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brasil
Como disputa sobre linguagem neutra virou guerra cultural no Brasil
Quando anunciou no Instagram no fim de junho que ainda estavam disponíveis "últimes entrades" para um show, o cantor Djavan sofreu duras críticas. Imaginando que o músico havia alterado o final das palavras para neutralizar o gênero delas, muitos o ridicularizaram nas redes sociais. "Mais fácil aprender japonês em braile", escreveu um comentarista, citando uma letra célebre do cantor alagoano. Alguns então esclareceram que aquele show de Djavan seria em Barcelona - e que o post fora escrito na língua local, o catalão. "Últimes entrades", em catalão, significa "últimas entradas". Era tarde demais. Djavan já havia sido arrastado para uma das grandes batalhas culturais do Brasil atual: a batalha em torno do que vem sendo descrito como "linguagem neutra", ou "linguagem não binária". Fim do Matérias recomendadas Apresentado pelo repórter João Fellet, o podcast trata de diferentes conflitos sociais que têm sido vividos pela sociedade brasileira em campos como gênero, religião e cultura. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Há décadas, muitas mulheres denunciam o que consideram um viés masculino na linguagem. Esse movimento fez com que hoje muitos evitem termos masculinos para se referir a grupos de pessoas de gêneros distintos. Por exemplo: em vez de usar os termos "médicos" ou "professores" para se referir a coletivos de pessoas, essas pessoas optam pelas expressões "a classe médica" ou o "corpo docente". Mas a busca por uma linguagem mais neutra só se tornou realmente controversa quando foi associada a uma proposta de mudança mais radical - e que foi abraçada principalmente por parte da esquerda. A ideia era abrir espaço na língua para pessoas que se declaram não binárias, pois não se identificam como homens nem como mulheres, podendo também se identificar com as duas categorias ao mesmo tempo. Para isso, seria preciso alterar o final das palavras pra neutralizar o gênero delas. Alguns propuseram que essa metamorfose se desse pela substituição da letra “o” no final das palavras pela letra “x”, e outros sugeriram o emprego da @. Outros ainda defenderam o uso da letra “e” - que é a fórmula que tem prevalecido. Foi assim que surgiram termos como "todes" e "bem-vindes". Mas nem todos acharam as propostas bem-vindas. O site da Câmara dos Deputados lista 25 projetos de lei em tramitação que são contrários ao uso da linguagem neutra em escolas e/ou concursos públicos. Os primeiros projetos surgiram em 2020. Desde então, o interesse dos deputados pelo tema vem crescendo. Só nos seis primeiros meses de 2023 foram apresentados dez projetos relacionados ao assunto. A maioria das propostas é de deputados aliados de Jair Bolsonaro. “O conceito de 'linguagem neutra' é fruto da ideologia de gênero, a qual ensina que o sexo biológico não é o suficiente para definir a sexualidade humana. Sendo que meninos podem ser meninas e meninas podem ser meninos", diz a justificativa de um projeto de lei contra a linguagem neutra da deputada federal Dani Cunha, do União Brasil do Rio de Janeiro. A deputada diz ainda que, se a linguagem neutra for ensinada nas escolas, "estaria se dizendo para os jovens que o gênero é uma abstração social e que esse jovem pode escolher o que ele quer ser à mercê das próprias vontades". Os argumentos para o projeto de lei mostram como o debate sobre a linguagem neutra se relaciona com outra batalha cultural em curso: o embate entre gênero e sexo como o que determina oficialmente se alguém é um homem ou uma mulher. A partir de 1960, com o surgimento da segunda onda do feminismo, alguns grupos começam a questionar as noções tradicionais de gênero e sexo. Segundo os adeptos dessas ideias, o gênero é uma construção social e deve ter primazia sobre a biologia. Para esse grupo, gênero é algo relacionado a um senso pessoal de identidade: pode ter a ver com as roupas que a pessoa gosta de vestir, com os trejeitos que usa para se expressar ou outros códigos sociais que são normalmente associados a um gênero ou outro. É uma visão que gera discussões acaloradas entre as próprias feministas e que se choca com a noção histórica de que o gênero é determinado pelo sexo biológico e pela composição dos cromossomos de cada um. Numa audiência em 2021 que debateu outro projeto de lei contra a linguagem neutra em materiais didáticos em escolas, proposto pela deputada Chris Tonietto (PL-RJ), o embate entre gênero e sexo também foi evocado. Presente na audiência, o escritor Sidney Luiz Silveira da Costa disse que o projeto de lei em discussão buscava impedir pessoas de "torcer a língua para fazê-la dizer o que ela não diz naturalmente porque A, B ou C têm crises de identidade cromossômica". "Ninguém aqui está defendendo a imposição de nada, e sim apenas que a natureza siga seu curso, a natureza da língua", prosseguiu. Sidney Silveira é um dos mais ativos integrantes do movimento contrário à linguagem neutra. Nos últimos dois anos, ele foi convidado a falar sobre o tema nas Câmaras Municipais de Belo Horizonte e de Niterói, na Assembleia Legislativa do Rio e na Câmara dos Deputados em Brasília. Ele já foi descrito como um “intelectual católico” por Olavo de Carvalho, um dos gurus da direita brasileira. E, assim como Olavo, Silveira é monarquista, começou a carreira escrevendo para jornais e dá cursos sobre filosofia mesmo sem ter formação acadêmica na área. O escritor é formado em Comunicação e trabalhou vários anos como jornalista, mas hoje se define em sua página no Instagram como um “estudioso da escolástica”, uma corrente filosófica da Idade Média. Contatado pelo podcast Brasil Partido com um pedido de entrevista, ele não respondeu até a veiculação do episódio. Outra pessoa engajada no movimento contra a linguagem neutra é Tânia Manzur, professora de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Ela também já participou de audiências sobre o tema no Congresso. Manzur explica ao podcast Brasil Partido por que se envolveu com o assunto. "Porque a língua portuguesa é um patrimônio e eu vejo como uma necessidade de ser preservada das modas." Ela faz uma crítica bastante citada por opositores da linguagem neutra: a de que ela criaria dificuldades de comunicação para muitas pessoas. "Se a gente parte do pressuposto de que a linguagem neutra estaria incluindo as pessoas do grupo LGBTQIA+, eles, pela contagem mais recente, perfariam algo em torno de 3% da população brasileira. Mas o que essa linguagem neutra faria com os surdos que fazem leitura labial? Excluiria, e os surdos correspondem a mais ou menos cinco 5% da população brasileira", afirma. É frequente a queixa de que a linguagem neutra prejudicaria não só surdos que fazem leitura labial, mas também cegos que usam aplicativos de leitura e disléxicos, que são pessoas com dificuldade pra ler. O movimento pró-linguagem neutra reconheceu a pertinência dessas críticas no caso de cegos e disléxicos. Por isso, muitos ativistas hoje defendem que se use a letra “e” pra neutralizar o gênero das palavras, e não a letra “x” nem a @, que podem criar dificuldades na leitura. No caso dos surdos, a coisa é mais complexa. Há nas redes sociais vários surdos que expressam opiniões contrárias à linguagem neutra. Algumas dessas pessoas argumentam que a linguagem neutra realmente criaria problemas para os surdos oralizados - que são aqueles que leem lábios e fazem oralização pra se comunicar. Mas há divergências. Leo Viturinno, que é surdo, gay e professor de Libras, a Língua Brasileira de Sinais, diz ao podcast que surdos oralizados podem se adaptar perfeitamente à linguagem neutra, e que opositores dessa causa podem estar usando os surdos em seu ativismo. Pra ele, esses críticos deveriam expor suas opiniões sem mencionar pessoas com deficiência, porque não falam em nome delas. Se hoje predominam no Congresso propostas contrárias à linguagem neutra, em partes do Executivo e do Judiciário parece existir uma abertura maior à causa. No governo federal, alguns ministérios têm usado o termo "todes" na abertura de discursos e eventos oficiais. "Boa tarde a todas, todos e 'todes'", afirmou o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, na cerimônia em que assumiu o posto, em janeiro. O termo "todes" também já foi citado em eventos dos ministérios da Fazenda, Igualdade Racial e Direitos Humanos, entre outros. E, no Judiciário, uma decisão recente do Supremo Tribunal Federal pôs um freio às iniciativas legislativas contrárias à linguagem neutra. Em fevereiro, a corte considerou inconstitucional uma lei contra a linguagem neutra aprovada pela Assembleia Legislativa de Rondônia. A lei proibia as escolas de citar a linguagem neutra na grade curricular e em materiais didáticos. Ou seja, não era apenas uma questão de evitar que professores dissessem “bom dia a 'todes'”, mas de impedir que o tema fosse mencionado aos alunos. O relator da ação, ministro Edson Fachin, decidiu que a lei era inconstitucional porque legislar sobre normas gerais de ensino é uma atribuição da União, e não de Estados. Fachin também disse que proibir a linguagem neutra violaria a liberdade de expressão nas escolas e atentaria contra o direito à igualdade sem discriminações. O ministro também disse que “o direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade e a expressão de gênero”, e que cabe ao Estado reconhecer a identidade de gênero manifestada por cada pessoa. Engana-se quem pensa que, entre os linguistas, há uma posição unânime sobre a linguagem neutra. Se parte da categoria rejeita a causa, há também quem simpatize com ela na academia. Cecilia Farias, que faz doutorado em Linguística na USP, pertence ao segundo grupo. Pesquisadora sênior do Museu da Língua Portuguesa, ela diz acreditar que o tema mobilize tantas paixões por "mexer com as certezas das pessoas". Ela se refere principalmente a pessoas "que têm uma visão que separa o mundo por gênero, e uma visão biológica de gênero muito forte também, que atribui o papel masculino e o papel feminino como se fosse algo inerente àquela constituição física, sem pensar no quanto isso é social, na verdade". "Na hora que você questiona essas certezas, essas estruturas que as pessoas tomam há séculos como fundantes do mundo... Não custa nada falar um pronome tal, uma palavra com 'e' no final. Não vai cair minha língua, mas desestabiliza uma visão de mundo", opina. Farias rejeita o argumento de que a linguagem neutra seria uma ameaça ao idioma. "Uma língua que não muda é uma língua que já está morta. Qualquer língua que continuar sendo falada, ela vai continuar mudando." "Então, uma defesa de preservação da língua, de manter o nosso legado, é balela. É uma justificativa para não querer que o mundo mude, de certa forma." A BBC procurou o Ministério da Educação para saber a posição da pasta sobre o ensino da linguagem neutra e se existe algum levantamento que meça o quanto - e como - o tema tem sido abordado em escolas brasileiras. O diretor de Políticas e Diretrizes da Educação Integral Básica do MEC, Alexsandro do Nascimento Santos, afirmou ao podcast Brasil Partido que o ministério não tem nenhum levantamento medindo o uso da linguagem neutra nas escolas. Disse também que todas as diretrizes sobre o ensino da língua portuguesa nas escolas brasileiras foram estabelecidas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento que teve suas últimas versões aprovadas em 2017 e 2018, no governo Michel Temer. Segundo Santos, a BNCC orienta que os currículos da educação básica precisam discutir com os estudantes as diferentes formas de uso da língua. "O fenômeno social da linguagem neutra é mais um desses fenômenos que se manifestam nos usos da língua", diz o diretor do MEC. "Esses fenômenos precisam ser estudados na escola como objetos de conhecimento de uma ciência, que é a linguística (...) O que não significa dizer que haverá qualquer tipo de orientação sobre se este ou aquele fenômeno linguístico é mais correto ou menos correto", afirmou. Embora considere que os professores de português devam discutir a linguagem neutra com os alunos, o diretor do MEC defende que o ensino da língua nas escolas priorize a norma culta. "Porque talvez, para muitos estudantes, esse será o único lugar em que ele terá acesso a esse registro de variação linguística", justificou. Em vários países, o ativismo pró-linguagem neutra tem sido encabeçado pelo movimento queer. Queer é um termo que abarca várias identidades sexuais e de gênero. Por exemplo: um homem que sente atração por homens e mulheres mas só desenvolve relacionamentos com outros homens pode escolher se definir como queer por sentir que os termos gay ou bissexual não se aplicam fielmente a ele. Mas há vários outros motivos que podem levar alguém a se identificar como queer. Muitos nesse movimento acreditam que o gênero de alguém é construído no dia a dia pela maneira como nos comportamos, vestimos, gesticulamos e, principalmente, pela linguagem que nós usamos. Por esse raciocínio, quando chamamos uma pessoa de homem ou mulher, nós estaríamos ajudando a torná-la um homem ou uma mulher. Por isso que a linguagem é um ponto tão importante pro movimento queer: o movimento defende ajustes na língua para que pessoas que não se veem nem como homens nem como mulheres não sejam forçadas a adotar uma dessas identidades. Esse é um tema que mobiliza Pri Bertucci desde o início da década passada. Naquela época, Bertucci - que é uma pessoa não binária e se define como pertencente ao "gênero queer" - tentava adaptar para o português brasileiro propostas que o movimento queer dos Estados Unidos vinha fazendo para a língua inglesa. Bertucci então elaborou com a psicóloga Andrea Zanella o que chamaram de “Manifesto pela inclusão do gênero não binário na língua portuguesa”, publicado em 2015. O manifesto tinha duas propostas principais: a invenção do pronome "ile" para quem não se sentisse representado pelos pronomes “ele” e “ela”, e a substituição da letra “o” no final das palavras pela letra “e” como alternativa ao masculino genérico. "Meu desejo era provocar esse sistema linguístico e fazer uma marcação muito específica da existência de pessoas não binárias", diz Bertucci ao podcast Brasil Partido. "O desafio é como é que a gente tira as pessoas da zona de conforto sem perder os interlocutores nessa conversa", afirma. Mas a estratégia tem funcionado? Um simples “todes” pode gerar uma enxurrada de críticas nas redes sociais, e muita gente argumenta que a pauta não seria prioritária num país com tantas mazelas sociais. Além disso, políticos populares na direita têm usado o tema para mobilizar seus apoiadores. É o caso do deputado federal mais votado última eleição para o Congresso - o bolsonarista Nikolas Ferreira (PL-MG) -, autor de um dos vários projetos contra a linguagem neutra apresentados em casas legislativas em anos recentes. Será que o ativismo pró-linguagem neutra não poderia estar fortalecendo o campo político contrário à causa? "Eu acho que não fortalece", diz Pri Bertucci. "Isso é uma pauta da humanidade, não é uma pauta da direita ou da esquerda." Bertucci afirma que, quando começou a tratar do tema, 12 anos atrás, "não tinha quase ninguém querendo me ouvir". "Esse nível de crítica que a gente vê hoje, lá atrás era muito maior." Segundo Bertucci, seu movimento tem tido sucesso e busca os seguintes objetivos: "Em primeiro lugar, reconhecimento, inclusão. Eu quero fazer parte da sociedade, eu quero poder circular, pegar um voo, ir ao médico e ser 'reconhecide' por quem eu sou". "Não havíamos, enquanto sociedade, parado para pensar que essas pessoas existem, porque a colonização apagou as identidades não binárias dessa conversa." Quando cita a colonização, Bertucci expõe outra bandeira cara a uma parte do movimento queer. Para essas pessoas, a luta pra transformar a linguagem é parte de uma batalha bem maior: uma batalha contra leituras do mundo que o movimento considera binárias, e contra conceitos e convenções culturais que, segundo eles, se espalharam pelo planeta com o colonialismo. "Minha proposta é que sair da binaridade não só da questão linguística e de gênero vai abrir um novo portal de consciência para que a gente possa perceber o que está para além dessa polarização", afirma. Bertucci afirma que, hoje, boa parte da sociedade está presa a polarizações do tipo "preto ou branco, homem ou mulher, direita ou esquerda". "Mas existem outras camadas aqui, entre uma coisa e outra, que precisam ser examinadas. E, se a gente não parar e entender onde a gente está dentro desses processos, vai ficar muito difícil a gente criar uma sociedade um pouco mais sustentável, inclusiva e evoluída", defende.
2023-07-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw4v4dnm09lo
brasil
Reforma tributária avança: como ficam os impostos segundo a proposta
No primeiro turno, o texto-base recebeu 382 votos favoráveis e 118 contrários. Em segundo turno, foram 375 votos a favor, 113 contra e três abstenções. Ainda serão votados alguns destaques do texto na manhã de sexta-feira. A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) depois seguirá para o Senado. Lá, a votação deve ocorrer no segundo semestre do ano, após o recesso parlamentar, segundo afirmou o presidente da Casa, o senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Especialistas costumam falar que o sistema de arrecadação de tributos no Brasil é um dos mais complicados do mundo. Há muitas regras e muitas exceções. Para uma empresa, o simples ato de pagar um imposto no Brasil às vezes requer dezenas de advogados tributaristas. Como resultado, bilhões de reais são desperdiçados na economia brasileira por falta de eficiência. A reforma tributária está há décadas na pauta tanto do Executivo como do Congresso, mas sempre foi considerada muito complicada de ser aprovada. Em outros anos e outros governos, a prioridade foi dada para reformas consideradas igualmente fundamentais, como a da Previdência e a Trabalhista. Fim do Matérias recomendadas Considera-se que a discussão tributária é difícil porque há muitos interesses envolvidos. Governadores e prefeitos e determinados setores da economia, por exemplo, relutam em abrir mão de impostos e isenções. A reforma atual contempla a criação de alguns fundos de compensação a esferas que percam dinheiro. Mas Estados estarão impedidos de decidir sobre suas tarifas, o que deve pôr fim à chamada guerra fiscal. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Economistas dizem que o objetivo da reforma não é mudar a carga tributária brasileira — ou seja, após a reforma, os brasileiros acabariam pagando aproximadamente o mesmo valor em impostos que pagam hoje. O poder público seguiria arrecadando valores parecidos. Agora que o assunto foi colocado como prioritário pelo Executivo e pelo Congresso, a reforma está tramitando. Entenda abaixo o que é a proposta e como fica o sistema tributário. É importante lembrar que a reforma ainda está em análise na Câmara e depois seguirá para o Senado — portanto, os itens abaixo ainda podem sofrer mudanças substanciais. Os brasileiros pagam hoje cinco impostos que são alguns dos principais meios de arrecadação de todas as esferas do poder público: IPI, PIS e COFINS são impostos federais; ICMS e ISS são estaduais. Alguns desses impostos, como o IPI, não incidem diretamente na compra pelo consumidor, mas sim durante o processo de importação ou manufaturação. A PEC 45/2019 propõe substituir todos esses impostos por um só: o IVA, Imposto sobre Valor Adicionado. Esse imposto seria dividido em duas partes: Outro imposto criado é o Imposto Seletivo, que vai incidir sobre bens e serviço que provocam mal à saúde ou ao meio ambiente (como cigarros e bebida alcoólica). Os impostos serão cobrados no destino (local de compra ou consumo) e não mais na origem. Alguns impostos seguirão sendo cobrados: Haverá uma fase de transição para implementação da reforma, que vai durar de 2026 a 2032. Em 2026, haverá cobrança de 0,9% do CBS e 0,1% do IBS — alíquotas que serão usadas como teste inicial da reforma. Em 2027, PIS e Cofins serão extintos e entrará em vigor o IVA. A partir de 2029, haverá redução escalonada dos tributos estaduais e municipais (ICMS e ISS), com elevação gradual do IVA estadual e municipal. Em 2033, os impostos antigos serão extintos. Um dos pontos principais da reforma não está sendo discutido nesse momento: o valor das alíquotas de impostos. Ou seja, não se sabe quanto os contribuintes pagarão de impostos em cada tributo. Primeiro, o Congresso está trabalhando para aprovar uma reforma na Constituição brasileira que altera o sistema de tributos. As alíquotas serão discutidas posteriormente. O que foi aprovado nesta sexta-feira foram alíquotas de teste para a fase inicial da reforma. A proposta atual determina três tipos de alíquotas: uma padrão (de valor integral), uma alíquota reduzida e a alíquota zero. As duas últimas serão aplicadas em para produtos considerados de importante uso para a população — como alguns medicamentos e serviços de educação. Um dos objetivos dessas alíquotas diferenciadas é reduzir o custo de produtos da cesta básica. A reforma prevê que 180 dias depois de promulgadas as atuais mudanças na lei, o Congresso deverá reformular também outros aspectos do sistema de tributos, como o imposto de renda (para pessoas físicas e para pessoas jurídicas) e a cobrança de impostos sobre dividendos, que por ora ficam iguais.
2023-07-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/czr0jygngymo
brasil
'Reforma tributária pode ser Plano Real de Lula', diz economista Samuel Pessôa
A reforma tributária pode ser o “Plano Real” do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), tem dito o economista Samuel Pessôa, pesquisador do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas) e chefe de pesquisa econômica do Julius Baer Family Office. Ele faz referência à reforma econômica implementada no Brasil em 1994, durante o governo de Itamar Franco, que colocou fim a mais de uma década de hiperinflação, abrindo espaço para o país retomar sua trajetória de crescimento nos anos seguintes. “Acredito que não vai ter um impacto imediato tão grande quanto o Plano Real teve na pobreza. Porque, de fato, a inflação é o ‘pior imposto’: muito regressiva e afeta muito os mais pobres”, diz Pessôa. “Mas, se considerarmos uma janela um pouco mais longa no tempo – de 10, 15 anos –, o impacto sobre a produtividade e sobre a organização da economia é equivalente”, acrescenta. Pessôa é parte de um grupo de mais de 60 economistas que assinaram nesta semana um manifesto em defesa da reforma tributária. Numa demonstração da diversidade do apoio à mudança, o documento reuniu nomes como Laura Carvalho, que assessorou Guilherme Boulos em sua campanha à presidência pelo PSOL em 2018; Guido Mantega, ex-ministro da Fazenda de Lula e Dilma entre 2006 e 2015; Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central e considerado um dos “pais” do Plano Real; além do próprio Pessôa, um liberal de longa data, mais associado à agenda econômica do campo político da direita. Fim do Matérias recomendadas Em entrevista à BBC News Brasil às vésperas da votação de reforma no Congresso, Pessôa falou sobre a longuíssima janela de transição da reforma tributária, de 50 anos; sobre a polêmica com governadores e prefeitos nos últimos dias; e sobre a carta de um outro grupo de economistas, que classificou a proposta de reforma atual como uma “das piores da história”. Também admitiu ser um dos economistas que subestimaram o crescimento do país neste ano e teceu elogios ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad — que foi seu colega de escola e mestrado na USP —, apesar de prever que Lula entregará o país em 2026 com dívida maior do que encontrou. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A reforma tributária atualmente em discussão na Câmara tem como objetivo simplificar a cobrança de impostos no país, unificando cinco tributos que incidem sobre o consumo – PIS, Cofins, IPI (federais), ICMS (estadual) e ISS (municipal) – em um IVA (Imposto sobre Valor Agregado). O plano do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), é votar a reforma no plenário em primeiro turno ainda nesta quinta-feira (6/7). A proposta precisa de ao menos 308 votos para passar. Como se trata de uma PEC (Proposta de Emenda a Constituição), o texto tem que passar por uma segunda votação na Câmara antes de seguir ao Senado. Apesar de seu entusiasmo com essa primeira fase da reforma, Pessôa se diz descrente quanto à segunda etapa prometida pelo governo petista. Nela, seriam feitas mudanças na tributação sobre renda e dividendos, com o objetivo de reduzir a desigualdade no país. “O problema é o seguinte: a gente ainda não está pronto para essa conversa”, diz Pessôa. “É impossível mexer na desigualdade da tributação de renda se a gente não pegar aquelas pessoas que são ricas, mas se consideram ‘de classe média’. Que, na verdade, somos todos nós. É difícil você se olhar no espelho e saber que você é o rico, você é quem paga pouco imposto.” Confira abaixo os principais trechos da entrevista. BBC News Brasil - No início deste ano, o senhor escreveu que a reforma tributária pode ser o Plano Real do governo Lula 3. O que o senhor quis dizer com isso? Samuel Pessôa - A premissa é que a estrutura de impostos indiretos do Brasil – por sua elevada complexidade, enorme custo de conformidade, enorme nível de litigiosidade – gera impactos sobre a eficiência econômica e um mal funcionamento da economia. São efeitos parecidos com os impactos ruins produzidos pela hiperinflação. Lá atrás, as empresas tinham que ter escritórios financeiros enormes. E em cada esquina, tinha uma agência bancária que não fazia nada, só ajudava as pessoas a conviver com a inflação. Então tinha um monte de recursos da economia que não produziam nada. Hoje, temos uma complexidade tributária gigantesca – e aqui eu estou falando só dos impostos indiretos: ISS, ICMS, Pis, Cofins, IPI, que são uma zona. Então as empresas têm que ter departamentos de contabilidade gigantescos e gera muito litígio, porque tem muita zona cinzenta. Tudo isso faz com que o Brasil tenha um passivo tributário que é [equivalente a] quase 60% do PIB. Qualquer país normal tem 1%, 2% no máximo, então 60% do PIB de passivo tributário é insano. Se a nossa estrutura tributária fosse normal, um monte de recursos das empresas e da sociedade que está sendo gasto só processando pagamento de litígios iria fazer coisas mais úteis – progresso tecnológico, inovação, redução de custos etc. BBC News Brasil - A ideia então é que a aprovação da reforma pode ter um efeito parecido com o do Plano Real? Quer dizer, podemos ver a economia ficando mais organizada, ter mais crescimento? Qual é o efeito prático? Pessôa - É exatamente isso que você falou, rigorosamente isso. Acredito que não vai ter um impacto imediato tão grande quanto o Plano Real teve na pobreza. Porque, de fato, a inflação é o “pior imposto” que tem. Porque ela é muito regressiva e afeta muito os mais pobres. Então acho que aquele impacto imediato que houve [do Plano Real] na pobreza não deve haver. Mas se considerarmos uma janela um pouco mais longa no tempo – de 10, 15 anos –, o impacto sobre a produtividade e sobre a organização da economia é equivalente. BBC News Brasil - Entrando nessa questão temporal, a reforma prevê uma fase de transição longa, com a extinção dos impostos atuais e uma migração para um IVA dual entre 2026 e 2032 e a transição da cobrança de impostos da origem para o destino em 50 anos, de 2029 até 2078. Mesmo com esse horizonte longo, haverá benefícios já no governo atual? Pessôa - Eu acho que essa questão das duas transições é o “Ovo de Colombo” dessa reforma [expressão usada para uma solução aparentemente complexa e difícil, mas que se revela simples e fácil]. É uma ideia genial. Queremos uma reforma que torne a vida das empresas mais fácil, que torne mais fácil fazer negócio no país. Agora, imposto tem duas pontas: uma do contribuinte, que paga, e outra do ente da federação, que vai receber o imposto. Essas duas pontas não precisam andar juntas o tempo todo. Esta reforma vai mudar muito, para muito melhor, a estrutura tributária. Mas ela mexe na estrutura federativa, em quem recebe e quem deixa de receber. Ela não é neutra do ponto de vista dos Estados. Então a ideia, ao separar as duas transições, é dar tempo – muito tempo – para os Estados se adaptarem às novas estruturas de recebimento e também dar tempo para os efeitos benéficos da reforma virarem crescimento econômico. E crescimento é um jogo de ganha-ganha. A reforma que importa do ponto de vista de eficiência econômica é a ponta do contribuinte. O objetivo é simplificar aí. Como a gente resolve o problema federativo é outra questão. Se eu tratar essas duas questões como uma só, no mesmo horizonte temporal, eu aumento muito as restrições políticas à aceitação da reforma. Então, ao separar essas duas pontas e eu ter dois horizontes de tempos diferentes, porque são duas transições, eu facilito muito o processo de tramitação dessa reforma do Congresso Nacional. BBC News Brasil - Mas o atual governo vai coletar algum impacto? Pessôa - Essas reformas demoram um tempo para maturar, não vai maturar no horizonte de três anos. Em sete anos, já começa, em três anos não. Mas a aprovação dessa reforma vai fazer com que o mundo olhe para a gente com olhos muito melhores, porque vai sinalizar várias coisas. Primeiro, ela sinalizará uma saúde da nossa democracia. Que, com toda nossa complexidade federativa e tributária, nosso Congresso funcionou e ele conseguiu tomar uma decisão que tem perdas no curto prazo – mesmo que pequenas, têm – e conseguiu aprovar uma grande reforma que interessa ao coletivo. Esse é um sinal ótimo. E sinaliza que, daqui a cinco, seis anos, fazer negócio no Brasil vai ficar muito melhor. As empresas já vão se antecipar e isso deve gerar um impacto sobre risco-Brasil [indicador que mede o grau de confiança dos investidores no país]. Esse é o efeito mais imediato: uma melhora de percepção, de expectativas. No âmbito econômico, a gente vai ter uma melhora imensa no horizonte de sete anos. E a gente vai colher, num horizonte de 15 anos, uma taxa de crescimento da produtividade do trabalho maior. BBC News Brasil - O Brasil discute essa reforma desde a década de 1990, com várias tentativas fracassadas. O que mudou desde então e por que parece agora haver um sentimento de que “agora vai”, com economistas tão diversos como Laura Carvalho, Guido Mantega, o senhor e o Armínio Fraga assinando um manifesto juntos a favor da reforma? Pessôa - Primeiro, acho que, neste tema, nós nunca discordamos. Porque é uma questão de microeconomia. A gente discorda mais em geral em macro. [A microeconomia trata do âmbito das empresas, famílias e indivíduos, enquanto a macroeconomia trata da economia nacional, regional ou global.] A gente discorda na capacidade da política fiscal gerar crescimento; se maior ou menor mobilidade de capital é bom ou ruim; se intervenção no câmbio é bom ou ruim. Mas, com relação à eficiência da estrutura dos impostos indiretos, todo mundo pensa igual. Então acho que o que mudou não foi entre os economistas, foi na política. Primeiro, desde que o Brasil entrou naquela enorme crise [de 2014], estamos fazendo reformas, desde o primeiro ano do segundo mandato da presidente Dilma, em 2015. E essa reforma tem um processo, ela já andou. Em 2019, ela foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e depois parou. Então tem um processo de acúmulo. Além disso, tem um outro fato: São Paulo, no governo [João] Doria, resolveu entrar na guerra fiscal, dando benefícios para as empresas se instalarem aqui. E quando São Paulo entra na guerra fiscal, ela meio que perde sentido, e aí os governadores começam a olhar com bons olhos a reforma tributária. Então acho que tem um amadurecimento do sistema político, o fato de São Paulo entrar na guerra fiscal, e a própria agenda de reformas andando. Além disso, parece haver um grande comprometimento do presidente da Câmara, Arthur Lira [PP-AL], que quer deixar esta reforma como um legado. BBC News Brasil – O senhor entrou na questão dos governadores. Queria saber como o senhor avalia o impasse com governadores e prefeitos, que temem perder autonomia e recursos com essa reforma? O senhor acredita que a ideia da criação do Conselho Federativo [órgão que ficaria responsável pelo recolhimento e distribuição do IBS, imposto que substituirá o ICMS estadual e o ISS municipal] pode acabar sendo abandonada? Pessôa - Eu acredito que o melhor é essa redistribuição dos recursos ser feita da forma mais automática possível. Com nota fiscal eletrônica é tudo apurado eletronicamente, os créditos, os débitos, o que é devido àquele Estado, àquele município. Então acredito que esse novo imposto deveria ser [redistribuído] de forma centralizada e da forma mais automática possível. De fato, tem uma perda de autonomia dos entes da federação, mas estamos numa federação disfuncional. A federação existe para servir aos cidadãos e não os cidadãos para servir à federação. Se a federação está gerando subdesenvolvimento, baixo crescimento, a federação tem que se adaptar. Do ponto de vista econômico, o grau de autonomia é correto: cada ente da federação vai estabelecer sua alíquota. Essa autonomia está preservada. Agora autonomia para fazer favor com chapéu alheio, gerar um sistema disfuncional que impede o crescimento da produtividade, essa não interessa a ninguém. BBC News Brasil - Mas parece que os governadores não estão satisfeitos. Pessôa - Aí é uma questão das pessoas que estão tocando a reforma mostrar o texto da reforma, mostrar que essa transição longuíssima de 50 anos tem lá um seguro para os Estados que podem perder mais. Tem que fazer o convencimento e a disputa política. Mas parece que alguns governadores que estavam com comportamento muito agressivo contra a reforma já mudaram um pouco o tom nos últimos dias. Acho que eles já estão se entendendo lá. [O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), parte do grupo de governadores mais resistente à reforma, na quarta-feira (5/7) já admitia a possibilidade de apoiar a cobrança centralizada de imposto na reforma tributária, indicando abrir mão de sua proposta de uma Câmara de Compensação para eventuais perdas arrecadatórias para os Estados.] BBC News Brasil – E quanto às críticas do grupo de economistas formado por Everardo Maciel, Felipe Salto, Marcos Cintra, Jorge Rachid e outros, que afirmam que a atual proposta de reforma é “das piores da história” e apontam problemas como a excessiva complexidade do novo sistema e a indefinição das alíquotas? Como o senhor viu as críticas desse grupo? Pessôa - Vamos lá. Primeira crítica: complexidade. Quando eles falam de complexidade, parece que eles estão dizendo que a reforma é complexa. Mas, quando você lê o que eles escrevem, o que eles estão dizendo é que a transição é complexa. Eles acham isso. Mas como eu disse a você, eu discordo. Eu penso, na verdade, que abrir em duas transições é o “Ovo de Colombo”. É das melhores coisas dessa reforma, porque separa a questão federativa da questão de pagamento de impostos. O que importa para a complexidade é a primeira transição, não a segunda, e a primeira vai ser relativamente rápida. Então eu discordo deles. A questão da alíquota, aí é uma loucura. Estamos discutindo uma proposta de emenda constitucional. Alíquota, depois a gente vai ter outros lugares [para discutir]. Aí eles dizem que a carga tributária vai subir. Carga tributária não é tema de economista tributarista. Carga tributária é tema do Congresso Nacional. A carga tributária será o que o Congresso Nacional quiser que ela seja, independente da estrutura de impostos. A gente não está discutindo carga tributária aqui, estamos discutindo eficiência arrecadatória. A carga que nós teremos vamos definir pela alíquota, e quem vai definir a alíquota é o Congresso Nacional, as assembleias estaduais e as Câmara de Vereadores, junto com seus executivos. A decisão da carga tributária é uma decisão política e não é isso que a reforma discute, a reforma discute a estrutura dos impostos. Então achei esse argumento completamente descabido. Na verdade, eu vi o texto e pensei: “Poxa, a reforma é muito boa”. Porque, se as pessoas que mais discordam da reforma só são capazes de levantar aqueles argumentos, eu estou convencido de que a reforma é ótima. Fiquei mais favorável à reforma do que eu era antes de ler o texto deles. BBC News Brasil - O senhor já falou em entrevistas no passado que governos de esquerda têm a tendência a querer fazer o ajuste fiscal através de aumento de arrecadação. Então queria saber se aprovar uma reforma tributária sem alíquotas definidas, junto com um arcabouço fiscal que tem um buraco de R$ 100 bilhões para ser viável, representa um risco. Quer dizer, a carga tributária pode acabar ficando maior por essa combinação de fatores? Pessôa - Eu sempre achei que haveria um aumento de carga tributária. E eu sempre disse que aumento de carga tributária é absolutamente legítimo. Vamos lembrar que, no governo FHC, houve um aumento da carga tributária em 5 pontos percentuais do PIB e eu nunca critiquei o governo FHC por isso. Muito pelo contrário, eu vejo enormes méritos nos oito anos do governo FHC. Mas acredito que o aumento da carga tributária vai vir de outras bases. Vai vir da tributação de renda, da distribuição de dividendos, dos regimes tributários especiais, “pejotinha”, Simples, que são uma outra agenda. E acredito que essa agenda não está madura na atual legislatura. Quando olho as contas públicas, eu vejo a dívida pública aumentando. Acredito que o Lula vai entregar lá em 2026 uma dívida pública 12 pontos percentuais do PIB maior do que a que ele recebeu do Bolsonaro. Essa foi a opção que o Lula fez, e o sucessor dele vai ter que se haver com uma dívida maior. Eu acho que a reforma, essa dos impostos indiretos, ela vai ser neutra. Que não vai haver aumento de carga tributária. Agora, como eu disse, se o Congresso Nacional, as assembleias legislativas estaduais e as câmaras de vereadores, junto com seus Executivos, tomarem decisões que aumentem a carga tributária de impostos indiretos, isso é absolutamente legítimo. BBC News Brasil – O senhor acredita que, se de fato a primeira fase da reforma for aprovada, seja agora ou em agosto, vai haver fôlego político para a segunda fase, que seria essa reformulação dos impostos sobre renda, dividendos, etc? Pessôa - Eu acredito que não. Acredito que essa fase não está madura, que não discutimos isso o suficiente. Acho que a reforma dos impostos indiretos avançou exatamente porque distributivamente ela é neutra, porque a carga não vai aumentar. Por isso ela está andando. BBC News Brasil - Em termos das mudanças que afetariam a questão da desigualdade, essa pauta que se tornou tão premente na pandemia. O senhor pensa que, mesmo com esse ambiente criado pela pandemia, de o Brasil discutir mais suas desigualdades, discutir mais a pobreza, ainda assim, não seria o momento então ainda para conseguir aprovar essas mudanças? Pessôa - Eu concordo perfeitamente com você, acho que estamos mais atentos ao problema da desigualdade. A pandemia chamou a atenção de todo mundo, tanto é que quase quadruplicamos o programa Bolsa Família. Até 2010, ele era [equivalente a] 0,45% do PIB, ele hoje é um 1,72%. Tanto é que a menor desigualdade da história do Brasil – da história que a gente tem dados – foi 2022. Quando o presidente era de extrema direita, liberal etc. Então isso mostra que a sociedade se preocupou e o Congresso teve um papel importante nisso. BBC News Brasil - Mas então o senhor não acha que esse mesmo caldo de cultura também poderia tornar esse Congresso mais propenso a discutir a questão da desigualdade nos tributos? Pessôa - Eu acho que sim, mas o problema é o seguinte: é que a gente ainda não está pronto para essa conversa. Vou te dar um exemplo. É assim: quando a gente fala no geral, todo mundo concorda. Quando vai no caso específico, aí o calo de todo mundo dói. Porque quem está lá no Congresso, não é pobre, todo mundo lá tem a sua “pejotinha”, tem o seu Simples. A gente sabe que um dos regimes tributários mais responsáveis por reduzir o grau de progressividade da estrutura de impostos no Brasil é o Simples. Mas olha quando o Congresso vai votar elevação do nível de faturamento requerido para que uma empresa pode se enquadrar no Simples. Quando tem votação disso na Câmara, do PSOL ao PL, todo mundo aprova. Eu sou visto como um cara meio de direita, liberal, já escrevi um monte de coluna contra o Simples, e não acontece nada. O Congresso Nacional inteiro apoia o Simples. Pega os profissionais que têm as suas “pejotinhas”. Vão aumentar o imposto nas “pejotinha”? Consultor, economista, engenheiro, médico, advogado... O problema dessa discussão é que todo mundo acha que essa desigualdade dos impostos é porque tem um monte de Jorge Paulo Lemann ou Beto Sicupira [dois dos homens mais ricos do país, acionistas de empresas como Ambev, Americanas, Kraft Heinz e Burger King], um monte de bilionário que não paga nenhum imposto. E o bilionário é sempre alguém mais rico do que eu, independentemente da renda que eu tenho. Ninguém se acha rico no Brasil. Rico é sempre alguém mais rico do que ele, e é essa pessoa que não está pagando imposto. Então é impossível mexer na desigualdade com tributação de renda se a gente não pegar aquelas pessoas que são ricas, mas se consideram, “de classe média”. Que, na verdade, somos todos nós. Então, o que estou dizendo é que, quando o debate chega nessa discussão mais difícil, ele não anda. Porque é difícil você se olhar no espelho e saber que você é o rico, você é quem paga pouco imposto. É por isso que a gente acha normal pagar mensalidade escolar, usar hospital caro e deduzir do nosso Imposto de Renda. Sem mexer nessas coisas, não vai mexer na desigualdade pelo lado do tributo. BBC News Brasil - O senhor foi colega do ministro Fernando Haddad, de Colégio Bandeirantes e depois de FEA-USP [Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo]. Como avalia a atuação do ministro à frente da Fazenda até aqui? Pessôa - O ministro está indo bem. Ele recebeu uma situação muito difícil, porque o presidente Lula resolveu inverter a ordem normal do ciclo político. No ciclo político, normalmente, você começa o governo com pé no freio do gasto, arruma a casa macroeconômica, e termina o governo gastando mais. Ele [Lula] inverteu, então o ministro teve uma situação difícil. Mas eu acho que ele administrou bem. Ele fez uma coisa importante: estabeleceu uma agenda. Marco fiscal, reforma tributária, medidas tópicas de combate a planejamento tributário [estratégia usada por empresas para pagar menos impostos dentro da lei] e a reforma dos impostos de renda. Ele colocou a agenda e o Congresso está tocando. Um governo que tem uma agenda, principalmente quando a agenda é correta, ele tem um rumo e vai bem. Vai conseguir entregar tudo? Não vai. Mas se ele entregar 40%, está ótimo. BBC News Brasil - Por fim, estamos vendo revisões enormes das estimativas de crescimento [do PIB em 2023]. Tem economistas fazendo ajustes que vão de estimativas abaixo de 1% para 2,5% ou até 3%. O senhor está entre os economistas que foram surpreendidos pelo crescimento esse ano? Pessôa - Eu fui surpreendido. Meu número [para o crescimento do PIB em 2023] era 1% e hoje é 2% Metade dessa surpresa foi uma agropecuária ainda melhor do que eu imaginava. A outra metade é uma resiliência do consumo de serviços maior do que eu esperava. Mas acho que vai ser 2%, não vai ser 2,5%, não vai ser 3%, talvez nem 2%. Talvez seja alguma coisa mais próxima de 1,8%. BBC News Brasil - Por quê? Pessôa - Porque os juros estão batendo, a economia está acelerando e o mundo não está uma maravilha. Tem inflação alta e tem que trazer a inflação para baixo. A inflação caiu bem, mas a inflação de serviços ainda não caiu e a taxa de desemprego está muito baixa. Então há pressões inflacionárias, e é por isso que os juros estão onde estão. Não é porque o [presidente do Banco Central] Roberto Campos Neto foi tesoureiro do Santander, como os economistas de esquerda dizem. Os juros estão onde estão porque a demanda no Brasil é forte, a inflação é forte e a taxa de emprego está baixa, nas mínimas históricas, chegando em 8%. BBC News Brasil - Mas o senhor acredita que já se criou o ambiente para a taxa básica de juros começar a cair a partir de agosto, como a maioria do mercado parece acreditar? Pessôa - Acredito que sim, mas que vai ser uma queda bem lenta. E aí quando o Roberto Campos vir que a desinflação veio, talvez ele acelere o passo lá para meados do ano que vem. Eu enxergo Selic a 10%, 9,5% em dezembro do ano que vem.
2023-07-06
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cedz3199y4eo
brasil
10 pontos para entender a importância do legado de Zé Celso Martinez Corrêa
Em 1958, o Brasil começava a mostrar a sua cara para o planeta com a conquista da primeira Copa do Mundo de Futebol, depois da vitória contra a Suécia. A batida diferente da bossa nova passava a ecoar para além dos apartamentos de Copacabana com a gravação do álbum Chega de Saudade, do cantor João Gilberto, e Brasília, a moderna capital federal idealizada pelos arquitetos Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, entrava em ritmo acelerado de construção. O teatro brasileiro se mostrava polarizado entre a inspiração no modelo europeu pregado pelo TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) e o nacionalismo exacerbado do Teatro de Arena, representado por, entre outros, o dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri, que despontou naquele ano com a peça Eles não Usam Black-Tie. É neste cenário, disposto a implantar um modelo inovador, que o jovem José Celso Martinez Corrêa aposenta o terno e a gravata de futuro advogado para adotar o figurino de artista. Junto a outros colegas da faculdade de direito do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo (USP), entre eles o carioca Renato Borghi e o mineiro Amir Haddad, ele funda o Teatro Oficina, uma companhia que atravessa diversas vertentes ao longo das seis décadas seguintes e conecta as artes cênicas brasileiras às vanguardas internacionais em uma proposta crítica e provocadora. Zé Celso, como ficou conhecido, nasceu em Araraquara, no interior paulista, em 30 de março de 1937, e cresceu em uma família de sete irmãos comandada por uma mãe rigorosa, de pulso firme, e um pai sensível, fascinado por cinema e literatura. Fim do Matérias recomendadas Os primeiros textos montados pelo Oficina, Vento Forte para Papagaio Subir (1958) e A Incubadeira (1959), são de sua autoria e trazem fortes inspirações biográficas. A partir do processo de profissionalização, o Oficina passa a encenar grandes expoentes da dramaturgia universal com uma linguagem muito própria, na busca de espelhar os conflitos tratados à realidade brasileira. Ao longo do tempo, o Oficina passa por diferentes formações e características, mas sempre tendo Zé Celso como mentor e figura central. Nome de resistência à ditadura militar deflagrada em 1960, o ator, diretor e dramaturgo mergulhou nas ideias da contracultura em busca de um teatro combativo e, sempre cercado de polêmicas, construiu uma das trajetórias mais expressivas do meio artístico brasileiro. Zé Celso Martinez Corrêa saiu de cena aos 86 anos, nesta quinta-feira (6/7). Ele sofreu graves queimaduras em um incêndio em seu apartamento no bairro paulistano do Paraíso, onde morava com o marido, o ator Marcelo Drummond. O diretor deixa uma obra que ajuda a definir o moderno teatro brasileiro e, a seguir, listamos dez pontos que ajudam a compreender o importante legado de Zé Celso para a cultura brasileira, seja através de seu teatro ou de suas atitudes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O primeiro grande sucesso do Teatro Oficina teve origem na peça do dramaturgo russo Máximo Gorki (1868-1936), escrita em 1900. A sólida dramaturgia possibilitou a Zé Celso trabalhar em uma releitura que travasse um diálogo entre a Rússia do começo do século 20, anterior à revolução, e o Brasil às vésperas de um iminente golpe militar. Os conflitos de uma família e suas diferentes correntes de pensamentos norteiam a trama. Zé Celso usou as memórias emotivas do elenco para que cada um compusesse o personagem com base em suas vivências. Era o método Stanislavski, criado pelo russo Constantin Stanislavski (1863-1938), aplicado nos palcos brasileiros. A crítica da época considerou Pequenos Burgueses o mais perfeito espetáculo realista já feito no país e, em suas diversas temporadas, a peça contou com atores como Raul Cortez, Renato Borghi, Célia Helena, Ítala Nandi, Betty Faria, Fernando Peixoto, Cláudio Marzo e Beatriz Segall, entre outros. Escrita por Oswald de Andrade em 1937, a peça do escritor modernista permanecia inédita nos palcos até o ator Renato Borghi descobri-la em um livro antigo e mostrá-la para Zé Celso. A história gira em torno de um agiota (interpretado por Borghi) que enriqueceu emprestando dinheiro a juros altíssimos aos endividados que volta e meia batiam a sua porta. A pertinente crítica ao capitalismo foi preenchida de metáforas que criticavam a submissão dos brasileiros ao crescente autoritarismo dos militares. A encenação vibrante e alegórica reforçava os conceitos da antropofagia de Oswald de Andrade e impulsionou a estética tropicalista que despontava no cinema, nas artes plásticas e, na sequência, ganharia o grande público no movimento musical liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil. Considerada um marco do teatro nacional, a peça foi revisitada por Zé Celso em 2017, em comemoração dos 50 anos da estreia, tendo o mesmo Borghi à frente do elenco. O jovem cantor e compositor Chico Buarque era uma unanimidade nacional até Zé Celso cruzar o seu caminho. Alçado ao posto de astro com o sucesso da canção A Banda, Chico decidiu escreveu uma peça de teatro para criticar o mundo do showbiz através de um cantor (interpretado pelo ator Heleno Prestes) que conhece a fama e cai em desgraça ao ser devorado pela mídia. O diretor aboliu as metáforas e sutilezas e criou o que foi chamado de “teatro agressivo”. O elenco avançava sobre a plateia caminhando entre os braços das poltronas, em uma das cenas os atores despedaçavam um fígado de boi cru e imagens religiosas, como a da Nossa Senhora, surgiam idealizadas, rebolando de biquíni. O público ficou chocado, os militares arregalaram os olhos e Chico Buarque virou um dos alvos favoritos da censura. Em 18 de julho de 1968, durante a temporada paulistana de Roda Viva, o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), organização paramilitar de direita radical, invadiu o Teatro Ruth Escobar e agrediu parte do elenco, que contava com nomes como o da atriz Marília Pêra. Três meses depois, em apresentações em Porto Alegre, alguns atores, além de espancados e presos, foram vítimas de sequestros, sepultando a carreira do espetáculo. A estreita convivência com o The Living Theatre, companhia americana liderada pelo diretor Julian Beck e pela atriz Judith Malina, que visitou o Brasil entre 1970 e 1971, ampliou profundamente os horizontes de Zé Celso. A nova ordem no teatro de vanguarda internacional era a negação da dramaturgia convencional, a dispensa do texto formal em nome de uma encenação improvisada e ritualística influenciada pelo ambiente. Esta mentalidade foi a base de Gracias, Señor, uma colagem de textos estruturados em um jogo dramático que causava surpresa ao público. Em uma das cenas, a atriz Maria Alice Vergueiro carregava um porquinho em seus braços e, em outros, o público era estimulado a gritar, dançar e até podia ser arrastado por uma corda. Tamanha experimentação criou uma crise dentro do próprio grupo e, nesta cisão, Renato Borghi deixou o Oficina. Dois anos depois, Zé Celso seria preso e torturado, partindo para o exílio em Portugal e Moçambique, de onde voltaria em 1978. Depois de atravessar a década de 1980 quase em silêncio, dedicado a cursos de formação de atores, Zé Celso voltou aos palcos com a peça As Boas, em 1991, contracenando com Raul Cortez e Marcelo Drummond, todos em personagens femininas. A explosão da conhecida potência criativa, porém, se deu em Ham-Let, adaptação da tragédia de William Shakespeare, que inaugurou o Teatro Oficina depois de uma extensa reforma comandada pela arquiteta Lina Bo Bardi por uma década. A encenação durava mais de cinco horas e fundia a poesia de Shakespeare a uma trilha sonora repleta de samba, bossa nova e rock’n’roll para contar a história do atormentado príncipe (representado por Drummond) em conexão com o Brasil da fome e das chacinas. Sonhada por Zé Celso há mais de uma década, a encenação As Bacantes, peça do grego Eurípedes, estreou no Teatro de Arena de Ribeirão Preto para mais de 2500 pessoas. Em uma das cenas, a jovem atriz Leona Cavalli, sentou-se no colo do político Antônio Palocci, que, na época, era prefeito da cidade paulista. A grande ousadia do elenco, no entanto, se deu durante uma apresentação no Rio de Janeiro, em 1996. Como de praxe, um espectador desavisado era arrastado para os holofotes e despido pelo elenco como em um ritual antropofágico aos olhos dos demais espectadores. Diante da presença de Caetano Veloso na plateia, não deu outra. O cantor e compositor teve sua roupa arrancada por um grupo de atrizes, a polêmica tomou conta da mídia e até inspirou Adriana Calcanhotto a compor a canção Vamos Comer Caetano. Em 1980, o empresário e apresentador de televisão comprou vários terrenos nas ruas Jaceguai, Abolição, Santo Amaro e Japurá, em um grande quarteirão do bairro paulistano da Bela Vista. O projeto inicial era construir um shopping center na esquina entre as ruas Jaceguai e Abolição, exatamente ao lado do Teatro Oficina, o que, segundo Zé Celso, tiraria a visão e a iluminação natural da enorme janela de vidro que ladeia o espaço cultural. O diretor, por sua vez, reivindicava a área para a instalação de um parque público. Silvio Santos, na metade da década de 2010, desistiu do shopping e comunicou intenção de levantar duas torres residenciais na área de quase 11.000 metros quadrados. Zé Celso convocou a classe artística, as manifestações tomaram conta do bairro e mostraram engajamento nas recentes redes sociais e nem um tijolo foi empilhado. O embate atravessou quadro décadas sem vitória para nenhum dos lados e, diante da teimosia e da persistência de Zé Celso em não se calar, muitas vezes Silvio Santos deixou o ringue enfraquecido. O projeto teatral mais ousado e trabalhoso de Zé Celso foi a transposição para o palco do romance de Euclides da Cunha publicado em 1902. Dividida em três espetáculos, A Terra, O Homem e A Luta, a versão teatral enfoca respetivamente o cenário da cidade de Canudos, no sertão baiano, os personagens envolvidos na mobilização religiosa e popular que assustou os poderosos de um período de transição entre a monarquia e a república e, por fim, a batalha em si que destruiu a comunidade e matou quase 25 mil pessoas. Zé Celso interpretou o líder religioso Antônio Conselheiro, secundado por um elenco de mais de quarenta atores, na trilogia que ganhou a cena no Teatro Oficina entre os anos 2002 e 2006. Com Os Sertões, o diretor aproveitou para trazer à tona a discussão sobre a força predatória do capitalismo no mundo globalizado e cutucar os defensores da especulação imobiliária e o apresentador Silvio Santos, que, inclusive, era representado em cena. Apresentado entre agosto e setembro de 2022, no calor da disputa presidencial envolvendo Jair Bolsonaro (PL) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Zé Celso encenou o texto do dramaturgo inglês Christopher Marlowe (1564-1593) para trabalhar a dicotomia entre o bem e o mal. Cada sessão, no Teatro Paulo Autran do Sesc Pinheiros, em São Paulo, era como um show de rock, com entusiasmadas manifestações da plateia, que não economizava aplausos ou gritos. Na trama, um médico ambicioso, empenhado em obter uma sabedoria cada vez maior, faz um pacto com o diabo. Na versão do diretor, Fausto é um brasileiro que enfrenta uma grande travessia depois de sair de uma pandemia e de um governo despótico com o objetivo de chegar a um lugar onde seja possível respirar ventos mais democráticos. Em uma grande manifestação contra a homofobia, o último ato criado e protagonizado por Zé Celso se deu em torno de um episódio de sua vida real e teve fortes tintas políticas. Na noite de 6 de junho, o diretor oficializou a união de quase 37 anos com o ator Marcelo Drummond em um grande evento midiático para provocar o conservadorismo no Teatro Oficina. Centenas de convidados, entre artistas, políticos e intelectuais, celebraram o casamento de Zé Celso e Drummond, que teve performances das atrizes Bete Coelho e Leona Cavalli e números musicais com as cantoras Daniela Mercury e Marina Lima, além da participação da bateria da escola de samba Vai-Vai.
