o que se reputa ainda mais grave, um tratamento categorizado e etiquetado no âmbito do próprio Poder Judiciário. O tratamento jurídico que o Poder Judiciário dispensa à determinadas pessoas quando precisam se defender no âmbito de um inquérito, instaurado para apurar práticas ilícitas penais isoladamente, é completamente diferente de quando, em análise dos mesmos tipos penais, esta pessoa precisa se defender em um inquérito demarcado com a mácula de ser fruto de uma "operação". A ideia (desvirtuada e falsa) que se passa com essa categorização ilegal (registre-se) é que os alvos — e são formalmente nomeados assim- precisam ser expostos (daí há um empenho para que o caso, em que pese sigiloso, tenha informações compartilhadas com a mídia) e, para além disso, por não serem meros investigados, também experimentam dificuldades reais de terem acolhidas as medidas de defesa implementadas. Todo o corpo julgador, por mais neutro que tente ser, estará, a esta altura, não mais tratando o sujeito como mais um investigado. Não. Este indivíduo agora carrega a cicatriz do sujeito que é investigado em uma "operação". Ainda que contra esse sujeito último não haja nada para confirmar a hipótese da Polícia ou outro órgão de persecução, seu(s) pleito(s) defensivo(s), para ser atendido(s), sempre terá(ão) de trilhar os caminhos tormentosos da descontaminação, cujo objetivo é tentar afastar um eventual não pertencimento ao corpo social estigmatizado. Numa ideia de que "faço parte da investigação, mas não possuo elos com demais investigados". Inicia-se, para a defesa técnica, o martírio da comprovação do "não-fato". Afinal, neste momento, o sistema do Judiciário já lhe recebe em seus assentamentos com qualificações aquilatadas de "investigado na operação…". Muda a categoria. Muda o tratamento que lhe é dispensado. Se, individualmente, o investigado faz postulações de revogações de medidas cautelares e este pleito é apreciado em curto lapso de tempo. Sujeitos carimbados e marcados por serem alvos de operações, reproduzem mesmos pleitos que demoram muito mais tempo para ser analisado. Afinal, e é a resposta que se acaba externando, por ser uma "operação", é preciso que os casos sejam analisados com ainda mais cuidado. Esta é uma perspectiva nefasta, mas que atinge, por enquanto, o caráter da celeridade e entrega jurisdicional. Em outro vértice, as "operações" angariam números significativos de investigados que, cada um com sua assistência técnica, ajuíza meios de impugnações autônomos e cria-se uma segunda dificuldade para aquelas rotulados como alvos nesta "operação": para além de demonstrar sua falta de vinculação com qualquer evento delitivo (novamente o não-ato), precisará evidenciar as razões pelas quais o meio de impugnação que está a utilizar tem fundamentos jurídicos diferentes de outro utilizado por outro alvo na operação e que já foi negado. O que se quer dizer é que esta "operação" cria estigmas indissociáveis aos investigados que, para se defenderem precisam sobrepor níveis ainda maiores para, legitimamente, desenvolverem o seu direito à ampla defesa e contraditório. Com legalidade completamente duvidosa, os próprios sistemas de controle processuais do Estado identificam medidas cautelares com os seus respectivos "apelidos". Forma-se um sequencial de números de registro do processo (ou inquérito) acompanhado, em inúmeras situações, da expressão "operação". Com efeito, institucionalizar esta medida traz consequências também de ordem institucionais e culturais. O alcance no imaginário de quem precisa tratar destas medidas cautelares de modo institucionalizado, atinge desde o servidor que cuida de tarefas cartorárias que envolvam este processo até os próprios julgadores, que sobre eles terão de entregar uma prestação jurisdicional. Em breve ensaio, se quer dizer que esse mecanismo de se impor cicatrizes nos investigados, compromete, em níveis diversos e com profundidade diferentes, o exercício regular da ampla defesa e contraditório. Compromete, ainda, a qualidade do julgamento, feito por julgadores que identificam seus jurisdicionados a partir das cicatrizes deixadas pelas "operações" feitas que, ao invés de representarem meras (e juridicamente suficientes) medidas cautelares em matéria penal, tornam-se ambiente de espetáculo, com seus alvos marcados, etiquetados e subcategorizados. Desnecessário, ilegal e ilegítimo.   MONTEIRO, Paulo Henrique Drummond. Papéis sociais, preconceito, estereótipo e estigma. A apresentação da imagem/voz de pessoas presas como instrumento do processo de degradação da personalidade. Revista do ICP - Instituto de Ciências Penais, Belo Horizonte, n. 4, p. 399-428, nov.. 2019. Disponível em: http://200.205.38.50/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=155390. Acesso em: 11 dez. 2022.
2023-01-06T20:15-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-06/pablo-domingues-operacoes-medidas-cautelares-estigmatizantes
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Opinião
Streck e Berti: O indulto natalino de 2022 e o ornitorrinco jurídico
Como sabemos, o ornitorrinco é um animal esquisito. Quando Deus terminou a criação, pegou um restinho daqui, outro dali e, bingo, saiu um bicho com bico de pato e cauda achatada, que lembra a de um castor, põe ovos, seus filhotes se alimentam do leite materno que não sai de mamilos, mas de seus poros, são carnívoros e nadam. Pois o ex-presidente Bolsonaro produziu uma lei com restos de outras. Um jus-ornito. Explicaremos. Usando de sua prerrogativa constitucional, assinou o Decreto Presidencial nº 11.302, de 22 de dezembro de 2022 e distribuiu indultos a rodo. Ainda em dezembro de 2022, o PGR, Augusto Aras, protocolou perante o Supremo Tribunal Federal uma Ação Direta de Inconstitucionalidade com pedido de medida cautelar, ao argumento de que muito embora o presidente da República tenha a prerrogativa de conceder indulto estatal, o Decreto 11.302 afronta os limites materiais que condicionam e conformam a válida emanação da clemência soberana do Estado, previstos expressamente no artigo 5º, XLIII, da Constituição, ou como emanação direta dos limites constitucionais sistêmicos derivados do dever de observância dos tratados internacionais que a República Federativa do Brasil seja parte (artigos 1º, I e II, 4º, II e 5º, §§ 2º e 3º, da CF e artigo 7º do ADCT à CF/1988). Pede também a declaração da inconstitucionalidade da expressão "no momento da sua prática", contida no artigo 6º, caput, do Decreto 11.302/2022, fixando-se tese no sentido de que o indulto não alcança os crimes hediondos definidos em lei na data da edição do decreto presidencial que o concede, sendo irrelevante a ausência dessa qualificação legal na data da prática do fato delituoso, bem como a declaração da inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, da norma resultante da exclusão da expressão acima indicada, para afastar da incidência do art. 6º, caput e parágrafo único, c/c artigo 7º, § 3º, do Decreto 11.302/22, os crimes de lesa-humanidade, notadamente os cometidos no caso do Massacre do Carandiru, cuja persecução e efetiva responsabilização o Estado obrigou-se por compromisso internacional assumido voluntariamente pela República Federativa do Brasil. Mas para além do quanto argumentado na ADin proposta pela PGR e do modo como definiu a nulidade parcial sem redução de texto, restam mais problemas ainda no referido decreto. Vamos a elas. O último decreto presidencial de indulto — anterior ao 11.302/22 —, foi o de nº 9.246, de 21 de dezembro de 2017, assinado pelo então presidente Michel Temer. Nele, o presidente da República exigia um tempo mínimo de cumprimento de pena a fim de que o condenado fizesse jus à concessão do indulto [1]. Também em face do Decreto nº 9.246/17 houve a propositura de ADI (5874), que foi julgada improcedente por 7 votos a 4, vencedora a tese de que o indulto é ato privativo do presidente da República e não fere o princípio da separação de Poderes, e tendo sido o decreto editado dentro das hipóteses legais e legítimas, mesmo que se não concorde com ele, não se pode adentrar no mérito dessa concessão. Isso já não se discute, pois. Ocorre que, diferentemente dos decretos anteriores, o atual Decreto nº 11.302/22 não exige qualquer lapso temporal mínimo de cumprimento de pena como requisito para a concessão de indulto, pois nos termos do artigo 5º, caput, a única exigência refere-se tão somente a condenações por crimes cuja pena privativa de liberdade máxima em abstrato não seja superior a cinco anos, excluídos os crimes impeditivos (previstos no artigo 7º). Dispõe o artigo 5º do Decreto Presidencial nº 11.302/22 que será concedido indulto natalino às pessoas condenadas por crime cuja pena privativa de liberdade máxima em abstrato não seja superior a cinco anos, sendo que seu parágrafo único complementa que para fins do disposto no caput, na hipótese de concurso de crimes, será considerada, individualmente, a pena privativa de liberdade máxima em abstrato relativa a cada infração penal. Ora, a abrangência do artigo 5º do Decreto 11.302/22 é enorme, alcançando mais de uma centena e meia de crimes (daí nossa expressão "indulto a rodo"), passando por homicídio culposo, furto simples, apropriação indébita, estelionato, posse e porte ilegal de arma de fogo de uso permitido, entre inúmeros outros. Além de um aparente conflito entre o parágrafo único do artigo 5º com o artigo 11, o Decreto 11.302/22 estabelece diversas outras dúvidas. Assim: (i) Tendo em vista que o Decreto 11.302/22 não exige tempo mínimo de cumprimento de pena como requisito para a concessão de indulto, como ficam as penas eventualmente cumpridas, no todo ou em parte? (ii) Com o Decreto 11.302/22 tornaram-se indevidas e podem servir para detração penal de outra infração penal nos termos do artigo 42, do Código Penal? (iii) E eventual lapso temporal decorrente de prisão cautelar? (iv) Em face da inexistência de exigência pelo Decreto de lapso temporal mínimo de pena a ser cumprida, até quando retroage a decisão que concede o indulto? À data do decreto ou à data do cometimento do crime? Perdoa-se desde quando? (v) Em caso de concursos de crimes, aplica-se o parágrafo único do artigo 5º, ou o artigo 11? (vi) Aplica-se o princípio da especialidade devendo prevalecer o parágrafo único do art. 5º em relação ao artigo 11, ou o artigo 11 refere-se às penas em concreto eventualmente aplicadas ainda que as infrações não se enquadrem no requisito do caput do artigo 5º? Assim, além dos argumentos expedidos pelo PGR, temos os acréscimos aqui elencados. O que fica é que o Decreto nº 11.302/22 pode impactar sobremaneira o