categoria
stringclasses
9 values
titulo
stringlengths
18
146
texto
stringlengths
0
41.7k
data
stringlengths
10
10
link
stringlengths
39
53
brasil
Quem foi Oswaldo Aranha, o brasileiro que ajudou a criar o Estado de Israel
“Sua atuação no cenário internacional estava dentro da questão do excedente de poder, um conceito de política externa que trata das coisas que criam condições para que você crie outras”, diz à BBC News Brasil o cientista político Leonardo Bandarra, pesquisador na Universidade de Duisburg-Essen (Alemanha) e associado sênior na organização desarmamentista Middle East Treaty. “A participação do Brasil [na criação do Estado de Israel] foi importante para o país mostrar capacidade de gerir assuntos complexos de paz que não são de sua região. Até hoje nos dá prestígio no cenário internacional”, acrescenta. Fim do Matérias recomendadas “Ao lado de Ruy Barbosa [(1849-1923)], Barão do Rio Branco [(1845-1912)] e Bertha Lutz [(1894-1976)], é um dos nomes mais importantes da diplomacia brasileira. Simboliza um Brasil que se lançava para o mundo”, afirma à BBC News Brasil o economista Robert Georg Uebel, professor de relações internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Sua biografia indica uma facilidade inata para intermediar conflitos e buscar soluções. “Ele tinha uma aptidão muito grande para questões internacionais desde cedo”, diz à reportagem o cientista político Christopher Mendonça, professor na Ibmec de Belo Horizonte. “Aranha nasceu no lugar onde é praticamente fronteira do Brasil com Argentina e Uruguai [o município de Alegrete] e jovem esteve em países como França, Itália e Suíça. Esse conhecimento internacional fez dele uma pessoa de destaque nesse assunto.” Graduado pela Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais, hoje Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), logo em seguida passou uma temporada de estudos em Paris. Só então se viu talhado para começar a carreira, como advogado, no Rio Grande do Sul. Logo sua trajetória se misturaria com a política. Em 1923, tinha 29 anos quando explodiu a luta entre chimangos e maragatos — e ele chegou a pegar em armas para lutar a favor do sistema republicano em seu estado. Dois anos mais tarde tornou-se prefeito de sua cidade natal — e lembrado até hoje como o introdutor do sistema de esgoto no município. Nesse período, o diplomata dentro dele pareceu saltar aos olhos. Os resquícios do conflito de dois anos atrás ainda ecoavam em sua Alegrete, fazendo com que famílias distintas se vissem como rivais. Ele conseguiu selar a paz. Aranha parecia galgar uma ascensão meteórica. Em 1927, foi eleito deputado federal. No ano seguinte, foi nomeado secretário de Negócios Interiores e Exteriores do Rio Grande do Sul. Pouco tempo depois, ele era um dos principais articuladores da chamada Aliança Liberal, campanha que organizou o golpe armado que deporia o presidente Washington Luís (1869-1957), fazendo a Revolução de 30 que acabaria levando o seu conterrâneo gaúcho Getúlio Vargas à presidência da República pela primeira vez. Foi nessa época que a amizade de ambos se tornou forte. “Ele passou a fazer parte do gabinete governativo de Vargas”, pontua Mendonça. Foi ministro da Justiça e, depois, da Fazenda. Seu olhar estava sempre mirando o exterior — tanto que em sua gestão no comando das finanças públicas promoveu um levantamento que, pela primeira vez, consolidou o montante da dívida externa brasileira. Mendonça lembra que era um momento delicado para as contas, já que o planeta vivia o rescaldo da intensa crise de 1929, quando houve a quebra da bolsa de valores de Nova York e uma reação em cadeia pelos mercados mundo afora. A amizade com Vargas, contudo, não fazia dele um apoiador inconteste. Em 1934, após uma série de desentendimentos, ele pediu demissão do cargo. Foi quando acabou nomeado embaixador brasileiro em Washington. “Ele foi colocado nessa posição por sua grande capacidade em assuntos internacionais e habilidade de mediação política”, ressalta Mendonça. “Aranha era um admirador dos Estados Unidos, de como uma ex-colônia se tornava uma democracia pujante. Ao mesmo tempo, ele era antifascista e pró-democracia e isso é uma característica na qual ele foi muito coerente ao longo de sua carreira”, diz Bandarra. Durante sua gestão, ele costurou alguns tratados importantes. Em 1935, por exemplo, Brasil e Estados Unidos firmaram um compromisso comercial mútuo que é considerado basilar para a aproximação histórica entre as duas nações. Ele também se aproximou do presidente Roosevelt, de quem se tornou amigo, e formou uma comitiva que o trouxe para visitar o Rio de Janeiro, em 1936. “Os Estados Unidos ainda não eram um país de referência, uma potência global, mas Oswaldo Aranha teve o feeling, a capacidade de ver neles uma grande capacidade do ponto de vista econômico e militar”, analisa o cientista político. No ano seguinte, houve nova rusga com Vargas. “Foi quando o presidente redigiu o decreto do Estado Novo. Aranha criticou”, lembra Mendonça. O episódio precipitou sua demissão do posto em Washington. “Ele tinha uma relação próxima com Vargas, mas era uma relação crítica, com momentos de proximidade e momentos de separação, de corte de relações formais com o governo”, explica Bandarra. “Isso só reforça que ele falava o que pensava, o que acreditava.” Em 1938, ambos se aproximaram mais uma vez. Oswaldo Aranha acabou nomeado ministro das Relações Exteriores. E aí seu papel se tornou crucial para os rumos adotados pelo país durante a Segunda Guerra Mundial, conflito que ocorreu entre 1939 e 1945. O primeiro ponto elementar de sua gestão à frente do Itamaraty foi reforçar os laços brasileiros dentro das relações americanas. “Ele lutou pela aproximação comercial com a Argentina e os Estados Unidos e, vale dizer, os dois são até hoje parceiros muito importantes para o Brasil. Nesse sentido, Aranha foi responsável pelo padrão da política externa brasileira ainda vigente”, argumenta Mendonça. Com a guerra, havia uma pressão para o posicionamento brasileiro dentro do conflito. Em 1942, na Conferência do Rio que foi presidida por ele, Aranha declarou o rompimento das relações diplomáticas e comerciais do Brasil com os países do Eixo. “Esse foi o passo fundamental para a aproximação do Brasil com os países que posteriormente venceram a Segunda Guerra”, analisa Mendonça. “Havia no país um flerte com o autoritarismo, inclusive com o nazismo. Nesse sentido, ele teve o mérito de fazer com que o país se mantivesse dentro dos preceitos da democracia, da liberdade.” O cientista político Bandarra afirma que, no governo Vargas, Aranha se contrapunha a dois outros nomes sobre o posicionamento brasileiro na guerra: o então chefe da polícia política Filinto Müller (1900-1973) e Enrique Gaspar Dutra (1883-1974), que ocupava o posto de ministro da Guerra. “Estes eram favoráveis a uma relação próxima com os países do Eixo. Aranha teve uma atuação forte nos bastidores para que o Brasil ficasse ao lado dos Aliados”, diz. No princípio, o diplomata advogou pela chamada equidistância, em que o país deveria assumir uma pretensa neutralidade no conflito, tentando se beneficiar de ambos os lados. “Seria um equilíbrio pragmático, uma neutralidade positiva”, afirma Bandarra. “Em seguida, ele puxou para o caminho mais próximo com o lado americano, pela questão do panamericanismo, da democracia e tudo isso”, complementa. “Ele foi uma pessoa que pensou à frente na questão da posição do país no cenário internacional.” “Era um momento muito conturbado da política internacional e, ao mesmo tempo, um momento em que o Brasil estava se lançando ao mundo, se mostrando para o mundo”, comenta Uebel. “Oswaldo Aranha teve um papel fundamental nisso, reafirmando a imagem do Brasil como um país antifascista e antinazista, um país alinhado aos valores ocidentais.” Em 1944, novamente enfraquecido no governo, decidiu pedir demissão do cargo de ministro. Havia um rumor de que ele seria um nome forte para disputar as eleições para a presidência em 1945, mas não houve base política suficiente para bancá-lo na corrida. Quando a Organização das Nações Unidas foi criada, ele logo assumiu o cargo de chefe da delegação brasileira, a partir de 1947. Foi aí que ocorreu seu papel-chave na criação do Estado de Israel. “Ele já estava fora da agenda política e foi recolocado no cenário pelo presidente Dutra [que sucedeu Vargas]. Pode parecer inesperado, porque eles tinham uma relação anterior problemática, mas, durante seu governo, ele se tornou um pró-americanista incisivo na política externa, então fazia sentido chamar de volta o Aranha”, analisa Bandarra. Aranha se tornou o presidente da II Assembleia Geral da ONU, justamente aquela que votou o plano para a partição da Palestina. A resolução estava longe de ser um consenso, e mesmo entre aqueles que defendiam a criação de um novo Estado não havia posição unânime sobre as formas de dividir o território. “Ele tinha uma boa aproximação com os judeus que viviam nos Estados Unidos e isso influenciou em sua postura”, afirma Mendonça. “Sua motivação não era apenas política, mas também pessoal.” “Mas a criação do Estado não foi consensual. Havia interesses difusos durante o processo de negociação, o que causou muitas intercorrências. O papel de mediador de Aranha, hábil, foi fundamental para a negociação”, complementa o cientista político. “Eu diria que ele foi muito bem-sucedido ao manobrar os interesses das partes”, afirma Bandarra. Utilizando a história do Brasil como exemplo, o diplomata soube conduzir as discussões dentro daquilo que, ao menos sob o prisma da época, parecia ser o mais adequado. “Aranha negociou bastante, inclusive acionando contatos nos governos, principalmente nos Estados Unidos. E buscou formas alternativas de como chegar ao resultado, de como deveria ser feita a partilha do território”, explica Bandarra. O pesquisador afirma que eram muitas as propostas e, para defender a solução que acabaria adotada naquele momento, Aranha usou como exemplo a história da definição das fronteiras do Brasil. “No final, foi o critério que se usou: quem está ocupando deve ter a terra”, diz. Se por um lado, naquele momento parece ter funcionado — e o processo ocorreu com rapidez — por outro ele traria problemas, segundo o especialista. “A Palestina ficou com duas partes desconectadas, foram criados dois exclaves, digamos, e isso dificulta bastante até hoje a viabilidade do Estado Palestino. É uma coisa que não ficou solucionada”, diz Bandarra. Mas, conforme ressalta o pesquisador, é inegável que Aranha “manobrou de diversas formas para que, no final, conseguisse uma boa votação e a consequente aprovação da resolução” que dividiu a Palestina e criou Israel. “Foi uma posição bem feita, embora poderia ter levado outros fatores em consideração para evitar futuros problemas”, critica ele. “É preciso lembrar, entretanto, que foi uma solução relativamente rápida e isso é uma coisa importante. Mostra eficiência na negociação e vontade de resolução.” Para Uebel, é preciso lembrar que Aranha “é reconhecido até hoje pelo papel de destaque” nesses primeiros anos da ONU e isso está atrelado ao seu trabalho pela aprovação da criação do Estado de Israel. “Ele construiu todo o diálogo político necessário”, comenta. “Havia também a preocupação humanista de Aranha em busca de uma solução para um povo que havia sido tão perseguido, que havia acabado de sofrer o Holocausto na Segunda Guerra.” Houve ganhos simbólicos também para a política externa brasileira. “Isso demonstra também que Aranha já pensava na época em colocar o Brasil na agenda internacional”, acrescenta. Um dos motivos que faz com que o país historicamente abra as assembleias gerais da ONU é justamente em homenagem ao trabalho de Aranha no período. “De forma geral, a trajetória de Oswaldo Aranha mostra que ele viveu momentos de grande necessidade da atuação forte da diplomacia brasileira. Foi ministro da Fazenda em um momento crucial, pós-Crise de 1929, conduziu o Brasil no mercado internacional de maneira importante através de assinaturas com Estados Unidos e Argentina, foi referência na entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial e, posteriormente, nos primeiros passos da ONU”, diz Mendonça. “É um nome inescapável dentro da história diplomática.” Além dos logradouros públicos com seu nome, uma das mais curiosas homenagens que acabaram por eternizar a memória do diplomata é um prato, o filé à Oswaldo Aranha. Trata-se de um bife de filé mignon ou contra-filé, fartamente temperado com alho frito, acompanhado de batatas, arroz e farofa de ovos. O apelido pegou porque essa era a receita que ele costumava pedir no restaurante Cosmopolita, chamado popularmente de Senadinho, que ele costumava frequentar na Lapa, no Rio.
2023-11-04
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0wxwr76er1o
brasil
Como PCC fez Paraguai virar um dos países com maior presença de crime organizado no mundo
No ranking de 2023, a nação saltou para a 4ª posição entre os 193 membros da ONU incluídos no estudo, atrás apenas de Colômbia, México e Mianmar, o atual líder. A pontuação do Paraguai é agora de 7,52. A classificação é obtida por meio da média de notas atribuídas em diferentes categorias. A BBC Mundo, serviço em espanhol da BBC, entrou em contato com diversos órgãos públicos e ministérios do Paraguai, assim como com o gabinete da Presidência de Santagio Peña, para analisar este resultado, mas não obteve respostas. Fim do Matérias recomendadas A operação contra o narcotráfico e a lavagem de dinheiro chamada "A Ultranza PY", a maior da história do país, realizada em 2019, deixou claro que as coisas mudaram nos últimos anos na nação sul-americana. Esta operação levou à destituição de ministros e à prisão de 24 pessoas por supostos vínculos com organizações de narcotraficantes. Para Carolina Sampó, doutora e pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet), os criminosos no Paraguai se aproveitaram durante anos da “falta de reputação do país como exportador de drogas para reenviar cocaína sem serem detectados e dirigi-la a portos de saída não tradicionais e rotas contraintuitivas como aquelas que se iniciam no porto de Buenos Aires, de San Antonio, ou de Montevidéu”. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Pecci investigava casos de corrupção e lavagem de dinheiro de alto perfil quando foi assassinado em sua lua de mel na Colômbia. “Todos os mercados e atores criminosos que se encontram nas Américas estão presentes em vários países. Esses mercados criminosos interconectados e transnacionais aproveitam situações de liderança e governança deficitárias”, afirmam os autores do Índice Global de Crime Organizado. “Os pontos de 2023 mostram que a região das Américas continua dominando o comércio mundial de cocaína como principal mercado de origem da droga”, acrescentam. O Brasil está na posição 22 no ranking de 193 países e é o sétimo com maior criminalidade organizada das Américas, segundo a lista. Para começar, especialistas apontam que o país está situado no coração da América Latina, fazendo fronteira com mercados enormes como Brasil, Argentina e Bolívia. Só isso já torna o Paraguai geograficamente atraente. Além disso, pelo menos outros 8 fatores ajudam a explicar como o país sul-americano se transformou em um centro criminoso internacional: A maior vigilância nos portos da Argentina e do Brasil fez com que o Paraguai se tornasse um centro internacional de distribuição de cocaína andina graças à sua proximidade geográfica com dois dos principais produtores desta droga, Peru e Bolívia. “Isso é algo novo. A cocaína que vem do Peru, da Colômbia ou do Equador chega ao Paraguai em pequenos aviões e é transportada até os portos de Buenos Aires e Montevidéu, que ficam no Atlântico, ou passa pelos portos do próprio país. A partir daqui, a cocaína começa a ser enviada para países da Europa, da África ou mesmo do Oriente Médio”, afirma Juan A. Martens, pesquisador da Universidade Nacional de Pilar e do Inecip (Instituto de Estudos Comparados em Ciências Penais e Sociais) do Paraguai. “Os movimentos aéreos são movimentos curtos, o que os torna muito fáceis. Em muitos casos nem é necessário que os pequenos aviões pousem, eles só jogam a cocaína do ar em um campo e voltam”, diz Sampó. Nesta chegada aos portos atlânticos, desempenha um papel fundamental um dos maiores sistemas navegáveis ​​do mundo, no qual, mais uma vez, o Paraguai está geograficamente localizado no centro. É a hidrovia Paraná-Paraguai. Com extensão de 3.442 quilômetros, atravessa ou tem ramificações na Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai. “O Brasil é um mercado de 200 milhões de pessoas. Por água, apenas uma hora nos separa do maior estado brasileiro. De Saltos del Guaira, no norte do Paraguai, é uma hora de barco até o estado de São Paulo, que tem 45 milhões de habitantes.” “É muito fácil traficar por essa via”, diz o pesquisador paraguaio. O Paraguai cultiva cerca de 7 mil hectares de maconha por ano. “Sempre foi um espaço territorial complexo no que diz respeito à criminalidade. A primeira questão é a quantidade e a qualidade da produção de maconha na região de Pedro Juan Caballero e como essa produção de maconha deu origem a graves conflitos entre diferentes organizações criminosas brasileiras e clãs locais”, diz Sampó. “Os níveis de consumo de maconha no Brasil são muito elevados e a qualidade da maconha de Pedro Juan é a mais alta da região. Ao unir produtores a clientes, o negócio vale milhões no Brasil”, afirma a pesquisadora argentina. É pela necessidade de controlar a circulação dessa droga que ocorre a expansão do tráfico de drogas. O Paraguai passou de primeiro produtor de maconha da América do Sul a um dos principais distribuidores de cocaína, apesar de não produzi-la. “A presença do cartel se estende por todo o Paraguai. A expansão do PCC para países vizinhos e suas conexões com redes internacionais sublinham a crescente influência do grupo na América do Sul”, afirmam os autores do Índice Global de Crime Organizado. Sampó explica que o PCC escolhe o Paraguai para sua expansão devido à proximidade com os centros de distribuição de maconha e cocaína. “Sua chegada tem a ver com um primeiro desembarque para controlar a maconha e depois se expande para diversos espaços do Paraguai, rurais e urbanos, onde recriam suas rígidas estruturas de organização criminosa”. A partir daí, a organização expande seus negócios e começa a transportar cocaína do Peru e da Bolívia para o Paraguai e de lá para o porto de Santos. O porto de Santos é o principal porto do Brasil e da América Latina. Posteriormente, viria a expansão de outras rotas, principalmente aquelas que têm a ver com o uso da hidrovia e a saída pelos portos de Buenos Aires e Montevidéu. “O cartel nasce nas prisões. É uma organização criminosa enorme e muito complexa. Para ingressar, é preciso ser batizado, é preciso passar por um processo de admissão”, afirma a pesquisadora. “O que começamos a ver entre 2018 e 2019 é que começam a haver batismos dentro das prisões paraguaias de paraguaios, não de brasileiros. Dos paraguaios que começam a pertencer ao PCC. E assim a organização amplia sua base dentro do território paraguaio”, afirma. Diferentes organizações internacionais afirmam que o Paraguai tem um problema de corrupção generalizado, que afeta todos os níveis de governo e da sociedade, tanto na esfera pública como na privada. “As pontuações do Paraguai, Venezuela e Nicarágua sugerem que os criminosos têm um nível preocupante de influência na sociedade e nas estruturas estatais”, diz o relatório produzido junto do índice. A chegada da cocaína do Paraguai aos portos da Bélgica, Holanda e Alemanha atraiu a atenção da Europol, da DEA (Administração de Fiscalização de Drogas, dos EUA) e de outras agências internacionais, o que tornou visível o vínculo institucional que existe entre o crime organizado e o poder público. Martens lembra os casos do ex-deputado Juan Carlos Ozorio, acusado de lavagem de dinheiro, tráfico de drogas e associação criminosa, ou do senador Erico Galeano, que atualmente é processado por lavagem de dinheiro e associação criminosa. “Há uma impunidade sistemática”, diz ele. Sampó concorda com isso: “As condições de fragilidade do Estado, a fragilidade institucional, os altos níveis de corrupção, os altos níveis de impunidade, viabilizam que o PCC desembarque como organização criminosa, se estabeleça e combine com os clãs locais a distribuição do negócio.” Estima-se que entre Argentina e Paraguai existam mais ou menos 200 travessias ilícitas. Em algumas partes, a distância entre os dois países é tão curta que, com uma lancha rápida, a fronteira pode ser atravessada em dois minutos. Mas outro dos fatores que torna a fronteira paraguaia porosa é a falta de recursos para controlar o espaço aéreo do país. “Até o momento, o Paraguai não possui radar para monitorar o céu. É claramente uma decisão política e um convite aos grupos criminosos transnacionais. Tornou este território um ímã de atração para grupos do México, da Europa Oriental ou da máfia italiana”, diz Martens. O Paraguai possui uma legislação muito favorável à compra e venda de armas e os requisitos para adquiri-las não são muito complicados. “Setenta e três grupos criminosos atuam no Brasil e as armas que esses grupos geralmente utilizam passam pelo Paraguai. Especificamente, são destinados às favelas do Rio. Estamos falando deles chegando ao Rio de Janeiro, ao Espírito Santo, a Minas Gerais e ao Nordeste brasileiro”, diz Martens. E não só armas de pequeno e médio calibre, mas também munições são distribuídas do Paraguai. “As armas abastecem organizações criminosas brasileiras como o PCC ou o Comando Vermelho”, diz Sampó. As rotas da droga são utilizadas para o tráfico de armas, mas também para o contrabando de cigarros e produtos falsificados. “O Paraguai é um centro importante para o comércio ilícito de tabaco, tanto a nível nacional como regional. A área da tríplice fronteira entre Paraguai, Brasil e Argentina é um corredor movimentado para o tráfico de tabaco, que financia outras atividades criminosas. O Paraguai ocupava a posição mais elevada da América neste mercado ilícito”, diz o relatório. “Os cigarros paraguaios inundam grande parte dos países vizinhos, impactando diretamente nas receitas dos Estados. E uma das características básicas das organizações criminosas é estarem envolvidas em tudo ao mesmo tempo. Muitas vezes até são utilizadas as mesmas rotas”, diz Sampó. E de mãos dadas com o contrabando também vem o comércio de produtos falsificados, que é outro mercado criminoso nas Américas. A pontuação média da América do Sul de 6,25 coloca a região em segundo lugar globalmente no ranking de crime organizado. O Peru e o Paraguai têm as pontuações individuais mais altas da região e ambos os países são avaliados como importantes focos de produtos falsificados. Ciudad del Este, no Paraguai, é um importante centro de produtos falsificados, incluindo roupas, calçados, relógios, eletrodomésticos e perfumes. “Grupos criminosos no Paraguai se destacam por facilitar esse comércio ilícito”, acrescenta o documento.