2023-07-06
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjl9lrkyd12o
brasil
7 fatores que explicam os ataques de 8 de janeiro em Brasília
Seis meses atrás, uma multidão invadiu a praça dos Três Poderes e destruiu símbolos da República. Nos dias seguintes ao 8 de janeiro, o país se debruçou sobre imagens de redes sociais e câmeras de segurança de Brasília para digerir diferentes ângulos do episódio insólito: a convocação pelas redes sociais, o acampamento em frente ao QG do Exército, as falhas de segurança que permitiram a invasão, o papel das Forças Armadas, a destruição de obras de arte e do patrimônio público. Separadamente, cada um deles é uma janela para o que aconteceu naquele dia. Juntos, ajudam a entender como o 8 de janeiro se encaixa na história recente do país e dialoga com questões ainda não equacionadas do processo de redemocratização. Por meio de entrevistas com testemunhas, especialistas em redes sociais, em relações internacionais e antropologia, a BBC News Brasil traz alguns dos fatores que ajudam a explicar os ataques. Fim do Matérias recomendadas A funcionária pública Anna Carolina Rocha mora próximo à Praça dos Cristais, o espaço que foi ocupado pelo acampamento de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro em Brasília entre o fim das eleições e o início de janeiro de 2023. Ela passa por ali pelo menos uma vez por semana, quando está a caminho do hospital universitário em que faz tratamento. Rocha viu todas as fases do acampamento. Das primeiras barracas à chegada do comércio - de barbearia a lanchonete, segundo ela -, e a expansão da estrutura. Na madrugada entre 7 e 8 de janeiro, ela dirigia mais uma vez pela avenida do Exército quando uma movimentação atípica chamou-lhe atenção. "Bem no meio da madrugada, tinha ônibus chegando, com gente descendo. No primeiro momento eu parei, olhei e pensei: 'Gente, isso são pessoas indo embora ou pessoas chegando?'" Cerca de 4 mil pessoas desembarcaram em Brasília nos dias anteriores ao 8 de janeiro, respondendo a convocações que circularam nas redes sociais. "A partir do dia 3 de janeiro a gente percebe que começam a aparecer muitos vídeos de pessoas reunidas no QG fazendo uma convocatória para que outros manifestantes do Brasil inteiro fossem a Brasília para um grande ato", relata Luis Fakhouri, diretor de estratégia da Palver. A plataforma de escuta social monitorou 15 mil grupos de WhatsApp durante as eleições, dentro da iniciativa montada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para combater a desinformação. "No dia 5, isso se torna muito forte. Muitos vídeos sendo compartilhados, de ônibus chegando, de caravanas." As redes sociais são um elemento importante no mosaico do 8 de janeiro. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As mídias sociais também estão ligadas a outro fator que ajuda a explicar aquele dia, o ganho de escala da desinformação. Muita gente foi para Brasília acreditando que poderia reverter o resultado das eleições. O policial legislativo Adilson Paz, que esteve por três horas em confronto com os invasores na Câmara dos Deputados, diz ter ouvido no Salão Verde da Câmara naquele dia que era preciso "chamar atenção das Forças Armadas" para que elas pudessem decretar uma intervenção militar. Essa ideia não nasceu no 8 de janeiro. Por mais de um ano, mensagens que circularam nas redes sociais espalharam a falsa ideia de que as urnas eletrônicas não eram seguras e de que a Constituição, por meio de seu artigo 142, autorizaria uma intervenção militar em casos excepcionais para restabelecer a ordem. Desde que a fake news do artigo 142 foi mencionada por Bolsonaro em uma reunião com ministros em 2020, constitucionalistas reiteram que em nenhum trecho ele autoriza uma intervenção militar. O STF inclusive já se manifestou, em 2020, por meio de uma liminar declarando que os militares não têm a prerrogativa de exercer a função de poder moderador em um cenário de conflito entre Executivo, Legislativo e Judiciário. A crença na notícia falsa ganha força, todavia, quando Bolsonaro deixou de reconhecer a derrota no segundo turno. Mais que isso, o silêncio do presidente alimenta outra fake news, a de que ele precisaria ficar calado por 72 horas, enquanto as pessoas fossem espontaneamente para as ruas, para que pudesse pedir uma intervenção militar sem ser acusado de tentativa de golpe. Mesmo depois que o então presidente se pronuncia, 40 horas depois do resultado, ele dá uma declaração ambígua: "Os atuais movimentos populares são fruto de indignação e sentimento de injustiça de como se deu o processo eleitoral. As movimentações pacíficas sempre serão bem vindas, mas os nossos métodos não podem ser o da esquerda, que sempre prejudicaram a população". Quem fala sobre a transição de governo é o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, apenas depois de Bolsonaro deixar o local da coletiva de imprensa. Todos esses ingredientes se misturam no caldo de cultura que levou bolsonaristas a fecharem rodovias pelo país, acamparem em frente aos quartéis-generais do Exército e a depredarem patrimônio público em Brasília. O uso das redes sociais para espalhar desinformação e engajar eleitores é um fenômeno deste século 21. E isso vale para todo o espectro ideológico, ressalta Darren Linvill, professor da Universidade de Clemson, do Estado americano da Carolina do Sul, e pesquisador do Watt Family Innovation Center Media Forensics Hub. "Acontece na extrema direita e na extrema esquerda, assim como no centro. Está em toda parte." Muitos movimentos de direita e extrema direita, contudo, acabaram se beneficiando do fato de terem sido os primeiros a explorar as redes sociais como plataforma para comunicação política, pontua Lisa-Maria Neudert, pesquisadora do Oxford Internet Institute, ligado à Universidade de Oxford. "Na Europa, os movimentos de extrema direita estão entre os primeiros que olharam para as redes sociais. Quando os partidos políticos começaram a experimentar nesse mundo, também foram os partidos de direita - e acho que isso lhes deu enorme vantagem", avalia. No Brasil, os estudos de análise descritiva sinalizam que o compartilhamento é maior entre grupos de direita e extrema direita, pontua o cientista social Tiago Ventura, pós-doutorando no Center for Social Media and Politics da New York University. Tudo isso dialoga com uma nova ascensão global do conservadorismo e populismo de direita, que nas últimas duas décadas chegou ao poder em países como Hungria, Polônia, Estados Unidos, Israel, Itália e Brasil. Guardadas as particularidades, seus líderes autoritários têm em comum o fato de terem sido eleitos dentro das regras da democracia - sem, no entanto, trabalharem para fortalecê-las uma vez no poder. Pelo contrário: muitos deles têm promovido ou promoveram o enfraquecimento das instituições democráticas, corroendo o sistema de dentro para fora. No exemplo prático da Hungria e da Polônia, onde a direita populista está no poder há mais de dois mandatos, a promoção de mudanças pontuais e reiteradas nas leis que regem o Legislativo e o Judiciário fragilizaram o equilíbrio entre os três poderes e têm concentrado forças em torno do Executivo. E é por isso que, desde o 8 de janeiro, o mundo observa atento o caso brasileiro, diz Oliver Stuenkel, professor associado de Relações Internacionais na Fundação Getulio Vargas (FGV): "O Brasil é visto como um laboratório de movimentos radicais, sobretudo da extrema direita. O país talvez seja um dos mais afetados pela disseminação de notícias falsas por fake news, já teve o segundo ciclo eleitoral profundamente afetado por notícias falsas." "O Brasil faz parte da onda de democratização que aconteceu nos anos 90 com muitos outros países aqui na América Latina, mas também no leste europeu. O fracasso de um caso importante como o do Brasil seria péssima notícia para muitas outras democracias na região. É um sinal de que, depois de 30 anos, em vários sentidos, todas essas democracias ainda enfrentam vários desafios." O avanço do populismo - de direita e esquerda - geralmente vem acompanhado de polarização social e política. À medida que transforma oponentes em inimigos e discordâncias em valores inconciliáveis, o discurso populista divide a sociedade. No caso do populismo de direita do século 21, a retórica é a de que o mundo é dominado por uma agenda de esquerda - que preza direitos humanos, direitos de pessoas LGBT e diretos reprodutivos das mulheres, por exemplo - contra a qual é preciso lutar para defender os valores da família tradicional e da religião. Nas convocações para o 8 de janeiro, era frequente a mensagem de que os atos seriam um sacrifício necessário para evitar que o país fosse "dominado pelo comunismo". "Algumas das mensagens colocavam essa questão da urgência: 'Essa é uma luta que tem que ser feita agora. Se a gente atrasar, a gente vai perder essa guerra e nossos filhos vão pagar essa conta'. Então tinha esse tom do imediatismo, esse medo do comunismo, medo do Brasil se tornar uma Venezuela", diz Fakhouri, da Palver. A ideia da ameaça do comunismo desconsidera o fato de que os partidos de esquerda com maior expressividade na política brasileira não pregam essa ideologia política e de que, como fenômeno político, o comunismo perdeu boa parte de sua relevância desde a dissolução da União Soviética em 1991. Ainda assim, o fantasma do comunismo segue vivo entre muitos brasileiros. Uma pesquisa Datafolha divulgada no último dia 1º de julho mostrou que 52% acham que o Brasil corre o risco de se tornar comunista. O discurso de Bolsonaro durante os quatro anos de governo - seja repetindo sem provas alegações de fraudes nas urnas ou durante a pandemia, atacando as recomendações de cientistas e promovendo tratamentos sem eficácia comprovada - contribuiu para dividir o país, mas a polarização é anterior à sua eleição. Um processo que atinge uma espécie de ápice entre 2014, quando é deflagrada a Operação Lava Jato, e 2018, no movimento que culmina na vitória de Bolsonaro. O antipetismo é uma das forças que ajudaram a elegê-lo naquele ano. Entre os 57,7 milhões de brasileiros que digitaram seu número na urna, uma parte queria evitar um retorno do PT ao poder, ainda que não se entusiasmasse com suas propostas. É o que indica a pesquisa Datafolha às vésperas daquele segundo turno, que apontava que 54% dos eleitores não votariam de jeito nenhum em Fernando Haddad (PT), enquanto Bolsonaro era rejeitado por 41% dos entrevistados. O país segue rachado na eleição de 2022. Lula vence com a margem mais estreita da história recente do país, 50,9%, enquanto Bolsonaro atinge 49,1%. Entre os 58 milhões que votaram no capitão reformado em 2022, uma parte, assim como em 2018, é antipetista. Há também aqueles que queriam reelegê-lo pelo discurso liberal de seu ministro da Economia, alguns se identificavam com a pauta de costumes conservadora e outros, com a própria figura do capitão reformado. "Essa minoria, algo que oscila entre 15% e 20% do momento em que ele foi eleito ao que ele sai, são aqueles que chamei em um artigo de 'bolsonaristas de coração'", diz Angela Alonso, livre-docente do departamento de sociologia da Universidade de São Paulo (USP). "É um tipo de adesão emotiva a esse líder. E não acho que tem a ver com o fato de que ele está produzindo algum tipo de lavagem cerebral ou qualquer coisa assim - é porque tem uma grande coincidência de crenças", avalia. São essas, em sua maioria, as pessoas que vão às portas de quartéis por todo o país quando Bolsonaro perde as eleições em 30 de outubro de 2022, na crença de que convenceriam as Forças Armadas a decretar uma intervenção militar e mudar o resultado das urnas. Fruto, de certa forma, dessa mistura entre redes sociais, desinformação, polarização política e fortalecimento do conservadorismo, o acampamento em frente ao QG do Exército em Brasília vai se tornar um dos maiores do país. A BBC News Brasil conversou com dois jornalistas que frequentaram o espaço disfarçados desde os primeiros dias. "Era uma época em que chovia muito em Brasília, então as pessoas traziam lona pra conseguir dar suporte às barracas. Depois começaram a chegar as estruturas de alimentação, banheiros químicos, tenda, palco, gerador de energia", diz Ana, que pediu para ter o sobrenome suprimido devido a ataques que vem sofrendo na internet. "Tinha uma estrutura muito grande. Foi quando a gente percebeu que ninguém tinha ido pra passar um dia ou dois. Era de fato pra ficar. A gente só não sabia até quando e pra quê." A certa altura a estrutura passou a contar inclusive com uma "tenda de Youtubers", com computadores de edição grandes, câmeras e roteador de internet. "Eles tinham uma rotina muito bem definidinha, com os horários certos das refeições. De manhã tinha um horário do hino nacional, depois eles formavam pelotões e marchavam como se fossem militares, cumprimentando os soldados que passavam. À tarde tinha o horário em que todo mundo ia para onde os caminhões estavam estacionados. À noite cantavam o hino da independência, da bandeira…", descreve Ana. O acampamento foi o local onde desembarcaram as caravanas de ônibus que chegaram a Brasília nos dias anteriores ao 8 de janeiro e de onde partiu a marcha de quase 8 km até a Praça dos Três Poderes no dia dos ataques. No relatório produzido pela equipe que assumiu a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal logo após os ataques e que investigou as causas da insurreição, o acampamento é apontado como elemento-chave da trama. "Havia estruturas montadas para apoio de refeições e carro de som para disseminação de informações e coordenação dos manifestantes, evidenciando que o acampamento, desde sua instalação, foi elemento crucial para o desenvolvimento das ações de perturbação da ordem pública que culminaram nos atos do dia 08 de janeiro de 2023", diz o texto. O documento, feito a partir de informações colhidas de órgãos como o Gabinete da Secretaria de Segurança Pública do DF, a Polícia Militar do DF, a Subsecretaria de Operações Integradas da SSP/DF e a Subsecretaria de Inteligência da SSP/DF, lista diversas ocasiões em que os acampados hostilizaram profissionais que estava no espaço a trabalho, entre eles jornalistas, agentes da PF, um agente de vigilância ambiental e agentes do DF Legal. E aponta o envolvimento do grupo com uma série de atos violentos em Brasília, entre eles a tentativa de invasão do prédio da Polícia Federal em 12 de dezembro de 2022, com a promoção de atos de vandalismo, com queima de ônibus e veículos no Setor Hoteleiro Norte de Brasília. O relatório também destaca as tentativas de desmontar a estrutura erguida na Praça dos Cristais pela PM do DF - e impedidas pelas Forças Armadas: "Desde o fim de 2022, ocorreram ações planejadas com o intuito de desmobilização do acampamento, porém foram canceladas por fatores alheios às forças de segurança do Distrito Federal, sendo algumas operações interrompidas já em andamento e com tropas da segurança pública no terreno, por orientação do Exército Brasileiro". Após os ataques, dois oficiais da PM do DF, o coronel Jorge Eduardo Naime Barreto e o ex-comandante Fábio Augusto Vieira, disseram em depoimentos que o Exército impediu pelo menos três iniciativas nesse sentido. Procuradas, as Forças Armadas não responderam aos pedidos de entrevista feitos pela reportagem. Em nota divulgada logo após uma tentativa de remoção dos acampados em 28 de dezembro, afirmaram que a ordem para interromper a ação fora dada "no intuito de manter a ordem e a segurança de todos os envolvidos". Assim como muitas das questões em torno do 8 de janeiro, o papel dos militares nos eventos ainda não está claro. Não se sabe, por exemplo, porque o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), órgão formado por militares e responsável pela segurança do Planalto, dispensou o reforço de 36 homens do Batalhão da Guarda Presidencial horas antes dos ataques - quando as áreas de inteligência do governo já sabiam da chegada de caravanas bolsonaristas a Brasília. As informações foram reveladas pelo jornal O Estado de São Paulo. Meses após os ataques, em abril, imagens vazadas das câmeras de segurança do Palácio mostraram o general Gonçalves Dias, nomeado por Lula como ministro-chefe do GSI, ao lado de invasores no andar do gabinete presidencial no Planalto. Dias, que se tornaria o primeiro ministro do governo Lula a cair, e membros do GSI foram acusados de ajudar os invasores. Ele nega e afirma que estava evitando estragos e encaminhando os invasores para serem presos. Também ainda precisa ser esclarecido porque o ex-secretário de Segurança Pública do DF, Anderson Torres - também ex-ministro da Justiça de Bolsonaro -, e o tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro, tinham posse de minutas de decretos para intervir no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e reverter o resultado das eleições. Em depoimento, Torres afirmou que o documento seria descartável e sem viabilidade jurídica e que não teria sido ele a colocá-lo em uma pasta na estante de sua casa. No caso de Mauro Cid, que está preso e deve depor na próxima semana na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPMI) do 8 de janeiro, a perícia feita pela Polícia Federal em seu aparelho telefônico revelou, além da minuta, conversas com teor golpista com outros oficiais do Exército. Nesse sentido, uma das reflexões centrais sobre aquele dia gira em torno das Forças Armadas. Elas estão diretamente ligadas à imagem de Bolsonaro como candidato, fizeram parte de seu governo e são mais influentes na vida civil e política do Brasil do que na maioria dos países com democracias estáveis. "O 8 de janeiro reflete, claramente, a presença de correntes antidemocráticas nas Forças Armadas, na Polícia Militar", avalia Stuenkel. "Aquilo mostra uma realidade que acho que alguns não queriam acreditar ou aceitar ao longo das últimas décadas - que uma parte das Forças Armadas e da polícia no Brasil não aceita o controle civil, que é um ingrediente fundamental de qualquer democracia", completa. O Brasil viveu sob uma ditadura militar por 21 anos após o golpe de Estado de 1964. Desde 1985, o país vem costurando a redemocratização - um processo que, tanto para Stuenkel quanto para Alonso, ainda é um trabalho em construção. Stuenkel lembra que, desde a Constituinte, os movimentos para consolidar o controle civil sobre as Forças Armadas enfrentaram "muita resistência dos generais". Um desses momentos, ele exemplifica, foi a criação do Ministério da Defesa em 1999, à qual os militares se opuseram. O mesmo aconteceu com a Comissão da Verdade, formada em 2011 para apurar as graves violações aos direitos humanos cometidas durante a ditadura. "Sempre há resistência por parte das Forças Armadas, se opondo a um processo natural que acontece em todas as democracias consolidadas. Quem manda na Força Armadas é um civil - o presidente, o ministro da Defesa", acrescenta. Para a pesquisadora Angela Alonso, ainda hoje o país convive com um "passivo que vem da ditadura". Uma geração de militares, ela argumenta, que é remanescente daquele período e que carrega a ideia de que o melhor Estado é autoritário. O próprio Bolsonaro, que começou a carreira militar em 1977, depois de se formar na Academia Militar das Agulhas Negras, faz parte desse grupo. A questão das visões antidemocráticas, contudo, vai além dos oficiais mais antigos, argumenta a estudiosa. "Há também uma nova geração formada nessa perspectiva. E acho que isso existe no Exército, na polícia. E isso não é algo de solução nem rápida, nem simples", completa. No caso da polícia, as imagens de agentes supostamente tirando selfies, socializando com os invasores e permitindo-lhes a entrada nos prédios do governo inundaram as redes sociais no domingo de 8 de janeiro. Logo após os ataques, a Corregedoria da Polícia Militar do DF instaurou pelo menos 6 inquéritos para apurar a conduta desses profissionais e a omissão de comandantes. No início de fevereiro, quatro PMs foram presos. A reportagem procurou a PMDF, que não respondeu ao pedido de entrevista. A possível complacência de alguns agentes naquele dia é uma das falhas de segurança que permitiram que a Praça dos Três Poderes fosse invadida e que o patrimônio público fosse depredado. Há também o fato de que o efetivo policial de plantão naquele dia - menos de 400 policiais militares e 30 policiais legislativos - era muito menor do que o mobilizado para a posse uma semana antes e insuficiente para fazer frente à quantidade de pessoas que desembarcaram em Brasília para o ato marcado para 8 de janeiro. Hoje sabe-se que as autoridades estavam cientes sobre a possibilidade de manifestações. Às 10h da manhã do dia 6 de janeiro, representantes de pelo menos 10 órgãos haviam se encontrado para planejar o esquema de segurança do domingo, como aponta o relatório produzido pela equipe de intervenção no DF. A ata da reunião mostra que os comandantes da segurança tinham percepções diferentes sobre o risco de manifestações. Enquanto um diz que não havia consenso sobre o alcance das convocações, que havia inconsistência sobre o deslocamento de caravanas para Brasília, outros se mostram mais preocupados, inclusive com o risco de ações violentas isoladas. Como Brasília é uma cidade com status especial, o Distrito Federal, o planejamento de segurança para manifestações é particular: envolve tanto órgãos ligados ao Ministério da Justiça quanto a Secretaria de Segurança Pública do DF, com competência estadual. Naquele momento, o governador era Ibaneis Rocha e seu secretário de segurança, Anderson Torres, que assumiu o cargo em 2 de janeiro e logo depois viajou de férias aos Estados Unidos. Antes de deixar o Brasil, o ex-ministro de Bolsonaro exonerou dois funcionários que ocupavam cargos centrais na estrutura de planejamento e coordenação da pasta: o Secretário Executivo de Segurança Pública e o Subsecretário de Inteligência. Eles foram substituídos, respectivamente, por Fernando de Sousa Oliveira e Marília Ferreira Alencar, as únicas pessoas que Torres, em depoimento, disse ter trazido de sua antiga equipe do Ministério da Justiça para ocupar funções de relevância na secretaria. Ele foi preso em janeiro, por suposta omissão nos atos golpistas, solto em maio e segue sendo investigado no inquérito que investiga o 8 de janeiro. Na ocasião da soltura, seu advogado afirmou que ele iria "cooperar para que se esclareça o mais breve possível os fatos que levaram àqueles odiosos atos de 8 de janeiro". Da reunião do dia 6 de janeiro saiu um protocolo de ações integradas, documento que divide tarefas e atribuições a cada um dos órgãos responsáveis pela segurança no planejamento para manifestações. "O protocolo não é só um papel onde você coloca as decisões que foram consensuadas, assina e pronto. Não é só criar um foguete, é preciso monitorá-lo, caso contrário ele não sai do chão", destaca Tânia Pinc, pesquisadora associada do Laboratório de Análise da Violência da Uerj e major da reserva da PM de São Paulo, na qual trabalhou por 25 anos. "É muito provável que grande parte do que estava previsto no protocolo não tenha sido colocado em prática. E isso é um problema no fluxo de comunicação", acrescenta. Ela explica que o planejamento das operações para manifestações geralmente acontece no médio escalão dos órgãos de segurança. E aqui há dois pontos-chave: a predição do risco, ou seja, entender o grau de ameaça que o evento representa, e o diálogo com o alto escalão para que se possa estabelecer uma comunicação entre diferentes agências envolvidas e coordenar as operações. "É importante levar em consideração que tudo isso está acontecendo dentro de um contexto de transição de governo. Então, o que pode ter acontecido que acabou interrompendo ou descontinuando esse fluxo de comunicação?" A reportagem levou essa pergunta ao ministro da Justiça, Flávio Dino, que estava trabalhando em Brasília no 8 de janeiro e chegou a seu gabinete, de frente para a Praça dos Três Poderes, por volta de três da tarde. Ele diz que vinha dialogando sobre a possibilidade de manifestações com o governador Ibaneis Rocha e que, pela comunicação, acreditava que a preparação seria similar à que havia sido feita para a posse. "Houve relatos do então secretário de Segurança em exercício no Distrito Federal ao governador, e o governador me passava no sentido de que tudo estava planejado, organizado, que não havia risco", afirma. Parte desse diálogo foi registrado pelo ministro em suas redes sociais, inclusive um ofício alertando o governador Ibaneis Rocha sobre "intensa movimentação de pessoas que, inconformadas com o resultado das Eleições 2022, estão organizando caravanas de ônibus para se deslocarem até Brasília", postado em suas redes sociais na véspera da invasão. O governador também se manifestou publicamente no sábado, e, em entrevista, disse apenas que a manifestação no domingo estaria liberada desde que fosse "pacífica". Depois de ficar 64 dias afastado, Ibaneis Rocha foi reconduzido ao cargo em março e é investigado no inquérito que apura as responsabilidades pelo que aconteceu naquele domingo. A BBC News Brasil o procurou para uma entrevista, e um de seus advogados respondeu dizendo que ele não se manifestaria. O Brasil ainda vai falar sobre o 8 de janeiro e refletir sobre seu significado por muito tempo. As centenas de pessoas presas por suposto envolvimento com a invasão ainda aguardam julgamento, e a Polícia Federal segue investigando as eventuais negligências, falhas, omissões, erros e crimes que permitiram os ataques. Instalada em maio, a CPMI do 8 de janeiro se estenderá pelo menos por seis meses e o PL das Fake News, colocado em pauta como uma resposta ao papel das redes sociais e da desinformação naquele dia, continua tramitando. A questão do tensionamento entre o governo e os militares, por sua vez, parece longe de ser equacionada. Um sinal recente veio do desfecho de uma longa disputa entre o GSI e a Secretaria Extraordinária de Segurança Presidencial, formada majoritariamente por policiais federais. Frustrando a cúpula da PF - e aqueles que defendiam um comando civil da segurança presidencial -, Lula devolveu a coordenação ao GSI no fim do mês de junho.
2023-07-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cye7egj6y1no
brasil
4 lições das reformas tributárias do Chile e da Colômbia para o Brasil
A reforma tributária – conjunto de mudanças na legislação e na forma de cobrança dos impostos pagos pelas famílias e empresas brasileiras – é uma das prioridades do novo governo na economia, ao lado do novo conjunto de regras fiscais que devem substituir o teto de gastos. Segundo os ministros Fernando Haddad (Fazenda) e Simone Tebet (Planejamento), a expectativa do governo é de que a reforma seja feita em duas etapas. A primeira tem foco nos impostos sobre consumo – aqueles cobrados no momento da compra de produtos e serviços –, com a unificação de tributos como PIS/Cofins, IPI, ICMS e ISS em um único imposto, conhecido como IVA (Imposto sobre Valor Agregado). Já a segunda etapa, conforme a equipe econômica, deve ter como foco mudanças nas regras dos impostos que incidem sobre a renda. A primeira foi aprovada na Câmara dos Deputados em dois turnos de votação na quinta-feira (6/7) e, após análise das propostas de mudanças (os destaques), seguirá para o Senado. Fim do Matérias recomendadas A segunda está sendo desenvolvida, segundo o secretário extraordinário da reforma tributária, Bernard Appy, e pode ser debatida e votada até o final do ano. O Brasil não está sozinho no objetivo de reformar seu sistema de impostos. Na América do Sul, dois dos países com governos de esquerda propuseram reformas após a fase mais aguda da pandemia: Chile e Colômbia. No primeiro, a discussão ainda está em andamento, já no segundo, a mudança nas regras tributárias foi aprovada no Congresso em novembro. Em comum, as reformas dos dois países têm foco na redução de desigualdades sociais, estímulo ao crescimento, produtividade e investimento e uso da política fiscal com objetivo de proteção do meio ambiente e promoção do desenvolvimento regional, mostra estudo dos pesquisadores Amanda Resende e Lucca Henrique, membros do Made-USP (Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo). Confira quatro lições das reformas tributárias do Chile e Colômbia que podem ser úteis ao processo de mudança nas regras tributárias do Brasil, segundo os pesquisadores da USP. Da crise financeira de 2008 à pandemia de covid-19, diversos países têm realizado reformas em seus sistemas tributários. Amanda Resende, mestranda em economia na FEA-USP e pesquisadora do Made, identifica ao menos três ondas de reformas. "Com a crise de 2008, muitos países sentiram a necessidade de reformar seus sistemas tributários para elevar a arrecadação, afetada pela crise e pelas baixas taxas de crescimento que geraram desequilíbrios orçamentários", diz Resende, em entrevista à BBC News Brasil. Segundo a economista, após esta primeira onda de reformas, que teve como objetivo promover um maior equilíbrio entre receitas e despesas em países afetados pela crise, o crescimento econômico continuou lento. Assim, uma nova onda de reformas ocorreu a partir de 2015, com objetivo de reduzir a carga de impostos para estimular o crescimento econômico. "A recuperação, quando começou a ocorrer, veio acompanhada de uma concentração de renda, então houve uma terceira onda [de reformas] voltada a tentar reduzir desigualdades através do sistema tributário", diz Resende. Esses esforços para reduzir desigualdades foram feitos principalmente por meio do aumento da progressividade da tributação sobre a renda (isto é, cobrar mais de quem tem mais) e da equalização da tributação sobre as rendas do capital e do trabalho, por exemplo, revisando benefícios tributários sobre dividendos, o que também é uma forma de tributar mais o topo. Em meio a tantas reformas, por que então olhar especificamente para Chile e Colômbia? "As reformas da Colômbia e do Chile são muito atuais", diz a pesquisadora. "Elas vieram pós-pandemia, que foi um novo momento de repensar reformas tributárias – por conta do aumento de desigualdade, da dificuldade de equilibrar receitas e despesas e da busca de formas para estimular o crescimento. Então todos esses elementos estão presentes nessas reformas", acrescenta. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Além disso, são dois países da América Latina, com realidades históricas, desigualdades e dependência externa financeira e comercial semelhantes às do Brasil. A pesquisadora observa, porém, que há diferenças entre os países. Por exemplo, enquanto Chile e Colômbia têm cargas tributárias bem abaixo da média dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) – de 20,7% do PIB no caso chileno e de 19,7% na Colômbia, comparado a 33,8% no grupo das economias desenvolvidas em 2019 –, no Brasil, a carga tributária (equivalente a 33,9% do PIB em 2021) é muito próxima do nível de arrecadação dos países ricos. Além disso, o Brasil já conta com uma infraestrutura de proteção social e uma rede de bens e serviços públicos que os países vizinhos ainda estão tentando construir. "Apesar das diferenças, o debate público nesses países tem muito a nos ensinar, porque eles estão enfrentando a questão tributária com transparência, considerando a questão fiscal como uma coisa única", diz Resende. "Não adianta pensar no gasto, sem pensar nas receitas. Ou olhar para os gastos, como tem sido feito muito no Brasil, apenas da perspectiva do equilíbrio orçamentário. Essa é uma preocupação importante, mas é preciso considerar também a função social do Estado. As reformas dos países vizinhos ajudam a pensar no fiscal como um sistema em que arrecadação tributária e gastos em bens e serviços públicos fazem parte um mesmo pacto social", afirma. "A visão de que a reforma tributária é um pacto social está faltando ao Brasil, estamos pautando o tema da reforma há muito tempo, mas ainda se fala pouco sobre qual é o impacto social que os brasileiros querem e como vamos inserir os cidadãos nessa discussão." 1. A reforma tributária é um pacto social "As reformas do Chile e da Colômbia nos ensinam a importância de atrelar o debate tributário à discussão dos gastos públicos", escrevem Amanda Resende e Lucca Henrique, no estudo Como nuestros hermanos: reformas tributárias para um novo pacto social. "A arrecadação de impostos não é um fim nela mesma, mas garante os meios pelos quais o Estado pode exercer seu papel como investidor em infraestrutura física e social, protetor dos mais vulneráveis, prestador de serviços à população, estabilizador da economia e empreendedor. Nesse sentido, a legitimidade da reforma depende fundamentalmente dos objetivos que se deseja alcançar", acrescentam os pesquisadores. Por exemplo, no Chile de Gabriel Boric, a população foi chamada a participar no processo de discussão da reforma tributária através dos chamados Diálogos Sociales. Desse processo de participação cidadã e da análise técnica e comparação com outros países, foi redigido um projeto de lei com seis objetivos que regem a reforma. O primeiro deles é "maior arrecadação para a ampliação de direitos sociais, diversificação produtiva e descentralização". Para cumprir esse objetivo, o governo espera arrecadar o equivalente a 4,1% do PIB a mais até 2026, dos quais 2,9% serão destinados ao novo sistema de Previdência e à criação de um sistema universal de saúde, 0,3% a um novo sistema nacional de cuidados, que pretende reduzir a sobrecarga de trabalho não remunerado das mulheres, 0,4% a políticas de educação e 0,7% a políticas produtivas e de pesquisa e desenvolvimento. Já na Colômbia de Gustavo Petro, os três principais objetivos da reforma aprovada em novembro são erradicar a fome, reduzir a pobreza e acabar com o tratamento preferencial na cobrança de impostos. Com o aumento da arrecadação, o governo também visa viabilizar sua política de "paz total", que muda o enfoque do enfrentamento aos grupos armados do país. "No Brasil, as hierarquias aparecem invertidas, o equilíbrio orçamentário se apresenta como finalidade e os direitos sociais devem se adequar a critérios definidos de forma tecnocrática", escrevem os economistas Pedro Rossi, Esther Dweck e Ana Luiza Matos de Oliveira, em trecho do livro Economia Para Poucos: impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil, citado pelos pesquisadores do Made-USP – Dweck é agora ministra da Gestão no governo Lula. "O debate econômico brasileiro parte de 'cima para baixo' para pensar a política fiscal, ou seja, dos indicadores e regras macroeconômicas para a disponibilidade de recursos para áreas específicas. Essa relação deve ser invertida e a política fiscal deve ser pensada de 'baixo para cima'", defendem Rossi, Dweck e Oliveira. 2. É necessário e possível aumentar a arrecadação do topo "Para o Estado exercer seu papel redistributivo e redutor de desigualdades, e ao mesmo tempo manter os indicadores fiscais de dívida pública e resultado primário em uma trajetória sustentável, é necessário aumentar o volume e a eficiência na arrecadação de tributos sobre os mais ricos." Esta é a segunda lição que as reformas tributárias de Chile e Colômbia deixam para o Brasil, segundo os pesquisadores do Made-USP. No Chile, por exemplo, a reforma pretende elevar a alíquota máxima do imposto de renda de 40% para 43% e reduzir os intervalos de renda para cada nível de contribuição. Além disso, o valor a partir do qual o contribuinte paga a alíquota máxima seria reduzido de uma renda mensal de US$ 21.390 (R$ 110,6 mil), para US$ 9.660 (R$ 50 mil). Isso aumentaria a base de contribuição e arrecadação, com mais pessoas pagando a alíquota máxima. Ainda assim, a estimativa do governo é de que apenas o 1% mais rico do país seria afetado, com cerca de 10 mil contribuintes pagando mais do que pagam atualmente. A estimativa de arrecadação é entre 0,34% e 0,43% do PIB chileno. A reforma chilena também propõe a criação de um imposto de 22% sobre dividendos, lucros distribuídos e ganhos de capital, que poderá ser depois deduzido da base do imposto de renda. Essa é uma forma de reduzir a diferença de tributação entre renda do capital e do trabalho, que beneficia os mais ricos, que são os que mais recebem rendimentos de capital. Os dois países também propõem impostos sobre patrimônio – conhecidos como IGF (imposto sobre grande fortunas), um tipo de imposto controverso e abandonado por alguns países que adotaram esse modelo no passado. Em sua proposta de reforma, o Ministério da Fazenda chileno argumenta que alguns dos problemas que levaram países a abandonar essa forma de tributação já foram superados, com o avanço da tecnologia utilizada pelas autoridades fiscais, por exemplo, e maior cooperação na troca de informações fiscais entre países, inibindo a evasão fiscal. Assim, o Chile propõe um imposto de 1% para patrimônios entre US$ 5 milhões e US$ 15 milhões (R$ 26 milhões a R$ 78 milhões) e de 1,8% para fortunas acima desse valor, visando taxar o 0,2% mais ricos – pouco mais de 6 mil pessoas. A expectativa de arrecadação do governo é de 0,48% do PIB chileno com o tributo. A Colômbia, desde 2019, estabeleceu um imposto com taxa única de 1% sobre riquezas acima de US$ 105 mil (R$ 543 mil). A reforma aprovada em novembro elevou a faixa de isenção para US$ 574 mil e criou faixas de imposto que variam de 0,5% a 1,5%, tornando a tributação mais progressiva. Com isso, o governo colombiano espera arrecadar o equivalente a 0,18% do PIB do país. "O sistema tributário brasileiro é regressivo: a população de baixa renda é muito tributada. Um caminho para reduzir essa desigualdade seria onerar mais o topo da distribuição, aumentando a progressividade do Imposto de Renda e a participação desse imposto sobre a carga tributária total do Brasil", defende Resende, lembrando que, atualmente, os impostos indiretos sobre o consumo representam a maior parcela da arrecadação, o que pesa mais sobre os mais pobres. 3. O sistema tributário não é neutro do ponto de vista das desigualdades "Embora o sistema tributário não tenha regimes diferenciados por gênero, raça ou classe, um sistema igual em uma sociedade desigual reproduz desigualdades", afirmam Resende e Henrique, sobre a terceira lição que as reformas tributárias chilena e colombiana ensinam. A reforma tributária chilena, por exemplo, tem grande preocupação com a questão de gênero e o cuidado de crianças, idosos e pessoas com deficiência – que em geral recai sobre mulheres. Segundo os economistas do Made-USP, o próprio aumento da progressividade do imposto de renda já reduz a desigualdade de gênero. Isso porque o 1% mais rico no Chile tem muito mais homens do que mulheres (são quatro homens para cada mulher nessa faixa mais abastada). Além disso, a proposta chilena inclui a possibilidade de dedução de gastos com cuidado para crianças com menos de 2 anos, idosos e pessoas com deficiência – incluindo creches, lares para idosos e cuidadores domiciliares, como domésticas e enfermeiras – e propõe destinar parte do aumento da arrecadação esperada para a criação de um sistema público de cuidado. No Brasil, Resende cita estudo do Made-USP de novembro de 2022, que mostrou que, entre o 1% mais rico do país, negros pagam mais Imposto de Renda do que brancos. Isso acontece porque os brancos mais ricos recebem parcela relevante de sua renda por meio de lucros e dividendos – atualmente isentos de IR – , enquanto os negros mais ricos são em sua maioria funcionários públicos assalariados, cujos rendimentos são taxados a alíquotas nominais que chegam a 27,5%. Assim, uma reforma tributária pode ser um instrumento para redução de desigualdades não só de renda, mas de gênero e raça, desde que ela seja planejada para essas finalidades. 4. Instrumentalizar a proteção ao meio ambiente e o desenvolvimento regional Chile e Colômbia criaram mecanismos para tornar sua política fiscal um instrumento na luta contra as mudanças climáticas e reduzir desigualdades regionais dentro dos países, dizem os pesquisadores da USP. Importante exportador de cobre e outros minerais, o Chile propõe a criação de um royalty sobre mineração, para que a riqueza produzida pela exploração desses recursos finitos gere renda para o Estado e seja distribuída à sociedade através de fundos de desenvolvimento e investimento regional. Já a Colômbia optou por um imposto nacional sobre o carbono, que incidirá sobre a venda, consumo e importação de combustíveis fósseis. Dos recursos arrecadados, 80% serão destinados a um Fundo para a Sustentabilidade e Resiliência Climática, voltado à gestão da erosão costeira, redução do desmatamento e preservação de ecossistemas e da biodiversidade. Outros 20% vão para um programa de "substituição de cultivos de usos ilícitos", parte do programa de paz em andamento no país — a substituição de cultivo é um dos meios pelos quais o governo colombiano tenta convencer agricultores a deixarem de plantar a coca que abastece o narcotráfico. Os pesquisadores da USP observam, porém, que a tributação de carbono, embora importante para desacelerar a emissão de gases do efeito estufa, é regressiva – isto é, pesa mais para as famílias de menor renda, que destinam parcela maior dos seus gastos ao consumo dos produtos afetados pela alta de impostos. A reforma colombiana tenta mitigar esse efeito através de mecanismos de isenção para a população mais vulnerável. A reforma colombiana também cria um imposto sobre plásticos de uso único e aumenta impostos sobre bebidas açucaradas a alimentos ultraprocessados, visando desincentivar o consumo desses produtos, cuja ingestão em excesso gera custos ao sistema público de saúde. "Esse eixo do meio ambiente é fundamental, juntos com as desigualdades sociais. Não tem como o Brasil querer enfrentar as mudanças climáticas sem entender como isso está relacionado às vulnerabilidades sociais", defende Resende, lembrando que os vulneráveis são os mais afetados pelos efeitos das mudanças climáticas, como secas e enchentes. "A combinação entre atacar as desigualdades sociais de frente, e combinar isso com uma atuação em prol da proteção do meio ambiente e preservação da nossa biodiversidade é fundamental. É o que nós esperamos desse governo." Apesar do exemplo de outros países sul-americanos, os analistas reconhecem que as condições enfrentadas por Petro na Colômbia, Boric no Chile e Lula no Brasil são diferentes. E avaliam que o governo brasileiro terá diversos desafios pela frente em seu processo de reforma tributária. Um primeiro desafio, diz Resende, é a própria conjuntura em que o atual governo foi eleito, que resulta em não só um parlamento, mas uma população dividida. "Por isso a importância de o governo trazer essa discussão para o debate público de uma forma transparente, para fazer a população ver os benefícios que estão em jogo", defende a economista, lembrando que o Congresso brasileiro, mesmo em tempos de menor polarização, não tem sido historicamente favorável a reformas progressivas do sistema tributário. "Pelo contrário, o que mais é aprovado no Parlamento são desonerações de todo tipo", destaca, observando que essas desonerações tendem a favorecer grupos de interesses específicos, em detrimento da maior parcela da sociedade. Um segundo desafio é o de conciliar os interesses de Estados, municípios e do governo federal, num país de grandes dimensões como o Brasil. Aqui, dizem os pesquisadores, os fundos de desenvolvimento regional podem ter papel relevante. Por fim, um terceiro desafio decorre da estratégia do governo de fazer a reforma de maneira fatiada, em duas etapas. Embora a estratégia tenha como benefício uma possível aprovação rápida da simplificação dos impostos sobre consumo em um IVA (Imposto sobre Valor Agregado) – proposta que já tem anos de debates acumulados no Congresso e é considerada madura para ser votada –, corre-se o risco de o governo gastar todo o fôlego reformista nesta primeira etapa e acabar deixando de lado a segunda fase, que atacaria a questão do Imposto de Renda e da progressividade do sistema tributário. "Existem vantagens e desvantagens na estratégia do governo, mas há de fato o risco de a segunda etapa ficar para um momento indeterminado. Talvez para nunca. Esse é um risco que o governo vai correr", alerta a pesquisadora.
2023-07-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2jpn9z0yjeo
brasil
Devolução de imposto? Quem pode ser beneficiado e quem pagaria mais na reforma tributária
A reforma que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva deseja aprovar no Congresso neste ano busca simplificar o sistema tributário, unificando diversos tributos que hoje são cobrados sobre a produção e a comercialização de produtos e serviços. A proposta, que pode aumentar a produtividade da economia e alavancar o crescimento, é debatida há décadas no país. Ela tem enfrentado dificuldades para sair do papel porque impacta interesses de diferentes setores econômicos e mexe na arrecadação da União, de Estados e municípios, demandando ampla negociação. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), afirmou que pretende fazer com que a votação da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 45 — um dos principais projetos de reforma no Congresso — ocorra até sexta-feira (7/7). Em seguida, a matéria iria para o Senado — e o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), disse que pretende levar a pauta ao plenário no segundo semestre. Além da simplificação do sistema, o governo defende a criação de um mecanismo que devolveria aos mais pobres o imposto cobrado sobre seu consumo, medida que contribuiria para reduzir a elevada desigualdade de renda no país. A ideia é que essa devolução substitua desonerações que hoje beneficiam toda a população, sem distinção entre ricos e pobres, como no caso da cesta básica. Fim do Matérias recomendadas A proposta implicaria que o novo imposto tenha uma alíquota um pouco maior para os segmentos de renda média e alta, mas o governo argumenta que o impacto geral da reforma continuaria beneficiando todos os grupos sociais devido aos ganhos de crescimento econômico (entenda melhor ao longo da reportagem). "Significa que os mais ricos vão ser prejudicados? Não, eles serão menos beneficiados do que os mais pobres", disse o secretário da Reforma Tributária do Ministério da Fazenda, Bernard Appy, em fevereiro, durante evento do banco BTG, ao defender a devolução de impostos. Segundo a especialista em questões tributárias Melina Rocha, diretora de cursos na York University, no Canadá, hoje há um consenso de que esse modelo – que substitui a desoneração de produtos como cesta básica por desoneração de pessoas – é mais justo. "Há um duplo benefício: não só o pobre deixa de pagar o imposto sobre produtos essenciais, porque esse imposto vai ser devolvido, mas também a família mais pobre vai ser beneficiada porque o governo está arrecadando mais riqueza de quem tem mais capacidade para pagar tributo e vai aplicar esse dinheiro para políticas públicas que geralmente se revertem para os mais pobres", ressalta. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Segundo estudiosos do assunto, adotar a devolução para os mais pobres não seria algo complexo, pois o país já conta com um sistema de cobrança de impostos bem informatizado e com um amplo cadastro nacional de famílias de menor renda, o Cadastro Único (CadÚnico), que serve de referência para programas sociais, como o Bolsa Família. Uma iniciativa pioneira que devolve parte do ICMS às famílias mais pobres foi adotada pelo Rio Grande do Sul em 2021 e tem servido de inspiração para a proposta nacional. O Ministério da Fazenda estuda também experiências internacionais, como a devolução de impostos adotada no Uruguai, na Colômbia e no Canadá. No caso do Rio Grande do Sul, o Devolve ICMS já distribuiu R$ 278 milhões desde seu início e hoje atende cerca de 600 mil famílias gaúchas inscritas no CadÚnico ou que tenham um dependente na rede estadual de ensino médio. Essas famílias, que devem ter renda total de até três salários mínimos ou renda média por pessoa inferior a meio salário mínimo, recebem trimestralmente por meio de um cartão o valor fixo de R$ 100, como devolução do imposto. Há também uma parcela variável paga àquelas que solicitam inclusão do CPF na nota fiscal, a depender do valor consumido. No último trimestre, essa parcela extra foi de cerca de R$ 28 em média por família. "A grande virtude do programa (do Rio Grande do Sul) é mostrar que a devolução é factível. Vejo ainda muitos questionamentos dizendo que seria difícil devolver impostos, mas temos instrumentos e tecnologia suficiente para fazer isso no Brasil", disse à reportagem Giovani Padilha, auditor Fiscal da Receita gaúcha e autor da tese de doutorado que gerou a criação do Devolve ICMS. O principal objetivo da reforma tributária é simplificar o sistema. Há duas alternativas principais já em análise no Congresso, ambas propostas de emenda constitucional (PEC). A PEC 45 prevê unificar cinco tributos (IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS) no Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que funcionaria como um Imposto sobre Valor Agregado (IVA), comum em países desenvolvidos. Esse modelo evita o acúmulo de tributos ao longo da cadeia produtiva. Já a PEC 110 previa originalmente unificar nove impostos, mas sua última versão é mais modesta. Ela sugere um IVA duplo: o IBS substituiria apenas o ICMS (impostos estadual) e o ISS (impostos municipal). Já a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) unificaria Cofins e PIS (impostos federais). As duas PECs já preveem a possibilidade de adotar a devolução de parte dos impostos aos mais pobres. A PEC 110 prevê que o retorno do tributo será criado por meio de uma lei complementar. Já a PEC 45 estabelece que o IBS terá um adicional em sua alíquota para custear esse programa. Uma simulação feita por professores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) para estimar o impacto da devolução de impostos aos mais pobres, por exemplo, estipulou que a alíquota básica do IBS seria de 24,19% num cenário sem devolução. Esse seria o patamar necessário para manter a mesma arrecadação dos cinco impostos que seriam unificados. Já no cenário com devolução haveria uma alíquota um pouco maior, que foi fixada em 24,55% na simulação (saiba mais ao longo da reportagem). Os autores da simulação — que não corresponde necessariamente ao que será aprovado no Congresso — são os economistas Edson Domingues e Débora Freire, que hoje está na equipe do Ministério da Fazenda como subsecretária de política fiscal. O governo não enviará ao Parlamento uma nova proposta de reforma tributária. O objetivo é coordenar as negociações em cima dessas duas PECs já em tramitação para chegar a um desenho final que tenha apoio para ser aprovado. Especialistas dizem que apenas a unificação de impostos, sem a devolução aos mais pobres, já teria o impacto de beneficiar os grupos de menor renda. De modo geral, a forma como a produção e o consumo são tributados hoje gera uma carga maior sobre as famílias mais pobres. Isso porque atualmente o consumo de bens tem carga tributária maior que o de serviços. E os brasileiros de menor renda concentram seu consumo mais em itens básicos, enquanto aqueles com mais dinheiro conseguem consumir mais serviços, como jantar em um restaurante ou ir a um show pago. A simplificação do sistema tributário com a unificação de impostos deve reduzir esse problema, porque, de modo geral, tende a reduzir a carga tributária sobre a produção de bens pela indústria e elevar a que incide sobre o setor de serviços. Mas o impacto na redução da desigualdade será bem maior caso haja a devolução de impostos. E o impacto para cada grupo de renda vai depender do que de fato for aprovado e implementado: por exemplo, qual será a alíquota do novo imposto, quanto vai ser devolvido, e quais famílias terão direito. Os autores consideraram que a devolução seria feita para as famílias do CadÚnico, no valor máximo de R$ 13,22 por pessoa, que corresponde ao arrecadado com itens da cesta básica segundo o padrão de consumo de famílias com renda familiar de até R$ 1.908, de acordo com a Pesquisa de Orçamento Familiar do IBGE de 2017/2018. Nessa simulação, famílias com renda per capita mensal de até R$ 178 receberiam o valor teto (R$ 13,22 por pessoa). Já famílias com renda familiar per capita de até meio salário mínimo teriam benefício de 75% do valor teto (R$ 9,25 por pessoa). Enquanto as de renda per capita acima de meio salário mínimo receberiam 35% do valor teto (R$ 4,63 por pessoa). No total, R$ 9,8 bilhões seriam devolvidos no ano para 72,3 milhões de pessoas. Por outro lado, a simulação indica que as duas medidas juntas tenderiam a reduzir um pouco a capacidade de consumo de famílias com renda a partir de quinze salários mínimos (hoje em R$ 19.530). Já as famílias com renda intermediária teriam um ganho de capacidade de consumo mais modesto (menos de 5%), que seria menor quanto maior fosse a renda. Essa simulação, no entanto, não leva em conta o ganho de produtividade esperado para a economia com a simplificação do sistema tributário. Uma projeção do economista da FGV Bráulio Borges indica que uma reforma tributária nos moldes da PEC 45 poderia elevar o PIB potencial brasileiro em 20% em 15 anos. Outras projeções menos otimistas indicam que o impacto no PIB no longo prazo, isto é, quando todos os ganhos da reforma forem absorvidos pela economia, seria de ao menos 12%, ressalta Debora Freire. "O pequeno efeito de queda no consumo dos mais ricos, dado pelos impactos de realocação (da carga tributária) com a mudança de base tributária e alíquotas, seria mais que compensado pelo efeito expressivo no crescimento", afirmou à reportagem. "Principalmente porque a renda dos mais ricos sofre impacto importante do crescimento. Haja vista que a distribuição de renda é muito concentrada no Brasil, quem apropria a maior parte do crescimento são os mais ricos", reforçou a economista. Hoje, o sistema tributário brasileiro é bastante regressivo, ou seja, pesa proporcionalmente mais sobre aqueles que ganham menos. Isso acontece por diversos motivos. Um deles é que o Brasil tributa mais consumo do que renda e patrimônio. Como os mais pobres têm baixíssima capacidade de poupança, seu dinheiro costuma ser usado integralmente em consumo. Já os mais ricos conseguem guardar parte do seu dinheiro e constituir patrimônio, pagando proporcionalmente menos de sua renda em imposto. A reforma que unifica impostos não vai impactar essa questão, mas outras medidas em estudo no governo, como passar a taxar lucros e dividendos distribuídos pelas empresas a acionistas, aumentariam a carga tributária sobre os mais ricos. Por outro lado, a promessa de campanha de Lula de isentar o imposto de renda de pessoas que ganham até R$ 5 mil é controversa, pois beneficiaria um segmento de renda relativamente alta no país. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o rendimento domiciliar per capta brasileiro é de R$ 1.625 (dado de 2022). Outro fator que torna o sistema regressivo, já citado, é o modo como a produção e o consumo são tributados, com carga mais elevada sobre indústria e mais leve sobre serviços. Um terceiro fator são desonerações (descontos de tributos) que favorecem em especial as pessoas mais ricas, como a restituição de imposto de renda sobre gastos particulares em saúde e educação. Até mesmo desonerações que foram adotadas para favorecer os mais pobres, na prática, beneficiam os segmentos de maior renda. É o caso da cesta básica. Segundo o relatório dos professores da UFMG, o corte de tributos sobre a cesta básica significou uma perda de R$ 18,6 bilhões em arrecadação para a União em 2016 e reduziu em apenas 0,1% o índice Gini (indicador que mede a desigualdade de renda). Já políticas de transferência de renda, como o Bolsa Família, reduziram no mesmo ano 1,7% o Gini a um custo de R$ 28 bilhões. "Ou seja, o Bolsa Família foi 12 vezes mais eficiente na redução de desigualdades que a desoneração da cesta básica", diz o relatório. Segundo os autores, isso ocorre por dois motivos: "as reduções (sobre itens da cesta básica) beneficiam os produtores, que repassam apenas parte da desoneração para os preços, aumentando a margem de lucro de pessoas que, na sua maioria, pertencem a classes mais ricas; e os estratos de alta renda da população também consomem produtos básicos", sendo beneficiados pela desoneração pensada para favorecer os mais pobres.
2023-07-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/czrmrngwevdo
brasil
As medidas para evitar que El Niño provoque 'hecatombe' na Amazônia
O El Niño pode causar uma “hecatombe ambiental” na Amazônia neste ano ou no início do próximo, afirma a bióloga brasileira Erika Berenguer, pesquisadora das universidades de Oxford e Lancaster, ambas no Reino Unido. O fenômeno climático, que envolve um aquecimento incomum no Oceano Pacífico, deve ser bastante intenso neste ano e pode causar mudanças acentuadas em todo o mundo. Recentemente, os climatologistas anunciaram que o fenômeno já se formou e irá se fortalecer entre o fim do ano e os primeiros meses de 2024. Um dos temores de pesquisadores brasileiros são os problemas que isso pode causar na Amazônia. Uma das principais dificuldades, apontam os especialistas, é a seca extrema causada pelo El Niño, o que pode culminar em grandes problemas em meio à devastação da Amazônia nos últimos anos, período em que o bioma enfrentou altos índices de desmatamento e incêndios. Fim do Matérias recomendadas “Isso (o desmatamento) só começou a cair principalmente a partir de abril deste ano. Se esse El Niño for realmente forte, o que há grande probabilidade, é uma grande preocupação porque vai aumentar o número de incêndios e destruir ainda mais a floresta, acelerando o processo de degradação”, diz Carlos Nobre, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP). Naquela época, o fenômeno causou efeitos devastadores em diferentes regiões do mundo. Na Amazônia, houve redução de chuvas e intensa seca em uma mata que normalmente é úmida, cenário que favoreceu a disseminação do fogo causado por humanos. “Eu passei meses na Amazônia em 2015 (no período de El Niño) e foi traumático olhar tudo aquilo”, diz Berenguer. "Eram milhares e milhares de áreas de floresta queimando e isso dava uma sensação de impotência. Tenho muito medo porque se acontecer algo semelhante agora, após tanto desmatamento, o El Niño pode causar uma verdadeira hecatombe ambiental", acrescenta a bióloga. O governo federal disse à BBC News Brasil que tem acompanhado o avanço do El Niño e que tem se preparado para enfrentar os possíveis impactos do fenômeno climático (leia mais abaixo). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A Amazônia enfrentou um período intenso de desmatamento e incêndios durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Na gestão Bolsonaro, eram recorrentes críticas de pesquisadores sobre a falta de fiscalização ambiental no país e o sucateamento de órgãos de fiscalização. “No governo anterior houve muito desmatamento, mas, em relação às questões climáticas, como quando ocorreram os grandes incêndios na Amazônia em 2019, o clima não era tão seco", comenta a bióloga Joice Ferreira, pesquisadora da Embrapa Amazônia Oriental e da Rede Amazônia Sustentável. "Então, se a gente pode dizer assim, a sociedade brasileira teve sorte, porque o que foi ruim (nos anos anteriores) poderia ter sido muito pior se estivéssemos em um ano seco." No ano passado, o desmatamento na Amazônia bateu um novo recorde. Segundo monitoramento feito via satélite pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), a cobertura vegetal da floresta perdeu 10.573 km², uma área semelhante a quase 3 mil campos de futebol por dia. É o maior número anual, ao menos, desde 2008 – ano em que o Imazon começou a monitorar a região. De acordo com o levantamento, foi o quinto ano consecutivo de recorde de desmatamento desde o início do monitoramento. Nos últimos quatro anos, segundo o Imazon, a perda florestal da Amazônia foi correspondente a 35.193 km² – área maior que os estados de Sergipe (21 mil km²) e Alagoas (27 mil km²). Por diversas vezes, Bolsonaro minimizou os números sobre desmatamento e incêndios na Amazônia, mesmo com os dados oficiais mostrando alta nos indicadores. “Os ataques que o Brasil sofre quando se fala em Amazônia não são justos. Lá, mais de 90% daquela área está preservada. Está exatamente igual quando foi descoberto no ano de 1.500”, disse Bolsonaro em novembro de 2021, durante uma reunião com investidores em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos. Em fevereiro deste ano, o desmatamento na Amazônia atingiu 322 km², número que equivale a aproximadamente o tamanho da cidade de Fortaleza (CE). O dado, divulgado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), é o recorde daquele mês desde 2015, quando esse levantamento começou a ser feito – o maior número até então no mesmo mês era de fevereiro de 2022, com 199 km². “Não dá pra avaliar muito bem somente com o dado mensal. Existe o problema das nuvens. O ideal é analisar pelo menos três meses (juntos) para minimizar as incertezas. Por isso, não sugiro associar o desmatamento de um mês com ações de um governo”, diz o pesquisador Luiz Aragão, chefe da Divisão de Observação da Terra e Geoinformática do Inpe. Aragão frisa que ao analisar os primeiros meses do ano, é possível notar queda no desmatamento no bioma. Segundo o Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real (Deter), do Inpe, o desmatamento na Amazônia caiu 31% no acumulado de janeiro a maio de 2023, em comparação ao mesmo período do ano passado. Os pesquisadores acreditam que, entre as principais medidas para reduzir os danos do El Niño, estão a fiscalização intensa sobre o fogo na região, especialmente as consideradas menos úmidas, e alertas para a população sobre os riscos de incêndios no período de seca. “Essas ações, caso implementadas, têm capacidade de prevenir e evitar essa grande catástrofe que pode acontecer se não houver nenhuma ação”, diz Ferreira. Berenguer avalia que ainda há tempo para enfrentar o problema de uma forma que seja possível minimizar os impactos do fenômeno climático. “Não acho que ainda seja o fim do mundo. A gente ainda tem cerca de dois meses para se preparar e lidar com essa crise climática. Não está tudo perdido, mas o relógio está fazendo tic-tac”, afirma a bióloga. O El Niño tem sido uma preocupação para o governo federal, afirma à BBC News Brasil o presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Rodrigo Agostinho. "O El Niño, de fato, pode trazer um período de seca notadamente na região Norte do país e isso pode ter implicações no agravamento dos problemas dos incêndios florestais”, diz. “A chegada do El Niño está sendo um processo bastante rápido e está sendo monitorada pelos técnicos do PrevFogo (Sistema Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais).” Agostinho afirma que o Ibama tem mantido contato com as principais agências de meteorologia do país para acompanhar o avanço do fenômeno climático e se organizar para enfrentar os possíveis impactos. Ele aponta que o orçamento do instituto aumentou 113%, em relação ao ano anterior. Recentemente, o órgão abriu edital para a contratação de brigadistas. “A previsão é de um aumento de aproximadamente 18% de brigadistas em relação a 2022, com atuação de 2.101. Destes, 1.385 atuarão na Amazônia Legal (AM, AP, AC, RR, MT, RO, TO, MA), ou seja, um aumento de 15% do número de brigadistas previstos nos estados em comparação ao ano passado”, diz nota do instituto, que informa que 57% das brigadas serão compostas por indígenas e quilombolas. Segundo o instituto, desde janeiro deste ano houve aumento das medidas aplicadas pela fiscalização federal para controlar o desmatamento na Amazônia. O Ibama afirma que ocorreu um aumento de 179% dos autos de infração, 128% dos embargos, de 107% das apreensões e 203% das destruições de equipamentos usados em crimes ambientais, entre janeiro e maio, na comparação com a média para o mesmo período nos últimos quatro anos. O presidente do instituto frisa à BBC News Brasil que uma das principais preocupações no atual período são as áreas da Amazônia que foram desmatadas nos últimos anos. “De fato, elas podem sofrer bastante com os incêndios florestais”, diz Agostinho. O fogo costuma fazer parte de uma das etapas do processo de desmatamento no bioma. Isso porque a queima é considerada o meio mais rápido e barato para remover a biomassa que fica do material desmatado. Em alguns casos, o fogo se espalha de forma descontrolada, se tornando um incêndio florestal, avança pela mata e atinge grandes proporções. Isso ocorre, segundo estudiosos, principalmente para a expansão da área de agropecuária por grandes propriedades. A reportagem procurou setores do agronegócio para comentar sobre as ações de desmatamento no bioma, mas eles optaram por não comentar o caso. Esses incêndios ocorrem principalmente no período de seca, que normalmente começa por volta de maio e se estende até outubro – o período exato varia conforme cada região. No ano passado, os registros de focos de calor (que costumam representar incêndios) na Amazônia foram os maiores em mais de uma década, segundo dados do Inpe, que faz esse monitoramento via satélite desde 1998. Em 2022, foram registrados 115 mil focos de calor na Amazônia, segundo o Inpe. O dado mais recente que atingiu marca superior a essa foi 2010, quando foram 134,6 mil focos de calor no bioma. A diferença, apontam os pesquisadores, é que houve uma forte seca em 2010, que intensificou as queimadas. Já em 2022, segundo os especialistas, não foi considerado um período de seca no bioma. Em meio a esses problemas dos últimos anos, a Amazônia encara o risco de enfrentar um El Niño intenso. No começo de junho, cientistas americanos afirmaram que o fenômeno climático já havia começado a afetar o planeta. Chefe de previsões de longo prazo da agência britânica de meteorologia, Adam Scaife disse no começo de junho que a previsão é de que a temperatura do planeta atinja um pico no final deste ano. "Um novo recorde de temperatura global no próximo ano é definitivamente possível. Depende do tamanho do El Niño. Um El Niño em grande escala até o final deste ano confere uma alta probabilidade de que teremos um novo recorde global de temperatura em 2024”, afirmou Scaife. Para especialistas, o período do El Niño deve causar diversos problemas na Amazônia. O bioma sofre com os impactos das mudanças climáticas e, desde o início dos anos 2000, tem ficado mais seco e quente, segundo os estudos. “Com o El Niño, a floresta perde ainda mais água e entra em um déficit hídrico. Só esse efeito já tende a matar muitas árvores da região, parte da biomassa daquela floresta morre só por esse efeito da seca intensa”, diz o pesquisador Luiz Aragão, do Inpe. Com o cenário de seca, o fogo entra na floresta com mais intensidade. “De todos os incêndios na Amazônia, 95% são causados por humanos. Primeiro derrubam a floresta, como para fazer pastagem, normalmente esperam a madeira secar bastante e jogam fogo. É um ciclo de degradação”, explica Nobre. A bióloga Erika Berenguer ressalta que é provável que parte do material derrubado durante o intenso desmatamento da Amazônia no ano passado ainda não tenha sido queimada. “Esses últimos meses foram de chuva, então, não tinha como colocar fogo. Então, o que normalmente ocorre é que o produtor rural espera chegar a estação seca, deixa a biomassa da floresta derrubada pegando sol, espera por semanas ou meses até ficar bem seco e, aí, acende o fogo”, explica Berenguer. Há diversas consequências que podem ser causadas pelo El Niño na Amazônia. Uma delas é o duro impacto nas emissões de dióxido de carbono, em razão da possibilidade de inúmeras mortes de árvores, o que intensifica o efeito estufa. “Os organismos decompositores dessas árvores liberam carbono para a atmosfera. Uma árvore que morre mesmo sem qualquer tipo de interferência, envelheceu e morreu, tem carbono contido em sua biomassa, que equivale a cerca de metade de seu peso, e que será emitido para a atmosfera por meio desse processo de decomposição”, explica Aragão. Já o desmatamento causa a morte forçada das árvores, que são derrubadas pela ação humana. Só isso já emitiria carbono com a decomposição. E como o fogo também é usado nesse processo, para acabar com a biomassa que está na área desmatada, ocorre então a combustão do material, o que aumenta ainda mais a liberação de dióxido de carbono e outros gases como monóxido de carbono e metano. “Quando o fogo entra na floresta, adiciona emissões diretas de carbono, em relação ao emitido pelo desmatamento, porque vai queimar a matéria orgânica que está morta no solo, como pedaços de troncos, folhas e também algumas árvores”, detalha Aragão. Esses processos contribuem para o aumento das emissões do CO², que intensificam as mudanças climáticas globais, intensificando eventos extremos de seca e chuva. No período do El Niño de 2015/2016, por exemplo, um estudo apontou que a intensa seca e os incêndios florestais mataram ao menos 2,5 bilhões de árvores e cipós apenas no Baixo Tapajós, uma parte da floresta que foi epicentro dos efeitos do fenômeno climático na Amazônia naquela época. Os pesquisadores calcularam quanto carbono foi liberado na atmosfera em consequência da morte dessas bilhões de árvores: 495 milhões de toneladas de CO² — valor maior que o liberado pela floresta em um ano inteiro de desmatamento. E descobriram ainda que as árvores continuaram a morrer e a liberar mais carbono na atmosfera por causa da seca provocada pelo El Niño anos depois do fenômeno climático. Esse estudo, intitulado “Tracking the impacts of El Niño drought and fire in human-modified Amazonian forests" (monitorando os impactos da seca e incêndios do El Niño em florestas amazônicas com interferência humana), foi publicado no periódico científico PNAS (Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America) em julho de 2021. Berenguer foi a principal autora do estudo. Ela ressalta que os possíveis impactos do El Niño na Amazônia vão além da floresta e devem afetar milhões de pessoas. “Não é só uma discussão ambiental sobre as emissões de CO2 com a floresta queimando e a perda de biodiversidade. É também um problema de saúde pública. Isso aumenta a busca por atendimento médico por problemas respiratórios. Muitas crianças são internadas, o que acaba tirando muitos pais de seus postos de trabalho”, diz Berenguer. “Além disso, há aviões que enfrentam dificuldades para pousar em alguns lugares, a fumaça também vai para outras regiões do país, entre outros problemas.”