sistema penal/carcerário, beneficiando um número muito grande de condenados (e não estamos criticando isso especificamente), mas apenas constatando que Bolsonaro, ironicamente e em contradição própria [2], talvez tenha editado o decreto de indulto mais benéfico da história do país. O decreto de indulto é, assim, uma colcha de retalhos, produto de péssima técnica legislativa e eivado de contradições e inconstitucionalidades. Feito sob encomenda inclusive para crimes hediondos, como diz o PGR. O presidente da República pode muito. Mas não pode tudo. Não pode escolher, sem critérios, para quem deseja conceder indulto, porque isso provoca efeitos colaterais. Quando se decreta um indulto, há que fazer uma prognose, evitando surpresas decorrentes do sistema. O ornitorrinco tem bico de pato, bota ovos, mas seus filhotes mamam o leite da mãe. Na natureza dá certo. Afinal, se tem gente que põe o celular na cabeça esperando mensagem de disco voador, nada pode surpreender. Mas em termos legislativos, cada dispositivo legal deve ter coerência e integridade com o restante do sistema. Tem coisas que dá, tem coisas que não dá. No caso, no Decreto de indulto parece evidente que há mais "coisas que não dão". [1] Art. 1º — O indulto natalino coletivo será concedido às pessoas nacionais e estrangeiras que, até 25 de dezembro de 2017, tenham cumprido e seguem os requisitos (...).. [2] Em data de 28 de novembro de 2018, Bolsonaro publicou no Twitter que havia sido escolhido presidente do Brasil para atender aos anseios do povo brasileiro. Pegar pesado na questão da violência e criminalidade foi um dos nossos principais compromissos de campanha. Garanto a vocês, se houver indulto para criminosos neste ano, certamente será o último. https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1067787260244848640?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E1067787260244848640%7Ctwgr%5E947de303966ccbd56461762cb95d34b18d0a6b69%7Ctwcon%5Es1_&ref_url=https%3A%2F%2Fd-39704248301805383390.ampproject.net%2F2212151632002%2Fframe.html
2023-01-06T19:15-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-06/streck-berti-indulto-natalino-2022-ornitorrinco-juridico
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Opinião
Sammy Barbosa Lopes: Essa senhora chamada "democracia" (parte 1)
No dia 16 de janeiro de 1979, Mohammed Reza Pahlevi, xá do Irã, título equivalente no Ocidente ao de imperador, adquirido após um golpe militar coordenado pela CIA, a agência de inteligência norte-americana, deflagrado 25 anos antes, fugiu do seu país e seguiu rumo ao exílio. Terminava ali o reinado do monarca persa, marcado pelo autoritarismo, a desigualdade social, a corrupção, a violência contra o seu povo e, principalmente, a imposição do seu desejo pessoal de ocidentalização do Irã, que era visto pela maioria da população como uma afronta ao que consideravam princípios do Alcorão, o livro sagrado do islamismo [1]. O país estava em convulsão. O regime, apesar do apoio que detinha dos Estados Unidos, havia ruído. Ocorria a chamada "Revolução Iraniana" ou "Revolução Islâmica". Foi então que o Conselho de Regência, liderado pelo ministro Shapour Bakhtiar, que ficou com a missão de "tentar" governar a nação naquelas condições, convidou o líder religioso extremista, Ruhollah Khomeini, o "aiatolá Khomeini", mais elevado título na hierarquia da corrente xiita do islã, que liderava a oposição ao xá e a própria revolução do exílio, a retornar ao país e assumir o governo. Em 1º de fevereiro de 1979, o aitolá Khomeini retornou ao Irã como líder da revolução vitoriosa. Surgia então a República Islâmica Teocrática do Irã, um dos regimes políticos mais fechados do mundo até os dias atuais. Apenas para citar um exemplo, com o objetivo de agradar os aliados americanos, o xá Reza Pahlevi, apesar da dureza do seu regime, havia concedido, em fevereiro de 1963, às mulheres iranianas, o direito de votar e de serem eleitas para o Parlamento. Em setembro daquele ano, houve eleições parlamentares, e, pela primeira vez na sua história, seis mulheres foram eleitas para os Majlis, o Parlamento iraniano, e duas designadas pelo próprio xá para o Senado. Na ocasião, o aiatolá Khomeini, o futuro "líder supremo do Irã", declarou que: "dar às mulheres o direito de voto era equivalente a prostituição" [2]. A maioria da sua população apoiou e aparentemente — apesar dos últimos protestos realizados por conta da execução de Mahsa Amini, uma jovem de 22 anos, em 16 de setembro de 2022, pela "polícia da moralidade", na cidade de Teerã, por supostamente violar as leis que exigem que as mulheres cubram completamente os cabelos com um hijab, conjunto de vestimentas preconizado pela doutrina islâmica — ainda apoia o regime, notadamente sustentados em razões de caráter religioso. A questão que emerge é se esse apoio da ampla maioria, por si só, é capaz de fazer do Irã uma democracia. E a resposta é simples e direta: é óbvio que não! De forma alguma o Irã pode ser considerado uma democracia. Não há dúvidas de que, em uma democracia, por definição, "todo poder" emana do povo [3]. O próprio termo, utilizado por filósofos como Clístenes e Aristóteles, origina-se, etimologicamente, da junção de dois signos gregos antigos: "demos", que significa "povo" e "kratos", que significa "poder". O "poder do povo", portanto. Ocorre que democracia requer outros elementos caracterizadores, sem os quais, por definição, não se configura. Primeiro, nas democracias, tal como sua origem etimológica preconiza, o poder político tem a sua legitimação na "vontade soberana do povo" e somente nela. Caso contrário, não será uma democracia. Historicamente, pelo menos a partir da Revolução Francesa (1789), que marca o início da era moderna, isso significou a separação entre Estado e religião. E, consequentemente, a mudança de qualquer ideia de que o poder político se legitime em outra fonte, como a vontade de alguma divindade, por exemplo. Durante o "Ancien Régime" (o antigo regime) modificado pela Revolução Francesa, o "absolutismo monárquico" em vigor até então, o poder dos reis e imperadores era considerado como emanado dos céus, conferido por Deus. Razão pela qual, as coroas eram recebidas pelos monarcas, das mãos do mais elevado sacerdote e o seu poder absoluto era chancelado pela Igreja. Nesse cenário, não havia espaço para qualquer oposição, divergência ou contestação à figura do reinante e suas decisões. Afinal, contestar a decisão de alguém "ungido" por Deus não configurava apenas um crime perante a Lei dos homens, mas, sobretudo, um sacrilégio, perante a Lei de Deus. Na monarquia, Deus era, portanto, o grande (e único) eleitor. E a Igreja fazia as vezes de Justiça Eleitoral, a aferir a validade da escolha e empossar, em pompas e circunstâncias, o eleito. A coroa era o símbolo do poder, mas também da escolha divina. Dai a relação estreita entre o Estado e a religião. Deus era a fonte de onde emanava o poder. A relação política entre governantes e governados se dava na relação estabelecida entre o soberano e seus súditos. Ou melhor, na dimensão entre deveres absolutos dos súditos perante os poderes e direitos divinos e absolutos do soberano. Ou, como seria recentemente definido no Brasil: na ordem de "um manda e o outro obedece, simples assim". Com a Revolução Francesa, tudo muda de dimensão. A partir da proclamação da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, consagrando valores iluministas e humanistas, o poder político torna-se secular e provém exclusivamente da vontade dos "cidadãos", considerado, a partir de então, maior título a ser ostentado pelo indivíduo em sociedade, em substituição aos extintos títulos de nobreza hereditários e a nova relação política passa a ser estabelecida agora entre os "direitos" do "cidadão" (direitos fundamentais) perante os "deveres e obrigações" do "governante". Nessa nova relação, o antigo súdito, detentor de todas as obrigações e deveres, transforma-se no cidadão, detentor dos direitos e o antigo soberano, detentor de poderes absolutos e divinos, transforma-se no "governante", eleito pelos seus iguais, para um "mandato", ou seja, uma procuração representativa de poder, por "tempo limitado", garantida a alternância e não mais a vitaliciedade e a hereditariedade. Norberto Bobbio enxerga aí a grande revolução nas relações políticas [4]. Não por acaso, a democracia é o regime das liberdades e dos direitos Pouco tempo antes, outra revolução, movida pelos mesmos ideais, havia ocorrido bem mais perto de nós e também consagraria os valores da democracia [5]. Em 1776, as 13 colônias inglesas na América do Norte levantaram-se contra a Coroa britânica, declararam a sua independência e, posteriormente, promulgaram um documento jurídico e político a que deram o título de "Constituição", em 1789. Consagrando a liberdade como valor central, a república como forma de governo e cumprindo as três tarefas básicas de uma Constituição: assegurando um catálogo de direitos fundamentais, limitando o poder do governante e organizando o Estado. Posteriormente, a partir da luta dos povos, principalmente a partir das lutas e reivindicações empreendidas pelas camadas menos favorecidas e menos aquinhoadas das sociedades, notadamente em razão da sua organização e conscientização, outras nações passaram também a reconhecer e fizeram acrescer nas suas Constituições outras dimensões de direitos, como os direitos políticos e sociais, estabelecendo limites à jornada de trabalho, assegurando o direito a uma remuneração digna, que garantisse o "mínimo existencial", protegendo as relações trabalhistas, além da manutenção da dignidade na doença e na velhice, tais como o México, em sua Constituição de 1917, já no "breve" século XX, como o definiu o historiador Eric Hobsbawm [6]; a Alemanha, em sua Constituição de 1919 (Constituição de Weimar) e na Declaração de Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, da Revolução Russa, de 1918. Os horrores vivenciados na Segunda Guerra Mundial, no final da primeira metade do século XX, por outro lado, com as lamentáveis tentativas de despersonalização do ser humano, empreendidas por ideologias extremistas como o nazismo, na Alemanha e o fascismo, na Itália e os experimentos monstruosos praticados nos campos de concentração como de Auschwitz e Sobibor, levaram a humanidade a consagrar, com mais intensidade e veemência, os valores da democracia e da dignidade humana, consagrando direitos inerentes à própria essência humana e à sua existência digna, independente de qualquer condição, origem, opção, credo e até mesmo de personalidade ou índole: os chamados direitos humanos. Inafastáveis