2023-11-04
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cp646zz6z46o
brasil
Vídeo, Massa ou Milei: o que Brasil tem a ganhar ou perder nas eleições argentinasDuration, 7,42
O segundo turno das eleições presidenciais na Argentina será no dia 19 de novembro e vai opor dois candidatos considerados totalmente antagônicos. De um lado o atual ministro da Economia, Sergio Massa, candidato do tradicional grupo peronista de centro-esquerda e que foi o mais votado no primeiro turno - causando surpresa - com 36,68% dos votos. Do outro lado, o economista libertário Javier Milei, que ficou conhecido por propostas polêmicas como extinguir o Banco Central e dolarizar a economia argentina. Apesar de liderar as principais pesquisas de intenção de voto, Milei ficou em segundo, com 29,98%. E de um outro lado da fronteira, no Brasil, o processo eleitoral na Argentina é acompanhado com atenção, tanto por motivos políticos quanto econômicos. O repórter da BBC News Brasil Leandro Prazeres conversou com especialistas para saber quais são os efeitos para o Brasil da eleição no país vizinho.
2023-11-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ckv0gkn84qjo
brasil
Dia de Finados: como celebração dos mortos, que nasceu entre pagãos, foi incorporada pela Igreja
"Do Senhor é a terra e a sua plenitude, o mundo e aqueles que nele habitam./ Porque ele a fundou sobre os mares, e a firmou sobre os rios./ Quem subirá ao monte do Senhor, ou quem estará no seu lugar santo?/ Aquele que é limpo de mãos e puro de coração, que não entrega a sua alma à vaidade, nem jura enganosamente./ Este receberá a bênção do Senhor e a justiça do Deus da sua salvação." Odon de Cluny (878-942) foi um abade francês, responsável por diversas reformas no sistema religioso da época. "É um dia de celebrar as vidas de todos os fiéis falecidos. No Brasil e em Portugal, o dia é reservado para visitar os túmulos", comenta Altemeyer. Fim do Matérias recomendadas "A Igreja toma a data e 'batiza' com significado próprio", diz Altemeyer. "Mas celebrar os mortos é algo antropológico. Desde o Cro-Magnon (ou seja, das primeiras populações de Homo sapiens) temos ritos funerários e de expectativa do além túmulo." O "Martirológio Romano", o calendário oficial da Igreja, explica ambas as datas. Sobre o Dia de Todos os Santos, ele diz: "Solenidade de todos os Santos que estão com Cristo na Glória. Na mesma celebração festiva, a santa Igreja ainda peregrina sobre a terra venera a memória daqueles cuja companhia alegra os Céus, para que se estimule com o seu exemplo, se conforte com a sua proteção e com eles receba a coroa do triunfo na visão eterna da divina majestade". E sobre o Dia de Fiados: "A Igreja, mãe piedosa, quer interceder diante de Deus pelas almas de todos os que nos precederam marcados com o sinal da fé e agora dormem na esperança da ressurreição, bem como por todos os defuntos desde o principio do mundo cuja fé só Deus conhece". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Muito antes de a Igreja Católica institucionalizar o Dia de Finados, um livro lançou as bases para como os cristãos acabam tratando os mortos. Trata-se de De Cura pro Mortuis Gerenda, texto do ano 421, atribuído ao teólogo Agostinho de Hipona (354-430), o Santo Agostinho. "A obra trata do culto devido aos mortos. É uma preciosidade, com verdadeiras pérolas do maior teólogo da Igreja", comenta Altemeyer. Conforme escreveu o estudioso da fé católica Carlos Martins Nabeto, especialista em Direito Canônico, na obra "Santo Agostinho aborda uma série de fatos importantes e interessantes a respeito dos mortos, que até hoje são conservados e respeitados pela Igreja". "Entre outras coisas, fala da utilidade da oração pelos mortos (antiquíssimo testemunho do Purgatório, ainda que tal palavra não apareça), a possibilidade da aparição dos mortos aos vivos (por meio do ministério dos anjos ou por permissão direta de Deus), a oração dos santos falecidos a nosso favor, o dia que a Igreja dedica a todos os falecidos (Dia de Finados)", exemplifica o estudioso. Uma celebração de Finados, de certa forma, está implícita no seguinte trecho do livro - o que sugere que, mesmo longe de ter sido formalizada e oficializada pelo rito católico, já se faziam as orações aos mortos em geral, em data específica. "A Igreja tomou para si o encargo de orar por todos aqueles que morreram dentro da comunhão cristã e católica. Ainda que não conheça todos os nomes, ela os inclui numa comemoração geral", diz a obra. Santo Agostinho também aborda questões referentes aos ritos fúnebres, ressaltando que "não deixa de ser marca dos bons sentimentos do coração humano escolher para seus entes queridos que serão sepultados um lugar próximo aos túmulos dos santos". "Já que o sepultamento é, por si só, uma obra religiosa, a escolha do local não poderia ser estranha ao ato religioso. É consolo para os vivos, uma forma de testemunhar sua ternura para com os familiares desaparecidos. Não enxergo, porém, como os mortos podem encontrar aí alguma ajuda, a não ser quando o lugar onde descansam é visitado e são encomendados, pela oração [dos visitantes], à proteção dos santos junto ao Senhor. Contudo, isso pode ser feito ainda quando não é possível sepultá-los em tais lugares santos", afirma. Sobre túmulos construídos como verdadeiros monumentos, o teólogo também faz considerações. "Isso é feito para que as pessoas continuem a se lembrar deles, para que não aconteça de, tendo sido retirados da presença dos vivos, também sejam retirados do coração pelo esquecimento", escreve. "Aliás, o termo 'memorial' indica claramente esse sentido de recordação, da mesma forma como 'monumento' significa 'o que traz à mente', ou seja, o que a faz recordar. Eis o motivo pelo qual os gregos chamam de mnemeion ao que chamamos de 'memória' ou 'monumento'. Na língua deles, 'mnème' significa 'memória', a faculdade com a qual recordamos." Agostinho trata da importância das orações aos mortos. "Assim, quando o pensamento de alguém se concentra sobre o lugar onde o corpo de um ente querido jaz e esse local esteja consagrado pelo nome de um mártir venerável, então a afeição amorosa recorda-se e reza, recomendando o falecido querido a esse mártir", pontua. "A morte é natural, é universal, e não pode ser tratada como um tabu", diz a psicóloga Maria Helena Pereira Franco, estudiosa do luto e professora da PUC-SP. "As culturas e as sociedades vivem o luto de acordo com uma herança que vem há séculos e vai dando sentido a uma experiência importante como a morte, carregada de significados próprios que passam pela espiritualidade e pela religião." De acordo com a pesquisadora, para compreender essa questão cultural é preciso ter em mente que o homem não têm conhecimento definitivo do que acontece depois da morte. E, mesmo do ponto de vista biológico, entender a morte do corpo é uma consciência relativamente recente. "Na falta de explicações, o homem foi construindo significados. E esses significados, ao longo da história, foram pautando comportamentos", explica ela. Seja na maneira de realizar os procedimentos referentes ao velório, seja no Dia de Finados, variações desse comportamento são notados em diversas culturas. Sobretudo em cidades menores, no Brasil ainda é costume que um carro com alto-falantes percorra as ruas da cidade divulgando a "nota de falecimento" e convidando a todos para participarem do velório e do enterro. No interior da Itália, por exemplo, é comum que, quando um parente morre, familiares afixem no portão da casa um aviso fúnebre, muitas vezes decorado com fitas e ilustrado com uma fotografia do falecido, além de um texto semelhante aos anúncios de obituário de jornal. Já a celebração de Finados mais famosa, sem dúvida, é a que ocorre no México. "É uma cerimônia bastante conhecida. Eles promovem um momento de encontro entre os vivos, que vão celebrar, visitar e honrar seus mortos nos cemitérios", explica Franco. "Há varias comidas que são próprias dessa época, comportamentos que são esperados... É muito bonita como cerimônia." Alegria também está presente no rito fúnebre de Bali. Lá, o mais comum é que os mortos sejam cremados. E a cerimônia é acompanhada por uma grande festa em honra ao falecido. Conhecida por ser a capital do jazz, Nova Orleans, nos Estados Unidos, tem também um ritual fúnebre embalada pelo gênero musical. Trata-se de uma procissão fúnebre que mescla tradições africanas, francesas e afro-americanas. Conduzidos por uma banda, os enlutados alternam entre alegria e tristeza. É uma celebração catártica, que procura evocar bons momentos vividos pelo morto. Comunidades budistas da Mongólia e do Tibete acreditam ser necessário devolver o corpo à natureza, para que a alma siga em frente. Assim, têm o costume de cortar o defunto em pedaços e, então, depositá-lo no alto de uma montanha, para que abutres façam o trabalho. Nas Filipinas, diferentes grupos étnicos lidam de forma diferente com a morte e com as práticas funerárias. Os integrantes da cultura Itneg têm o hábito de vestir os defuntos com as melhores roupas, sentarem-no em uma cadeira e colocar um cigarro aceso em sua boca. Benguet, por sua vez, vendam os mortos e os velam ao lado da entrada principal da casa. Já os Caviteño sepultam os mortos fazendo de um tronco oco de árvore o caixão. Os Apayo enterram os mortos sob o chão da cozinha. Em Madagascar, por sua vez, persiste o costume de um ritual chamado farmadihana. Trata-se de uma celebração, que ocorre geralmente a cada sete anos, em que familiares exumam os restos mortais de seus entes queridos, pulverizando os ossos com vinho ou perfume. Uma banda acompanha a cerimônia, que ocorre de forma feliz. Em Gana, é costume que o morto seja enterrado em caixões que representem o que ele fazia em vida, do trabalho aos hobbies. Executivos, por exemplo, podem ser sepultados em sarcófagos em forma de carros de luxo; um fotógrafo pode ser enterrado em uma câmera fotográfica gigante; um pecuarista, em um caixão que represente uma vaca. * Texto publicado em 31 outubro 2018 e atualizado em 2 novembro de 2023.
2023-11-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1354g63mpeo
brasil
A estratégia do Brasil por resolução sobre Israel-Gaza no fim de mandato do Conselho de Segurança
Após quatro propostas terem sido rejeitadas nas últimas duas semanas, a diplomacia brasileira tenta agora "driblar" os pontos sensíveis apresentados por potências como Estados Unidos, Rússia e China para obter a aprovação da resolução. Diplomatas brasileiros ouvidos pela BBC News Brasil em caráter reservado descreveram que a estratégia brasileira passou por uma intensificação dos diálogos com membros não-rotativos do conselho e por tentativas de afinar o texto da resolução para que ela não seja vetada mais uma vez. Ao mesmo tempo, tanto o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) quanto o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, têm mantido conversas com lideranças internacionais para tentar diminuir as resistências à aprovação de uma resolução que possa diminuir a temperatura do conflito. Fim do Matérias recomendadas Os ataques foram condenados por dezenas de países da comunidade internacional. Eles aconteceram na primeira semana da presidência brasileira junto ao Conselho de Segurança. O Conselho de Segurança é formado por 15 países, sendo 10 membros rotativos e cinco permanentes com poder de veto: Rússia, Estados Unidos, França, Inglaterra e China. Eles formam o chamado P5. Os demais, são chamados de P10. Para qualquer proposta ser aprovada no Conselho de Segurança da ONU, ela precisa de pelo menos nove votos dos 15 países membros do órgão. Também não pode ter nenhum veto. Apenas os membros permanentes do grupo têm direito a veto. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A primeira proposta de resolução sobre o atual conflito foi feita pela Rússia, mas recebeu os votos contrários de três dos cinco membros permanentes: Estados Unidos, Reino Unido e França. A segunda proposta, feita pelo Brasil, também não foi aprovada. Daquela vez, os Estados Unidos foram o único país do chamado P5 a vetar o texto. Daquela vez, a justificativa americana foi a de que o texto proposto pelos brasileiros não mencionava o direito à autodefesa do Estado de Israel. "Israel tem o direito inerente à autodefesa", disse a representante dos EUA na ONU, a embaixadora Linda Thomas-Greenfield. Na semana passada, outras duas propostas foram rejeitadas: uma apresentada pela Rússia e outra pelos Estados Unidos. A estimativa é de que pelo menos 1,4 mil israelenses morreram vítimas do ataque do Hamas. Segundo o governo do país, há pelo menos outras 200 pessoas mantidas como reféns pelo grupo. Do outro lado, segundo o Ministério da Saúde da Faixa de Gaza, pelo menos sete mil palestinos já morreram vítimas dos ataques conduzidos por Israel. O governo na Faixa de Gaza é controlado pelo Hamas. Em meio a esse impasse, a UNRWA, agência da ONU para refugiados palestinos, disse, na semana passada, que o atual conflito na região já foi responsável pelo deslocamento de pelo menos 1,4 milhão de pessoas na Faixa de Gaza. Desse total, 600 mil estariam em abrigos ou instalações fornecidas pela agência. Esse deslocamento aconteceu após Israel alertar a população palestina a se dirigir ao sul da região por conta das ações militares que seriam realizadas na parte norte. As entradas e saídas da Faixa de Gaza estão fechadas. A ONU e organizações internacionais vêm alertando para o risco de desabastecimento de água, alimentos, remédios e outros produtos. Para tentar driblar o impasse existente entre Estados Unidos, de um lado, Rússia e China, de outro, o Brasil se juntou a outros três membros não-permanentes do Conselho de Segurança para desenhar uma resolução. Os três membros mais próximos do Brasil nesse esforço, segundo a diplomacia brasileira, são Suíça, Emirados Árabes Unidos e Malta, que é porta-voz do chamado P-10, grupo dos membros não-permanentes do Conselho de Segurança. Nos últimos dias, diplomatas brasileiros mantiveram reuniões a portas fechadas com representantes destes países para trabalhar o texto. Diplomatas brasileiros afirmaram à BBC News Brasil que os negociadores do Conselho se debruçam sobre pontos principais: menções ao direito de autodefesa de Israel; e um eventual cessar-fogo na região. Os dois pontos são considerados polêmicos porque têm influência direta sobre os rumos do conflito. Um diplomata brasileiro disse à BBC News Brasil que há a preocupação de que uma menção na resolução ao direito de autodefesa israelense poderia ser usada como justificativa para uma intensificação das ações de Israel na Faixa de Gaza. Por outro lado, também haveria preocupação entre os norte-americanos e outros aliados de Israel sobre os efeitos que um eventual cessar-fogo poderia ter. O temor é de que o Hamas poderia aproveitar a pausa para se reorganizar e voltar a lançar ataques a Israel. Os termos exatos para "driblar" esse impasse, segundo diplomatas ouvidos pela BBC News Brasil, ainda não foram encontrados. A estratégia é que o texto desenhado por esses quatro países tenha a maioria ou todos os votos do P-10. Isso, avaliam os diplomatas brasileiros, poderia pressionar os membros permanentes a reconsiderar um possível novo veto ao texto. A expectativa é de que um rascunho fique pronto nesta terça-feira (31/10), último dia da presidência brasileira. Depois disso, o texto poderia ser levado à votação do Conselho. Diplomatas brasileiros afirmam que a estratégia brasileira se dividiu em três frentes. O principal objetivo, até o momento, é criar uma espécie de pausa no conflito para que a população palestina que vive na Faixa de Gaza possa receber ajuda humanitária, principalmente, pela fronteira da área com o Egito. Uma dessas frentes é conduzida pelo presidente Lula, que vem mantendo conversas com líderes de diversos países desde o início da crise. Entre esses líderes estão o presidente da França, Emmanuel Macron, o presidente russo, Vladimir Putin, e o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas. Outra frente é conduzida pelo assessor especial para Assuntos Internacionais, o ex-ministro das Relações Exteriores Celso Amorim. Nos últimos dias, ele teria tido encontros e conversas com assessores e lideranças diplomáticas de diversos países para avaliar o cenário. A terceira frente, considerada mais ampla, é a liderada pelo Itamaraty, que vem, sob orientação do governo, tentando negociar um texto que possa ser aprovado pelo conselho. Essa frente é liderada pelo chanceler Mauro Vieira e pelo representante brasileiro na ONU, o embaixador Sérgio Danese. Na segunda-feira (30/10), Mauro Vieira teve uma conversa telefônica com o secretário de Estado americano, Anthony Blinken em que conversaram sobre as negociações em curso no Conselho de Segurança da ONU. Uma fonte ouvida pela BBC News Brasil em caráter reservado afirmou que a ligação partiu do ministro brasileiro. A dificuldade em obter um texto que agrade a todos os membros permanentes do Conselho de Segurança foi mencionada por Mauro Vieira nesta segunda-feira, durante reunião do colegiado, e também por especialistas em Relações Internacionais ouvidos pela BBC News Brasil. "Desde 2016, o Conselho não foi capaz de aprovar uma única resolução sobre a situação na Palestina. A situação no Oriente Médio é, portanto, de longe, uma das situações mais bloqueadas no Conselho de Segurança [...] Isso mostra a ineficiência do sistema de governança e da falta de representatividade de certas partes do mundo nesse grupo", disse Vieira. Para o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Dawisson Belém Lopes, um dos elementos que torna a chegada a uma resolução sobre o conflito tão difícil é o que ele classificou como nova "bipolarização" da ordem internacional. Essa polarização se daria entre um grupo de países liderados pelos Estados Unidos e Europa Ocidental, de um lado, e Rússia, China e nações sob suas influências, de outro. "Alguns analistas afirmam que há, hoje, uma bipolarização 2.0 (menção à ordem bipolar que vigorou entre Estados Unidos e União Soviética durante a Guerra Fria). Nesse contexto, torna-se mais difícil tomar qualquer decisão, especialmente aquelas que tocam os interesses das superpotências porque prevalece o que chamamos de jogo de soma zero: se um lado ganha, o outro perde", disse o professor à BBC News Brasil. "Esse conflito em especial opõe interesses vitais e visões de mundo antagônicas dos membros permanentes do Conselho de Segurança de forma que a linguagem da resolução, para que passe, precisa ser eficaz para a realidade do terreno sem ferir suscetibilidades dos membros permanentes", disse à BBC News Brasil a professora da Escola Superior de Guerra do Ministério da Defesa, Mariana Kalil. Os dois especialistas avaliam que, considerando as características da presidência rotativa do Conselho de Segurança e a forma como o órgão é estruturado, seria incorreto atribuir responsabilidades ao Brasil pela demora para que uma resolução sobre o conflito seja obtida. "De forma alguma seria possível estabelecer uma relação entre o papel do Brasil como presidente do Conselho de Segurança e a dificuldade de aprovação de uma resolução sobre o conflito", disse Mariana Kalil. Segundo ela, neste período, o Brasil chegou a conseguir um consenso entre membros do chamado P3 (grupo formado por Estados Unidos, Reino Unido e França) e Rússia e China. Isso aconteceu durante a votação da resolução proposta pelo Brasil que obteve votos favoráveis da França, Rússia e China e a abstenção do Reino Unido. A abstenção do Reino Unido em um contexto em que ele poderia exercer o poder de veto é vista como uma posição de apoio à resolução. "Unanimidade, diante de um caso como o referido, é, na prática, altamente improvável", disse a professora. Para Dawisson Lopes, simples fato de presidir o conselho não seria suficiente para que o Brasil conseguisse um consenso sobre o conflito entre os membros do Conselho de Segurança. "A presidência do Conselho é uma posição quase procedimental. O país que assume o comando praticamente só organiza os trabalhos do grupo. Ela tem um quê de cerimonial, mas o Brasil não tem capacidade efetiva de, durante um mês, impor uma agenda ou fabricar consensos", disse o professor.