2023-07-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cx05w4kee92o
brasil
Mundo eliminou 'uma Suíça' em florestas em 2022 — e Brasil liderou perdas
Cerca de 11 campos de futebol de floresta foram perdidos a cada minuto — e o Brasil foi o país que registrou maior destruição. Uma redução acentuada na perda de florestas na Indonésia, no entanto, mostra que é possível reverter essa tendência. Um dos momentos-chave na reunião do clima em 2021 foi quando mais de cem líderes mundiais assinaram o Pacto de Glasgow sobre florestas, segundo o qual se comprometeram a trabalhar coletivamente para "interromper e reverter a perda de florestas e a degradação da terra até 2030". Fim do Matérias recomendadas Os líderes de países que assinaram o documento representam, no total, 85% das florestas globais. Isso inclui o então presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, que relaxou a aplicação das leis ambientais em nome de desenvolvimento na floresta amazônica. O pacto de Glasgow foi firmado depois que um acordo anterior assinado em 2014 falhou em conter a perda implacável de árvores. Agora, uma nova análise realizada pela Global Forest Watch mostra que a nova promessa feita em Glasgow também não está sendo cumprida. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A perda de florestas tropicais é vista como particularmente impactante para o aquecimento global e a perda da biodiversidade. As florestas tropicais do Brasil, República Democrática do Congo e Indonésia possuem enormes quantidades de carbono armazenadas em suas árvores. Desmatar ou queimar essas florestas mais antigas faz com que o carbono armazenado seja liberado na atmosfera, elevando as temperaturas em todo o mundo. Além disso, sua existência regula o clima de outras formas — umidade, regime de chuvas, etc. Essas florestas também são essenciais para manter a biodiversidade e os meios de subsistência de milhões de pessoas. Cientistas alertam que essas funções — ou "serviços ecossistêmicos" — não podem ser facilmente substituídas pelo plantio de árvores em outro lugar, porque essas florestas se desenvolveram durante um longo período de tempo. São florestas primárias, ou seja, que fazem parte do ecossistema há muitas eras, e têm características muito diferentes das florestas em locais que já foram desmatados pela atividade humana e depois reflorestados. De acordo com os novos dados, coletados pela Universidade de Maryland, os trópicos perderam no ano passado 10% a mais de floresta primária do que em 2021, com pouco mais de 4 milhões de hectares (mais ou menos a área da Suíça, que é um pouco menor do que a do Estado do Rio de Janeiro) derrubados ou queimados no total. Isso liberou uma quantidade de dióxido de carbono equivalente às emissões anuais de combustível fóssil da Índia. "A questão é: estamos no caminho para deter o desmatamento até 2030? E a resposta curta é um simples não", diz Rod Taylor, do World Resources Institute (WRI), que dirige o Global Forest Watch. "Globalmente, estamos muito longe do ideal e seguindo na direção errada. Nossa análise mostra que o desmatamento global em 2022 foi mais de 1 milhão de hectares acima do nível necessário para atingir o desmatamento zero até 2030." O Brasil dominou o desmatamento de floresta tropical primária em 2022. No Estado do Amazonas, que abriga mais da metade das florestas intactas do Brasil, a taxa de desmatamento quase dobrou nos últimos três anos. A Bolívia, um dos poucos países a não assinar a Declaração de Glasgow, também teve uma rápida aceleração das perdas florestais em 2022. A agricultura de commodities é o principal impulsionador, de acordo com os pesquisadores. A expansão da soja resultou em quase um milhão de hectares de desmatamento na Bolívia desde a virada do século. Embora Gana, na África Ocidental, tenha apenas uma pequena quantidade de floresta primária restante, houve um aumento maciço de 71% no desmatamento em 2022, principalmente em áreas protegidas. Algumas dessas perdas estão próximas de fazendas de cacau. Embora o quadro geral não seja bom, há alguns resultados positivos que mostram que é possível conter o desmatamento. A Indonésia reduziu sua perda de floresta tropical primária mais do que qualquer outro país nos últimos anos, desde que registrou um recorde histórico em 2016. A análise sugere que isso se deve a ações governamentais e corporativas. Uma suspensão temporária relativa à extração de madeira em novas plantações de óleo de palma tornou-se permanente em 2019, enquanto os esforços para monitorar e limitar incêndios foram intensificados. É uma história semelhante à da Malásia. Em ambos os países, as empresas de óleo de palma também parecem estar agindo, com cerca de 83% da capacidade de refino de óleo de palma operando agora sob comprometimentos de não desmatar e não drenar turfeiras. Em relação ao Brasil, com o governo de Luiz Inácio Lula da Silva se comprometendo a acabar com o desmatamento na Amazônia até 2030, analistas apontam que há uma esperança renovada de que as promessas feitas em Glasgow em 2021 possam ser cumpridas nos próximos anos. Mas se o mundo quiser manter as temperaturas globais abaixo do limite crítico de 1,5°C, o tempo para agir nas florestas é realmente muito curto, dizem os pesquisadores. “Há uma urgência em atingir o pico e o declínio no desmatamento, ainda mais urgente do que o pico e o declínio nas emissões de carbono”, diz Rod Taylor, do WRI. "Porque uma vez que você perde florestas, elas são muito mais difíceis de recuperar. Elas são uma espécie de ativos irrecuperáveis." A perda de cobertura arbórea pode ser monitorada com relativa facilidade por meio da análise de imagens de satélite — embora às vezes haja incerteza sobre o ano exato em que as árvores foram perdidas. Medir o desmatamento — que normalmente se refere à remoção permanente da cobertura florestal natural causada pelo homem — é mais difícil e complicado, porque nem toda perda de cobertura de árvores conta como desmatamento. Por exemplo, perdas causadas por incêndios, doenças ou tempestades, bem como perdas em florestas de produção sustentável, normalmente não contam como desmatamento. Existem dificuldades com isso — por exemplo, alguns incêndios podem ter sido iniciados deliberadamente para limpar uma floresta, em vez de serem naturais. Os cientistas tentam levar todos esses fatores em consideração para chegar a uma estimativa do desmatamento. Os números mais recentes sugerem um aumento no desmatamento global (causado pelo homem) de cerca de 3,6% em 2022 em comparação a 2021 — a direção oposta ao que foi prometido em Glasgow. Curiosamente, enquanto as perdas das florestas tropicais primárias particularmente importantes aumentaram quase 10% em 2022, a perda global de cobertura de árvores por todas as causas caiu quase 10%. Mas os pesquisadores dizem que isso ocorreu porque as perdas por incêndios florestais caíram em 2022, principalmente na Rússia. Acredita-se que isso não faça parte de uma tendência de longo prazo. De fato, as perdas de cobertura arbórea causadas por incêndios geralmente aumentaram nas últimas duas décadas, e espera-se que os incêndios se tornem mais comuns no futuro devido às mudanças climáticas e alterações na forma como a terra é usada.
2023-07-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c04527kp5g8o
brasil
A família que mora há mais de 100 anos em casa agora espremida por prédios em São Paulo
Therezinha Eugênia Pinheiro Lima, de 90 anos, mora há 70 deles em um sobrado na Vila Mariana, bairro de classe média no centro-sul da capital paulista. Antes dela, o imóvel pertenceu aos avós paternos de Maria Angélica e Adriana, as filhas de dona Therezinha, de modo que a casa guarda memórias da família há mais de um século. Nos últimos anos, no entanto, Therezinha e as filhas viram todos os antigos vizinhos irem embora, a maioria das casas do entorno serem demolidas e torres de apartamentos do tipo estúdio, com unidades de 16 a 33 m², serem erguidas atrás, à direita e à esquerda do imóvel. Agora, o sobrado é um ponto sem sol, espremido pelos prédios. "Das janelas dos apartamentos, jogam de tudo. Já jogaram absorvente, bituca de cigarro, embalagem de sabonete e de comida, garrafas", conta Adriana, sobre o que já recolheu de seu quintal. Fim do Matérias recomendadas Casos do tipo se multiplicam em São Paulo e urbanistas avaliam que devem se tornar ainda mais frequentes com a revisão do Plano Diretor Estratégico do município, aprovada na Câmara de vereadores ao fim de junho (veja detalhes do projeto abaixo). O relator da proposta, que expande os eixos de verticalização na cidade, discorda dessa avaliação e diz que construir para o alto é a chance de São Paulo ampliar a ocupação nos bairros centrais e cumprir a promessa de ampliar a habitação para baixa renda nas áreas mais bem servidas de transporte. Seu dispositivo não consegue visualizar essa imagem Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Com a gente, [a abordagem dos corretores] começou em 2010, mas a gente nem acreditava. A gente ria, e pensava: 'Quem vai vender aqui? O seu Pássaro [um vizinho de longa data] vai vender? Imagina... Ninguém aqui vai vender'", lembra Maria Angélica, de 43 anos e nutricionista. "E as abordagens nunca são feitas de forma amigável, é sempre na base da ameaça. Eles diziam: 'Se você não vender, vai ficar no meio dos prédios, não vai ter sol. Nós vamos construir o prédio do mesmo jeito e aí, lá de cima, vão jogar de tudo'", conta Adriana, de 55 anos. A corretora chegou a ficar meses com o carro parado na porta da casa, lembra a também nutricionista. "Minha mãe não conseguia pôr a chave no portão, que ela [a corretora imobiliária] vinha: 'Oi, tudo bem? Posso entrar?'. Quando ouvia que não, a conversa mudava de tom: 'Depois que a gente construir, você não vai vender essa casa nunca mais. Nunca ninguém vai querer essa casa, então acho melhor você vender'", diz Adriana, lembrando das conversas com a corretora. As demolições das casas vizinhas começaram por volta de 2015, contam as irmãs. "Você só se dá conta do que está acontecendo quando chegam os carros de mudança", diz Adriana. "É uma coisa que dói na alma, porque ali era a casa do seu Pássaro, a outra era a casa do Malandrino, e eu brincava com os filhos dele. Mas a verdade é que a demolição, de todo o processo, é a parte menos traumática", acrescenta a irmã mais velha. As obras começaram por volta de 2018, segundo as irmãs, e a família passou a conviver com o barulho ininterrupto das estacas, entrega de material de construção na madrugada e o tráfego de caminhões, que por mais de uma vez destruiu a calçada da casa. Junto a isso, vieram os abalos na estrutura do imóvel, que sofreu com rachaduras e infiltrações, segundo as irmãs, nunca devidamente compensadas pela construtora. "Eles não se responsabilizam por nada e, quando você reclama, de novo, você escuta assim: 'Está vendo? Por que você não vendeu?'", conta Adriana. Questionada sobre os problemas apontados pela família durante as obras, a incorporadora Vitacon, responsável por dois dos prédios vizinhos à casa, informou que "apura os referidos relatos e está à disposição para possíveis esclarecimentos". Conforme o Código Civil, quando uma construção provoca estragos em um imóvel vizinho, cabe ao responsável pela obra arcar com os custos de reparo, desde que comprovado o vínculo de causa e efeito. Os transtornos, no entanto, não terminaram com as obras. Depois vieram os novos vizinhos, principalmente estudantes universitários, ou pessoas de passagem, que alugam os pequenos apartamentos vendidos "para investimento", com ganhos por meio de serviços como o Airbnb, de aluguel por temporada. Barulho e lixo jogado pela janela tornaram-se problemas frequentes. Com relação ao barulho, o principal problema são as festas que, realizadas nos apartamentos minúsculos, tomam as varandas, com conversa e música alta até a madrugada, contam as irmãs. Reclamar é difícil, diz Adriana, pois alguns dos novos prédios não têm porteiro, apenas portaria eletrônica com um profissional que fica em outro lugar e diz que não pode fazer nada sem saber o número exato do apartamento que está incomodando. A polícia também, quando chamada, muitas vezes não faz nada, afirmam as vizinhas. Outro problema frequente são os carros que param na frente da casa, bloqueando o carro da família. Com dona Therezinha aos seus 90 anos, as irmãs se preocupam se isso um dia ocorrer em alguma situação de emergência. "Você reclama e ninguém está nem aí, chama a CET [Companhia de Engenharia de Tráfego] e nada acontece", diz Adriana, expressando sua sensação de impotência. Apesar de todos os novos problemas, a família não pensa em vender a casa. Segundo as irmãs, a decisão da família de ficar não é nenhum movimento de resistência. "Não é resistir. Quando se fala dessa forma, dá a impressão que eles fazem uma proposta muito boa e que a pessoa está resistindo diante de uma oferta irrecusável. Mas não é isso, a proposta é uma porcaria. Com o que eles ofereceram, não poderíamos comprar uma casa de padrão similar em lugar nenhum", diz Maria Angélica. "E não é que a gente não quis de forma alguma. Tivemos uma conversa com a mamãe, explicamos a ela o que poderia acontecer, como a casa ia ficar", lembra Adriana. "Foi uma opção dela, ela até se emocionou um dia, dizendo: 'Eu não quero sair da minha casa'. E nós respeitamos essa decisão." A cerca de 7 km da casa de Therezinha, no bairro de Pinheiros, zona oeste de São Paulo, os sócios em um negócio de arquitetura e decoração de interiores, Roberto Cimino e Nelson Amorim, vivem história similar, mas a encaram como uma jornada de fidelidade a seus princípios. A casa e escritório dos dois na Rua Francisco Leitão é a última em pé, de um conjunto de quatro casinhas geminadas, demolidas para dar lugar a um empreendimento imobiliário. Além das três casinhas geminadas, outros quatro sobrados do entorno também vieram abaixo, deixando a última casa restante cercada pelo canteiro de obras. Seu dispositivo não consegue visualizar essa imagem Roberto e Nelson moraram e trabalharam na casa da Francisco Leitão desde 2012 e, ao contrário da família da Vila Mariana, veem a escolha de não vender como um ato de resistência. "Nós transformamos esse imóvel, fizemos uma bela reforma nele e ficou extremamente aconchegante", conta Roberto. "Então ficamos esse período todo, até que chegou essa condição de exploração imobiliária. Eles já estavam cercando há muitos anos esse local, foram conseguindo a compra de um e de outro, até que chegou a nossa vez." Para os decoradores, uma série de fatores pesaram na escolha de não vender: o apego que tinham pelo local, o fato de que em um dos lados da casa será construída uma área verde e, como no caso da família de Therezinha, o valor considerado muito baixo para a compra do imóvel. "Eles ofereceram em troca do que era nosso escritório, nossa base, o que oferecem no mercado: apartamentos de 30, 28, 18, 14 m². Na contramão do que nós, como profissionais, com a visão que temos do ser humano habitar um espaço físico, acreditamos", diz Roberto. Decididos a não vender, os dois permaneceram na casa durante o processo de demolição dos vizinhos e construção e posterior demolição do estande de vendas. A situação se complicou, porém, na etapa de corte do terreno para construção das garagens subterrâneas e da fundação. "Nossa casa, por ser dos anos 1940, não tem estrutura convencional de concreto com alvenaria, ela é pura alvenaria, se suporta de um tijolo em cima do outro. Então, mesmo com todos os cuidados corretos de construção, a casa foi abalada", conta Roberto. Diante do abalo estrutural, a dupla deixou o imóvel e foi morar temporariamente num sobrado em uma vila próxima à Livraria Travessa de Pinheiros. "Ficamos ali um ano, até março ou abril deste ano, porque a vilinha também foi demolida", conta Nelson, num exemplo prático da velocidade do avanço imobiliário em Pinheiros e outros bairros tradicionais de São Paulo. Expulsos pela segunda vez em meio à verticalização acelerada, os arquitetos moram e trabalham agora num apartamento em Pinheiros. Após embates com a incorporadora You,Inc sobre compensações pela reforma da casa e pelo aluguel temporário, chegaram a um acordo que consideram satisfatório. Procurada para comentar o caso, a You,Inc afirmou em nota: "Referente à obra na Rua Francisco Leitão, a empresa sempre esteve à disposição do entorno, com objetivo de inibir transtornos aos moradores. As partes entraram em acordo e todas as providências estão sendo tomadas." Mesmo após o acordo, Roberto e Nelson lamentam a mudança acelerada do bairro. "É uma questão de visão humanista: como fazer moradias para seres humanos dessa forma? Destruindo outros, destruindo todo um entorno e seu modo de vida", questiona Roberto. "É claro que o progresso vai levar a uma movimentação daquele modo de viver, mas isso deveria ser feito com mais cuidado. É assim que a gente encara. Por isso, nós resistimos." Os casos da família de Therezinha e da dupla Roberto e Nelson não são isolados, estão acontecendo em diversos bairros de São Paulo, em meio ao avanço da verticalização. Vila Mariana e Pinheiros são apenas os exemplos mais gritantes, liderando demolições no município, conforme dados da Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento da Prefeitura de São Paulo. Na Vila Mariana, o valor médio do metro quadrado é de R$ 8.504 em 2023, enquanto em Pinheiros é de R$ 10.207, segundo levantamento da Loft — a título de comparação, o metro quadrado vale R$ 16.839 na Vila Nova Conceição e R$ 5.046 no Sacomã, respectivamente, o bairro mais caro e o mais barato de São Paulo, entre 57 analisados pela startup de imóveis. Somente nos últimos cinco anos, de 2018 a 2022, a Prefeitura concedeu 1.091 alvarás de demolição na Vila Mariana e 1.063 em Pinheiros, mais do que o dobro de alvarás concedidos na região da subprefeitura de Santo Amaro (508), terceiro colocado da lista. Por trás desse avanço das demolições — e, consequentemente, da construção de novos edifícios — nos dois bairros, está o Plano Diretor Estratégico (PDE) de São Paulo de 2014, aprovado durante a gestão do então prefeito Fernando Haddad (PT), hoje ministro da Fazenda. Nabil Bonduki, professor titular de planejamento urbano na USP (Universidade de São Paulo) e relator do Plano Diretor de 2014, lembra que a intenção do plano foi estimular o adensamento populacional em torno dos eixos de transporte público. Ou seja, aumentar a quantidade de pessoas vivendo perto de estações de metrô, trem e corredores de ônibus, aproximando a moradia das áreas com maior oferta de empregos e diminuindo o tempo de deslocamento urbano. "Foram incluídas regras que estimulam apartamentos de menor tamanho para ter maior adensamento perto das áreas de transporte coletivo de massa, protegendo, por outro lado, os miolos de bairros", diz Bonduki, em entrevista à BBC News Brasil. Segundo o urbanista, o objetivo foi dar maior racionalidade ao processo de verticalização, antes dispersa, além de inibir a expansão horizontal da cidade, com o avanço das periferias sobre áreas verdes, em consonância com as diretrizes para combate às mudanças climáticas. Margareth Uemura, coordenadora de urbanismo do Instituto Pólis, avalia, no entanto, que o PDE de 2014 falhou na sua intenção de trazer a população de menor renda para morar perto dos eixos de transporte. E que a verticalização em curso não resulta necessariamente em maior adensamento. "A ideia do Plano Diretor era ter apartamentos que abrigassem pessoas de rendas diversas, mas principalmente incluir a população de menor renda próximo aos eixos de transporte", diz Uemura. Mas, ao longo dos anos, alterações na lei — principalmente aquelas que permitiram maior número de vagas de garagem — fizeram com que esses apartamentos fossem destinados a uma população de renda maior, que usa o carro e não o transporte público, e consome apartamentos maiores, afirma. "Esses empreendimentos acabaram sendo feitos demolindo conjuntos de casas de moradores que já estavam há anos em bairros consolidados", aponta a arquiteta e urbanista. "Ou seja, você está substituindo uma população que morava ali há muito tempo, com seus comércios e serviços, por imóveis vendidos para uma renda mais alta e monofuncionais [isto é, apenas residenciais e não de uso misto]", acrescenta. Questionada sobre os problemas na execução do PDE de 2014, a Prefeitura de São Paulo afirmou em nota que "na capital, uma unidade de habitação de interesse social foi licenciada, em média, a cada três horas pela Prefeitura nas regiões mais bem servidas de transporte desde a aprovação do Plano Diretor". Em números absolutos, foram 28,9 mil unidades licenciadas entre 2014 e 2021 e 130,9 mil unidades em Zeis (Zonas Especiais de Interesse Social), informou a administração municipal. Bonduki e Uemura concordam na avaliação de que a revisão do Plano Diretor, aprovada em segunda votação na segunda-feira (26/6) na Câmara Municipal de São Paulo, não resolve as deficiências do projeto original. Segundo eles, a mudança pode, na verdade, acentuar o conflito nos bairros, ao ampliar a área onde a verticalização é permitida. Pelas novas regras aprovadas, o chamado eixo de verticalização — onde não há limite de altura para os prédios — será expandindo dos atuais 600 m a partir de estações de metrô e trem e 300 m de corredores de ônibus para 700 m e 400 m, respectivamente. Além disso, os prédios poderão ter área construída maior, em relação ao terreno, desde que destinem parte de suas unidades à habitação social e incluam lojas na fachada dos prédios e salas comerciais. A nova versão do plano também tem regras que incentivam apartamentos maiores — numa tentativa de conter o avanço dos microapartamentos — e com mais de uma vaga de garagem. "A ampliação da área de verticalização descaracteriza a ideia de ter o adensamento próximo ao transporte coletivo e a proteção aos miolos de bairros", diz Bonduki. "Da maneira como foi proposto o substitutivo, ele agrava [o conflito nos bairros], porque a verticalização será mais permissiva", concorda Uemura. O vereador Rodrigo Goulart (PSD), relator da revisão do PDE, discorda da avaliação dos urbanistas. "A proposta apresentada por mim tem justamente o objetivo contrário ao de agravar o conflito nos bairros", disse Goulart por e-mail à BBC News Brasil. "O PDE de 2014 não conseguiu atingir o seu objetivo inicial, que era levar pessoas de todas as rendas, principalmente as mais carentes, para morar perto dos eixos. Com os incentivos que estamos dando agora para HIS (Habitação de Interesse Social) queremos justamente corrigir essa distorção", acrescentou o vereador. "Lamento que tais especialistas tenham essa visão distorcida da realidade", completou. O texto deve ainda passar pela aprovação do prefeito Ricardo Nunes (MDB). A permissão para verticalizar será então debatida quadra a quadra na revisão da lei de zoneamento, que também será analisada pela Câmara. Para Nabil Bonduki, o conflito entre moradores de casinhas e incorporadoras e construtoras é uma parte natural do processo de transformação das cidades. "Uma propriedade com baixíssima densidade do lado de uma estação de metrô não está cumprindo a função social da propriedade", diz Bonduki. "Perder esse local pode ser algo ruim para a pessoa, mas esse é um interesse individual. Estamos falando aqui do interesse coletivo", defende. Já Margareth Uemura, do Instituto Pólis, avalia que há uma disparidade de forças na disputa entre famílias e empresas e que caberia ao Estado proteger a parte mais fraca. "O pequeno proprietário da casa fica medindo forças com incorporadora e construtora, numa relação totalmente desleal. Então o Estado deveria proteger esse cidadão — não só através da diretriz do Plano Diretor, mas também de todas as regras de uso e ocupação, porque o que vem acontecendo é que os prédios confinam as casas, como estão confinando também várias vilas." Reportagem do jornal Folha de S.Paulo publicada em junho mostrou que metade das doações de campanha de vereadores de São Paulo veio de pessoas ligadas ao setor imobiliário. Os políticos dizem, no entanto, que os recursos não interferem em sua atuação na Câmara ou no debate sobre as mudanças no Plano Diretor. Para a família de Therezinha, há mais de cem anos no sobrado da Vila Mariana, agora cercado por prédios, os moradores antigos de bairros devem ter sua escolha de permanecer respeitada. "Tenho direito de decidir onde quero morar", diz Maria Angélica. "Ninguém quer mexer nesse vespeiro que é o fato de as construtoras mandarem nesse país."
2023-07-03
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brasil
Ficar inelegível é fim da linha? Os 'ex-inelegíveis' que voltaram à política
Por 5 votos a 2, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu tornar o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) inelegível por oito anos. O prazo é contado a partir de 2022. Dessa forma, Bolsonaro, de 68 anos, ficará fora das eleições até 2030, quando terá 75 anos. Mas a inelegibilidade não significa necessariamente o fim de uma carreira política. Em alguns casos, a decisão foi revertida. Em outros, o prazo da inelegibilidade se esgotou, abrindo caminho para um retorno à política. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o ex-presidente Fernando Collor de Mello (PTB) são exemplos disso. Fim do Matérias recomendadas Lula chegou a ser considerado inelegível pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e não pôde disputar a Presidência em 2018 devido à condenação em 2ª instância por órgão colegiado de Justiça. Já Collor não pôde concorrer a cargo público por oito anos após ser alvo de impeachment em 1992. Estes são os exemplos mais notórios — há também outros políticos que foram considerados inelegíveis e tentaram voltar à cena sem sucesso. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O presidente foi considerado inelegível pelo TSE em setembro de 2018. Na ocasião, por seis votos a um, a Corte decidiu pela rejeição do pedido de registro de candidatura do petista à Presidência. A maioria dos ministros também proibiu Lula de fazer campanha como candidato, inclusive na propaganda de rádio e TV. Como resultado, o PT teve que substituí-lo por Fernando Haddad, ex-prefeito de São Paulo na época e atual ministro da Fazenda. No julgamento, os ministros acolheram contestação do Ministério Público (MP) pela inelegibilidade de Lula com base na Lei da Ficha Limpa. Lula havia sido condenado em janeiro de 2018 pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, no caso do triplex em Guarujá (SP), no âmbito da Operação Lava Jato. Ele sempre negou as acusações. Lula estava preso desde abril daquele ano, cumprindo pena de 12 anos e 1 mês de prisão em Curitiba. Em abril de 2021, contudo, o STF anulou as ações penais contra o petista por não se enquadrarem no contexto da Lava Jato. Segundo o ministro Edson Fachin, relator, as denúncias formuladas pelo Ministério Público Federal contra Lula nas ações penais relativas aos casos do triplex do Guarujá, do sítio de Atibaia e do Instituto Lula (sede e doações) não tinham correlação com os desvios de recursos da Petrobras e, portanto, com a Operação Lava Jato. Nesse sentido, apoiado em entendimento do STF, entendeu que deveriam ser julgadas pela Justiça Federal do Distrito Federal e não no Paraná. Lula foi, assim, considerado "ficha limpa" e pôde voltar a concorrer à Presidência, vencendo a eleição no ano passado. O ex-presidente ficou inelegível por oito anos, após ser alvo de um impeachment em 1992. Ele foi julgado no Senado em 29 de dezembro daquele ano, após várias manobras para adiar o julgamento. Collor chegou a renunciar ao cargo logo após o início da sessão, na tentativa de escapar da pena da inelegibilidade, mas o Senado levou adiante o julgamento e o condenou à inelegibilidade. Ele recorreu ao STF, mas sua apelação foi rejeitada - a pena foi confirmada em dezembro de 1993. Um ano depois, o Supremo inocentou Collor da acusação de corrupção passiva por falta de provas. O empresário Paulo César Farias, conhecido como PC Farias, que havia sido o tesoureiro de sua campanha e pivô do escândalo que abalou seu governo, também foi inocentado da acusação. PC Farias foi encontrado morto, junto com sua namorada Suzana Marcolino, em 1996, em um crime até hoje sem solução. Collor chegou a oficializar sua candidatura à Presidência da República pelo PRN, PST e PRTB em 1998. Segundo sua defesa, a decisão do Senado não constituía um impedimento para disputar cargos eletivos. Mas o STF negou seu direito a concorrer e confirmou sua inelegibilidade. Em 1999, Collor pediu a transferência de seu domicílio eleitoral para São Paulo e se filiou ao PRTB. Ele tentou concorrer à Prefeitura de São Paulo em 2000, sem sucesso. Acabou eleito senador por Alagoas em 2006, cargo que manteve até o início deste ano após seguidas vitórias nas urnas. No ano passado, em vez de tentar novamente a reeleição, decidiu disputar o governo do Estado e não chegou ao segundo turno. Em maio deste ano, Collor se tornou inelegível pela segunda vez, ao ser condenado pela maioria dos ministros do STF por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Ele e outros dois réus foram apontados como participantes de um desvio de cerca de R$ 20 milhões da BR Distribuidora, antiga subsidiária da Petrobras, privatizada no governo Bolsonaro, em decorrência das investigações da Operação Lava Jato. Todos negaram as acusações. O ex-deputado federal e ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha foi considerado inelegível devido à decisão da Câmara dos Deputados, em 2016, de cassar seu mandato de deputado federal por quebra de decoro parlamentar, que ele sempre rebateu. No entanto, uma decisão judicial do Tribunal Regional Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) que suspendia os efeitos da cassação, o tornou elegível, razão pela qual Cunha conseguiu registrar sua candidatura a deputado federal no ano passado. Essa mesma decisão do TRF-1 foi posteriormente suspensa pelo STF. Mas o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) de São Paulo entendeu que Cunha, no momento em que homologou o registro da canditatura a deputado federal pelo PTB, ainda estava elegível devido à decisão do TRF-1. A Corte permitiu-lhe, portanto, concorrer. Cunha obteve 5.044 e não se elegeu. O ex-governador da Paraíba Cassio Cunha Lima (PSDB) teve duas condenações por abuso de poder político e econômico, além de uso indevido dos meios de comunicação durante a campanha eleitoral de 2006, quando disputava a reeleição. Ele sempre rebateu as acusações. Cunha Lima acabou tendo o mandato cassado e o TRE-PB o considerou inelegível para disputar as eleições de 2010. Ele recorreu da decisão, mas, na época, por maioria, o TSE o manteve inelegível. Naquele pleito, no qual concorreu a uma vaga no Senado, ele obteve mais de 1 milhão de votos. Em 2012, depois de o STF decidir não retroagir a Lei da Ficha Limpa, Cunha Lima pôde assumir a cadeira. Ele exerceu o mandato de senador até 2019.
2023-06-30
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Bolsonaro inelegível: as alternativas do ex-presidente na Justiça e na política após decisão do TSE
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) declarou nesta sexta-feira (30/6) Jair Bolsonaro (PL) inelegível por oito anos, contados a partir da eleição de 2022, levando o ex-presidente a dizer que levou "uma facada nas costas" e que não está "morto" politicamente. Apesar da inelegibilidade valer a partir de agora, essa disputa judicial dificilmente se encerrará por aqui. O ex-mandatário pode apresentar recursos no próprio TSE e já anunciou que poderá acionar o Supremo Tribunal Federal (STF). Tudo depende da estratégia que a defesa escolher, conforme explicam especialistas. À BBC News Brasil, o advogado de Bolsonaro, Tarcísio Vieira, afirmou nesta sexta após o julgamento que vai esperar a publicação oficial da decisão para decidir qual caminho seguirá. A inelegibilidade significa que, daqui pra frente, o ex-presidente não pode se candidatar a nenhum cargo eletivo até outubro de 2030, mas ainda pode continuar filiado ao seu partido e receber salário da sigla. Fim do Matérias recomendadas Essa punição tampouco traz restrições à expressão de opiniões por Jair Bolsonaro, de acordo com os entrevistados. Ao mesmo tempo, o caso julgado no TSE é apenas um de vários processos contra Bolsonaro não só na Justiça eleitoral, mas também na Justiça comum. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Somente no TSE, há um total de 18 ações de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) contra Bolsonaro, incluindo a julgada agora. As AIJEs tratam de acusações de abuso de poder nas eleições e têm como pena a inelegibilidade - caso Bolsonaro venha a ser novamente condenado, no entanto, não haverá acréscimo no período em que ficará inelegível. Segundo o Partido Democrático Trabalhista (PDT), que apresentou a ação julgada desde a quinta-feira (22) da semana passada, a reunião com embaixadores fez parte de uma campanha sistemática do então presidente para minar a credibilidade do sistema eleitoral, visando questionar o resultado da eleição em caso de derrota. O argumento foi endossado pelo Ministério Público Eleitoral (MPE) na ação. Já a defesa de Bolsonaro defendeu no tribunal que o então presidente estava protegido pela liberdade de expressão e conduziu a reunião com a intenção de "aprimorar o processo de fiscalização e transparência do processo eleitoral”. O relator da ação no TSE, Benedito Gonçalves, acatou o argumento e foi acompanhado por 5 dos 7 juízes da corte. A BBC News Brasil pediu entrevista para três parlamentares do PL sobre a situação jurídica e política de Bolsonaro, mas eles preferiram não se pronunciar. O primeiro e mais óbvio recurso que a defesa de Bolsonaro tem é no próprio TSE, onde pode apresentar os chamados embargos de declaração. "Os embargos de declaração servem pra você suprir uma omissão, uma lacuna no voto, uma obscuridade, uma dúvida, ou para corrigir um erro material... É um recurso dirigido ao próprio órgão que julgou", explica Jamile Coelho, advogada especializada em Direito Eleitoral, membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Política (Abradep) e desembargadora eleitoral substituta no Tribunal Regional Eleitoral de Alagoas (TRE-AL). Os embargos de declaração devem ser apresentados no prazo de três dias após a publicação da decisão a ser contestada. A princípio, o plenário do tribunal teria que avaliar o recurso dentro de cinco dias. Este prazo para os juízes, porém, não costuma ser seguido na prática, afirma a especialista. "O Ministério Público, os advogados têm que entrar [com o recurso] no prazo, sob pena de não acessar aquele direito. Mas os prazos dos juízes são sempre impróprios, ou seja, não tem nenhuma punição se não forem seguidos." Mas tanto Coelho quanto o professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Wallace Corbo afirmam que os embargos normalmente são julgados rapidamente e dificilmente alteram o resultado de um julgamento — ainda mais no caso em questão. "É muito difícil que, em um caso tão complexo, que demandou tanta análise do TSE, que haja uma mudança de entendimento por conta desse recurso", aponta Corbo, doutor em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mesmo que não mude o resultado, é esperado que a defesa de Bolsonaro acione esse recurso porque é um caminho natural dentro do próprio TSE e porque protelar essa disputa judicial pode dar margem para Bolsonaro continuar se apresentando como um candidato viável até que não haja mais recursos possíveis. Outra alternativa jurídica à disposição de Bolsonaro é o recurso extraordinário no Supremo Tribunal Federal (STF), que seria julgado pelo plenário da Corte. Assim como o embargo de declaração, este recurso não suspenderia a inelegibilidade do ex-presidente. "É um recurso em que se alega algum tipo de violação à Constituição, e aí o Supremo seria o responsável por julgar esse recurso e manter a decisão do TSE, ou mudar em algum aspecto a decisão", diz Corbo. "Em um caso, por exemplo, que envolva o Direito Eleitoral, uma parte pode alegar que o entendimento do TSE violou seus direitos políticos previstos na Constituição, que violou o devido processo legal." Corbo explica que a defesa só pode apresentar um recurso por decisão judicial, portanto, deverá escolher se acionará os embargos de declaração no TSE ou o recurso extraordinário no STF. Mas Coelho lembra que há uma ordem pra isso: os embargos de declaração precedem o recurso extraordinário — ou seja, não pode ocorrer a ordem contrária, com recurso primeiro no STF e depois voltando para o TSE. Então os caminhos possíveis são a defesa entrar com um recurso primeiro no TSE e depois no STF, ou acionar direto o STF. Coelho acredita que a defesa de Bolsonaro vai seguir com o recurso primeiro no TSE. "Em regra, se entra com os embargos de declaração, até para você delimitar o que você quer jogar para o Supremo Tribunal Federal", diz a advogada. Ela acrescenta que o recurso extraordinário não analisa mais provas, apenas a questão da constitucionalidade. A advogada avalia que as próprias divergências no julgamento do TSE devem ser aproveitadas no recurso — como a polêmica inclusão da chamada minuta golpista no processo, já que esse fato vai além do escopo principal da AIJE julgada no TSE, referente à reunião com embaixadores em julho de 2022. Em um encontro do PL na semana passada, Jair Bolsonaro falou que está pensando em se candidatar a vereador pelo Rio de Janeiro em 2024 e depois, "se estiver vivo até lá e também elegível", tentar a Presidência em 2026. Ele minimizou a inelegibilidade determinada pelo TSE afirmando que o contexto poderia mudar. "Só por curiosidade, o presidente do TSE em 2026 será o Kassio Nunes, que eu indiquei. O vice-presidente do TSE em 26 [2026] será o terrivelmente evangélico André Mendonça, que eu indiquei. As coisas mudam", disse o ex-presidente. Dias depois, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo publicada segunda-feira (26), Bolsonaro admitiu que poderia ficar inelegível, mas afirmou que pretendia seguir na vida pública. Já nesta sexta ele falou em recorrer ao STF contra decisão já esperada. Quando perguntado sobre possíveis sucessores, ele demonstrou timidamente que poderia apoiar alguns nomes que têm sido apontados para esse posição — como sua própria mulher, Michelle Bolsonaro, e o atual governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos). "Se ela quiser, ela pode sair candidata. Mas o que eu converso com a Michelle é que ela não tem experiência", disse sobre a ex-primeira dama. Sobre o governador de São Paulo, Bolsonaro o descreveu como um "excelente gestor" e, perguntado sobre se o apoiaria como candidato à Presidência, respondeu: "Pode ser. Teria que conversar com ele". Para o cientista político Jefferson Barbosa, independente do resultado no TSE e da manutenção ou não da inelegibilidade após recursos, Bolsonaro capitalizaria sobre a situação. "Como herói ou como mártir, a imagem vai trazer seus dividendos. É claro que, para o partido [PL] é muito melhor o ex-presidente como candidato. Entretanto, se não ocorrer, toda esta simbologia e esse peso do mito político vai render créditos para aquele que se alçar a herdeiro para o próximo processo eleitoral”, aponta Barbosa, doutor pela Unesp e professor na instituição. O cientista político destaca que, mesmo antes do julgamento, a imagem de Bolsonaro como uma vítima do sistema já estava sendo impulsionada nas bases sociais — online e offline — de seus apoiadores. "Toda a sua base eleitoral, seus militantes mais aguerridos, os chamados bolsonaristas, terão munição para trabalhar a imagem da condenação do ex-presidente. A ideia do mito Bolsonaro ganha então novos ingredientes: o mártir, aquele que foi atacado por forças que estão trabalhando contra o que eles colocam como o 'povo brasileiro'". Para o especialista, a inelegibilidade de Bolsonaro não o torna um peso morto para o PL — pelo contrário, porque o ex-presidente vai mais uma vez, com este novo episódio, “aglutinar forças” da direita e da direita radical. “É curioso o próprio pêndulo do Partido Liberal: ele esteve na aliança governamental petista e, agora, está com o bolsonarismo, simplesmente pela rentabilidade da imagem deste e deste movimento”, diz Barbosa. "Parece que o Partido Liberal e os seus congressistas estão aderindo cada vez mais a esta pauta da moral, dos costumes, da religião. Porque isto garante votos.” Para o cientista político, a inelegibilidade de Bolsonaro tem duração incerta não só pela possibilidade de recursos judiciais, mas também pela própria instabilidade do contexto político e social do Brasil. "Podemos lembrar, por exemplo, que um [ex-]presidente ser condenado hoje nada garante que ele ficará inelegível pelos próximos oito anos. Afinal, os rumos políticos brasileiros têm sido muito instáveis nos últimos anos. O próprio atual presidente Lula teve seus direitos políticos cassados, foi preso, e a base de apoiadores de Bolsonaro não levava em conta a possibilidade da sua candidatura, muito menos sua vitória eleitoral.” Barbosa diz que, com base em fatos ocorridos na política brasileira nos últimos anos, elementos como a pressão social e do Legislativo podem eventualmente afetar os rumos da inelegibilidade de Bolsonaro — uma combinação complexa de fatores como a que levou ao impeachment de Dilma Rousseff (PT) em 2016 e à prisão e absolvição de Lula. Um exemplo já visível dessa pressão via Legislativo é a mobilização liderada pelo deputado federal Sanderson (PL-RS), o qual anunciou que pretende apresentar um projeto de lei para anistiar todos os crimes eleitorais que não tenham envolvido violência e corrupção no pleito de 2022 — algo que poderia beneficiar diretamente Bolsonaro. Barbosa lembra que o governo atual do PT foi formado por uma frente ampla heterogênea e tem dificuldades de articulação com o Congresso, o que pode contribuir para instabilidades. Ele destaca também a possível influência no Brasil do cenário internacional, sobretudo nos Estados Unidos, onde o republicano Donald Trump pretende se candidatar novamente à Presidência em 2024 em meio a diversas investigações e processos judiciais, inclusive pelo ataque ao Capitólio em janeiro de 2021 — semelhante em vários pontos ao ocorrido em 8 de janeiro em Brasília. "Temos então, um momento de incertezas. Desde a situação do trumpismo, se ele vigorará, aos rumos da economia brasileira", diz o cientista político.
2023-06-30
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4nk4xp4x85o
brasil
Por que problemas na Justiça deixaram Bolsonaro inelegível e podem fortalecer Trump em disputa por Presidência?
Analistas políticos advogam que nunca houve um líder político mais parecido com o ex-presidente americano Donald Trump do que o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PL). Enquanto estiveram no poder, ambos mantiveram estilos de governo semelhantes: fortemente baseados em comunicação direta com os eleitores, via rede social, com agenda conservadora nos costumes, amplo apoio de grupos evangélicos, e discurso nacionalista. Diante da disputa — e da derrota — para a reeleição, os dois mobilizaram os apoiadores com acusações sem provas de fraude para desacreditar o sistema eleitoral. Fim do Matérias recomendadas O ex-presidente brasileiro foi acusado de abuso de poder político e econômico por ter convocado uma reunião com embaixadores para fazer falsas acusações ao sistema eleitoral. Além deste caso, Bolsonaro é alvo de inquéritos por fake news e milícias digitais há dois anos e também enfrenta investigações pelos atos de 8 de janeiro, por falsificação de cartão vacinal e pelo caso das joias presenteadas pelo governo saudita e retidas na Receita Federal. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Se as trajetórias de ambos são tão semelhantes enquanto estiveram no coração do poder, nos últimos meses, porém, o roteiro das histórias tem tomado rumos opostos. Longe de ferir a imagem pública de Trump, os revezes judiciais parecem — até agora — ter dado força ao republicano. Ele desponta como o favorito para se consolidar não apenas como o candidato do Partido Republicano, como sustenta boas chances de voltar a ocupar a Casa Branca em 2025, segundo pesquisas eleitorais. De acordo com o agregado de pesquisas do site americano FiveThirtyEight, em meados de fevereiro, dias antes dos indiciamentos, Trump tinha 41,9% das intenções de voto nas primárias republicanas, contra 38,7% do governador da Flórida Ron DeSantis, seu principal oponente. Agora, Trump registra 51,9%, contra 23,8% de DeSantis. Ou seja, a diferença que foi de pouco mais de 3 pontos percentuais subiu para mais de 28 pontos após os indiciamentos. Embora ainda falte mais de um ano para a disputa, Trump já aparece entre 3 e 4 pontos percentuais à frente do presidente Joe Biden, provável candidato democrata em 2024, nas sondagens nacionais. Já Bolsonaro viu seus auxiliares mais próximos serem presos em casos que respingam na imagem do próprio ex-presidente e foi aconselhado pelos líderes da direita brasileira a submergir desde que deixou o posto. Ele admitiu nesta semana que já esperava pelo resultado no TSE, ao afirmar em entrevista à Folha de S.Paulo que "a tendência, o que todo o mundo diz, é que eu vou me tornar inelegível". O tom resignado de Bolsonaro contrasta com as manifestações abundantes de Trump que acusa a Justiça americana de "caça às bruxas". Pesquisas de opinião recentes têm sugerido que eleitores bolsonaristas começam a avaliar positivamente o governo do petista Luiz Inácio Lula da Silva (PT). De acordo com levantamento da Quaest divulgado em 21 de junho, entre os que votaram 22 no ano passado, a aprovação do governo Lula passou de 14% para 22%. Já sobre a inelegibilidade do ex-presidente, o país estava dividido, com ligeira vantagem dos que querem o impedimento de Bolsonaro: 47% a 43%. O descasamento do destino entre Trump e Bolsonaro é explicado por fatores como a ausência de Lei da Ficha Limpa nos Estados Unidos, o conteúdo dos processos contra cada um deles, além da organização partidária diferente nos países, segundo analistas. Entenda os principais pontos a seguir: Embora Donald Trump tenha deixado a Presidência dos Estados Unidos há mais de dois anos, foi apenas em março de 2023 que ele acabou indiciado pela primeira vez, em um processo liderado pela promotoria de Nova York, e em um caso envolvendo um suposto envolvimento com uma atriz pornô que remonta à sua primeira eleição, em 2016. Seu primeiro indiciamento federal, em que é acusado de deliberadamente manter em sua posse documentos ultra secretos e obstruir a Justiça, sairia quase 3 meses mais tarde, em junho. A demora, segundo a avaliação do analista político Brian Winter, editor da revista Americas Quarterly, não se deve só ao já normalmente moroso desenrolar dos processos judiciais nos Estados Unidos. "A diferença é que o Judiciário brasileiro tem processado Bolsonaro com uma velocidade que o sistema americano não foi capaz e acho que é porque nos Estados Unidos temos um tabu em relação a acusar ex-presidentes. E essa foi uma linha que a Justiça americana não estava disposta a cruzar ou demorou para fazê-lo", afirma Winter. A história americana levou 234 anos até que Trump inaugurasse o hall de ex-mandatários do país alvos de indiciamento judicial. Em contraste, no Brasil, apenas entre os presidentes do recente período democrático, tanto Lula quanto Michel Temer (MDB) já foram presos, ambos em decorrência da Operação Lava Jato. O próprio Lula se tornou inelegível, o que o impediu de concorrer à eleição de 2018, vencida por Bolsonaro. Fernando Collor de Mello (PTB) foi condenado a 8 anos e 10 meses de prisão em maio, e recorre em liberdade. Outros ex-presidentes, como José Sarney (MDB) e Dilma Rousseff (PT), também enfrentaram investigações. No caso de Bolsonaro, parte dos processos começou ainda em seu período como presidente, o que não foi o caso com Trump. E, seis meses após sua saída do Palácio do Planalto, o ex-presidente foi declarado inelegível. "Todo mundo sabe que um ex-presidente pode ir para a cadeia no Brasil. Isso já aconteceu antes na história, o público reconhece a possibilidade e os próprios políticos também, haja visto o modo relativamente calmo com que Bolsonaro reage ao assunto. Nos Estados Unidos, por outro lado, tem havido uma certa hesitação das instituições", diz Winter. Ele exemplifica: "Se você pegar o caso no Estado de Nova York, o promotor original decidiu não processar o caso. Houve uma mudança (no quadro de autoridades), e o novo promotor resolveu levar o caso adiante. Mas a essa altura, já era 2023 (7 anos transcorridos). O Judiciário brasileiro abriu processos contra Bolsonaro muito antes." Para ele, o fato de que a Justiça dos Estados Unidos levou tanto tempo para apresentar qualquer processo contra ele na Justiça permitiu que Trump se reorganizasse politicamente após a derrota eleitoral e o episódio de 6 de janeiro. Isso não aconteceu com Bolsonaro. Outro ponto central para as diferenças entre o atual momento de Trump e o de Bolsonaro está na organização do Judiciário e da legislação eleitoral em cada país. O Brasil possui um conjunto de regras eleitorais federais, que regem tanto o modo como a eleição será feita em todo o país como determina o que é crime na competição nacionalmente. Isso inclui abuso de poder econômico e político, acusações que Bolsonaro enfrentou agora. Além disso, o Brasil possui tribunais regionais eleitorais (específicos para aplicar esse conjunto de leis em âmbito local) subordinados ao TSE, a quem cabe a última palavra sobre os resultados dos pleitos e de processos eleitorais. Entre o conjunto de leis eleitorais brasileiras, uma tem se mostrado especialmente relevante para determinar o cenário de competição política no país: a lei da Ficha Limpa. Sancionada em 2010, ainda no segundo governo Lula, a lei veda a candidatura de políticos condenados em decisões colegiadas de segunda instância. O dispositivo legal que tirou Bolsonaro das próximas eleições foi o mesmo que impediu o próprio Lula de disputar a Presidência em 2018. "Nos Estados Unidos, não existe absolutamente nada parecido com isso. O Trump pode ser condenado, preso, e seguir candidato de dentro da cadeia. E não há nada que impeça que ele vença as eleições e seja presidente atrás das grades", diz o internacionalista Carlos Gustavo Poggio, professor do Berea College, no Kentucky. Pelos processos que já enfrenta, em caso de condenação, Trump estaria sujeito a décadas de prisão. Mas ainda é incerto se o processo chegará a julgamento antes das eleições de 2024. Caso o pior cenário se confirme para Trump — o de concorrer à reeleição atrás das grades —, essa não seria uma situação de todo sem precedentes na história dos Estados Unidos. Em 1920, o candidato socialista Eugene Debs concorreu à Presidência enquanto estava encarcerado na Penitenciária Federal de Atlanta. Ele recebeu 914.191 votos (ou 3,4% do total). Debs havia sido condenado por sedição (perturbação da ordem pública) em setembro de 1918 por discursar contra o alistamento militar e contra o posicionamento do governo americano na Primeira Guerra Mundial. Nos Estados Unidos, não existe Justiça Eleitoral, e a eleição presidencial é feita via colégio eleitoral. Cada Estado possui um certo número de delegados e os candidatos precisam vencer as disputas estaduais para determinar o número de delegados que terão, e se somarão o suficiente para chegar à Casa Branca. Cada Estado determina suas próprias regras para a votação (alguns permitem voto por correio, antecipado, outros, apenas presencial e em dia específico), o que abre brecha para uma série de manobras políticas locais. A configuração do processo eleitoral americano fez com que os Estados Unidos fossem considerados a democracia liberal mais frágil das Américas no ranking do Electoral Integrity Project em 2022. Entre 29 países, os Estados Unidos aparecem em 15º lugar, atrás de Costa Rica, Brasil e Trinidad e Tobago (os demais países não foram considerados democráticos). É exatamente em um caso estadual que Trump potencialmente pode ter mais complicações. Ele é investigado por, entre dezembro de 2020 e janeiro de 2021, ter tentado reverter a estreita vitória de Biden na Geórgia. Após duas recontagens de votos que confirmaram a vitória de Biden em um estado tradicionalmente republicano, Trump passou a acusar publicamente as autoridades eleitorais locais de fraude. O ex-presidente também teria planejado o envio de falsos eleitores seus para testemunharem que a eleição havia sido roubada. Em janeiro, o presidente chegou a ligar para o secretário de Estado da Geórgia, Brad Raffensperger, e o exortou a "encontrar" 11.780 votos pró-Trump para que ele vencesse o pleito. O caso está sob liderança da promotoria de uns dos condados da Geórgia, Fulton, e a investigação ainda corre sob sigilo, mas Trump pode ser indiciado nos próximos meses. Os processos que cada um dos ex-presidentes já enfrenta também pesam para seu resultado político. No caso de Bolsonaro, ele foi julgado no TSE por ter feito, em 18 de julho, uma reunião com embaixadores estrangeiros no Palácio do Planalto, televisionada por veículos estatais e usada na campanha do então presidente, com alegações sem prova contra o sistema eleitoral brasileiro. Ele incluiu entre as provas, por exemplo, a minuta de golpe encontrada com auxiliares de Bolsonaro após sua saída do Planalto. Gonçalves sugeriu o envio do material ao Supremo Tribunal Federal para apuração de eventuais responsabilidades criminais do ex-presidente. Bolsonaro nega que tenha tido intenções e ações golpistas e diz apenas ter exercido sua liberdade de expressão na reunião com embaixadores. Já Trump ainda não enfrenta nenhum indiciamento conectado com seus ataques ao sistema eleitoral americano ou seu eventual papel na insurreição de 6 de janeiro. Tanto o caso da Geórgia quanto a investigação federal sobre a invasão do Capitólio ainda não chegaram a apontar as possíveis responsabilidades de Trump e indicar eventual julgamento, mesmo dois anos e meio após os fatos. Os indiciamentos de Trump são por ter, supostamente, falsificado registros contábeis da campanha de 2016 ao remunerar o silêncio de uma atriz pornô que alega ter tido um caso com ele e por ter mantido sob seu poder após deixar a Presidência, e ter aparentemente se recusado a devolver, documentos considerados sensíveis para a segurança nacional dos Estados Unidos. No primeiro caso, o escândalo já é conhecido do público há anos e jamais abalou a reputação de Trump junto a seu eleitorado. Além disso, juridicamente, especialistas questionam o potencial de condenação do caso. No segundo indiciamento, por violação da lei de segurança nacional e obstrução de justiça, Trump argumenta que sua ex-adversária, a democrata Hillary Clinton, compartilhou informações sensíveis em emails fora do servidor adequado em 2016 e não foi condenada por isso - e que seu delito seria semelhante ao dela. Depois que a casa de Trump na Flórida foi alvo de busca e apreensão pelo FBI, que recuperou as caixas de documentos secretos, material sensível de governo também foi encontrado na casa do presidente Biden e do ex-vice de Trump, Mike Pence. Ambos devolveram os documentos espontaneamente, mas os episódios reforçaram no público o argumento de Trump de que "é perseguido em uma caça às bruxas" da justiça. Bolsonaro mudou de partido várias vezes ao longo de sua trajetória política e, na Presidência, chegou a passar meses sem nenhuma filiação, na tentativa de montar uma legenda que nunca se consolidou. Em nenhum dos partidos que o acolheu, ele jamais exerceu completo controle da agremiação, e seu atual PL não é exceção. Já Trump, um outsider orgulhoso da política até 2016, foi capaz de dominar por completo a máquina do Partido Republicano, apontam analistas. Tanto para Poggio quanto para Winter, esta é uma diferença central entre ambos e determinante para os caminhos distintos em seus futuros. "Trump conseguiu capturar um partido bem estabelecido na sociedade norte-americana, em um sistema que é bipartidário. Ele transforma o Partido Republicano, ganha sua base, tem uma identificação", afirma Poggio. Ele relembra que parlamentares republicanos que denunciaram as ações de Trump logo depois do 6 de janeiro acabaram duramente punidos pelo eleitorado republicano com perdas de cargos nas eleições seguintes. "Já Bolsonaro nunca teve o partido, sempre foi uma questão meramente pessoal. E o sistema partidário brasileiro é muito mais fluído. Os interesses do Centrão são outros. Não há um apego institucional à figura do Bolsonaro. É tudo uma questão de conveniência política", complementa Poggio. O bolsonarismo atualmente se espalha por ao menos quatro partidos principais (União Brasil, PL, PP e Republicanos), e os líderes dessas siglas já se movimentam intensamente em busca de nomes alternativos à Bolsonaro para as urnas em 2026, em um sinal de que o campo da direita brasileira se vê em condições de superar o ex-presidente e aproveitá-lo apenas como cabo eleitoral. Isso não é verdade com Trump, que, apesar da profusão de pré-candidatos na primária republicana, não têm ao menos até agora desafiante à altura em seu campo político. Para Winter, porém, outro fator central para o enfraquecimento de Bolsonaro foi o multipartidarismo brasileiro. Ele diz que, como não estavam subordinados ao presidente em uma mesma estrutura partidária, outros agentes políticos chave foram capazes de agir com independência para esvaziar eventual pretensão de golpe e para reduzir o peso político de Bolsonaro após sua saída do poder. "O Brasil tem um sistema político muito fragmentado, que tradicionalmente pensamos como uma fraqueza, mas, na verdade, acabou se mostrando uma força, porque (o presidente da Câmara) Arthur Lira (de partido distinto de Bolsonaro) soube mostrar coragem e romper imediatamente com Bolsonaro uma vez que o resultado das eleições ficou claro", diz Winter. Ele afirma que Lira ter se pronunciado dentro de uma hora do fim da apuração dos votos em outubro para dizer que a vontade do povo deve ser respeitada foi um momento chave. "E a gente se pergunta: e se Mitch McConnell tivesse mostrado a mesma coragem?", questiona Winter, se referindo ao senador republicano líder da minoria que se recusou a reconhecer a vitória eleitoral de Biden por meses e só o fez depois que o ataque ao Capitólio ameaçou sua vida pessoalmente.