à própria condição humana em "qualquer" situação e pressupostos não apenas da democracia, mas da própria ideia de "civilização". Esse conjunto de experiências históricas, políticas e sociais nos levaram a perceber que democracia não se confunde, nem pode ser confundida, portanto, com "ditadura da maioria". Caso contrário, o Irã teria que ser considerado um país democrático, pelo simples apoio da maioria ao seu regime político, mesmo com uma religião hegemônica e obrigatória, imposta pelo Estado, que criminaliza a prática e o credo de qualquer outra religião que não a oficial, que impõe às mulheres uma condição de inferioridade e opressão, que impede e elimina a existência de qualquer oposição, que censura qualquer tipo de manifestação que não esteja conforme a opinião do governo, que adota a tortura e a pena de morte como políticas públicas, que impõe dogmas religiosos medievais como normas jurídicas cogentes, a serem cumpridas, obrigatoriamente, até mesmo por quem não é adepto da religião oficial. Democracia, portanto, por definição, pressupõe valores como a laicidade do Estado, ou seja, um Estado que não se confunda com qualquer religião, cujo poder emane da vontade do cidadão e não da divindade, e seja exercido em nome de seu povo, em caráter de representatividade, através de um "mandato" com tempo determinado, facultado a qualquer cidadão e corrente política a candidatura e o exercício do poder, desde que inspirado e comprometido com os valores da própria democracia, que pressupõe ainda a garantia das liberdades, incluída a liberdade religiosa, política, filosófica, sexual e etc, exigindo do Estado e toda sociedade, uma posição de tolerância e respeito à diversidade e à dignidade da pessoa humana. O regime da Democracia pressupõe, por fim, um Estado que aja, através de sua estrutura e de seus vários órgãos, notadamente aqueles destinados a garantir o direito fundamental à segurança pública, estritamente dentro dos seus valores consagradores e caracterizadores, que, por sua vez, devem estar positivados nas leis produzidas por seus órgãos legislativos, a partir dos princípios, regras e valores garantidos e emanados da sua Constituição. Como bem diz o professor Carlos Ayres Brito: "A democracia é o princípio continente, do qual todos os demais, inclusive os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, são conteúdos". A questão que fica para um próximo artigo é: os direitos, aí incluídos aqueles inerentes à liberdade de expressão, garantida constitucionalmente, são absolutos — em uma democracia posso fazer e dizer o que eu quiser? — ou experimentam algum tipo de limite? [1] Cf. KAPUSCINSKI, Ryzard. O Xá dos Xás: a queda do último Xá do Irã, que pretendia transformar o seu país numa superpotência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. [2] Camera, Andrea de la. Women's rights in iran during the years of the shah, ayatollah khomeini, and khamenei. University of Central Florida, 2015. p. 16. Disponível em: <https://stars.library.ucf.edu/ honorstheses1990-2015/1350>. [3] BRASIL, Constituição Federal, art. 1º, parágrafo único. [4] Cf. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. passim. [5] Cf. PAINE, Thomas. Senso Comum e outros escritos políticos. São Paulo: Martin Claret, 2005. [6] Cf. HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
2023-01-06T12:16-0300
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academia
Opinião
Antonio Carlos Will Ludwig: Democracia e Forças Armadas (parte 1)
Conforme dizem muitos cientistas sociais, nossos militares, no decorrer da história, sempre estiveram envolvidos com a política. Afirmam que desde a proclamação da República até a aplicação do golpe na década de 60 do século passado eles exerceram uma espécie de poder moderador. No transcurso dos 20 anos da ditadura, assumiram diretamente o exercício do governo. Encerrado o período autoritário com a entrega do poder aos civis, recolheram-se aos quartéis e dedicaram-se à atividade profissional. Embora de maneira bem menos ostensiva do que no passado, a ação política transcorreu segundo as normas do regime democrático por meio da prática do voto, candidaturas em eleições, formulação da estratégia de defesa nacional e fornecimento de colaboração nos períodos eleitorais. Entretanto, em 2018 ocorreu o julgamento de Lula no Supremo Tribunal Federal, o qual teve negado seu pedido de Habeas Corpus. Como é do conhecimento de muitos, essa não aceitação teve bastante a ver com o tuíte persuasivo emitido pelo general V. Bôas, movido pelas pressões oriundas dos ativos e inativos da família militar. Outro general já tinha admitido em entrevista que, caso ocorresse a concessão, o recurso à reação armada seria inevitável, porquanto constitui um dever militar restaurar a ordem. A Anistia Internacional, bem como a Ordem dos Advogados do Brasil, a Associação Nacional dos Procuradores da República e a Associação de Juízes Federais emitiram notas condenadoras do referido tuíte, por atentar contra a independência dos Poderes e se revelar como uma afronta ao Estado Democrático de Direito. Com Lula fora do páreo, a candidatura de Bolsonaro teve condições de avançar. Quanto a ela, vale dizer que foi construída pelos militares adeptos de valores conservadores e do sentimento antipetista que vislumbraram uma auspiciosa chance de alcançar o poder pela via democrática. Observe-se que logo após esse evento, houve um encontro de Bolsonaro com o general V. Bôas juntamente com integrantes do Alto Comando do Exército, no qual aconteceu o incremento de sua reabilitação no âmbito da força bem como o ganho de um relevante impulso à sua caminhada política rumo ao Planalto. O denominado partido da farda, partido militar ou partido verde-oliva encarregou-se de incentivar os integrantes da caserna a alinharem-se ao capitão candidato. O poder de sedução da onda bolsonarista estimulou inúmeros militares da ativa a violarem os regulamentos castrenses para fazerem campanha nas redes sociais. Uma das primeiras medidas tomadas por Bolsonaro após eleito foi nomear milhares de fardados para ocuparem cargos na esfera do governo. E, tendo em vista estreitar o máximo possível a relação com eles, concedeu aos mesmos benefícios financeiros, privilégios e agrados, dentre os quais se destacam verba extra para o Ministério da Defesa, salário acima do teto constitucional, reestruturação da carreira e alteração das regras de seguridade social. Essas retribuições não se mostraram apenas como um gesto de agradecimento, mas também, e principalmente, como uma tentativa de cooptação para apoio ao seu projeto populista de governo, o que chegou a entusiasmar uma facção dos fardados. Após a recente derrota eleitoral do mito, outras manifestações dos servidores de uniforme vieram à tona. Emergiu o aguardado relatório das urnas, que, em sua primeira versão, foi favorável à confiança nas eleições realizadas, porém em uma segunda versão tal confiança foi contestada. Alguns comandantes de quartéis se mostraram simpáticos e condescendentes com os lamuriantes patriotas postados em frente das guaritas vociferando por intervenção federal. Manifesto assinado por militares da reserva e da ativa contra uma suposta insegurança jurídica e uma instabilidade social e política no país foi postado como petição na internet. Um sargento que prestava serviços na administração federal bradou que Lula não iria subir a rampa. Os comandantes das três Forças, em desrespeito às normas militares, ameaçaram abandonar os cargos antes da posse do presidente eleito. E durante os quatro anos de governo a cúpula militar não veio nenhuma vez a público rechaçar a possibilidade da ocorrência de golpe, deixando pairar um sentimento de dúvida e de desconfiança na população. Embora se faça necessário destacar e enlevar os fardados por não terem  enveredado rumo a uma aventura golpista sob o comando de Bolsonaro, cabe acentuar que esse conjunto de acontecimentos emergidos no transcorrer da história revela, no mínimo, que nossos militares ainda não conseguiram se ajustar adequadamente às exigências do regime democrático. Ademais, essas ocorrências se mostram como sequelas do modo de pensar e sentir deles, que agrega o sentimento de superioridade em relação aos paisanos, o elevado grau de autonomia para tomar decisões e a concepção de que não só podem como devem exercer a tutela sobre o Estado e a sociedade. Além disso, e tão importante quanto elas, é o fato de o Brasil se encontrar bem distante das nações mais desenvolvidas no que diz respeito ao controle democrático das Forças Armadas. Com efeito, desde há muito tempo, governantes, parlamentares do Congresso Nacional, autoridades dos Poderes constituídos, elites dos vários setores e múltiplas organizações sociais têm demonstrado notória despreocupação e desinteresse para com o que ocorre no interior da caserna, apesar dos inúmeros estudos, das sugestões e das propostas advindos dos pesquisadores integrantes da comunidade acadêmica. Malgrado a existência deste manifesto descaso, revela-se imprescindível a exposição de um programa democrático para tornar as Forças Armadas mais ajustadas à democracia, conforme o que ocorre em outros países por ela regidos. Papel Constitucional: Nossa Carta Magna prevê para as Forças Armadas as tarefas de defesa da Pátria, de garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer um deles, da lei e da ordem. O grande problema desta finalidade se encontra na garantia da lei e da ordem, uma atividade que os militares exigiram que fosse mantida na Constituição atual para perpetuar a mesma função prevista naquelas que a antecederam. Tais dizeres são condizentes com toda estrutura jurídica de um país que apresenta as denominadas lacunas da lei. Os vazios e brancos da legislação não decorrem apenas de possíveis descuidos ou cegueira provocados pelo caráter ideológico de ocultação que faz parte do Direito. É intencional e atende ao interesse de incluir brechas para ir além da própria lei. Essa tarefa possibilita aos militares continuarem exercendo o antidemocrático poder moderador que veio à tona novamente durante o governo de Bolsonaro em suas contendas com o Judiciário. Não pode ser esquecido que as Forças Armadas de qualquer país do mundo, apesar do alto grau de autonomia que exibem, encontram-se ideologicamente atreladas aos segmentos dominantes da sociedade. Quando estes setores não conseguem ser hegemônicos na sociedade os militares aparecem em seu auxílio. Há, portanto, um claro apreço pelo ocultamento nestes segmentos porquanto permite a ocorrência de ações flexibilizadas as quais são muito importantes para a prática da hegemonia. Os