2023-10-31
https://www.bbc.com/portuguese/articles/clw7wle9pgxo
brasil
'Descobri um câncer de mama aos 23 anos': por que casos entre jovens têm aumentado e são mais agressivos
Em janeiro de 2023, Bianca Lopes, de 23 anos, recebeu o diagnóstico de câncer de mama em estágio 3. A confirmação da doença veio cerca de dois meses após a jovem de Fortaleza sentir um caroço na mama esquerda. "Nunca me ensinaram a fazer o autoexame, mas acabei aprendendo com campanhas e fazia sempre." Com a notícia, ela precisou organizar a vida de uma forma que nunca tinha imaginado fazer sendo tão jovem. "Tinha acabado de casar, em processo de mudança para apartamento novo, ser promovida e estávamos com planos de sermos pais em 2024. Precisei me afastar da empresa, e adiar o sonho de ser mãe, e acabei não me mudando", conta Lopes. "Tive muito medo. Minha rede de apoio foi fundamental." Fim do Matérias recomendadas Após 16 sessões de quimioterapia e a retirada cirúrgica das duas mamas, Bianca está em remissão e atualmente faz tratamento médico com bloqueadores hormonais buscando evitar a recorrência de tumores. Casos como o de Bianca, de cânceres de mama em mulheres jovens, ainda são minoria — mas vêm aumentando. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast É o que mostram tanto estudos internacionais quanto outros feitos especificamente com brasileiras. Ao todo, foram 13.385 casos tratados na instituição. Desses, 1.594 eram mulheres jovens. O estudo ainda apontou que dentre as pacientes com menos de 40 anos, 11% estavam com câncer in situ — com o tumor presente apenas no local inicial. As outras 89% já estavam com câncer invasivo. O câncer de mama é considerado 'jovem' quando acontece em pessoas com menos de 50 anos. "Aproximadamente 90% dos casos acontecem em mulheres entre 50 e 69 anos. Aos chegar aos 50 anos, qualquer mulher, apenas pelo sexo biológico, já tem 12% de chance de ter a doença", explica o mastologista Renato Cagnacci Neto, coordenador da Comissão de Neoplasias da Mama da Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica e médico do A.C. Camargo Cancer Center. O especialista descreve que depois deste, o grupo mais afetado são mulheres com idade entre 40 e 50 anos. "As ainda mais jovens são consideradas casos mais raros." Para uma célula cancerígena surgir, é necessário que haja um dano no DNA — algo que desestabiliza uma célula que antes era saudável. Esse mecanismo de dano no DNA, explica Cagnacci Neto, pode ocorrer de duas maneiras. A primeira delas é adquirir esse defeito ao longo da vida devido a diversos fatores, como estilo de vida pouco saudável, falta de exercício físico, má alimentação e tabagismo. "A razão pela qual as pessoas têm mais câncer entre os 50 e 69 anos de idade é o tempo de suas vidas pelo qual elas foram constantemente expostas a agressões. Esses fatores de risco mencionados anteriormente causam danos no DNA e levam ao surgimento do câncer, o que chamamos de câncer esporádico." A outra, que explica o surgimento da doença em jovens, tem a ver com uma predisposição ao câncer. "Existe uma forte associação com a presença de um defeito genético desde o nascimento. Quando alguém nasce com esse defeito genético, desde a infância, está sujeito a uma propensão para o desenvolvimento da doença." No caso de Bianca, embora não houvesse histórico familiar de câncer de mama, uma consulta com uma médica geneticista revelou que ela possui uma mutação no gene CHEK2, que está relacionada a um risco duas vezes maior de desenvolver câncer de mama em mulheres. Um fator que poderia estar contribuindo para mais mulheres jovens sofrerem com a doença, de acordo com a ginecologista obstetra e mastologista Karina Belickas Carreiro, é o fato de a maternidade tardia ter se tornado mais comum, privando as mulheres de um dos fatores protetivos contra o câncer de mama, a amamentação. Durante a amamentação, os níveis de estrogênio, um hormônio que está relacionado ao crescimento das células de câncer de mama, diminuem no corpo da mulher. Menos exposição a esse hormônio ao longo da vida reduz o risco de câncer de mama — ainda que não seja uma garantia de que essa mulher não terá câncer. Além disso, de acordo com o Instituto Nacional do Câncer (INCA), os processos que ocorrem na amamentação promovem a eliminação e renovação de células que poderiam ter lesões no material genético diminuindo assim as chances de câncer de mama na mulher. O mastologista Renato Cagnacci Neto acrescenta ainda as mudanças no acesso dos serviços de saúde como uma das possíveis razões para o aumento nos casos. "O acesso à saúde ficou melhor nas últimas décadas, assim como o acesso à informação, especialmente com a facilidade de informações disponíveis na internet. Esses fatores contribuem para um maior número de diagnósticos, portanto, essa tendência de aumento do câncer não pode ser atribuída apenas a fatores biológicos." Em sua pesquisa, a médica e seus colegas notaram que as pacientes examinadas, abaixo dos 41 anos, tinham, em sua maioria, tumores mais agressivos do que mulheres com 50 anos ou mais. Na avaliação da autora, isso pode ser atribuído à demora na detecção e também ao próprio perfil dos tumores em mulheres jovens, que muitas vezes são mais agressivos e têm uma evolução mais rápida. De acordo com o mastologista Renato Cagnacci Neto, essas mutações costumam estar ligadas a cânceres mais agressivos. Um exemplo é o câncer de mama negativo para receptores hormonais, que tem crescimento mais rápido e há menos opções de tratamento. Outro tipo é o câncer de mama HER2 positivo, no qual as células cancerosas possuem um receptor chamado HER2, que estimula um crescimento mais agressivo do câncer. "Mas se uma mulher jovem tiver um subtipo de câncer de mama menos agressivo, como o subtipo luminal A, seu tratamento tende a ser mais eficaz, e a probabilidade de cura é alta." Em casos nos quais os tumores são mais agressivos, o tempo é especialmente importante. Quanto mais cedo a doença é descoberta, melhor é o prognóstico. "Ao analisar os dados da nossa pesquisa, ficou evidente que as mulheres estavam sendo negligenciadas em relação ao tempo transcorrido desde a percepção dos sintomas até o diagnóstico do câncer", afirma a médica Karina Belickas Carreiro. O estudo apontou que o período de espera médio era de aproximadamente seis meses. "A maioria das mulheres notava alguma alteração em seu corpo, mas muitas vezes não atribuíam a devida importância a essas mudanças, ou quando buscavam uma consulta, o médico não considerava a possibilidade de câncer devido à ideia errônea de que mulheres jovens não poderiam desenvolvê-lo." "Como resultado, a resposta ao tratamento para duas mulheres com tumores de tamanho semelhante, uma mais jovem e outra entre 49 e 60 anos, era frequentemente desigual, com a paciente mais jovem tendo um prognóstico menos favorável." O aumento da incidência de câncer de mama em mulheres jovens levanta questões importantes sobre o rastreamento. Para jovens como Bianca e outras que tenham até 39 anos, a única recomendação é o autoexame e a busca imediata de avaliação médica caso note algum sinal. Os principais sintomas do câncer de mama incluem a presença de um nódulo ou espessamento no seio, mudanças na forma ou tamanho do seio, dor persistente, alterações na pele do seio, como vermelhidão, inchaço ou retração, descarga anormal do mamilo, alterações no mamilo, como inversão, e o surgimento de caroços nas axilas. Para pacientes jovens de alto risco, como aqueles com mutações genéticas ou histórico familiar de câncer de mama, Carreiro aponta que existem orientações específicas para o rastreamento, que podem incluir exames de ressonância magnética, ultrassom e mamografia. Diversas sociedades médicas brasileiras e internacionais, incluindo a Sociedade Brasileira de Mastologia, defendem a realização do primeiro exame aos 40 anos. Na rede de saúde particular, o rastreamento é iniciado a partir desta idade. A recomendação atual do Ministério da Saúde, por sua vez, é que os exames devem ser feitos a partir dos 50 anos, com repetição a cada dois anos para mulheres até os 69 anos ou em intervalos menores conforme o resultado da mamografia anterior. "A diretriz do governo é baseada em custos. Realizar o rastreamento de todas as mulheres a partir dos 40 anos de idade requer recursos significativos - que podem impactar em outros rastreamentos e tratamentos de doenças - e uma logística complexa. É necessário disponibilizar mamógrafos em todo o país e organizar a distribuição de maneira eficiente." "Começar o rastreamento nessa faixa etária envolve um custo mais elevado para detectar um número menor de casos. Por outro lado, como médico e não como administrador, avaliando dados científicos, afirmo que realizar o rastreamento a partir dos 40 anos de idade é o ideal. Embora sejam menos casos, essa prática pode salvar vidas", diz ele, recomendando que mulheres que não tenham restrições econômicas ou pessoais façam o exame a partir desta idade. De acordo com a pesquisadora do ICESP, a maioria das pessoas não segue essas recomendações, mesmo a partir dos 40. "Portanto, é importante focar primeiro em aumentar a conscientização e educação sobre a importância do autocuidado e da detecção precoce, independentemente da idade. Encorajar as mulheres a procurar ajuda médica se detectarem qualquer alteração nos seios é o primeiro passo." "A ampliação do rastreamento em populações jovens pode ser considerada, mas requer uma análise cuidadosa e um plano de implementação de longo prazo."
2023-10-31
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0wx034nz5yo
brasil
8 perguntas para entender avanço das 'narcomilícias' que agrava crise de segurança no Rio
A polícia atribuiu os atos a um protesto de criminosos contra a morte de um miliciano em ação da Polícia Civil naquele mesmo dia. Grupos paramilitares originalmente criados por policiais, as milícias dominam dezenas de comunidades nas zonas oeste e norte da capital, além da Baixada Fluminense e em cidades da região leste do Estado, como São Gonçalo e Itaboraí. Em anos recentes, alguns desses grupos racharam e se associaram ao tráfico, o que mudou inclusive sua forma de agir. O ataque violento contra o transporte público – o maior de que se tem notícia no Estado – era prática comum de traficantes, não de milicianos, observam pesquisadores do setor. Fim do Matérias recomendadas "A milícia mudou", explica o coronel da reserva da Polícia Militar Robson Rodrigues, que foi chefe do Estado-Maior da corporação e coordenador das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e é doutor em ciências sociais e pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LAV-UERJ). "O Comando Vermelho mudou, a milícia mudou, e um grupo começou a absorver o aprendizado e técnicas e estratégias do outro", afirma. Um dos pontos criticados por pesquisadores foi o fim da Secretaria de Segurança (Seseg), no início de 2019, por iniciativa do então governador Wilson Witzel (PSC). A medida foi mantida por seu sucessor, o atual governador, Cláudio Castro (PL). Por meio de sua assessoria, Castro afirmou à BBC News Brasil que atribuir ao fim da Seseg a atual crise é uma "análise rasa". Leia no fim desta reportagem a íntegra das declarações de Castro à BBC News Brasil sobre as críticas feitas por especialistas nesta reportagem. Com base em entrevistas com especialistas, a BBC News Brasil elaborou perguntas e respostas que ajudam a explicar o novo cenário da violência no Rio. Parte da mudança se deve à entrada de traficantes na guerra que rachou a maior milícia do Rio na zona oeste. Mas a crise é alimentada também por outros fatores, inclusive políticos. Um deles, segundo especialistas, foi o fim, em 2019, da Secretaria de Segurança – uma decisão que, de acordo esses analistas, buscava atender a compromissos políticos com as polícias. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Especialistas em segurança pública criticam a medida, que teria desmantelado políticas de planejamento e de metas e levado as polícias de volta ao passado. Segundo eles, hoje as corporações estão isoladas e trabalham em operações com foco na "visibilidade". São, dizem, incursões espetaculosas em comunidades, por exemplo, mas que têm pouco resultado por não abalarem a estrutura do crime organizado, segundo pesquisadores da área de segurança. “Houve muito retrocesso, ou seja, (uma volta) às muitas formas antigas que já foram adotadas anteriormente e não deram certo”, diz Rodrigues. Ele afirma ainda que faltam investimentos na reforma do aparato policial e na eficiência das corporações. Jacqueline Muniz, antropóloga e professora de Segurança Pública na Universidade Federal Fluminense (UFF), tem crítica semelhante. "Ninguém faz polícia, foi todo mundo fazer operação, porque fazer operação é a única dimensão visível que o cidadão desesperado por segurança reconhece", explica ela. “É algo que dá poder, prestígio.” O ataque que resultou no incêndio de 35 ônibus e um trem em oito bairros do Rio de Janeiro na semana passada foi o ponto culminante de uma sequência de episódios especialmente violentos na cidade ao longo dos últimos 30 dias. Em 24 de setembro, o programa Fantástico, da Rede Globo, exibiu imagens de traficantes recebendo treinamento militar com fuzis em uma área de lazer no Complexo da Maré, conjunto de favelas na zona norte carioca. Três dias depois, ladrões lançaram uma granada contra um ônibus, após assaltarem seus passageiros, na Avenida Brasil, na altura de Barros Filho, na zona norte. Três pessoas ficaram feridas. O motivo, para policiais, foi a semelhança física de uma das vítimas com um criminoso rival dos atiradores - há uma guerra de quadrilhas pelo controle da zona oeste da cidade. Algumas horas depois, quatro suspeitos do crime foram encontrados mortos - , segundo a polícia, eles foram assassinados por ordem da cúpula da quadrilha, devido ao erro que teriam cometido. Em 19 de outubro, quatro policiais civis e um advogado foram presos pela Polícia Federal, acusados de terem negociado com traficantes a liberação de 16 toneladas de maconha apreendidas. A negociação, segundo a Polícia Federal, ocorreu na Cidade da Polícia, complexo de delegacias especializadas na zona norte. Imagens do caminhão carregado com a droga, escoltado por carros da Polícia Civil para ser entregue a traficantes em uma favela, foram divulgadas. Na mesma data, agentes da Delegacia de Repressão a Entorpecentes anunciaram ter achado, em um carro vazio na Gardênia Azul, oito das 21 armas desviadas de um arsenal do Exército, em São Paulo. Segundo policiais, o armamento provavelmente seria usado na “guerra” da zona oeste. Um dia depois, nova operação da PF apontou que três policiais civis e um delegado desviaram parte de uma carga de cocaína apreendida. Os quatro foram afastados de suas funções pela Justiça, que também ordenou que usem tornozeleiras. A morte, em ação policial, de Matheus da Silva Rezende, de 24 anos, conhecido como Faustão e sobrinho de Luiz Antônio da Silva Braga, o Zinho, chefe de uma das milícias em luta pela zona oeste, desencadeou o ataque aos meios de transporte, segundo a polícia do Rio. Os grupos conhecidos como milícias no Rio de Janeiro eram inicialmente formados por policiais civis, PMs, bombeiros, guardas municipais e membros das Forças Armadas. Tinham domínio sobre áreas pobres e agiam sob proteção de políticos - alguns deles, também milicianos. As milícias ganharam essa configuração no início dos anos 2000, mas suas raízes podem ser rastreadas até à ditadura militar, nos anos 60. Essa era a época dos chamados Esquadrões da Morte, formados por agentes da repressão que assassinavam criminosos comuns na periferia das grandes cidades. Nos anos 70 e 80, surgiram os grupos de extermínio ou "polícias mineiras", como eram conhecidos grupos armados de “justiceiros” que agiam nas periferias. Atuavam, muitas vezes, a soldo de comerciantes para matar ladrões e consumidores de drogas ilícitas. A partir do fim dos anos 90, com o avanço do tráfico, policiais “no desvio” passaram a “vender” segurança nas favelas e comunidades das quais expulsavam traficantes ou que “conquistavam” antes deles. Da cobrança inicial de “contribuições para a segurança”, que eram impostas a moradores e comerciantes, logo passaram a explorar, diretamente ou por meio de taxas, negócios como venda de gás, água mineral, carvão, transporte por van, venda de imóveis em áreas de proteção ambiental e outros. A representação política, a partir dos votos conseguidos em áreas dominadas por milícias, foi o passo seguinte. Mais recentemente, milicianos e traficantes se aliaram em bairros das zonas oeste, norte e Baixada Fluminense. Especialistas destacam que, sem a participação ou conivência de agentes do Estado, as milícias não teriam conseguido se instalar nem se expandir. "São o que chamo de governos criminais", diz a antropóloga Jacqueline Muniz, da UFF. "Sempre que tem autonomização predatória do poder de polícia, tem um processo de milicianização", diz ela. Para Robson Rodrigues, o foco da repressão policial, durante muito tempo, foi conter a facção criminosa Comando Vermelho (CV). O perigo da expansão das milícias foi subestimado. Só uma Unidade de Polícia Pacificadora foi instalada em uma área de domínio miliciano, o Jardim Batam. Mesmo assim, a medida só foi tomada após um episódio no qual jornalistas foram torturados por criminosos. O pesquisador destaca as mudanças nas milícias, lembrando a aproximação entre milicianos e traficantes - grupos que antes eram inimigos. “Esse tipo de ação, o ataque a ônibus, era típico do tráfico”, observa. “A milícia era mais discreta.” Oficial da reserva da PM e mestre em Antropologia, Paulo Storani aponta outra mudança nas milícias: hoje não policiais chegaram ao topo do comando desses grupos. “Eles sucederam, lá atrás, o miliciano que tomava conta da zona oeste, que conseguiu controlar boa parte do território, e acabou sendo morto. E sendo morto, quem assumiu não era mais um agente do Estado.” Segundo Storani, esse “novo miliciano” acrescentou a venda de drogas a seu “portfolio de atividades criminosas”. Até 2021, a zona oeste da capital fluminense era dominada pelo Bonde do Ecko, novo nome da Liga da Justiça, uma das primeiras milícias do Estado – e a maior delas, com penetração na zona norte e Baixada. Depois que policiais civis mataram o chefe do bando, Wellington da Silva Braga, o Ecko, seu irmão, Luiz Antônio da Silva Braga, o Zinho, assumiu a chefia da quadrilha, de acordo com a Polícia. Mas Daniel Dias Lima, o Tandera, que integrava a mesma quadrilha, desentendeu-se com Zinho, dividindo a milícia e abrindo uma guerra que já dura um ano e meio, pelo menos. Tandera domina parte da Baixada Fluminense e investe sobre a zona oeste da capital. Diante da divisão no bando, o Comando Vermelho resolveu investir e se associou a milicianos na região, aprofundando sua penetração em comunidades da região. O motivo é que os milicianos, muitas vezes com passagem pelas forças policiais, têm treinamento, organização e ligações no aparelho estatal, o que os torna mais fortes. "A gestão do território dá múltiplas vantagens", explica a antropóloga Jacqueline Muniz, da Universidade Federal Fluminense (UFF). "Então, para que um grupo criminoso possa sobreviver, possa existir e se expandir, tem que que ter relações com o Estado, diversificação de suas atividades criminais no espaço onde está, no território que domina. Não existe a perspectiva de nenhum grupo criminoso, seja PCC, seja o Comando Vermelho, Terceiro Comando ou milícia, sem parceria ou sociedade com setores do Estado. Nas fronteiras tem sempre um servidor público para atravessar droga, arma, o que você quiser, ou explorar a luz, o gás." Rodrigues afirma que o "assédio" do tráfico a policiais, com ofertas de corrupção, se repete. "O crime organizado hoje está mais sofisticado ainda", diz. "Está sempre tentando assediar, cooptar." Para ele, a prioridade dos governos deveria ser controlar os desvios de policiais. Muitos governos, no entanto, não têm coragem de contrariar suas polícias, segundo o analista. A transformação do Rio em uma versão brasileira de Ciudad Juarez, município mexicano marcado por altos índices de mortalidade, com tortura e decapitação de cidadãos e ampla penetração do Estado pelo crime organização, é uma possibilidade que ronda debates na área de segurança no Brasil. A capital fluminense ainda não chegou a esse grau de descontrole, mas as cenas de 23 de outubro, quando milicianos incendiaram ônibus ainda com passageiros diante da inação da Polícia, geraram alertas entre quem estuda e pesquisa o setor. Para Storani, "sem dúvida" há perigo do Rio de Janeiro se "mexicanizar". "No México, tem regiões ou províncias onde você não entra sem autorização dos cartéis", diz ele. "A gente hoje no Rio de Janeiro já tem algo semelhante em menor escala. Você não vai entrar em qualquer comunidade, você tem um problema em relação àquilo. Então, há sim um processo de 'mexicanização'. E o que é pior, que acontece no Brasil: essas caras (milicianos) elegem representantes. Da mesma forma que o tráfico." Rodrigues vê a possibilidade de "mexicanização" com mais reticências, por causa das diferenças entre os países e o processo de globalização. "Eu conheci vários outros países aqui, principalmente na América Latina, Caribe, que têm tem algumas semelhanças, mas têm mais distinções do que similaridades. Eu digo que isso aqui é tudo um sistema de vasos comunicantes." "Eu não diria 'mexicanização', mas eu diria assim: existem regiões da América do Sul e da América Latina, envolvendo o México também, que têm certas características, onde passam essas rotas (de tráfico de drogas), esse comércio bilionário, com impactos em cidades às vezes muito pobres e que têm uma vulnerabilidade social muito grande. Então, isso impacta." Segundo ele, a situação do México é mais grave que no Brasil porque, lá, os cartéis se especializaram na exportação das drogas e conseguem retornos superiores às facções brasileiras. Com mais ganhos, os cartéis mexicanos ampliam seu poder bélico, de corrupção etc. Isso já aconteceu outras vezes, durante crises anteriores de segurança no Rio de Janeiro. Desta vez, porém, o envolvimento de militares em ações contra o crime tende a ser menor, segundo posicionamentos recentes de autoridades. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva há algum tempo demonstra reserva em relação à ideia de colocar as Forças Armadas para patrulhar ruas ou para participar de operações policiais. Isso exigira uma Operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Até agora, o governo federal admitiu apenas possibilidade de Marinha e Aeronáutica reforçarem seus papéis em ações de combate ao crime já previstas em lei, segundo o ministro da Justiça, Flávio Dino. Seria uma atuação complementar à das polícias do Rio. Na sexta-feira (27/10), o presidente da República confirmou a jornalistas com quem tomou café da manhã que não haverá Operação de Garantia da Lei e da Ordem no Rio. Há ainda resistência a iniciativas que possam levar para o Palácio do Planalto a crise de segurança fluminense, o que criaria um problema político para Lula. A relação entre o governo e as Forças Armadas vive momento delicado. Analistas atribuem essas tensões ao papel que muitos militares da reserva e da ativa tiveram no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Alguns desses militares têm sido investigados por suposto envolvimento nos ataques às sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro. Naquele dia, embora instado por pessoas próximas a decretar uma GLO para enfrentar o que considerava uma tentativa de golpe, Lula preferiu ordenar uma intervenção federal civil. Essa medida foi limitada à Polícia Militar do Distrito Federal. Há ainda há resistência de setores da esquerda representados no governo à participação de militares em ações de Segurança Pública. Até o fim de 2018, o Rio de Janeiro tinha uma Secretaria de Segurança, à qual as polícias Civil e Militar eram subordinadas. Com a posse de Wilson Witzel (em janeiro de 2019), a Seseg foi extinta, e as duas corporações policiais ganharam secretarias próprias e independentes. A decisão foi atribuída a uma exigência de policiais civis e militares, que assim ganharam autonomia e passaram ao nível de secretarias, com acesso direto ao governador. A medida foi criticada por especialistas, mas mantida pelo sucessor de Witzel, Claudio Castro, que se reelegeu em 2022 com o mesmo compromisso de dar autonomia às polícias. Em declaração por escrito à BBC News Brasil, Castro diz considerar que o fim da secretaria não teve impacto na crise atual no Rio. "É muito importante a gente lembrar que o primeiro Estado que teve um problema grave (de segurança) esse ano foi o DF, que tinha secretaria de segurança pública", afirma o governador. "Depois, percebemos problema no Rio Grande do Norte, tinha secretaria de segurança pública. Logo em seguida, veio o Ceará que tinha secretaria de segurança pública. Posteriormente, a Bahia que, pasmem, também tinha secretaria de segurança pública. Outro dia, São Paulo que também tem secretaria de segurança pública. Eu não creio que o problema de não ter secretaria de segurança pública seja o causador disso, no Brasil inteiro." E prossegue: "Acho que isso é uma análise rasa de quem tem uma opinião só e se firma naquilo como pedra angular. Aqui sempre será aberto ao diálogo. Se a gente perceber que o modelo não está funcionando, podemos mudar sim. Mas, nesse momento, não vejo, até porque quando o Rio de Janeiro precisou de intervenção federal, também tinha secretaria segurança pública. Então, esse não é o motivo de termos crise na segurança", conclui. O governador não quis se posicionar sobre as demais críticas feitas por especialistas nesta reportagem, como a de as polícias do Rio estariam empenhadas em operações de "grande visibilidade", mas com pouco impacto efetivo, e de que faltariam investimentos para modernização das forças.