2023-06-30
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c512zv02pl3o
brasil
3 a 1 contra Bolsonaro no TSE: em fase decisiva para futuro de ex-presidente, julgamento será retomado na sexta
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) vai continuar na sexta-feira (30/06) o julgamento sobre a inelegibilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) por até oito anos. O placar está em 3 a 1 para condenar Bolsonaro por abuso de poder político e por uso indevido de meios de comunicação, o que o tornaria inelegível. Faltam os votos de três ministros - Cármen Lúcia, Nunes Marques e Alexandre de Moraes. O primeiro voto, na terça-feira (27/8), foi o do relator do caso, ministro Benedito Gonçalves, que votou para que Bolsonaro seja condenado, porém defendeu que a mesma pena não seja aplicada a seu candidato a vice, Walter Braga Netto (PL). O julgamento continou nesta quinta, com o ministro Raul Araújo defendendo a rejeição das acusações contra Bolsonaro. Em seguida, votaram os ministros Floriano de Azevedo Marques e André Ramos Tavares, que decidiram pela condenação do ex-presidente por abuso de poder político. Fim do Matérias recomendadas Bolsonaro é julgado por convocar e participar da reunião com embaixadores de diferentes países no Palácio da Alvorada, em Brasília, em 2022 na qual ele questionou a segurança do sistema eleitoral brasileiro. O evento foi exibido pela emissora pública TV Brasil. O relator do caso, ministro Benedito Gonçalves, considerou que Bolsonaro cometeu abuso de poder político e uso indevido de meios de comunicação. O magistrado classificou as ações de Bolsonaro em torno do episódio como um "flerte perigoso" com o "golpismo". Gonçalves defendeu, ainda, que Braga Netto não seja considerado inelegível porque não teriam sido encontrados indícios de seu envolvimento no planejamento e execução da reunião. A posição do ministro em relação a Braga Netto seguiu a mesma linha adotada pelo Ministério Público Eleitoral (MPE). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Bolsonaro está sendo acusado de ter cometido abuso do poder político e uso indevido dos meios de comunicação social quando reuniu em julho de 2022 dezenas de diplomatas no Palácio da Alvorada para apresentar falsas teorias sobre a insegurança das urnas e atacar ministros do TSE e do Supremo Tribunal Federal (STF). O encontro ocorreu pouco antes do início da campanha eleitoral, em que Bolsonaro foi derrotado pelo atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Segundo o PDT, partido que apresentou a ação no ano passado, essa reunião estava inserida em uma campanha sistemática do então presidente para minar a credibilidade do sistema eleitoral, visando questionar o resultado da eleição em caso de derrota. Benedito Gonçalves acolheu a tese do PDT e também defendida pelo MPE, que também pediu a inelegibilidade de Bolsonaro. "O primeiro investigado (Bolsonaro) difundiu informações falsas a respeito do sistema eletrônico de votação direcionado a convencer que havia grave risco de que as eleições de 2022 fossem fraudadas para assegurar a vitória do candidato adversário", afirmou o magistrado em um trecho de seu voto. "(Bolsonaro) assumiu injustificada antagonização direta com o TSE buscando vitimizar-se e desacreditar a competência do corpo técnico e a lisura do comportamento de seus ministros para levar a atuação do TSE ao absoluto descrédito internacional despejou sobre as embaixadores e embaixadoras mentiras atrozes a respeito da governança eleitoral brasileira", disse o ministro em outro momento. "A conduta (adotada por Bolsonaro) se amolda à difusão deliberada e massificada por meio de emissora pública e redes sociais de severa desordem informacional sobre o sistema eletrônico de votação e em benefício das candidaturas dos investigados (Bolsonaro e Walter Braga Netto)", disse Benedito Gonçalves em outro momento. A defesa de Bolsonaro vem alegando que o ex-presidente não cometeu nenhuma irregularidade ao convocar os embaixadores. Além disso, Vieira afirma que a vinculação dos atos de 8 de janeiro com a reunião promovida pelo ex-presidente não poderia ser feita. Ele vem afirmando que os atos foram "lamentáveis", mas posteriores à eleição e, por isso, não podiam ser considerados para condenação do presidente por ilegalidade eleitoral. Argumentou ainda que Bolsonaro se recolheu após a derrota, não podendo ser acusado de convocar atos violentos. Vieira prometeu recorrer ao Supremo Tribunal Federal caso o TSE condene seu cliente. Ele argumenta que a ampliação da ação para incluir atos posteriores é ilegal e veio acompanhada de cerceamento da defesa. “É totalmente inverossímil essa narrativa de golpe de Estado. O que houve foi sim um debate, lá na reunião de julho (com os diplomatas), legítimo, salutar, em torno da necessidade de aprimoramentos constantes do sistema eletrônico de votação. Talvez com verve imprópria, sim, mas substancialmente é isso que ocorreu”, afirmou na semana passada. Como TSE tem sete magistrados, seriam necessários três votos alinhados com o de Gonçalves para que Bolsonaro seja condenado. Não há garantias, no entanto, de que o julgamento de Bolsonaro acabe nesta semana uma vez que qualquer magistrado pode pedir vistas do processo. Um ministro pode adotar este procedimento quando entende que precisa de mais tempo para analisar o caso. Em declaração a jornalistas no TSE, o advogado de Bolsonaro neste processo, o ex-ministro do TSE Tarcísio Vieira, disse que um pedido de vistas não seria totalmente inesperado. "Não seria de estranhar um pedido de vista. Faz parte da tradição do tribunal, não só nesse tipo de julgamento, mas em qualquer tipo de ação", afirmou o advogado. O julgamento vem sendo bastante aguardado por parte da cena política uma vez que Bolsonaro é visto como o principal líder da direita no Brasil e maior adversário do presidente Lula hoje. Se a decisão acarretar a inelegibilidade, Bolsonaro ficaria impedido de concorrer às eleições presidenciais de 2026, entretanto, o ex-presidente ainda poderia apelar contestando a sentença, como já sinaliza a defesa. A BBC News Brasil consultou especialistas em Direito Eleitoral, que afirmaram que um cenário com pedido de vistas não está descartado, o que paralisaria o julgamento por até 60 dias. Entretanto, eles também afirmam que, caso isso ocorra, é possível que outros ministros da Corte adiantem seus votos, o que indicaria qual é a tendência no tribunal em relação ao caso.
2023-06-29
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cz4n5wjvgrgo
brasil
O explorador inglês que desapareceu misteriosamente no Brasil e inspirou Indiana Jones
Em dado momento de Indiana Jones e o Templo da Perdição (1984), quando o intrépido protagonista sai à procura de uma pedra sagrada na Índia, Willie Scott, a cantora de boate interpretada por Kate Capshaw, vira-se para Indiana Jones, o famoso arqueólogo imortalizado por Harrison Ford, e alerta: "Você vai acabar morrendo ao perseguir fortuna e glória". Em tom de gracejo, Indy responde: "Talvez. Mas hoje não". É provável que Nina Paterson (1871-1954) tenha dito algo parecido quando o marido, o explorador inglês Percival Harrison Fawcett (1867-1925), anunciou que ia sair em missão à procura de uma civilização perdida no Brasil — os dois se conheceram no Ceilão, atual Sri Lanka, onde Percy serviu como oficial da Artilharia Real britânica. Não seria a primeira vez que ele viajaria para a América do Sul. Mas, dessa vez, poderia ficar até dois anos longe de casa. A primeira expedição de Percy Fawcett pelo continente sul-americano ocorreu em 1906, quando ele foi designado pela Sociedade Geográfica Real inglesa a demarcar a Amazônia, na fronteira entre o Brasil, a Bolívia e o Peru. Fim do Matérias recomendadas Em fevereiro de 1920, ele desembarcou no Rio de Janeiro para uma expedição que, no fim das contas, durou apenas quatro meses, de agosto a dezembro daquele ano. Enquanto estava no Brasil, Nina, sua mulher, e os três filhos do casal, Jack, Brian e Joan, viveram na Jamaica. Assim que chegou, Fawcett foi recebido pelo presidente da República, Epitácio Pessoa (1865-1942), que agendou uma reunião com o Marechal Cândido Rondon (1865-1958). O encontro foi desastroso. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Rondon disse que o Brasil não precisava de estrangeiros para fazer expedições. O presidente ponderou que estava atendendo a um pedido do embaixador inglês, Ralph Paget, para apoiar Fawcett em sua viagem até o Mato Grosso. Rondon, então, sugeriu que Fawcett fosse acompanhado por uma comitiva brasileira. O inglês recusou a oferta: "Pretendo ir sozinho", avisou. "Uma viagem com muita gente tem os seus inconvenientes". O marechal não desistiu. Sugeriu que o coronel estrangeiro fosse acompanhado por um civil ou militar da confiança do governo brasileiro. Não houve acordo. Se não pudesse ir sozinho, avisou Fawcett, não iria. A essa altura, Rondon já estava desconfiado de que, mais do que uma civilização perdida, o inglês estava à procura de ouro e prata. Lá pelas tantas, perguntou o percurso que Fawcett pretendia fazer. Sua resposta — "É sigiloso. Não posso revelar" — deu por encerrada a conversa. "Faço votos para que tenha boa sorte", e Rondon se despediu. "A ideia da Cidade Perdida Z veio do Documento 512, que se encontra na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro", explica o jornalista Hermes Leal, autor de O Enigma do Coronel Fawcett – O Verdadeiro Indiana Jones (Geração Editorial, 2007). "É um relato do século 18 de uma pessoa que teria se perdido no sertão da Bahia e encontrado as ruínas de uma cidade abandonada. Uma cópia desse documento chegou às mãos de Fawcett ainda na Inglaterra". "Ouvi falar da lenda do Fawcett ainda criança, quando vivia em Goiás", prossegue Leal. "Quando descobri que ela nunca tinha sido contada em uma biografia, resolvi transformar sua história em livro. Minha grande dificuldade foi refazer seus passos. Descobri, entre outras coisas, seu interesse em comprar uma mina de pedras preciosas na Bahia". No dia 12 de agosto de 1920, seis meses depois de chegar ao Brasil, Percy Fawcett finalmente partiu do Rio de Janeiro rumo a São Paulo e, da capital paulista, para Corumbá (MS). Em seguida, viajou de barco até Cuiabá (MT). Em sua comitiva, apenas dois estrangeiros: um australiano, Butch Reilley, e um americano, Ernest G. Holtt, o "Felipe". Cada um embolsou 600 libras pela aventura. Além de contratar os dois ajudantes, através de um anúncio de jornal, Fawcett comprou dois cavalos e dois bois para transportar a carga, que incluía, além de cordas, redes e barracas, utensílios de cozinha e instrumentos musicais. Logo no quarto dia de viagem, Butch pediu para sair. O sujeito não sabia sequer montar a cavalo. Em dois dias, caiu quatro vezes. A última delas dentro de um riacho. Ernest era menos pior. Mas, num acesso de fúria, atirou em Vermelho, um dos cachorros da comitiva. Além de procurar caça, cães montavam guarda à noite. Ao longo da viagem, Fawcett atravessou fazendas, como a do Laranjal, e cruzou rios, como o Tabatinga. Numa delas, a do Rio Novo, conheceu o fazendeiro Hermenegildo Galvão. Durante a estadia, ouviu falar dos índios morcegos, "os mais selvagens da Amazônia". Segundo a lenda, tinham aparência de macacos e viviam em cavernas. Ao ouvir a história, Fawcett se convenceu de que estava no caminho certo. Da fazenda Rio Novo, a comitiva seguiu para o Posto Simões Lopes, na aldeia Bakairi, onde descansou por três dias. De lá, prosseguiu viagem. No caminho, mais infortúnios: um cavalo morreu afogado e um boi por exaustão. Não bastasse, chovia bastante. E os córregos transbordaram. Mais adiante, próximo ao rio Tanguro, o cavalo de Fawcett caiu e não conseguiu mais levantar. Armado com um rifle Winchester e uma pistola Mauser, o coronel deu fim ao sofrimento do animal. O lugar foi apelidado de Campo do Cavalo Morto. Sem mantimentos, Fawcett decidiu voltar. Por ora, desistira da expedição. A quem perguntava o que tinha acontecido, limitava-se a responder: "Os animais não resistiram", e completava: "Pretendo voltar brevemente para reiniciar meus trabalhos a partir de onde parei". Em janeiro de 1925, como sempre fazia antes de sair em expedição, Percy Fawcett comprou um chapéu novo. Não um modelo qualquer. Mas um caríssimo da marca Stetson, seu preferido. Em vez de contratar ajudantes no local da expedição, levou dois expedicionários de casa: o filho mais velho, Jack, de 21 anos, e um amigo dele, Raleigh Rimell, mais ou menos da mesma idade. Os dois não viam a hora de encontrar um tesouro escondido, comprar possantes motos e se exibir pelas ruas de Seaton, na Inglaterra, onde moravam. Para não fazer feio na viagem, Fawcett ensinou os rapazes a nadar em rios caudalosos, a se alimentar somente de vegetais — não se pode contar com caça onde não se sabe se ela existe, dizia o coronel — e a preparar mochilas de até quinze quilos. Outra lição importante era aprender a falar algumas palavras em português. Os três viajaram a bordo do S.S. Vauban, da empresa Lamport and Holt Line, e desembarcaram no Rio de Janeiro em janeiro de 1925. Na então capital federal, Fawcett foi recebido pelo embaixador inglês no Brasil, John Tilley, e pelo ministro da Agricultura do governo Artur Bernardes, Miguel Calmon. Ao pedir apoio financeiro para a viagem, recebeu três passagens de trem até Cuiabá. Em São Paulo, os três visitaram o Instituto Butantan e conheceram o médico Assis Brasil, que cedeu algumas doses de soro contra veneno de cobra. Na bagagem, levavam comida em lata, remédio contra febre, armas e munições. Em Corumbá, ficaram hospedados num hotelzinho às margens do rio Paraguai, que nem banheiro tinha. No dia 23 de fevereiro, embarcaram numa chalana (pequena embarcação fluvial) até Cuiabá. Seriam dez dias de viagem, através dos rios Paraguai, São Lourenço e Cuiabá, a menos de seis quilômetros por hora. A lotação máxima da embarcação era de 20 passageiros, mas, naquele dia, o Iguatemi transportava mais de 50. À noite, os passageiros estendiam suas redes no convés e enfrentavam os mosquitos como podiam. Jack, por exemplo, dormia com uma camisa sobre o rosto. A chalana chegou à capital mato-grossense no dia 4 de março. Lá, Fawcett comprou cinco mulas e cinco cavalos, e conseguiu mais dois cachorros, Chulim e Pastor, para ajudar na expedição. Além disso, contratou dois mateiros, Simão de Oliveira e José Galdêncio. Jack ficou responsável por tirar as fotos e Rimell, por preparar as refeições. Em geral, tomavam café às seis e meia da manhã e almoçavam por volta das cinco da tarde. O cardápio não variava muito: um prato de sopa, duas xícaras de chá e leite condensado dissolvido em água pela manhã, e arroz e carne de charque à tarde. Às vezes, matavam a fome com biscoito e sardinha em lata; outras, com farinha de mandioca. Caminhavam, em média, duas léguas por dia, o que corresponde a seis quilômetros. Dormiam e acordavam cedo, antes do dia clarear. À época, fazia 27 graus à sombra. No terceiro dia, montaram acampamento bem em cima de um formigueiro de saúvas. Por pouco, não perderam toda a comida. Volta e meia, se perdiam no mato. Nessas horas, voltavam alguns passos na esperança de encontrar o lugar onde se desviaram da rota. À certa altura, Rimell tirou a bota e quase caiu para trás: seu pé estava vermelho e inchado. "Mordida de carrapato", explicou Fawcett. Simão improvisou um curativo com folhas de uma planta do brejo. No dia 30 de abril, chegaram à fazenda Rio Novo, do ‘coronel’ Hermenegildo Galvão. O anfitrião ofereceu refeição para os viajantes e pasto para os animais. Descansaram lá por cinco dias. Partiram 4 de maio, rumo ao Simões Lopes, na aldeia bakairi. No trajeto, cruzaram vários rios, como o Paranatinga. Nessas ocasiões, pai e filho cuidavam da bagagem enquanto os peões atravessavam os animais. Chegaram ao posto indígena no dia 15 de maio. O chefe do Simões Lopes, Valdomiro, cedeu a escola para descansarem. Havia oito indígenas do Xingu: cinco homens, duas mulheres e uma criança, todos da etnia batovi. Para fazer fotos do grupo, Jack ofereceu doce de goiabada. E trocou um colar com conchas de caracol de uma das indígenas por oito caixas de fósforo. De dia, ele tirava fotos; à noite, revelava nas águas do Paranatinga. No dia 19 de maio, Jack Fawcett completou 22 anos. Para comemorar a data, seu pai improvisou uma festa. Tocaram instrumentos musicais, como flauta, banjo e violão, e beberam vinho de caju. Lá pelas tantas, Fawcett foi apresentado a Yamarã, chefe da etnia mehinako. Valdomiro, o chefe do posto, serviu de intérprete. "Por que o senhor não me acompanha?", perguntou Fawcett. "Estou muito velho", respondeu o líder indígena. Dali a pouco, Yamarã cochichou algo no ouvido de Valdomiro. Está desaconselhando o senhor a seguir viagem, explicou o chefe do posto. Os índios morcegos não toleram invasores. São canibais. "Posso me defender", disse o homem branco. "É muito perigoso", insistiu o líder indígena. No dia seguinte, Fawcett comprou comida e dispensou os peões. Queria estar sozinho quando encontrasse a Cidade Z. No dia 21 de maio, se despediu do Posto Bakairi. Próximo destino: o Campo do Cavalo Morto. Quando chegou lá, oito dias depois, escreveu a última carta para Nina. "Você não precisa temer nenhum fracasso", foram suas últimas palavras, em 29 de maio de 1925. Indígenas levaram a correspondência até o Posto Bakairi e militares do Marechal Rondon, até Cuiabá. Desde então, não se ouviu mais falar de Percy, Jack ou Rimell. Especula-se que tenham visitado outras aldeias, como a dos povos kalapalo, nafukuá e suiá. Mas não se sabe ao certo. Semanas depois, agentes do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) foram atrás de notícias, mas não encontraram pistas. Antes de embarcar, Fawcett pediu a Nina que, caso desaparecesse na selva, não enviasse missões de salvamento. Para piorar, tinha o hábito de deixar pistas falsas sobre sua localização para ninguém seguir seus passos. "O desaparecimento de Fawcett e seus companheiros permanece um mistério. A hipótese mais provável é a morte por inanição, em decorrência de doenças ou de ataques de índios ou de animais. Mas, sem evidências, não há como ter certeza", diz a historiadora Deborah Lavorato Leme, mestranda em História Social da Universidade de São Paulo (USP) e autora do artigo Registros da Última Expedição do Coronel P. H. Fawcett no Brasil (2021). "Alguns grupos, como a Sociedade Brasileira de Eubiose, seguem acreditando na possibilidade de Fawcett e seu filho, Jack, terem encontrado a cidade perdida de Z, onde ambos teriam liderado uma comunidade esotérica". Quase 100 anos depois, ninguém sabe dizer ao certo o que aconteceu à expedição: foram mortos por índios ou encontraram a cidade perdida? Nina Fawcett morreu no dia 6 de setembro de 1954, aos 83 anos, sem aceitar a morte do marido. Até o fim de seus dias, continuou esperando por ele, em sua casa na Suíça. Brian Fawcett, o filho mais novo, nunca desistiu de procurar pelo pai e o irmão. Em janeiro de 1952, 27 anos depois do sumiço deles, aceitou o convite do empresário Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados, para integrar uma expedição até o Mato Grosso. Se fossem encontrados vivos, Percy Fawcett estaria com 85 anos e Jack, com 49. Viajaram, além dele, o sertanista Orlando Villas Bôas (1914-2002) e o jornalista Antônio Callado (1917-1997), então repórter do jornal Correio da Manhã, que escreveu o livro Esqueleto na Lagoa Verde (Companhia das Letras, 2010), sobre o misterioso desaparecimento do coronel inglês. A expedição ganhou vida depois que Villas Bôas ouviu, em abril de 1951, um indígena da etnia kalapalo dizer que teria matado os "caraíbas" ("homens brancos") a golpes de borduna, jogado os corpos de dois deles na Lagoa Verde e enterrado o terceiro numa cova rasa à beira do rio Culuene, no Xingu. Não demorou para os peritos do Instituto Real de Antropologia de Londres e do Museu Nacional do Rio de Janeiro descobrirem que os restos mortais encontrados não eram de Fawcett ou de qualquer membro da expedição. Enquanto o explorador inglês media 1,82 metro de altura, aquela ossada era de um homem de 1,68 metro. Não foi a primeira expedição realizada para encontrar vestígios de Percy Harrison Fawcett. Apenas três anos depois do misterioso sumiço do militar inglês, o explorador americano George Miller Dyott (1883-1972) embrenhou-se no mato atrás de pistas. Levava consigo 26 homens e três toneladas de mantimentos. Entre outras descobertas, conheceu Aloique, do povo nafukuá, que trazia no pescoço uma plaquinha de cobre com a inscrição da firma londrina que fornecera o material de viagem para o coronel. E mais: dentro de uma das malocas da aldeia, maletas idênticas às usadas pelos oficiais britânicos. Até o jornalista Peter Fleming (1907-1971) se aventurou pelo Brasil à procura de Fawcett. Ele é o irmão mais velho de Ian Fleming (1908-1964), o criador de James Bond, o mais famoso agente secreto da literatura universal. A expedição de Fleming, financiada pelo jornal The Times, durou sete meses, de abril a novembro de 1932. Da experiência, nasceu o livro Brazilian Adventure (1933). Em novembro de 1943, o mesmo Assis Chateaubriand patrocinou a ida do repórter Edmar Morel (1912-1988) ao Xingu para apurar a história contada por uma missionária americana chamada Marta Moennich. Em 1937, ela escreveu uma carta para a viúva de Fawcett relatando a existência de um índio loiro e de olhos azuis na aldeia dos kuikuros. Os membros do grupo acreditavam que o tal índio era filho do estrangeiro com uma indígena. Em pouco tempo, Morel descobriu que Dulipé, que ganhou o apelido de "Deus branco do Xingu", não era filho de Percy Fawcett. Era apenas albino. A pedido dos Diários Associados, Dulipé teria sido levado para Cuiabá. Não se adaptou à cidade grande e começou a beber. Na madrugada de 20 de abril de 1959, se envolveu numa briga e terminou morto a facadas. "Muitos não se conformam com as hipóteses mais coerentes sobre o desaparecimento de Fawcett (morreu ou foi morto na selva) e dão origem a mil teorias insólitas", observa André Diniz Fernandes, autor da graphic novel Fawcett (Devir, 2010), em parceria com o ilustrador Flavio Colin (1930-2002). "Numa delas, estaria vivo até hoje em um mundo secreto no qual Jack seria o pai de uma nova raça humana. Noutra, teria descoberto um mundo subterrâneo e viveu por lá muitas décadas depois de seu desaparecimento". O livro Esqueleto na Lagoa Verde, de Antônio Callado, não foi o único escrito sobre a vida de Percy Fawcett. Há pelo menos mais dois: Z — A Cidade Perdida (Companhia das Letras, 2009), do jornalista americano David Grann, que deu origem a um filme homônimo, dirigido por James Gray; e Città Invisibili (inédito no Brasil), da jornalista italiana Margherita Detomas, escrito em parceria com Timothy Paterson, bisneto de Nina. A princípio, Brad Pitt, que comprou os direitos de filmagem do livro americano, interpretaria o protagonista. Mas, depois, se contentou com a função de produtor-executivo e confiou o papel ao ator britânico Charlie Hunnam. Já Jack Fawcett é interpretado por Tom Holland, que veste a máscara do Homem-Aranha na atual franquia da Marvel. O diretor Fernando Meirelles teria sido convidado por Pitt para dirigir o longa, mas declinou do convite. O mais recente livro sobre o tema é A Expedição Fawcett – Jornada para a Cidade Perdida de Z (Record, 2023). Organizado por Brian Fawcett, reúne cartas, diários e manuscritos do explorador inglês. O livro foi lançado em 1953, mas só agora, 70 anos depois, chega às livrarias brasileiras. Brian Fawcett morreu em 1984, aos 78 anos. Ao longo das décadas, Percy Fawcett inspirou uma infinidade de personagens: do velho explorador Ridgewell, da obra Tintim e o Ídolo Roubado (1935), do quadrinista belga Hergé, ao arqueólogo com espírito aventureiro Indiana Jones, da franquia dirigida pelo cineasta americano Steven Spielberg. "O Indiana Jones foi inspirado no protagonista de um filme de 1954 chamado O Segredo dos Incas", diz Sávio Queiroz Lima, doutorando em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autor do artigo Arqueologia, Antropologia e História em Indiana Jones (2021). "Tanto o Indiana Jones quanto o Harry Steele, interpretado por Charlton Heston, compartilham elementos estéticos e performáticos do Fawcett e de outros arqueólogos famosos como o escocês Mortimer Wheeler (1890-1976), o americano Junius Bolton Bird (1907-1982) e o inglês William Flinders Petrie (1853-1942)". Para 2025, ano do centenário do misterioso desaparecimento, Hermes Leal planeja relançar O Enigma do Coronel Fawcett e estrear um documentário e uma série de ficção. Sinal de que, tão cedo, a expedição não chegará ao fim.
2023-06-29
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2v8ylpgee9o
brasil
5 revelações do Censo 2022 sobre a população do Brasil
Após a pandemia de coronavírus e cortes orçamentários, os resultados do Censo 2022 começaram a ser divulgados nesta quarta-feira (28). A última edição da pesquisa censitária realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) foi feita em 2010 e, pela lei, ela não poderia demorar mais de 10 anos para ser feita — ou seja, deveria ter ocorrido em 2020. Mas a nova edição só foi realizada entre 1º de agosto de 2022 e 28 de maio de 2023 (fase de coleta e apuração de dados) e divulgada agora. A primeira etapa de divulgação, que traz números da população do país, de Estados e municípios, revela que a população brasileira aumentou 6,5% e que várias capitais brasileiras diminuíram em população. Nos próximos meses, serão divulgadas novas informações do Censo — por exemplo, sobre povos indígenas, migração e religião —, mas ainda não há um calendário fechado. A seguir, confira cinco destaques das primeiras informações reveladas pelo Censo 2022, que visitou 106,8 milhões de endereços em todo o Brasil. Fim do Matérias recomendadas A população do Brasil superou 203 milhões (203.062.512), segundo o Censo 2022. É um acréscimo de 12,3 milhões de pessoas ao total registrado no Censo 2010 (190.755.799). A data de referência para esse e outros números da nova pesquisa é a meia-noite do dia 31 de julho para 1º de agosto de 2022. Portanto, as pessoas nascidas depois dessa data não estão contabilizadas no Censo 2022. Ao mesmo tempo, a taxa média de crescimento anual da população brasileira foi a menor já registrada desde 1872: 0,52%. No Censo 2010, essa taxa era de 1,17%. Seu dispositivo não consegue visualizar esta imagem O IBGE afirma que, com a redução dos níveis de mortalidade a partir nos anos 1940 e o declínio dos níveis de fecundidade nos anos 1960, começou nos anos 1970 uma diminuição na taxa de crescimento populacional. Segundo projeções populacionais — inclusive do IBGE —, em algum momento nas próximas décadas a redução nessa taxa de crescimento vai se refletir em uma redução no tamanho da população brasileira. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Vale dizer que, quando falamos em crescimento de população, ela reflete tendências de fecundidade e mortalidade, como falado acima, e também de migração. Como está, então, o crescimento da população nas diferentes áreas do país? Embora todas as regiões, assim como o Brasil, estejam com uma taxa média de crescimento anual cada vez menor, o Centro-Oeste aparece no Censo 2022 com uma taxa duas vezes maior que a média nacional. Enquanto a taxa brasileira anual foi de 0,52%, a do Centro-Oeste foi de 1,23% — a maior no Brasil. Em 2010, a taxa de crescimento do Centro-Oeste foi de 1,9%. Nos Censos de 2010 e 2000, a região que tinha a maior taxa de crescimento era o Norte, cuja taxa caiu bastante na edição atual: de 2,09 em 2010 para 0,75 em 2022. Somente com novos dados do Censo e de futuras pesquisas será possível explicar esse crescimento no Centro-Oeste, mas alguns municípios nos dão pistas. Por exemplo, considerando as cidades brasileiras com mais de 100 mil habitantes, aquela que teve a maior taxa de crescimento da população foi uma cidade goiana: Senador Canedo, com taxa anual de 5,23%. Esse município foi o que teve também o maior aumento percentual no total da população: em 2010, tinha 84.443 habitantes, passando para 155.635 em 2022 — um crescimento de 84,3%. Há várias outras cidades do Centro-Oeste no ranking das cidades que mais cresceram, como Sinop (MT) e Sorriso (MT). O IBGE detectou, no novo Censo, o crescimento populacional em vários municípios no entorno de capitais, como a própria Senador Canedo (próxima a Goiânia). Outros exemplos são Fazenda Rio Grande (Curitiba); Palhoça (Florianópolis); Maricá (Rio de Janeiro); Valparaíso de Goiás e Águas Lindas de Goiás (Distrito Federal), São José de Ribamar (São Luís) e Santana de Parnaíba (São Paulo). No Censo 2022, além das regiões já citadas, o Nordeste aparece com taxa anual de crescimento de 0,24%; o Sudeste, de 0,45%; e o Sul, de 0,74%. Apesar da taxa média de crescimento anual do Sudeste ser a segunda menor do país, atrás do Nordeste, a região é casa para 41,8% da população brasileira — somando 84,8 milhões de habitantes. São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, que são os três Estados mais populosos do Brasil e que pertencem à região, concentram 39,9% da população brasileira. Em seguida, a maior região em população é o Nordeste (26,9%), seguida por Sul (14,7%), Norte (8,5%) e Centro-Oeste (8%). Seu dispositivo não consegue visualizar esta imagem Seu dispositivo não consegue visualizar esta imagem A lista dos municípios mais populosos é liderada por São Paulo (11.451.245 habitantes), Rio de Janeiro (6.211.423) e Brasília (2.817.068). Mas o Rio de Janeiro é um dos exemplos de capitais que viram sua população diminuir entre as edições de 2010 e 2022: caiu de 6.320.446 para 6.211.423 (-1,7%). Também registraram diminuição Fortaleza (-1%), Salvador (-9,6%), Belo Horizonte (-2,5%), Recife (-3,2%), Porto Alegre (-5,4%) e Belém (-6,5%). Seu dispositivo não consegue visualizar esta imagem Enquanto isso, algumas capitais tiveram aumento da população, como São Paulo (1,8%), Brasília (9,6%), Manaus (14,5%), Curitiba (1,2%), São Luís (2,3%) Maceió (2,7%), Campo Grande (14,1%), Teresina (6,4%) e João Pessoa (15,3%). A reportagem não teve acesso à lista completa capitais e suas populações, apenas das capitais mais populosas — por isso, algumas capitais do país não estão mencionadas acima. As últimas três edições do Censo mostram que o número de moradores por domicílio (a chamada densidade domiciliar) vem diminuindo: em 2000, a média era de 3,76 moradores por lar; em 2010, esse número era 3,31; e em 2022, 2,79. Isso se relaciona a outro dado revelado pelo novo Censo: o número de domicílios aumentou 34% desde 2010, chegando a 90,7 milhões — ou seja, a população parece estar dividida em um maior número de lares, diminuindo o número de moradores em cada um deles. O Norte tem a maior densidade domiciliar (3,3 moradores por domicílio), seguida pelo Nordeste (2,9), Centro-Oeste (2,78), Sudeste (2,69) e Sul (2,64).
2023-06-28
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-66037873
brasil
Alberto Fernández e Lula: o que Argentina quer do Brasil?
Os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, do Brasil, e Alberto Fernández, da Argentina, voltaram a se encontrar em Brasília na segunda-feira (26/6). Foi o quinto encontro entre eles desde que o brasileiro tomou posse, em janeiro. O argentino está no fim de seu mandato e em 10 de dezembro passará a faixa presidencial ao sucessor da Casa Rosada. Ainda assim, está no topo da lista de líderes mundiais com quem Lula mais se encontrou neste ano. O que está na agenda dos dois presidentes? E o que a Argentina quer do Brasil? Os dois governos divulgaram um longo documento conjunto do que foi chamado "relançamento da relação estratégica bilateral", com noventa ações, que incluem obras de infraestrutura, defesa e energia, entre outros itens. No documento, afirmam que vão “continuar analisando alternativas para estruturar uma linha de crédito de produtos brasileiros exportados para a Argentina”. E este é o ponto que mais tem interessado a Argentina em sua urgência por conseguir divisas para manter suas compras externas. Fim do Matérias recomendadas Lula e Fernández costumam se referir um ao outro como “amigo”, pelo menos desde que o argentino se solidarizou com o brasileiro e o visitou na prisão em Curitiba, acompanhado pelo ex-chanceler e hoje assessor especial da Presidência, Celso Amorim. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast “Essa negociação não é de agora. Vem desde o início do ano”, contou o embaixador da Argentina no Brasil, Daniel Scioli. Em Brasília e em Buenos Aires, nos bastidores, os comentários eram também de que, após o “silêncio, distanciamento e até agressões (por parte do Brasil)” durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, a relação “está sendo retomada”. “Com tudo”, disse uma fonte diplomática argentina. Em 2022, o volume de menções sobre a Argentina no debate político no Twitter se tornou maior que as mensagens sobre a Venezuela, um país cuja crise foi amplamente utilizada por políticos brasileiros nos últimos anos. "Essa atual crise passa, a que não passa é a do Socialismo, que o PT ajudou a implementar na Venezuela, está em andamento na Argentina", escreveu Bolsonaro naquele ano. Nesta segunda-feira, Lula disse: “Estamos trabalhando numa linha de financiamento abrangente (para os argentinos). Não faz sentido que o Brasil perca espaço no mercado argentino porque outros países oferecem crédito e nós não”. No mês passado, logo após seu encontro anterior com Fernández, o presidente brasileiro defendeu que o objetivo não é apenas beneficiar a Argentina, mas ajudar empresários brasileiros que exportam para o mercado vizinho e financiar as exportações nacionais. O chamado programa de financiamentos à exportação dos bens e serviços de engenharia brasileiros consiste no aporte a empresas brasileiras para executarem serviços no exterior. Os empréstimos são feitos em reais e no Brasil, para as companhias nacionais. Segundo um negociador brasileiro que participou do encontro em Brasília nesta segunda, o BNDES financiará por meio desse modelo o gasoduto Nestor Kirchner, que irá da região da Patagônia, no extremo sul da Argentina, até o Brasil. A ideia é reduzir a dependência do gás boliviano, que, de acordo com dados dos dois países, estaria em queda. A primeira fase do projeto já está concluída e o governo do país vizinho busca recursos para continuar a obra, com 500 quilômetros, ligando os campos de óleo e gás da região de Vaca Muerta até San Jerónimo, na província de Santa Fé. Há planos para que, em uma fase futura, o gasoduto se conecte com o Rio Grande do Sul, mas eles nunca saíram do papel. Segundo Lula, “há perspectivas positivas” para que o BNDES comece a subsidiar produtos de origem brasileira para a construção do gasoduto. O projeto, porém, tem despertado muitos questionamentos ambientais. Para a extração de petróleo e gás na região de Vaca Muerta é necessária uma técnica conhecida como fracking, que consiste em perfurar as rochas e introduzir água, areia e produtos químicos para aumentar a permeabilidade da pedra e fazer o produto escoar mais facilmente. A técnica, no entanto, pode gerar contaminação na água, na terra e no ar durante o processo de produção, armazenamento e transporte pela quantidade de água utilizada. Justamente por isso está proibida em muitos países. Ao mesmo tempo, a possível entrada do BNDES em novos empreendimentos internacionais é considerada um ponto sensível para especialistas. Isso acontece, em parte, por conta das dívidas e calotes acumulados por alguns dos países envolvidos. Também há críticos que falam em falta de transparência nos financiamentos. E há ainda quem defenda que os investimentos podem ser destinados a projetos mais vantajosos para o Brasil. Em maio, o presidente argentino desembarcou em Brasília com seus ministros da Economia, Sergio Massa, e das Relações Exteriores, Santiago Cafiero, além do embaixador da Argentina no Brasil, Daniel Scioli. Após o encontro, Lula lamentou não poder ajudar mais o argentino com empréstimos diretos. Em uma declaração que gerou polêmica em setores da imprensa argentina, o presidente brasileiro disse que Alberto Fernández "chegou aqui muito apreensivo, mas vai voltar mais tranquilo". "É verdade, sem dinheiro, mas com muita disposição política", disse. Lula reconheceu, porém, que a situação do país vizinho tinha se agravado a partir dos efeitos econômicos da seca histórica, com três anos seguidos de estiagem que acabaram drenando também a geração de divisas geradas pelas exportações do agronegócio argentino. Por isso, levantou a possibilidade da criação de uma espécie de fundo garantidor pelo banco do Brics, o NDB (Novo Banco de Desenvolvimento), para assegurar os financiamentos brasileiros. Esse passo, porém, ainda não saiu do papel. Dias após receber Fernández em Brasília em maio, Lula admitiu que “não foi possível (conseguir que o banco dos Brics desse essa garantia)”. No entanto, no item 17 do documento conjunto divulgado nesta segunda-feira, afirma-se que os dois países continuarão “estudando alternativas para a estruturação de uma linha de crédito para as exportações de produtos brasileiros para a Argentina” e que os responsáveis seriam o BNDES e o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), entre outros. Segundo uma fonte do governo brasileiro que tem acompanhado de perto a relação bilateral, o mais rápido apoio financeiro que o Brasil pode dar à Argentina no momento se manifesta por meio de uma “maior pressão” para que o Fundo Monetário Internacional (FMI) “alivie” as exigências feitas ao país. Na semana passada, Lula e outros cinco presidentes assinaram uma carta enviada a Joe Biden, dos Estados Unidos, respaldando a renegociação do acordo da Argentina com o organismo internacional, segundo a imprensa local. Em maio, após um encontro a portas fechadas com sua contraparte argentina, Lula disse que tinha se comprometido com “o amigo a fazer todo e qualquer sacrifício para que a gente possa ajudar a Argentina neste momento difícil (...) e conversar com o FMI para tirar a faca do pescoço da Argentina”. A Argentina assinou um acordo de US$ 44 bilhões com o Fundo durante o governo do ex-presidente e opositor de Fernández, Mauricio Macri. Atualmente, tenta renegociar o acordo para destravar a liberação de recursos para o país. Economistas argentinos ouvidos pela BBC News Brasil explicaram que a Argentina não está buscando um “empréstimo” do governo brasileiro, mas evitar ter que suspender as importações do Brasil. Disseram que “não é um empréstimo de país para país". A ideia inicial era de que o financiamento para as empresas brasileiras na Argentina girasse em torno de US$ 1 ou 2 bilhões. No entanto, a expectativa é que, se o acordo sair do papel, será em um valor muito menor. "Eu espero que saia (o acordo com o Brasil) porque vai ajudar o comércio e também a indústria brasileira”, disse o economista brasileiro Gustavo Perego, da consultoria Abeceb, de Buenos Aires. No início de junho, a Argentina assinou acordo financeiro com a China, com objetivo de reforçar suas reservas do Banco Central da República Argentina (BCRA). Mas, no entendimento de economistas locais, o pacto poderia abrir a porta para a maior presença de produtos chineses na Argentina. “Nossa preocupação é que acabe ocorrendo presença ainda maior da China e menor do Brasil”, avaliou Perego. Recentemente, a imprensa especializada que acompanhou a viagem do ministro da Economia, Sergio Massa, e do presidente do BCRA, Miguel Pesce, a Pequim, voltou a usar o termo ‘Argenchina’ – junção de Argentina e China – para sinalizar a maior união entre os dois países.
2023-06-27
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2qg21kk2yyo
brasil
As acusações que podem impedir Bolsonaro de disputar eleições
A intensa campanha do então presidente Jair Bolsonaro (PL) contra a credibilidade da Justiça Eleitoral e da urna eletrônica pode causar agora seu afastamento das eleições por oito anos. Para especialistas em direito eleitoral ouvidos pela BBC News Brasil, é alta a probabilidade de o ex-presidente ser condenado em um julgamento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Caso isso se confirme, Bolsonaro ficará inelegível. O ex-presidente enfrenta 16 ações na Corte. No caso mais avançado, que será julgado na próxima semana, é acusado de ter cometido abuso do poder político e uso indevido dos meios de comunicação social quando reuniu em julho de 2022 dezenas de diplomatas no Palácio da Alvorada para apresentar falsas teorias sobre a insegurança das urnas e atacar ministros do TSE e do Supremo Tribunal Federal (STF). A defesa do ex-presidente, por sua vez, argumenta que o evento não tinha caráter eleitoral e que o então presidente usou sua liberdade de expressão para manifestar preocupações legítimas sobre a integridade das eleições brasileiras. Fim do Matérias recomendadas A ação apresentada pelo PDT, partido que disputou a campanha presidencial com o candidato Ciro Gomes, pede a inelegibilidade de Bolsonaro e do general Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil que concorreu como candidato à vice-presidente. A Procuradoria-Geral Eleitoral (PGE) se manifestou a favor apenas da condenação de Bolsonaro. Entenda a seguir, em cinco pontos, os argumentos da acusação e da defesa, o que foi dito pelo então presidente na reunião, por que especialistas acham provável uma condenação e quais ministros julgarão o ex-presidente. Segundo a Constituição Federal e a legislação eleitoral brasileira, um político pode ser declarado inelegível caso tenha atuado contra a normalidade e a legitimidade das eleições. Isso pode ocorrer por meio de três ilegalidades: O ex-presidente está sendo acusado de ter cometido abuso de poder político por ter usado a estrutura da Presidência da República para convocar diplomatas para uma reunião de caráter eleitoral, com ataques infundados ao sistema de votação. A suposta irregularidade teria sido agravada pelo fato de o evento ter sido transmitido ao vivo pela EBC, empresa pública de comunicação, e pelas redes sociais do presidente, configurando também o uso indevido de meios de comunicação. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O PDT argumenta ainda, na ação, que a reunião com os diplomatas não se tratou de um episódio isolado, mas se inseriu numa estratégia de campanha de Bolsonaro para questionar o resultado em caso de derrota. Para o partido, a reunião visava “buscar adesão dos países estrangeiros para que, se porventura um golpe de Estado fosse instaurado, obtivesse apoio, já que o processo de votação não seria confiável e estaria eivado de fraude”. “Esse (apoio para um golpe) foi o objetivo da reunião. Não existiu nenhum interesse público subjacente à estruturação do evento”, reforçou. “O discurso proferido na reunião com embaixadores converge com dizeres apropriados por eleitores e apoiadores do candidato, em uma cruzada antidemocrática com a instalação de acampamentos em frente aos QG’s do Exército em todos os rincões do Brasil, centrada em uma suposta existência de fraude nas urnas, bem como também no sistema eleitoral, de modo que bradavam por intervenção militar e por um ‘processo eleitoral transparente’”, disse o partido nas alegações finais da ação. “A consequência da perpetração, pelo Senhor Jair Messias Bolsonaro, dessas condutas acintosas ao Estado Democrático de Direito e à integridade do processo eleitoral foi o intenso ataque de vândalos e golpistas contra as sedes do Supremo Tribunal Federal, do Congresso Nacional e do Palácio do Planalto, em 08 (oito) de janeiro de 2023”, afirma o PDT em outro trecho da manifestação. Ao longo do processo, o TSE autorizou que essa minuta fosse incorporada como prova na ação. O ex-presidente argumenta, na ação, que o evento não teve caráter eleitoral, destacando que não houve pedido de votos e que o público-alvo (diplomatas estrangeiros) não votam no Brasil. Segundo sua defesa, a reunião foi um “ato de governo” e, por isso, contou com a transmissão da EBC. Os advogados de Bolsonaro disseram ainda, em manifestação ao TSE, que "a má-fé de determinados setores da imprensa" levou a cobertura do evento a tratar "uma proposta de aprimoramento do processo democrático como se se tratasse de ataque direto à democracia". A defesa ressalta, ainda, que a reunião foi convocada por Bolsonaro após o então presidente do TSE, Edson Fachin, realizar em maio de 2022 o evento "Sessão Informativa para Embaixadas: o sistema eleitoral brasileiro e as Eleições de 2022". Na ocasião, Fachin fez um discurso com críticas indiretas aos ataques de Bolsonaro ao sistema eleitoral. "Convido o corpo diplomático sediado em Brasília a buscar informações sérias e verdadeiras sobre a tecnologia eleitoral brasileira, não somente aqui no TSE, mas junto a especialistas nacionais e internacionais, de modo a contribuir para que a comunidade internacional esteja alerta contra acusações levianas", afirmou no evento. A defesa de Bolsonaro alega, então, que ambos os encontros com diplomatas representariam um “diálogo institucional” sobre o sistema eleitoral. “O que se percebe das falas do primeiro investigado Jair Messias Bolsonaro, por meio de um exame sereno e desapaixonado, feito com as lentes do necessário diálogo institucional e da inadiável promoção da transparência eleitoral, é nada mais nada menos do que um convite ao diálogo público continuado para o aprimoramento permanente e progressivo do sistema eleitoral e das instituições republicanas”, diz a defesa em manifestação ao TSE. “Com o respeito devido, não parece difícil entender que o sistema eletrônico de votação e as boas práticas que acercam a realização de uma eleição como a brasileira são dignas de constante aperfeiçoamento, não havendo motivos para se confundir questionamentos (pontos duvidosos!), postos às claras, com ato de abuso de poder político e/ou de meios de comunicação”, afirma ainda a defesa, liderada pelo advogado Tarcísio Vieira, ex-ministro do TSE. Quanto às acusações de que teria responsabilidade nos atos de 8 de janeiro, Bolsonaro tem negado qualquer envolvimento. Enquanto estava vivendo nos Estados Unidos, disse, sem apresentar provas, que “pessoas de esquerda” programaram as invasões. "As manifestações da direita ao longo de 4 anos foram pacíficas e não temos nada a temer. Jamais o nosso pessoal faria o que foi feito agora no dia 8 [de Janeiro]. Cada vez mais nós temos certeza que foram pessoas da esquerda que programaram aquilo tudo", disse o ex-presidente à emissora americana NBC. Na ocasião, Bolsonaro citou, por exemplo, vídeos falsos que circularam na eleição de 2018 indicando que a urna registraria voto no número 13 (PT) mesmo quando o eleitor digitasse 17 (PSL, então partido de Bolsonaro). Ele também disse que um ataque hacker ao sistema do TSE em 2018 teria acessado dados das eleições, distorcendo um inquérito da Polícia Federal que concluiu não ter havido qualquer fraude naquele pleito. Em outra afirmação distorcida, disse que seria uma empresa terceirizada que contabilizaria os votos. Segundo o TSE, a contabilização é feita na Corte, por um sistema controlado por servidores, e empresas de fora prestam apenas serviço de manutenção das máquinas. “Não é o TSE que conta os votos, é uma empresa terceirizada. Acho que nem precisava continuar essa explanação aqui. Nós queremos obviamente, estamos lutando para apresentar uma saída para isso tudo. Nós queremos confiança e transparência no sistema eleitoral brasileiro”, disse ainda Bolsonaro aos diplomatas. Na reunião, o então presidente também atacou diretamente ministros do TSE e do STF. Ele disse, por exemplo, que Edson Fachin, então presidente da Corte Eleitoral, era o responsável por Lula poder disputar a eleição, questionando sua imparcialidade para conduzir o pleito. Lula, porém, não reconquistou seus direitos políticos por decisão individual de Fachin, mas após a maioria do STF anular as condenações da operação Lava Jato. Para o advogado Luiz Fernando Casagrande Pereira, especialista em direito eleitoral, a cassação do deputado estadual pelo Paraná Fernando Francischini em outubro de 2021 é um precedente que torna “muito provável” a condenação de Bolsonaro. Bolsonarista, Francischini foi o deputado estadual mais votado no Paraná em 2018 e perdeu seu mandato devido a acusações infundadas contra o funcionamento das urnas. Além disso, o TSE o declarou inelegível por oito anos. A punição foi aplicada porque Francischini fez uma transmissão ao vivo no Facebook durante a votação de 2018 apontando supostas fraudes em urnas eletrônicas que não estariam registrando votos para o então candidato Jair Bolsonaro. A alegação era que o eleitor digitava 17 (número de Bolsonaro em 2018, quando concorreu pelo antigo PSL), mas não aparecia o rosto e o nome do atual presidente no painel da urna. Porém, a investigação do caso identificou que, na verdade, essas pessoas estavam digitando 17 no momento em que a urna registrava o voto para governador, e não para presidente, de modo que seria impossível o voto ser registrado para Bolsonaro. Depois, acrescenta Pereira, uma resolução do TSE de dezembro de 2021 estabeleceu ser proibida "a divulgação ou compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinja a integridade do processo eleitoral, inclusive os processos de votação, apuração e totalização de votos". Ainda segundo essa resolução, quem promover esse tipo de alegação falsa contra o processo eleitoral poderá sofrer "apuração de responsabilidade penal, abuso de poder e uso indevido dos meios de comunicação". Isso significa que, além de poder enfrentar uma investigação criminal, tal pessoa pode ser processada na Justiça Eleitoral. Na visão de Casagrande Pereira, essa resolução foi um “recado” para os candidatos em 2022. “Então, eu diria que o Bolsonaro assumiu esse risco quando fez os movimentos que fez, inclusive a reunião com os embaixadores, que está inserido num contexto de outras tantas vezes em que ele questionou o sistema de votação e totalização e obteve sucesso”, nota o advogado. “Sucesso no sentido de convencer as pessoas de que o sistema não é confiável. E era exatamente isso que o TSE queria impedir quando cassou o mandato do Francischini e quando adotou essa resolução”, continuou. Decisões preliminares do TSE relacionadas ao caso que será julgado também são um sinal ruim para Bolsonaro. Ainda em 2022, a Corte determinou que fossem retirados do ar os vídeos com a transmissão da reunião. Também no ano passado, o tribunal multou o presidente em R$ 20 mil por considerar que o evento foi campanha eleitoral antecipada e feriu a resolução que proíbe ataques falsos ao sistema eleitoral. Para Vânia Aieta, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e coordenadora-geral da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), a reunião com diplomatas no Palácio da Alvorada configura claro abuso de poder político. “Nessa ação, vejo possibilidades concretas e reais da condenação do Bolsonaro”, avalia. “Essa reunião de fato se configura abuso do poder político, na medida em que ele usa do papel dele de presidente, usa de toda a institucionalidade presidencial, para convocar o corpo diplomático e dizer, sem apresentar absolutamente nenhuma prova, que a Justiça Eleitoral estaria fraudando as eleições”, reforça. Aieta lembra que o país já teve situações de fraude eleitoral que levaram à anulação de eleições, mas todos os episódios anteriores à adoção da urna eletrônica (lançada em 1996). Um caso, ela cita, ocorreu em 1994, quando a Justiça Eleitoral refez a eleição para deputados estaduais e federais no estado do Rio de Janeiro, após os votos brancos terem caído para níveis historicamente baixos, indicando uma falsificação de parte dos votos. “Mas (a acusação de fraude de Bolsonaro) agora era uma mera retórica de desinformação, um mero estímulo à criação de uma rede de desinformação que viria então a serviço de desacreditar o resultado eleitoral se não lhes fosse favorável”, destaca a professora. O TSE é formado por sete ministros titulares e a expectativa nos bastidores de Brasília é que o julgamento deve ter um placar de 5 a 2 ou 6 a 1 pela condenação de Bolsonaro. Das sete vagas titulares do TSE, três sempre são ocupadas por ministros do STF, que cumprem mandatos de dois anos renováveis por mais dois. Atualmente, são Alexandre de Moares, que preside o tribunal, Cármen Lúcia e Kassio Nunes. Moraes tem adotado uma postura dura contra os ataques ao sistema eleitoral, e por isso acredita-se que votará pela inelegibilidade de Bolsonaro. A expectativa é que Cármen Lúcia acompanhará essa posição. Já Kassio Nunes, indicado ao STF por Bolsonaro, é visto como um aliado do ex-presidente e pode ser o único voto contra a condenação. Reforça essa avaliação o fato de que o ministro concedeu uma liminar suspendendo a cassação de Francischini pelo TSE, decisão que depois foi derrubada pela maioria do Supremo. Nessa liminar, Nunes citou “a preeminência atribuída pela Constituição de 1988 à livre circulação de pensamentos, opiniões e críticas com vistas ao fortalecimento do Estado Democrático de Direito e à pluralização do ambiente eleitoral, cabendo à Justiça Eleitoral intervenção mínima, em primazia à liberdade de expressão”. Outras duas vagas titulares do TSE são ocupadas por ministros do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), em mandatos de dois anos não renováveis. Um deles é Benedito Gonçalves, corregedor-geral eleitoral e relator da ação. Ele é visto como alinhado a Moraes no TSE. O outro é Raul Araújo, ministro de perfil conservador que já tomou decisões consideradas favoráveis a Bolsonaro, por exemplo, quando proibiu manifestações políticas no Lollapalooza depois de artistas demonstrarem apoio a Lula na eleição. Entre juristas, porém, há dúvidas sobre qual será seu voto no caso.