termos ordem e lei permitem a eles utilizar as Forças Armadas em diversas circunstâncias, até naquelas em que pareça estar sendo violada a determinação legal. Cabe acrescentar que nos países de democracia consolidada não existe esta previsão legal. Em Portugal cabe às Forças Armadas a defesa militar da República e na Alemanha elas têm por funções a defesa do país e a intervenção nos casos em que a Lei Fundamental autoriza expressamente. Portanto, é preciso retirar da Constituição esta tarefa ou acrescentar nela seu explícito e objetivo significado. Ministério da Defesa: Durante os governos de Fernando Henrique, Lula da Silva e Dilma Rousseff a chefia do Ministério da Defesa foi entregue a um civil. Com Bolsonaro militares assumiram o comando. Pelo que se sabe os ministros civis apresentaram um bom desempenho em suas funções, embora deva ser lembrado que nas gestões deles ocorreram atos de resistência e insubordinação por parte dos fardados resultantes de um legado autoritário segundo estudo feito por Jorge Zaverucha. Recorde-se que nos Estados Unidos da América do Norte os comandantes que ocuparam o Departamento da Defesa, ou seja, os Secretários da Defesa, foram tanto civis quanto militares, mas os paisanos predominaram. Talvez o povo estadunidense até prefira um militar na chefia deste órgão porquanto o prestígio dos fardados perante a população é muito alto, gira em torno de oitenta por cento. Ademais os cidadãos norte americanos nutrem uma grande preferência pelas soluções militares aos vários tipos de problemas que afligem a sociedade. Em nosso país, ao contrário do que ocorreu nos Estados Unidos, os militares, no decorrer da história, interviram demasiadamente no jogo político e o prestígio das Forças Armadas recebeu vários arranhões. Para mudar o modo de pensar dos servidores de uniforme e conseguir a real subordinação deles aos civis eleitos pelo voto é imprescindível que a chefia do Ministério da Defesa seja endereçada apenas aos civis. Conquanto a história registre que todos os ministros da defesa foram indivíduos do sexo masculino, inclusive o atual já nomeado, a opção por uma mulher, pesquisadora de assuntos militares e com bom trânsito na caserna, seria bem-vinda. Veja-se que as mulheres, desde há muito tempo, estão sendo aceitas nas hostes castrenses em condições de igualdade com os homens nos diversos ramos da profissão militar. Elas são consideradas aptas física e mentalmente para exercer todas as funções destinadas aos fardados masculinos inclusive a de guerreira. Persistem demonstrando um bom desempenho nas atividades a elas destinadas e muitas vêm ocupando posições de destaque por meio do alcance do posto de general. Muitas dezenas de mulheres já ocuparam o cargo de Ministro da Defesa tais como Indira Gandhi na Índia, Elisabeth Rehn na Finlândia, Kim Kampbell no Canadá, Laura Miranda na Costa Rica, Kristin Devold na Noruega, Michelle Bachelet no Chile. Pelo que se sabe, mesmo enfrentado as dificuldades pertinentes todas alcançaram êxito em suas tarefas no decorrer do mandato. Ressalte-se que a atual ocupante da pasta na Alemanha é Christine Lambrecht. Ademais constitui uma forma de aumentar a presença delas em cargos de governo uma vez que a composição ministerial em nosso tem sido majoritariamente masculina. Ensino nas Academias: Com os trabalhos da atual equipe de transição, particularmente no âmbito da área da defesa, os militares apresentaram quatro pontos que eles não aceitam que sejam tocados, sendo um deles o ensino nas Academias. Em parte, eles possuem razão porquanto devem levar em conta que praticamente inexistem civis entendedores de ensino militar. A favor desta provável suposição mencione-se que nos cursos de Pedagogia não há especialidade em educação castrense e nem na área da pós-graduação. Os mesmos exibem atitude semelhante constatada em colegas estrangeiros, particularmente os da Bulgária, que alegam a falta de civis competentes neste setor de ensino. Malgrado esta suposição seja verdadeira é sabido que em outras nações tem ocorrido algum controle civil sobre a educação dos fardados. Na Inglaterra e na Alemanha, os alunos antes de frequentarem as Academias Militares precisam concluir uma licenciatura ou um bacharelato em universidades relativos a várias áreas do conhecimento, os quais encurtam a duração do preparo no interior da caserna. O ensino superior de todos os países integrantes da Comunidade Europeia é regido pelo alcunhado Processo de Bolonha complementado pela Estratégia de Lisboa e pela Estratégia Europa o qual visa facilitar o intercâmbio de graduados e adaptar o conteúdo dos estudos universitários às exigências sociais, melhorando a sua qualidade e competitividade através de uma maior transparência e uma aprendizagem baseada no estudante quantificada através dos créditos. Enquanto uma modalidade de ensino superior o ensino militar também é obrigado a seguir esta orientação e os órgãos centrais de educação de cada país têm a incumbência de monitorar as instituições de ensino castrenses em relação a esta obrigação. A Finlândia é uma nação que vem empreendendo esforços para seguir tal rumo. Para tanto as instituições militares de ensino já incluíram no currículo um conteúdo acadêmico composto de ciências humanas e naturais e instituíram os graus de bacharel, mestre e doutor em Ciências Militares dentre outras mudanças. Na Turquia o ensino superior militar é subordinado ao Ministério da Educação. Sua organização e seu funcionamento obedecem a Lei do Ensino Superior e as normas emanadas do Conselho de Ensino Superior. No caso brasileiro as três Academias Militares poderiam agregar um núcleo básico comum voltado para o estudo de certos temas tais como o papel das Forças Armadas, a defesa da democracia e as relações civis militares, o qual seria diretamente supervisionado pelo Ministério da Educação. É possível ir mais além e seguir os passos da Argentina que criou uma Universidade Nacional da Defesa subordinada ao Ministério da Educação e transferiu para ela a tarefa de formar seus servidores fardados.   Clique aqui para ler a parte 2
2023-01-06T06:32-0300
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academia
Observatório Constitucional
Intimidade e vida privada: passado, presente e futuro
01. Estimadas leitoras e caros leitores, feliz 2023! É uma alegria, porém também uma responsabilidade, escrever a primeira coluna deste ano do Observatório Constitucional, que completa dez anos de publicação semanal. Trata-se de projeto editorial de fôlego, devendo parabenizar os professores André Rufino do Vale e Fábio Quintas pela coordenação do expediente. Para alguns, as datas e a marcação do tempo não se revestem de grandes significados, sendo, por exemplo, apenas a contagem daquilo que já transcorreu ou a indicação de um período que virá. De outro lado, os momentos de transição, como os que vivemos hoje, com o advento de um novo ano civil e com as modificações nas práticas estatais brasileiras para a observância da democracia constitucional, são situações que impõem reflexão sobre o passado, análise acerca do presente e planejamento para o futuro. Nesse cenário, retomarei um tema que tratei originalmente há cerca de 15 anos [1], mas que contém desafios para o presente e o futuro: a intimidade e a vida privada. 02. A intimidade e a vida privada são fenômenos importantes e complexos nas sociedades moderna e contemporânea, tendo examinado Hannah Arendt as principais características, nos seguintes termos: "O que hoje chamamos de privado é um círculo de intimidade cujos primórdios podemos encontrar nos últimos períodos da civilização romana, (...) mas cujas peculiaridades, multiformidade e variedade eram certamente desconhecidas de qualquer período anterior à era moderna" [2]. Nesse contexto, as relações entre o público e privado foram modificadas, pois, de um lado, a "presença de outros que vêem o que vemos e ouvem o que ouvimos garante-nos a realidade do mundo e de nós mesmos", porém, de outra banda, "a intimidade de uma vida privada plenamente desenvolvida (...) sempre intensifica e enriquece grandemente toda a escala de emoções subjetivas e sentimentos privados, esta intensificação sempre ocorre às custas da garantia da realidade do mundo" [3]. Em síntese, existe uma gradativa valorização do espaço privado, em virtude do seu papel no desenvolvimento da personalidade humana, permitindo assim a vivência de experiências individuais, próprias e íntimas. Por sua vez, a exposição da intimidade e da vida privada é questão bastante complexa, visto que a "intimidade não pode ser trazida à tona da mesma forma que as questões públicas", no entanto não "se quer dizer que todas as questões íntimas devam, necessariamente, ser escondidas de todos e somente vividas pelo indivíduo" [4]. 03. No plano do direito constitucional positivo contemporâneo, o constituinte originário brasileiro positivou com precisão o direito fundamental à intimidade e à vida privada, no artigo 5º, X, Constituição Federal, além de o poder reformador incorporar expressamente o direito fundamental à proteção de dados pessoais, por meio da Emenda Constitucional nº 115/2022. Ainda, as instituições da sociedade civil e a jurisdição constitucional desempenham papéis de destaque nessa seara. Na Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6.649, sendo relator o ministro Gilmar Mendes e legitimado ativo o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, foi impugnado o Decreto 10.046/2019, o qual extrapolou o poder regulamentar da Presidência da República, violando a proteção de dados pessoais, a intimidade e a vida privada das pessoas naturais, pois promovia o compartilhamento e a integração de informações pessoais sem as devidas cautelas. À época, em conjunto com relevantes advogadas como Estela Aranha e Lucia Maria Teixeira Costa e com o saudoso amigo e brilhante jurista Danilo Doneda, redigimos a petição inicial, demonstrando a "violação direta aos artigos 1º, inciso III e 5º, caput, e incisos X, XII e LXXII da Constituição Federal, os quais asseguram, respectivamente a dignidade da pessoa humana; a inviolabilidade da intimidade, da privacidade e da vida privada" [5]. O voto do ministro Gilmar Mendes, na ADI nº 6649, enfrentou e resolveu a controvérsia constitucional com proficiência, apontando a) os dilemas da intimidade e da vida privada na era digital, b) que a jurisdição constitucional brasileira encontra-se atenta aos ataques contemporâneos à intimidade e à vida privada e c) "que a disciplina jurídica do processamento e da utilização de dados pessoais acaba por afetar o sistema de proteção de garantias individuais como um todo", devendo ocorrer "uma releitura de mecanismos clássicos de defesa das liberdades públicas" [6]. Na rica solução da questão, por meio de interpretação conforme à Constituição, determinou-se que o compartilhamento de dados pessoais entre órgãos e a administração pública pressupõe propósitos legítimos, específicos e explícitos, restando limitado ao mínimo necessário. 