2023-10-31
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cyx1zryl9vlo
brasil
De atração turística a propaganda nazista: a história dos dirigíveis no Brasil
No dia 22 de maio de 1930, o governador de Pernambuco, Estácio Coimbra, decretou feriado municipal. Naquela quinta-feira, cerca de 15 mil pessoas correram até o Campo do Jiquiá, na Zona Oeste do Recife, para assistir à chegada do LZ 127 Graf Zeppelin – o nome da aeronave era uma homenagem a Ferdinand Adolf August Heinrich Graf von Zeppelin (1838-1917), o Conde Zeppelin. O dirigível de 236,6 metros de comprimento por 30,5 metros de largura saiu da Alemanha no dia 18, fez escala na Espanha e, quatro dias depois, chegou ao Brasil, por volta das sete e meia da noite. Para se ter uma ideia do tamanho do zepelim, o Boeing 747-8, um dos maiores aviões de passageiros do mundo, tem “apenas” 77 metros de comprimento. Ou seja: o Graf Zeppelin era três vezes maior! Tudo o que diz respeito ao zepelim é gigante. O governador de Pernambuco mandou construir uma torre de atracação de 16,5 metros de altura e um galpão de 315 metros quadrados, com sala de embarque, despacho de bagagem, posto médico, estação de rádio, cozinha, refeitório e dormitório para a tripulação. De quebra, contratou banda de música para animar a festa e montou arquibancada para receber os convidados. Durante o pouso, os tripulantes esqueceram de colocar a bandeira com os procedimentos da atracação. Resultado: os soldados do Exército, responsáveis por segurar as cordas lançadas pelo dirigível, não sabiam o que fazer. “Uma senhora amarrou uma das cordas em uma palmeira”, conta o historiador Cristiano Rocha Affonso da Costa, autor de Os Zeppelins Nos Céus do Brasil (2021). “A árvore foi arrancada com raiz e tudo”. Fim do Matérias recomendadas Passado o susto inicial, o capitão Hugo Eckener (1868-1954) recebeu as boas-vindas do antropólogo Gilberto Freyre (1900-1987), representante do governo pernambucano. Depois de ser reabastecido de gás hidrogênio, o dirigível seguiu viagem rumo ao Rio de Janeiro. Na então capital federal do país, o zepelim atracou, três dias depois, no Campo dos Afonsos, na Zona Oeste da cidade. Em 1936, os pousos e as decolagens foram transferidos para a Base Aérea de Santa Cruz. Lá, foi construído o aeroporto Bartolomeu de Gusmão. Se o Recife ergueu uma torre de atracação, o Rio construiu um hangar de 274 metros de comprimento por 58 metros de largura. “O Graf Zeppelin chegou ao Brasil no mesmo dia em que saiu o resultado das eleições para presidente. E simplesmente ‘roubou a cena’. Ler sobre o ‘charuto voador’ despertava mais atenção do que sobre a vitória de Júlio Prestes”, compara Charles Narloch, doutor em Museologia e Patrimônio pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e tecnologista do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST). A torre de atracação no Recife foi restaurada em 2013 pelo artista plástico Jobson Figueiredo. Já o hangar na Base Aérea de Santa Cruz, no Rio, foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e, atualmente, é propriedade da Força Aérea Brasileira (FAB). A passagem do Graf Zeppelin pelos céus do Recife foi mostrada no filme Retratos Fantasmas (2023), dirigido e roteirizado por Kleber Mendonça Filho. O documentário foi escolhido para representar o Brasil na busca por uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional. O dirigível alemão serviu de inspiração, também, para O Crime do Bom Nazista (Todavia, 2023), escrito por Samir Machado de Machado. O romance policial é ambientado no interior de um zepelim alemão. “Durante meu mestrado, tive aulas de Filosofia e Literatura onde se analisavam a linguagem de regimes totalitários, e seus paralelos com o bolsonarismo. Daí, nasceu a ideia do mistério que move o enredo: um assassinato onde a vítima é um judem homossexual e todos a bordo são nazistas”, explica o autor. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No livro Os Zeppelins nos Céus do Brasil, Cristiano Rocha Affonso da Costa recorda que, na década de 1930, os dirigíveis ajudavam a vender os mais variados produtos, de refrigerantes, como o guaraná Antarctica, até cigarros, como Lucky Strike, passando por sapato, óleo de motor e leite em pó. Ao longo das décadas, os zepelins inspiraram artistas dos mais diferentes gêneros – tanto na hora de compor, caso do cantor e compositor Chico Buarque, autor de Geni e o Zepelim, da peça Ópera do Malandro (1979), quanto na hora de escolher um nome para sua banda de rock, como a britânica Led Zeppelin – a ideia, no caso, teria partido do integrante de outro supergrupo: o baterista Keith Moon, do The Who. Quem não gostou nem um pouco do nome (“zepelim de chumbo”, em livre tradução) foi Eva von Zeppelin, a neta do Conde Zeppelin. Menos ainda da capa do primeiro álbum do Led Zeppelin, lançado em 1969, que reproduzia o exato momento da explosão do dirigível Hindenburg, em 1937. Ainda em Retratos Fantasmas, o cineasta Kleber Mendonça Filho lembra do tempo em que, estudante de Jornalismo, conheceu Alexandre Moura, que trabalhava na cabine de projeção do antigo Art-Palácio, do Recife. O cineasta comparou a sala de cinema a “um navio prestes a ser afundado”. Considerado um dos maiores estúdios cinematográficos da Alemanha, a Universum Film AG, mais conhecida pela sigla UFA, foi fundada em 18 de dezembro de 1917 e produziu, entre outros, o clássico Metropolis (1927), dirigido por Fritz Lang (1890-1976). “Desde sua origem, o cinema foi visto como forte ferramenta de propaganda política e doutrinária. Neste contexto, a UFA tornou-se aliada do governo nazista na representação de uma boa reputação da Alemanha no exterior. A produtora ganhou tanta popularidade no país que qualquer filme alemão era taxado de filme da UFA”, explica o historiador Arthur Gustavo Lira do Nascimento, doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “Ao mesmo tempo em que, na Alemanha, a UFA se alinhava ao nazismo, a produtora se expandia em nosso país”. No Brasil, a UFA inaugurou duas salas de cinema: UFA-Palácio, em São Paulo, no dia 13 de novembro de 1936, depois rebatizada de Art-Palácio, e Art-Palácio, no Recife, no dia 10 de março de 1940. Os dois cinemas foram projetados pelo arquiteto brasileiro Rino Levi (1901-1965). Segundo o historiador Flaviano Bugatti Isolan, professor de História Contemporânea na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autor do artigo Cinema Alemão no Brasil nos Anos 1920 e 1930: Percursos de uma Política Cultural Exterior, havia planos de inaugurar uma terceira sala em Campinas (SP). Ter uma sala de cinema para chamar de sua e, principalmente, para exibir os próprios filmes não era um privilégio da UFA. Outros estúdios cinematográficos, como a Metro-Goldwyn-Mayer (MGM) e a Paramount Pictures, também tiveram. “Filmes de propaganda nazista nunca tiveram grande circulação no Brasil”, afirma o historiador Flaviano Isolan. “Logo, os produtores notaram que, para atrair público, a propaganda tinha que ser menos escancarada e mais sutil. E começaram a produzir comédias, romances e musicais de viés nazista. Ao contrário dos filmes de Hollywood, fantasiosos e romantizados, os alemães eram realistas e defendiam valores patrióticos”. Como exemplo, cita Heróis Sem Pátria (1933), O Velho E O Novo Rei (1934) e Juventude Ardente (1937). O Art-Palácio do Recife fechou suas portas em 1993 e o Art-Palácio de São Paulo em 2009. O Graf Zeppelin é, nas palavras de Cristiano Rocha Affonso da Costa, “o dirigível de maior sucesso da história”. Ao todo, realizou 590 voos – 68 deles para o Brasil – e transportou cerca de 13 mil passageiros. Entre outras proezas, deu a volta ao mundo em 1929 – a viagem, de 21 dias, foi patrocinada pelo magnata William Randolph Hearst (1863-1951) – e levou cientistas até o Ártico em 1931. Podia alcançar a velocidade de 128 km/h e transportar até 40 passageiros. Se um navio levava de 15 a 21 dias para cruzar o Atlântico, um dirigível percorria o mesmo trajeto em apenas três dias e meio. Mas, se, por um lado, o tempo de travessia era menor; o preço da passagem, por outro, era maior, bem maior – correspondia a uma primeira classe em navio de luxo. Tripulantes e passageiros viajavam em um compartimento chamado “gôndola”, onde funcionava, além das cabines de comando e de controle, a cozinha, o refeitório, os dormitórios e os banheiros. No filme Indiana Jones e a Última Cruzada (1989), o intrépido arqueólogo é perseguido por um oficial nazista na gôndola de um zepelim. Disfarçado de bilheteiro, dá um soco no sujeito e o atira janela abaixo. O que transportava a gôndola era o “invólucro” ou “envelope”, nome dado à parte superior do dirigível. “Vamos supor que o corpo do dirigível seja um pacote de biscoito – ou de bolacha, dependendo de onde você mora. Dentro dele, há vários biscoitos. Cada um equivale a um balão (ou célula de gás). No caso do Graf Zeppelin, eram 17, todos inflados com gás mais leve que o ar”, explica Cristiano Rocha Affonso da Costa. Os gases de elevação mais usados eram o hidrogênio e o hélio. Se o primeiro é barato e de fácil obtenção, o segundo é caro e de difícil produção. Outra diferença importante: o hidrogênio é altamente inflamável. “Num primeiro momento, os dirigíveis funcionavam como meio de transporte. Mas, com a chegada de Hitler ao poder, se tornaram instrumentos de propaganda nazista”, afirma o historiador Dirceu Marroquim, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), e coautor do livro Zeppelin no Recife (2015), em parceria com Jobson Figueiredo. “Muitos deles, inclusive, passaram a ostentar uma suástica no leme”. Além do Graf Zeppelin, outro dirigível, de fabricação alemã, também fazia a rota Europa-América do Sul: era o LZ 129 Hindenburg. Seu primeiro voo para o Brasil aconteceu no dia 31 de março de 1936 e conduzia, entre os passageiros, o maestro Heitor Villa-Lobos (1887-1959). Comparado ao Graf Zeppelin, o Hindenburg era um pouco maior: tinha 245 metros de comprimento – quase o tamanho do transatlântico britânico Titanic, que tinha 269 metros – e 41,2 metros de largura. Atingia a velocidade de 135 km/h e transportava até 72 passageiros. Cada passageiro podia transportar até 20 quilos de bagagem. Mais do que isso, as malas tinham que ser despachadas por navio, sem custo adicional. Maior e mais moderno: o Hindenburg tinha “piloto automático”, sistema de aquecimento e sala de fumantes – no Graf Zeppelin, fumar era proibido. A tripulação era dividida entre equipe técnica e geral: o capitão coordenava o primeiro grupo, que incluía engenheiros, maquinistas e operadores de leme, e o comissário de bordo, o segundo, de cozinheiro a médico. Se o Graf Zeppelin realizou, entre 1930 e 1937, 68 viagens para o Brasil, o Hindenburg realizou, entre 1936 e 1937, apenas oito. Dessas oito, duas foram estratégicas: uma experimental para Buenos Aires, na Argentina, em 1934, e outra em homenagem à colônia alemã no Paraná e Santa Catarina, em 1936. Nas duas ocasiões, o dirigível sobrevoou cidades como Porto Alegre, Joinville e Pelotas. Em Blumenau, a passagem do Hindenburg foi saudada por buzinas de carros, sirenes de fábricas e sinos de igrejas. “A maioria das pessoas sabia que os dirigíveis sobrevoariam suas cidades. A notícia chegava com dias de antecedência, através das rádios ou dos jornais”, explica o roteirista Saulo Adami, um dos diretores do documentário O Dirigível (2019), ao lado de Alessandro Vieira e Carlos Alexandre Martins. “Mesmo assim, muitos se surpreenderam com o tamanho dos zepelins. Disseram que eram assombrosos”. O LZ 129 Hindenburg teve vida curta: no dia 6 de maio de 1937, pegou fogo em Lakehurst, em Nova Jersey (EUA). A tragédia durou inacreditáveis 34 segundos. Morreram 13 dos 36 passageiros e 22 dos 61 tripulantes. “O que aconteceu naquele dia foi uma fatalidade”, lamenta o historiador Cristiano Rocha Affonso da Costa. “Duas comissões, uma da Alemanha e outra dos EUA, investigaram a explosão e descartaram a hipótese de sabotagem. O que houve foi vazamento de gás aliado à eletricidade estática”. Já Charles Narloch, do MAST, compara a tragédia de Hindenburg ao naufrágio do Titanic, em 1912. “Além de serem os maiores do mundo, eram tidos como ‘infalíveis’. A tragédia do Hindenburg comoveu o mundo. Para o Brasil, ficou o gosto amargo de uma promessa que não se cumpriu”, lamenta. O LZ Graf Zeppelin foi desmontado em 1940. Sua carcaça foi usada na construção de aviões de guerra. O Conde Zeppelin entrou para a história da aviação por emprestar seu sobrenome à empresa que fundou em 1908, a Companhia Zeppelin. O primeiro modelo que inventou, o LZ 1, tinha 137 metros de comprimento, chegou a 390 metros de altura e caiu depois de voar por 18 minutos. Durante a Primeira Guerra, seus zepelins foram transformados em naves militares. No dia 31 de maio de 1915, o LZ 38 bombardeou a cidade de Londres e deixou um saldo de 28 mortos e 60 feridos. Ao todo, os 109 dirigíveis fabricados durante a guerra, 89 deles pela Companhia Zeppelin, mataram 557 pessoas e feriram outras 1.358. Não por acaso, foram apelidados de “Baby Killers”. Curiosamente, o primeiro piloto a realizar um voo totalmente controlado de dirigível foi um brasileiro: Alberto Santos-Dumont (1873-1932). Foi no dia 20 de setembro de 1898. Seu invento tinha 25 metros de comprimento, era equipado com motor de 12 cavalos e chegou a uma altitude de 400 metros.
2023-10-29
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c28vyplnx99o
brasil
Região Norte é 8 anos mais 'jovem' que Sudeste: os achados do Censo 2022
A cada dez anos, o Brasil tem uma oportunidade inédita de olhar para a sua população com os censos demográficos. Nesta sexta-feira (27/10), chegou um novo capítulo do censo realizado entre agosto e outubro do ano passado e divulgado neste ano pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): dados sobre a idade e o sexo dos brasileiros. Os novos dados confirmam tendências constatadas nos últimos Censos, como a de que a população brasileira está cada vez mais envelhecida. O Censo 2022 mostra que 10,9% da população é de idosos com mais de 65 anos (cerca de 22 milhões de pessoas) e 19,8% de crianças com até 14 anos (40 milhões). Fim do Matérias recomendadas Em 2010, o percentual e o número de idosos era menor, e o de crianças, maior. Naquele ano, 7,4% da população tinha mais de 65 anos (14 milhões) e 24% até 14 anos (45,9 milhões). A pirâmide etária do Brasil está cada vez mais diferente da pirâmide clássica, com uma grande base representando os mais novos. "A partir de 1940, tem início a transição demográfica do Brasil com a redução da mortalidade. Essa redução afeta a população de crianças primeiramente, e depois a queda da mortalidade segue em todos os grupos de idade", explicou à imprensa Izabel Marri, pesquisadora do IBGE e doutora em demografia. "A gente começa a ver o estreitamento da base da pirâmide no final da década de 1980 para 1990, como efeito da queda da fecundidade [número médio de filhos por mulher], iniciada em 1960 nas regiões mais industrializadas do país." "A estrutura populacional está em franco envelhecimento e tende a envelhecer mais." Outro dado que evidencia o envelhecimento do país é a chamada idade mediana, aquela que separa a metade mais jovem da metade mais velha da população. Essa idade no Brasil saltou de 29 anos em 2010 para 35 em 2022 — ou seja, aumentou seis anos de um Censo para o outro. A idade mediana também revela outra coisa: todas as regiões brasileiras estão envelhecendo, mas não na mesma medida. De 2010 para 2022, a idade aumentou em todas elas, mas elas têm valores diferentes. Em ordem crescente, a idade mediana no Norte é de 29 anos; no Centro-Oeste e Nordeste, 33 anos; no Sul, 36 anos; e no Sudeste, 37 anos. Os percentuais de crianças com até 14 anos e idosos com mais de 65 anos também colocam o Norte em uma ponta, e o Sudeste em outra. No Norte, as crianças são 25% da população, e os idosos, 7% Já no Sudeste, as crianças são 18% da população, e os idosos, 12%. Izabel Marri explica que as diferenças constatadas atualmente remontam, em parte, a tendências iniciadas nas décadas passadas. "A queda da fecundidade iniciada lá em 1960 se inicia nas regiões mais industrializadas do país, no Sudeste e Sul, entre as mulheres que residem nas áreas urbanas e que são mais escolarizadas", explica a demógrafa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Acompanhando esses padrões regionais, duas cidades no Rio Grande do Sul, Coqueiro Baixo e União da Serra, estão empatadas como as que têm a maior idade mediana do país: 53 anos. Já aquela com a idade mais jovem é Uiramutã, em Roraima, onde a mediana é de 15 anos. Mas olhando para os dados dos Estados e principalmente dos municípios, nota-se que há fatores particulares que influenciam na pirâmide etária da cidade, como a migração e a atividade econômica no local. O tamanho dos municípios também tende a fazer diferença, como mostra o chamado índice de envelhecimento — que é o número de idosos (com mais de 65 anos) para cada grupo de 100 crianças (de 0 a 14 anos). Considerando o tamanho das cidades, o índice mais alto está nos municípios com até 5 mil habitantes: 76,2 idosos por grupo de crianças. "O que acontece nos municípios muito pequenos é a saída da população em idade economicamente ativa, em idade reprodutiva, para cidades que oferecem maior chances de emprego e melhor as ofertas de serviço", explica a demógrafa do IBGE. Conforme o tamanho dos municípios aumenta a partir dos 5 mil habitantes, a proporção de idosos diminui — mas volta a aumentar nos municípios grandes, com mais de 100 mil habitantes. "Aí, a gente tem o efeito do número menor de crianças. São nessas regiões que o nível da fecundidade tende a ser mais baixo", diz Marri sobre as cidades grandes. Outra tendência que já vinha sendo observada em edições anteriores do Censo e que foi intensificada na edição atual é a da maior quantidade de mulheres em relação aos homens no Brasil. De acordo com o Censo 2022, 51,5% da população brasileira é formada por mulheres e 48,5% por homens. Há cerca de 104 milhões de mulheres no país — 6 milhões a mais do que homens. A pesquisa usa também um indicador chamado razão de sexo, que é o número de homens para cada 100 mulheres. Aliás, ao falar no "sexo" de uma pessoa, o IBGE considerou o sexo biológico no nascimento. Quando a razão de sexo fica abaixo de 100, quer dizer que há mais mulheres do que homens na população. Esse número caiu nas últimas décadas. Em 1980, eram 98,7 homens para cada 100 mulheres; em 2000, 96,9; e em 2022, 94,2. "Essa diminuição ao longo do tempo reflete a maior mortalidade dos homens em todos os grupos etários da população. Nascem mais meninos, mas morrem também mais meninos. E principalmente nas idades dos jovens adultos, o Brasil apresenta uma sobremortalidade masculina muito maior do que a população feminina", aponta Marri. "As causas de morte dessa população jovem adulta masculina estão relacionadas causas não naturais, que são as causas violentas", diz, referindo-se a mortes, por exemplo, por armas de fogo ou por acidentes de trânsito. "Embora a população apresente maior longevidade, as taxas de mortalidade dos homens são maiores do que das mulheres em todos os grupos, então quanto mais a gente envelhece, menor tenderá a ser a razão de sexo no país." Em todas as regiões, a razão de sexo é menor do que 100 — ou seja, há menos homens que mulheres. Por ser "uma das áreas mais envelhecidas do país", segundo a demógrafa, o Sudeste tem a menor razão de sexo: são 92,9 homens para cada 100 mulheres. Novamente, a nível mais "micro", importam as características dos municípios. Por exemplo, aqueles em que predominam atividades econômicas exercidas predominantemente por homens terão uma proporção maior deles. Isso acontece também em cidades que têm presídios, como Balbinos (SP), onde há 443 homens para cada 100 mulheres — a maior razão de sexo do país. No Brasil, há muito mais presos homens do que detentas mulheres. Dados de mortalidade, nascimentos, migração e fecundidade, apesar de estarem relacionados às informações divulgadas nessa sexta-feira, ainda não foram disponibilizados pelo Censo 2022. Espera-se que o efeito da pandemia de coronavírus se reflita nesses dados a serem publicados futuramente. Mas, por enquanto, as recém-divulgadas informações de idade e sexo da população — consideradas pelo IBGE o "cerne" do Censo — já poderão a ajudar no planejamento de políticas públicas fundamentais, como as que afetam escolas, hospitais e a previdência social.