2023-06-27
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Benedito Gonçalves: quem é o inspetor de escola que virou ministro do TSE e pode dar voto decisivo para futuro de Bolsonaro
Na manhã de 13 de agosto de 2008, o então juiz federal Benedito Gonçalves foi à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. Ele seria sabatinado para o cargo de ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), após indicação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Em um dado momento, a sabatina se tornou um debate sobre cotas raciais, protagonizado pelos então senadores Eduardo Suplicy (PT-SP) e Demóstenes Torres (DEM-GO). Naquele momento, Benedito evitou tomar lado: disse apenas que o debate sobre as cotas era "fundamental". No fim, obteve o apoio da CCJ e do Plenário do Senado, e é hoje o único ministro negro entre os 33 integrantes do STJ. Aos 69 anos, o carioca Benedito Gonçalves vive um momento de protagonismo por conta de sua atuação em outra corte, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Fim do Matérias recomendadas Em maio, foi o relator do julgamento que resultou na cassação do ex-deputado e ex-procurador da Lava Jato Deltan Dallagnol (Podemos-PR). Neste mês, o TSE examina outro caso relatado por ele: uma ação movida pelo PDT contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O caso foi liberado para julgamento por Gonçalves em 1º de junho e é apenas uma das 16 ações contra Bolsonaro no TSE. Se condenado em qualquer uma delas, o ex-presidente se torna inelegível, isto é, perde os direitos políticos por oito anos - as possíveis penas, no entanto, não se acumulam neste sentido; caso haja mais de uma condenação, o período permanece de oito anos. Na semana passada, em visita ao Senado, Bolsonaro enviou um recado diretamente a Gonçalves, pedindo que ele "mude" seu voto — indicando uma expectativa negativa sobre seu caso, já que o ministro ainda não tornou público seu voto. "Tenho certeza que até o Benedito, o senhor Benedito, ministro do STJ, agora integrante como relator do TSE, vai mudar o seu voto. Senhor Benedito, é questão de coerência", disse o ex-presidente a jornalistas, defendendo que seu julgamento tenha um caminho parecido com o da chapa Dilma-Temer, cujo pedido de cassação por abuso de poder político e econômico em campanha foi negado pelo TSE em 2017. O processo movido pelo PDT e que será julgado pelo STJ acusa Bolsonaro de ter abusado do cargo de presidente ao promover uma reunião com embaixadores estrangeiros no Palácio da Alvorada, em 18 de julho do ano passado, para repetir acusações de fraude não comprovadas contra o sistema eleitoral brasileiro. Além de usar a estrutura física do Palácio do Planalto, o ex-presidente também teria usado indevidamente os serviços da TV Brasil, uma emissora estatal, para transmitir o encontro, argumenta o partido. "Bolsonaro fez três 'lives' atacando o sistema eleitoral, usou aviões da FAB para levar especialistas na calada da noite ao Palácio para ratificar (a tese da fraude nas urnas). Então, veja que não foi apenas a reunião com embaixadores (...). Se essas provas autoevidentes não servirem para condenar Bolsonaro, o que servirá?", questiona o advogado do PDT Walber Agra, um dos autores da petição. A defesa de Bolsonaro nega irregularidades e sustenta que a reunião foi um "ato de governo", sem finalidade eleitoral. O assunto também não seria da alçada do TSE, alega a defesa. A ação do PDT chegou às mãos de Gonçalves pelo fato de ele ser o corregedor-geral da Justiça Eleitoral – posto que é sempre ocupado pelo ministro do TSE mais antigo proveniente do STJ. Benedito assumiu o cargo em setembro do ano passado, depois da saída do ex-ministro Mauro Campbell Marques do TSE. Benedito é considerado próximo ao presidente do TSE, Alexandre de Moraes, a quem costuma acompanhar nas decisões para remover notícias falsas da internet. Como relator do caso, Benedito deu decisões que garantiram a chegada da ação do PDT ao plenário do TSE. Ainda em 2022, o ministro rejeitou dois questionamentos feitos pelo advogado de Bolsonaro, Tarcísio Vieira de Carvalho. No principal deles, o advogado argumentou que a Justiça eleitoral não deveria julgar o tema, uma vez que Bolsonaro não pediu votos durante a reunião. A defesa também queria que a Empresa Brasil de Comunicação, a EBC, se tornasse ré junto com Bolsonaro. As decisões de Benedito foram depois confirmadas pelo plenário do TSE. No comando da ação, o ministro também permitiu que os advogados do PDT incluíssem no processo a "minuta do golpe" – um documento encontrado pela Polícia Federal na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, e que consistia no rascunho de um decreto de intervenção no TSE, após as eleições de 2022. Para tentar diminuir as chances de um provável pedido de vista – isto é, algum outro ministro pedir mais tempo para analisar o caso – Benedito também disponibilizou seu relatório com antecedência, em 1º de junho. Mesmo assim, caso haja pedido de vista, agora há prazo para que a ação seja devolvida: são trinta dias, prorrogáveis por mais trinta. Nascido no Rio em janeiro de 1954, Benedito Gonçalves é de origem popular, segundo pessoas que o conhecem. Antes de concluir o curso de Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), aos 24 anos, trabalhou como inspetor em escolas públicas. Foi também papiloscopista na Polícia Federal por alguns anos e delegado da Polícia Civil do DF, já em Brasília, entre 1982 e 1988 – naquele ano, foi empossado juiz federal após concurso público. O ministro é casado com a advogada Santina Gonçalves e pai de dois filhos: Felipe e Fernanda. Benedito Gonçalves começou a atuação como magistrado em Santa Maria (RS), e também foi titular de uma Vara da Justiça Federal no Paraná. Transferido para o Rio de Janeiro, alcançou em 1998 o posto de desembargador no Tribunal Regional Federal da 2ª Região, que abrange os Estados do Rio e do Espírito Santo. O ministro é também pós-graduado em direito processual civil e mestre em direito pela Universidade Estácio de Sá, onde chegou a lecionar algumas disciplinas. Como magistrado, Benedito é conhecido pela habilidade administrativa e por buscar incorporar a tecnologia no cotidiano da Justiça. Também tem bom trânsito com os advogados, e é membro honorário de associações como o Instituto dos Advogados do Brasil (IAB), apesar de nunca ter exercido a advocacia. "Ele era um desembargador, e depois ministro, verdadeiramente adorado pelos advogados, porque sempre tratou os advogados com uma generosidade que pouca gente trata. Sempre foi muito querido pela advocacia como um todo", diz Vânia Aieta, que é professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e coordenadora-geral da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep). Ela conviveu com o ministro na época em que ele atuou no Rio. Apesar de não ter entrado no debate sobre cotas raciais durante a sabatina no Senado em 2008, Benedito costuma se posicionar em defesa de pautas da igualdade racial, e é próximo ao movimento negro. Em janeiro deste ano, por exemplo, esteve na posse do ministro dos Direitos Humanos, Sílvio Almeida. E, em 2021, presidiu uma comissão de juristas convocada pela Câmara dos Deputados para fazer uma revisão ampla da legislação contra o racismo no Brasil – o trabalho resultou num relatório de 610 páginas, com propostas para diversas áreas. Ao contrário de alguns outros ministros de tribunais superiores, Benedito Gonçalves é avesso a entrevistas. Raramente fala em público fora dos tribunais e, quando o faz, geralmente é em eventos jurídicos ou acadêmicos. Nesses eventos, geralmente comenta temas da sua área de atuação, e evita expor pontos de vista políticos, por exemplo. A reportagem da BBC News Brasil procurou Benedito Gonçalves por meio de seus assessores, mas o ministro informou que não faria comentários. Em maio deste ano, Benedito Gonçalves ganhou os holofotes ao relatar um processo no TSE que resultou na cassação do ex-deputado federal e ex-procurador da Lava Jato Deltan Dallagnol. A decisão atendeu a um pedido do PMN e da federação formada por PCdoB, PT e PV. No processo, os partidos alegam que Deltan estaria inelegível na disputa de 2022 por ter renunciado ao cargo de procurador da República meses antes da disputa, para evitar possíveis punições. Ao votar no caso, Benedito Gonçalves fez uma interpretação "ampla" da Lei da Ficha Limpa: o trecho da lei na qual Deltan foi enquadrado exige a presença de um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) em aberto, o que não era o caso de Deltan no momento em que ele renunciou. O que havia eram investigações preliminares, que poderiam depois resultar na abertura de PADs. Para o ministro, porém, Dallagnol renunciou ao cargo de procurador para escapar a punições que eram certas, numa tentativa de burlar a lei. "É inequívoco que (Deltan) já havia sido condenado às penas de advertência e censura em dois PADs findos, e que, ainda, tinha contra si 15 procedimentos diversos em trâmite no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) para apurar outras infrações funcionais", diz um trecho do relatório de Benedito. O voto, que foi seguido por todos os demais ministros do TSE, divide opiniões na comunidade jurídica. "Existe uma questão histórica no TSE, reiterada em várias decisões, no sentido de que as regras de inelegibilidade precisam ser interpretadas restritivamente (isto é, seguindo à risca a letra da lei). São precedentes históricos. Há vinte anos de decisões do TSE nesse sentido, porque o direito de se candidatar (a cargo eletivo) é um direito fundamental", diz o advogado e professor Horacio Neiva, que é doutor em direito pela Universidade de São Paulo (USP). Idealizador da Lei da Ficha Limpa, o advogado eleitoral Márlon Reis diz que a decisão de Benedito seguiu o espírito da norma. "O acórdão (a decisão) é extremamente bem fundamentado no Direito. Ele demonstra como a abertura de PAD não era uma mera possibilidade. Havia uma alta probabilidade. Ele fez um estudo profundo. E outra coisa: o TSE por natureza tem uma franquia política maior que os outros tribunais", diz Reis. Após o resultado no TSE, o nome de Benedito chegou a ser especulado para a vaga no Supremo Tribunal Federal (STF) aberta pela aposentadoria do ex-ministro Ricardo Lewandowski. No entanto, a indicação de Lula acabou indo para seu advogado nos processos da Lava Jato, Cristiano Zanin. Alguns ainda mencionam o nome de Benedito para a vaga de Rosa Weber, em outubro. Pesa contra ele, porém, a idade: aos 69 anos, o ministro teria poucos anos na Corte (os ministros do Supremo aposentam-se obrigatoriamente aos 75). Como ministro do STJ, coube a Benedito Gonçalves determinar o afastamento do cargo do ex-governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), em agosto de 2020, por seis meses. Ao fazê-lo, Benedito também proibiu Witzel de se aproximar da sede do governo fluminense. O ministro, porém, negou um pedido adicional do Ministério Público Federal pela prisão de Witzel – outras seis pessoas tiveram a prisão preventiva (sem prazo) decretada. No caso de Witzel, Benedito entendeu que o afastamento do cargo de governador era suficiente para interromper a eventual corrupção e lavagem de dinheiro do ex-governador. A acusação do MPF era de corrupção na contratação de hospitais de campanha (temporários) e na aquisição de respiradores e outros itens necessários para o enfrentamento da pandemia de Covid-19. "O grupo criminoso agiu e continua agindo, desviando e lavando recursos em plena pandemia da Covid-19, sacrificando a saúde e mesmo a vida de milhares de pessoas, em total desprezo com o senso mínimo de humanidade e dignidade", escreveu Benedito na decisão. Meses depois, Witzel sofreu impeachment e perdeu os direitos políticos por cinco anos. No âmbito da Lava Jato, Benedito Gonçalves foi citado na delação do empreiteiro José Adelmário Pinheiro, o Léo Pinheiro, da empresa OAS. Na delação, homologada em 2019, o empreiteiro disse que se reunia com frequência com Benedito nos anos de 2013 e 2014 para tratar de assuntos da OAS no STJ. Em troca, o ministro teria lhe pedido apoio para uma eventual nomeação ao STF. A delação resultou em investigações contra Benedito no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mas os procedimentos foram arquivados.
2023-06-27
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Maria Carolina, a princesa brasileira morta pelos nazistas em câmara de gás
O historiador Carlos Tasso de Saxe-Coburgo e Bragança tinha sete anos quando as tropas de Hitler invadiram a Áustria, em 12 de março de 1938. Aos 91, ele não se esquece do semblante de preocupação de sua tia, a princesa Maria Carolina de Saxe-Coburgo e Bragança (1899-1941). Ela e a mãe de Carlos, Teresa Cristina (1902-1990), são bisnetas do imperador Pedro 2º (1825-1891). Elas são filhas do príncipe Augusto Leopoldo (1867-1922), filho da princesa Leopoldina (1847-1871). Leopoldina é, por sua vez, a segunda filha de Pedro 2º e Teresa Cristina de Bourbon-Duas Sicílias (1822-1889). Ao todo, o príncipe Augusto e a mulher, a arquiduquesa Carolina da Áustria-Toscana (1869-1945), tiveram oito filhos: Augusto (1895-1909), Clementina (1897-1975), Maria Carolina, Rainer (1900-1945), Filipe (1901-1985), Teresa Cristina, Leopoldina (1905-1978) e Ernesto (1907-1978). Desses, pelo menos três nasceram com problemas mentais, provavelmente de origem genética: Augusto, Maria Carolina e Leopoldina. Fim do Matérias recomendadas No caso da terceira filha do casal, acredita-se que, além da deficiência mental, ela teria contraído poliomielite. Quem afirma isso é sua sobrinha, Maria Amélia, filha da princesa Clementina, em seu livro de memórias. Naquele 12 de março de 1938, Maria Carolina não poderia imaginar que apenas três anos depois, no dia 6 de junho de 1941, ela seria morta pelas mãos dos nazistas numa câmara de gás do Castelo de Hartheim, na Áustria. Tinha 42 anos. "Minha tia foi barbaramente eliminada por duas razões: era declaradamente antinazista e tinha uma doença incurável", recorda o sobrinho da princesa, autor de livros como Dom Pedro 2º na Alemanha (Editora Senac, 2014). "O regime eliminou uma inimiga com a desculpa de que ela era inútil e demente". A princesa Maria Carolina nasceu no dia 10 de janeiro de 1899, na cidade de Pula, antigo Império Austro-Húngaro, atual Croácia. Seu nome completo é Maria Carolina Filomena Ignácia Paulina Josefa Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Saxe-Coburgo e Bragança. Por parte de pai, Maria Carolina era bisneta de Dom Pedro 2º, o último imperador do Brasil, e trineta de Dom Pedro 1º, o primeiro imperador brasileiro. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Seu pai, Augusto, nasceu em Petrópolis (RJ), no dia 6 de dezembro de 1867, mas, com a morte do avô, Dom Pedro 2º, no dia 5 de dezembro de 1891, passou a morar em Viena. Foi lá que se casou, no dia 30 de maio de 1894, com a arquiduquesa Carolina, no Palácio Imperial de Hofburg. O casal teve oito filhos. A família de Augusto e Carolina morou, entre outros endereços, nos castelos Gerasdorf e Schladming, distantes 16 e 345 quilômetros de Viena, a capital da Áustria. Dom Augusto morreu em 11 de outubro de 1922, aos 54 anos, sem realizar o sonho de, um dia, regressar ao Brasil. A Lei do Banimento, que impedia a família imperial de colocar os pés no país, vigorou de 21 de dezembro de 1889, por ocasião da Proclamação da República, a 3 de setembro de 1920, já no governo do presidente Epitácio Pessoa. "Os brasileiros conhecem muito pouco a história da princesa Maria Carolina porque ela nasceu no exílio", explica a historiadora Astrid Beatriz Bodstein, idealizadora do perfil Royalty and Protocol no Instagram. "Não bastasse, a grande imprensa boicotava toda e qualquer notícia sobre a família imperial. Ela praticamente viveu nas sombras". Segundo Bodstein, o príncipe Augusto Leopoldo até pensou em visitar o Brasil por ocasião das comemorações do centenário da Independência, em 1922, mas, adoeceu e morreu logo depois. A primeira integrante do ramo da família Saxe-Coburgo e Bragança a conhecer o país foi a princesa Teresa Cristina já na década de 1930. Em 1938, por recomendação de Filipe, o quinto filho da família Saxe-Coburgo e Bragança, sua mãe, Carolina, mudou-se para Budapeste, na Hungria, com a filha, Leopoldina. Em setembro daquele mesmo ano, seis meses depois da anexação da Áustria pela Alemanha, Maria Carolina foi transferida para um hospital psiquiátrico em Schladming, onde a família residia desde 1918. A princesa já tinha sido internada, entre outras instituições, em uma casa de repouso em Salzburgo e em um sanatório público em Niedernhart. "Muitos pais, sob a ameaça de perder a custódia de seus filhos, foram pressionados a mandá-los para supostos asilos e hospitais psiquiátricos", afirma a historiadora Sabrina Ribeiro, criadora do canal Apaixonados por História no YouTube. "Segundo as leis do regime nazista, pessoas 'suspeitas' de doenças hereditárias, ou ‘vidas indignas de serem vividas’, como diziam na época, deveriam ser exterminadas". Médicos nazistas, em vez de tratar os pacientes, entregavam os considerados incuráveis, seja por terem deficiências físicas, seja por apresentarem transtornos psiquiátricos, à morte. No dia 6 de junho de 1941, o hospital de Schladming foi invadido por soldados alemães. Os pacientes — entre eles, Maria Carolina — foram transportados, em veículos apelidados de "ônibus da morte", para o Castelo de Hartheim. Assim que chegaram ao centro de extermínio, os pacientes que tinham dentes ou obturações de ouro eram marcados pelos guardas. Depois de sua morte, tais objetos de valor seriam extraídos. Hartheim era um dos seis centros de extermínio existentes na época. Os outros cinco eram Bernburg, Brandenburg, Grafeneck, Hadamar e Sonnenstein. Neles, os pacientes eram mortos por envenenamento a gás — monóxido de carbono ou cianeto de hidrogênio — ou com injeção letal. "Na hierarquia da memória, os deficientes físicos e mentais ocupam o último lugar", afirma a pesquisadora Esther Mucznik, presidente da Associação Memória e Ensino do Holocausto (Memoshoá), em Lisboa. "E ocupam o último lugar, não só pelo apagamento de vestígios, mas, porque, ao contrário de outras vítimas do Shoah, como judeus, ciganos e homossexuais, não tinham representantes ou porta-vozes". No mesmo dia em que chegou a Hartheim, 6 de junho de 1941, a princesa Maria Carolina de Saxe-Coburgo e Bragança foi executada, completamente nua, numa câmara de gás disfarçada de banheiro. Dos chuveiros, não saía água, mas gás letal. Da inalação ao óbito, a vítima, calculam os historiadores, não durava mais do que 20 minutos… Horário de sua morte: 3h40. Estima-se que, entre maio de 1940 e agosto de 1941, 18,2 mil pacientes tenham sido executados em Hartheim — média de 40 por dia. Não por acaso, o centro de extermínio ganhou o macabro apelido de “Castelo da Morte”. O corpo de Maria Carolina foi incinerado em um crematório dentro do próprio castelo e suas cinzas supostamente guardadas na cripta da família na paróquia de Santo Agostinho, em Coburgo. No mesmo dia de sua execução, o príncipe Ernesto recebeu uma carta de condolências. O documento informava o óbito de Maria Carolina, mas não trazia a causa de sua morte. Em geral, os médicos alegavam que os pacientes morreram de pneumonia ou tuberculose. "O termo eugenia foi criado pelo cientista britânico Francis Galton (1822-1911) para designar uma ‘ciência’ de melhoria da espécie humana", explica a médica Andréa Maciel Guerra, doutora em Genética e Biologia Molecular pela Unicamp. "Suas ideias de aprimorar a qualidade da população por meio do encorajamento da união entre pessoas com características desejáveis ficaram conhecidas como eugenia positiva". Se a "eugenia positiva" estimulava a união de pessoas com características desejáveis, a "eugenia negativa" proibia a de indivíduos com características indesejáveis, como geneticamente incapazes, racialmente indesejados e economicamente empobrecidos. "Na Alemanha, a eugenia inspirou defensores da supremacia racial, como Adolf Hitler, que tinham receio da degeneração da população pela reprodução de deficientes e de pessoas de camadas sociais inferiores", prossegue a geneticista. "Ele aplicou as doutrinas eugenistas de esterilização compulsória, eutanásia passiva e extermínio em massa dos indesejáveis e legitimou seu ódio fanático pelos judeus com uma fachada médica e pseudocientífica". No dia 12 de novembro de 2021, uma "pedra de tropeço" (“stolpersteine”, no original em alemão) em homenagem à princesa Maria Carolina de Saxe-Coburgo e Bragança foi instalada em frente à antiga residência de sua família em Schladming, na Áustria. Atualmente, o castelo abriga a sede da prefeitura. O projeto, lançado em 1992, é uma iniciativa do escultor alemão Gunter Demnig, de 71 anos. O objetivo dele é lembrar algumas das incontáveis vítimas do Holocausto. "Uma pessoa só é esquecida quando seu nome é esquecido", explica o criador do projeto. Até maio de 2023, já foram instaladas mais de 100 mil "pedras de tropeço" em 26 países, como Áustria, Polônia e Argentina. Só na Alemanha, são mais de sete mil. Cada placa custa, entre produção e instalação, 132 euros. As "pedras de tropeço" são placas de bronze, esculpidas à mão, sobre cubos de concreto. Em geral, as pedras, de 10 centímetros, são instaladas na calçada diante do último endereço conhecido da vítima. Na "pedra de tropeço" de Maria Carolina está gravada a inscrição "Aktion T4". O T4 faz referência ao endereço da sede da suposta Fundação de Caridade para Cuidados Institucionais: o nº 4 da rua Tiergartenstrasse, em Berlim, na Alemanha. Quem trabalhava lá, entre outros, era Karl Brandt (1904-1948), o médico particular de Adolf Hitler. "A Ação T4 é conhecida, eufemisticamente, como eutanásia nazista", revela o historiador Pedro Muñoz, doutor em História das Ciências pela Fiocruz e professor de História da PUC-Rio. "Tratava-se, na realidade, de uma política de extermínio em massa de doentes mentais que antecedeu a chamada solução final". "Os historiadores alemães que estudam a história da eutanásia nazista estimam um total de 200 mil vítimas da Aktion T4 em diferentes territórios sobre o domínio do Terceiro Reich", acrescenta Muñoz. No dia 19 de janeiro de 2023, a princesa Maria Carolina ganhou mais uma homenagem: a inauguração do Memorial às Vítimas do Holocausto, no Rio de Janeiro. Lá, o público pode conhecer as histórias de dezenas de vítimas do Holocausto, como a escritora alemã Anne Frank (1929-1945), ou sobreviventes, como o psiquiatra austríaco Viktor Frankl (1905-1997). "Os terríveis números de milhões de homens, mulheres e crianças perseguidas e mortas pelo regime nazista escondem a tragédia vivida por cada indivíduo", observa Alfredo Tolmasquim, curador da exposição do Memorial às Vítimas do Holocausto, no Rio de Janeiro. "Cada pessoa vítima do nazismo tinha um nome, um rosto e uma história, e nós queremos dar voz e contar a história de cada um deles". Logo na entrada do museu, um monumento de 20 metros de altura, que simboliza os Dez Mandamentos, destaca o quinto deles: "Não Matarás". A exposição é dividida em três salas. Na primeira delas, iluminada e colorida, o visitante recorda o dia a dia dos judeus antes da ascensão de Hitler ao poder. Há vídeos e fotos de escolas, casamentos e aniversários. O segundo módulo, sombria e silenciosa, retrata a vida durante o Holocausto. Nas paredes, em vez de fotografias colorizadas, retratos em preto & branco. O silêncio é quebrado quando o visitante toca um totem e ouve as histórias de vítimas e sobreviventes. A da princesa Maria Carolina é apenas uma entre tantas. A última sala ilustra a vida depois da Segunda Guerra Mundial. No centro do módulo, uma mesa interativa dos sobreviventes que foram acolhidos no Brasil. Destaque para Nanette Blitz Konig, de 94 anos. De origem holandesa, ela foi colega de Anne Frank tanto no Liceu Judaico, na Holanda, onde estudaram, quanto no campo de concentração de Bergen-Belsen, na Alemanha, onde estiveram presas. Hoje, mora em São Paulo. O regime nazista perseguiu, torturou e assassinou, além de judeus, negros, ciganos, homossexuais, testemunhas de Jeová e deficientes físicos e mentais, entre outros. "Os deficientes físicos e mentais eram considerados um peso para a sociedade", descreve Alfredo Tolmasquim. "Os nazistas identificavam os alemães como membros da raça ariana, uma raça superior, idealizada como pessoas altas, inteligentes, atléticas, louras e de olhos azuis. Os deficientes 'sujavam' a pureza da raça. Milhares de deficientes foram assassinados e outros tantos foram esterilizados em nome de uma pretensa 'pureza' da raça".
2023-06-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxedr2k5jxpo
brasil
O saldo da visita de Lula à Europa em 4 pontos
Em quatro dias repletos de encontros oficiais, primeiro na Itália e, a partir de quinta (22/6), na França, o presidente Lula se reuniu com líderes de vários países e aproveitou para destacar os engajamentos do Brasil na área ambiental, o que também é uma forma de tentar destravar o acordo entre União Europeia e Mercosul. O chefe de Estado brasileiro também fez articulações políticas na França, país-chave para desbloquear o processo de implementação desse acordo de livre comércio entre os dois blocos, e reiterou o posicionamento do Brasil em relação à guerra na Ucrânia. A seguir, entenda, em quatro pontos, os principais destaques da viagem de Lula à Europa. Após cumprir uma agenda “necessária” na Itália, como declarou Lula em uma coletiva em Paris na manhã deste sábado, ressaltando que há mais de seis anos o Brasil não tinha relação com o país, o que ele qualificou de “inexplicável”, o presidente participou de uma cúpula sobre um novo pacto financeiro global para lutar contra as mudanças climáticas e a pobreza. O evento reuniu dezenas de chefes de Estado, o que representou uma oportunidade de reaproximação com a África, na avaliação de Lula. Fim do Matérias recomendadas A cúpula, uma iniciativa do presidente francês, Emmanuel Macron, teve como um dos temas centrais a reforma de instituições internacionais como o FMI e o Banco Mundial. “Foi muito importante pela possibilidade de ter relações de uma só vez com muitos países, sobretudo africanos”, disse Lula. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Segundo ele, os países africanos estão “muitos desejosos da volta do Brasil à África”, se referindo a convênios e investimentos brasileiros no setor de obras no continente. “Foi uma reunião extraordinária porque fazia muito tempo que eu não me encontrava com muitos presidentes, alguns eu nem conhecia”, acrescentou Lula sobre o evento em que ele participou apenas no encerramento, na sexta-feira, uma mesa-redonda com vários chefes de Estado e de governo, coordenada por Macron. Em Paris, Lula teve encontros com os presidentes da África do Sul, da República Democrática do Congo, de Cuba, com o primeiro-ministro do Haiti e com o presidente da COP28 nos Emirados Árabes Unidos, além do presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Já o jantar oferecido pelo príncipe da Arábia Saudita acabou sendo cancelado a pedido de Lula, mas ele nega que isso tenha ocorrido em razão da repercussão negativa do encontro. Na prática, a cúpula com o objetivo de redesenhar a arquitetura financeira mundial não correspondeu aos interesses do Brasil, como declarou à BBC News Brasil uma fonte diplomática brasileira - e o Brasil ainda espera o cumprimento da antiga promessa dos países ricos de liberar US$ 100 bilhões por ano para os países em desenvolvimento lutarem contra as mudanças climáticas. Mas o encontro serviu como oportunidade para Lula voltar a opinar sobre a necessidade de reforma das instituições internacionais, como FMI, Banco Mundial e ONU, para que haja uma nova governança global, mais representativa do mundo de hoje. “Governança global se chama ONU e ela tem de estar fortalecida, não é mais a mesma de 1945”, afirmou Lula neste sábado. Para o presidente, a ONU precisa ter representatividade e força política para que medidas ambientais aprovadas em reuniões internacionais possam ser efetivamente implementadas de forma global. “Se não mudarmos essas instituições, a questão climática vira uma brincadeira”, disse Lula no encerramento da cúpula em Paris. A diplomacia brasileira considera ainda que o encontro em Paris serviu como um “aquecimento para o G20”, que o Brasil presidirá a partir de 1° de dezembro. Durante a viagem, Lula criticou repetidas vezes as novas exigências na área ambiental impostas pelos europeus em relação ao acordo União Europeia. O adendo ao tratado feito prevê sanções no caso do não cumprimento do Acordo climático de Paris, algo que Lula classificou como “ameaças a um parceiro estratégico” em um discurso diante de Macron e outros líderes políticos na sexta (23/6). Esse assunto também foi discutido com o líder francês durante um almoço no Palácio do Eliseu, na sexta-feira. Lula reiterou a Macron que o Brasil considera inaceitável o adendo que modifica o acordo aprovado em 2019. “O almoço com o presidente Macron foi importante porque colocamos nossa pauta em dia, ou seja, todos os problemas que tínhamos de levantar. O mais sério é o acordo UE- Mercosul, no qual a França tem um papel importante e nesse momento há um início de contrariedade da França com relação ao acordo”, declarou Lula. A França contesta a ratificação desse acordo, alegando, entre diferentes fatores, problemas de uso de pesticidas no Brasil que são proibidos na Europa, dumping e desequilíbrios entre os direitos trabalhistas dos dois blocos. “Eu acho normal que a França tente defender a sua agricultura, pode ser um ponto de mais dificuldade de inflexão, mas também é normal que eles compreendam que o Brasil não pode abrir mão das compras governamentais.” “Nós precisamos da União Europeia e a UE precisa muito de nós. É importante colocar um pouco da arrogância de lado e colocar o bom senso para negociar. Isso vale para eles e para a gente”, acrescentou. Com o presidente Macron sem maioria absoluta no parlamento após a sua reeleição, Lula aproveitou sua viagem à França para conversar com um líder da esquerda, Jean-Luc Mélenchon, da França Insubmissa, partido que lidera uma coalizão de esquerda que inclui socialistas, ecologistas e comunistas no parlamento francês. “Não tenha dúvida de que nós vamos conversar com todos os amigos que temos na França para ver se a gente consegue convencer as pessoas da importância (do acordo)”, declarou. O presidente brasileiro disse que o Mercosul irá responder a carta adicional enviada pela UE e afirmou que isso será importante para “para estabelecer uma nova rodada de negociações” no encontro entre europeus e países latino-americanos e caribenhos (Celac) que ocorrerá em julho na Bélgica. Em seus discursos na Europa, como o realizado na cúpula em Paris sobre um novo pacto financeiro global, Lula reiterou a promessa do Brasil de acabar com o desmatamento na Amazônia até 2030 e de cuidar de outros biomas nacionais, além de destacar o papel do Brasil no debate sobre as mudanças climáticas e o fato de que o Brasil tem uma das matrizes energéticas mais limpas do mundo. “No Brasil, 87% da energia é renovável, contra 27% no resto do mundo”, declarou Lula repetidas vezes. Ele também cobrou dos países ricos a responsabilidade por financiar a preservação ambiental. Mas a maior vitrine de Lula na área ambiental nessa semana europeia foi provavelmente seu discurso no show “Power of Planet” nos jardins da Torre Eiffel para milhares de jovens. O evento da ONG Global Citizens tem como curador artístico o vocalista da banda Coldplay, Chris Martin, que apoia esse movimento que mobiliza cidadãos de todo o mundo em relação a temas como fim da pobreza extrema e preservação do planeta. Os discursos de Lula sobre o tema também visa tranquilizar os europeus em relação à política nessa área, com o objetivo de tentar destravar o acordo de livre comércio entre a UE e o Mercosul. A visão do governo brasileiro em relação ao conflito na Ucrânia é diferente à dos europeus: eles consideram a Rússia um agressor que não pode ficar com os territórios invadidos e ressaltam que a Ucrânia, que tem recebido armamentos dos americanos e europeus, tem o direito de se defender. O conflito também foi um dos assuntos do almoço com Macron na sexta-feira. Nesta viagem, Lula manteve sua posição, que vem sendo criticada pela imprensa francesa, de que o conflito deve ser suspenso e que sejam iniciadas negociações de paz. Lula declarou entender que os europeus que têm uma guerra à sua porta tenham uma visão diferente. “Eles estão no centro da guerra. Eu estou a 14 mil quilômetros de distância. Eles estão sofrendo a consequência mais direta do conflito”, afirmou, se referindo ao aumento dos preços da energia no continente. “O Macron sabe o que eu penso da Ucrânia e eu sei o que ele pensa. Ele está próximo do campo de batalha e acho que mesmo os que defendem a guerra e que ajudam a Ucrânia querem a paz”, declarou Lula sobre a conversa com o líder francês na sexta. “A paz só vai acontecer quando os dois combatentes chegarem à conclusão de que é preciso ter paz. Tem muita gente tentando encontrar um caminho para que a gente chegue a paz”, disse, acrescentando esperar que em breve esse seja também o caso dos Estados Unidos. O Brasil participa de uma reunião neste final de semana convocada pela Ucrânia em Copenhague, na Dinamarca, com os países do G7, além da África do Sul, Índia, Turquia e provavelmente a China sobre o conflito. Celso Amorim, assessor especial da presidência, foi enviado para a cidade nórdica. “Sou contra a guerra, quero paz. Nós condenamos a invasão da Rússia, mas isso não signfica que vou ficar fomentando a guerra. Em algum momento os dois países vão sentar e vão precisar de interlocutores. O Amorim está em Copenhague para tentar estabelecer soluções para a paz”, concluiu Lula neste sábado.
2023-06-24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cp694n66nz0o
brasil
O que é o novo pacto financeiro global em discussão em cúpula em Paris com participação de Lula
Altas ambições e também desafios importantes: a Cúpula para um Novo Pacto Financeiro Global, iniciativa do presidente francês, Emmanuel Macron, que começa nesta quinta-feira (22/06) em Paris e deve reunir cerca de 100 chefes de Estado e de governo, tem o objetivo de reforçar os mecanismos de apoio aos países do Sul para combater a pobreza e lutar contra as mudanças climáticas. Entre as diferentes propostas sobre a mesa, estão a reforma do Fundo Monetário Internacional (FMI) e de bancos multilaterais de desenvolvimento, como o Banco Mundial; o problema de endividamento de países mais vulneráveis e que tiveram sua situação econômica agravada por conta da alta da inflação e dos juros; a taxação do comércio marítimo e uma maior mobilização do setor privado nos desafios globais. A ideia da cúpula é formar uma coalizão para dar um impulso político a discussões que já vêm ocorrendo no âmbito de organizações como o G20, disse à BBC News Brasil uma fonte do governo francês ligada à organização da cúpula. O evento que dura dois dias, realizado no prédio onde funcionava a antiga bolsa de valores de Paris, construído a pedido de Napoleão Bonaparte, terá a presença do presidente Lula (somente na sexta), do chanceler alemão, Olaf Scholz e de diversas autoridades, como o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, e a secretária do Tesouro americano, Janet Yellen, além de representantes de instituições financeiras, empresas e ONGs. “É um encontro para avançar as coisas. É uma forma de pressão sobre o G20, já que diferentemente das reuniões desse grupo, a cúpula em Paris terá mais representantes de países devedores”, diz a fonte. Fim do Matérias recomendadas Uma das divergências atuais, diz ele, é em relação ao tratamento da dívida de países pobres. A China, principal credora bilateral, concentra atualmente uma boa parte da dívida desses países e, diferentemente do Clube de Paris, que anulou uma parte dos valores devidos por países altamente endividados, o país asiático prefere analisar caso por caso. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Já os países ricos avaliam que é preciso avançar rapidamente em relação a esse aspecto. Outro ponto de conflito, também com a China, é em relação aos bancos de desenvolvimento regionais. Os países ricos desejam que os fundos sejam utilizados de maneira mais eficiente, ou seja, sem colocar novos recursos, criando sistemas para reduzir o custo do capital e também por meio de uma melhor coordenação entre esses bancos. A ideia também é direcionar os fluxos financeiros para os países que realmente necessitam. Já a China defende um aumento de capital desses bancos, o que levaria a uma redistribuição de cotas e mudaria a governança dessas instituições. “Estamos longe de um resultado consensual nessa cúpula, mas há progressos inesperados se levarmos em conta a atual situação geopolítica”, afirma a fonte ligada ao governo francês. “O objetivo no curto prazo é avançar dossiês um pouco bloqueados”, ressalta. “É uma etapa de um processo que já começou. Os países estão dando uma dinâmica, indicações do que pode ser feito. Há a necessidade de ter ambições políticas e cumprir objetivos. É também uma questão de credibilidade. Não são necessárias novas promessas”, disse à BBC Brasil Élise Dufief, pesquisadora do Iddri, instituto independente de pesquisas sobre políticas públicas e privadas para facilitar a transição para o desenvolvimento sustentável. Entre os resultados possíveis da cúpula, poderá ser anunciado um mecanismo para a suspensão dos reembolsos da dívida dos países mais afetados por catástrofes naturais e também propostas para o redirecionamento dos chamados direitos especiais de saques do FMI, que são recursos dos países ricos. Outro compromisso, já antigo, os US$ 100 bilhões por ano prometidos pelos países ricos em 2009 para ajudar os países do Sul a lutar contra as mudanças climáticas a partir de 2020, deverão ser atingidos neste ano. O cumprimento dessa medida poderá talvez ser anunciado na reunião em Paris. A chegada do presidente Lula a Paris está prevista no final da manhã desta quinta (22/06). Lula passará a tarde no hotel, onde terá encontros bilaterias com os presidentes da África do Sul, de Cuba, com o primeiro-ministro do Haiti e com o presidente da COP28, que ocorrerá nos Emirados Árabes Unidos. Ele fará depois um discurso no show Power our Planet e participará do jantar oferecido pelo presidente Macron aos chefes das delegações da cúpula. O governo francês espera que as propostas feitas nessa cúpula política ganhem força em outras reuniões internacionais, como o G20 e a COP 28 do clima.
2023-06-22
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c6pl0165369o
brasil
O que disse Cristiano Zanin, aprovado para o STF, sobre imparcialidade, drogas, aborto e outros temas sensíveis
Imparcialidade, drogas, aborto, liberdade expressão, entre outros — na sabatina que o confirmou para assumir o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), o advogado Cristiano Zanin Martins foi questionado pelos senadores sobre uma grande variedade de temas atuais e sensíveis. Zanin foi aprovado na Comissão de Constituição de Justiça (CCJ) do Senado (por 21 votos a favor e 5 contra) e em seguida no plenário (58 a 18). Como é praxe nas sabatinas, novo ministro não aprofundou seu posicionamento em assuntos mais polêmicos com a justificativa de que os temas podem ser julgados pelo STF e ele não pode antecipar o voto - além de precisar analisar questões técnicas e fatos de cada caso em julgamento. No entanto, as respostas de Zanin ajudaram a diminuir um pouco as incógnitas em torno de sua figura - que cultivou descrição ao longo de sua atuação como advogado de Lula nos últimos anos. Bombardeado por perguntas sobre sua relação profissional e pessoal com Lula vindas de diversos senadores, Zanin - que defendeu o petista nos casos da operação Lava Jato - afirmou que teve bastante convivência com o presidente como seu advogado, mas que sempre defendeu a importância da imparcialidade dos julgadores e que pretende agir de acordo. Fim do Matérias recomendadas Respondendo a uma pergunta do senador Sergio Moro (União-PR), esclareceu que não foi padrinho de casamento de Lula (como Moro disse ter lido na internet) e que, neste ano, a única ocasião em que esteve presencialmente com o presidente foi quando recebeu o convite para o cargo no Palácio do Planalto. O encontro cara a cara com Moro foi o primeiro desde as intensas trocas entre os dois durante o julgamento dos processos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Então minha relação com o presidente tem esses contornos - jamais vou negá-la, ao contrário, sou grato pela indicação", disse Zanin, que afirmou também que terá uma atuação imparcial e não terá problemas em se declarar impedido em casos em que estejam presentes os critérios para suspeição. "A imparcialidade do julgador é um elemento estruturante da Justiça, é fundamental para assegurar a credibilidade do sistema de Justiça. Todas as medidas que eu possa adotar para assegurar a credibilidade do sistema de Justiça, eu farei", afirmou. "Minha função jamais será a de proteger um partido ou grupo político em detrimento do outro. Não tenho filiação partidária, não tenho atividade político partidária", disse ele. "O exercício da Corte demanda atuação imparcial e independente do magistrado. Isso é o que sempre defendi na minha carreira profissional, não só nos tribunais nacionais mas no comitê de direitos humanos da ONU", afirmou. "É um assunto que sempre me preocupou. Eu sempre defendi a atuação imparcial e se aprovado defenderei com ainda mais rigor." Zanin obteve vitórias no caso de Lula justamente ao conseguir decisão do Supremo em favor de seu argumento de que o presidente não teve um julgamento imparcial. Zanin disse que, como determina a lei, vai se declarar impedido para julgar qualquer caso em que tenha atuado como advogado, independentemente de quem defendeu. Mas afirmou que não deve se declarar impedido em qualquer caso da Lava Jato apenas por ele ser oriundo da operação. "Para processos futuros, é preciso analisar os autos, o conteúdo do processo, as partes. O simples fato de um processo ter a etiqueta 'Lava Jato' não pode ser um critério para controle jurídico. O critério deve ser o que a lei prevê. Se houver hipóteses de impedimento, não terei o menor problema em declarar suspeição", afirmou. O advogado afirmou que os atributos do magistrado devem ser "equilíbrio, temperança e equidistância em relação às partes". "O magistrado tem que ouvir em condição de igualdade as duas partes de forma equidistante e formar o seu juízo com equilíbrio. Não deve ser o protagonista do processo, mas agir com muito equilíbrio e temperança", disse, em uma aparente cutucada no senador Sergio Moro, que, quando era juiz, foi um dos "personagens" mais proeminentes durante o curso da operação Lava Jato. Zanin deu pistas sobre sua postura quanto à criminalização das drogas e a questão de se os guardas municipais podem ou não fazer revistas pessoais. Ele afirmou que não é uma questão "de ser favorável ou não ao combate", mas uma questão de respeitar o que a lei diz sobre os limites de atuação dos agentes públicos. "Droga é um mal que precisa ser combatido", disse ele, "e o Senado tem aprimorado a legislação nesse sentido". "Minha visão é que a lei deve definir a atribuição do agente público, ou seja, é preciso avaliar se o agente público tem atribuição legal para realizar o ato de persecução", disse. "O Estado não pode adotar a regra do vale tudo. O estado tem poder enorme, e ele deve ser contido sempre que usado fora do que prevê a lei ou de forma abusiva." Questionado sobre uma fala em seu livro em que cita a regulação de imprensa em comparação do Brasil com o Reino Unido, Zanin afirmou que defende “de forma veemente” a liberdade de imprensa "como um direito fundamental, inclusive daquele que tem o direito de ser informado". "(Como advogado) tive oportunidade de defender a liberdade de imprensa de empresas e jornalistas que estavam tendo sua liberdade cerceada", afirmou. Zanin disse que em seu livro não defende um modelo de disciplina, mas coloca o tema em discussão. Quanto ao direito à liberdade de expressão, Zanin afirmou sua importância, mas disse que ela tem limites, não é um "direito absoluto, não protege um direito a cometer crimes". "Exercício de um direito nao pode comprometer a esfera jurídica de outra pessoa", afirmou. Sobre direitos da população LGBT, Zanin afirmou na sabatina que respeita "todas as formas de expressão do afeto e do amor" e que isso é um direito fundamental. "Isso tem que ser respeitado pela sociedade e pelas instituições", disse ele, que citou resoluções no Conselho Nacional de Justiça e do próprio STF que garantiram direitos, como a união estável entre pessoas do mesmo gênero. "Novos julgamentos sobre esses assuntos", afirmou, "vão passar pela Constituição, pelos fundamentos, dentre eles a dignidade da pessoa humana e o objetivo fundamental da república - promover o bem de todos sem preconceitos de origem cor, idade e quaisquer outra formas." Em outros temas delicados, como o direito a interromper uma gravidez, Zanin evitou dar respostas tão precisas. "O respeito à vida está previsto na Constituição. É uma garantia fundamental." disse ele. O advogado afirmou que temos que enaltecer o direito à vida, mas, ao mesmo tempo, afirmou, "existe um arcabouço tanto da tutela do direito à vida" quanto sobre as "hipóteses de excludente de ilicitude (para mulheres que fazem o procedimento) em casos determinados", como estupro ou anencefalia do feto. Zanin disse que não poderia comentar o caso específico do Marco Temporal (tese jurídica que diz que os povos indígenas (que visa restringir a demarcação de terras às ocupadas em 1988) para não antecipar votos. Mas afirmou que a Constituição prevê tanto o direito à propriedade privada quanto os direitos dos povos originários. "Então, nessa questão é preciso sopesar esses valores e conciliar os dois direitos", disse. Zanin afirmou que o foro privilegiado para autoridades é um assunto sobre o qual o entendimento do Supremo já está consolidado. Uma das decisões mais recentes da Corte restringiu o foro para atos cometidos durante o mandato. "Não posso e nem deveria analisar um julgamento que já ocorreu. Eventuais mudanças podem ser realizadas pela via do Congresso", afirmou Zanin. Sobre liberdade religiosa, Zanin destacou que o Estado brasileiro é laico, mas que assegura a liberdade de crença e de religião a todos os cidadãos. "Prestigiar a liberdade religiosa é prestigiar também o texto constitucional", disse ele. Zanin ponderou que a liberdade religiosa não pode extrapolar a ponto de ofender um terceiro. A pergunta havia sido feita pelo senador Carlos Viana (Podemos-MG) que disse que há "pastores e padres sendo perseguidos" e acusados de homofobia.
2023-06-21
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw0pnqvlnlvo
brasil
Sexta-feira sangrenta: por que 55 anos depois não se sabe quantos morreram em repressão a estudantes no Rio
Era um Brasil onde não se podia confiar nas estatísticas oficiais, aquele de poucas décadas atrás. Não faz muito tempo: há exatos 55 anos, o episódio que ficou conhecido como Sexta-feira Sangrenta até hoje não tem um consenso sobre o número de vítimas. De um lado, a versão oficial aponta que foram três os mortos. Já conforme dados do Centro de Documentação de História Contemporânea, da Fundação Getúlio Vargas, teriam sido 28 mortos, além de dezenas de feridos e mais de mil prisões. No verbete dedicado ao tema, a instituição afirma que o número foi obtido conforme informações de hospitais. Na edição de 22 de junho de 1968, o Jornal do Brasil noticiou o episódio com direito a foto na capa. Segundo o texto, a manifestação havia deixado um saldo de um policial morto e, provavelmente, dois civis. Além de cerca de 80 feridos. O volume 3 do relatório da Comissão Nacional da Verdade identifica cuidadosamente todas as 45 pessoas que, confirmadas, foram mortas pelo regime militar brasileiro entre 1964 e 1968. Segundo o documento, foram três militantes, todos civis, que morreram na Sexta-feira Sangrenta. Mas apenas uma, a comerciária Maria Ângela Ribeiro, de 22 anos, morreu durante a manifestação — “morta a tiros pela polícia”, como enfatiza o relatório. Fim do Matérias recomendadas Com apenas 15 anos de idade, o comerciário Fernando da Silva Lembo morreu no Hospital Souza Aguiar em 1º de julho daquele ano. Ele foi para ali levado, segundo o texto “depois de ter sido atingido por disparo de arma de fogo, em 21 de junho, durante uma manifestação pública no centro do Rio de Janeiro”. De acordo com o relatório da Comissão da Verdade, o terceiro óbito relacionado ao episódio ocorreria em 5 de agosto. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na data, o estudante e comerciário Manoel Rodrigues Ferreira, de 22 anos, morreu no Hospital Samaritano. Ele havia sido transferido para lá depois de passar por duas outras instituições de saúde e ter se submetido a uma cirurgia. Ferreira havia tomado dois tiros na cabeça durante a repressão. Professor na Fundação Escola de Sociologia de São Paulo e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), o sociólogo Paulo Niccoli Ramirez explica à BBC News Brasil que a dificuldade em se chegar ao número correto de vítimas é devido à própria falta de transparência da ditadura militar. “Em primeiro lugar, havia uma censura. Em segunda, os militares não queriam difundir o número exato [de vítimas] para não gerar uma maior insatisfação em relação ao regime, com base no que poderia circular inclusive nos meios de comunicação”, avalia Ramirez. Para o historiador Victor Missiato, pesquisador do Grupo Intelectuais e Política nas Américas, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e professor do Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré, “o número de 28 mortos é muito incerto, muito impreciso”. “Não estou aqui corroborando a versão oficial dos três mortos, mas sim colocando em perspectiva o tema. A identificação dessas pessoas é muito imprecisa e dizer que é de acordo com informações de hospitais é algo muito impreciso”, afirma ele, à BBC News Brasil. Missiato arrisca que o número total de vítimas tenha ficado entre três e seis. “Próximo à versão oficial me parece verossímil”, aponta ele, citando que os dados dos hospitais da época não são precisos e “daí vem a dificuldade de precisar esse número de mortos em uma época em que era completamente cabível a investigação do número de óbitos desse tipo de evento”. Os ânimos se acirraram a partir do dia 18 de junho, quando o líder estudantil Jean Marc von der Weid acabou preso ao fim de uma passeata. Nova manifestação estudantil ocorreu no dia 19, com repressão violenta por parte da polícia. No dia seguinte, estudantes da Universidade Federal do Rio de Janeiro se reuniram e forçaram um debate com o reitor. Na saída do encontro, policiais os aguardavam. Entre golpes de cassetetes e outras demonstrações de força e violência, cerca de 300 foram detidos — e há relatos de que sofreram espancamentos. O cenário estava formado. Naquele contexto de ditadura militar, a revolta estudantil se voltava contra o regime. Mas não só. Era 1968 e ventos de manifestações semelhantes de outras partes do mundo também sopravam no Brasil. “Os movimentos sociais do Brasil daquele ano estão inseridos dentro de um ano muito específico e especial para os movimentos sociais do mundo afora. Estão interligados a uma crise de paradigmas, tanto a crítica ao socialismo quanto à crítica à invasão estadunidense ao Vietnã e, principalmente, os movimentos de crítica às instituições mais tradicionais”, contextualiza Missiato. “Esses atos representam um ano de transformações, com críticas às grandes narrativas daquele momento, tanto no sistema soviético como no sistema capitalístico global”, acrescenta ele. “No caso do Brasil, essas manifestações se inserem na crítica ao sistema militar que, quatro anos depois de instaurado, já contava com uma percepção inicial modificada. Então era crítica ao regime e lutava pela democracia.” Ramirez ressalta que “o ano de 1968 foi muito importante no mundo inteiro”, com manifestações iniciadas na França e, depois nos Estados Unidos, “inflamando também os estudantes brasileiros a tomarem uma atitude mais de oposição em relação à ditadura militar”. Ele lembra que o cenário pós-1964, com crescente censura e o visível não retorno à democracia “como havia sido prometido pelos militares” somou-se à demandas que existiam como lutas “pelas liberdades sexuais e mais espaço para mulheres no mercado de trabalho”. Os estudantes universitários eram protagonistas deste debate. E, ao mesmo tempo, se tornaram alvo dos militares. “Foram muitas prisões de estudantes, líderes acadêmicos. E isso contribuiu para aumentar mais e mais a contestação do público estudantil”, explica Ramirez. Além disso, o sociólogo lembra que havia também demandas próprias da classe estudantil. Em um Brasil que se tornava mais urbano, a quantidade de vagas nas universidades públicas não acompanhava esse crescimento. “Além do mais, professores foram aposentados de forma compulsória pela ditadura. Os estudantes estavam muito distantes do apoio do governo federal”, afirma ele. Era o caldo que estava preparado. “E a Sexta-feira Sangrenta foi uma espécie de ápice desse descontentamento”, define Ramirez. “No fim das contas, os jovens resolveram se rebelar e isso, de alguma forma, inflamou uma parte do resto da população civil. O resultado foi uma batalha campal entre estudantes e policiais, com direito a pedras arremessadas contra eles.” Na manhã daquele dia 21, o que era para ser uma nova passeata dos estudantes contra a ditadura no centro do Rio acabou já começando em clima de guerra. Munidos de rolhas e bolinhas de gude, os estudantes armaram um obstáculo aos cavalos do policiamento, fazendo com que eles tombassem. De um lado vinham os tiros, do outro o revide com pedras. Até helicópteros foram utilizados para arremessar bombas de gás lacrimogêneo. No início da tarde, a confusão já estava espalhada por boa parte do centro do Rio. A batalha só terminou à noite. Com o saldo até hoje impreciso de mortos e feridos. Um dos fotojornalistas que registraram o episódio — suas imagens foram publicadas pelo Jornal do Brasil, onde ele atuava —, Evandro Teixeira comentaria anos mais tarde que aquele havia sido “um dos dias mais sangrentos que […] o Rio de Janeiro viveu, nesta época”. “O Jornal do Brasil era o palco das reações. Tudo começava em frente ao jornal, que neste dia foi fechado a bala. A polícia começou a atirar e a fechar as portas”, relembrou ele, em depoimento ao próprio Jornal do Brasil. “Eu participei ativamente com barreiras, fugindo das cavalarias, vendo estudante caindo. Inclusive tenho a foto do fotógrafo Rubem Seixa, do Correio da Manhã, quando a polícia o surrou depois de ter quebrado seu equipamento.” A Sexta-feira Sangrenta foi um dos antecedentes que motivariam, cinco dias depois, a famosa Passeata dos Cem Mil, uma manifestação que reuniu artistas, intelectuais e formadores de opinião, todos nas ruas contra a ditadura militar. Do outro lado, o governo também reagiu com firmeza. O crescente clima de oposição acabou sendo contra-atacado com mais repressão. “O estado de exceção, no final das contas, promoveu uma censura generalizada. Não que isso já não ocorresse desde 1964, mas a partir do fim de 1968, o AI5 [Ato Institucional número 5, de 13 de dezembro de 1968, o quinto dos 17 decretos emitidos pela ditadura] deu legitimidade jurídica, infelizmente, para que os militares agissem da forma mais severa possível, não só contra estudantes, mas também contra a imprensa”, comenta Ramirez. “Assim, essas manifestações como as que ocorreram no Rio foram o estopim para que a ditadura se tornasse, de forma escancarada, mais violenta”, afirma o sociólogo.
2023-06-21
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjejz4rydn2o
brasil
Lula encontra papa Francisco: amizade duradoura e temas sociais unem presidente e pontífice
Uma amizade duradoura e a defesa de temas sociais unem o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o papa Francisco. Lula deve se reunir com o pontífice argentino na tarde desta quarta-feira (21/6) no Vaticano após se encontrar com o presidente da Itália, Sergio Mattarella, no Palácio do Quirinal, residência oficial do presidente italiano. Segundo o governo brasileiro, Lula e Francisco devem conversar sobre "paz, desigualdade social e combate à pobreza", temas recorrentes nos discursos de ambos. Os dois se conhecem há mais de 20 anos, quando Jorge Bergoglio, nome de batismo do papa, ainda era cardeal em Buenos Aires. Com a ajuda do amigo Alberto Fernández, presidente da Argentina, o petista chegou a ser recebido por Francisco no Vaticano em fevereiro de 2020. Na ocasião, eles conversaram sobre fome, desigualdade social e intolerância. Fim do Matérias recomendadas E Francisco já fez diversas declarações de apoio a Lula, especialmente quando o presidente estava preso. Disse, por exemplo, que o julgamento que levou o petista à prisão começou com notícias falsas ("fake news"). Falou ainda que Lula foi condenado injustamente e a ex-presidente Dilma Rousseff tem "mãos limpas". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Por essa razão, foi chamado de "ativista de esquerda" pelo pastor e deputado federal Marcos Feliciano (PL-SP), uma crítica recorrente, aliás, por parte de seus opositores. Na opinião do jornalista Austen Ivereigh, que escreveu a biografia do papa Francisco e estudou teologia na Argentina, o jovem Bergoglio foi profundamente influenciado pelas ideias peronistas. No fim do mês passado, Lula conversou por telefone com o papa e convidou o pontífice a visitar o Brasil. Mas a viagem deve depender de seu estado de saúde, pois Francisco passou recentemente por uma cirurgia de hérnia abdominal. Lula também já disse que, no Vaticano, repetirá o convite a Francisco para vir ao Brasil acompanhar o Círio de Nazaré, uma das maiores manifestações católicas do mundo, realizada em outubro, em Belém (PA). Na audiência privada com o papa, sem cobertura da imprensa, o petista estará acompanhado da mulher, a primeira-dama Rosângela da Silva, a Janja. Analistas também consideram importante o encontro com Lula como parte da estratégia de Francisco para pôr fim à guerra na Ucrânia — um objetivo já declarado de ambos. No início do ano, Francisco enviou o cardeal italiano Matteo Maria Zuppi à capital ucraniana, Kiev, e está preparando para mandá-lo agora à capital russa, Moscou — para isso, precisa da ajuda de Lula, que tem bom trânsito dentro do Kremlin e é próximo do presidente da Rússia, Vladimir Putin. Nesse xadrez geopolítico, outro aliado de Putin com quem o papa se encontrou foi o presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel, nesta terça-feira (20/6). O objetivo é construir uma solução de paz por meio de um conjunto de países não alinhados como alternativa ao envio de armas, segundo afirmou a jornalistas o sociólogo italiano Domenico De Masi, amigo pessoal de Lula e com quem o presidente se encontrou na noite desta terça-feira em seu hotel. “Acredito que o Brasil tenha essa propensão para buscar diálogos — o presidente Lula, neste sentido, tem um importante papel a desempenhar, pois não é uma pessoa divisiva”, disse ele. Após o encontro com o papa, Lula se reúne com o arcebispo Edgar Peña Parra, da Secretaria de Estado do Vaticano, o equivalente ao Ministério das Relações Exteriores no Brasil. Dali, ele terá uma reunião com a primeira-ministra Giorgia Meloni, confirmada de última hora. Meloni estava na França nesta terça-feira para apoiar a candidatura de Roma como sede da Expo Mundial de 2030 e deve se encontrar com o presidente francês, Emmanuel Macron, no Palácio do Eliseu, sede da presidência francesa. No fim do dia, o presidente se encontra com o prefeito de Roma, Roberto Gualtieri. Gualtieri é próximo a Lula e também o visitou na prisão em Curitiba, quando ainda era eurodeputado. Lula e Gualtieri devem fazer uma declaração à imprensa e, em seguida, participam de um jantar privado.
2023-06-21
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1w4v7y4254o
brasil
Giorgia Meloni: quem é a primeira-ministra italiana de direita radical com quem Lula se encontra
Loira, olhos verdes, 46 anos e com um discurso inflamado recheado de comentários controversos. Esta é Giorgia Meloni, a primeira-ministra italiana de direita radical que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vai se encontrar nesta quarta-feira (21/6) — a reunião, que não constava do briefing oficial inicialmente divulgado pelo Itamaraty, foi confirmada de última hora. Meloni estava na França na terça-feira (20/6) para apoiar a candidatura de Roma como sede da Expo Mundial de 2030 e se encontrou com o presidente francês, Emmanuel Macron, no Palácio do Eliseu, sede da presidência francesa. Lula e Meloni estão em lados completamente opostos do espectro político. Grande vencedora das eleições italianas no ano passado, a italiana conseguiu levar seu partido Irmãos da Itália das margens para o centro político em apenas uma década. Fim do Matérias recomendadas Com isso, tornou-se a primeira mulher premiê da história da Itália. Seu partido, o mais votado na Itália, tem suas raízes fincadas no fascismo e recuperou o lema que popularizou o "Duce", como o ditador facista Benito Mussolini (1883-1945) era conhecido: "Deus, pátria e família". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Fundada em 2012, a legenda de Meloni tem suas raízes políticas no Movimento Social Italiano (MSI), que surgiu das cinzas do fascismo de Mussolini. O partido mantém o logotipo dos partidos de extrema-direita do pós-guerra: a chama tricolor, muitas vezes interpretada como o fogo queimando no túmulo de Mussolini. Mas o rótulo fascista é algo que Giorgia Meloni rejeita com veemência. Ela insiste que deixou a ideologia no passado. Porém, a história é parte do problema em um país que passou por um processo diferente da desnazificação da Alemanha após a 2ª Guerra, permitindo que os partidos fascistas se reformassem. "Giorgia Meloni não quer abandonar o símbolo porque é a identidade da qual ela não pode escapar; é sua juventude", disse Gianluca Passarelli, professor de ciência política da Universidade Sapienza de Roma, em entrevista à BBC no ano passado. "O partido dela não é fascista", explicou na ocasião. "Fascismo significa tomar o poder e destruir o sistema. Ela não vai fazer isso e não poderia. Mas há alas no partido ligadas ao movimento neofascista. Ela sempre jogou de alguma forma no meio." A juventude de Giorgia Meloni esteve, de fato, ancorada na extrema-direita, mas com origens humildes, algo que é chave para sua imagem de mulher do povo. Nascida em Roma, ela tinha apenas 1 ano quando seu pai, Francesco, abandonou a família e se mudou para as Ilhas Canárias. Francesco era de esquerda, sua mãe Anna era de direita, levando a especulações de que seu caminho político foi motivado em parte pelo desejo de se vingar de seu pai ausente. A família mudou-se para Garbatella, um bairro operário no sul de Roma que é tradicionalmente um bastião da esquerda. Mas lá, aos 15 anos, ela se juntou à Frente Juvenil, ala juvenil do neofascista MSI, tornando-se depois presidente do ramo estudantil do sucessor do movimento, a Aliança Nacional. Em seu livro de 2021, I Am Giorgia, ela ressalta que não é fascista, mas se identifica com os herdeiros de Mussolini: "Peguei o bastão de uma história de 70 anos". Ao contrário de seus aliados de direita, ela não apoia o russo Vladimir Putin e é pró-Otan e pró-Ucrânia, embora muitos eleitores da direita sejam indiferentes às sanções ocidentais. Adotando um velho lema controverso, "Deus, pátria e família", ela faz campanha contra os direitos LGBT; por um bloqueio naval da Líbia para impedir que barcos de imigrantes cheguem à Europa e alertou repetidamente contra os migrantes muçulmanos. Ela também busca uma "posição italiana diferente" em relação ao órgão executivo da UE. "Isso não significa que queremos destruir a Europa, que queremos deixar a Europa, que queremos fazer coisas malucas", disse ela no ano passado. Depois de formar seu próprio partido em 2012, ela ganhou apenas 4% dos votos na última eleição em 2018. Formou uma aliança de direita vitoriosa com Silvio Berlusconi, que morreu recentemente, e com o partido de extrema-direita Liga, do ex-ministro do Interior Matteo Salvini. Mas mesmo que ela tenha procurado tranquilizar os aliados ocidentais da Itália, por exemplo, apoiando fortemente a linha pró-Ucrânia do governo Draghi, suas políticas sociais conservadoras de linha dura estão preocupando muitos. "Meloni não é um perigo para a democracia, mas um perigo para a União Europeia", disse o professor Passarelli, que a coloca lado a lado dos líderes nacionalistas na Hungria e na França. "Ela está do mesmo lado que Marine Le Pen ou Viktor Orbán. E ela quer uma 'Europa das nações', então todos estão basicamente sozinhos. A Itália poderia se tornar o Cavalo de Troia de Putin para minar a solidariedade, então ela permitiria que ele continuasse enfraquecendo a Europa." Para seus aliados, porém, Meloni representa a mudança política radical de que a Itália precisa, dada sua longa estagnação econômica e uma sociedade liderada por políticos de idade elevada.