04. Apesar de importantes avanços no tratamento da temática pelo legislador, pelo poder reformador constitucional e pela jurisdição constitucional brasileira, são diversas as questões que precisam ser revistas ou enfrentadas sobre a intimidade e a vida privada na era digital. Vejamos algumas. O direito ao esquecimento surge originariamente no mundo pré-digital [7], levando em consideração especialmente a exposição de pessoas naturais pela televisão. Infelizmente, a jurisdição constitucional brasileira recentemente analisou o direito ao esquecimento, a partir de um caso analógico (programa de televisão que expôs novamente, em 2004, o homicídio ocorrido na década de cinquenta do século passado), no Recurso Extraordinário nº 1.010.606/RJ [8]. O contexto analógico é bastante diverso da vida atual mediada pela tecnologia digital, em virtude de inúmeras razões. Em primeiro lugar, as pessoas naturais interagem com frequência, nos âmbitos pessoal e profissional, por meio de aplicativos, redes sociais e demais instrumentos digitais, inexistindo essa intensidade de comunicação e de compartilhamento anteriormente. Em segundo lugar, a quantidade de informações e de dados pessoais armazenados, em arquivos e bancos de dados públicos e privados, é enorme, podendo impactar em quase todas as dimensões da existência humana e social. Em terceiro lugar, o desenvolvimento da personalidade dos seres humanos acontece com a utilização dos instrumentos digitais. Nesse novo tempo, o que era válido, no mundo quase que exclusivamente analógico, não pode permanecer sem alterações, impondo-se o exercício de uma hermenêutica constitucional renovada com a ampliação do âmbito de proteção de direitos fundamentais já fixados, como o direito à intimidade e à vida privada [9]. Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal fixou o Tema 876 sobre o direito ao esquecimento, no Recurso Extraordinário nº 1.010.606/RJ, contudo a primeira parte da tese é preocupante, tendo a seguinte redação: "É incompatível com a Constituição Federal a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social — analógicos ou digitais" [10] [11]. O rótulo do direito ao esquecimento, por boa parte da literatura especializada, é utilizado de maneira ampla para uma série de dimensões do desenvolvimento da personalidade, na sociedade digital. Desse modo, não é jurídica, constitucional e socialmente possível compreender e aceitar a incompatibilidade desse direito com a Constituição Federal brasileira de forma tão ampla, já que diversas dimensões do direito ao esquecimento são adotadas no direito estrangeiro e brasileiro [12]. Assim, uma interpretação restritiva da incompatibilidade do direito ao esquecimento com a Constituição Federal, para fins do Tema 876, é necessária, possuindo também guarida esse entendimento na segunda parte da tese firmada pelo Supremo Tribunal Federal: "Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais - especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral — e das expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível". 05. A questão da publicidade de informações pessoais e públicas continua muito atual, na tutela do direito fundamental à intimidade e à vida privada, nos marcos do Estado Democrático de Direito. O governo federal brasileiro anterior determinou o sigilo de até cem anos, para uma série de informações que são públicas, logo não se amoldam ao disposto no artigo 31, Lei Federal nº 12.527/2011. Dessa forma, corretamente o atual governo federal determinou à Controladoria Geral da União a reavaliação da concessão desse acesso restrito, buscando verificar a adequada aplicação da Lei de Acesso à Informação e a prevalência de questões públicas e de Estado em diversos assuntos cobertos por esses sigilos [13]. Situação diametralmente oposta sobre o resguardo versa sobre o direito à extimidade, o qual pode ser definido como o poder ou a faculdade "de usufruir, propositivamente, de informações da própria intimidade em ambientes de sociabilidade, por meio da sua exposição voluntária, sem a intenção consciente de tornar a informação veiculada pública, visando à emancipação e/ou ao empoderamento" [14]. Conforme defendi outrora, a intimidade é elemento central e paradoxal da vida privada e da vida em geral das pessoas naturais, ocorrendo muitas vezes a divulgação voluntária de informações pessoais pelo próprio titular. Isso não significa que a intimidade perdeu sua força, e sim que aspectos centrais da vida privada representam os principais elementos da personalidade humana [15]. Pelo exposto, faz todo o sentido proteger o direito à extimidade, nos moldos descritos acima, concretizando na era digital a autodeterminação das pessoas humanas. Mesmo reconhecendo a existência da extimidade, o alerta de Francisco Balaguer Callejón sobre a banalização da exposição da intimidade é essencial: "La escasa preocupación de los nativos digitales por su derecho a la intimidad se explica en gran medida porque han sido 'dopados' muy tempranamente por las compañías tecnológicas, con aplicaciones que están destinadas justamente a la exhibición pública" [16]. 06. A intimidade e a vida privada residem no coração do constitucionalismo, possuindo novos e velhos dilemas e necessitando de aprofundamento o debate na esfera pública e na comunidade jurídica. [13] "Art. 31. O tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais. § 1º. As informações pessoais, a que se refere este artigo, relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem: I - terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção, a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem; e II - poderão ter autorizada sua divulgação ou acesso por terceiros diante de previsão legal ou consentimento expresso da pessoa a que elas se referirem".
2023-01-07T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-07/observatorio-constitucional-intimidade-vida-privada-passado-presente-futuro
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Diário de Classe
Constelação familiar: a pseudociência em moda no mundo jurídico
Os fins justificam os meios? Trata-se de uma velha — mas sempre presente — questão. Neste começo de ano, é fundamental relembrar que as concepções que temos sobre o Direito (enquanto ciência, área do conhecimento humano) não são apenas importantes, mas determinantes na sua própria compreensão. As lições que podemos tirar sobre o emprego da "constelação familiar" não se limitam a essa prática, revelando também profundas verdades sobre o modo como o Direito é compreendido no Brasil. 1 - O que é a constelação familiar? Para o polêmico criador da "Teoria das Constelações Familiares", Bert Hellinger, temos conexões inconscientes com os destinos de nossos antepassados que precisam ser reveladas para a superação de nossos problemas. As sessões de terapia, grosso modo, visam (r)estabelecer a harmonia desse emaranhando de conexões, baseadas em "campos de energia" que conectam passado e presente. Os "traumas familiares", nesse sentido, estão associados à própria rede familiar em que estamos inseridos, repercutindo impressões e implicações em todos que a integram, mesmo que inconscientemente [1]. As dinâmicas podem ser realizadas de diversas maneiras, sendo usuais as que ocorrem em grupo, com a representação de cenas em que o "constelado" é sintonizado com seu campo familiar a partir de interpretações de participantes que representam seus familiares ou outros elementos relevantes para a situação. Nos últimos anos, a abordagem da constelação familiar tem sido alvo de escrutínio principalmente nos países de língua alemã onde surgiu, mas também no Brasil, onde tem sido questionada e desautorizada por órgãos de classe da área da saúde (como se verá logo mais). Os críticos questionam várias ideias de Hellinger, a começar pelas suas bases teóricas, que se assentam em restos de pseudociência, misturados com "misticismo quântico", assim como em supostas crenças sem embasamento adequado sobre a própria estrutura do sistema familiar. A título de exemplo, Hellinger chega a vincular a homossexualidade em um menino à necessidade de suprir os sentimentos de uma irmã falecida em uma família que não conte com outra figura feminina para tanto; em outro momento, ele afirma que o incesto e o estupro criam um "vínculo" ("apesar de tudo"), que não pode ser simplesmente rompido pela "luta", exigindo, na verdade, o reconhecimento de respeito ao perpetrador para restabelecimento do equilíbrio familiar. O pai das "constelações familiares", aliás, redigiu uma espécie de "ode a Hitler" em sua última obra (de 2004), reforçando uma pecha que já pairava sobre si de antissemita e mostrando uma abjeta distorção no nosso valor enquanto seres humanos [2]. 2 - O que o Direito tem a ver com isso? Trazer à tona esse "método terapêutico" não é mera curiosidade; em abril de 2018, noticiou o CNJ que a constelação familiar era adotada na Justiça em 16 estados e no Distrito Federal, alinhada à promoção de práticas que proporcionam tratamento adequado dos conflitos preconizada pela Resolução CNJ nº 125/2010 [3]. Supostamente, a pseudociência auxiliaria na "humanização" de práticas conciliatórias no âmbito forense, pessoalizando mais o ato judicial a partir das representações realizadas durante as sessões. O juiz de Direito Sami Storch, discípulo de Hellinger, é o precursor do uso da pseudociência no âmbito judicial, tendo inclusive publicado texto aqui na ConJur sobre o tema [4]. Em março de 2022, o assunto foi debatido no Senado Federal, motivado por requerimento do "campo quântico" que se manifestava na prática, "no qual a telepatia atua como resultado da interconexão entre os níveis energéticos das mentes humanas" [5]. Antes disso, a constelação familiar já havia sido incluída como prática integrativa e complementar (PICS) no Sistema Único de Saúde (SUS), por força da Portaria nº 702/2018, com base na hipotética "existência de um inconsciente familiar — além do inconsciente individual e do inconsciente coletivo — atuando em cada membro de uma família" [6]. Ademais, uma rápida pesquisa no Google acadêmico mostra diversos artigos de baixa densidade teórica defendendo o uso da constelação familiar no Direito [7]. Um dos argumentos mais empregados é o suposto incremento no número de acordos proporcionadas pelo método, sem avaliar a conformidade com a legislação ou qualidade desses ajustes. 