2023-10-27
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72mg3j3x7eo
brasil
'Aqui quem manda no preço do gás não é a Petrobras': como milícia e tráfico controlam venda de botijão em comunidades do RJ
Quando precisa de gás para sua casa, em uma favela da zona sul do Rio de Janeiro, Pedro (nome fictício) compra o produto em um dos pontos de revenda na comunidade. O gasto atualmente chega a R$ 146 pelo botijão de 13 quilos. Fora dali, no “asfalto”, o mesmo botijão pode ser adquirido por cerca de R$ 100, mas essa não é uma alternativa possível nem para Pedro, nem para seus vizinhos. O sobrepreço no GLP (gás liquefeito de petróleo), conhecido popularmente como gás de cozinha, é resultado de um mercado dominado pelo crime organizado, neste caso, por uma quadrilha de traficantes. O grupo obriga que moradores comprem o gás no comércio local e impõe taxas à atividade econômica na região que dominam. De mototaxistas a comerciantes, todos pagam pelo direito de trabalhar, fazer negócios ou simplesmente viver na favela perto do mar onde Pedro mora. O custo pesa no bolso - como o extra pago pelo GLP essencial para cozinhar -, em uma peculiar inflação do crime. O processo também atinge a água mineral em galões e chega até o carvão para churrasco. “Há pelo menos dez anos é assim”, diz Pedro, que é aposentado, à BBC News Brasil. Ele também paga R$ 100 por mês aos traficantes apenas para ter acesso à internet, depois que a operadora oficial avisou que não poderia mais fornecer o sinal na comunidade. Antes, gastava R$ 150 mensais com a concessionária, mas por um pacote com mais serviços. “Somos abandonados pela fiscalização pública.” Fim do Matérias recomendadas O domínio sobre o comércio do gás de botijão, comum em muitas comunidades pobres do Rio, é um dos negócios em disputa na “guerra” que, há mais de um ano, envolve milicianos e traficantes na cidade. Em jogo, também está o dinheiro que flui não só da imposição do comércio de botijões a preços turbinados como também do controle da venda ilegal de acesso à internet, TV a cabo, transporte por van, carros de aplicativo ou motocicletas, aluguel e comércio de imóveis, além da venda de diferentes produtos, incluindo drogas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O foco é a zona oeste da cidade, onde assassinatos e chacinas registram aumento neste ano como reflexo do confronto entre grupos rivais, mas repercussões se espalham pelo município. Na segunda-feira (23/10), criminosos incendiaram 35 ônibus e um trem. Foi um protesto contra a morte de um dos chefes milicianos em uma operação da Polícia Civil. Matheus da Silva Rezende, o Faustão, de 24 anos, era procurado sob acusação de integrar a milícia comandada por seu tio , Luiz Antônio da Silva Braga, o Zinho. Sua eliminação embaralhou ainda mais a luta entre grupos milicianos e entre essas quadrilhas e o narcotráfico. O conflito também é apontado pela polícia como motivo para o ataque que matou três médicos no início de outubro. Uma das vítimas tinha semelhança física com um rival dos assassinos. O cenário da disputa, a zona oeste da capital fluminense, equivalea 70% do município. Nela, vivem cerca de 2,5 milhões de pessoas. Aos menos dois fatores favorecem a expansão do esquema ilegal de venda de gás e outros produtos. O primeiro deles é a possibilidade de domínio territorial armado, imposto por milicianos ou traficantes a comunidades pobres, com pouca ou nenhuma presença oficial do Estado. Outro fator é a “milicianização” do narcotráfico. Há alguns anos, traficantes começaram a copiar o modelo de negócios das quadrilhas milicianas. Esses bandos, originalmente formados por agentes das forças de segurança, além de ex-policiais e ex-bombeiros, monopolizam serviços e venda de produtos nas favelas ou cobram taxas ilegais sobre eles. Agora, os papéis se misturam cada vez mais: traficantes exploram serviços como a venda dos botijões, enquanto milicianos se aliam a alguns deles na venda de drogas. Mas como funciona o domínio do comércio do gás de cozinha? Um levantamento feito pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF) a pedido da BBC News Brasil dá algumas pistas sobre os mecanismos que governam o comércio de gás em comunidades controladas por criminosos no Estado do Rio. O estudo comparou os preços médios do gás de cozinha em áreas sem controle de grupos armados com os valores cobrados em comunidades cariocas dominadas pelas milícias ou pelo tráfico. No Brasil, o preço do gás de cozinha não é tabelado, mas é fortemente influenciado pelo preço que a estatal Petrobras determina para o insumo. Varia entre Estados a depender dos impostos cobrados. Altera-se ainda de acordo com o preço de distribuidoras e revendedoras. Semanalmente, a Agência Nacional do Petróleo (ANP) coleta os preços na ponta e calcula o preço médio do GLP por Estado. No levantamento, o Geni-UFF analisou os valores médios para o gás entre 2008 a 2022 apurados pela ANP. Também os cruzou com dados de mais de 13 mil perímetros - como são denominadas favelas, conjuntos habitacionais e sub-bairros pobres que formam a sua base de dados. O levantamento do Geni-UFF apontou que, sobretudo na capital fluminense, moradores de áreas dominadas por traficantes e milicianos, em geral, pagaram mais pelo botijão, A comparação foi feita com os valores desembolsados por quem mora em localidades sem controle de grupos armados. Nas áreas de milícias, o sobrepreço variou entre 10,31% a 18,19% nos 15 anos analisados. A exceção foi o ano de 2008, quando o preço no território sob domínio de milicianos ficou abaixo do medido pela ANP nas áreas dominadas. Já nas áreas dominadas pelo tráfico, o sobrepreço do botijão ficou abaixo de 10%, com exceção dos anos de 2013 e 2014, quando os valores a mais foram 14,6% e 15,2, respectivamente. O sociólogo Daniel Hirata, do Geni-UFF, explica que os últimos anos da série estatística indicam uma aproximação entre os preços do gás praticados nas áreas dominadas por milicianos e naquelas sob jugo por traficantes. Em 2020, na capital, milícia e tráfico cobravam respectivamente, em média, R$ 63,31 e R$ 67,64 por botijão; em 2021, R$ 83,11 e R$ 82,84; em 2022, R$ 99,16 e R$ 97,07. O movimento indicaria a adoção cada vez mais intensa, pelo tráfico, da economia gerida originalmente das milícias. Segundo Hirata, o modelo dos milicianos é “muito mais diversificado” e atua na “extração dos recursos urbanos” - água, luz, internet, gás. Aproveita-se do distanciamento da fiscalização. “Há uma convergência (de preços) cada vez maior que pode ser identificada por esse valor parelho, cada vez mais próximo, do botijão de gás vendido nessas áreas”, afirma. Ele ressalta que o movimento é mais claro na capital fluminense do que na região metropolitana ou no leste do Estado (região de Niterói e São Gonçalo, por exemplo). Segundo Hirata, embora as práticas aproximam milícias e tráfico, “do ponto de vista sociológico” permanecem diferenças importantes. “Porque temos que pensar não só, digamos assim, na atuação em certos mercados específicos, mas em quais são as redes que estruturam essa atuação”, explica. “Aí me parece que ainda há algumas diferenças no sentido de que as milícias têm redes mais extensas e uma penetração no Estado que ainda é maior do que o tráfico de drogas”, segue Hirata. Sob anonimato, moradores afirmam que os revendedores de gás nas comunidades dominadas por traficantes ou milicianos não têm escolha. Se quiserem vender gás nas favelas, devem cobrar o ágio no preço do botijão e repassá-lo aos moradores. Além de evitar problemas, a contrapartida dessa simbiose é lucrativa. Os vendedores ganham um mercado exclusivo, sem concorrência e com preços regulados para cima - pelos criminosos. Quem desafia essa lógica arrisca a vida. Foi o caso de um comerciante na zona oeste da capital fluminense. Seu depósito de venda de água mineral e GLP recebeu tiros de fuzil na noite de 10 de setembro, segundo o telejornal RJ2, da Rede Globo. O pequeno empresário de Campo Grande disse à emissora ter se recusado a aumentar o preço dos botijões, de R$ 80 para R$ 100. Essa exigência fora feita dois dias antes do ataque, por homens encapuzados. Eles foram ao depósito, dizendo ser da “milícia do KM 32”, localidade pobre próxima. Lá, depósitos cobrariam R$ 100 por botijão e pagariam ágio aos criminosos. Muitos moradores tinham passado a comprar o produto, 20% mais barato, com o comerciante de fora da área dominada. Os criminosos disseram que, se a ordem de reajuste não fosse cumprida, o negócio seria metralhado. O cumprimento da ameaça – com cerca de 30 disparos registrados por câmeras de segurança, que deixaram buracos redondos no muro- foi um aviso sobre o funcionamento da economia na área. "O depósito é legalizado. Não faz sentido isso", queixou-se o homem à emissora, sem se identificar, por segurança. Antropóloga e professora de segurança pública na Universidade Federal Fluminense (UFF), Jacqueline Muniz afirma que, nos territórios dominados pelo crime, o Estado é “terceirizado” para o que chama de “governos criminais”. São grupos que, lembra a pesquisadora, administram água, luz, internet, venda de gás e outros produtos. Essa é uma forma também de bancar os custos – muitas vezes altos - das atividades criminosas, como aluguel de armas, por exemplo. “A economia do gás está articulada com as outras prestações de serviços essenciais, que garantem o fluxo de caixa cotidiano”, explica. Falhas nos serviços são reportadas a pessoas próximas aos criminosos, para que o problema seja sanado, relata ela. “Por que eu chamo de governos criminais?”, pergunta ela. “É exatamente porque essas são mercadorias políticas, importantíssimas ali. Quando você tem o controle do território, você tem o do mercado ilegal. Na prática, os governos criminais no Rio de Janeiro administram população, controlam território e regulam o mercado. Quem administra território, controla população e regula mercado governo é.” O gás de botijão é um insumo crítico para as favelas e bairros mais distantes das áreas centrais do Rio. Esses locais não têm conexão com a rede de gás natural canalizado. Uma família com quatro pessoas pode consumir aproximadamente um botijão de 13 kg a cada dois meses, mas isso pode variar e o gasto ser maior. O valor médio, atualmente, fica em torno dos R$ 100 a cada compra. O salário mínimo é de R$ 1320 desde 1º de maio. Para aliviar essas despesas, as famílias mais pobres têm direito ao Auxílio Gás operado pelo governo federal. O “Vale Gás”, como é popularmente conhecido, é um benefício repassado pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) a famílias inscritas no Cadastro Único, com renda familiar per capita igual ou inferior a meio salário mínimo. Desde o ano passado, passou a cobrir o valor médio aproximado de um botijão (antes, era metade), calculado pela Agência Nacional do Petróleo e pago a cada dois meses. Essencial para subsidiar a renda dos mais desfavorecidos, o benefício torna o comércio de gás em áreas mais pobres ainda mais atrativo. O benefício é pago em dinheiro e não está vinculado diretamente à compra de GLP, podendo ser gasto em outras mercadorias. Ainda assim, ao menos parte deste valor deve ir efetivamente para a compra do botijão, uma despesa básica que pesa na conta dos mais pobres. No município do Rio, 137.359 famílias receberam os R$ 14.834.772,00 pelo Vale Gás em agosto de 2023 ( número mais recente disponível). As milícias controlam cerca de 60% do território do Rio de Janeiro sob domínio do crime organizado, de acordo com estudo de um conjunto de entidades que inclui o Geni-UFF. O território total dominado pelo crime, por sua vez, representa cerca de 20% da área total da região metropolitana do Rio, segundo levantamento da ONG Fogo Cruzado. O coronel da reserva da PM, doutor em Ciências Sociais e pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Robson Rodrigues alerta para a possibilidade de o dinheiro do Auxílio Gás ser apropriado pelas quadrilhas que dominam esse comércio. “Entendo ser extremamente positivo esse fluxo de dinheiro para os mais vulnerabilizados socialmente”, diz. “Isso tende a minimizar esses impactos e melhorar a situação dessas pessoas. No entanto, quando esse aumento de recursos chega a um local de que o Estado não tem um domínio, e esses grupos criminosos estão à frente, dominando, observando e vigiando a vida local, evidentemente a chance de que eles obriguem a usar esses já parcos recursos vai ocorrer. Isso é sempre negócio, Negócio observa oportunidade de se expandir e de ganhar mais. Então, é evidente que para que essa política fosse ainda mais efetiva e eficaz, seria necessária a presença do Estado para vigiar, olhar, cuidar.” Ex-coordenador das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), Rodrigues lembra que, quando o processo de pacificação estava “com bastante força, com fôlego, com recurso, com legitimidade”, a vida, segundo ele, ficou “mais próxima da normalidade” em comunidades pacificadas. O mesmo, porém, não ocorreu nas demais favelas. “Como um contraponto, naquelas comunidades onde não havia UPP, mas mesmo assim o governo federal colocou recursos, com obras do PAC, com alguns recursos de transferência de renda para essa população mais pobre, esses criminosos, sobretudo os traficantes, ainda sem a presença do Estado, aparelhavam a associação de moradores e acabavam aparelhando toda a destinação desses recursos”, conta. “Eles é que orientavam quem ia receber, como ia fazer. Isso mostrou que obras sociais são de imensa importância, mas se não tiver um mínimo de segurança antes, para que isso possa funcionar de uma forma mais próxima de uma normalidade civilizatória, evidentemente que o Estado não vai conseguir fazer, mesmo com toda a boa vontade e todo o aspecto positivo de uma política de transferência de renda.” Pedro, morador da favela da zona sul, explica que o controle vigente em sua comunidade, dominada por traficantes, é rígido. “Não pode ter concorrente de fora”, conta ele, que nunca tentou comprar gás em outro local que não a vizinhança. “Se tivesse carro, talvez pensasse nisso, mas sempre é um risco.” Morador de um complexo de favelas na zona norte também dominado por traficantes, Jonas (nome fictício), um desempregado que vive de biscates que lhe rendem cerca de R$ 2 mil por mês, faz um relato parecido com o de Pedro. Mas há algumas diferenças, aparentemente ligadas a relações de vizinhança - afinal, “todo mundo é amigo”, diz. “O botijão de gás é vendido, na revenda oficial, por 80 reais. Mas nas comunidades (do complexo) é revendido a R$ 115 no dinheiro e R$120 no cartão. Isto não ocorre somente com o gás. Também com o carvão e o galão da água mineral. A pessoa tem um depósito e combina com o tráfico: “Vou te dar tanto (dinheiro) para (poder) vender meu produto na tua comunidade ou favela. Então só ele vende”, relata. Nesse caso, porém, a compra de botijões em outros locais, fora das favelas, é tolerada. “Ninguém vai revistar o teu carro”, conta Jonas. Mas há uma condição: o gás deve ser para consumo do morador e não pode ser revendido a preço mais barato do que o tabelado pelos criminosos. No Complexo, há cinco distribuidoras de GLP, com divisão territorial. Um depósito não pode entregar o produto na “área” de outro, diz Jonas. “Mesmo os proprietários sendo amigos”, relata. Jonas afirma que o domínio do tráfico sobre o comércio de gás na região começou “há dez, doze anos”, copiando prática de milicianos. Com relação a água e carvão, já tem duas décadas. Ele sente as consequências desse domínio. Paga R$ 10 por galão de água que, fora do complexo, custa R$ 5. Também usa transporte por vans, carros de aplicativo, mototáxis que pagam “pedágio” aos criminosos. “Logo, pagamos”, diz. Por nota, a Polícia Civil do Rio afirmou ter “investigações em andamento” e realizar “trabalhos de inteligência e diligências para identificar traficantes e milicianos envolvidos na comercialização ilegal” de gás de botijão. Sem ser específica, a corporação afirmou que já interditou “dezenas de estabelecimentos irregulares” e apreendido “centenas de botijas de gás (...) durante as ações”. Também declara que essas iniciativas “resultaram em prisões de criminosos”. “A instituição reforça a importância da população registrar as ocorrências e apresentar informações que auxiliem nas investigações para identificação e prisão dos envolvidos na prática criminosa”, diz o texto. “Os registros também podem ser feitos pela internet, por meio da Delegacia On-line.”
2023-10-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c8vl2vm6zm1o
brasil
Vídeo, Deus na Constituição e religião na escola: a (lenta) separação entre Igreja e Estado no BrasilDuration, 8,26
Que atire a primeira hóstia quem nunca viu um crucifixo pendurado na parede em uma instituição pública no Brasil. Sim, em pleno século 21, mais de 130 anos depois de ser oficializada a separação entre Igreja e Estado, ainda há repartições e gabinetes da administração laica ostentando o símbolo do cristianismo. Para não dizer em políticos usando o nome de Deus em vão — no caso, para justificar suas decisões que deveriam se prezar pelo civil e não pelo religioso — e até cidades que afixam placas, em suas entradas, dizendo que "pertence ao Senhor Jesus" e outros que-tais. Mas como se deu a separação entre Igreja e Estado no Brasil? E por que essa ruptura foi tão gradual, a ponto de a religião ainda estar presente no dia a dia das instituições públicas? A repórter Letícia Mori conta sobre essa relação que permeia quase toda a história do Brasil.
2023-10-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0v7j944nx0o
brasil
Trabalhar para app rende menos por hora a motoristas e entregadores; veja salários
As informações são parte de dados inéditos divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) nesta quarta-feira (25/10). Motoristas de aplicativos recebem, em média, R$ 11,80 por hora trabalhada – ou 87% do ganho daqueles que atuam fora das plataformas (R$ 13,60). E as jornadas são mais extensas: os motoristas de aplicativos trabalham, em média, 7 horas a mais horas por semana (47,9 horas) que os que estão fora das plataformas (40,9 horas). Fim do Matérias recomendadas No fim do mês, os motoristas de aplicativo – com mais horas trabalhadas, chegam a um rendimento médio (R$ 2.454) ligeiramente superior aos ganhos dos que atuam fora de plataformas (R$ 2.412). Considerando apenas o trabalho principal dos brasileiros, a estimativa é que havia em 2022 um total de 1,2 milhão de pessoas ocupadas como condutores de automóveis na atividade principal de transporte rodoviário de passageiros – 60,5% trabalhavam por meio de aplicativos de transporte (inclusive táxi) enquanto 39,5% não utilizavam esses aplicativos. O ganho médio por hora de motoboys que trabalham com entrega por aplicativo (R$ 8,70) representa 73% da remuneração por hora daqueles que não trabalham para plataforma (R$ 11,90). Na mesma linha do que ocorre com os motoristas, a média de horas trabalhadas por semana é maior para o motoboy que trabalha para aplicativo (47,6 horas) do que para os demais (42,8 horas). No entanto, mesmo com jornadas mais extensas, o ganho médio no fim do mês é menor para os que trabalham para plataformas (R$ 1.784) do que para os motoboys fora dos aplicativos (R$ 2.210). Considerando os condutores de motocicletas em atividades de malote e entrega no trabalho principal, o IBGE estimou um total de 338 mil pessoas em 2022 – 50,8% atuando por meio de aplicativos de entrega, e 49,2% fora das plataformas. Os valores de rendimento, segundo o IBGE, consideram a receita do trabalhador após descontar despesas com aquele trabalho – como combustível, por exemplo, no caso de motoristas e entregadores. Os dados sobre trabalhadores de plataformas, referentes ao 4º trimestre de 2022, foram divulgados pela primeira vez pelo IBGE – por isso, não há ainda histórico que permita comparar o resultado com períodos anteriores. O IBGE informou que essas estatísticas, parte da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), estão em fase de teste e sob avaliação. O levantamento considera o trabalho principal de pessoas de 14 anos ou mais ocupadas no período de referência da pesquisa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os dados divulgados nesta quarta-feira jogam luz sobre um tema que vem sendo discutido no Brasil e no mundo – os desafios trazidos pelo trabalho por plataforma, uma modalidade que não se enquadra em todas as características de empregados tradicionais e tampouco de autônomos da forma que conhecemos. No Brasil, o Ministério do Trabalho e Emprego prepara uma proposta de regulamentação do trabalho para aplicativos – o texto seria enviado ao Congresso até o fim de setembro, segundo o governo, mas isso ainda não aconteceu. O Ministério do Trabalho e Emprego respondeu na terça-feira (24/10) que o projeto de lei ainda “está em construção” e que a previsão é de envio ao Congresso até o fim da próxima semana. Em um ponto fundamental para a discussão de políticas nessa área, a pesquisa mostrou que os trabalhadores de plataformas estão menos protegidos pela Previdência do que os demais trabalhadores no setor privado. Só 23,6% dos motoristas de app faziam contribuições à Previdência – o que significa que mais de sete a cada dez estavam desprotegidos pelo INSS. A taxa para motoristas que atuavam fora de plataformas era de quase 44%. Entre os motoboys de aplicativo, só 22,3% contribuíam com o INSS, enquanto a taxa era de quase 40% para os que atuam fora das plataformas. Os trabalhadores que não contribuem com a Previdência Social, além de não terem seu tempo de trabalho contado para a aposentadoria, não estão protegidos em casos de acidentes ou de doenças que exijam afastamento do trabalho. Também não recebem salário-maternidade e não deixam pensão por morte para dependentes. Os dados gerais da pesquisa consideram, além de motoristas e motoboys, outros brasileiros que atuam por meio de outros tipos de aplicativos, como de prestação de serviços gerais ou profissionais – faxina, lavagem, cuidado de pessoas, reformas e reparos, entre outros. A quantidade de brasileiros ocupados no 4º trimestre de 2022 – desconsiderando os empregados no setor público e militares – foi estimada em 87,2 milhões. Desse total, 1,49 milhão de pessoas trabalhavam por meio de plataformas digitais de serviços – com uma concentração no Sudeste de quase 58% do total de trabalhadores plataformizados. E quais são os tipos de aplicativos de serviços mais usados como plataforma de serviço por esses trabalhadores, segundo a pesquisa? A soma dos percentuais acima supera 100% porque o mesmo trabalhador pode usar, em seu trabalho principal, mais de um tipo de plataforma – por exemplo, aplicativo de táxi e de transporte particular. E qual é o perfil desses trabalhadores? Os trabalhadores por aplicativo são principalmente homens (mais de 81% do total), uma proporção bem maior do que a parcela masculina na média geral dos trabalhadores ocupados fora do setor público (59%). Quase metade (mais de 48%) das pessoas que trabalhavam por meio de plataformas estava no grupo de 25 a 39 anos. A taxa para esta faixa etária, entre trabalhadores que estão fora das plataformas, era de 39,5%. Em relação ao nível de instrução, a maioria dos trabalhadores de app tinha nível médio completo ou superior incompleto (mais de 61%). O mesmo grupo, entre a população de trabalhadores fora das plataformas, representava 43%. A pesquisa também procurou medir o nível de dependência sentido pelos trabalhadores em relação às plataformas, em aspectos como o valor a ser recebido pelo trabalho realizado, clientes a serem atendidos, prazo para realização de tarefas, e forma de recebimento do pagamento. O IBGE concluiu que “há diferenças substanciais entre os tipos de aplicativos de serviços em relação à dependência dos trabalhadores”. Os maiores graus de dependência em relação à plataforma foram identificados, segundo o IBGE, para trabalhadores de aplicativos de transporte de passageiros (exceto aplicativo de táxi) e entregadores em aplicativos de entrega. Na outra ponta, com menor grau de dependência, aparecem aqueles que utilizavam plataformas de prestação de serviços gerais ou profissionais. Por exemplo, na pergunta sobre o valor a ser recebido por tarefa entregue, 97,3% das pessoas que trabalhavam por meio de aplicativo de transporte particular de passageiros (fora táxi) afirmaram que o valor era determinado pelo aplicativo. Para outras plataformas, os percentuais foram: 84,3% para aplicativos de entrega, 79,9% para aplicativos de táxi, e 31,9% para aplicativos de prestação de serviços gerais ou profissionais. O levantamento também mediu a influência dos aplicativos na determinação da jornada de trabalho, com potenciais estratégias usadas por plataformas, como incentivos, bônus ou promoções que mudam os preços; ameaças de punições ou bloqueios realizados pela plataforma; e sugestão de turnos e dias pela plataforma. O IBGE disse que observou, também, a possibilidade de escolha de dias e horários de forma independente. Por exemplo, no grupo de pessoas que trabalhavam para aplicativos de transporte de passageiros (fora táxi), 63,2% afirmaram que a jornada de trabalho era influenciada por meio de incentivos, bônus ou promoções que mudam os preços; 42,3%, por ameaças de punições ou bloqueios realizados pela plataforma; e 29,2%, por meio de sugestão de turnos e dias. Mesmo nesse cenário, 83,8% desses trabalhadores afirmaram ter a possibilidade de escolha de dias e horários de forma independente.