2023-06-21
https://www.bbc.com/portuguese/articles/crgdkl42311o
brasil
Moro x Zanin: as discussões cheias de ironia entre ex-juiz e indicado de Lula ao STF
O ex-juiz da operação Lava Jato Sergio Moro (União-PR) e o advogado Cristiano Zanin, que defendeu o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nos processos, ficarão mais uma vez frente à frente na quarta-feira (21/6). Mas, desta vez, Zanin vai defender a si mesmo e sua indicação para a vaga Supremo Tribunal Federal (STF), enquanto Moro é um dos senadores que farão a sabatina do advogado para confirmação da indicação. Membro da Comissão de Constituição de Justiça (CCJ), Moro não é o único opositor de Lula na comissão que sabatinará Zanin, mas sua presença é marcante por conta do antagonismo histórico entre o senador e o advogado do presidente. Os dois entraram em discussões e embates cheios de ironia durante o curso dos processos da Lava Jato. Em tese, os dois não deveriam ter ficado em lados opostos: era o Ministério Público (MPF) que fazia as acusações, e Moro, como juiz, deveria ser imparcial em relação às partes para julgar os casos. Fim do Matérias recomendadas Zanin não conseguiu evitar a prisão de Lula, mas obteve no fim uma vitória: o STF considerou que Moro não foi imparcial nos casos, o que levou à anulação das condenações de Lula. Zanin foi indicado para o cargo mais prestigiado do Judiciário - um posto que Moro nunca chegou a ocupar, embora tenha sido especulado que poderia ser indicado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas, quando era ministro da Justiça, Moro rompeu com Bolsonaro e deixou o cargo acusando o ex-presidente de interferir na Polícia Federal. Acabou preterido nas duas oportunidades que Bolsonaro teve de indicar um ministro do STF, primeiro pelo desembargador Kassio Nunes Marques e, depois, pelo advogado e pastor André Mendonça. Moro foi trabalhar como consultor, acabou reatando com Bolsonaro e foi eleito para o Senado na eleição passada. Em seu primeiro mandato político, ele é um dos 27 membros titulares da CCJ, primeira parada da apreciação do nome de Zanin no Senado. Se for aprovada ali, a indicação vai para votação no plenário. Desde a redemocratização do país, nenhum indicado foi reprovado para o cargo pelo Senado, embora os questionamentos das sabatinas tenham se tornado progressivamente mais intensos — o que é esperado agora para Zanin. A sabatina marcará ainda um reencontro potencialmente tenso entre o advogado e o ex-juiz, que ao longo dos anos trocaram farpas e acusações. Uma das discussões mais prolongadas entre juiz e advogado se deu em um dos depoimentos de Lula em 2017, no caso do tríplex do Guarujá. Nesse processo, o MPF defendia a tese de que a empreiteira OAS reformou um apartamento na cidade litorânea paulista para supostamente dar a Lula como propina. O apartamento nunca pertenceu a Lula formalmente. Sua defesa disse que o petista chegou a visitar o local com o interesse de comprá-lo, mas desistiu pois não gostou do imóvel. Nos depoimentos de Lula, Moro tentou diversas vezes incluir perguntas sobre o caso do sítio de Atibaia - no qual o presidente foi acusado de receber propina da OAS e da Odebrecht por meio de reformas em um sítio do empresário Fernando Bittar que o petista visitava com frequência com sua família. O caso estava sendo julgado em outro processo, como o próprio Moro havia determinado. Zanin protestou contra as questões alheias ao que estava sendo tratado no momento. O advogado René Dotti, que era assistente da acusação, levantou uma "questão de ordem" (ou seja, relativa à própria audiência e não ao tema tratado) e disse que não poderia haver "confronto pessoal entre o advogado e o juiz da causa". Logo em seguida, começou uma discussão entre Moro e Zanin: Zanin: "Eu também tenho uma questão de ordem..." Moro: (interrompendo) "Essa questão já foi superada". Zanin: "Eu tenho o direito de fazer..." Moro: (interrompendo) "O doutor já colocou essa questão de ordem." Zanin: "Eu..." Moro: (interrompendo) "Doutor, o senhor está impedindo seu cliente de responder. Se o doutor entende que o cliente não tem condições ou não deve responder, ele tem esse direito. O doutor quer responder pelo seu cliente." Zanin: "Pela lei, inclusive pelo estatuto da OAB..." Moro: (interrompendo) "O doutor não pode falar o tempo todo. O doutor está tumultuando a audiência. Se seu cliente quiser ficar em silêncio e não responder, ele tem esse pleno direito. Parece que o senhor não entende isso e quer falar no lugar dele. Podemos prosseguir.” Zanin: "Me permita só uma colocação?" Moro: "Não, está indeferido, o doutor já falou várias vezes." Zanin: "Me conceda a palavra?" Moro: "O senhor não tem essa palavra." Zanin: "Então na verdade o que se tem aqui..." Moro: (interrompendo) "Já foi resolvida, doutor. Até os outros advogados estão vendo o senhor turbando a audiência." Zanin: (levantando a voz) "Outros advogados assistentes da acusação. Eu estou aqui numa posição diferente do professor Dotti e tenho uma visão diferente." Moro: "O doutor não precisa ficar nervoso." Zanin: "Eu não estou nervoso. Toda vez que houver uma violência à lei, tenho não só o direito, como o dever de fazer uma observância." Outro advogado: "E isso não é nenhuma confrontação com o juízo." Zanin: "Eu estou dizendo isso. Vossa excelência é que delimitou o objeto da ação. Toda vez que vossa excelência fizer uma pergunta fora do que está delimitado por vossa excelência em decisões anteriores, a defesa vai sim registrar e vai sim impugnar a pergunta." Moro então afirmou que trazia o tema porque executivos da OAS falavam tanto da reforma do Tríplex quanto do sítio em mensagens. "Se tem alguém que quer a verdade sobre isso, sou eu", disse Lula. "Quando chegar o processo de Atibaia, eu terei o prazer de responder a verdade absoluta sobre aquilo. Agora acho que é importante resolver o problema do tríplex." Momentos em que Zanin dizia que suas colocações ao juiz não estavam sendo ouvidas se repetiram diversas vezes ao longo dos depoimentos de Lula. Em outro episódio, o advogado acusou Moro de não respeitar a defesa: Moro: "O senhor já colocou seu ponto. Eu já ouvi o senhor várias vezes." Zanin: "Eu não terminei meu raciocínio. Vossa Excelência quer cortar a defesa. Está claro mais uma vez que Vossa Excelência não respeita a defesa." Ainda nos depoimentos de Lula, o petista chegou a entrar no meio de uma discussão entre Zanin e Moro. O advogado pediu que Moro especificasse quem eram as testemunhas que supostamente haviam dito que o tríplex no Guarujá estava sendo reformado para Lula. Sentindo o clima esquentar, Lula interveio: Lula: "Eu posso falar? Quero evitar que o senhor brigue muito com meu advogado." Moro: "É o seu advogado que está brigando, eu estou tentando fluir com a audiência." Em outro momento, Moro perguntou repetidamente ao petista sobre o pagamento do aluguel de um dos imóveis em que ele residiu. Lula repetiu diversas vezes que os recibos dos pagamentos foram apresentados, mas Moro continuou insistindo na questão com outras perguntas. Zanin disse então que "cabe à acusação fazer a prova da culpa e não ao acusado fazer a prova da inocência". Outra extensa discussão entre o então juiz e o advogado de Lula também aconteceu no caso do triplex do Guarujá, em 2016, no depoimento do ex-zelador José Afonso Pinheiro, que trabalhou no prédio onde fica o apartamento de que o MPF acusou Lula de ser dono. A discussão começou após perguntas da defesa do presidente para a testemunhas: Moro: "A defesa está sugerindo que ela [a testemunha] está mentindo por causa da política?" Zanin: "Vossa Excelência está colocando palavras na minha boca. Eu não sugeri nada, eu fiz perguntas absolutamente pertinentes ao assunto." Moro: "Precisa ver se (a testemunha) não vai sofrer queixa-crime, ação de indenização pela defesa..." Zanin: "Quando as pessoas praticam atos ilícitos, respondem pelos atos. Acho que é isso o que diz a lei" Moro: "Vai entrar com ação de indenização, então, contra ela [a testemunha], doutor?" Zanin: "Não sei. O senhor está advogando alguma coisa para ela?" Moro: “Não sei... a defesa entra (com ação) contra todo mundo." Zanin: "Eu acho que ninguém está acima da lei. Da mesma forma como as pessoas estão sujeitas a determinadas ações, as autoridades também devem estar." Moro: "Está bem, doutor. Uma linha de advocacia muito boa". Zanin: "Faço o registro de vossa excelência e recebo como elogio." Farpas foram trocadas entre o então juiz e o advogado durante uma audiência em 2018, no caso do Instituto Lula, devido ao fato da defesa não ter tido acesso ao conteúdo integral dos autos. O MPF havia afirmado que a Odebrecht comprou um terreno em São Paulo para a construção do instituto, criado por Lula após deixar a Presidência. Os promotores diziam também que supostas doações da empreiteira para o instituto seriam propina. A defesa de Lula sempre negou as acusações. Sem o material completo do processo, Zanin decidiu não questionar o dono da empreita, Marcelo Odebrecht, no seu depoimento, exigindo o direito de ter acesso aos documentos. Moro reclamou da defesa, e a conversa seguiu: Zanin: "Vossa Excelência tem sempre ‘gentis palavras’ para dirigir à defesa, mas se vossa..." Moro: (interrompendo) "Não, eu só não acho que devo perder tempo vindo na audiência a pedido da defesa para depois a defesa entender que não há perguntas. Só isso." Zanin: "Eu insisto, a defesa fará perguntas quando tiver acesso ao material. Está documentado que a defesa não teve acesso ao material. Isso é cerceamento de defesa." Em outro momento, no mesmo depoimento, Moro diz que o advogado não fazer as perguntas seria uma "brincadeira da defesa".
2023-06-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv211nrqrklo
brasil
Como Luiz Gama desvendou 'roubo do século' na 'Wall Street brasileira'
Um roubo misterioso chocou o Império brasileiro em 1877. Ao final do expediente do dia 16 de fevereiro, uma sexta-feira, o tesoureiro da alfândega do porto de Santos, no litoral paulista, guardou o dinheiro recolhido pela repartição naquele dia, trancou o cofre e foi embora para a folga do fim de semana. Até aí, tudo normal. No início da semana, porém, uma notícia inundou os jornais do país: o cofre foi aberto durante a noite, e 185 mil contos de réis, uma fortuna que seria equivalente a R$ 20 milhões hoje, foram retirados do local sorrateiramente. Quem teria entrado ali? Era um ou mais assaltantes? Quem planejou o roubo? Como o ladrão conseguiu abrir um cofre? Ele tinha a chave? A trama do assalto, intrincada e surpreendente, ao estilo de obras de ficção como o filme Um plano perfeito, de Spike Lee, e a série La Casa de Papel, foi desvendada por Luiz Gama (1830-1882), advogado negro que se tornou um dos expoentes do abolicionismo brasileiro por libertar centenas de escravizados usando apenas os recursos da lei. Fim do Matérias recomendadas Esse crime milionário é apontado por historiadores ouvidos pela BBC News Brasil como o maior roubo conhecido no período imperial do Brasil, que durou de 1822 a 1889. Gama defendia o principal suspeito do crime, o tesoureiro da alfândega Antonio Eustachio Largacha, um homem branco de família espanhola. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ele era o único que tinha a chave do cofre da repartição, cujo dinheiro vinha de taxas pagas por cafeicultores, e foi preso sob a acusação de ter se apossado do dinheiro. O enredo também envolveu acusações e depoimentos falsos, um cofre inglês comprado pelo governo que seria "impossível de ser arrombado", um telegrama enviado na hora errada, um empreiteiro famoso e uma quadrilha de imigrantes alemães. Toda essa história foi redescoberta pelo historiador Bruno Rodrigues de Lima, doutor em História e Teoria do Direito pelo Max Planck Institute, em Frankfurt, na Alemanha. Um desses textos, republicado no volume Crime das Obras Completas, é um tratado jurídico, mas também uma rica narrativa jornalística sobre como Gama desvendou o mistério do roubo à alfândega. Além de analisar mais de 200 depoimentos, o advogado investigou, escreveu e publicou a história em um suplemento pago do jornal A Província de S. Paulo (hoje, O Estado de S. Paulo), no dia 18 de novembro de 1877. Mas, até recentemente, sua participação no caso era desconhecida. Na época, o impacto da publicação foi quase imediato: 45 dias depois, a Justiça revisou a condenação do tesoureiro pelo crime, que foi inocentado e solto da prisão. Bruno Lima argumenta que esse texto, além de outros 11 menores que Gama publicou no calor dos acontecimentos, deve ser visto como uma obra inédita. "Muito se fala que o Gama só escreveu um livro de poesias. Mas considero que os textos sobre o roubo, com 150 páginas, é um livro completo dele", diz. Ele ganha cada vez mais notoriedade à medida que sua trajetória, que por décadas sofreu um apagamento histórico, é redescoberta aos poucos. Para Lígia Fonseca Ferreira, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pioneira na pesquisa da obra do abolicionista na imprensa, "Luiz Gama foi o primeiro grande jornalista negro do Brasil e deve ser lido como um intérprete do país". "Ele foi um cronista e repórter jurídico. Tinha uma palavra afiada, sempre marcando sua origem social", diz Fonseca, organizadora do livro Lições de resistência: artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro (Edições Sesc, 2020). "Como um homem negro, Gama mostrava com a força da palavra o quão ácida era aquela sociedade em que ele vivia” O tesoureiro Largacha foi preso logo após o assalto ser descoberto, no final da tarde de segunda-feira. Mas ele jurou ser inocente, além de vítima de um complô. Largacha era bastante conhecido em Santos, porque havia ocupado vários cargos públicos, como o de vereador do município, que tinha por volta de 10 mil habitantes na época, segundo um censo de 1872. Santos vinha ganhando importância no cenário nacional, principalmente como ponto de escoamento da produção de café, cuja massa de trabalhadores era escravizada, segundo o historiador Tâmis Parron, professor de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense (UFF). "O Oeste paulista, irradiando de Campinas a Rio Claro e Ribeirão Preto, emergia como o novo coração da cafeicultura. Sua produção era escoada para o litoral por meio de ferrovias, e Santos se torna, ainda que temporariamente, a Wall Street do café brasileiro. O roubo se dá nesse contexto", aponta Parron, membro do Núcleo de Estudos de História Comparada Mundial (Commun). "O valor roubado era altíssimo para a época", diz o historiador Clemente Penna, pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que não encontrou em pesquisas nos jornais da época nenhum roubo com valor superior ao da alfândega. Ele calcula que os 185 mil contos de réis seriam o equivalente a R$ 20 milhões, mas ressalta que a conversão de réis para reais é apenas uma estimativa por conta da dificuldade de calcular a diferença em um longo período de tempo. "Era um bocado de dinheiro, suficiente para comprar 150 trabalhadores escravizados, mais do que suficiente para tocar uma fazenda grande de café", explica Penna, vinculado à Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (Fapesc). "E o fato de o roubo ter acontecido na alfândega também é surpreendente, porque era um local com uma boa estrutura de vigilância." Neste cenário com muito dinheiro circulando, Largacha virou o principal suspeito do crime, porque, além de ter a única chave do cofre, foi alvo de uma acusação que o colocava na cena do crime. Para a polícia, que ouviu mais de 200 depoimentos, o assalto aconteceu assim: horas depois de guardar o dinheiro e ir embora, Largacha teria retornado ao prédio já vazio da alfândega e tentado abrir o cofre com uma chave micha, mas não teria conseguido e usado sua própria chave para finalmente retirar o dinheiro. Depois, segundo a acusação, ele teria mexido nas telhas e espalhado uma série de objetos pelo local - tudo isso para simular uma invasão por alguém vindo de fora, situação que o tiraria do rol de suspeitos, porque, em tese, ele não precisaria de tudo isso para furtar o dinheiro. Mas nada aconteceu como parecia, descobriu Gama. Os objetos encontrados na sala foram essenciais para entender como Gama resolveu o mistério, como se verá mais adiante. Bruno Lima acredita que Luiz Gama, que por anos trabalhou na polícia, se convenceu de que Largacha era inocente ao visitá-lo na cadeia de Santos, um prédio que existe até hoje na Praça dos Andradas, no Centro da cidade - atualmente, funciona no local um centro cultural. "Luiz Gama já era um advogado famoso na época. Ele dizia ser um advogado de porta de cadeia, era conhecido por ganhar causas, e, provavelmente por isso, foi contratado pelo tesoureiro", diz Lima, que pesquisa a vida e a obra do abolicionista há mais de dez anos. A acusação de que Largacha seria o autor do assalto acabou prevalecendo em duas instâncias da Justiça, e o tesoureiro foi condenado a quatro anos de prisão. Alguns depoimentos apontaram diretamente para ele. Um deles foi dado pelo serralheiro alemão Adolpho Sydow, ouvido na condição de perito. Segundo ele, o modelo de cofre da empresa britânica Hobbs & Co., comprado pelo Império para guardar o dinheiro recolhido no porto, "era impenetrável", nunca havia sido arrombado e só poderia ser aberto com a chave de Largacha. Para Sydow, o ladrão da alfândega teria forçado a fechadura com uma chave micha, deteriorando as partes internas do cofre, mas, ao não conseguir atingir o objetivo, teria utilizado a chave original para acessar o dinheiro. Luiz Gama contestou o laudo do serralheiro, afirmando que seu depoimento era uma "vergonha judiciária, deformidade legal, disparate forense e eterno atestado de imbecilidade". E não só: o abolicionista afirmou que Sydow não apenas teria mentido, como estaria envolvido no crime. Meses antes, o serralheiro havia sido contratado para fazer uma manutenção no cofre. Ou seja, segundo Gama, Sydow sabia muito bem como funcionava aquela caixa de aço de mais de três metros de altura. Gama também contestou a fama de que o cofre inglês seria impossível de ser arrombado. Para isso, usou uma reportagem da Revista Industrial de Turim, na Itália, publicada em 1873, que relatou uma divertida história. Em uma exposição industrial em Londres, narrou a revista, a fabricante prometeu um prêmio de 200 libras a quem conseguisse abrir o cofre sem a chave original. "A empresa julgava ter descoberto a pedra filosofal", ironizou a revista italiana. "Apareceu um serralheiro, que pouco se recomendava pelos modos, e menos ainda pelo trajo (roupa). Seguro de que obteria o prêmio no caso de êxito, deixou-se revistar. Levava consigo apenas alguns pedaços de arame", contou a publicação, anexada ao texto de Gama. Nos 30 minutos seguintes, o serralheiro abriu o cofre inglês com facilidade. "Achei que fosse coisa mais séria", brincou o trabalhador. "Não se sabe como Gama teve acesso a essa revista, mas ele traduziu e usou a reportagem para provar que não era impossível arrombar o cofre. Pelo contrário, era relativamente simples: bastava um serralheiro habilidoso que produzisse uma chave micha", explica Lima. Neste ponto da trama, é preciso apresentar outros personagens importantes: o engenheiro Luiz Manoel de Albuquerque Galvão, empreiteiro rico e conhecido em Santos, e seu sócio e amigo íntimo, o imigrante alemão Rodolpho Wursten. Na época, a dupla era responsável por uma obra no prédio da alfândega. Segundo testemunhas, já na manhã da segunda-feira seguinte ao roubo, Galvão teria espalhado um boato de que Largacha seria o autor do crime. Em seu depoimento, porém, o engenheiro se defendeu: "Não tenho por costume ocupar-me da reputação alheia, porque fui educado em princípios inteiramente opostos a isto". Foi seu amigo Rodolpho Wursten quem cometeu um erro crucial, notado por Gama, que causou uma reviravolta na história. Além de empresário, Wursten era jornalista e correspondente do Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro. Às 11h daquela segunda-feira, ele enviou um telegrama ao jornal dando detalhes do assalto, como a exata quantia levada. Porém, essas informações só foram descobertas pela polícia depois. "Como Wursten poderia saber o valor do assalto antes mesmo da própria polícia tomar conhecimento do caso?", questionou Gama em sua narrativa, notando que o horário do telegrama havia sido publicado no jornal. Para o advogado, a resposta era simples: Wursten, seu amigo Luiz Galvão e o serralheiro e perito alemão Adolpho Sydow seriam parte da quadrilha que havia planejado e executado o roubo. Gama apontou ainda que o trio conhecia muito bem o prédio e como funcionava o cofre. "Está demonstrado, com incontestável evidência, que entre os boatos espalhados pelo dr. Galvão e aquele celebérrimo telegrama, há uma filiação misteriosa, uma trama sibilina, um plano preconcebido, cujo resultado é: responsabilizar o tesoureiro Largacha pelo roubo da alfândega", escreveu Gama. Resta uma dúvida: como a quadrilha abriu o cofre? A resposta, a essa altura, parece fácil: com um serralheiro habilidoso. E esse último personagem também era imigrante alemão: Guilherme Kronlsin. De volta à cena do crime, é importante recordar que ali, na sala do cofre, foram encontrados alguns objetos. Entre outros de menor importância, havia cédulas amassadas de réis, alicate, arames, pedaços de ferro e um vidro de óleo de amêndoas com uma pena de galinha dentro. Analisando laudos e depoimentos, Gama concluiu que a quadrilha tentou abrir o cofre com uma chave micha, mas não teve sucesso, danificando algumas partes da fechadura. Depois, o serralheiro Guilherme Kronlsin mediu os mecanismos internos da fechadura usando um arame e produziu outra chave ali mesmo, com pedaços de ferro. A pena de galinha foi usada para lubrificar a ferragem do cofre com o óleo de amêndoas, segundo Gama. Com o dinheiro na mão, os ladrões deixaram tudo como estava e saíram do prédio pelo mesmo buraco no telhado por onde entraram. O advogado também descobriu que, três dias após o roubo, Kronlsin e o empreiteiro Luiz Galvão "fugiram" de Santos em um navio com destino ao Rio de Janeiro. Um informante contou que, quando a dupla entrou na embarcação, um funcionário do barco pediu para revistar uma mala que o alemão levava consigo. Mas o serralheiro não permitiu a vistoria, dizendo que já havia sido inspecionado por um policial antes. Conseguiu passar. "Gama não entrou em detalhes, mas sugeriu que parte do dinheiro estava nessa mala", diz Bruno Lima. O final dessa história, na verdade, não é definitivo, porque não se sabe muito bem o que aconteceu com os personagens principais. A imprensa logo mudou de assunto, e o caso caiu no esquecimento. O tesoureiro Antonio Eustachio Largacha ficou dez meses na cadeia. Só foi inocentado e solto depois de Luiz Gama publicar sua investigação. O historiador Bruno Lima não encontrou mais processos relacionados ao caso. Provavelmente, os homens acusados por Gama como autores do crime nunca foram processados. Segundo Lima, a vitória na Justiça reforçou ainda mais Gama como um advogado vencedor de processos difíceis. "O caso Largacha deu uma projeção nacional a Gama, pois foi um crime conhecido no Brasil inteiro. A banca dele passou a ser ainda mais procurada, e ele assumiu muito mais processos", diz. E o dinheiro? "Muito provavelmente, nunca foi recuperado", responde Lima. Segundo ele, a fortuna era quase integralmente oriunda do sistema escravista que o próprio Gama combatia em várias frentes, principalmente na Justiça e na imprensa. "Nenhum lugar do mundo tinha mais gente negra escravizada do que a Província de São Paulo na segunda metade do século 19. O que fazia o porto de Santos ser relevante no mundo era o escoamento do café, e o café brasileiro só conseguia ser competitivo no mercado internacional por causa da escravidão", diz Lima. Em seu texto, Luiz Gama falou pouco sobre o dinheiro e não demonstrou qualquer interesse em recuperá-lo. Por outro lado, fez duras críticas à Justiça e ironizou a sociedade abastada da qual a quadrilha de assaltantes fazia parte. "Está provado que os roubadores, os principais, são pessoas de elevada condição civil, de inteligência pouco vulgar, de trato social, dotados de atividade, amestrados e de incontestável influência e prestígio."
2023-06-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1vznpex024o
brasil
Lula na Itália: visita inclui encontro de última hora com primeira-ministra de direita radical
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) chegou à Itália nesta terça-feira (20/6) para uma visita de Estado e vai se encontrar de última hora com a primeira-ministra, de direita radical, Giorgia Meloni, alinhada ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), nesta quarta-feira (21/6). Inicialmente, Lula e Meloni não se reuniriam por "incompatibilidade de agendas", segundo assessores do presidente brasileiro. Meloni está na França nesta terça-feira para apoiar a candidatura de Roma como sede da Expo Mundial de 2030 e deve se encontrar com o presidente francês, Emmanuel Macron, no Palácio do Eliseu, sede da presidência francesa. Mas, no último momento, um encontro foi organizado pelas equipes de ambos, segundo assessores do presidente brasileiro. A reunião foi confirmada pelo Itamaraty. Na quarta-feira (21/6), Lula irá ao Vaticano onde será recebido pelo papa Francisco. Fim do Matérias recomendadas Grande vencedora das eleições italianas no ano passado, Meloni, de apenas 46 anos, conseguiu levar seu partido Irmãos da Itália das margens para o centro político em apenas uma década. Seu partido, o mais votado na Itália, tem suas raízes fincadas no fascismo e recuperou o lema que popularizou o "Duce", como o ditador fascista Benito Mussolini (1883-1945) era conhecido: "Deus, pátria e família". A BBC News Brasil contatou assessores da primeira-ministra italiana bem como de seu partido, mas não obteve resposta até a conclusão desta reportagem. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Lula desembarcou no início da tarde no aeroporto Ciampino Militare, em Roma, Ele foi direto ao hote, não prestando declaração à imprensa. Mais tarde, ele se encontrará com o sociólogo de esquerda Domenico de Masi. Autor do best-seller O Ócio Criativo (Sextante) e fluente em português, De Masi é professor emérito de sociologia do trabalho na Universidade La Sapienza, em Roma, e uma das maiores referências internacionais em sociologia do trabalho. Próximo a Lula, ele o visitou na prisão em Curitiba. Na quarta-feira, Lula se encontra com o presidente da Itália, Sergio Matarella, no Palácio do Quirinal, residência oficial do presidente italiano. Diferentemente do Brasil, a Itália é uma república parlamentar — nesse sistema político, o presidente tem funções cerimoniais, enquanto que o primeiro-ministro, no caso, Meloni, é quem dá as cartas dos rumos do país. Em seguida, Lula se encontra com o papa Francisco. Ele e a primeira-dama, Rosângela da Silva, a Janja, vão ter uma audiência privada com o pontífice. O encontro tratará de "paz, desigualdade e combate à fome", segundo o governo brasileiro. O presidente também já disse que vai repetir o convite a Francisco para vir ao Brasil, acompanhar o Círio de Nazaré, uma das maiores manifestações católicas do mundo, realizada em outubro, em Belém (PA). O pontífice já fez diversas declarações de apoio ao petista, especialmente quando o presidente estava preso. Disse, por exemplo, que o julgamento que o levou à prisão começou com notícias falsas. Falou ainda que Lula foi condenado injustamente e a ex-presidente Dilma Rousseff (PT), que comanda atualmente o Novo Banco de Desenvolvimento ("Banco dos Brics"), tem "mãos limpas". Após o encontro com o papa, Lula se reúne com o arcebispo Edgar Peña Parra, da Secretaria de Estado do Vaticano, o equivalente ao Ministério das Relações Exteriores no Brasil. No fim do dia, o presidente se encontra com o prefeito de Roma, Roberto Gualtieri. Gualtieri é próximo a Lula e também o visitou na prisão em Curitiba, quando ainda era eurodeputado. Lula e Gualtieri devem fazer uma declaração à imprensa e, em seguida, participam de um jantar privado. Na quinta-feira pela manhã, Lula deve falar com jornalistas brasileiros e depois viaja à França. Em Paris, Lula participa de uma cúpula sobre financiamento global, na qual deve discursar no encerramento, e se encontra com o presidente francês, Emmanuel Macron. Segundo o Itamaraty, estão previstas discussões sobre meio ambiente e mudanças climáticas, a cúpula da Amazônia em Belém, para a qual Macron foi convidado; a reunião de líderes da União Europeia-Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) e também o acordo comercial da UE com o Mercosul. Também na capital francesa, Lula deve discursar no Power Our Planet a convite do vocalista do Coldplay, Chris Martin. O evento busca aumentar a conscientização sobre a necessidade proteção ao meio ambiente e levantar recursos para combater a crise climática e problemas sociais.
2023-06-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1r9954zj2ro
brasil
Bolsonaro inelegível: qualquer candidato com benção de ex-presidente será forte, diz analista de risco político global
Um dos mais renomados especialistas em risco político do mundo, o americano Ian Bremmer, de 53 anos, diz acreditar que o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), marcado para quinta-feira (22/6), exacerba a "polarização política ao alimentar o sentimento da direita de que as instituições são parciais" e teme por suas "consequências extremas". Nesse dia, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) vai analisar ação movida pelo PDT sobre ataques do ex-presidente ao processo eleitoral, em virtude de uma reunião com embaixadores realizada em junho de 2022. Dependendo do veredito, Bolsonaro pode se tornar inelegível, ou seja, impossibilitado de concorrer a cargo público por oito anos, o que o tiraria da corrida presidencial de 2026. Na opinião de Bremmer, "responsabilizar políticos é fundamental", mas pode "reforçar a percepção de grande parte da população de que o Judiciário pode estar sujeito à influência política" em um ambiente polarizado como a sociedade brasileira. Ele também considera que, qualquer que seja o veredito, Bolsonaro não sairá de cena. Fim do Matérias recomendadas "Mesmo que Bolsonaro seja considerado inelegível, ele continuará influente. Qualquer candidato da oposição com sua bênção seria forte", assinala. Especialista em países emergentes e fundador do Eurasia Group, uma das maiores consultorias de risco político do mundo, com escritórios nos Estados Unidos, Reino Unido, Japão, Cingapura e Brasil, Bremmer e sua equipe assessoram alguns dos maiores investidores do mundo com suas análises. Também é autor do best-seller Nós versus Eles: o fracasso do globalismo. Bremmer concedeu a seguinte entrevista à BBC News Brasil por e-mail antes do julgamento de Bolsonaro. BBC News Brasil - Qual é a sua opinião a respeito do julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro? Ian Bremmer - O julgamento exacerba a polarização política ao alimentar o sentimento da direita de que as instituições são parciais e vão combatê-los a todo custo. Mas não considero que tenha impacto no governo Lula e na agenda política de curto prazo. E, mesmo que Bolsonaro seja considerado inelegível, ele continuará influente. Qualquer candidato da oposição com sua bênção seria forte. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast BBC News Brasil - Politicamente falando, o senhor vê o julgamento como bom ou ruim para o cenário político divisivo do Brasil? É um sinal de que as instituições democráticas estão funcionando ou um sinal de vingança política da esquerda? Ou ambos? Bremmer - Responsabilizar os políticos é fundamental. Mas um julgamento rápido com consequências extremas em um ambiente polarizado provavelmente é ruim, pois aprofunda ainda mais essas divisões. Reforça a percepção de grande parte da população de que o Judiciário pode estar sujeito à influência política. Não vejo isso como uma vingança da esquerda; vejo isso mais como uma reação a um movimento político baseado na retórica anti-establishment e no ataque a tribunais, mídia e outras instituições. BBC News Brasil - O senhor acredita que o julgamento pode desencadear mais polarização na sociedade brasileira? Bremmer - Sim. Os apoiadores da direita verão isso como um sinal reforçando sua visão de que são perseguidos injustamente. BBC News Brasil - E poderia tornar a extrema direita mais forte, ganhar impulso? Ou mais fraca? Bremmer - Não vai desencadear agitação nem dar impulso à extrema-direita no curto prazo, mas eles vão se manter mobilizados e podem tomar as ruas se o governo Lula sofrer uma crise política ou econômica mais grave. BBC News Brasil - O senhor traça algum paralelo com o julgamento de Trump? Coincidentemente, os dois ex-presidentes, do mesmo espectro político, antes com laços estreitos entre si, estão sendo julgados ao mesmo tempo, mas ainda contam com grande apoio popular. Bremmer - Os paralelos são claros, mas os casos são diferentes. Eles não terminarão necessariamente da mesma maneira. Mas uma coisa parece mais clara — que problemas judiciais não tiram os líderes políticos de cena. O presidente Lula é uma prova disso.
2023-06-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cp69yze1deko
brasil
Brasil vai 'virar Suíça'? O que diz economista 'pop' sobre cenário do país
Quando questionado sobre por que anda dizendo que "o Brasil está a caminho de se tornar a Suíça da América Latina", Robin Brooks, economista-chefe do Instituto de Finanças Internacionais (IIF, na sigla em inglês), dá risada. "Não sabia que foi esse comentário que levou a essa entrevista. Obrigado por avisar", diz o economista alemão de 52 anos, criado em Frankfurt e atualmente radicado em Washington. Na capital americana, o especialista em câmbio e mercados emergentes comanda a análise econômica da associação internacional de instituições financeiras, que tem entre seus membros bancos, seguradoras, gestoras de recursos e fundos de investimento. Antes, passou pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Goldman Sachs – posição que lhe rendeu nas redes sociais o apelido de "careca do Goldman", mesmo tendo deixado o banco de investimentos em 2017. Dias depois da conversa, Brooks voltou a repetir o comentário no Twitter, deixando evidente que gosta da atenção que recebe de seus seguidores brasileiros. Fim do Matérias recomendadas Nos últimos anos, diversas das postagens do analista financeiro viralizaram no Brasil, devido a um otimismo inabalável com a economia do país – que faz com que seus comentários repercutam entre lulistas e bolsonaristas, com ambos os lados reclamando o crédito pelo cenário positivo destacado pelo economista em gráficos coloridos. "A razão pela qual escrevi aquele tuíte é porque me parece que há uma negatividade com relação ao Brasil nos mercados internacionais e essa negatividade ignora o fato de que há grandes mudanças positivas acontecendo no país", diz Brooks, em entrevista à BBC News Brasil. "Na verdade, o Brasil é uma espécie de modelo para outros mercados emergentes, em termos de como o país se transformou em uma superpotência agrícola. Eu acredito que isso não está sendo reconhecido e que se trata de um cenário muito positivo", completa. Mas ele joga um banho de água fria em lulistas e bolsonaristas, que reivindicam para seu campo político o crédito por esse fenômeno. "Quando eu tuito esse tipo de coisa, os dois campos políticos do Brasil reivindicam o crédito. Mas eu vejo essa transformação como algo que transcende os dois candidatos – é uma história muito maior do que isso", afirma. Segundo Brooks, seu entusiasmo com o Brasil tem um motivo principal: nos últimos dez ou quinze anos, o país passou a contar com um imenso superávit comercial – quando a balança comercial do país é positiva, com o valor das exportações superando o das importações. Em 2023, por exemplo, graças à safra agrícola recorde, a balança comercial brasileira acumula superávit de US$ 35,3 bilhões nos cinco primeiros meses do ano, resultado mais alto da série histórica e 39% acima de igual período de 2022, pelo critério da média diária. "Isso coloca o Brasil no caminho para se tornar um país com superávit em conta corrente [soma da balança comercial, de serviços e transferências unilaterais], o que é muito incomum, tanto na história do Brasil como na dos países emergentes e da América Latina", afirma o analista. Mesmo com saldo positivo nas vendas externas, o Brasil historicamente registra déficit em transações correntes, principalmente devido ao gasto externo com serviços e às remessas de lucros de empresas estrangeiras que atuam no país. É esse cenário que Brooks acredita que pode mudar, o que seria algo bastante atípico para um país emergente. E foi por isso, o economista afirma, que ele comparou o Brasil com a Suíça – um país estável, com um grande superávit em conta corrente, moeda forte e Banco Central confiável. "Com essa transformação, o Brasil será capaz de gerar mais recursos internamente, o que permitirá um aumento nos investimentos", acredita o economista. "Isso pode se transformar em maior produtividade, mais riqueza, crescimento, emprego. Então, é um ciclo positivo e virtuoso." Pouco depois de repetir seu comentário sobre o Brasil virar Suíça, no entanto, Brooks cometeu um lapso no Twitter, chamando a moeda brasileira de "Brazilian peso" (peso brasileiro), em vez de real. O erro virou motivo de piada, com críticos destacando a aparente pouca familiaridade do economista com o Brasil, apesar de seu entusiasmo pelo país nas redes sociais. Outra previsão famosa de Brooks é a de que o preço justo para o dólar em relação ao real é de R$ 4,50. A estimativa também é alvo de críticas, porque o economista mantém o valor inalterado há anos, mesmo diante das mais diversas reviravoltas na economia nacional e global. Com o dólar sendo negociado agora em torno de R$ 4,80, no entanto, o analista acredita que sua projeção está mais próxima de se tornar realidade. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No plano geopolítico, a persistente tensão entre China e EUA e a guerra entre Rússia e Ucrânia são fatores vantajosos para o Brasil, acredita o economista-chefe do IIF, podendo contribuir para atrair recursos estrangeiros ao país, o que ajudaria a valorizar a moeda brasileira. "Muitos investiram na Rússia e na Ucrânia e perderam muito dinheiro. Eles não querem ser pegos numa situação similar em meio à rivalidade entre China e EUA", diz Brooks. "Isso significa que investidores estrangeiros estão olhando para o Brasil, de uma forma que não fizeram na última década ou mais que isso. Significa que o país pode atrair dinheiro mais barato do que no passado – de investidores de longo prazo e fundos soberanos que têm muitos recursos e estão interessados em investir em infraestrutura e na compra de participações em empresas." Outro vento favorável, segundo o economista, é o aparente fim do choque inflacionário nos Estados Unidos e a recente decisão do Fed (Federal Reserve, o banco central americano) de interromper por ora o ciclo de alta de juros na economia americana. Quando os juros sobem nos EUA, isso atrai recursos dos investidores para aquele país, prejudicando a liquidez de emergentes como o Brasil. Quando os juros param de subir por lá, é esperado efeito contrário. "O Brasil não tem um ambiente tão favorável desde o pós-crise financeira de 2008", diz Brooks. "Nesse cenário, o dólar ir a R$ 4,50, ou abaixo disso, é perfeitamente possível", defende. A maioria dos economistas, no entanto, prevê que o dólar deve voltar a operar ligeiramente acima de R$ 5 nos próximos anos, conforme o boletim Focus do Banco Central, que reúne projeções de economistas do mercado financeiro. Na briga entre Banco Central e governo Lula sobre o nível dos juros no Brasil, Brooks diz não ter lado, mas tece diversos elogios à atuação da autoridade monetária no combate à inflação no país. "O Banco Central [do Brasil] fez um trabalho fenomenal", afirma. "Nas economias avançadas, a crítica é que os bancos centrais foram muito lentos para subir juros e responder à inflação. Definitivamente, esse não é o caso do Brasil. Acredito que o Banco Central, seu presidente e a equipe dele merecem um grande crédito por isso. E que isso é muito positivo para o Brasil." Quanto aos seis primeiros meses de governo do PT e à atuação do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o economista é mais comedido. "Acho que o governo ainda é muito novo e que os mercados estão começando a aprender como o governo fala", diz. "A confiança no governo está crescendo, por isso sou cautelosamente otimista." Otimista sob Bolsonaro e agora otimista sob Lula, Brooks afirma não ver nada que possa abalar sua visão positiva sobre o Brasil num futuro próximo. "Muitas pessoas não gostaram do resultado da eleição. O que me interessa é a democracia e uma transferência pacífica de poder. É isso que realmente diferencia o Brasil dos governos autocráticos, que agora têm dificuldade em atrair capital", afirma. "Se fosse o caso de a balança comercial [brasileira] se deteriorar repentinamente e voltarmos para onde o Brasil estava dez, 15 anos atrás, isso seria algo que me deixaria mais pessimista. Mas isso é altamente improvável. Na verdade, é basicamente impossível na conjuntura atual."
2023-06-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cpe991pl1lxo
brasil
Vídeo, O que o SUS está ensinando ao serviço de saúde britânicoDuration, 7,21
O médico inglês Matthew Harris hoje trabalha, em Londres, em um projeto inspirado no que aprendeu com o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro há mais de 20 anos. Um ano depois de se formar em Medicina no Reino Unido, ele se mudou para Pernambuco em 1999 e atuou por quatro anos como clínico-geral de uma unidade de saúde em Camaragibe, na região metropolitana do Recife. À época, Harris não tinha ideia de que a experiência mudaria sua carreira — e até provocaria transformações no Serviço Nacional de Saúde (NHS, na sigla em inglês) do Reino Unido duas décadas depois. Atualmente, ele é pesquisador da Escola de Saúde Pública do Imperial College de Londres e lidera um projeto que pretende implementar os agentes comunitários de saúde, algo que existe no SUS há décadas, em território britânico. O médico não faz cerimônia para dizer que essa iniciativa é 100% inspirada na Estratégia Saúde da Família (ESF), um programa criado pelo Ministério da Saúde do Brasil nos anos 1990 que segue ativo até hoje — e traz resultados muito celebrados por especialistas da área. Nosso repórter André Biernath conversa com Harris e conta esta história neste vídeo. Reportagens em texto:
2023-06-19
https://www.bbc.com/portuguese/geral-65955431
brasil
Por que julgamento de Bolsonaro no TSE não mobiliza bolsonaristas?
A poucos dias do início do julgamento no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que pode levar à inelegibilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), a militância bolsonarista na internet está dispersa e pouco mobilizada na defesa do, até agora, principal líder da direita no Brasil. A constatação faz parte de dois levantamentos feitos a pedido da BBC News Brasil por empresas que monitoram o debate político na internet. Especialistas ouvidos pela reportagem apontam que as causas para essa dispersão e aparente desmobilização da militância bolsonarista seriam um gradativo desembarque de parte do eleitorado de Bolsonaro, a busca por novas alternativas dentro da direita e a falta de um discurso coeso da militância pró-Bolsonaro para o ex-presidente das acusações de abuso de poder durante as eleições de 2022. O ex-presidente enfrenta 16 ações na Corte. No caso mais avançado, cujo início está previsto para esta semana, ele é acusado de ter cometido abuso do poder político e uso indevido dos meios de comunicação social quando reuniu em julho de 2022 dezenas de diplomatas no Palácio da Alvorada para apresentar falsas teorias sobre a insegurança das urnas e atacar ministros do TSE e do Supremo Tribunal Federal (STF). O parecer do Ministério Público Eleitoral (MPE) sobre o caso pediu que Bolsonaro seja condenado, o que pode resultar na sua inelegibilidade por até oito anos. Assim, salvo algum recurso, ele estaria impedido de disputar as próximas eleições presidenciais, por exemplo. Fim do Matérias recomendadas A defesa do ex-presidente, por sua vez, argumenta que o evento não tinha caráter eleitoral e que o então presidente usou sua liberdade de expressão para manifestar preocupações legítimas sobre a integridade das eleições brasileiras. Apesar de o julgamento poder selar o futuro político de Bolsonaro, os dados coletados mostram que o tema não tem gerado um grande engajamento por parte da militância bolsonarista. Um cenário bastante diferente do observado entre novembro de 2022 e janeiro de 2023, quando eleitores de Bolsonaro se mobilizaram contra a vitória de Lula, resultando, inclusive, na invasão das sedes dos Três Poderes, em Brasília, no dia 8 de janeiro. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os levantamentos usados pela BBC News Brasil foram realizados por duas empresas de consultoria de dados e mídias sociais: a Arquimedes e a Bites. Os levantamentos tiveram como objetivo avaliar de que forma e em que intensidade a militância bolsonarista vem lidando com o julgamento de Bolsonaro. Apesar de perder para Lula, Bolsonaro obteve uma expressiva votação no segundo turno das eleições presidenciais de 2022, conquistando 58,2 milhões de votos, o equivalente a 49,1% dos votos. Além disso, ele é apontado como o principal líder da direita no Brasil e como o principal adversário político de Lula. Os dados tanto da Arquimedes quanto da Bites, porém, mostram que o julgamento que pode tirar Bolsonaro das próximas eleições registrou uma mobilização modesta. De acordo com os dados colhidos pela Arquimedes entre os dias 25 de maio e 10 de junho, o julgamento de Bolsonaro no TSE gerou 53,8 mil menções em redes sociais como Twitter, Facebook e Instagram. O levantamento mostrou que, desse total, 53% foram postadas por perfis contrários a Bolsonaro, e o restante, 47%, por perfis alinhados ao ex-presidente. Os dados apontam que, enquanto o grupo contra Bolsonaro comemorou o julgamento, o grupo de apoiadores bolsonaristas se manifestou de duas principais formas. De um lado, eles defendem Bolsonaro afirmando que ele não teria sido condenado por crimes de corrupção. De outro, já consideram a inelegibilidade do ex-presidente como um fato consumado e resultado de uma suposta conspiração envolvendo integrantes do Judiciário como o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do TSE, Alexandre de Moraes. "Apoiadores de Bolsonaro têm antecipado o pior cenário, apontando alta probabilidade de que o ex-presidente torne-se inelegível - fato atribuído pelo campo de apoio como mera perseguição em narrativas antissistema já conhecidas", diz um trecho do relatório. "Nas publicações também houve acusações de suposto conluio entre o governo e o Judiciário, em especial o Tribunal Superior Eleitoral, com o único objetivo de prejudicar a trajetória política de Jair Bolsonaro e do espectro político à direita como um todo", diz o relatório. O levantamento feito pela Bites levou em consideração dados de postagens feitas no Twitter entre os dias 5 e 6 de junho. Neste período, a consultoria aponta que o julgamento de Bolsonaro no TSE teve um pico de 27 mil menções, volume bem menos expressivo que as menções registradas relacionadas às suspeitas de tentativa de liberação irregular por parte da equipe de Bolsonaro de joias entregues à sua comitiva pelo governo da Arábia Saudita. Assim como a Arquimedes, a Bites também constatou que as principais postagens sobre o julgamento de Bolsonaro no TSE foram de opositores de Bolsonaro, como o deputado federal André Janones (Avante-MG). A Bites aponta que perfis bolsonaristas também fizeram postagens sobre o julgamento, mas tiveram repercussão reduzida. "Também houve manifestações de bolsonaristas, mas feitas por perfis pouco influentes e de forma pulverizada. A militância virtual do ex-presidente parece ter perdido o fôlego e não conseguiu, até o momento, unificar um discurso efetivo em sua defesa", diz um trecho do relatório. "Perfis bolsonaristas de peso, especialmente os com cargos eletivos, inclusive os filhos de Bolsonaro, também não conseguiram estruturar essa defesa, apesar de eventualmente publicarem dados e projetos que seriam resultados positivos da gestão passada", aponta o texto. Os dados da Bites também mostram que Bolsonaro ainda está bastante acima de Lula e outros políticos brasileiros em matéria de popularidade nas redes sociais. Em média, Lula tem um total de 32,2 milhões de seguidores, enquanto o ex-presidente tem 63,7 milhões. Apesar disso, o levantamento aponta que o cenário de Bolsonaro mostra uma relativa estagnação e até mesmo um pequeno recuo no número de seguidores. O ex-presidente perdeu seguidores no Instagram (-1,48%), Facebook (-0,48%) e no YouTube (-0,77%). No Twitter, porém, cresceu 5,28% e no Tiktok subiu 3,85%. A Bites mostra ainda que, desde que deixou o poder, as contas de Bolsonaro registraram uma redução de 60% no volume de publicações, o que gerou um impacto negativo de 80% nas interações com internautas. A doutora em Ciência Política e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) Camila Rocha estuda o bolsonarismo e, há meses, se reúne com eleitores do ex-presidente em grupos focais. Os encontros são semanais. Segundo ela, os dados da Arquimedes e da Bites materializam uma impressão que ela já vinha tendo a partir das conversas com apoiadores de Bolsonaro. "Acho que dispersos e desmobilizados é uma imagem que reflete bem o que estamos vendo. Nos últimos meses, não observei nenhuma narrativa espontânea em relação ao julgamento de Bolsonaro no TSE entre os seus eleitores", afirmou à BBC News Brasil. Em sua avaliação, um dos motivos que levou à pouca mobilização, ao menos até agora, da militância bolsonarista em torno do julgamento desta semana seria o fato de que as próprias redes de Bolsonaro não vêm mencionando o episódio. "Acho que ocorre um fenômeno de retroalimentação. À medida que as redes de Bolsonaro não pautam o assunto, ele acaba não sendo mencionado pelas pessoas", afirmou. O professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Jorge Chaloub pontua que um dos motivos que estariam levando à uma baixa mobilização de apoiadores de Bolsonaro ao redor do julgamento seria a redução da sua capacidade de aglutinar sua militância. "É um fenômeno até natural, na medida em que Bolsonaro está fora do poder. Agora, ele não tem a possibilidade de mobilizar o aparato do estado em torno das suas próprias pautas", disse o professor. Chaloub também pontua para o que seria uma espécie de "fadiga" de parte dos apoiadores de Bolsonaro gerada por discursos e ações tomadas pelo ex-presidente. "Parte dessa desmobilização aconteceu em razão de decisões dele mesmo. Um exemplo é o silêncio logo após as eleições e depois a temporada que passou nos Estados Unidos, longe do seu eleitorado. Além disso, há uma sensação de decepção na medida em que Bolsonaro prometeu romper com o sistema, mas, ao que tudo indica, será julgado por esse mesmo sistema. Há uma sensação de que ele prometeu muito, mas não entregou", pontuou o professor. Apesar da aparente desmobilização da militância às vésperas do julgamento de Bolsonaro no TSE, as consultorias e os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que ainda é cedo para afirmar, categoricamente, que o cenário não pode mudar. "Isso não quer dizer que até o dia 22 não possa haver algum movimento organizado pelo bolsonarismo", diz o relatório produzido pela Bites. Camila Rocha segue a mesma linha. "É possível que ainda haja algum tipo de mobilização mais perto do julgamento, especialmente daquele grupo de eleitores mais leais. Não descarto, inclusive, a ocorrência de atos violentos caso ele venha a ser condenado à inelegibilidade", afirmou. Jorge Chaloub, por outro lado, avalia quais os possíveis impactos de uma eventual inelegibilidade de Bolsonaro. "Acho que o apoio total de Bolsonaro tende a cair como um todo. As pessoas vão começar a procurar novas opções dentro da direita, como Tarcísio (de Freitas, governador de São Paulo). Por outro lado, a condenação poderá reforçar a tese de que Bolsonaro foi derrotado pelo sistema e isso pode consolidar uma base mais aguerrida, ainda que menor, em torno dele", diz o professor.
2023-06-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1nzyx33j4o
brasil
'Algum grau de afinidade não põe em risco a democracia', diz Barroso sobre indicação de Zanin por Lula
Para o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso, a indicação de Cristiano Zanin pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para a vaga aberta na Corte é uma "escolha pessoal legítima" e não representa conflito, risco ético ou democrático. Zanin atuou na defesa de Lula desde 2013 e participou dos processos decorrentes da Operação Lava Jato e no próprio Supremo. Mas segundo Barroso, a indicação não fere o princípio da impessoalidade da administração pública ou coloca a democracia em risco. "Algum grau de afinidade entre o presidente e a pessoa nomeada, a meu ver, não oferece nenhum problema ético ou risco democrático", afirmou à BBC News Brasil nesta sexta-feira (16/6). Fim do Matérias recomendadas "O que é importante é que seja uma pessoa íntegra, com competência técnica e que se disponha a servir o Brasil - é muito trabalho", afirmou o ministro, que está na Inglaterra para participar do Brasil Forum UK, evento organizado por estudantes brasileiros no Reino Unido e que tem como tema neste ano Inovando caminhos, transformando futuros. Em seu Artigo 12, a Constituição Federal determina que os ministros do Supremo devem ser escolhidos entre "cidadãos com mais de 35 e menos de 70 anos", de "notável saber jurídico" e "reputação ilibada". "Cristiano Zanin é um advogado que preenche os requisitos previstos na Constituição e desempenhou um papel extremamente qualificado na defesa do presidente em outros casos", diz. "Essa é uma escolha pessoal legítima do presidente e acho que no normal da vida o Senado deve ratificar o nome dele." Barroso afirmou que, no passado, outros presidentes já indicaram nomes de pessoas próximas ou que haviam trabalhado em sua defesa em algum momento e que isso nunca foi um problema. O ministro também tratou durante a entrevista dos ataques à democracia e da invasão e depredação dos prédios do Congresso, Planalto e STF em 8 de janeiro. "Em um país que se polarizou, nós precisamos pensar em uma agenda comum capaz de agregar as pessoas em torno de objetivos mínimos, independentemente das posições." Sobre os ataques que recebeu do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seus apoiadores durante o período eleitoral, o ministro afirmou que só costuma respondê-los quando envolvem questões institucionais. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Leia a seguir os principais trechos da entrevista do ministro Luís Roberto Barroso à BBC News Brasil, editada por concisão e clareza: BBC News Brasil - Gostaria de começar pela indicação do advogado Cristiano Zanin pelo presidente Lula para a vaga deixada pelo ministro Ricardo Lewandowski. Muito tem se falado sobre um conflito ético ou moral nessa indicação, por se tratar de uma pessoa bastante próxima ao presidente e que atuou como advogado pessoal dele em um caso muito importante. O senhor já disse que não vê conflito nesta situação. Por quê? Luís Roberto Barroso - Cristiano Zanin é um advogado que preenche os requisitos previstos na Constituição e desempenhou um papel extremamente qualificado na defesa do presidente em outros casos. Essa é uma escolha pessoal legítima do presidente e no normal da vida o Senado deve ratificar o nome dele. Não vejo nenhum tipo de conflito. BBC News Brasil - Mas ainda que a Constituição não especifique nada sobre isso no Artigo 12, a indicação não fere o princípio da impessoalidade da administração pública e pode ser vista como um gesto controverso nesse momento delicado da democracia brasileira? Barroso - Não acho. Juscelino [Kubitschek] indicou Victor Nunes Leal. O presidente Fernando Henrique [Cardoso] indicou o ministro Gilmar [Mendes]. O próprio presidente Lula já havia indicado o ministro [José Antonio Dias] Toffoli. Algum grau de afinidade entre o presidente e a pessoa nomeada, a meu ver, não oferece nenhum problema ético ou risco democrático. O que é importante é que seja uma pessoa íntegra, com competência técnica e que se disponha a servir o Brasil - é muito trabalho. BBC News Brasil - O sistema de indicação de ministros ao STF no Brasil abre espaço para a politização do Supremo? Barroso - Não, pelo contrário. Não há um sistema ideal de indicação de ministros do Supremo. Os países adotam modelos diferentes. Na Alemanha são as casas legislativas que indicam e lá funciona bem - mas sempre tem queixas. Em Israel existe um comitê que faz uma lista prévia que depois é submetida ao Executivo - também há muitas queixas. No Brasil nós adotamos o sistema americano, que é uma indicação pessoal do presidente com aprovação do Senado. Para o Brasil é o que funciona e tem funcionado melhor, porque você sempre será capaz de reconduzir a responsabilidade do presidente àquela escolha. Esse ônus e essa preocupação fazem com que o presidente tenha critérios republicanos que ele possa defender no espaço público. Quando a indicação é feita pelo Legislativo, a responsabilidade se dilui um pouco. De modo que eu acho um bom ter um protagonista neste processo que possa ser elogiado ou criticado e que leve isso em conta na sua escolha. Tal como a democracia, não é perfeito, mas é o melhor modelo que se encontrou até agora. BBC News Brasil - Outro tema que tem gerado discussão é o dos poderes dos magistrados do STF, em especial do ministro Alexandre de Moraes. Por conta do inquérito das Fake News, várias investigações, pedidos de prisões, suspensão de redes sociais etc., há críticas sobre acúmulo de poder, desrespeito a garantias e ao sistema democrático. Na sua visão, essa concentração dos casos com um único ministro traz riscos? Barroso - Esse assunto não está na minha agenda [de visita ao Reino Unido por ocasião do fórum]. Mas eu só registraria que o Brasil viveu o momento muito excepcional que desaguou no 8 de janeiro. E, portanto, situações dramáticas e excepcionais às vezes exigem soluções extraordinárias. Mas eu penso que progressivamente estamos voltando à plena normalidade e aos poucos essas questões vão se esvair no ar. BBC News Brasil - Sobre o episódio de 8 janeiro, o que é preciso para que isso não se repita? Barroso - O Brasil viveu nos últimos anos um conjunto de dificuldades que envolveram questões de civilidade com agressões e ofensas. O Brasil viveu riscos institucionais com a volta do fantasma golpista que nós achávamos que já tinha ido embora. E nós vivemos um problema ético com a naturalização da mentira como estratégia de atuação política. Vamos ter que reconstruir muitas coisas do ponto de vista da civilidade, do ponto de vista institucional e do ponto de vista ético - e é preciso preparar o clima para isso. Em um país que se polarizou, nós precisamos pensar em uma agenda comum capaz de agregar as pessoas em torno de objetivos mínimos, independentemente das posições. Uma agenda que eu acho que pode agregar as pessoas no Brasil inclui o combate à pobreza, a volta do crescimento econômico, a prioridade à educação básica, uma agenda ambiental em que o Brasil assuma uma posição de liderança mundial, investimento em ciência e tecnologias e o fim do preconceito que ainda existe no Brasil contra a livre iniciativa e o empreendedorismo. Nós precisamos de uma reforma tributária urgente, porque esse modelo que nós temos, além de ser o mais complexo do mundo, é concentrador de renda. Nós precisamos também investir na integridade e na elevação da ética pública e privada no Brasil. BBC News Brasil - Há quem aponte e critique a existência de um certo ativismo judicial ou de uma forma de arbitrar adotada pelo senhor que leva a interpretação constitucional um pouco além da literalidade, especialmente em prol de causas mais progressistas. Como o senhor responde a essas críticas? Barroso - Acho que elas vêm um pouco mais da desinformação do que de uma posição fundamentada. O Supremo absolutamente não é ativista, o que o Supremo tem no contexto brasileiro é um grande protagonismo. Por qual razão? Porque a judicialização se tornou um fenômeno corrente na vida brasileira, produto de arranjos institucionais que têm os seguintes elementos que eu vou te descrever: uma Constituição extremamente abrangente que cuida de temas que em outras partes do mundo são deixados para a política (...); a grande quantidade de ações diretas que permitem chegar diretamente ao Supremo e de atores institucionais que podem propor essas ações diretas; uma competência criminal que expõe excessivamente o Supremo; e o fato de que julgamos na TV aberta e, portanto, isso traz grande exposição pública. O ativismo judicial, no sentido técnico e não pejorativo, é uma espécie de criação judicial do direito em que se leva um princípio constitucional para reger uma situação que não foi especificamente tratada pela lei ou pelo legislador. Isso é raríssimo. Um exemplo: uniões homoafetivas. Realmente foi uma decisão de criação judicial do direito. Mas qual era o problema? Existem as relações homoafetivas e você precisa saber se tem direito a pensão, se tem direito a sucessão, se pode ser dependente no plano de saúde… Os problemas surgiram, mas não havia legislação e era preciso criar uma norma. O Supremo decidiu tratar igual se trata as uniões estáveis tradicionais e acho que fez muito bem, mas sou suspeito para falar porque fui advogado da causa. Mas a verdade é que essa é uma das raras exceções em que o Supremo foi ativista. As queixas se baseiam mais em uma retórica do que propriamente em uma crítica procedente. BBC News Brasil - O que muitos críticos apontam é que essas decisões que envolvem o ativismo judicial acabam sendo mais progressistas… Barroso - As pessoas às vezes repetem alguns chavões que, na verdade, não correspondem aos fatos. [Se perguntarmos] qual foi a decisão "progressista" do Supremo, não saberiam dizer. (...) A Constituição brasileira é uma constituição iluminista, no sentido de tratar as pessoas com respeito e consideração sem discriminá-las por um fator que não seja legítimo nem razoável. De modo que se criou a lenda de que o Supremo representa as elites, de que o Supremo dificulta a governabilidade. O Supremo cumpre a Constituição no geral. Eu nem acho que o Suprema acerte 100%, porque nada que é humano tem 100% de acerto. No enfrentamento da corrupção, por exemplo, eu votei vencido em diversos casos. Acho que o Supremo talvez deveria ter tido um papel mais firme, mas a maioria entendeu diferente e a gente na vida não deve se achar o dono da verdade. BBC News Brasil - Falando agora sobre a operação Lava Jato. Recentemente a operação passou por alguns reveses, como afastamento de juízes, anulação de processos e desarticulação de forças-tarefas. Na sua opinião, qual a herança deixada pela operação até agora? Barroso - A compreensão do quadro geral vai exigir um certo distanciamento crítico histórico. Mas em sua face positiva, ela ajudou a revelar um país de corrupção estrutural sistêmica institucionalizada que nós precisamos enfrentar. Na parte negativa houve erros que, com mais ou menos razão, levaram à nulidade de processos. A situação de alguns dos seus protagonistas terem passado para a política legitimou o discurso, certo ou errado, de que haveria uma motivação política por trás de toda aquela atuação. BBC News Brasil - Esses erros cometidos abriram às portas para a impunidade? Barroso - Essa é uma questão que exige uma reflexão mais profunda. A impunidade historicamente é uma característica do sistema punitivo brasileiro em relação à criminalidade do colarinho branco. Portanto, esse é um problema que independentemente da Lava Jato continuamos precisando equacionar. BBC News Brasil - Voltando ao ex-presidente Jair Bolsonaro, o senhor foi vítima de comentários dele e de muitos ataques de apoiadores do bolsonarismo, especialmente durante o período eleitoral. Vimos um episódio em que o senhor respondeu a um manifestante de forma um pouco mais exaltada no ano passado. Queria saber se o senhor acredita que essa é a melhor forma de lidar com os ataques, seja de cidadãos comuns ou até de autoridades, ou se existe uma forma melhor, mais ideal? Barroso - Eu só respondi ao longo do tempo desses ataques quando envolvia uma questão institucional. Na questão pessoal não fazia muita diferença para mim o que o presidente pensava de mim. Eu verdadeiramente vivo em um plano espiritual diferente. O episódio do "perdeu, mané, não amola" aconteceu depois de três dias sendo seguido pelas ruas e xingado de todos os nomes que você possa imaginar. Num determinado momento eu perdi um pouquinho a paciência. Foi quase para demonstrar que eu sou humano. Mas esta frase, no contexto das barbaridades que se gritavam, até que foi bastante polida. Nem faz parte da minha linguagem, é da linguagem deles. Mas eu considero um incidente da vida, assim como tropeçar em uma pedra na calçada. Virou um meme, mas eu não daria muita importância para isso.