3 - Encerrar processos a todo custo? É sintomático que um método fundado em supostos "campos de energia" e "conexões inconscientes" possa estar sendo aplicado sem tantos questionamentos no Judiciário brasileiro. No locus das discussões mais íntimas, mais divisivas, que podem significar a ruína ou a fortuna dos envolvidos, a constelação familiar é tratada como um procedimento terapêutico como qualquer outro, como se fosse validado e respaldado cientificamente. Tudo isso deveria causar certo espanto. O Conselho Federal de Psicologia se manifestou expressamente contra o Projeto de Lei nº 4887/2020 (Câmara dos Deputados), que visa regulamentar a profissão de "constelador familiar sistêmico ou terapeuta sistêmico". Aliás, para o Conselho Regional de Psicologia do Paraná, os princípios das constelações familiares fomentariam a "naturalização de lugares fixos dos membros de uma família, a partir de rígida hierarquia" [8], em desconformidade com achados mais recentes que demonstram a complexidade dos fenômenos psíquicos. Publicação do Conselho Federal de Medicina destacou exatamente a inexistência de resultados e eficácia comprovados cientificamente [9]. O óbvio muitas vezes precisa ser dito: uma terapia, para ser disponibilizada e aplicada no SUS, no Judiciário, ou em qualquer meio público no Brasil deve ser suficientemente respaldada em pesquisa científica. Políticas públicas não podem ser feitas de outra forma. Qualquer Estado com o mínimo de "moralidade" (pública) deve ser capaz de filtrar terapias "da moda" ou outras invenções que venham à tona — se eventualmente elas "passarem no teste" das evidências científicas, que sejam adotadas no sistema pública; caso contrário, não. Tratando-se do Direito, nunca se pode deixar de ressaltar que números, por si sós, podem ser enganadores. Não adianta mostrar que a constelação familiar tem resultado em x acordos todo mês no tribunal y. Existe a qualidade na prestação jurisdicional que dificilmente é captada pela quantidade que é baixada dia após dia. A Crença na Onipotência do Julgador também dá as caras quando aceitamos que um acordo judicial pode ser alcançado de qualquer forma. A constelação familiar se torna instrumento de aplicação da lei quando incorporada no sistema judiciário — daí por que precisamos exigir evidências científicas nas decisões judiciais.[10] Veja-se como isso é relevante: durante os debates no Senado em torno da constelação familiar, foram relatadas situações em que o método poderia até mesmo gerar "revitimização", principalmente em casos com mulheres que haviam sido vítimas de agressão no meio familiar. Assim, abusos psicológicos e físicos seriam reavivados, submetendo a mulher a situações de humilhação. Há até mesmo notícia de órgãos judiciais que agem de forma a forçar a realização do acordo [11]. Isso não é tudo. Em certos momentos — embora sempre ele o faça com ressalvas — Hellinger apresenta tons homofóbicos e sexistas em seus textos. Para ele, a "[h]omossexualidade significa que uma pessoa não está em sintonia com sua identidade sexual"[12], podendo ela ser muitas vezes derivada de problemas nesse inconsciente suposto. Em outro excerto, Hellinger indica que "[o] amor é geralmente bem servido quando uma mulher segue o marido na língua, na família e na cultura, e quando concorda que os filhos devem segui-lo também" [13]. Questões como essas integram a visão terapêutica por ele projetada e, de uma forma ou de outra, orientam a técnica. Se a interpretação jurídica requer um treinamento e um estudo específicos, a psicologia também. Juristas não são psicólogos. Isso significa que não pode ficar à livre disposição dos juízes a escolha pelos métodos terapêuticos que julgarem convenientes — ainda mais quando eles próprios passam a ser habilitados a conduzir, como no caso da constelação familiar. 4 - Levando o Direito a sério como ciência Que Direito queremos enquanto sociedade? No limite, o debate sobre a legitimação da constelação familiar como política pública — seja no SUS, seja em mediações judiciais — passa pelo sentido que atribuímos ao Direito enquanto área do conhecimento humano. Lenio Streck já demonstrou há muito que uma das principais chaves para compreensão do fenômeno jurídico é sua autonomia: o Direito só pode ser Direito na medida em que o visualizamos como um produto da política, da economia, da moral (para ficar apenas nessas) [14]. O Direito não é a política, ou a economia, ou a moral, mas um produto que é, em certo sentido, autônomo. Daí por que é possível sustentar, a partir disso, uma espécie de "blindagem" do discurso jurídico contra argumentos propriamente de política, economia ou moral — quanto mais de pseudociência. O juiz não pode dizer que uma lei diz x simplesmente porque essa é "sua opinião política". Da mesma forma o juiz não pode utilizar um método terapêutico pseudocientífico, baseado em vagas noções "quânticas" (aliás, o misticismo quântico está na moda), em sessões de mediação. O discurso jurídico exige compromissos institucionais. Assim como o juiz não deve apenas escolher uma interpretação legal, mas esforçar-se em buscar aquela que melhor considere o Direito como um todo (o Direito na sua melhor luz), também o juiz não pode ser livre para se valer de métodos questionáveis em audiência. De fato, o caminho proporcionado pela constelação familiar pode ser muitas vezes mais fácil. Todavia, ainda que se admitisse — e não há evidências robustas disso — que a técnica proporciona alto índice de acordos, ainda assim não seria correto o seu emprego. O Direito, acima de tudo, não pode ser entendido como uma questão de consequência, mas como questão de princípio. "Pacificar conflitos sociais" não equivale a pôr fim aos processos judiciais. O meio adequado importa. Relembrar traumas, com possibilidade de revitimização, é situação necessária na terapia? Os "campos energéticos familiares" existem? Quais são as implicações da constelação familiar em longo prazo? Ela é realmente benéfica, maléfica ou não faz nenhuma diferença? O Direito não pode responder a essas perguntas, isso é papel da ciência que investiga esses fenômenos (psicologia, medicina), a qual vem, inclusive, deslegitimando a prática. O perigo reside na ideia de que os juristas possam passar por cima dos elevados padrões do método científico nas suas lidas forenses. Esse tipo de constrangimento epistemológico [15] é essencial em uma época tão marcada pela relativização da verdade. Se não for pela dificuldade de se aceitarem argumentos pouco fundamentados de mecânica quântica, devemos duvidar ao menos da possibilidade de juízes, promotores e advogados lidarem com questões que não são de sua área de formação. Ainda, em um aspecto que não pode deixar de ser minimamente abordado, chega a ser embaraçoso ver a fenomenologia heideggeriana associada à constelação familiar. Com efeito, Hellinger frequentemente se refere ao des-velamento tão caro aos hermeneutas. O problema é que dificilmente um hermeneuta compraria ideias arrojadas de mecânica quântica sem o mínimo de investigação científica séria. Ir "às coisas mesmas" não significa "aceitar que meus sentimentos e impressões pessoais representam fielmente a verdade" — que é o que largamente move as pseudociências. Isso é o contrário do que pregam os hermeneutas, notórios defensores da necessidade de abertura à reavaliação de nossos preconceitos e pré-juízos. Toda vez que trazemos pseudociência para dentro do Direito, ela passa a integrar o "modo de vida", uma forma de manifestação do fenômeno. Aceitar que no Direito possa existir algo sem comprovação científica é, no limite, aceitar que o Direito é compatível com práticas não-científicas. Crer ou não crer nessas propostas "quânticas" e "energéticas" cabe a cada um, em sua individualidade. O problema é levar isso para dentro do Direito, empreendimento coletivo por excelência no qual decisões sobre métodos e técnicas devem ser tomadas de forma criteriosa. Posso ser cristão ou ateu, judeu ou agnóstico, mas não posso levar para a linguagem pública que constitui o Direito a Eucaristia ou a exigência da circuncisão. Todo cuidado é pouco. Com o andar da carruagem, logo, logo teremos um robô-juiz disponível para conciliação judicial por meio da constelação familiar. É viver para ver. [1] HELLINGER, Bert. Órdenes del amor: cursos seleccionados de Bert Hellinger. Traducción de Sylvia Kabelka. Barcelona: Herder Editorial S.L., 2001. p. 13-14. [2] Ótimo apanhado dessas (e outras) “estranhas ideias” que existem nos fundamentos da constelação familiar pode ser encontrado em CARROLL, Robert Todd. Bert Hellinger and family constellations. The Skeptic's Dictionary. Disponível em: https://www.skepdic.com/hellinger.html. Acesso em: 3 jan. 2022. [3] Informação disponível em: https://www.cnj.jus.br/constelacao-familiar-no-firmamento-da-justica-em-16-estados-e-no-df/. [4] Texto disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-jun-20/sami-storch-direito-sistemico-euma-luz-solucao-conflitos. [5] Para ver o requerimento: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8068824&ts=1648153039139&disposition=inline. [6] Portaria disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2018/prt0702_22_03_2018.html. [7] A título ilustrativo: https://recifaqui.faqui.edu.br/index.php/recifaqui/article/view/20. [8] Conforme nota técnica que segue: https://transparencia.cfp.org.br/wp-content/uploads/sites/9/2022/09/Nota-Tecnica-3-2022.pdf. [9] Texto em: https://portal.cfm.org.br/artigos/efeito-placebo-nos-postos-de-saude/. [10] Em referência a texto de Lenio Streck sobre a deficiência jurídica de exigir afirmações com base científica: https://www.conjur.com.br/2018-jun-07/senso-incomum-tal-exigir-evidencias-cientificas-decisoes-tribunal. [11] Conforme: https://www.metropoles.com/brasil/justica/apos-denuncias-cnj-analisa-uso-de-constelacoes-familiares-na-justica [12] HELLINGER, Bert. Desatando os laços do destino: constelações familiares com doentes de câncer. Tradução de Newton de Araújo Queiroz. São Paulo: Editora Cultrix, 2004. [13] HELLINGER, Bert; WEBER, Gunthard; BEAUMONT, Hunter. Love’s hidden symmetry: what makes love work in relationships. Phoenix: Zeig, Tucker & Co., 1998. p. 51. [14] Questão muito bem tratada no verbete Autonomia do direito. Cf. STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Letramento, 2020. p. 25-33. [15] Remeto o leitor ao (belíssimo) verbete Constrangimento epistemológico. Cf. STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Letramento, 2020. p. 61-66.