2023-10-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c84535d7v7xo
brasil
Fuga de cérebros: Brasil está perdendo talentos em inteligência artificial para exterior, diz ranking
No ramo da inteligência artificial (IA), o Brasil se sai bem quando o assunto é "talentos". Porém muitos dos melhores profissionais brasileiros trabalham hoje para empresas e governos estrangeiros. "É um cenário parecido com o de países como a Índia", comenta o historiador Joe White, cientista de dados da Tortoise, grupo de mídia inglês, em entrevista à BBC News Brasil. "Nosso levantamento aponta que o talento criado em um país muitas vezes não é retido. Há uma fuga de cérebros, com êxodo para nações mais ricas." Essas são conclusões do The Global AI Index, pesquisa da Tortoise coordenada por White e por sua colega Serena Cesareo, também cientista de dados. O estudo avalia o cenário de 62 países no mercado de inteligência artificial, em torno de três pilares principais: investimento, inovação e implementação. O Brasil está no meio do ranking, em 35º lugar. Os tópicos do ranking são divididos em sete categorias, respectivamente sob cada um desses três pilares: talento, infraestrutura e ambiente de operações (investimento); pesquisa e desenvolvimento (inovação); estratégia governamental e comércio (implementação). "Nossa principal base de pesquisa para identificar talentos locais foi o Linkedin", comenta Serena Cesareo. "Ficou evidente como o Brasil possui um grande número de profissionais no campo, tanto em termos absolutos quanto em proporcionais, em relação ao tamanho da população." Fim do Matérias recomendadas O The Global AI Index se apresenta como a primeira pesquisa global a analisar o cenário dessa tecnologia de forma tão abrangente. Foi criado em 2019 e está em sua quarta edição. Em todas elas, os Estados Unidos lideraram o ranking, seguidos pela China. O Brasil aparece em 35º lugar no ranking geral. Todavia, no critério "talentos", está em 21º, à frente de países como Áustria, Bélgica, Portugal e Rússia, todos melhores colocados na listagem geral. E logo atrás da China, em 20ª neste tópico. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Se um profissional brasileiro se forma em seu país, mora onde nasceu, só que trabalha no dia a dia para o escritório local da Microsoft, que é americana, nós o registramos como um talento brasileiro, mas que não contribui para o mercado nacional de IA, mas, sim, para o dos Estados Unidos", diz Joe White, da Tortoise. A comparação realizada por White com a Índia, logo no início desta reportagem, é evidenciada pelos números. Enquanto os indianos garantem um invejável segundo lugar no tópico "talentos", estão em 14º na classificação geral. Isso ocorre porque, em outros temas, a Índia não tem desempenho tão bom. Em "infraestrutura", por exemplo, é quase a lanterninha da lista, na 59ª colocação. O país também vai mal em "estratégia governamental" (38ª) e "pesquisa" (30ª). No caso do Brasil, em 21º lugar em "talentos", os dados do levantamento apontam para carência em "estratégia governamental", com o país em 30º lugar, assim como em indicadores impactados diretamente por ações do Estado, como em "pesquisa" e "desenvolvimento" (em 36º nesses dois âmbitos). "Esse cenário todo está ligado à fuga de cérebros do país", resume Joe White. Com 31 anos de idade, e doutorado concluído em 2021 na Universidade de Princeton, o paulista Talmo Pereira rapidamente alcançou uma posição cobiçada no ramo acadêmico: a de líder de seu próprio laboratório. Todavia, o feito foi conquistado a quase 10 mil quilômetros de distância de sua cidade natal, Campinas (SP). No Salk Institute for Biological Studies, na cidade californiana de San Diego, nos Estados Unidos, ele está à frente de uma equipe de catorze pesquisadores e que se dedica a usar ferramentas computacionais de aprendizagem profunda (no termo em inglês, deep learning) para solucionar uma variedade de questões das biociências. Em termos mais leigos, o neurocientista brasileiro usa a inteligência artificial como uma forma de investigar padrões biológicos em animais e humanos. "Criamos, por exemplo, uma tecnologia que prevê movimentos de animais, mesmo de pequenos insetos", pontua Pereira. Na sequência, ele continua a enumerar os estudos sob seu cuidado. "Temos avançado no uso dessa ferramenta para detectar doenças, como cânceres, antes que os sintomas apareçam. Em outra pesquisa, em parceria com um museu de Los Angeles, rastreamos como as pessoas se comportam diante de obras de arte. E também temos um trabalho com a Nasa." O time do Talmo Lab, o nome de seu laboratório em San Diego, tem realizado estudos sob encomenda da agência espacial americana. "Vamos enviar experimentos para a Estação Espacial Internacional. Como astronautas permanecem muito tempo no espaço, e há planos de mandá-los a Marte, meu grupo procura criar métodos de prevenir doenças que podem se desenvolver mais rápido em ambientes de baixa gravidade." Talmo Pereira é exemplo de um talento brasileiro que foi perdido pelo país. No ranking do The Global AI Index, da Tortoise, todo seu trabalho rende pontos para os Estados Unidos, e não para o Brasil. "O Brasil infelizmente tem um contexto sócio-cultural, além de econômico, que prejudica quem ambiciona seguir uma carreira acadêmica", comenta. "Eu e minha mãe migramos para os Estados Unidos em busca de condições melhores para mim." Pereira imigrou aos 16 anos de idade, com planos de entrar em uma universidade americana. Desde então, não voltou para sua terra natal. "O Brasil não investe tanto quanto deveria em políticas públicas que incentivem a educação, principalmente para os menos privilegiados", opina. "Se fosse diferente, se houvesse esse incentivo, eu não teria de ter saído de meu país para procurar pelas melhores oportunidades." "Tanto o sistema público quanto o privado brasileiros têm um cenário complicado para quem trabalha na nossa área", avalia o economista Alexandre Chiavegatto, professor de aprendizado das máquinas [machine learning] da Universidade de São Paulo (USP). "As empresas não valorizam o quanto deveriam. O governo, preocupa-se mais em regular e restringir, do que em desenvolvimento." Chiavegatto fez da graduação ao doutorado na USP, onde se especializou na área de ciências de dados de saúde. O pós-doutorado, que concluiu em 2012, foi na Universidade de Harvard. "Decidi não ficar nos Estados Unidos pois passei no concurso público da USP e pude realizar um sonho que eu tinha, de me tornar professor nessa universidade", diz Chiavegatto. "Mas o cenário lá fora é melhor, com empresas e o governo apostando mais no setor." Ele é um talento que permanece no Brasil. Na USP, lidera o Laboratório de Big Data e Análise Preditiva em Saúde. "Somos um time de trinta pesquisadores", afirma. "Usamos a inteligência artificial para desenvolver algoritmos capazes de predizer e nos ajudar a combater doenças." Chiavegatto conta que seus melhores alunos costumam ser recrutados por universidades e empresas estrangeiras, principalmente dos Estados Unidos – o líder do mercado de IA, segundo o The Global AI Index. "A qualidade dos trabalhos dos brasileiros nessa área é excelente, por isso acabamos por ganhar os empregos lá fora", diz ele. Ele cita, como "um de muitos exemplos", o caso de Helena Schuch, que colaborou em trabalhos de seu laboratório na USP. "Agora, ela está em Harvard." Dentista dedicada às pesquisas acadêmicas, a gaúcha Helena, de 33 anos, é pesquisadora da Harvard School of Dental Medicine. À BBC News Brasil, ela conta que utiliza ferramentas de IA para prever incidências de problemas dentais em pacientes, em particular os de camadas mais pobres da sociedade. "É difícil conseguir cargo de pesquisadora no Brasil", opina ela. "Nas universidades brasileiras, é preciso se dedicar integralmente a ser professor, além de pesquisador. Isso não favorece o desenvolvimento da ciência por não aproveitar aqueles que, como eu, tem maior perfil de laboratório, não de dar aulas." Pesquisador da Fiocruz, o cientista da computação Paulo Carvalho, líder do laboratório de proteômica da instituição, também identifica o êxodo de talentos. "Um ex-aluno está em uma empresa do Vale do Silício. Tem um que mora no Brasil, mas trabalha para uma startup americana. Outro, na Universidade de Cincinnati. E dois foram para o Uruguai", diz à BBC Brasil. Segundo Carvalho contabiliza, a maioria dos estudantes de mestrado e doutorado que passaram por seu laboratório acabaram em vagas em instituições estrangeiras. "Nos Estados Unidos, um jovem pesquisador pode ganhar três vezes mais que um sênior aqui no Brasil", estima. "Faltam incentivos para ficar no país." Joe White, que elaborou o ranking global, diz que "para os países que querem subir na classificação, um caminho que tem se mostrado produtivo é o do governo criar mais possibilidades e incentivos para o setor de IA". Apesar das dificuldades do Brasil, o país tem melhorado no ranking. Na edição de 2020 do The Global AI Index, o Brasil estava em 46º na classificação geral. Em 2021, avançou para 39º. Na última edição, publicada em junho (em 2022 o levantamento não foi realizado), chegou a 35º. Os brasileiros sempre se destacam no indicador "talentos", ficando em 35º em 2020 e em 31º, no penúltimo ranking. "O país está sendo puxado por seus profissionais, mas ao mesmo tempo apresenta dificuldade de mantê-los", complementa White. O que está em jogo nesse mercado? Segundo estimativa da consultoria MarketsandMarkets, trata-se de uma indústria que hoje movimenta anualmente cerca de US$ 150 bilhões (R$ 760 bilhões). Um mercado promissor, que deve ser quase de vez maior em 2030, quando se calcula que chegará próximo de US$ 1,4 trilhão.
2023-10-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv2lklwl4x9o
brasil
Tensão entre políticos e 'Supremos' pressiona democracias pelo mundo, diz pesquisador americano
Enquanto parlamentares e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) participam no Brasil de um cabo de guerra sobre quais são as funções e os limites do poder Legislativo e a mais alta corte do Judiciário, outros países estão testemunhando também esse tenso "jogo" entre poderes. México, El Salvador, Mali e Polônia são alguns dos países em que essa tensão emergiu nos últimos anos em menor ou maior medida — desde projetos partindo do Executivo ou do Legislativo para limitar as decisões de supremas cortes ou cortes constitucionais até ações que efetivamente tiraram juízes de seus mandatos e mudaram a composição dos tribunais (confira mais detalhes sobre esses países abaixo). Há também o caso de Israel, onde, até a véspera dos ataques do grupo palestino Hamas em 7 de outubro e a decorrente retaliação israelense, uma reforma no Judiciário proposta pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu estava causando uma ebulição doméstica. O pesquisador americano Tom Ginsburg, professor da Universidade de Chicago, tem como trabalho acompanhar a situação do Judiciário ao redor do planeta: ele é especializado em direito internacional e é codiretor do projeto Comparative Constitutions, dedicado a reunir informações das constituições pelo mundo. Quando perguntado se as altas cortes estão atualmente mais vulneráveis à pressão política, Ginsburg responde: "Acho que sim. E é uma tendência ruim". Fim do Matérias recomendadas "Estamos vendo em muitos países políticos tentando controlar os membros [das altas cortes]. Isso é perigoso, porque se tivermos pessoas muito ligadas à política, provavelmente elas não serão os melhores juízes, tecnicamente", aponta Ginsburg, em entrevista à BBC News Brasil por videoconferência. "Eu não gosto dessa tendência. Ao mesmo tempo, não acho que os juízes devem sair de sua esfera. Eles devem respeitar o que a lei exige e não impor as suas preferências pessoais", diz o pesquisador, dedicado também à ciência política. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ginsburg tem doutorado em Jurisprudência e Políticas Sociais pela Universidade da Califórnia em Berkeley e é autor de vários livros, como Democracies and International Law (2021) e How to save a Constitutional Democracy (2018). O pesquisador já esteve no Brasil e, ao conversar com a BBC, mostrou que estava antenado com a situação do país. Por aqui, o mais recente capítulo da tensão entre a política e o STF é protagonizado por parlamentares — sucedendo anos de ataques do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) à corte. Há vários projetos tramitando na Câmara e no Senado que propõem medidas como a anulação de decisões do STF pelo Legislativo, a limitação do tempo de mandato de ministros do STF e de decisões individuais (monocráticas). O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), indicou a colegas que deve ser votada no plenário em novembro uma proposta de emenda constitucional (PEC) que proíbe decisões monocráticas de suspenderem leis ou atos do Executivo ou do Legislativo federal. A discussão sobre a PEC está prevista para começar nessa terça-feira (24/10). Pacheco tem liderado no Congresso a defesa de mudanças no STF — ela já se manifestou favoravelmente à limitação do tempo de mandato dos ministros e ao aumento da idade mínima para se entrar no STF. Durante um evento na França, Pacheco afirmou à CNN Brasil no sábado (14/10) que "não há crise" entre poderes, apenas uma "busca de convergências" por mudanças. "O Legislativo é formado por 594 parlamentares votados diretamente pelo povo. Então, a essência do que é a vontade popular — e que todo poder emana do povo é uma premissa que nós temos que considerar —, ela é do Legislativo. Portanto, as grandes definições nacionais, para onde o Brasil deve se encaminhar, é um papel muito genuíno do poder Legislativo", afirmou Pacheco. "Nós não deixamos de legislar. Quando há algum tipo de opção de não se deliberar sobre determinado tema e fazer prevalecer a lei atual, essa também é uma forma de posição política do Congresso." O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, deu uma entrevista coletiva em 4 de outubro sobre as tentativas de mudanças e afirmou ver "com muita ressalva" projetos que visam reverter decisões da corte. O ministro defendeu que a questão dos mandatos já foi bastante discutida na preparação da Constituição de 1988 — em que ficou decidida que os ministros do STF teriam cargo vitalício, embora desde 2015, haja aposentadoria compulsória aos 75 anos. "Considerando uma instituição que vem funcionando bem, eu não vejo muita razão para se procurar mexer na composição e no funcionamento do Supremo. Mas o debate público no Congresso é legítimo e nós participamos também desse debate público", afirmou Barroso. Tom Ginsburg destaca que, após um ciclo de "judicialização da política", o mundo está vivendo agora o ciclo da "politização da Justiça". "Na década de 1990, houve uma espécie de vitória da democracia liberal, e parte disso inclui o empoderamento dos tribunais. Havia um sentimento de que os juízes, em virtude da sua disciplina profissional, eram necessários para proteger os fundamentos da democracia, para proteger os direitos e para tomar decisões importantes sobre a constitucionalidade." "Como resultado dessa época, vimos os tribunais de muitos países expandirem o seu papel na sociedade, e por vezes chamamos isso de judicialização da política: coisas que normalmente eram resolvidas na política, pelo povo, agora estavam nos tribunais." "A situação em que estamos agora é: estamos vendo em muitos países o que eu chamaria de politização da Justiça. As forças políticas não estão necessariamente satisfeitas com algumas das decisões tomadas pelos tribunais e querem mais controle." Questionado se a politização da Justiça é algo bom ou ruim, Ginsburg brinca: "Depende do quanto você gosta das decisões que os tribunais estão tomando." Depois, responde mais seriamente. "A politização do Judiciário é algo natural. Não deveríamos olhar para ela como se fosse de todo ruim. É uma reação natural a juízes tomando grandes decisões. Críticas a decisões, é disso que é feita a democracia, certo? É assim que funciona a democracia." "O problema nos nossos tempos é que a negociação política fracassou em muitas sociedades em uma era polarizada. Temos sociedades muito divididas. O Brasil está assim, o Estados Unidos estão asssim." O pesquisador usa como exemplo o frequente apelo de partidos à Justiça para contestar decisões do Executivo ou do Legislativo com as quais não concordam — algo frequente no Brasil e, segundo Ginsburg, também em outros países. "Se a competição é polarizada e intensa, os partidos vão buscar ter qualquer vantagem que puderem na instituição que for", diz. "Só de se ter mais um fórum, quem perde na esfera política comum sempre pode ir ao tribunal. Isso coloca pressão sobre os tribunais porque agora eles têm muito mais decisões a tomar. Tornou-se um trabalho muito mais difícil." Ginsburg aponta para um outro fator complicador na combinação de elementos de tensão entre poderes: uma certa impotência do Legislativo nas democracias contemporâneas. "Vimos nos últimos anos um grande crescimento do poder Executivo. O Estado é muito maior do que já foi. Isso dá ao Executivo muito poder para interferir na vida das pessoas." "Por outro lado, o Legislativo ficou bem mais fraco. As formas de governar modernas se tornaram muito complicadas para que eles [parlamentares] tomem decisões. Então você tem muito Executivo, e poucas políticas públicas vindo do Legislativo." Mas o professor da Universidade de Chicago reconhece que tentativas — às vezes ameaçadoras à democracia — de controlar as altas cortes podem vir tanto do Legislativo quanto do próprio Executivo. "O mais preocupante é uma situação como a da Venezuela, onde você tem um partido forte controlando tudo", aponta, destacando também que esforços prejudiciais contra as cortes podem partir tanto de políticos de esquerda quanto de direita. "Não acredito que qualquer lado político tenha o monopólio de governos ruins, do populismo e de valores antidemocráticos." "No meu país, temos um problema de verdade agora, em que a Suprema Corte — não em todos os casos, mas em muitos casos — parece estar impondo suas visões políticas particulares." "Nem todos os países são assim, mas nos Estados Unidos é bastante claro que o partido do presidente que nomeia [um juiz da Suprema Corte] é muito importante para decisões em casos de alto impacto, e não para casos comuns." "Mas não devemos simplesmente presumir que os juízes só votarão ao encontro do presidente que os nomeou. Temos muitos exemplos de juízes que mudaram [de posição], e é isso que chamamos de questão empírica. Você tem que analisar os dados." "Todos falam da independência da Justiça, mas também há o outro lado, que é a fiscalização do Judiciário." "Alguns tribunais estão se excedendo, inserindo suas próprias [vontades] políticas." Para Ginsburg, há tentativas de mudanças do Judiciário que partem de um "bom espírito" democrático e são bem-vindas, enquanto outras atendem a projetos de poder particulares de políticos e partidos. O pesquisador cita como um bom exemplo na conciliação entre política e Judiciário o chamado modelo de Commonwealth — grupo de países com origens no Império Britânico. "Vemos isso no Canadá, na Nova Zelândia e no Reino Unido. Você tem essa ideia de que a corte pode tomar uma decisão e se o Legislativo realmente não gostar dela, pode derrubar a decisão." "Vários acadêmicos realmente gostam desse modelo, porque na maior parte das vezes, a decisão da corte vai prevalecer. Mas se for uma decisão muito maluca, ela pode ser derrubada." "Eu não estou dizendo que esse é um bom modelo para todos os casos — eu não iria querer isso para ao meu país, porque eu não confio no nosso Congresso. Mas esse tipo de iniciativa, em que você tem um diálogo entre as cortes e outros poderes, é bom." Ainda sobre boas iniciativas para fiscalizar o judiciário, Ginsburg menciona a importância de "rígidas normas éticas" para membros da corte e o predomínio de decisões coletivas (colegiadas). "Acho também que a possibilidade de apelar para cortes internacionais é boa. Se o tribunal decidir algo realmente negativo para um indivíduo, essa decisão pode estar sujeita a um exame mais minucioso a nível internacional. Esse é um tipo de mecanismo de controle dos tribunais. O Brasil tem isso na Corte Interamericana de Direitos Humanos." "E é isso que vemos na União Europeia. É por isso que Orbán [Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria] e Kaczynski [Jaroslaw Kaczynski, líder do partido PiS, que comanda a Polônia desde 2015] estão limitados na sua capacidade de abusar totalmente dos direitos dos cidadãos, porque estão inseridos na Convenção Europeia de Direitos Humanos." Países que passaram recentemente ou estão passando por tensões entre política e altas cortes Após os ataques do Hamas a Israel em 7 de outubro, alguns analistas e políticos de oposição têm apontado que o contexto doméstico na véspera fragilizou a defesa do país. Depois dos ataques do Hamas, o líder da oposição Yair Lapid disse que "o sistema de Israel colapsou porque ele se desconectou de seu DNA". "Israel sempre disse ao mundo: somos a única democracia no Oriente Médio, somos o país mais forte no Oriente Médio. Nós simplesmente esquecemos, mas essas duas coisas não estão desconectadas. Elas são causa e efeito." Tom Ginsburg endossa a avaliação. "A situação de Israel ilustra o que acontece quando populistas gastam muito tempo tentando minar as cortes. O governo israelense estava tão distraído com a tomada do poder que eles se provaram completamente incompetentes e despreparados para o ataque do Hamas", diz o pesquisador americano. "Muitos em Israel estão percebendo isso agora, e isso será uma mancha para Netanyahu por toda a história." Ginsburg afirma que, mesmo que ele seja um crítico da Suprema Corte israelense, ela é necessária. "Eles [juízes da Suprema Corte israelense] fizeram realmente algumas decisões malucas. Eles se inseriram muito em muitos assuntos da política. Mas eu acho que Israel seria um país muito pior se eles não tivessem essa corte, porque eles têm um modelo de representação proporcional puro", diz. Ele se refere ao sistema eleitoral israelense, baseado no parlamentarismo e onde tem se mostrado quase impossível um único partido conquistar um número suficiente de assentos para formar governo sem alianças. Partidos pequenos normalmente são necessários para formar uma coalizão — e, para Ginsburg, isso faz com que minorias consigam usar o governo contra o direito de outras minorias. "Me preocupo muito com os direitos das minorias, por exemplo a minoria árabe em Israel, que compõe cerca de 20% da população do país." Outra preocupação do especialista é com iniciativas como projetos do Congresso brasileiro para limitar mandatos de juízes do STF. Ao defender essa mudança, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, afirmou em entrevista coletiva no dia 2 de outubro que a limitação é aplicada "em outros países do mundo e defendida em diversos segmentos, inclusive por ministros e ex-ministros do STF". Tom Ginsburg avalia que a regra brasileira atual é boa: não há limite de mandato, mas há aposentadoria compulsória. Por outro lado, ele critica o sistema americano, onde não há mandato e nem aposentadoria compulsória — o cargo é realmente vitalício. "Não há fim para o trabalho deles [ministros dos EUA]. Isso seria bom se eles estivessem fazendo apenas coisas pequenas, e não tomando decisões substantivas sobre grandes temas para a vida dos americanos." "Se há aposentadoria compulsória, um limite de mandato é ruim. Um limite de idade é muito bom: a pessoa se dedica muito ao tribunal, mas depois tem que sair." "Já o limite de mandato em um país como o Brasil significará que os juízes estarão sempre pensando no que farão depois. Isso é muito perigoso em um tribunal, porque eles podem pensar: 'Tem um empresário na minha frente e, quer saber, farei um belo favor a ele. Aí, depois que eu me aposentar, posso ir falar com ele'. Acho que é algo que leva à corrupção." O pesquisador cita também o risco de juízes vislumbrarem uma carreira política depois de um eventual mandato no STF. "É extremamente perigoso quando os juízes estão fazendo o seu trabalho e pensando na esfera política. Isso põe em dúvida todo o sistema jurídico, como se fosse um sistema político. A legitimidade da lei vem de haver técnica, e não política", conclui.