2023-06-16
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjmyzr2yyvpo
brasil
Discriminação de políticos: o que pode ser crime, segundo projeto aprovado na Câmara
A Câmara dos Deputados aprovou na quarta-feira (14/6) um projeto de lei que criminaliza o ato de "discriminação contra pessoas politicamente expostas" — como juízes, políticos e militares. Além das "pessoas politicamente expostas", a lei também beneficia familiares, colaboradores próximos e pessoas jurídicas ligadas a eles. O projeto foi apresentado pela deputada Dani Cunha (União Brasil-RJ), filha do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, e ainda precisa ser apreciado no Senado. O texto, que teve como relator o deputado Cláudio Cajado (PP-BA), foi aprovado pelos deputados com placar de 262 votos a favor e 163 contra. Em números absolutos, os cinco partidos que mais votaram em favor da proposta foram PT (43 votos), PL (37), União Brasil (35), Republicanos (27) e MDB (24). Os cinco partidos com mais votos contra foram: PL (44), União Brasil (16), PP (13), PT (11) e PSD (11). Fim do Matérias recomendadas As duas situações consideradas crime, segundo o texto aprovado pelos deputados, são: A pena prevista para os crimes seria de dois a quatro anos de prisão e multa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Duas situações que constavam como crimes no texto original — impedir o acesso de pessoas politicamente expostas a cargos na administração pública e proferir injúrias contra essas pessoas — foram retirados do projeto. O projeto de lei considera pessoas politicamente expostas "todas aquelas que, nos últimos cinco anos, exercem ou exerceram, no Brasil ou no exterior, algum cargo, emprego ou função pública relevante ou se têm, nessas condições, familiares, representantes ou ainda pessoas de seu relacionamento próximo". O projeto lista alguns dos cargos que seriam considerados de pessoas politicamente expostas: chefes do Executivo (presidentes, governadores e prefeitos e todos os vices), ministros, assessores, membros de todo o Poder Judiciário do Ministério Público e do Tribunal de Contas da União, vereadores e deputados, dirigentes de partidos políticos e militares. Todos continuam sendo considerados pessoa politicamente exposta mesmo cinco anos após deixarem de exercer suas funções. No projeto de lei, a deputada Dani Cunha diz que "visa dar fim a essa deturpação no nosso sistema normativo". "Não é cabível que pessoas sejam impedidas de praticar atos necessários para a regular convivência (e sobrevivência) no seio da sociedade tão somente pela condição de serem pessoas politicamente expostas (ou que com estas se relacionem), ou simplesmente por figurarem como parte ré de processo judicial em curso ou por terem decisão de condenação sem trânsito em julgado proferida em seu desfavor." Na ocasião, a defesa de Eduardo Cunha disse que se tratav de "uma sentença teratológica, servil a uma visão punitivista, cruel e decadente de criminalização da política". Houve críticas de alguns deputados ao projeto de lei, segundo a agência de notícias da Câmara dos Deputados. A deputada Fernanda Melchionna (Psol-RS) argumenta que atuais obstáculos a transações financeiras de pessoas politicamente expostas são justificados. "A pessoa politicamente exposta é monitorada pelos órgãos de controle para evitar o enriquecimento ilícito e a lavagem de dinheiro", disse. A deputada argumenta que o projeto de lei cria privilégios ao dificultar o controle sobre essas pessoas. Para a deputada Erika Kokay (PT-DF), a Câmara está legislando em causa própria. O deputado Abilio Brunini (PL-MT) afirmou: "A discriminação contra as pessoas já é crime, agora fazer uma lei especial para os políticos não dá", declarou. O líder do União Brasil, deputado Elmar Nascimento (BA), defendeu o projeto de lei da deputada de seu partido. Ele disse que "não se trata de criar privilégios", mas de "garantir que as pessoas que pretendem entrar na vida pública não sejam intimidadas por regras financeiras", segundo a agência de notícias da Câmara.
2023-06-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ckrm4ez9393o
brasil
Febre maculosa: quem deve responder pelas 3 mortes no interior de SP?
Após a confirmação de três mortes por febre maculosa e outros três casos estarem sob investigação, a prefeitura de Campinas, no interior de São Paulo, disse que tomou uma série de medidas para evitar novos casos. A intenção é que as regiões de mata e locais onde há maior chance de proliferação da doença sejam sinalizados e evitados. O Instituto Adolfo Lutz, da capital, aponta que a Fazenda Santa Margarida, no distrito campineiro de Joaquim Egídio, é apontada como o provável lugar onde as seis pessoas foram infectadas, durante um evento chamado Feijoada do Rosa, em 27 de maio. O espaço foi interditado preventivamente pela prefeitura. A Fazenda Santa Margarida só poderá fazer novos eventos após apresentar um plano de comunicação e de contingência ambiental para orientar os frequentadores sobre os riscos que a região apresenta. Mas existe um responsável por essas infecções transmitidas pelo carrapato-estrela (Amblyomma cajennense), em uma situação já considerada um surto na região? A prefeitura de Campinas disse, em nota enviada à BBC News Brasil, que, “por tratar-se de local sem casos de febre maculosa conhecidos até então”, não havia exigências sanitárias específicas em relação a essa doença. No entanto, Campinas e os municípios que compõem sua região metropolitana são endêmicas para a doença. A partir de agora, o município disse que exigirá um plano de comunicação para que os frequentadores de eventos semelhantes estejam cientes dos riscos. Dessa maneira, não há expectativa de que a fazenda, seus donos e os organizadores do evento no qual as pessoas podem ter sido infectadas sejam responsabilizados pelas contaminações. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em nota, os organizadores da Feijoada do Rosa lamentaram as mortes e se solidarizaram com as famílias das vítimas da febre maculosa. A organização afirmou que esta edição contou com a presença de 3.500 pessoas e disse que, “até o momento, não se pode descartar que as contaminações tenham eventualmente ocorrido durante essa frequência na Fazenda Santa Margarida, mesmo porque a Vigilância Sanitária local veio a público reforçar que a cidade de Campinas ganha especial expressão como foco da referida doença”. “É importante trazer ao conhecimento de todos que a Feijoada do Rosa é uma festa tradicional da cidade de Campinas, tendo realizado neste ano a sua 22ª edição, sendo que nos últimos 10 anos teve como palco a Fazenda Santa Margarida, no Distrito de Joaquim Egídio, conhecido e consagrado espaço de grandes celebrações há décadas.” A administração da Fazenda Santa Margarida também lamentou as mortes e afirmou que “sempre agiu e age de acordo com todas as normas e exigências legais relacionadas à vigilância sanitária”. A fazenda disse que “está trabalhando num plano de ação” que será apresentado à prefeitura até o fim da semana. O Departamento de Vigilância em Saúde da Secretaria Municipal de Saúde de Campinas determinou, entre as estratégias do plano de ação, que a fazenda deverá “construir caminhos para as pessoas percorrerem o local". O local é conhecido na região de Campinas por sediar shows de artistas conhecidos nacional e internacionalmente, como Seu Jorge, Ivete Sangalo e Gusttavo Lima, que tem show previsto na fazenda para o dia 21 de julho. A fazenda também foi notificada sobre a necessidade de instalar placas para informar aos frequentadores sobre o risco de infecção da febre maculosa. Segundo a prefeitura, “o local está com alvará para eventos e auto de vistoria do Corpo de Bombeiros (AVCB) regular e estava autorizado a realizar o evento”. A Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo alertou que todas as pessoas que estiveram na Fazenda Santa Margarida do dia 27 de maio a 11 de junho e sentirem febre, dores de cabeça ou no corpo, ou manchas avermelhadas na pele, devem procurar atendimento médico imediatamente e informar que estiveram no local. O governo destacou que é importante estar atento a esses sinais, pois o período de incubação da febre maculosa é de dois a 14 dias. Dos 12 casos confirmados da doença em 2023, três foram de pessoas que estiveram nos eventos realizados na fazenda. O tratamento precoce evita o agravamento da doença, segundo as autoridades de saúde. O tratamento contra a febre maculosa é feito por meio de antibióticos, como a doxiciclina, que age combatendo as bactérias no organismo. A febre maculosa, também conhecida como doença do carrapato, é uma infecção febril de gravidade variável, com elevada taxa de letalidade. Ela é causada por uma bactéria do gênero Rickettsia e transmitida pela picada do carrapato. A infestação ambiental por ninfas (estágio juvenil) de carrapato-estrela é alta entre junho e novembro, segundo as autoridades de saúde. E as cidades com maior frequência de casos são Campinas, Piracicaba, Assis e Sorocaba — todas no interior de São Paulo. A diretoria do Centro de Vigilância Epidemiológica do Estado de São Paulo afirmou que as pessoas devem estar cientes dos riscos que correm ao visitar algumas regiões durante o período de reprodução do carrapato-estrela. “Ao se aventurar em regiões de mata e cachoeira, é importante estar ciente que estamos no período de reprodução do carrapato-estrela, ocorrendo o risco de transmissão da febre maculosa através de sua picada.” Entre as maneiras de evitar a doença, estão verificar com frequência se há algum carrapato preso ao corpo, usar roupas claras com manga longa, calça comprida e calçado fechado. O levantamento mais recente do Ministério da Saúde mostra que, de 2007 a 2021, foram notificados 36.497 casos de febre maculosa no Brasil, dos quais 7% foram confirmados, em uma média de 170 por ano nesse período. Dos 2.545 casos confirmados, 2.538 relataram situações referentes à exposição de risco e, destes, 68,5% haviam frequentado ambientes de mata. O lago do Café, que fica em Campinas, ficou fechado de 2008 a 2013 após três funcionários do local morrerem de febre maculosa. Na reabertura ao público foram instaladas placas orientando os frequentadores a permanecerem apenas nas áreas asfaltadas.
2023-06-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0xe9eq0x4qo
brasil
O momento em que brasileiro foi impedido de se juntar ao Estado Islâmico, segundo a PF
Um vídeo obtido com exclusividade pela BBC News Brasil mostra o momento em que agentes da Polícia Federal abordaram e detiveram um brasileiro que, segundo a PF, estava prestes a viajar para se juntar ao grupo Estado Islâmico. A abordagem foi feita no dia 12 de Junho, no aeroporto internacional de Guarulhos, em São Paulo. O vídeo mostra pelo menos três agentes da PF abordando o rapaz na fila de embarque para um voo internacional. A suspeita é que seu destino fosse a cidade de Istambul, na Turquia. Na abordagem, o rapaz de 19 anos apontado como suspeito não oferece resistência e é conduzido pela PF para uma área reservada do aeroporto. Ele também entrega sua mochila aos agentes. O nome dele não foi revelado. Segundo nota divulgada pela PF, a detenção do rapaz aconteceu no mesmo dia em que a PF cumpriu mandados de busca e apreensão em endereços ligados ao rapaz nas cidades de São José dos Campos (SP) e Barbacena (MG). Os mandados foram expedidos pela 2ª Vara Federal de Belo Horizonte. Fim do Matérias recomendadas Dispositivos eletrônicos encontrados pela PF nos locais e com o rapaz estão sendo analisados. Fontes ouvidas pela BBC News Brasil afirmam que o suspeito é muçulmano e que sua família não tinha conhecimento de que ele teria planos de se unir ao Estado Islâmico. As investigações começaram há cerca de três meses. A PF ainda investiga qual seria o destino final do rapaz. As suspeitas são de que, após chegar à Turquia, o rapaz iria se deslocar por via terrestre até o local onde se juntaria ao Estado Islâmico. Entre os destinos possíveis estão o Iraque, a Síria ou países da África sub-saaariana, onde o Estado Islâmico ainda tem alguma atuação. Esta não é a primeira vez que brasileiros são presos por conta de suas supostas conexões como Estado Islâmico. Em 2016, a PF prendeu 10 pessoas durante a Operação Hashtag. Eles foram acusados pelo Ministério Público Federal (MPF) de fazer parte de uma célula da organização no Brasil, promover o Estado Islâmico e planejar ações terroristas. As prisões aconteceram às vésperas dos Jogos Olímpicos de 2016, realizados no Rio de Janeiro. Em 2017, a Justiça Federal do Paraná condenou oito pessoas ligadas ao caso. O autoproclamado Estado Islâmico surgiu em 2013 como uma ramificação da Al-Qaeda no Iraque. Oficialmente, um dos principais objetivos da organização é criar um califado no Oriente Médio regido integralmente por uma interpretação literal do Alcorão, o livro sagrado muçulmano. O grupo se colocava contra a invasão americana do Iraque, iniciada em 2003. Entre 2013 e 2017, o Estado Islâmico expandiu seu território e passou a ocupar grandes partes do Iraque e da Síria, país que vive uma guerra civil. Também neste período, a organização reivindicou a autoria de diversos atentados terroristas como os que ocorreram em novembro de 2015, em Paris, quando 130 pessoas morreram, incluindo 90 na casa de shows Bataclan. Nos últimos anos, após ações de países como os Estados Unidos, o grupo perdeu terreno tanto no Iraque quanto na Síria, mas continua ativo inclusive em países como o Mali e o Níger.
2023-06-14
https://www.bbc.com/portuguese/geral-65911022
brasil
'Não foi milagre, foi sabedoria ancestral do nosso povo', diz 'parente' brasileira de crianças resgatadas na Colômbia
Ela é líder indígena do povo witoto, etnia da qual fazem parte os irmãos resgatados após a queda do avião em que viajavam - na Colômbia, a etnia é comumente chada de hitoto. Vanda considera os hitoto da Colômbia seus "parentes”, apesar da distância. De origem colombiana, a etnia está no Brasil desde a década de 1930, quando os indígenas fugiram das perseguições no país vizinho. Vanda conta que seus bisavós estavam entre os que deixaram o território original do povo para trás. "Mas ainda nos vemos como parentes, pois a fronteira não cortou nossos laços", diz. A técnica de enfermagem é professora voluntária na comunidade Parque das Tribos, em Manaus, e afirma que a autonomia, o conhecimento sobre o manejo da floresta e a busca por alimentos na selva são ensinados às crianças indígenas desde muito cedo por meio do convívio em comunidade. Fim do Matérias recomendadas "A educação se dá no cotidiano e na observação dos fazeres dos mais velhos. Desde cedo, as crianças são levadas para a roça e aprendem como cuidar e manejar a natureza, quais folhas, frutas e raízes podem comer ou como procurar rios, pescar e confeccionar instrumentos básicos", diz a líder indígena. "Por isso, não consideramos um milagre a sobrevivência das crianças hitoto na Colômbia. Foi a força da espiritualidade, do conhecimento e da sabedoria ancestral do nosso povo que as manteve vivas." Os irmãos de 14, 9, 4 e um ano sobreviveram à queda do avião de pequeno porte em que viajavam com a mãe e outros dois adultos em 1º de maio. Todos os adultos morreram e eles ficaram sozinhos na selva até a última sexta-feira (9/6), quando foram encontrados pelo Exército após uma intensa busca. Segundo Vanda Witoto, em sua cultura, a transmissão de conhecimentos não acontece na escola tradicional, mas na convivência com os pais e avós e com a natureza. "Por isso é tão importante garantir o direito à terra", diz. "Se hoje temos a condição de continuar existindo mesmo diante de toda a violência estrutural que enfrentamos, não só no Brasil, mas em toda a América, é por conta da força da nossa relação com a floresta, com os rios e com a terra." Como professora voluntária no bairro indígena Parque das Tribos, Vanda afirma que trabalha a preservação da cultura e da sabedoria ancestral. "Nós indígenas costumamos ter muito baixa autoestima de ser quem somos por conta do preconceito. Então, trabalhamos a valorização da identidade indígena, das nossas línguas e história com as crianças", afirma. Nativos da Colômbia, os witoto se deslocaram para o Peru e o Brasil para fugir da violência enfrentada em seu território original, advinda principalmente da exploração da borracha na região e da ação de guerrilhas como a extinta Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). A grafia do nome do povo varia conforme o país - na Colômbia são hitoto e no Peru, uitoto - mas os costumes mantidos pela etnia são os mesmos em todos os locais. No Brasil, o povo witoto vive no Estado do Amazonas, principalmente no Alto Solimões, na região da tríplice fronteira com Peru e Colômbia. A região abriga atualmente cerca de três aldeias com mais de 150 famílias, que vivem da caça, da pesca e do extrativismo. Outros indígenas da etnia também vivem no Parque das Tribos, como é o caso de Vanda Witoto. "Meus bisavós fugiram da Colômbia de canoa e se instalaram no Brasil", conta. "Nós nos distanciamos do nosso território ancestral, mas, em 2021, fizemos o primeiro encontro entre os witoto do Brasil e da Colômbia em cem anos." Vanda diz que a mãe das crianças, que morreu no acidente de avião na Colômbia, é parente de uma tia sua que vive em Bogotá, capital da Colômbia. "Na verdade, dizemos que todos somos parentes, apesar de não compartilharmos necessariamente vínculos de sangue." Vanda conta ainda que, durante as buscas pelas crianças na selva amazônica, todos do povo se juntaram em um movimento espiritual para que fossem encontradas. "Os povos originários seguram o céu. Nós fazemos isso a partir das medicinas tradicionais, da espiritualidade e da relação com a floresta."
2023-06-14
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c80d58q1gjro
brasil
Por que economia brasileira surpreende, mas mercado segue cético?
Dólar na cotação mais baixa em mais de um ano, juros futuros caindo, bolsa no topo de 2023, crescimento econômico surpreendendo analistas e desemprego em baixa. Os números da economia do Brasil até agora em 2023 são muito diferentes do que analistas dos grandes bancos e corretoras esperavam. No final do ano passado, havia um sentimento de incerteza sobre a economia brasileira — tanto devido a incógnitas sobre o cenário global quanto por dúvidas que analistas de mercado tinham sobre o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A BBC News Brasil conversou com economistas de alguns dos principais bancos e corretoras do Brasil para fazer um balanço sobre esse começo de ano agitado na economia e na política brasileira. No exterior, mercados oscilaram bastante sem saber se a crise inflacionária mundial está sob controle ou não. Fim do Matérias recomendadas Os analistas ouvidos pela BBC News Brasil indicam que no início do ano houve um certo “pessimismo exagerado” do mercado com as perspectivas da economia brasileira sob um novo governo Lula. Mas muitos se disseram surpreendidos positivamente — principalmente pelo arcabouço fiscal. “Eu acho que houve um pessimismo um pouco exagerado [do mercado] no começo do ano. Mas agora nós estamos vendo que a situação não é tão ruim assim", diz Rafaela Vitória, economista-chefe do Banco Inter. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ainda que analistas enxerguem a regra do arcabouço fiscal de Lula como menos eficiente do que a regra anterior que foi extinta pelo Congresso (o teto de gastos), há um consenso de que existe um lado bom no arcabouço de Lula: a nova regra tem gatilhos para impedir a explosão de gastos e da dívida pública brasileira — elementos que são vistos hoje como essenciais para o crescimento da economia. Mas mesmo diante de um cenário melhor do que o previsto inicialmente, os analistas seguem céticos diante das perspectivas futuras da economia brasileira a partir de agora. Por um lado, o Brasil pode aproveitar ventos bons nos próximos meses, com as perspectivas de queda nas taxas de juros internas, possível desvalorização internacional do dólar e retomada do aquecimento. Por outro, há muitas incertezas dos analistas sobretudo na política econômica do governo. Muitos definem o novo arcabouço fiscal do governo federal como “ousado” — dizendo que é incerto que a nova regra vai melhorar as contas públicas, e que seu sucesso dependerá, em última instância, da atividade econômica. Também há incertezas em relação ao futuro da reforma tributária, que promete ser a grande agenda do governo Lula no Congresso a partir do próximo mês. Por fim, existe o temor de ventos ruins do exterior — os Estados Unidos podem entrar em recessão e os juros e a inflação nos países industrializados seguem em alta. Uma crise no exterior poderia impactar o crescimento do Brasil. Para analistas de mercado, o principal problema histórico da economia do país tem sido a alta dívida pública brasileira. O alto endividamento levanta dúvidas sobre a capacidade futura de o governo honrar seus compromissos — e isso tem consequências para todo o ambiente econômico: as taxas de juros sobem (por conta dos riscos maiores nos empréstimos) e a expectativa de inflação dispara (já que a forma mais fácil de o governo honrar suas dívidas seria expandindo a quantidade de moeda na economia, o que gera inflação). Como consequência, o ambiente econômico fica comprometido — deprimindo crescimento, renda e emprego. O endividamento do PIB brasileiro está hoje em 73% do Produto Interno Bruto, mas economistas estão sempre discutindo se esse percentual pode subir por causa de medidas tomadas pelo governo. Por isso, tanta ênfase é dada para a arrecadação com impostos e despesas com gastos do governo — nos anos em que o governo tem arrecadação maior do que as suas despesas (superávit fiscal), a trajetória da dívida brasileira cai. Em 2016, o Brasil aprovou a PEC (Projeto de Emenda Constitucional) do Teto de Gastos, que limitava o gasto do governo à sua arrecadação, mantendo a dívida sob controle em praticamente qualquer cenário (seja de crescimento ou de contração da economia). Com déficits maiores, a trajetória da dívida brasileira voltou a subir, provocando pessimismo geral no mercado no final de 2022. O ano de 2023 começou com muitas dúvidas sobre como o novo governo lidaria com o problema fiscal. Durante a campanha eleitoral e a transição de governo, Lula havia prometido acabar com o teto de gastos do orçamento do governo e reverter aspectos da reforma trabalhista — mas ele havia dado poucas pistas sobre qual seria a política econômica que ele implementaria no lugar. Lula foi eleito com fortes críticas às políticas econômicas de seus antecessores. Para o presidente, o teto de gastos é uma política que impede o Estado brasileiro de investir e isso acaba por prejudicar os mais necessitados. “O ponto mais marcante para mim nesse primeiro semestre foi o ruído político", diz Raphael Figueredo, estrategista-chefe da Eleven Financial. "A gente começou a virada do ano acreditando que a taxa Selic ia cair. Mas logo em janeiro, quando houve a fala do Lula no Congresso, quando ele critica o teto de gastos, essas projeções de taxa de juros subiram bastante e só caíram de novo agora no fim do mês passado.” As repetidas críticas de Lula ao presidente do Banco Central por causa dos juros e a ausência de um plano econômico nos primeiros meses para substituir o teto de gastos contribuíram para o pessimismo do mercado no começo do ano. “No início do governo, só havia promessas de gasto e mais gasto. Nós não conseguíamos nem fazer as nossas contas — como projeção de PIB ou de inflação. Nós não sabíamos qual seria a política fiscal e demorou um tempo para vir o arcabouço”, disse Caio Megale, economista-chefe da XP, que foi secretário de Desenvolvimento da Indústria e Comércio e Diretor de Programas no Ministério da Economia em 2019 e 2020. Em abril, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou sua meta fiscal: zerar o déficit das contas públicas até 2024. Ou seja, a partir do ano que vem, o governo gastaria apenas o que arrecada (sem contar o pagamento de juros sobre a dívida). O principal anúncio feito pelo governo este ano foi a apresentação da sua nova regra fiscal, o arcabouço fiscal, em abril. O projeto está tramitando no Congresso e foi aprovado em primeira instância na Câmara dos Deputados. Segundo a proposta do governo federal, no lugar do teto de gastos — que limitava o crescimento das despesas à inflação do ano anterior —, os gastos públicos passariam a crescer dentro de um intervalo de 0,6% a 2,5% acima da inflação, a depender do ritmo de expansão das receitas. O governo argumenta que seu arcabouço fiscal é melhor para a economia brasileira do que o teto de gastos, por manter o compromisso de combater o endividamento, mas dando às autoridades mais recursos para promover investimentos públicos. Todos os analistas de mercado ouvidos pela BBC News Brasil avaliaram que o arcabouço fiscal é pior do que a regra do teto para conter o endividamento público — mas afirmaram que, ainda assim, diante do que esperavam do governo Lula, a proposta foi positiva. O temor é que, ao contrário do teto de gastos, o sucesso do arcabouço fiscal no combate à dívida depende demais da performance da economia brasileira — e que uma combinação de preços baixos de commodities e atividade fraca podem seguir gerando déficits fiscais. Claudio Ferraz, economista-chefe de Brasil do BTG Pactual, diz que o projeto do arcabouço fiscal foi aprimorado nas discussões no Congresso e que o mercado está aguardando para entender qual vai ser a versão do arcabouço que vai prevalecer no final. “Houve uma aprovação por uma larga vantagem na Câmara, o que impressionou”, diz Ferraz. Ele diz que entre as propostas que agradaram o mercado estão os gatilhos que obrigam contingenciamento de gastos quando as metas fiscais do governo estiverem em risco, vedação de criação de novos gastos obrigatórios e congelamento de reajustes de funcionários públicos. Mas mesmo que a versão que mais agrada o mercado seja aprovada, Ferraz e os economistas do BTG Pactual não acreditam que o governo será capaz de atingir a meta de acabar com o rombo fiscal ainda em 2024, porque a arrecadação ainda não está acompanhando as despesas. O determinante para o sucesso do arcabouço fiscal na redução da dívida brasileira, segundo Ferraz, seria a capacidade do governo de combater lobbies setoriais – que sempre brigam por benefícios fiscais – e o desempenho da economia no segundo semestre. Se houver desaceleração da economia, concessão de mais subsídios e queda no preço internacional das commodities, o arcabouço fiscal não seria suficiente para sanear as contas públicas. "Por outro lado, se a economia se mostra mais resiliente, as commodities sobem e o governo entrega a sua parte, você tem um lado positivo. Então eu acho que vamos ter que monitorar a evolução da arrecadação daqui para frente para saber." Mas então, se existe tanta incerteza em relação ao arcabouço fiscal, por que a inflação no Brasil está em queda? “Porque a taxa de juros hoje é de quase 14%, muito, muito, muito superior a qualquer expectativa de taxa de inflação. Podemos imaginar que a inflação esse ano será de 5% ou 6%”, explica Dalton Gardimam, economista-chefe da Ágora. O economista diz que a taxa de juros no Brasil funciona como se fosse um analgésico em um paciente com uma doença — o medicamento não serve para curar o problema principal de saúde (no caso do Brasil, o alto nível da dívida e o déficit fiscal), mas mitiga os sintomas e efeitos, trazendo bem-estar e alívio temporários. No caso dos juros, eles servem para manter a inflação baixa e para apreciar o câmbio — o que contribui para as quedas do dólar e dos juros que surpreenderam positivamente no Brasil em 2023. Com a taxa tão alta, brasileiros deixam de enviar recursos ao exterior e investidores estrangeiros são premiados ao colocar dinheiro no Brasil. Gardimam diz que mesmo reduzindo a dose do “analgésico” no futuro — ou seja, com a queda da taxa Selic que está prevista para o segundo semestre desse ano — o Brasil seguiria com juros muito acima da média mundial e da inflação prevista. No entanto, segundo o economista-chefe da Ágora, um dos problemas fundamentais da economia seguiria existindo: o déficit fiscal que faz a dívida brasileira aumentar. Esse problema o governo espera resolver com o arcabouço fiscal. Outro problema histórico da economia brasileira que Gardimam aponta — e que na sua opinião é mais grave do que o da dívida — é a baixa produtividade, algo que só pode ser resolvido com soluções de longo prazo, como investimentos contínuos em educação e reformas de base. Nesse sentido, o mercado está de olho nos planos do governo de promover uma reforma tributária no segundo semestre deste ano. Para Rafaela Vitória, do Banco Inter, alguns bons números da economia brasileira de hoje se explicam justamente porque o país fez diversas reformas nos últimos anos. “Nós ainda não conseguimos avaliar o impacto positivo que essas várias reformas feitas nos últimos seis anos tiveram na economia brasileira. Desde 2016, essas reformas têm trazido benefícios, como a reforma da Previdência — que conseguiu controlar o crescimento real de gastos que era insustentável — e a reforma trabalhista — que fez com que tivessemos uma flexibilização maior e melhorasse o cenário de emprego e renda.” Vitória considera que esse conjunto de reformas ajuda na geração de empregos e atração de investimentos internacionais – dois indicadores que também foram positivos em 2023 até agora. Figueredo, da Eleven Financial, diz que a reforma tributária é “importantíssima”. “Eu não acho que seja simples a aprovação de uma reforma tributária, mas ela está avançando no Congresso e o governo chamou a reforma para si. Mesmo que venha uma reforma desidratada, ainda assim ela vai ajudar demais no crescimento de longo prazo”, diz Figueredo. A reforma discutida até agora no Congresso não traz alterações na carga tributária — ou seja, ao contrário do arcabouço fiscal, ela não alteraria substancialmente as metas fiscais. O objetivo da reforma é simplificar os impostos cobrados no Brasil e reduzir o custo que as empresas têm para se manter em dia. O complicado sistema tributário é um dos fatores do chamado "custo Brasil". “Há dezenas de relatos de empresas que têm só um advogado tributarista lá nos Estados Unidos e aqui no Brasil elas precisam ter centenas só para o ato de pagar impostos”, diz Dalton Gardimam, do Ágora. Mas os analistas esperam dificuldades no Congresso. O desafio da reforma tributária será convencer Estados — sobretudo governadores — a abrirem mão de tributos usados hoje em dia em guerras fiscais. Para Figueredo, o governo precisará gastar bastante capital político para conseguir aprovar a reforma. Se os indicadores até agora surpreenderam economistas de mercado de forma positiva, o futuro é um pouco mais nebuloso. No entanto, esse número foi puxado pelo ótimo desempenho da agricultura (que teve expansão de 21,6%), que se beneficiou de uma boa safra e de uma alta no preço das commodities. Os setores de serviços e indústria permaneceram relativamente estagnados, despertando dúvidas sobre a robustez do crescimento do Brasil nos próximos meses. Caio Megale, da XP, acredita que os bons indicadores atuais da economia — bolsa, câmbio, inflação e juros — são justificados porque, segundo ele, "os preços dos ativos brasileiros estavam muito deprimidos por conta do risco de radicalização" da política econômica do novo governo, que não se confirmou com o tempo. Mas isso não significa que os problemas da economia brasileira tenham passado. "No curto prazo, nós temos um alívio, uma melhora, porque existe essa desanuviada do risco. Agora, ao longo do tempo, eu acho que com essa dinâmica de mais gastos, necessidade de buscar mais receita, incerteza sobre o equilíbrio da dívida pública — isso não se estabiliza daqui para frente. Também há incerteza se teremos de volta uma gestão mais politizada na Petrobras e no BNDES. Acho que esses temas todos ainda estão em aberto. Na nossa visão, isso limita o espaço de corte de juros e de recuperação da economia.” “Nós não acreditamos que a Selic possa cair para um dígito de forma sustentável, com essa política fiscal que tem um viés de aumentar as despesas e de eventualmente aumentar subsídios. Acho que esse risco ainda está presente.” Um dos testes mais importantes deve acontecer no próximo dia 29, quando o Conselho Monetário Nacional (CMN) definirá se haverá mudanças na meta de inflação perseguida pelo Banco Central. Os analistas ouvidos pela BBC News Brasil dizem que o mercado estará de olho nas decisões tomadas pelo CMN para poder avaliar se as autoridades estão comprometidas com manter a inflação em trajetória de queda.
2023-06-13
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c8vy1d38n44o
brasil
13 de junho de 2013: a noite que durou 10 anos
Durante as jornadas que fizeram o Brasil explodir em protestos em 2013, a noite de 13 de junho ficou marcada como um grande ponto de inflexão. A reação violenta da polícia durante o ato em São Paulo, que terminou com mais de 100 feridos, inflamou a população e massificou as manifestações em todo o Brasil. Ao mesmo tempo em que o movimento cresceu, ele se transformou: a pauta passou da oposição ao aumento de R$ 0,20 na passagem de ônibus à insatisfação generalizada com os gastos para a Copa do Mundo de 2014, as denúncias de corrupção na política e o governo da então presidente Dilma Rousseff (PT). E o mês de junho mudou o país para sempre. Segundo especialistas em segurança pública e direitos humanos ouvidos pela BBC News Brasil, as ações tomadas pelas forças de segurança naquele dia 13 também influenciaram o modo de agir da polícia brasileira e "sistematizaram" a repressão policial a movimentos sociais nos últimos 10 anos. Fim do Matérias recomendadas As primeiras manifestações das chamadas "Jornadas de Junho" ocorreram no dia 3 na Estrada do M'Boi Mirim, periferia de São Paulo, logo após o reajuste das tarifas do transporte público em São Paulo e Rio de Janeiro. Os primeiros atos foram pequenos, mas já estiveram marcados pela presença forte das forças de segurança. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A resposta se tornou mais violenta depois de 6 e 7 de junho, quando foram registrados os primeiros grandes casos de depredação em estações de metrô e estabelecimentos públicos em São Paulo e confrontos no Rio de Janeiro. O terceiro grande protesto na região central paulistana, em 11 de junho, atraiu 5 mil pessoas e foi marcado pelo uso de coquetéis molotov, paus e pedras por manifestantes encapuzados e desgarrados da massa principal contra agentes de segurança da Tropa de Choque da Polícia Militar. A Polícia sempre negou qualquer exagero nas reações e afirmou usar a força de forma proporcional à necessidade para conter a violência. No dia seguinte, o termo "black blocs" começa a aparecer na imprensa para descrever o grupo, ao lado de cobranças por uma ação mais enfática das forças de segurança para coibir o vandalismo. O ato seguinte em São Paulo é o de 13 de junho. Um grande movimento de convocação é organizado pelas redes sociais e os manifestantes se concentram na região da Praça Ramos de Azevedo e do Theatro Municipal, no centro da cidade, no final da tarde. O ato não tem uma liderança clara, mas naquele momento a organização estava ligada principalmente ao braço paulistano do Movimento Passe Livre (MPL), lançado em 2005 no Fórum Social Mundial em Porto Alegre. Antes mesmo da marcha começar, PMs revistam todos que se dirigem à área. Pessoas que carregavam vinagre – usado para supostamente aliviar os efeitos do gás lacrimogêneo nos olhos – são presas, incluindo um jornalista. O protesto começou sem registros de ocorrências graves, mas quando os manifestantes foram impedidos de seguir até a Avenida Paulista começou o confronto. Segundo a PM, o acordo era para que os manifestantes não subissem em direção à grande avenida, o que não foi cumprido. As lideranças do movimento e os comandantes da polícia tentavam chegar a um acordo quando a violência se espalhou. As forças de segurança usaram bombas de efeito moral e balas de borracha contra os ativistas, que responderam atirando objetos e rojões, pichando ônibus e incendiando restos de lixo. Segundo relatos, a repressão atingiu não só os manifestantes mais violentos, mas também jornalistas, pedestres e motoristas que trafegavam na região. Lojas e restaurantes nas redondezas do ato ainda fecharam as portas mais cedo por medo de vandalismo. Durante o conflito na região da Rua da Consolação, muitos manifestantes se dispersam pelas ruas dos bairros de Cerqueira César e Consolação na tentativa de chegar até a Paulista, bloqueada pela polícia. Grupos fazem barricadas e incendeiam objetos nas ruas Fernando de Albuquerque e Rego Freitas. Mais para o fim da noite, a Paulista é liberada para carros e alguns manifestantes remanescentes conseguem chegar ao vão do Masp (Museu de Arte de São Paulo), de onde são retirados à base de golpes de cassetete pela PM. Um pequeno grupo tenta iniciar uma passeata pela calçada, a uma quadra do museu, pedindo o "fim da violência", que também é reprimida. A noite termina com um total de 232 pessoas presas. Pelo menos 17 profissionais da imprensa ficaram feridos, entre eles o fotógrafo Sergio Silva, que perdeu a visão do olho esquerdo. Ele afirma ter sido alvejado por uma bala de borracha, disparada por um policial militar - no início deste ano, a Justiça negou indenização ao jornalista, afirmando que não há provas, no processo, de que a lesão foi causada pela PM. Na manhã seguinte, o então governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, defende a ação da polícia e chama os manifestantes de "baderneiros e vândalos". Ao invés de dissuadir a participação nos protestos seguintes, a violenta repressão da polícia em 13 de junho acaba por alimentar a indignação popular e incentivar a participação nos atos. Segundo o Datafolha, 6.500 pessoas foram à rua em São Paulo em 13 de junho. No dia 17, já eram 65.000. As manifestações que já ocorriam em outras cidades do Brasil, como Rio de Janeiro e Porto Alegre, também ganharam impulso, com novas reivindicações. Após semanas de protestos, parte das capitais, inclusive São Paulo, anunciou a redução das tarifas. Na sequência, Dilma Rousseff fez pronunciamento na TV prometendo "pacto" com governadores e prefeitos para atender às demandas. Com isso, a tensão diminuiu, mas um levantamento do Datafolha de julho de 2013 mostrava a ascensão da insatisfação popular: a porcentagem dos brasileiros que avaliavam o governo de Dilma como "bom ou ótimo" passou de 57% para 30% em três semanas. "Reprimir, rezam estudiosos de movimentos sociais, ou dizima atos ou os inflama, atraindo solidariedade de mídia e cidadãos não mobilizados. Em 13 de junho, teve o segundo efeito", afirma a socióloga e professora da Universidade de São Paulo (USP) Angela Alonso em artigo publicado na revista Novos Estudos. Segundo ela, a resposta ao ato dos então prefeito e governador de São Paulo, Fernando Haddad e Geraldo Alckmin, que em um primeiro momento decidiram manter o valor da tarifa do transporte público, também atraiu mais participação no movimento. "Interpretaram mal a conjuntura, que os pegaria de rebote. A mobilização mudava de escala." "É inegável que o dia 13 destravou uma discussão que se espalhou pelo país todo. Talvez tenha sido assim justamente porque houve uma triangulação entre os manifestantes, a violência da polícia e a resposta da imprensa, que em um primeiro momento condenou os protestos, mas depois passou a criticar a repressão", diz Acácio Augusto, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Para o sociólogo Breno Bringel, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), 13 de junho foi um "dia chave" para as Jornadas de Junho. "Foi um ponto de inflexão, pois a partir da onda de indignação e solidariedade gerada pela repressão os protestos se difundiram para outras cidades com mais força e mais pessoas aderiram ao movimento, inclusive pessoas que não estavam acostumadas a sair às ruas", diz. A partir daí, segundo Bringel, a explosão de manifestações permitiu "uma grande abertura societária do Brasil" que levou a fortes críticas ao sistema político tradicional, ao PT - que estava no governo federal na época - e aos políticos que estavam no poder naquele momento. "Foi uma oportunidade para se repensar os rumos do país, só não se sabia na época quais seriam esses rumos." Nos anos seguintes a 2013, o Brasil viveu o ápice da operação Lava Jato, impeachment da presidente Dilma Rousseff, ascensão de uma direita radical, eleição presidencial de Jair Bolsonaro e o fortalecimento de movimentos antidemocráticos que culminaram na invasão e depredação das sedes dos Três Poderes em janeiro. No meio tempo, Luiz Inácio Lula da Silva foi condenado, preso, solto, recuperou seus direitos políticos e foi eleito pela terceira vez para comandar o país. Acadêmicos que pesquisam os protestos e seus desdobramentos afirmam não ser possível traçar uma linearidade causal entre todos esses eventos, como se o turbilhão que tomou as ruas há dez anos tivesse, por exemplo, gestado a nova direita brasileira, causando assim a derrubada do governo petista e abrindo caminho para o bolsonarismo. Por outro lado, apontam junho como um momento de inflexão na história, em que uma série de insatisfações e movimentos de reivindicações que vinham fermentando nos anos anteriores eclodiram e ganharam visibilidade. "Os legados de junho de 2013 foram apropriados por atores mais à direita e levaram a um fortalecimento na sociedade, cultura e política de agentes que posteriormente construíram o processo de impeachment (contra Dilma Rousseff)", explica Bringel. "Mas também não podemos dizer que os protestos foram os grandes responsáveis pela criação do bolsonarismo, por exemplo. Outros muitos fatores influenciaram esse fenômeno." Para o sociólogo Marcos Rolim, professor universitário e membro fundador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), muito possivelmente "não teríamos as Jornadas de Junho, com a dimensão que as manifestações tomaram em todo o país, sem a violência despropositada da PM de São Paulo" em 13 de junho. Segundo o especialista, o descontentamento popular com a ausência de serviços públicos de qualidade iria emergir de um modo ou de outro, mas muito provavelmente não teríamos tido protestos tão amplos não fosse a resposta violenta das forças de segurança e do Estado. "Esse episódio deixou algumas lições e penso que a primeira delas é a de que intervenções policiais violentas contra as manifestações populares costumam fortalecer os movimentos, porque despertam um sentimento de injustiça em segmentos até então não mobilizados e porque as imagens da repressão tendem a alterar a opinião pública, agregando simpatia às vítimas e as suas causas", diz. A forma como as forças de segurança reagiram aos protestos do dia 13 de junho também estabeleceu padrões para a ação da polícia nos últimos 10 anos, diz Acácio Augusto, que coordena o Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento da Unifesp. Segundo o pesquisador, os agentes de várias cidades do Brasil já vinham recebendo treinamentos especiais baseados em conhecimentos estrangeiros há algum tempo, como forma de preparação para os megaeventos esportivos sediados pelo país, a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas do Rio em 2016. "Mas foi só a partir de junho, e especialmente do dia 13, que a polícia colocou esse treinamento para funcionar", diz. "Depois disso a violência da polícia só aumentou e se sistematizou." Augusto explica que algumas técnicas de repressão e resposta a protestos foram experimentadas pela primeira vez naquela noite e depois passaram a ser usadas com frequência não só pela polícia em São Paulo, como em outras cidades. É o caso da tática conhecida como Chaleira de Hamburgo, que consiste no isolamento de uma parte dos manifestantes com cordão policial, ou do uso do que a imprensa apelidou de "Tropa do Braço", um grupo de mais de 100 policiais especializados em artes-marciais, principalmente jiu-jitsu. Esse mesmo tipo de tática seria empregado, de acordo com Augusto, para manifestações semelhantes nos anos seguintes, como os protestos dos secundaristas contra a reorganização escolar, em São Paulo, em 2016 "A partir daí a polícia passa a ser sistematicamente mais violenta, não só em manifestações populares mas também em outras ações. De 2013 para cá o que não faltam são casos de pessoas sufocadas, imobilizadas com golpes de arte marcial." Segundo o pesquisador, o estoque de equipamentos usados pela polícia também cresce a partir daquele momento, com a compra de novos e mais modernos tipos de bala de borracha e gás lacrimogêneo. E se em um primeiro momento a repressão agressiva produziu mais agitação social que massificou os atos em todo o Brasil, a longo prazo desmobilizou e enfraqueceu alguns ativistas e movimentos sociais, segundo os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil. "A polarização decorrente de Junho de 2013 tirou da cena política alguns dos movimentos sociais mais críticos e autônomos que atuaram nos atos", afirma Breno Bringel. Segundo o especialista, muitos ativistas ficaram traumatizados ou impossibilitados de continuar seu trabalho por conta de processos criminais decorrentes de suas ações nos protestos. "No médio prazo, a repressão levou a uma desmobilização principalmente de ativistas mais ligados à esquerda. Eles foram as principais vítimas." Para Marcos Rolim, a repressão aos protestos se deu também por meio de novas estratégias de investigação mobilizadas pelas polícias civis para enquadrar pessoas que participavam dos protestos e pela produção legislativa da época que ofereceu ao Estado um novo repertório de persecução criminal. "Esse é, particularmente o caso, da Lei 12.850 de agosto de 2013, sancionada pela presidenta Dilma, a chamada 'Lei das Organizações Criminosas'", diz o sociólogo. "Essas novas estratégias repressivas passaram a colocar aos movimentos sociais novos desafios para a proteção dos seus membros, o que inclui, entre outros temas, formas inovadoras para o uso de recursos de comunicação e articulação online e mecanismos legítimos de autodefesa." Acácio Augusto afirma ainda que, em última instância, também é possível traçar uma relação entre a reação às manifestações de 2013 e a Lei Antiterrorismo de 2016. "O efeito do dia 13 no aparato securitário no Brasil é muito significativo e se arrasta até a criação da legislação", diz. "A relação não é oficial, já que a principal impulsionadora da lei foi a ideia de que o Brasil precisava se tornar mais seguro para receber grandes eventos internacionais. Mas as manifestações certamente criaram uma narrativa favorável."
2023-06-12
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0j5125089do
brasil
Por que o Dia dos Namorados é em junho no Brasil e em fevereiro no resto do mundo?
Qual é a origem do Dia dos Namorados no Brasil? Enquanto os Estados Unidos e a Europa comemoram o chamado Valentine's Day (ou Dia de São Valentim) em 14 de fevereiro, por aqui, a data é do romance celebrada em 12 de junho desde 1948. E o motivo é exclusivamente comercial. A ideia de estabelecer a comemoração veio do publicitário João Doria, pai do empresário, jornalista e ex-governador de São Paulo, João Doria Jr. Dono da agência Standart Propaganda, ele foi contratado pela loja Exposição Clipper com o objetivo de melhorar o resultado das vendas em junho, que eram sempre muito fracas. Fim do Matérias recomendadas Inspirado pelo sucesso do Dia das Mães, Doria instituiu outra data para trocar presentes no ano: o Dia dos Namorados. Junho foi escolhido porque era justamente o mês de desaquecimento das vendas. O dia 12, por sua vez, está na véspera da celebração de Santo Antônio, que é famoso no Brasil por ser o santo casamenteiro. Unindo, então, o útil ao agradável, Doria criou a primeira propaganda que instituiria a data no país. "Não é só com beijos que se prova o amor!", dizia um slogan do primeiro Dia dos Namorados brasileiro. "Não se esqueçam: amor com amor se paga", afirmava outro. A propaganda foi julgada a melhor do ano pela Associação Paulista de Propaganda à época. A data começou a "pegar" no Brasil no ano seguinte, quando mais regiões começaram a aderir — posteriormente, a comemoração tornou-se nacional. Atualmente, o Dia dos Namorados já é a terceira melhor data para o comércio no país — atrás apenas do Natal e do Dia das Mães. Em 2023, espera-se que a celebração movimente R$ 23 bilhões entre presentes e celebrações, segundo pesquisa da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil). A origem do Valentine's Day (Dia de São Valentim), celebrado nos Estados Unidos e na Europa, é muito anterior ao Dia dos Namorados no Brasil. A data começou a ser celebrada no século 5. Há algumas explicações para a história, mas a mais famosa é a de que São Valentim era um padre de Roma que foi condenado à pena de morte no século 3. Segundo esse relato, o imperador Claudio 2º baniu os casamentos naquele século por acreditar que homens casados se tornavam soldados piores — a ideia dele era de que solteiros, sem qualquer responsabilidade familiar, poderiam render melhor no exército. Valentim, porém, defendeu que o casamento era parte do plano de Deus e dava sentido ao mundo. Por isso, ele quebrou a lei e passou a organizar cerimônias em segredo. Quando o imperador descobriu, o padre foi preso e sentenciado à morte no ano 270 d.C. Mas, durante o período em que ficou preso, Valentim se apaixonou pela filha de um carcereiro. No dia do cumprimento da sentença, ele enviou uma carta de amor à moça assinando "do seu Valentim" — o que originou a prática moderna de enviar cartões para a pessoa amada no dia 14 de fevereiro. Foi apenas dois séculos depois que a data passou a ser efetivamente comemorada, quando o papa Gelásio instituiu o Dia de São Valentim, classificando-o como um símbolo dos namorados. A comemoração foi criada quando a Igreja transformou em festa cristã uma antiga tradição pagã — um festival romano de três dias chamado Lupercalia. O evento, ocorrido no meio de fevereiro, celebrava a fertilidade. O objetivo era marcar o início oficial da primavera. Mas há ao menos outras duas figuras históricas que disputaram o título de São Valentim associado a essa data. Uma delas é um bispo de uma cidade próxima a Roma — na região da atual Terni — e a outra, um mártir do norte da África. Como não se sabe muito sobre essas duas outras figuras, o padre de Roma acabou se tornando o mais conhecido entre os padroeiros dos namorados.
2023-06-12
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c9x9pz7zk82o
brasil
Rádio Mulher: o veículo que enfrentou o machismo nos anos 1970 e acabou perdendo
A Sociedade Esportiva Palmeiras e a Associação Portuguesa de Desportos se preparavam para um amistoso na noite de 15 de junho de 1971. Enquanto os jogadores se trocavam no vestiário e conferiam os últimos detalhes antes de entrar em campo, narradores e comentaristas se organizavam para a transmissão de rádio nas cabines do antigo Estádio Palestra Itália. A data é significativa porque marca uma revolução: a introdução das mulheres no mundo da narração esportiva por meio da Rádio Mulher. Naquele dia, a voz de Zuleide Ranieri (1945-2016), responsável pela narração da partida, ecoou no estádio. Ela foi a voz da Rádio Mulher que atraiu homens e mulheres para acompanhar os grandes clássicos do futebol brasileiro. E, ao longo de sua trajetória na rádio, foi responsável por bordões icônicos, como "Uma mulher a mais no estádio, um palavrão a menos". A história de pioneirismo, porém, começou um pouco antes. Comprada em 1969 com o nome de Santo Amaro AM pelo empresário Roberto Montoro, a rádio passou por uma profunda reformulação. Fim do Matérias recomendadas O executivo não perdeu tempo e, no ano seguinte, transformou a estação na Rádio Mulher, após conversar com seu irmão e sócio, Antonio Montoro, e a então diretora-administrativa da empresa, Aurora Portela. Em 1970, apenas profissionais do sexo feminino tinham espaço na equipe da 930 AM. A programação era elaborada por mulheres (para mulheres) — uma verdadeira revolução no meio da comunicação no país. A grande inovação, no entanto, aconteceu no ano seguinte, quando a programação abriu espaço para o futebol, e foram contratadas jornalistas para cuidar do departamento esportivo. O jogo entre Palmeiras e Portuguesa terminou dois a zero para a equipe alviverde — e o trabalho feito pela Rádio Mulher chamou a atenção. Em pouco tempo, a estação se tornou referência, e o público foi crescendo partida após partida. Ao longo daquele ano, a equipe transmitiu a Copa Roca e a primeira edição do Campeonato Brasileiro. Dali surgiram nomes importantes do jornalismo brasileiro, como Germana Garilli, repórter de campo, Jurema Yara e Leilah Silveira, comentaristas, e Claudete Troiano, também repórter de campo e segunda narradora, revezando com Zuleide. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Não existia clima ruim de trabalho. Não sei se era porque a gente estava tão focada. Já era tão difícil entrar em um campo totalmente ocupado por homens em todos sentidos — por críticos, jogadores, torcedores —, então entre nós foi sempre tudo muito bem", diz Claudete sobre a união da equipe durante os trabalhos esportivos da Rádio Mulher. A Rádio Mulher também apresentou outra inovação na transmissão de partidas de futebol no Brasil: a introdução de uma comentarista de arbitragem, Léa Campos. A ideia de colocar uma ex-árbitra para analisar os lances polêmicos acabou sendo vista como revolucionária. A TV Globo, por exemplo, só tomou uma iniciativa semelhante em 1989, com Arnaldo Cezar Coelho. Claudete, que ficou famosa por apresentar programas na TV aberta, como o "Note e Anote", da Record TV, destaca que a Rádio Mulher foi pioneira não apenas para o jornalismo esportivo, mas também para o esporte em geral. "O espaço das mulheres vem crescendo e muito. Se você levar em conta que a mulher tinha que se vestir de palhaço para se disfarçar para poder jogar futebol, que quando a gente começou, lá na década de 1970, clubes de futebol feminino, como o Radar de Pernambuco, estavam dando os primeiros passos, olha só como isso cresceu", avalia. "Hoje temos jogos de futebol feminino recebendo grandes plateias, com o torcedor apoiando. E a mulher tem ocupado todos os espaços no rádio, na TV e em todas as mídias com muita sabedoria." As mulheres da estação 930 AM conquistaram o público. A audiência foi crescendo, sobretudo entre o público masculino. Isso gerou incômodo por parte de jornalistas homens — muitos deles resistiam à ideia de mulheres trabalhando com futebol. Parte dessa visão era herança do Decreto-Lei 3199, sancionado em 1941 pelo então presidente Getúlio Vargas. O texto proibia a "prática de esportes incompatíveis com a natureza feminina", incluindo o futebol. O documento só foi revogado em 1979. "Havia machismo naquela época. Eu narrei futebol, mas comecei como repórter de campo. A narradora principal era a Zuleide, e eu fiquei um tempinho fazendo reportagem de campo, porque fui contratada pela Rádio Mulher por causa das minhas reportagens em outras emissoras de rádio. Na reportagem, eu sentia o machismo", relembra Claudete. "Na época, os repórteres eram o Faustão, Cândido Garcia, só gente fera no campo. Eles ficavam meio desconfiados, soltavam algumas informações que não eram corretas só para ver se você caía, passava essa informação para a torcida. Também tinha o espanto da torcida, porque não estava acostumada com mulher dentro de campo até chegar a nossa equipe, que era muito jovem. Só tinha uma fotógrafa que já tinha uma idade avançada e trabalhava no Estadão", conta a apresentadora. Era uma época em que apenas 18% das mulheres trabalhavam fora de casa, de acordo com a Fundação Carlos Chagas. E a crença de que "futebol é coisa de homem" era bastante difundida. O preconceito em relação às mulheres estava refletido nas restrições que a equipe da rádio sofria. Proibidas de entrar nos vestiários — enquanto jornalistas homens tinham acesso ao local para entrevistar atletas e dirigentes —, as repórteres da 930 AM encontraram outra solução para informar os ouvintes. "A gente fazia amizade com mãe, namorada e esposa de jogador. Então a gente tinha informações da vida dos jogadores, porque os outros repórteres não se preocupavam com isso. A gente se virava como podia", recorda Claudete. "Existia machismo naquela época. Até hoje existe. Durante muito tempo, depois do nosso trabalho que durou cerca de cinco anos, a mulher ainda era utilizada apenas como decoração nos programas esportivos de televisão, imagina naquele tempo", acrescenta. Não há informações detalhadas sobre o fim da Rádio Mulher, mas um dos motivos alegados para o fechamento da estação foi a falta de patrocínio. Muitas empresas não acreditaram nos projetos da emissora, inclusive do departamento de esporte, que era sucesso de audiência. Embora a programação fosse feita por mulheres, a audiência da estação era, em sua maioria, masculina — e diante da pressão do mercado publicitário, Roberto Montoro decidiu convidar jornalistas homens para fazer parte da equipe. A ideia era manter a audiência e, ao mesmo tempo, atrair patrocinadores. Não deu resultado. Pelé, considerado por muitos como o maior jogador de futebol de todos os tempos, chegou a cogitar levar o projeto à Rádio Clube de Santos, da qual era proprietário. Só que o plano não deu certo, porque ele deixou o futebol brasileiro e foi morar nos Estados Unidos para jogar no New York Cosmos. Em 1976, já sem boa parte da equipe que iniciou o projeto, a Rádio Mulher chegou ao fim. Mas Claudete tem convicção de que o trabalho da rádio permitiu que outras mulheres conquistassem seu espaço no mundo do futebol. "Acho que a gente, da Rádio Mulher, colaborou para tudo isso. Sempre tem que ter alguém para abrir uma porta, jogar uma luz e colocar uma ideia na cabeça para as coisas acontecerem. Acho que ali foi uma sementinha importante que a Rádio Mulher plantou, e eu tive o prazer de participar. Tenho muito orgulho disso", diz ela. Hoje, a situação é bem diferente. As jornalistas Renata Fan e Glenda Kozlowski, por exemplo, são referências por estarem há décadas comandando programas de futebol na TV aberta. Mas as mulheres seguem conquistando seu espaço no jornalismo esportivo. Em 2022, Ana Thaís Matos se tornou a primeira jornalista mulher a comentar jogos da Copa do Mundo de Futebol Masculino na Globo, e Renata Silveira, a primeira narradora mulher da emissora. "Não tínhamos noção que estávamos abrindo um campo de trabalho tão importante", afirma Claudete Troiano. "Lamento que a rádio tenha chegado ao fim, porque a família Montoro é maravilhosa. Agradeço ao seu Montoro e a sua família pelo que fizeram pela gente. Foi muito importante para as mulheres."