2023-01-07T08:00-0300
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Opinião
Antonio Carlos Will Ludwig: Democracia e Forças Armadas (parte 2)
- Clique aqui para ler a parte 1   Supervisão Parlamentar: A Câmara dos Deputados de nosso país possui uma área denominada Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional. Um exame das propostas e relatórios feitos pelos seus integrantes revela que seus parlamentares tem realizado muitas ações que cabem a ela por determinação legal. Entretanto, pelo exame de tais documentos verifica-se que a mesma se volta apenas para o desenvolvimento de funções burocráticas rotineiras. Observe-se que em alguns países do mundo há uma representação no parlamento que cuida de assuntos militares e desenvolve outros tipos de ações. Na Alemanha, por exemplo, existe a figura do Wehrbeauftragten des Deutschen Bundestages ou o Comissário Parlamentar das Forças Armadas atualmente exercido por Eva Högl. Essencialmente ele é um defensor dos interesses dos militares. Uma de suas principais funções é tomar as medidas cabíveis se constatar violação dos princípios de desenvolvimento de liderança e educação cívica ou de direitos básicos do Bundeswehr. Note-se que qualquer fardado, desde o soldado raso até o general, tem a opção de levar suas queixas diretamente ao Comissário Parlamentar das Forças Armadas sem aderir à cadeia de comando. O titular desta comissão está sempre se empenhando para obter informações detalhadas sobre as forças. Todos os anos costuma visitar vários locais onde se encontram quartéis das forças armadas. Durante suas visitas recebe informações não apenas de líderes militares, mas também em conversas diretas com os demais. O Comissário deve garantir o cumprimento dos exércitos ao Innere Führung, que é, em primeiro lugar, o conceito de soldado cidadão e militar totalmente integrado numa democracia liberal e numa sociedade pluralista. Na Bósnia e Herzegovina, o principal objetivo perseguido pelo comissário da defesa é de fortalecer o estado de direito, os direitos humanos e as liberdades dos militares conforme garantido pela Constituição e convenções internacionais ratificadas pelo país. Na Austrália existe a figura do ombudsman encarregado de receber denúncias de abuso praticados contra integrantes das Forças Armadas e investigar reclamações sobre medidas administrativas tomadas em instâncias superiores. A comissão de defesa brasileira poderia ampliar suas atividades e incluir a figura do comissário parlamentar, semelhante ao germânico, para se dedicar aos interesses dos fardados em relação à carreira, às condições de trabalho e ao salário bem como atentar aos seus reclamos e expectativas, colher opiniões, identificar concepções, monitorar suas ações e encaminhar suas reivindicações. Relações Com os Civis: Desde a criação dos Estados nacionais que geraram as Forças Armadas persiste a preocupação dos paisanos em relação aos fardados quanto à possibilidade de eles usarem seu poder para esmorecer e até inviabilizar a dinâmica do regime político. Para evitar a ocorrência de eventuais intervenções, os estudiosos do assunto propuseram duas alternativas básicas. Uma delas se centra na concessão pelos civis de autonomia profissional aos militares, na subordinação deles aos líderes políticos civis, na não intervenção dos mesmos na política e na não ingerência política nas Forças Armadas por parte dos civis. A outra é assentada no conceito de civilinização que é entendido como a presença ativa de civis nas instituições bélicas e o emprego nelas de noções civis. Sustenta que o avanço da tecnologia é o responsável pelo fenômeno da civilinização o qual aproxima cada vez mais os paisanos dos fardados, e desfaz a distinção entre civis e militares e suas organizações. A primeira alternativa, voltada para a persecução do apoliticismo, desde há muito tempo, vem tentando guiar a grande maioria das Forças Armadas, particularmente a nossa, entretanto ela tem se mostrado muito vulnerável devido não se coadunar com a realidade objetiva. Nos Estados Unidos o US Cyber Command tem sido utilizado na segurança eleitoral. Seus integrantes tem trabalhado para embotar campanhas de influência e determinar o que conta como conteúdo político aceitável e inaceitável. Ademais, em seu esforço para reprimir provocadores estrangeiros, inadvertidamente restringem a liberdade de expressão, especialmente quando agências de inteligência forasteiras supostamente vêm atraindo americanos de forma sorrateira, para escrever posts em sites falsos. Em Israel já foi evidenciado que reina uma falsa percepção quanto ao traço apolítico dos militares. De fato, os mesmos se vêm como um corpo profissional que atua segundo uma concepção apartidária. Acreditam que fazem parte de um exército cidadão que se apresenta como a nação em armas pois reflete os matizes da sociedade civil haja vista que os fardados são oriundos de todas as camadas sociais. Não visualizam as Forças Armadas pelo ângulo do profissionalismo militarista e sim segundo a ideia de Mamlachtiyut, que diz respeito a um ethos nacional estatista combinador da noção de pertencimento à mesma comunidade, condutas comuns e engajamento para o bem de Israel. Outrossim, em algumas nações europeias a proposta da profissionalização se revelou inconsistente. Veja-se o caso da França, que, na década de 60 do século passado, estava envolvida em uma guerra contra a Argélia. Receosa de perder mais uma colônia, chamou o general de Gaulle para administrar o conflito. Após conceder autodeterminação aos argelinos, emergiu a República da Argélia. Muitos franceses sentiram-se traídos e fundaram a denominada Organização do Exército Secreto que junto com alguns generais tentaram dar um golpe, porém fracassaram. Recentemente, emergiu um manifesto encabeçado por generais, contendo milhares de assinaturas, advertindo que frente ao crescimento do caos no país as Forças Armadas logo seriam convocadas para conter uma guerra civil. Após algumas semanas, apareceu outro de caráter anônimo, mas seus autores declararam ser militares da ativa. O conteúdo acusava o governo de se mostrar incapaz para enfrentar o avanço do islamismo, da imigração e da violência interna. Agregue-se também o caso da Grécia em 1967 quando emergiu o Plano Prometheus elaborado pelos militares com base na justificativa de salvar a nação de um suposto regime comunista que sustentou a alcunhada ditadura dos coronéis. Essa proposta do apoliticismo militar, que tem guiado a ação dos servidores de uniforme do nosso país desde há muito tempo, defendida por governantes, parlamentares, jornalistas, intelectuais e estudiosos de assuntos militares, não possui um mínimo de sustentação empírica. Não detém também nenhum suporte teórico. Note-se que a ideia do apoliticismo se ancora no pressuposto da neutralidade o qual não encontra base nem na Ciência e nem na Filosofia. Nesta somente a área da fenomenologia admite a epoché, que é a possibilidade da suspensão do juízo apenas no início de uma investigação científica. Esse alvitre é resultante da falsa concepção de estabilidade social, da criticável ideologia conservadora, da fragilidade do raciocínio assentado nos princípios da lógica formal e da insustentável cosmovisão funcionalista. Tendo em vista uma melhora radical nas relações civis-militares, é imprescindível abandonar de vez essa infundada teoria do apoliticismo, que teima em segregar inutilmente os militares no interior dos quartéis para se dedicarem inteiramente aos afazeres da defesa do país. Vale dizer que é esse isolamento que facilita a elaboração por parte deles de soluções muitas vezes nada democráticas para os problemas nacionais. É crucial abandonar também o uso do princípio da identidade, o qual induz a ideia de que militar é militar e civil é civil, bem como o pensamento de que essa ideia tem que persistir, haja vista que cabe a cada um deles tarefas pertinentes e específicas. Faz-se necessário ainda civilinizar cada vez mais as Forças Armadas, pois a civilinização é o destino inexorável das instituições castrenses nos países regidos pela democracia. A visível aproximação cada vez maior dos fardados aos paisanos, bem como de suas organizações, está contribuindo decisivamente para o desaparecimento das diferenças entre uns e outros até o ponto em que provavelmente ocorrerá o ato da fusão, cujo exemplo mais aproximado é a figura do citizen in uniform existente nos países da Europa, o qual é profissionalmente regido pela Carta Social Europeia voltada aos civis. Exercício do Comando: Muitas Forças Armadas do planeta e todas as pertencentes aos países autocráticos adotam um estilo linear de condução da tropa, isto é, na forma de uma estrutura piramidal em cujo vértice se encontra a autoridade máxima preservadora da unidade de comando. Assim sendo, é centralizadora, poucos mandam, haja vista que a quase totalidade das ordens são oriundas de uma só chefia. Nos escalões mais baixos, os indivíduos não se comunicam livremente, necessitam da intervenção dos respectivos chefes para a troca de informações. Cada setor age com autonomia, sujeitando-se somente em relação à autoridade de linha, ou seja, na vertical. Observe-se que não deve ter sido fácil para as nações do leste europeu que quiseram adentrar à comunidade europeia, após a queda do muro de Berlim, substituir o modo linear de comando em suas tropas. Nos Estados Unidos, o Exército usa a Gestão de Qualidade Total, que exige o emprego da técnica do brainstorming, requerente da busca de consenso entre ideias e opiniões. Na Suíça, os fardados empregam uma ferramenta da Gestão de Pessoas denominada liderança transformacional, cujo relacionamento é construído por meio do contato entre os integrantes da equipe. É um estilo de ação em que dirigentes e dirigidos se ajudam de forma mútua em busca de objetivos comuns. Em diversos países democráticos, a liderança dos agrupamentos militares se mostra bem diferente da forma linear. Na Alemanha o comando se assenta no estilo denominado Auftragstaktik, ou missão dada pela finalidade, o qual possibilita que todos os integrantes da pirâmide hierárquica, desde o soldado raso até o general comandante, exercitem seu espírito crítico, sua faculdade de julgamento, sua conduta autônoma e sua capacidade de tomar a iniciativa. O militar, qualquer que seja sua graduação, pode, até