2023-10-24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cq5lqpq08z5o
brasil
O geólogo 'escorraçado' do Brasil por sugerir à Petrobras que procurasse petróleo no mar
“Há tanto petróleo no fundo do mar – e tão forte é a sua pressão – que o melhor técnico da Petrobras ainda não conseguiu dominar inteiramente o jorro”. Foi assim que o então repórter do jornal O Estado de S. Paulo Paulo Barbosa de Araújo descreveu a cena que testemunhara no dia anterior, rodeado de técnicos da empresa norte-americana Zapata Drilling Company no alto da plataforma de exploração Vinegaroon, não muito longe da arrebentação das ondas da orla de Aracaju (SE). Era começo de outubro de 1968 e, na semana anterior, a Petrobras havia anunciado ao mundo o que se esperava há quase quatro décadas: o Brasil tinha petróleo no mar. Já aposentado, sentado no escritório de casa, no Estado de Indiana, nos EUA, o geólogo norte-americano Walter Karl Link não se surpreendeu com a notícia. Tampouco se orgulhou. Havia nele apenas um senso de justiça: sete anos antes, ele havia deixado o Brasil escorraçado pela imprensa, por autoridades e por diretores da própria Petrobras por sugerir que a empresa mudasse a estratégia de perfurar poços em bacias terrestres (onshore) e fosse atrás dele, justamente, no oceano (offshore). Fim do Matérias recomendadas “Link era um cientista muito sério. Imagino que ele tenha ficado mais satisfeito com a comprovação científica do seu trabalho do que com qualquer questão pessoal”, acredita a pesquisadora Drielli Peyerl, da Universidade de Amsterdã, nos Países Baixos, que passou anos estudando a vida do geólogo durante seu pós-doutorado, nos EUA. “Hoje, fica evidente que ele sofreu com o contexto da época: a Petrobras era seguida por todo mundo e ele havia chegado ao Rio de Janeiro como o responsável por fazê-la encontrar petróleo no território do Brasil. Quando ele notou que, em terra, não havia tantas bacias, foi uma frustração não só política e econômica para o país, mas também social – e até da ordem da identidade nacional”, completa ela, que também é pesquisadora do Instituto de Energia e Meio Ambiente e do Researcher Centre for Greenhouse Gas Innovation da Universidade de São Paulo (USP). Peyerl conheceu a história de Walter Link na década passada, quando estudava os investimentos pesados que a Petrobras fez desde o início para formar técnicos brasileiros que fossem capazes de achar e explorar petróleo. Era uma fixação que atravessara todos os governos desde os tempos de Getúlio Vargas até o regime militar. Enquanto fazia entrevistas na empresa, não raro ela ouvia alguém contar, com diferenças sutis, uma mesma história: a do geólogo “mais famoso do mundo” em sua época que, contratado pela Petrobras para transformar o Brasil em autossuficiente na produção de petróleo, jamais foi ouvido na única certeza que carregava: que a exploração brasileira deveria ser offshore – porque, em terra, o esforço seria menos promissor. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Quase 15 anos após descobrir sua primeira jazida de petróleo, em um bairro do subúrbio de Salvador (BA), o Brasil estava dividido. O palco era o Congresso, onde bancadas e setores empresariais defendiam que empresas petrolíferas estrangeiras que já atuavam no país – principalmente subsidiárias da Standard Oil Co. e a Anglo-Mexican Petroleum Co. –, mantivessem o status. Ao mesmo tempo, havia a defesa da presença mais intensa do Estado no mercado de energia, que se expressava sob o famoso slogan “O Petróleo É Nosso”. Esse conflito entrou nos anos 1950 como principal dilema político do Brasil, conhecido como “problema do petróleo”: de um lado, os “entreguistas”, a favor das empresas estrangeiras e, do outro, os “nacionalistas”, exigindo um papel mais intervencionista do Estado. A fundação da Petrobras, no início de outubro de 1953, foi a consequência final dessa divisão: uma empresa financiada com investimentos públicos e privados, mas gerida pelo governo – o que garantia o monopólio público sobre qualquer lugar onde houvesse petróleo no território nacional. Parte dessa estrutura legal se mantém há exatos 70 anos. Pouquíssimo tempo depois, sem saber por onde começar a procurar novos poços, a novíssima estatal foi atrás de Walter Link nos Estados Unidos. Em 1954 ele era, de fato, um dos geólogos mais famosos do mundo, cuja carreira começara na fase final da Standard Oil Company, gigante norte-americana que se desintegrou a partir de 1911, mas se consolidara ao longo do século colaborando com países como Venezuela, Equador, Suriname e Indonésia a encontrar suas próprias jazidas do “ouro negro”. Já esperando pelas críticas dos “nacionalistas”, a empresa correu a argumentar que a contratação de Link era temporária, e que seu trabalho seria mais treinar profissionais brasileiros para o futuro próximo do que ditar os passos produtivos da companhia. Não era mentira: seu contrato tinha, de fato, duração até o final de 1960. Das portas para dentro, porém, todo mundo sabia que o plano era outro: entregar a ele o cobiçado cargo de diretor do Departamento de Exploração e, em troca, saber o mais rápido possível sobre as “possibilidades petrolíferas do Brasil”, como o próprio geólogo contou em um relatório que escreveu antes de voltar ao seu país. “Era uma posição mais importante do que a da própria presidência da Petrobras, porque enquanto uma era essencialmente política, a outra dava sentido à existência da empresa – que, naquela época, era achar petróleo no território brasileiro. O fato dele ser estrangeiro também colaborou para colocá-lo diante nos holofotes”, explica Peyerl. O jornalista Norman Gall, correspondente de diversos veículos da imprensa norte-americana no Brasil desde os anos 1950, foi uma das poucas pessoas que conseguiram conversar com Link para além das pressões políticas que ele sofria dentro e fora da Petrobras. Gall, que aos 90 anos ainda vive em São Paulo, o entrevistou várias vezes. “Ele veio sabendo que ocuparia um posto importante e que, por causa disso, teria que lidar com as críticas da imprensa e dos políticos”, conta Gall. “Lembro, sobretudo, que ele ainda falava com certa excitação sobre a possibilidade de tirar petróleo do Rio Madeira, na Amazônia, que confirmava um mapeamento feito antes mesmo da fundação da Petrobras”, continua ele, citando um poço explorado por pouco tempo na cidade de Nova Olinda do Norte, hoje no Amazonas. Walter Link arregaçou as mangas, de fato, em 1955, viajando pelas áreas onshore que a Petrobras e o Conselho Nacional de Petróleo (CNP), entidade que a antecedera, haviam mapeado no território brasileiro desde a década de 1930. Segundo relatórios da época analisados pela BBC News Brasil, ele passou por estados como Paraná, Maranhão, Rio Grande do Norte e no Amazonas – que voltou a ser um dilema para a companhia neste ano por causa da bacia na Foz do Rio Amazonas, onde a empresa pretende investir, mas esbarra na resistência do Ibama e do Ministério do Meio Ambiente. Desde os seus primeiros relatórios, Link já expressava certa desilusão. “Ele viu como muitos documentos produzidos sobre o tema no início da República já eram pessimistas. Geólogos estrangeiros diziam que não havia petróleo no país desde a década de 1900, por exemplo. Conforme ele ia a campo, os diagnósticos iam se confirmando”, explica Drielli Peyerl. Ainda assim, empolgado com o projeto da Petrobras, o geólogo voltou aos Estados Unidos no ano seguinte com a missão de formar um time de técnicos que o ajudasse no desafio. Em paralelo, conseguiu que a estatal investisse em uma estrutura ampla, que incluía desde laboratórios de paleontologia até técnicos em palinologia – ramo da ciência que estuda palinoformos, como grãos de pólen, por exemplo. Em 1956, com os primeiros resultados em mãos, ele tomou duas decisões importantes: avançar no recém-criado programa baiano, onde havia chances sólidas de tirar o fóssil da abundante bacia do Recôncavo e, ao mesmo tempo, focar nas duas principais bacias sedimentares que conseguira mapear melhor — a do Solimões, no Amazonas, e a do Paraná, no Sul do país. Link já colecionava alguns insucessos, como uma perfuração no Sergipe que não tinha achado nenhum resquício de petróleo, como contou um ex-funcionário da equipe dele à Folha de S. Paulo em 2003. Foi puro azar, porque, anos depois, muito perto dali se estabeleceria o maior campo terrestre da Petrobras no Brasil: o de Carmópolis, vendido à espanhola Carmo Energy em 2021. Norman Gall lembra que o petróleo brasileiro recebia atenção mundial em meados dos anos 1950, muito por conta do imaginário de que o país possuía grandes bacias repletas de petróleo intocado. “Os jornais norte-americanos me pediam constantemente para acompanhar o que ele estava fazendo na Petrobras e, principalmente, se ele tinha achado alguma coisa”, relembra aos risos. Nos anos seguintes, porém, os problemas foram tomando conta da mesa de Link. O diagnóstico era que as bacias estavam em regiões de difícil acesso, sobretudo na Amazônia, o que dificultaria o escoamento da produção e a logística dos equipamentos. Ele chegou a destinar 60% dos recursos do seu departamento para a exploração do Solimões, mas havia outro entrave ainda mais grave para seus planos: a falta de tecnologias e, principalmente, de técnicos qualificados para avançar no projeto – o que o geólogo procurou resolver criando centros de pesquisa e treinamento dentro da própria Petrobras. Interlocutores da empresa ouvidos pela BBC News Brasil se repetem em dizer que esse é o legado mais evidente de Link, conclusão que aparece também nas memórias de Carlos Walter Marinho Campos, ex-diretor de Exploração da companhia – que o homenageou dando seu sobrenome à bacia que hoje se estende do Rio de Janeiro ao Espírito Santo. “Ele deixou em nós a mentalidade, mas também os procedimentos necessários de uma indústria petrolífera”, escreveu. Os ânimos mudaram em junho de 1959, quando Link apresentou um artigo técnico em um congresso global de energia, em Nova York, nos EUA, contando ao mundo que o Brasil só possuía uma única bacia de onde se podia tirar petróleo para vender e consumir: a do Recôncavo baiano, com capacidade de mais de 1 bilhão de barris. No debate com os especialistas presentes, ele também reclamou da falta de instrumentos, tecnologia e de mão de obra. “Eu não sei de onde o petróleo vem, mas nós acreditamos, ou desejamos, que o que temos chamado de xisto de Ponta Grossa, acima de Furnas e abaixo de Itararé, seria o lugar mais provável para encontrá-lo. (...) Se nós tivéssemos estrutura acho que também acharíamos algo na bacia do Paraná. Devo admitir que estamos absolutamente perplexos sobre o que fazer”, afirmou Link, segundo os autos do encontro. Assim que o leram, os outros diretores da Petrobras ficaram estarrecidos. “Imagina você dizer à comunidade internacional, em um momento de corrida intensa, que o Brasil não tinha quase petróleo nenhum? O impacto político foi imediato – e o econômico era questão de tempo”, observa Drielli Peyerl. Walter Link, no entanto, já não vislumbrava sua permanência na Petrobras. A imprensa seguia questionando seus vencimentos altos – de cerca de 125 mil cruzeiros mensais (aproximadamente R$ 45 mil em valores atualizados) –, enquanto a empresa sofria pressões políticas por manter um quadro estrangeiro com poder significativo de decisão. A acusação mais contumaz era que Link era um infiltrado das petrolíferas norte-americanas que haviam herdado a estrutura da Standard Oil – a Exxon e a Mobil. Estava no rol dos “entreguistas”, mas disfarçado. O que definiria a passagem do geólogo no Brasil, porém, viria a seguir: um documento de cerca de dez páginas que Walter Link entregou, em meados de 1960, nas mãos do então presidente da Petrobras, o coronel do Exército Idálio Sardenberg. Conhecido imediatamente pelo símbolo inequívoco do seu sobrenome, o Relatório Link era uma análise técnica assinada por ele e outros 14 técnicos da companhia em que se dizia objetivamente que o Brasil deveria parar de procurar petróleo em bacias sedimentares (onshore), onde não encontraria muita coisa, porque elas eram geologicamente muito antigas, e “investir em plataformas continentais” ou, em outras palavras, no mar. Link e seu time ainda sugeriam que a empresa investisse na exploração e produção de petróleo em outros países do continente sul-americano. À época, Equador e Venezuela já eram potenciais nomes regionais do setor. “O documento teve impacto também porque Link escreveu de forma direta: ‘as bacias sedimentares brasileiras não apresentam indícios de produção em larga escala de petróleo e as pesquisas precisam ser redirecionadas para o mar”, revela Drielli Peyerl. “Na verdade, ele não aguentou tanto descontentamento e pressão: mesmo com gente de dentro da Petrobras pedindo para ele ficar, ele resolveu partir. Não teria clima ainda que quisesse. No dia do embarque, muita gente foi ao aeroporto fotografá-lo indo embora.” “Como o conheci, imagino que ele estava aliviado. Apesar da pressão que recebeu, ele era muito honesto. O relatório é uma prova disso, já que ele foi contratado para apresentar justamente uma conclusão contrária” completa Norman Gall, que escreveu reportagens sobre a crise envolvendo o geólogo e o Brasil ao longo dos anos 1960. O Relatório Link foi publicado pelos jornais brasileiros e repercutiu na imprensa internacional dias após surgir na mesa de Sardenberg, não sem endossarem as críticas que o geólogo e a Petrobras recebiam pela presença dele na estatal. Mais do que isso, o documento trouxe à tona novamente o velho “problema do petróleo”. Sardenberg precisou ir à Câmara, semanas depois da partida, explicar a um grupo de deputados que o relatório era “sumamente pessimista” e que continha um erro estrutural: olhava para a produção petrolífera brasileira “de um ponto de vista comercial”. “Mas a Petrobras não concorda com essa opinião, pois para o Brasil o problema do petróleo é de interesse nacional e não comercial”, disse ele à época. Ainda assim, o “problema do petróleo” escalou tanto que, em meados do ano seguinte, se metamorfoseou em uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara dos Deputados. “Talvez tenha sido a primeira crise da história da Petrobras”, sugere Peyerl. De fato, em fevereiro de 1961, ainda antes da CPI, Sardenberg foi preso acusado de ato de indisciplina contra Jânio Quadros, depois de criticar publicamente o então presidente do país em meio a uma discussão sobre a situação financeira da companhia. Ele passara os meses anteriores se explicando sobre a quantidade de barris que o Brasil produzia e o quanto essa margem podia aumentar. Foi seu substituto, Geonísio Barroso quem expressou de forma mais inequívoca o tamanho do impacto do Relatório Link sobre a Petrobras. Chamado para depor na CPI em maio de 1961, ele disse que o documento criou um “clima emocional” pesado dentro e fora da empresa e que, para aplacá-lo, havia ordenado a realização de novos estudos que provassem as previsões “excessivamente pessimistas” de Walter Link. No final, as pesquisas contratadas reforçaram a tese do geólogo. O próprio Link foi perguntado, na ocasião, sobre a crise – e respondeu enfático. “Não é o petróleo o grande problema do Brasil. É a política”, disse ao jornal carioca Última Hora. “Na verdade, ele nunca ficou muito amargurado com essa história. Amava muito o Brasil, assim como muitos outros norte-americanos daquele tempo”, relembra Gall. Drielli Peyerl encontrou recentemente cartas que Link trocou com colegas brasileiros depois de voltar para os Estados Unidos. Em uma delas, enviada em março de 1962 para o paleontólogo Frederico W. Lange, ainda lotado na Petrobras, ele questionava a si mesmo se o esforço que havia feito durante a década anterior surtira algum efeito. “Eu sempre senti que você teria problemas quando eu fosse embora, mas nunca imaginei que, em tão pouco tempo, a empresa completaria seu ciclo e retornaria para o velho regime da CNP”, escreveu, citando a instituição que dera origem à companhia e que insistia em procurar petróleo onshore. “O sangue, o suor e, sim, até algumas lágrimas, foram derramados por nada”. A desilusão tinha sentido e objeto: naquele mesmo mês, a Petrobras usara a descoberta de novas áreas de exploração na Bahia para criticar nomeadamente as previsões do geólogo, dizendo que os achados as contrapunham. Na entrevista coletiva de anúncio da novidade, o então presidente da empresa, Francisco Mangabeira, disse que as bacias baianas superavam o que estava no Relatório Link e, mais do que isso, que, “se a Petrobras tivesse seguido as recomendações daquele relatório, já teria abandonado os trabalhos de exploração em outros Estados”. Em outra correspondência, de maio de 1963, também remetida a Frederico Lange, Link ainda se mostrava preocupado com a crise que seu prognóstico causou no Brasil. “Você não sabe o quanto eu lamento que tudo tenha acontecido do jeito que aconteceu. Eu esperava, para o seu bem e para o bem do seu país, que algo muito construtivo e duradouro pudesse ser criado a partir da coisa toda”. Naquele ano, em paralelo às investidas no território (com a descoberta de Carmópolis em 1963, no Sergipe, que ajudou a acalmar os ânimos políticos), a Petrobras já admitia internamente seguir o conselho de relatório de Walter Link e começar a procurar petróleo offshore. Em 1968, quando finalmente o encontrou no litoral do Sergipe, usava uma plataforma arrendada da Zapata Drilling Company. O poço estava a 28 metros de profundidade. Demoraria mais quase duas décadas para a previsão se concretizar totalmente: em setembro de 1984, a estatal anunciou a descoberta do primeiro poço de petróleo brasileiro em águas profundas (mais de 300 metros), no campo de Albacora, na bacia de Campos (RJ). O pré-sal, símbolo da autossuficiência brasileira no fóssil, é de 2008. Mas Link não pôde usufruir do reconhecimento: em 1982, ano em que receberia a maior honraria da profissão, o Sidney Powers Memorial Award, medalha concedida pela Associação Americana de Geólogos de Petróleo (AAPG, na sigla em inglês), ele morreu em sua casa, em Indiana. O Brasil, por sua vez, se consolidou como um explorador offshore. Hoje é o nono maior produtor de petróleo do mundo, com 3,2 milhões de barris de petróleo por dia. Segundo os dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), quase a totalidade (98%) deles saem do mar.