mesmo em circunstâncias especiais, modificar ou deixar de cumprir as tarefas que lhes foram confiadas por superiores hierárquicos, se ele considerar que isso está de acordo com a intenção do comandante responsável pela ordem expedida. Novamente citando os Estados Unidos, verifica-se, desde alguns anos, que vem sendo posto em prática um procedimento de liderança alcunhado de shared leadership, o qual pode ser traduzido como liderança compartilhada. Em tal modo de direção grupal, inexiste a figura de um indivíduo específico responsável pelo encaminhamento do grupo. A ênfase recai na interação dos membros da equipe, para possibilitar o exercício do comando coletivo, no qual a conduta de todos é resultante de protagonismos alternados. Ele se mostra bem adequado em operações militares carregadas de alto risco para todos os integrantes que participam dessas operações. Outro estilo também utilizado e empregado pelas tropas da Otan, o qual foi repassado de modo exitoso aos fardados da Ucrânia, se baseia no conceito de decentralized warfare. Ele confere agilidade aos agrupamentos combatentes porquanto possibilita aos líderes das pequenas e dispersas unidades pensarem e agirem por conta própria observando a opinião dos subordinados hierárquicos. Em nosso país o exercício do comando, de forma predominante, segue o modelo linear, embora não seja incomum a prática da inquirição aos subalternos para tomar decisões que pode não a levar em conta e a promoção do incentivo à tomada de iniciativa por todos os integrantes da escala hierárquica. É um estilo de liderança que acentua a tradicional conduta de imediata obediência às ordens expedidas. Tal automatismo comportamental não se coaduna com a natureza atual do combate exigente da avaliação pessoal relativa à busca das melhores respostas a determinados tipos de perigos. Portanto, se mostra necessário rever esta forma de gerenciamento de pessoas, no sentido da adoção cada vez mais ampla e intensa de procedimentos participativos, os quais, sem dúvida, estão em sintonia com a essência do regime político democrático.   - Clique aqui para ler a parte 3
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Segunda Leitura
O jurista transnacional e a nova arquitetura jurídica mundial
No início de 2022, a comunidade acadêmica foi contemplada com a obra A Transnacionalização do Direito como Forma de Miscigenação dos Sistemas Jurídicos, de Carla Della Bona, que é professora na Universidade de Passo Fundo (UPF), mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM e doutora em Direito pela Univali, com dupla titulação pela Universidade de Alicante, na Espanha. O livro contém a sua tese de doutoramento. Della Bona afirma que o Direito Transnacional faz parte de uma nova arquitetura jurídica mundial: "no mundo pós-moderno, em rápida transformação e com complexidade crescente, os juristas deverão ser capazes de oferecer respostas inovadoras que permitam estabilizar as relações e instituições" [1]. A autora enxerga no Direito Transnacional uma força irresistível e transformadora do ambiente que os juristas estão habituados a encontrar. Citando Oscar Vilhena Vieira, afirma que os profissionais do Direito da atualidade estão "muito mais expostos a operações que têm algum componente jurídico internacional do que estavam há uma década; e, provavelmente estarão ainda mais expostos num futuro próximo" [2]. Segundo Della Bona, as profissões jurídicas estão se transformando: "o jurista da era global deve forçosamente interessar-se na rica diversidade do Direito Transnacional, nas ordens jurídicas nacionais com as quais o Direito Transnacional interage"[3]. A fonte normativa já não está concentrada nas mãos do Estado: "os profissionais do Direito serão chamados a participar ativamente — muitas vezes fora do controle estatal — na construção de regimes transnacionais e supranacionais" [4]. A abordagem em questão reflete a essência do pensamento de André-Jean Arnaud, para quem as situações contenciosas tendem a passar cada vez menos pelas vias tradicionais do Estado, administrativas ou as judiciais [5]. Quanto ao papel do magistrado no ambiente jurídico transnacional, Della Bona observa que "o novo jurista não fica somente adstrito na figura do advogado, seja ele estatal ou privado, ele abrange igualmente a função do juiz", pois "ninguém ousaria mais sustentar que ele é apenas 'a boca da lei'" [6]. A globalização e a complexificação da sociedade moderna amplificaram o caráter interdisciplinar do Direito, traço que se projeta na função jurisdicional. Segundo Della Bona, o juiz transnacional é "dinâmico, mais administrador de situações conflituosas do que a voz que proclama do Direito" [7]. Esse novo profissional do Direito, segundo a autora, "deverá, ainda, ser um artífice da paz" [8]. E conclui: "parece que o jurista, no contexto transnacional, precisa ser também um sociólogo jurídico (não somente um filósofo do Direito) dentro de um contexto internacional" [9]. A transnacionalidade já se faz sentir na atividade judicial, bem como na formação profissional e acadêmica do magistrado contemporâneo. Um dos traços mais evidentes dessa transformação diz respeito ao crescimento do intercâmbio entre magistrados. É nesse contexto que se explicam as posturas inovadoras e transfronteiriças adotadas pelos juízes contemporâneos, que fundamentam suas decisões a partir de julgados estrangeiros; atuam junto a organismos internacionais na condição de membros ou ouvintes; buscam formação acadêmica no exterior; e cooperam com órgãos judiciais estrangeiros ou internacionais. Tudo isso ocorre sem uma necessária intermediação estatal, resultando, muitas vezes, de iniciativa, esforço e custeio individual do próprio magistrado. Pode-se dizer, então, que a atividade intelectual de natureza jurídica não está condicionada às limitações das estruturas estatais, podendo resultar de experiências transnacionais com características interdisciplinares, difusas e mesmo informais. Antoine Garapon e Julie Allard, em sua obra Os Juízes na Mundialização: a Nova Revolução do Direito, destacaram que "o Direito tornou-se num bem intercambiável. Transpõe as fronteiras como se fosse um produto de exportação. Passa de uma esfera nacional para outra, por vezes infiltrando-se sem visto de entrada" [10]. Antoine Garapon é magistrado francês e doutor em Direito. Foi docente na Escola Nacional da Magistratura francesa e é autor de diversas obras sobre Direito e Justiça, sendo conhecido em seu país pelos programas de rádio que realiza desenvolvendo seus temas. Julie Allard é professora de Filosofia do Direito na Universidade Livre de Bruxelas, onde dirige o Centro de Direito Público, e pesquisadora associada ao Instituto de Estudos Avançados em Justiça. Os referidos autores sustentam que a comunicação entre juízes de diferentes países aumentou consideravelmente nos últimos anos, flexibilizando as fronteiras políticas em relação à circulação do Direito. Os juízes são identificados como executores do direito estatal e participantes na discussão de um direito global: "até muito recentemente confinados ao território nacional, os juízes passam, de agora em diante, a estabelecer entre eles, e através das fronteiras, relações cada vez mais sólidas e confiantes" [11]. Este intercâmbio cultural e jurídico, que avança de modo gradativo, não parece ter a pretensão de transformar-se, formalmente, em um sistema jurídico supranacional. Na visão de Garapon e Allard, o fenômeno assemelha-se mais à construção de uma "vasta teia jurídica global". Na edição portuguesa da obra, os autores convencionaram a expressão comércio de juízes para simbolizar este intercâmbio judicial, e a posição sobre o tema em análise é no sentido de que "a mundialização do direito, tal como revelada pelo comércio de juízes, não dá sinais de enveredar por uma nova ordem jurídica mundial". Trata-se, portanto, de "um fórum informal de intercâmbios situado, na maior parte das vezes, à margem dos mecanismos institucionais" [12]. Parece adequado dizer que a magistratura acompanha a evolução do mundo e caminha no sentido de adotar um Direito mais móvel [13]. Afinal, como destacam os referidos autores, os juízes são "simultaneamente funcionários públicos e juristas independentes, executores de um direito estatal e participantes na discussão de um direito global", desempenhando um "papel de interligação no seio da mundialização" [14].   ALLARD, Julie, GARAPON, Antoine. Os juízes na mundialização: a nova revolução do direito. Tradução de Rogério Alves. Lisboa: Instituto Piaget, 2005. ARNAUD, André-Jean; DULCE, María José Fariñas. Introdução à análise sociológica dos sistemas jurídicos. Tradução do francês por Eduardo Pelew Wilson. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. BONA, Carla Della. A transnacionalização do direito como forma de miscigenação dos sistemas jurídicos: uma recomposição dos fundamentos do direito. São Paulo: Dialética. 2022. [1] BONA, Carla Della. A Transnacionalização do Direito como Forma de Miscigenação dos Sistemas Jurídicos: uma Recomposição dos Fundamentos do Direito, p. 254. [2] BONA, Carla Della. Op. Cit., p. 265. A obra de Oscar Vilhena Vieira citada pela autora é: "Desafios do Ensino Jurídico num Mundo em Transição". Rio de Janeiro: RDA — Revista de Direito Administrativo, v. 261, p. 376. [3] BONA, Carla Della. Op. Cit., p. 255. [4] BONA, Carla Della. Op. Cit., p. 264. [5] ARNAUD, André-Jean; DULCE, María José Fariñas. Introdução à Análise Sociológica dos Sistemas Jurídicos. Tradução do francês por Eduardo Pelew Wilson. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 357. [6] BONA, Carla Della. Op. Cit., p. 257-8. [7] BONA, Carla Della. Op. Cit., p. 264. [8] BONA, Carla Della. Op. Cit., p. 256. [9] BONA, Carla Della. Op. Cit., p. 266. [10] ALLARD, Julie, GARAPON, Antoine. Os Juízes na Mundialização: a Nova Revolução do Direito. Tradução de Rogério Alves. Lisboa: Instituto Piaget, 2005, p. 7. [11] ALLARD, Julie, GARAPON, Antoine. Op. Cit., p. 8. [12] ALLARD, Julie, GARAPON, Antoine. Op. Cit., p. 10-15. [13] ALLARD, Julie, GARAPON, Antoine. Op. Cit., p. 38. [14] ALLARD, Julie, GARAPON, Antoine. Op. Cit., p. 113.
2023-01-08T08:00-0300
https://www.conjur.com.br/2023-jan-08/segunda-leitura-jurista-transnacional-arquitetura-juridica-mundial

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