2023-10-24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cx0e5v2pzj5o
brasil
Narcomilícias no Rio: os fatores que acirram a disputa na zona oeste da cidade
A zona oeste do Rio de Janeiro vive nesta segunda-feira (23/10) mais um episódio dos violentos confrontos de grupos criminosos com a polícia ou entre si pelo domínio da região. Quase 30 ônibus, em diferentes pontos da zona oeste, foram alvos de incêndios criminosos e levaram a capital fluminense ao "estágio de mobilização" — quando há riscos de ocorrências de alto impacto na cidade. Os incêndios teriam sido provocados por criminosos em represália à morte de Matheus da Silva Rezende durante troca de tiros com agentes, também nesta segunda. Conhecido como Faustão ou Teteu, ele era sobrinho de Zinho, chefe de uma das principais milícias da região. O governador do Rio, Cláudio Castro (PL), afirmou em entrevista coletiva no início da noite de segunda que Matheus foi morto em uma operação da Polícia Civil — cujas unidades e agentes Castro parabenizou por "neutralizarem um dos maiores criminosos da atualidade do Rio de Janeiro". Segundo o jornal O Globo, Faustão era considerado o segundo homem na hierarquia da milícia e seria o principal encarregado nas disputas entre bandos rivais na zona oeste. Fim do Matérias recomendadas Para a polícia, já não há mais distinção entre milícia e tráfico, porque ambos imitam os "modelos de negócio" um do outro — o que pode ter sido um motor para a escalada de mortes e outros crimes violentos na área nos últimos meses. O Comando Vermelho (CV), facção criminosa originalmente focada no tráfico de drogas, agora se alia a milicianos da zona oeste pelo controle de comunidades na região. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ter o domínio da área significa poder explorar o comércio ilegal de drogas e de produtos e serviços, como a venda de gás de botijão, acesso à internet, transporte por van e outros — agora feito por milicianos e traficantes, indistintamente. Segundo a Polícia Civil, as armas furtadas dos militares provavelmente seriam usado na disputa pelo controle territorial de favelas da região que ocorre há mais de um ano e meio. Na disputa em que o armamento do Exército seria usado está uma narcomilícia da Gardênia Azul agora aliada ao CV. Foi no bairro que foram encontrados mortos quatro suspeitos da chacina de três médicos de São Paulo no dia 5 de outubro. A execução teria sido ordenada pela cúpula do CV, de acordo com a polícia, porque a ação não atingiu o seu objetivo, a eliminação de um rival, e chamou a atenção para as atividades na região. A Polícia Civil afirma que sua principal linha de investigação é a de que um engano causou o ataque com as mortes dos ortopedistas Diego Ralf Bonfim, irmão da deputada federal Sâmia Bonfim (PSOL-SP), Marcos de Andrade Corsato e Perseu Ribeiro de Almeida, além de ferimentos graves no também médico Daniel Proença. Perseu teria sido confundido com Taillon Barbosa, um miliciano rival dos autores da chacina, e que foi recentemente solto da prisão. Os quatro médicos bebiam em um quiosque na calçada oposta ao Hotel Windsor, onde estavam hospedados para um congresso de ortopedia. Esse conflito entre grupos criminosos gerou nos últimos meses uma escalada de mortes e outros casos violentos na área. Os efeitos já aparecem nas estatísticas de violência. Um levantamento do Instituto Fogo Cruzado apontou que, de 1° de janeiro até 12h de 20 de outubro de 2023 (quando a contagem foi encerrada), ocorreram na zona oeste carioca: Em comparação, a zona sul, a mais rica do município, registrou, no mesmo período: "As disputas na região explodiram após a morte do Ecko (Wellington da Silva Braga), chefe da principal milícia, em junho de 2021", afirma o Instituto Fogo Cruzado em texto sobre o levantamento. "O irmão dele, Zinho [Luiz Carlos da Silva Braga], e um ex-aliado, Tandera [Danilo Dias Lima], passaram a disputar bairros. Com a milícia fragilizada, o Comando Vermelho passou a tentar tomar as áreas. A disputa em Jacarepaguá [zona oeste do Rio] é uma das mais críticas.” Segundo Carlos Nhanga, coordenador regional do Fogo Cruzado, a disputa entre esses grupos na zona oeste do Rio não começou agora, mas se intensificou pela entrada de novos atores na disputa pelos territórios. “Antes, era dominado por uma milícia”, afirma ele. “Hoje, tem facções do tráfico entrando. A morte do Ecko gerou um novo cenário. Não existe vácuo de poder. Determinadas ações [como a morte do antigo chefe da milícia] têm consequências, pelos dados históricos do Rio de Janeiro.” O pesquisador Daniel Hirata, do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF), diz que as mortes violentas na região de Jacarepaguá e Barra da Tijuca afetaram os indicadores gerais de violência do Sudeste e do país. Segundo o Monitor da Violência do G1, os homicídios caíram 3,4% no Brasil no primeiro semestre de 2023, em comparação com o mesmo período do ano passado. A queda se deu em quase todas as regiões. E o exceção foi o Sudeste, onde os assassinatos cresceram. Na região, o maior aumento ocorreu justamente no Rio de Janeiro: 17,3%. “Os dados de 2022 e 2023 mostram que tivemos uma reversão da tendência nacional no Sudeste, que foi afetada pelo Rio”, diz ele. “E quando olhamos, vemos que o aumento se deu mais na zona oeste da capital e em alguns municípios da Baixada Fluminense.” A maior milícia do Rio, então chamada de Liga da Justiça começou a atuar há pelo menos 15 anos dizendo que tinha o objetivo de combater o avanço do tráfico de drogas. A organização criminosa foi criada por policiais que expulsaram traficantes e dominaram bairros da região. Policiais civis e militares, bombeiros, guardas municipais e integrantes da Forças Armadas, além, de criminosos comuns, integravam o bando. Em alguns casos, tiveram apoio de moradores. A quadrilha cobrava, por meio de intimidação e violência, taxas ilegais de moradores e comerciantes, a pretexto de combater o crime. Os milicianos também impunham a venda de produtos, como gás em botijão e água mineral, e serviços, como acesso clandestino à internet, TV a cabo pirata e transporte por vans. Com o tempo, transformaram o domínio em poder político e conquistaram mandatos parlamentares. O modelo foi replicado em outros bairros por outros criminosos. Os chefes do grupo criminoso original, segundo a Polícia Civil, eram Natalino Guimarães, que se elegeu deputado estadual, e seu irmão, Jerônimo Guimarães, o Jerominho, que foi vereador na capital fluminense. Com base eleitoral no bairro de Campo Grande, ambos sempre negavam ter ligações com o crime ou qualquer atividade ilegal. Natalino foi preso ainda no mandato, ao qual renunciou. Depois de cumprir dez anos de cadeia por vários crimes, entre eles o de formação de quadrilha, os dois desistiram das carreiras parlamentares, embora tentassem influir na política. Cumpriram suas penas e foram soltos. Jerominho foi morto a tiros em agosto de 2022, em um ataque a tiros na rua durante o dia. Na época em que os irmãos Guimarães estavam na cadeia, a chefia da Liga da Justiça foi assumida por Carlos Alexandre da Silva Braga, o Carlinhos Três Pontes. Policiais atribuem a ele a entrada da milícia da zona oeste do tráfico de drogas. Três Pontes foi morto pela polícia em abril de 2017. Seu irmão, Ecko, assumiu o comando da Liga. Ele expandiu os negócios e se tornou o criminoso mais procurado do Rio de Janeiro. O nome do grupo foi mudado para Bonde do Ecko. Ecko foi morto durante uma operação policial em 2021. A quadrilha, então, passou a ser comandada por um irmão de Ecko e Três Pontes: Luiz Carlos da Silva Braga, o Zinho. Mas o bando rachou. A dissidência é chefiada por Danilo Dias Lima, o Tandera, que era aliado de Ecko. Os dois grupos começaram a guerra pela zona oeste, há mais de um ano, com assassinatos, tiroteios e destruição de vans controladas pelos rivais. Com a entrada de traficantes de outros bairros, o confronto se agravou. A facção Comando Vermelho investiu no conflito. São dela os criminosos que se aliaram aos narcomilicianos da Gardênia Azul, origem dos algozes dos médicos. Antiga zona rural do Rio de Janeiro, a zona oeste concentra a maior parte da população da cidade. É uma área de urbanização relativamente recente, acelerada a partir dos anos 1980 — uma fronteira urbana. Algumas características da região ajudaram no desenvolvimento dos grupos criminosos. O modelo de negócios dessas quadrilhas, a partir do domínio territorial armado, focava loteamentos, compra e venda de imóveis e oferecimento de serviços de infraestrutura. "Tudo estava por ser feito na zona oeste", explica Hirata. "As milícias intermediavam." Outro fator que impulsionou esses grupos criminosos foi que boa parte dos investimentos feitos para os grandes eventos nos anos 2010 — Copa do Mundo, Olimpíada, Jornada Mundial da Juventude — se deu na zona oeste, observa o pesquisador. Isso levou à valorização acelerada dos imóveis situados naquela região, o que favoreceu os milicianos. No mesmo período, a política de Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), de atuação comunitária para desarticular quadrilhas, não focou na área. Quase todas foram instaladas em áreas de tráfico — apenas uma, no Jardim Batam, foi montada na zona oeste. "A zona oeste se tornou mais homogeneamente miliciana", diz Hirata. "Agora tem a disputa ali. Depois da morte do Ecko, houve uma disputa pela sucessão, ainda em curso, pelo Zinho, Tandera e outros. Isso ajuda a entender o caso dos médicos." A Polícia Civil do Rio afirma que tem feito um trabalho intenso de combate aos milicianos da zona oeste, o que teria desestabilizado os grupos criminosos daquela região. Enfraquecidas, menores e mais capilarizadas, as milícias, segundo a corporação, teriam procurado alianças com traficantes. As ações dos criminosos na região, de acordo com a Secretaria de Polícia Civil, são monitoradas de várias formas. Agentes da Subsecretaria de Inteligência, da Delegacia Repressão a Entorpecentes (DRE) , da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas e Inquéritos Especiais (Draco) e também de delegacias locais acompanham as ações dos suspeitos. Segundo a Polícia, isso resultou na “neutralização” e prisão de criminosos, além de ações contra fontes de recursos dos criminosos. O prejuízo teria chegado a R$ 2,5 bilhões em dois anos. Por nota, a Secretaria de Polícia Militar informa que a corporação “vem empreendendo esforços no combate à criminalidade”, segundo o texto “com ações de inteligência, pautadas por critérios técnicos e pelo previsto na legislação vigente, tendo como preocupação central a preservação de vidas”. “Os dados relativos à letalidade nos últimos meses estão diretamente ligados às disputas territoriais entre grupos criminosos rivais, principalmente na zona oeste da cidade do Rio”, diz a PM na nota. “Nesse contexto, a corporação destaca as incessantes ações conjuntas com a Secretaria de Estado de Polícia Civil para estabilizar as localidades, assim como para localizar e retirar de circulação os marginais envolvidos em tais mobilizações.” Segundo a nota, desde o início de 2023 “a Polícia Militar prendeu quase 25 mil pessoas, apreendeu quase 3.200 adolescentes, mais de 4.600 armas de fogo e 389 fuzis foram retirados das ruas”.
2023-10-23
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cprxe45xzrpo
brasil
Com Bolsa Família 'turbinado', número de negros na pobreza ainda é o triplo de brancos
Isso significa que três em cada quatro brasileiros na pobreza ainda serão negros, comparado a uma participação de 56% de pretos e pardos no total da população, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). "Quando você tem uma população que sofre com certas desigualdades que são questões sociais históricas, no momento que você trata essa população de forma igual, do ponto de vista de políticas públicas, você está dando um tratamento desigual", diz Luiza Nassif-Pires, diretora do Made-USP e uma das autoras do estudo, ao lado de Amanda Resende, João Pedro Freitas e Gustavo Serra. Fim do Matérias recomendadas Conforme a economista, para populações desiguais, são necessárias ações focadas, como as políticas de ação afirmativa para ampliar o acesso da população negra à educação. No estudo Do Bolsa Família ao Brasil sem miséria? Duas décadas de luta pela universalização da cidadania, os pesquisadores do Made-USP calcularam os impactos da política social nas taxas de pobreza e extrema pobreza ao longo das duas décadas de existência do programa – de 2003 a 2023. Para isso, consideram as linhas de pobreza e extrema pobreza do Banco Mundial, utilizadas também pelo IBGE: US$ 5,50 e US$ 1,90 por dia, respectivamente. Considerando a Paridade de Poder de Compra (PPC) entre as duas moedas e descontando a inflação medida pelo IPCA (índice de inflação oficial do país), para junho de 2023, esses valores são equivalentes a R$ 536 mensais por pessoa para pobreza e R$ 185 para extrema pobreza, calculam os economistas. Para fazer a análise, os pesquisadores usaram a antiga Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) anual do IBGE para os anos de 2003 a 2015 e a atual Pnad Contínua entre 2012 e 2023 – realizada mensalmente em uma amostra de domicílios, a pesquisa recolhe dados sobre emprego e renda da população, entre outros indicadores socioeconômicos. Em média, o programa reduziu a taxa de pobreza em apenas 0,66 ponto percentual (p.p.) por ano entre 2003 e 2015 e em 0,89 entre 2012 e 2019, mostram os pesquisadores no estudo. Em comparação, o Auxílio Emergencial, o Auxílio Brasil e o novo Bolsa Família – todos programas com valores de transferência mais altos – impactaram a redução da pobreza respectivamente em 4,98 p.p. (para a média dos anos 2020 e 2021), 3,58 p.p. (em 2022) e até 5,04 p.p. em 2023. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "O Auxílio Emergencial e o Auxílio Brasil retiraram, em média, 9,9 milhões de pessoas da pobreza por ano de 2020 a 2022 e o novo Bolsa Família tem o potencial de retirar 10,7 milhões de pessoas da pobreza em 2023, em contraste com 1,8 milhão de pessoas por ano resgatadas dessa situação pelo Bolsa Família entre 2012 e 2019, em média", destacam os economistas. Os autores observam que parte do resultado surpreendentemente modesto encontrado para o efeito do Bolsa Família sobre a taxa de pobreza até 2019 se deve às linhas de pobreza escolhidas no levantamento. Outros estudos que avaliaram esse mesmo efeito no passado e apontaram resultados ligeiramente melhores usaram linhas de pobreza mais baixas, destacam os economistas. Mas não é só isso. Como o efeito dos programas posteriores revela, o baixo valor do Bolsa Família também limitou durante anos que o programa tivesse um impacto maior em reduzir as taxas de pobreza – ainda que tenha servido para aliviá-la, além de reduzir os diferenciais de pobreza entre homens e mulheres e entre brancos e negros, conforme também mostra o estudo do Made-USP. "O Bolsa Família começa como um programa muito mais tímido e assim tem efeito menor na pobreza", observa Nassif-Pires. "Ele ganha ímpeto nos últimos anos, com o Auxílio Emergencial e sobretudo com o novo Bolsa Família, que tem um efeito muito grande, de uma redução quase histórica da taxa de pobreza graças a ele." A economista observa que outros fatores contribuíram para a redução da pobreza nesses 20 anos, como o crescimento da economia e do emprego até 2014, os aumentos do salário mínimo acima da inflação e o próprio efeito multiplicador do programa de transferência de renda na economia. Assim, o Made-USP estima que 82 milhões (47%) de brasileiros viviam na pobreza em 2003 e quase 25 milhões (14%) na extrema pobreza. Em 2023, esses números devem ser reduzidos a 45 milhões (21%) e 3 milhões (1,4%), respectivamente. Sem o novo Bolsa Família, seriam 56 milhões na pobreza (26%) e quase 18 milhões (8,3%) na extrema pobreza este ano, calculam os economistas. "Historicamente, sempre houve muita resistência ao programa Bolsa Família", diz Nassif-Pires. "Era um programa que representava um gasto pequeno em termos de percentual do PIB e com um benefício de valor muito baixo nos seus primeiros anos, então não tinha como ter um efeito muito grande, mas combinado a outras políticas, conseguimos uma saída de pessoas da pobreza." A diretora do Made-USP observa, porém, que houve uma mudança nos anos recentes, sobretudo durante a pandemia, com uma visão mais favorável da opinião pública quanto aos programas de transferência de renda no mundo todo. Assim, com um benefício agora mais robusto (de R$ 600 mais valores variáveis por criança), o programa finalmente deve chegar próximo de erradicar a extrema pobreza no país, projeta. Ainda assim, críticas ao programa ainda existem. O Banco Mundial, por exemplo, divulgou em setembro uma nota técnica defendendo um novo modelo para o programa, com o pagamento de R$ 150 por membro da família, mais R$ 150 por criança ou jovem de até 18 anos. O banco considera que esse modelo seria mais equitativo e reduziria os custos do governo federal com o programa. Ela defende um modelo em que, ao invés de um valor fixo, as famílias recebam uma complementação de renda até alcançarem o valor da linha de pobreza. E um bônus para as famílias que consigam uma renda do trabalho. Outros críticos ao programa em seu modelo atual apontam ainda que ele favorece o desmembramento artificial de famílias para ter acesso a mais benefícios, problema que o governo tem tentado resolver com uma revisão do cadastro que tem levado ao cancelamento de milhares de pagamentos considerados indevidos. Para os pesquisadores do Made-USP, o aumento do valor e redesenho do Bolsa Família foram passos importantes na melhoria do programa. Mas é preciso mais, dizem os estudiosos, sobretudo para atender à demanda dos grupos mais atingidos pela vulnerabilidade financeira: as mulheres e os negros. Além das políticas de ação afirmativa, combate ao racismo e reparação histórica voltadas à população negra, Nassif-Pires destaca também a necessidade de políticas de cuidado, para que mais mulheres – e especialmente as mulheres negras – possam acessar o mercado de trabalho, obtendo assim um patamar de renda maior para suas famílias. São medidas como ampliar a oferta de creches, de instituições e serviços de cuidado para idosos e pessoas com deficiência, de ensino infantil em tempo integral, entre outras. "O racismo sustenta o país de tantas formas que as pessoas nem percebem, que você não consegue resolver o problema do racismo sem resolver outros problemas também", diz a diretora do Made-USP, ainda comentando o fato de os negros serem 71% dos pobres e 75% dos extremamente pobres, mesmo após o aumento do orçamento do Bolsa Família de cerca de R$ 30 bilhões por ano para R$ 175 bilhões em 2023. Nassif-Pires dá o exemplo da mulher branca que está no mercado de trabalho, se sente sobrecarregada, ganha menos do que um homem e é responsável pelos cuidados do lar. Essa mulher contrata uma pessoa negra pagando pouco e nem pensa sobre sua posição de privilégio, diz a professora da Unicamp, por sofrer com outros desfavorecimentos nesta cadeia de relações sociais. "É essencial pensarmos numa política de cuidado", defende a economista. Ela lembra que um Plano Nacional de Cuidados está sendo discutido pelo governo federal desde maio, quando foi criado um grupo de trabalho interministerial sobre o tema. "Considero esse plano essencial para começarmos a desconstruir o racismo, pois atualmente a crise do cuidado é solucionada em cima de discriminação de gênero e raça. São os dois pilares que sustentam a economia do cuidado no Brasil, então você não destrói o racismo sem dar uma solução para a crise do cuidado", argumenta a pesquisadora. Para Nassif-Pires, também é preciso garantir que o Bolsa Família agora ampliado em valor não se torne a única política de combate à pobreza, em meio às restrições orçamentárias impostas pelo novo arcabouço fiscal (conjunto de regras para limitar o gasto público e evitar o crescimento descontrolado da dívida pública, que substituiu o antigo teto de gastos). O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem argumentado que o arcabouço fiscal possibilita a volta dos mais pobres ao Orçamento e garante mais espaço para investimentos públicos. Enquanto economistas de perfil mais fiscalista dizem que o controle fiscal de alguma maneira protege os mais pobres, que são os mais afetados pela inflação resultante de uma situação de desconfiança do mercado com relação à capacidade do governo de honrar suas obrigações. A professora da Unicamp discorda, no entanto, desta interpretação. "O novo arcabouço fiscal é uma política de austeridade e coloca em xeque a possibilidade de continuidade de políticas públicas essenciais, por exemplo, o piso constitucional para despesas com saúde e educação", diz Nassif-Pires. "A Constituição não cabia no teto de gastos e continua não cabendo no novo arcabouço fiscal. Então eu tenho um pé atrás antes de comemorar que estamos mudando aquela visão negativa sobre o Bolsa Família. Vejo isso com cautela e medo de que ele se torne a única política pública."
2023-10-23
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn036x357eyo

Dataset Card for "bbc_news_ptbr"

More Information needed

Downloads last month
10
Edit dataset card