2023-06-11
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cx8pj2x039no
brasil
Por que viajar de avião está tão caro no Brasil
O preço médio das passagens aéreas em viagens nacionais entre janeiro e março deste ano foi o maior em um primeiro trimestre em mais de uma década: R$ 592,95. O dado é o mais atualizado do levantamento feito pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Esse valor, segundo a Anac, é o maior desde o primeiro trimestre de 2010, quando a média foi de R$ 629,16, já corrigida pela inflação. Na comparação anual, 2022 já havia entrado para a série histórica da agência como o ano em que os bilhetes custaram mais caro em muito tempo. O preço médio foi R$ 649,14 — o maior valor desde 2009, quando o bilhete custou em média R$ 742,89. Fim do Matérias recomendadas “Ao menos desde 2019, as companhias aéreas têm subido os valores das passagens acima da inflação. Isso indica que as companhias estão elevando os preços mais do que a capacidade de renda da população, que tem enfrentado mais dificuldade para comprar passagens”, diz o economista Alexandre Jorge Chaia, do Insper Mas por que viajar de avião no Brasil está tão caro? Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam que o preço das passagens subiu por uma combinação de fatores, como a pandemia de covid-19, a alta do dólar nos últimos anos e o aumento do preço do combustível das aeronaves. O setor afirma ainda que atravessa uma crise e tenta se reestruturar. Enquanto isso, o governo federal estuda lançar um programa para vender passagens a preços populares, além de outras medidas para tentar reduzir o valor dos bilhetes. Ao mesmo tempo, além do valor das passagens, viajar de avião ficou mais caro porque muitos consumidores têm agora que arcar com cobranças extras, como a tarifa para despachar bagagens, em vigor desde 2017, que se tornou parte importante da receita das empresas aéreas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Até o início dos anos 2000, o valor das passagens aéreas era regulado pelo governo federal. O controle de preços gerava ineficiências, reduzindo o investimento das empresas e a oferta de voos, o que mantinha o valor das passagens elevado. Desde 2001, as empresas aéreas passaram a ter liberdade para determinar as tarifas cobradas nas rotas domésticas. A concorrência ganhou força a partir de 2005, com a criação da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), estimulando investimentos e a expansão do setor, com crescimento da malha aérea, aumento da oferta de trechos e da quantidade de voos. Essa expansão fez o valor das passagens cair bastante, segundo analistas, o que levou muito mais brasileiros a viajar de avião. O efeito dessa mudança pode ser medido pelo chamado RPK (Revenue Passenger‐Kilometers, em inglês, ou Passageiros‐Quilômetros Pagos transportados). Essa medida, usada pelo setor para apontar a demanda por voos, é calculada ao se multiplicar o número de passageiros pagantes por quilômetros voados. Em 2000, o índice foi de 25,2 bilhões de quilômetros. Uma década depois, quando o avião se tornou oficialmente o meio de transporte mais usado por brasileiros para viagens longas em vez do ônibus, já eram 69,8 bilhões. O RPK continuou a crescer na década seguinte, até sofrer uma queda vertiginosa na pandemia de covid-19 por causa das restrições de circulação. Em 2019, ano imediatamente anterior à pandemia, eram 96,4 bilhões de quilômetros. No ano seguinte, caiu para quase a metade: 49,5 bilhões. A aviação comercial doméstica começou a se recuperar desde então. Em 2022, o RPK subiu para 89,3 bilhões de quilômetros. Segundo a Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear), que representa companhias do setor, o índice do ano passado foi correspondente a 86,5% do registrado em 2019. Essa recuperação foi melhor do que as de viagens internacionais, de acordo com a Abear, que estão hoje em 64,7% do registrado no ano anterior à pandemia. Apesar da recente recuperação, a Abear avalia que as empresas aéreas brasileiras ainda enfrentam uma situação difícil. A associação estima que as companhias tiveram prejuízo de R$ 46,39 bilhões, acumulados de 2016 até o terceiro trimestre do ano passado. Diante desse cenário, um dos reflexos para o consumidor foram passagens cada vez mais caras. O valor de uma passagem leva em consideração fatores como a oscilação de preço internacional do barril de petróleo (a partir do qual é produzido o combustível para as aeronaves), a taxa de câmbio, as estratégias de concorrência entre as empresas, a distância que será percorrida e a demanda por um determinado trecho. Há outros fatores também, segundo a Anac, como a antecedência da compra da passagem, o dia da semana em que isso é feito, se é um trecho com escalas e conexões, se serão oferecidas refeições a bordo, a posição do assento na aeronave e o meio pelo qual a passagem é vendida. Há casos inclusive em que bilhetes nacionais custam mais do que viagens para outros países, principalmente aqueles que são vizinhos do Brasil. Isso ocorre, segundo especialistas, por causa da dimensão continental do Brasil, o que torna algumas viagens bem longas, e também em razão do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), tributo cobrado pelos Estados sobre vários setores econômicos, como o de combustível – o que encarece os custos em alguns pontos do país. Além disso, o preço de uma passagem aérea é dinâmico, ou seja, ele varia de acordo com esses fatores a qualquer momento. Isso significa que, em um mesmo voo, passageiros podem pagar diferentes valores por assentos semelhantes. Em fevereiro deste ano, por exemplo, segundo a Anac, 30% dos bilhetes de viagens no Brasil foram vendidos abaixo de R$ 300. Já a média geral do valor da passagem nacional nesse período foi bem maior, de R$ 576,19 – o maior desde fevereiro de 2014, quando ficou em R$ 598,53. “Muitos outros serviços também têm preços dinâmicos, como atrações culturais, transportes e hotelaria”, argumenta Jurema Monteiro, presidente da Abear. Monteiro reconhece que as passagens ficaram mais caras nos últimos anos no Brasil, mas ela diz que isso que ocorreu com outros serviços e setores no pós-pandemia, com inflação em alta e um aumento de custos em geral. Ela acrescenta que o valor do dólar mais que dobrou nos últimos dez anos e que isso impactou diretamente os preços das passagens no Brasil. “O preço [das passagens] já foi menor, mas em condições nas quais os custos eram diferentes. O dólar era mais baixo e o preço do combustível era mais competitivo. 60% dos custos estão atrelados ao dólar, como o combustível, o arrendamento de aeronave, a manutenção… tudo isso é dolarizado”, diz. Ex-diretor da Anac, o advogado Ricardo Fenelon Júnior, especialista em Direito Aeronáutico, afirma que as companhias aéreas continuam tendo dificuldades mesmo com o aumento do preço das passagens aplicado para compensar os prejuízos dos últimos anos e a alta dos custos de produção. “Os custos das empresas aéreas no Brasil subiram de forma exponencial. As companhias só não sobem mais os preços porque não conseguem, porque há liberdade tarifária no Brasil e precisa aumentar o preço e regular a oferta conforme concorrência e demanda”, diz. “Essas empresas ainda continuam tendo prejuízo porque não podem cobrar o máximo que poderiam, porque o consumidor é sensível a preço. Esses prejuízos dos últimos anos, como as dívidas criadas na pandemia, continuam gerando aumento de custos hoje. Mesmo com o preço das passagens mais alto, essas companhias não conseguem cobrir os prejuízos dos últimos anos”, acrescenta. Outro problema que prejudica o segmento, avalia Fenelon, é relacionado ao alto número de processos contra empresas aéreas no Brasil. “Isso faz parte dos custos estruturais de uma empresa. O Brasil é o país com o maior número de passageiros contra companhias aéreas”, diz o advogado. Nem mesmo as novas cobranças como pelo despacho de bagagens, marcação de assentos e serviço de bordo, que hoje representam cerca de 20% da receita das companhias com as tarifas cobradas, amenizou a crise do setor, diz Marcus Quintella, diretor do centro de estudos da área de Transporte da Fundação Getúlio Vargas (FGV). "No mundo, essa cobrança já é uma prática de muitos anos e no Brasil acontece desde 2017. Hoje é uma receita acessória muito importante, e tudo isso faz parte dessa estratégia das empresas”, afirma Quintella. O especialista diz que essas novas cobranças não foram suficientes para reverter os prejuízos do setor nos últimos anos. E avalia que, se esses valores voltassem a ser incluídos no preço da passagem, os bilhetes ficariam ainda mais caros. "Muita gente começaria a levar bagagem desnecessariamente e isso interfere no custo do voo, no peso da aeronave, no combustível e na ocupação”, acrescenta Quintella, que frisa que essas novas cobranças são permitidas pela Anac. Uma das principais dificuldades alegadas pelas empresas aéreas é o preço do querosene de aviação (QAV), o maior custo de operação das aeronaves. O valor do produto é tabelado pela Petrobras, que define sua política de preços. Segundo a Abear, o preço do QAV começou a pressionar os custos das passagens aéreas no país por volta de 2018, e a situação piorou em meio à pandemia. De acordo com a estimativa da associação, o preço do produto aumentou 129% de 2020 a 2022, ajustado pela inflação. “O QAV oscilou muito para cima em 20 anos, especialmente nos últimos quatro anos", diz Jurema, da Abear. "Isso faz com que o preço da passagem também oscile como um todo. Mas a tarifa média do bilhete aéreo oscilou muito menos do que o aumento de custos no último período: enquanto o bilhete aéreo aumentou 26% de 2019 a 2023, o QAV aumentou mais de 120% [valores ajustados pela inflação].” O conflito causado pela invasão da Ucrânia pela Rússia, segundo os especialistas, também elevou o valor do querosene de aviação. Nos primeiros meses deste ano, segundo o governo federal, o preço do QAV teve uma redução de 35%. O setor, porém, cobra uma redução ainda maior, em razão dos aumentos consecutivos nos últimos anos. Para a Abear, uma das medidas mais urgentes para reduzir os custos dos bilhetes aéreos é reavaliar a forma que o QAV é cobrado no Brasil. “Hoje, mesmo que 90% da produção do combustível seja nacional, o item é cobrado como se viesse do exterior. Além disso, o Brasil é o único país que tributa o QAV (com ICMS, por exemplo), tornando o preço efetivo pago nas refinarias brasileiras um terço superior ao valor cobrado das aéreas nos Estados Unidos”, aponta a associação em um comunicado enviado à BBC News Brasil. O Ministério de Portos e Aeroportos (MPor) diz em nota à BBC News Brasil que reduzir ainda mais o preço do combustível é um dos principais caminhos para diminuir os custos das passagens. Em razão disso, afirma que mantém diálogo frequente sobre o tema com os órgãos competentes para “encontrar soluções para a redução dos preços”. O MPor afirma ainda que há outras alterações estruturais na aviação civil que também são importantes para baratear as passagens, como “a diminuição do excesso de judicialização das relações de consumo; a redução da tributação incidente sobre a aviação civil e a atração de mais empresas aéreas para aumento da concorrência”. O setor aéreo pede mais apoio do poder público. A Abear aponta que enquanto outros países deram suporte ao segmento no auge da pandemia, o governo brasileiro não concedeu nenhum tipo de ajuda financeira no período. “Mesmo com uma parada quase total dos voos, o setor brasileiro se manteve de pé sem nenhum subsídio público, diferentemente do que aconteceu em países como Estados Unidos (US$ 50 bi), França (US$ 16,4 bi), Alemanha (US$ 9,8 bi) e Holanda (US$ 3,8 bi)”, diz comunicado da Abear. “Isso faz com o que o custo financeiro dessa recuperação seja mais intenso e duradouro do que em outros setores e países. Fora este cenário atípico, impactos do Custo Brasil, de R$ 1,7 tri para todos os setores brasileiros em 2022, mostram o quanto o modal aéreo é impactado pela alta carga tributária. Somente o setor aéreo pagou R$ 20,5 bi em tributos em 2021”, acrescenta a associação. Já o governo federal afirma que foram tomadas medidas para auxiliar o segmento durante o auge da pandemia. O Ministério do Turismo diz, em nota, que apoiou uma série de ações para fortalecer o setor aéreo no período. Entre as medidas, a pasta cita medida provisória que flexibilizou a jornada e permitiu suspensão dos contratos de trabalho; regulamentação da remarcação e do cancelamento de voos em função da pandemia; introdução do combustível JET-A; e diminuição do imposto sobre arrendamento de aeronaves. A pasta afirma ainda que foram feitas reuniões com as empresas aéreas e associações do setor para discutir ações que possam ajudar a reduzir custos operacionais e “dar oportunidade de mais brasileiros voarem". Uma das medidas mais recentes do governo federal em relação ao barateamento de passagens foi o anúncio do programa “Voa Brasil”. A iniciativa promete abaixar os custos das passagens aéreas nacionais para alguns públicos específicos para cerca de R$ 200 por trecho voado. De acordo com o que foi divulgado até agora pelo governo, servidores públicos com salário de até R$ 6,8 mil, aposentados, pensionistas e estudantes do Fies (Fundo de Financiamento Estudantil) podem estar entre os beneficiados. Segundo as informações iniciais, cada pessoa deve ter direito a duas passagens por ano, além de um acompanhante por trecho. Essas passagens devem ser vendidas em períodos fora da alta temporada. Azul, Gol e Latam, as três principais empresas do setor, anunciaram que aceitam participar do projeto. A previsão é de que o programa comece no segundo semestre deste ano. No fim de maio, o presidente Lula sancionou uma Lei que concede isenção de tributos às empresas aéreas. O texto zera as alíquotas do PIS e da Cofins (impostos federais) sobre a receitas obtidas pelas empress de transporte aéreo pelo período de 1º de janeiro deste ano a 31 de dezembro de 2026. O governo federal estima que essa medida deve reduzir em cerca de R$ 500 milhões nos custos operacionais da aviação civil brasileira nos próximos anos. Apesar de representar alívio, o setor aéreo tem argumentado que dificilmente a medida irá impactar de modo imediato em uma possível redução nos preços das passagens, em razão dos prejuízos enfrentados nos últimos anos. No mês passado, houve queda de 17,73% nos preços das passagens aéreas, segundo a inflação calculada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Mas no acumulado dos últimos 12 meses, conforme o IBGE, os preços das passagens subiram 4,31% - em comparação, a inflação no mesmo período foi de 3,94%. “Isso indica que em maio talvez houvesse mais oferta de passagens e também o preço do combustível de aviação caiu no período recente. Talvez a tendência seja estabilizar nesse preço (atual) das passagens, mas uma redução muito grande neste momento acho difícil”, avalia Alexandre Jorge Chaia, do Insper. “As empresas ainda estão desequilibradas financeiramente e acabam tendo que repor esse prejuízo. Então as passagens devem continuar caras, ao menos até que as empresas equilibrem as contas”, acrescenta. Os especialistas afirmam que não há, ao menos por ora, como prever de modo geral quando as passagens aéreas terão queda de preço considerável no país. “É um cenário muito complexo. A aviação depende da macroeconomia. Se analisarmos, desde 2014, a gente anda de lado porque não tem crescimento significativo no país. Infelizmente, os últimos dez anos não foram fáceis para o Brasil", aponta Fenelon, ex-diretor da Anac. "O cenário deve continuar complexo enquanto o dólar estiver em alta e o combustível nesse valor”, acrescenta. Segundo especialistas, a melhor forma de comprar passagens aéreas mais baratas no atual momento é se planejar. “Essa é a grande diferença, porque as empresas concorrem muito entre si. Não existe outra dica além da antecedência”, afirma Jurema Monteiro, da Abear. Mas quanto tempo seria o suficiente? “Até três meses de antecedência é um bom período”, diz Marcus Quintella.
2023-06-11
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c9xnx5k49lpo
brasil
Como destruição do Cerrado é ofuscada por 'prioridade' à Amazônia
Ainda não chegamos à metade do ano, mas o Cerrado já atingiu um novo recorde de desmatamento, tanto no mês de maio quanto no acumulado anual, da série histórica, iniciada em 2019. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), entre janeiro e maio deste ano foram desmatados mais de 3.320 km² do bioma, um aumento de 27% em relação ao mesmo período do ano passado. Para comparação, esse território desmatado nos primeiros cinco meses de 2023 equivale a quase duas vezes a área total da cidade de São Paulo. A realidade não é nova. Em 2022, a ecorregião já havia registrado a maior taxa de desmatamento em sete anos: foram 10.689 km², segundo os dados oficiais divulgados pelo Prodes Cerrado, programa de monitoramento do Inpe. Ao todo, 110 milhões de hectares do bioma (49% do total) já foram destruídos, sendo substituídos pelo cultivo extensivo de commodities agrícolas, principalmente soja, milho, cana-de-açúcar e algodão, ou usado para extração de matérias-primas voltadas à produção industrial. Fim do Matérias recomendadas Enquanto o Cerrado bateu recordes de destruição nos primeiros cinco meses de 2023, o desmatamento na Amazônia Legal caiu 31% na comparação com o mesmo período do ano passado. Foram 1.986 km² de área desmatada entre janeiro e maio. Em termos absolutos, esse total representa quase metade do que foi registrado no Cerrado, sendo que a floresta no norte do Brasil tem quase o dobro da área da região savânica. Especialistas afirmam que é necessário cautela ao interpretar os dados de desmatamento em épocas de chuva, já que a alta cobertura de nuvens pode aumentar o tempo de detecção dos alertas de desmatamento. Ainda assim, todos afirmam que a situação é preocupante. A devastação da vegetação nativa para uso da terra por atividades de agricultura, pecuária e mineração preocupa especialmente por suas consequências brutais para a dinâmica hídrica nacional e no cone sul do continente e, consequentemente, na produção de alimentos na região. “O Cerrado é o bioma mais ameaçado do Brasil e talvez um dos mais ameaçados do mundo”, diz Yuri Salmona, geógrafo e diretor executivo do Instituto Cerrados, que explica que, por muitos anos, a Mata Atlântica esteve sobre grande risco, mas nas últimas décadas foi alvo de fortes esforços de conservação, ao contrário da área de savana. Segundo o pesquisador, é no período entre maio e junho que costumam ser registradas as maiores taxas de desmatamento no Cerrado, por conta do clima. “Ainda estamos entrando nesse período, o que significa que podemos esperar números ainda piores nos próximos meses.” Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Segundo os especialistas consultados pela BBC News Brasil, grande parte da discrepância entre os números mais recentes de desmatamento no Cerrado e na Amazônia pode ser explicada por leis mais permissivas na área de savana. Embora seja o segundo maior bioma da América do Sul, o Cerrado é o que tem a menor porcentagem de áreas sobre a proteção integral no país. Enquanto o Código Florestal protege 80% da mata localizada em áreas privadas na Amazônia contra o desmatamento, as reservas legais cobrem apenas de 20% a 35% do Cerrado. Ou seja, a lei estabelece uma proporção quase oposta para os dois biomas. Ao mesmo tempo, apenas 8,21% da área total da savana é legalmente protegida com unidades de conservação (UCs), contra quase metade da floresta do norte. “Historicamente, o Cerrado foi escolhido para morrer”, diz a ecologista Rosângela Azevedo Corrêa, professora da Universidade de Brasília (UnB) e diretora do Museu do Cerrado, que classifica ainda a legislação como “desastrosa” para a ecorregião. A especialista afirma que uma legislação mais permissiva no Cerrado em relação à Amazônia também não faz sentido do ponto de vista científico, já que as duas áreas estão fortemente relacionadas e dependem uma da outra para sobreviver. “Todos os rios da margem direita do Amazonas dependem da água das entranhas do Cerrado”, diz. “Se o Cerrado morrer, metade da Amazônia morre junto.” O geólogo Yuri Salmona diz ainda que é preciso pensar em políticas públicas para Amazônia e Cerrado juntos. “Mais de 80% do desmatamento no país acontece nesses dois biomas e a região onde se encontram os maiores índices de desmatamento da Amazônia Legal compreende o bioma Cerrado”, afirma. “Criar políticas públicas separadas pode deslocar o desmatamento de um bioma para o outro, pois os responsáveis pela destruição buscam novas áreas para seguir com seus negócios.” Há ainda, segundo os pesquisadores ouvidos pela reportagem, mais iniciativas voltadas para a proteção da Amazônia do que para o Cerrado, apesar da situação mais urgente da área de savana. "Sabemos que o novo governo Lula ainda está se estruturando e lidando com a falta de estruturas e o desmonte promovido pelo governo anterior, mas até o momento se priorizou muito mais a Amazônia do que o Cerrado”, diz o diretor executivo do Instituto Cerrados. “Temos esperanças de que isso possa mudar, mas precisamos de demonstrações dessa vontade política logo.” O geólogo afirma também que os números alarmantes dos últimos meses podem ser uma resposta de agricultores e pecuaristas ao novo governo, algo como uma “corrida” pelo desmatamento antes que novos mecanismos de proteção sejam instalados. Já Rosângela Azevedo Corrêa vê as indicações dos ex-governadores Rui Costa (Bahia) e Flávio Dino (Maranhão) para, respectivamente, ministro da Casa Civil e ministro da Justiça, como um ato simbólico do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). “Bahia e Maranhão são dois dos Estados onde mais se continua destruindo o Cerrado e, ainda assim, dois ex-governadores foram nomeados ministros”, diz. “É por isso que do ponto de vista político, os dados de desmatamento recentes não surpreendem tanto.” Dados do Inpe classificam os Estados do Tocantins e de Goiás como os responsáveis pelo maior incremento de desmatamento acumulado nos últimos 20 anos. Eles são seguidos por Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais e Bahia. “A invisibilidade do Cerrado se tornou política pública no Brasil, infelizmente”, diz Corrêa. A professora da UnB acredita ainda que há falta de conhecimento da sociedade brasileira sobre o Cerrado e sua situação delicada, o que colabora para uma certa priorização da Amazônia em detrimento da savana. “A população não conhece o Cerrado e, portanto, não luta para defendê-lo”, diz. “Em uma de minhas pesquisas analisei 20 livros didáticos utilizados nas escolas de Ensino Fundamental do Distrito Federal e, quando muito, eles trazem uma página sobre o Cerrado, com uma ou outra foto do Lobo-guará e do Ipê-amarelo”. Outro ponto levantado por especialistas é o fato do Cerrado não ser patrimônio nacional do Brasil, como a Amazônia, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal e a Zona Costeira. Uma proposta de emenda para alterar a Constituição Federal e incluir o Cerrado e a Caatinga na lista de patrimônios está há 13 anos em tramitação no Congresso. A PEC passou em janeiro de 2023 pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJC) da Câmara dos Deputados e está pronta para ser votada em Plenário. “O fato do Cerrado não ser patrimônio enquanto quase todos os outros são é um sinal da predileção do Estado brasileiro, que reflete nas políticas nacionais”, diz a bióloga Nurit Bensusan, do Instituto Socioambiental (ISA). Outro ponto apontado como significativo pelos pesquisadores é o baixo interesse despertado pela preservação do Cerrado fora do Brasil, especialmente quando comparado à atenção recebida pela Amazônia. “Líderes internacionais quando vêm ao Brasil só visitam a Amazônia”, diz Rosângela Azevedo Corrêa, que cita as doações ao Fundo Amazônia, destinado à proteção e desenvolvimento da região, como consequência positiva da fama desse bioma no resto do mundo. “Mas o governo brasileiro decidiu destinar apenas 20% do fundo para os demais biomas brasileiros. Ou seja, cinco biomas tendo que dividir essa parcela”. Nurit Bensusan afirma que o interesse despertado e as campanhas massivas realizadas pela Amazônia por vezes deslocam as atividades econômicas - e consequentemente o desmatamento - para o Cerrado, já que os produtores e pecuaristas passam a buscar outras regiões para se desenvolver. “Costumo dizer que o Cerrado é um bioma azarado, porque está no país com a maior floresta tropical do mundo, um dos ambientes mais devastados, que é a Mata Atlântica, e a maior planície úmida do planeta, o Pantanal”, diz. Yuri Salmona cita ainda a atual legislação europeia que proíbe a venda no continente de produtos oriundos de desmatamento em florestas, mas permite a comercialização do que é fruto da destruição do Cerrado, como exemplo da falta de apoio ao bioma. A norma aprovada pela União Europeia (UE) em abril deste ano estipula que qualquer cultura que utilize local onde houve desmatamento ilegal, como na Amazônia, sofrerá sanções de compra pelos países dao bloco. A regulamentação oferece proteção à Amazônia, à Mata Atlântica e ao Chaco, os biomas tipicamente florestais da América do Sul, mas não trata do Cerrado. “O Brasil precisa impulsionar acordos internacionais específicos que proíbam, por exemplo, o consumo de soja e outros produtos agropecuários que venham do desmatamento do Cerrado ou pelo menos pleitear uma revisão da lei aprovada na União Europeia”, diz. “Não faz sentido só importar as soluções usadas para a Amazônia.” Segundo especialistas, a destruição do Cerrado pode impactar diretamente na biodiversidade e no abastecimento hídrico não só do Brasil, como de outros países na região do Cone Sul. O bioma é conhecido como "berço das águas" por sua enorme capacidade de abastecimento. Oito das 12 principais bacias hidrográficas brasileiras — como as dos rios São Francisco e Paraná — nascem no território do Cerrado, que é também o segundo maior bioma do país, só atrás da Amazônia. “O Cerrado funciona com um distribuidor de águas para várias bacias hidrográficas. Mas o processo de armazenamento e distribuição hídrico depende da interação entre atmosfera, vegetação e solo”, explica Mercedes Bustamante, professora da Universidade de Brasília (UnB). Segundo a bióloga, que é hoje uma das principais referências no bioma Cerrado, além do impacto nas águas superficiais, a alteração da cobertura de vegetação tem efeito direto também no retorno de água para atmosfera pela transpiração das plantas. “É por isso que diversos estudos consecutivos apontam que o Cerrado como um todo está se tornando mais seco e mais quente”, afirma. "Estamos cortando várias conexões que fazem o sistema funcionar produzindo água para outros biomas. Uma pesquisa realizada por Yuri Salmona com o apoio do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), mostrou que os rios do Cerrado perderam 15,4% de sua vazão de água por causa do desmatamento e das mudanças climáticas entre 1985 e 2022. A perspectiva de futuro também não é nada animadora: um terço do volume de águas (34%) tende a ser perdido até 2050 caso a destruição do bioma continue no ritmo atual. E interferir no ciclo hidrográfico da região significa não só diminuir a oferta de água que chega nas torneiras da população brasileira, mas também de países como Argentina, Paraguai e Uruguai, segundo especialistas. Isso porque o Cerrado é componente importante para o ecossistema do Rio Paraná, que é também o principal curso de água formador da Bacia do Prata, a segunda maior da América do Sul e a quinta maior do mundo, com aproximadamente 3,1 milhões km². Compartilhada por Brasil, Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai, estima-se que cerca de 50% da população desses cinco países se concentre em seu território. Além disso, a bacia ainda alimenta o Aquífero Guarani, um reservatório subterrâneo capaz de abastecer várias cidades no Brasil, na Argentina e no Uruguai. "De 1985 para cá, nós perdemos 19,7 mil metros cúbicos de água por segundo nas bacias analisadas, o equivalente à vazão do rio Paraná. É como se tivéssemos jogado fora o rio Paraná inteiro nesse período", explicou Salmona à BBC Brasil. “Os aquíferos não se detém nas fronteiras. Ou seja, o impacto é de toda uma região do continente sul-americano”, diz Nurit Bensusan, do Instituto Socioambiental (ISA). Os profissionais consultados pela reportagem afirmam ainda que o desmatamento do Cerrado e a diminuição da vazão da rede hídrica têm efeito direto na produção de alimentos em todas as áreas afetadas. Além da dependência da água para irrigação das plantações, a agricultura e a pecuária são diretamente impactadas pela instabilidade climática e pela contaminação por agrotóxicos e outros resíduos deixados pelas atividades econômicas. “À medida em que se desmata para criação de novas áreas de agricultura, o clima e a produção de chuvas se tornam mais erráticos e a temperatura mais alta, alterando as condições que são importantes para a produção de alimentos”, diz Mercedes Bustamante. E o Cerrado é considerado por muitos atualmente o “pilar da agricultura brasileira”. Sozinho, o Brasil alimenta 900 milhões de pessoas por ano atualmente. O país tem hoje 79 milhões de hectares em áreas plantadas, dos quais 36 milhões são dedicados à soja. Metade desse total está no Cerrado, onde o cultivo de soja avançou sobre 16,8 milhões de hectares nos últimos 36 anos. “Desmatar o Cerrado é um tiro no pé do próprio setor agrícola”, resume Bustamante. O Cerrado também tem um imenso valor para a diversidade de espécies. A ecorregião é responsável por um terço da biodiversidade do país, com mais de 11 mil espécies identificadas de plantas, além de 837 espécies de aves, 185 de répteis, 194 de mamíferos, 150 de anfíbios e 14.425 de invertebrados. Por tudo isso, é considerada a formação savânica mais biodiversa do planeta, compreendendo cerca de 5% do total da biodiversidade mundial. Mas um estudo publicado em 2017 na revista Nature mostrou que, se a trajetória de desmatamento do bioma continuasse como naquele momento e nenhuma grande mudança de política pública fosse implementada, uma extinção massiva de espécies poderia estar no horizonte. Por fim, o Cerrado tem ainda uma capacidade incrível de estocar carbono em suas raízes profundas e no solo. Desmatar a sua vegetação, portanto, significa imediatamente emitir uma quantidade enorme de gás carbônico e metano. Atualmente, segundo Yuri Salmona, o desmatamento no Cerrado já emite mais CO2 que toda a indústria brasileira. À BBC News Brasil, o Secretário Extraordinário de Controle de Desmatamento e Ordenamento Ambiental Territorial do Ministério do Meio Ambiente, André Lima, afirmou que houve um aumento médio de 100% nas ações de autuação e fiscalização ambiental realizadas pelo Ibama em todos os biomas do país. Segundo ele, a fiscalização acontece “em um ritmo e volume muito mais intenso do que no mesmo período do ano passado” apesar do “sucateamento do Ibama pela gestão anterior”. Lima disse também que uma parte importante dos casos de desmatamento em Estados onde o Cerrado está concentrado, como por exemplo a Bahia, foram registrados no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural, cuja fiscalização é feita pelos governos estaduais. “Estamos requerendo estas informações a todos os Estados, com foco no Cerrado, para entender o que é desmatamento legal e o que é ilegal e poder estruturar as próximas ações”, afirmou. O secretário também disse que o governo trabalha a partir do que é estabelecido pela lei federal em vigor desde 2012, sobre a qual não tem controle. Além disso, segundo Lima, o governo planeja o PPCerrado, um plano de ação dedicado exclusivamente ao bioma e elaborado a partir de uma iniciativa de consulta à sociedade civil e à Academia. O secretário afirmou também à BBC Brasil que não tem conhecimento de iniciativas do governo brasileiro para influenciar a legislação europeia. “Não queremos que nenhum parlamento europeu se mobilize para mudar a legislação nacional, então não faremos o inverso”, disse. “A obrigação do Estado brasileiro é implementar a legislação de proteção da vegetação nativa no Brasil, que é o nosso Código Florestal. E vamos fazer isso sem prejuízo aos mecanismos e instrumentos econômicos que possam estimular o não desmatamento de áreas passíveis de supressão pela legislação em vigor”, afirmou. Segundo Lima, esse é o grande desafio para que se atinja a meta de desmatamento zero até 2030 assumida pelo Brasil.
2023-06-11
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjkzpkl1e77o
brasil
Marcha para Jesus: o crescimento de evento que acontece há três décadas no Brasil
Chegada ao Brasil em 1993, a Marcha para Jesus, um evento que congrega diferentes igrejas cristãs, acontece nesta quinta-feira (8/6), em São Paulo, pelo 31º ano consecutivo. Há três décadas, a primeira edição acontecia na mesma cidade. Um grupo de 350 mil pessoas partiu da Avenida Paulista, passando pela Avenida Brigadeiro Luís Antônio e chegando ao Vale do Anhangabaú para adoração de Jesus Cristo e comunhão por meio de músicas. Já em 2022, a estimativa dos organizadores mostra que o público cresceu exponencialmente: dois milhões de pessoas participaram do ato na mesma cidade, um aumento de 471%. “A avaliação do crescimento é simples: o crescimento desse grupo tem continuado ao longo dos anos, o Brasil já tem 70 milhões de evangélicos”, diz o historiador e antropólogo Juliano Spyer, autor de O Povo de Deus: Quem são os evangélicos e por que eles importam (Geração Editorial, 2020). Fim do Matérias recomendadas O evento surgiu em 1987 na cidade de Londres, no Reino Unido. A Marcha foi criada por um grupo de líderes religiosos, incluindo o pastor Roger Forster, da Ichthus Christian Fellowship, o cantor e compositor Graham Kendrick, e Gerald Coates e Lynn Green, participantes de movimentos cristãos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em 1990, a Marcha já tinha alcançado 49 cidades em todo o Reino Unido, além de Belfast, capital da Irlanda do Norte, onde 6 mil católicos e protestantes se reuniram. A estimativa era de que cerca de 200 mil religiosos participassem do evento. A Marcha rapidamente se expandiu para outros continentes. De acordo com o apóstolo Estevam Hernandes, presidente do evento no Brasil, a Marcha representa a união das pessoas, a comunhão de todos que acreditam em Jesus Cristo. “Ele é o nosso resgatador, pois deu sua vida por nós na cruz. Saímos às ruas para marcar e honrar essa entrega, expressando nossa fé”, explica. Ele defende que a Marcha "se transformou no evento cristão mais importante do Brasil e até da América Latina e tem abençoado a vida de pessoas de várias gerações ao longo dos anos". "A Marcha cresceu muito e se consolidou, não só pela quantidade de pessoas, mas pela constância. Nos últimos 30 anos, realizamos o mesmo evento com o mesmo empenho e propósito. Hoje temos cerca de 2 milhões de pessoas participando do evento, com um número grande de denominações e também de cristãos em geral.” Para a edição de 2023, além da abertura da Marcha Para Jesus em São Paulo, no dia 8 de junho, outros oito municípios devem receber o evento até o mês de outubro. Embora o evento tenha como público principal os cristãos evangélicos, Spyer aponta que o grupo é descentralizado. “Às vezes falamos como um tema só, mas não são exatamente como os católicos, que têm uma igreja, um papa. Dentro das milhões de igrejas evangélicas, há diferentes práticas, tradições e regras. Vão desde igrejas mais conservadoras do ponto de vista de costumes até as ultraliberais, que abraçam, por exemplo, a comunidade LGBT.” Em resposta à BBC News Brasil, Hernandes afirma que um aumento na diversidade e participação de denominações cristãs foi notado, além de um "reconhecimento internacional, como referência em termos de manifestação de fé." Spyer aponta que o tamanho da Marcha Para Jesus hoje no Brasil é apenas uma das representações de força dos brasileiros evangélicos, que, para ele, representam o fenômeno social mais importante do país atualmente. O antropólogo diz que os evangélicos são ignorados por determinados grupos da sociedade — menciona “surpreendente falta de interesse e desconhecimento da elite brasileira e econômica e cultural sobre o tema”. Apesar disso, diz que eles conhecem sua força — em especial, influência política — no país. "Converso com evangélicos de vários lugares do Brasil e o que percebo é que ganharam consciência [como comunidade]. Eles dizem: ‘A política é um mal necessário e, se não escolhermos, alguém vai escolher por nós’.” Spyer lembra que, em 2022, Jair Bolsonaro (PL), derrotado por Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no segundo turno, conquistou mais que o dobro dos votos de evangélicos em relação ao adversário — mas avalia que o cenário não deve se repetir. “Lula é o último presidente a ser aceito sem o apoio majoritário desta população, porque ela é crescente e deve representar uma parcela ainda mais decisiva na próxima eleição. No âmbito do legislativo, isso já aconteceu há muito tempo. A bancada dos evangélicos é o exemplo, e a comunidade religiosa tem consciência disso.” Ao longo dos anos, políticos da direita e da esquerda têm participado do evento. Em 2022, Bolsonaro, então presidente, discursou em Curitiba, no Paraná. Neste ano, Lula recusou o convite, avaliado por ele como “honroso”, e afirmando que será representado pela deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ) e pelo ministro-chefe da Advocacia-Geral da União, Jorge Messias. "Sempre admirei e respeitei a Marcha para Jesus, que considero uma das mais extraordinárias expressões da fé de nosso povo", disse em carta ao apóstolo Estevam Hernandes. Hernandes disse que a organização do evento convida as autoridades constituídas, como prefeito, governador e presidente da República. “O intuito é incluir e abençoar pessoas que trabalham diretamente com o destino do município, do estado e do país”, afirma Hernandes.
2023-06-08
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cx9pgjz4e4no
brasil
O que médico inglês aprendeu em posto de saúde de Pernambuco e levou para sistema de saúde britânico
O médico inglês Matthew Harris hoje trabalha, em Londres, em um projeto inspirado no que aprendeu com o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro há mais de 20 anos. Um ano depois de se formar em Medicina no Reino Unido, ele se mudou para Pernambuco em 1999 e, após passar pelas provas para revalidar o diploma no país, começou a atuar como clínico-geral de uma unidade de saúde no município de Camaragibe, na região metropolitana de Recife. Harris permaneceu na clínica durante quatro anos. À época, ele não tinha ideia de que a experiência mudaria a carreira — e até provocaria transformações no Serviço Nacional de Saúde (NHS, na sigla em inglês) do Reino Unido duas décadas depois. Atualmente, ele é pesquisador da Escola de Saúde Pública do Imperial College de Londres e lidera um projeto que pretende implementar os agentes comunitários de saúde, algo que existe no SUS há décadas, em território britânico. O médico não faz cerimônia para dizer que essa iniciativa é 100% inspirada na Estratégia Saúde da Família (ESF), um programa criado pelo Ministério da Saúde do Brasil nos anos 1990 que segue ativo até hoje — e traz resultados muito celebrados por especialistas da área. Fim do Matérias recomendadas Harris recebeu a equipe da BBC News Brasil numa sala do Departamento de Atenção Primária e Saúde Pública da universidade, localizada no oeste da capital da Inglaterra, para compartilhar um pouco de sua história profissional e da iniciativa britânica inspirada no SUS. O clínico geral conta que as condições de Camaragibe não eram as melhores lá em 1999. "Eu trabalhava numa área rural com cerca de 5 mil residentes", contextualiza. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Harris classifica as primeiras experiências práticas que teve na Medicina como "desafiadoras". "Eu acabara de sair da universidade, não possuía confiança absoluta para falar português e tinha que fazer meu trabalho numa comunidade muito pobre do Nordeste brasileiro", lembra ele. "A clínica possuía apenas alguns poucos medicamentos enviados pela prefeitura. Era uma situação muito diferente da que estava acostumado no Reino Unido." Apesar de todas as dificuldades, Harris rapidamente percebeu algo primordial. "Apesar de todos os desafios e da falta de recursos, ainda assim podemos fazer coisas extraordinárias na atenção básica de saúde", diz. E, na visão dele, quem faz o elo dessa cadeia da saúde pública brasileira é um profissional chamado agente comunitário. Esses indivíduos representam a pedra fundamental da Estratégia Saúde da Família (ESF). Criado nos anos 1990, o programa se baseia na premissa de os tais agentes visitarem a casa das pessoas de uma determinada região de um bairro ou de uma cidade. O objetivo é entender e acompanhar os principais problemas de saúde que afligem aqueles indivíduos — e, claro, levar essas informações para os enfermeiros, auxiliares de enfermagem, médicos da família e clínicos gerais que estão na Unidade Básica de Saúde responsável por aquela localidade. Procurado pela reportagem, o Ministério da Saúde informou que o país conta atualmente com 49.172 equipes de Saúde da Família, que são responsáveis por atender 167 milhões de cidadãos cadastrados (ou 79% da população total) nos serviços de atenção primária, que são considerados pelo governo como "a porta de entrada para o SUS". "Quando cheguei, não tinha a mínima noção de como o sistema de saúde pública do Brasil estava baseado nesses agentes comunitários", confessa Harris. O médico inglês notou aos poucos como as informações obtidas por esses profissionais eram úteis no dia a dia. "Eles conhecem e compreendem o local onde atuam profundamente, nos mínimos detalhes", chama a atenção. "Os agentes comunitários são os primeiros a saber sobre qualquer mudança que acontece. E essas informações são usadas de forma inteligente, antes que os problemas se tornem grandes demais", complementa. Os agentes comunitários passam por cursos técnicos de formação organizados por prefeituras e outros órgãos em que aprendem sobre promoção de saúde e prevenção de doenças. Eles vão usar essas informações durante as entrevistas e conversas feitas nas visitas domiciliares. Se possuírem formação e tiverem a supervisão de um enfermeiro ou médico, eles também podem realizar exames simples, como medir a temperatura corporal, a glicemia e a pressão arterial das pessoas, ou averiguar se tratamentos medicamentosos contra doenças crônicas, como hipertensão e diabetes, estão sendo tomados. Questionado pela BBC News Brasil sobre episódios específicos que marcaram sua carreira, Harris lembra da história de um menino de 11 anos que foi parar no pronto-socorro. "Ele se queixava de dor de cabeça há vários dias. Infelizmente, o serviço de emergência só podia oferecer paracetamol e 'torcer' para que ele melhorasse", relata. Mas o trabalho de um agente comunitário mudou essa história. "Durante uma visita de rotina, o profissional notou que o menino continuava mal e nos alertou. Os olhos incharam e ele parecia cada vez pior", conta. Ao trazer o garoto para uma consulta, Harris notou duas coisas: a pressão arterial estava alterada e a criança apresentava um ferimento no pé. "Ao juntar todas essas peças, pude fazer o diagnóstico de glomerulonefrite pós-estreptocócica", completa Harris. Essa doença de nome esquisito é uma complicação que acomete os rins de pacientes que tiveram uma infecção pela bactéria Streptococcus. No caso desse episódio em Pernambuco, o médico suspeitou da condição ao somar as pistas do corte no pé (um indício de infecção bacteriana) com a pressão baixa e a dor de cabeça (que sugerem algo de errado nos rins). "Se ele não fosse diagnosticado a tempo, provavelmente teria falência renal e acabaria morrendo", diz Harris. "Mas a detecção rápida a partir do trabalho do agente comunitário literalmente salvou a vida daquele garoto." Após quatro anos em terras pernambucanas, Harris retornou ao Reino Unido em 2003 com pelo menos uma certeza na bagagem: era necessário replicar a ESF no serviço de saúde pública britânico. E uma tarefa dessa magnitude carrega uma série de simbolismos e significados. Um dos principais deles é o fato de a criação do SUS no Brasil lá no final dos anos 1980 ter sido inspirada no NHS do Reino Unido — e, agora, esses papeis se inverterem. "Mesmo antes de voltar, eu já sabia imediatamente que aprendera algo com os brasileiros e precisava compartilhar isso. Eu necessitava dividir e abrir os olhos dos especialistas sobre os agentes comunitários", pontua. "Todos precisam conhecer o modelo de sucesso do Brasil", recomenda o pesquisador. Mas a missão mostrou-se mais árdua do que ele imaginava. "Infelizmente, levei entre 10 e 15 anos para explicar a importância de um sistema como o ESF porque as pessoas daqui não estão acostumadas com a realidade brasileira e têm representações erradas sobre o país", lamenta ele. "Mas a verdade é que as realidades de Brasil e Reino Unido estão mais próximas do que se imagina. Há mais coisas que nos unem do que elementos que nos separam", acredita o médico. "É claro que não temos aqui doenças como leptospirose, esquistossomose e dengue. Mas também sofremos com diabetes, tuberculose, hipertensão, depressão, asma, diarreia…", compara. Harris avalia que um dos fatores que ajudou a acelerar processos e permitiu a instalação de uma ESF britânica preliminar foi a pandemia de covid-19. "Nós argumentamos que precisávamos de um sistema de agentes comunitários de saúde como o do Brasil para acompanhar as pessoas de perto", destaca. E assim a iniciativa ganhou vida: o projeto-piloto começou em Churchill Gardens Estate, um conjunto habitacional em Westminster, no centro de Londres. Segundo Harris, a ideia inicial era checar se as pessoas estariam dispostas a abrir as portas de suas casas para conversar com os agentes de saúde. "E logo nos seis primeiros meses nós percebemos que isso não apenas era possível, como também os moradores aceitavam muito bem a abordagem", informa. O médico calcula que, no primeiro ano e meio do projeto, cerca de 70% das moradias do bairro receberam ao menos uma visita dos profissionais da saúde. "Os agentes conseguem estabelecer uma relação com as pessoas e entender realmente quais são as necessidades dela. O ponto importante é que eles próprios moram ali, então se veem como parte daquela comunidade", destaca. Harris diz que a equipe fez alguns estudos para medir os resultados práticos da experiência. "Quando comparamos os lares que receberam as visitas com aqueles que não fazem parte do projeto-piloto, percebemos que o primeiro grupo participou mais de campanhas de vacinação e fez exames de rotina com maior frequência", conta. "Claro, não podemos provar que essa mudança está totalmente relacionada aos agentes de saúde. Mas é no mínimo sugestivo que isso tenha ocorrido a partir do início de trabalho desses profissionais", complementa. De acordo com o especialista, os funcionários do programa são capacitados para identificar e até resolver os principais problemas de saúde que estão acometendo cada família. A partir disso, os indivíduos se veem mais livres e empoderados para cuidar de outros aspectos importantes, mas que estavam negligenciados, como atualizar a carteirinha de vacinação ou fazer os exames que detectam um câncer em estágio precoce. Aliás, o treinamento oferecido aos agentes comunitários britânicos foi basicamente o mesmo dado aos profissionais brasileiros. Mas Harris acredita que os efeitos práticos de um projeto como o ESF vão além do aumento na taxa de imunizações ou de checkups. "Em Churchill Gardens Estate, por exemplo, nós observamos que as pessoas moravam nas mesmas casas há muitos anos, mas não conheciam os vizinhos e nem se falavam. Porém, com as visitas dos agentes comunitários de porta em porta, houve uma mudança de atmosfera. Os moradores passaram a conversar mais e a marcar programas em conjunto, como um café", acrescenta. O médico entende que a estratégia criou uma espécie de "coesão social" — algo muito parecido ao que ocorreu no próprio Brasil nas regiões atendidas há décadas pelo ESF. O projeto-piloto já foi expandido para outras áreas de Londres e deve começar a ser aplicado em bairros de locais como Yorkshire e Liverpool. Harris aponta que os países mais desenvolvidos, como o próprio Reino Unido, não prestam muita atenção ao que é feito em nações em desenvolvimento. "Nossa tendência é acompanhar de perto o que acontece em lugares como Estados Unidos, Alemanha, Austrália ou Nova Zelândia e praticamente ignorar as políticas dos países da América Latina, da África e do Sudeste Asiático. Mas não há nenhuma boa razão para que isso seja assim", protesta. Para ele, o trabalho dos agentes comunitários de saúde é um exemplo desse cenário. "A ESF do Brasil é um programa altamente custo-efetivo e ajuda a resolver os problemas mais comuns ao acompanhar as famílias de uma forma holística no lugar mais importante de todos: a casa delas", afirma Harris. O especialista calcula que cerca de 40% das necessidades de saúde das pessoas podem ser atendidas pelos agentes comunitários durante as conversas e as visitas domiciliares. "Eles podem falar das vacinas, ficar atentos a sintomas de doenças crônicas [como hipertensão e diabetes], lidar com feridas, sugerir a realização de exames de rotina ou simplesmente checar se a pessoa está tomando os remédios corretamente", exemplifica. Por fim, o pesquisador do Imperial College destaca como, em determinadas situações, soluções simples e baratas em saúde podem trazer resultados extraordinários. "É claro que temos espaço para tecnologias sofisticadas, que expandem as fronteiras da Medicina", opina. "Mas algumas vezes eu sinto que vamos além do necessário e nos esquecemos que as intervenções mais básicas podem fazer toda a diferença", conclui ele.
2023-06-08
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c8vyp764d18o
brasil
Qual é a origem do feriado de Corpus Christi?
Muitos brasileiros usam a data de Corpus Christi, celebrada nesta quinta-feira (08/6), como um dia para viajar ou descansar. O que poucos sabem é que não se trata de um feriado nacional, mas sim de ponto facultativo. Ou seja, na maioria das cidades, os empregadores não têm obrigação de liberar os funcionários. Cada empresa decide se vai ou não paralisar os serviços por um dia. A regra é outra em cidades que aprovaram leis tornando Corpus Christi um feriado municipal. Para a alegria de quem se programa todo ano para tirar o dia de folga, muitos municípios optaram por isso. É o caso, por exemplo, do Rio de Janeiro (RJ), São Paulo (SP), Maceió (AL) e Vitória (ES). No Distrito Federal, por outro lado, esta quinta-feira será dia de ponto facultativo. E "emendar" a sexta-feira para viabilizar uma viagem ou um descanso mais longo depende, também, da boa vontade de cada empresa. Significa, em latim, corpo de Cristo. É uma data móvel celebrada pela Igreja Católica sempre 60 dias depois do domingo de Páscoa ou na quinta-feira seguinte ao domingo da Santíssima Trindade. Na tradição católica, esta quinta-feira é considerada o dia no qual Jesus Cristo instituiu o sacramento da eucaristia. Fim do Matérias recomendadas De acordo com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), no Corpus Christi se celebra a "presença real de Jesus Cristo no pão e no vinho". A festa foi instituída pelo papa Urbano 4º, no dia 8 de setembro de 1264 - ele publicou uma bula papal sobre o tema, chamada de "Transiturus", instituindo a data e concedendo indulgências às pessoas que fossem à missa neste dia. Segundo alguns biógrafos, o papa medieval incumbiu o filósofo e teólogo italiano São Tomás de Aquino (1255-1274) de redigir um rito ("ofício") para a celebração da data. Urbano, porém, morreu poucos anos após instituir a festa, em outubro do mesmo ano - o que acabou retardando a adoção das celebrações. A comemoração de Corpus Christi só "pegaria" para valer décadas depois, quando a data foi reafirmada pelo Concílio de Vienne, em 1311. Uma forma tradicional de celebrar é com uma procissão em alusão à caminhada do "povo de Deus" em busca da Terra Prometida. Em Portugal, o dia é chamado também de Corpo de Deus, e é comemorado às vezes com procissões pelas ruas - que também acontecem em algumas cidades do Brasil. Em algumas cidades brasileiras, há o costume de adornar as ruas com "tapetes" feitos de serragem colorida e outros materiais.
2023-06-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51q2391gq9o
brasil
Marco temporal: o que diz líder de povo indígena que pode perder terras
A Terra Indígena (TI) Limão Verde, baseada em Aquidauana (MS), chegou a um estágio que muitos povos originários não conseguiram atingir até hoje: em 2003, teve sua demarcação homologada. Mas o status durou pouco mais de uma década: no final de 2014, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) anulou o decreto de homologação da terra indígena, respondendo a um recurso apresentado pelo proprietário de uma fazenda vizinha que disputa a área com os indígenas e que havia sido derrotado em instâncias inferiores. Porém, depois da decisão da turma, a batalha jurídica ganhou um novo capítulo em 2018: o então ministro Celso de Mello decidiu, monocraticamente, colocar o caso para julgamento do plenário do STF, após recurso do Ministério Público Federal (MPF) questionando a decisão de 2014. O ministro considerou que o STF não tinha uma posição consolidada sobre a tese do chamado "marco temporal". No entanto, o ministro André Mendonça pediu vista para analisar o caso com mais tempo. O prazo máximo para liberar novamente o caso para julgamento é de 90 dias úteis. Fim do Matérias recomendadas Além do processo com repercussão geral, a própria batalha judicial envolvendo a Limão Verde e a fazenda vizinha à aldeia estava também na pauta desta quarta-feira no Supremo. Ambos casos giram em torno da tese do marco temporal: a interpretação jurídica de que terras indígenas posteriores à promulgação da Constituição de 1988 só podem ser demarcadas se conseguirem comprovar que já ocupavam esses locais na data (5 de outubro de 1988). O plenário do STF vai julgar se essa interpretação é compatível com os direitos constitucionais. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A homologação da Limão Verde foi anulada com base no marco temporal. Moni Terena, líder da aldeia Limão Verde, afirmou à BBC News Brasil que a anulação foi um "baque" para a comunidade. "A gente não esperava que pudesse ser mexida essa ação [de homologação]. Para a gente, foi um baque, achávamos que já estava tudo certo", disse a líder em entrevista por chamada de vídeo na terça-feira (06). "Desde 2014, isso tirou a nossa paz. É uma coisa que nos atormenta, é uma tese que traz uma preocupação a respeito do extermínio dos povos indígenas, não só da nossa comunidade", completou, referindo-se à tese do marco temporal. Moni fala em "extermínio" por argumentar que, sem terras suficientes e protegidas, os povos originários ficariam sem meios de sobrevivência e mais sujeitos a ameaças externas. "A Limão Verde está com uma preocupação e, ao mesmo tempo, com uma esperança muito grande de que isso seja logo definido [no STF]. A gente gostaria que o julgamento fosse definitivo. Então a gente fica preocupada e, ao mesmo tempo, esperançosa." A TI Limão Verde, conforme a homologação de 2003, tem aproximadamente 5 mil hectares. Se o marco temporal for confirmado, possivelmente a comunidade ficaria com menos da metade, cerca de 2 mil hectares de terra — que foram reservadas pelo governo do Mato Grosso (o Mato Grosso do Sul ainda não tinha sido criado) em 1928, portanto bem antes da Constituição de 1988. A disputa judicial pelas terras foi iniciada pelo proprietário da Fazenda Santa Bárbara, o advogado Tales Oscar Castelo Branco. No processo, o proprietário argumenta que a terra indígena homologada se sobrepõe à fazenda indevidamente, pois a área não seria tradicionalmente ocupada por indígenas. "O Cel. João de Almeida Castro (primeiro proprietário da gleba em litígio) apossou-se no final do século 19, posse regularizada em 1914, graças a título oneroso a ele outorgado pelo então Estado de Mato Grosso, e que, de lá até hoje, sempre foram transferidas regularmente de proprietário a proprietário, sem contestação de quem quer que seja", diz um trecho da petição inicial, assinada por Castelo Branco e mais três advogados. O decreto estadual que reservou as terras em 1928 não cita nominalmente os indígenas, mas há um consenso de que a iniciativa os favoreceu e consolidou sua presença ali. A petição de Castelo Branco reconhece isso, ao afirmar: "A Aldeia Limão Verde, formada por volta de 1920, já se encontrava delimitada e reconhecida como território indígena, e contava com quase 2.000 ha (dois mil hectares), quando a Funai, em 1996, resolveu expandi-la por meio de processo administrativo de demarcação no qual englobou a Fazenda Santa Bárbara." Acionando a tese do marco temporal, a defesa do proprietário da Fazenda Santa Bárbara afirmou que nunca foi plenamente comprovada nem a ocupação da área em 1988 e nem o chamado "renitente esbulho" — que é uma outra interpretação, a qual aceita como motivo legítimo para a reivindicação de terras a comprovação que os indígenas estavam lutando por elas em 1988, mesmo que não tivessem conseguido ocupar essas áreas. Segundo a defesa de Tales Oscar Castelo Branco, o "renitente esbulho" comprovado no caso de Limão Verde seria insuficiente e formalizado "apenas por dois índios terena". As evidências de renitente esbulho neste caso foram caracterizadas pela defesa como "súplicas genéricas, não direcionadas a quem quer que fosse, sem qualquer menção, direta ou indireta, à Fazenda Santa Bárbara, nas quais pleiteavam simplesmente a expansão da Aldeia Limão Verde". A BBC News Brasil tentou contato com Castelo Branco por meio de seu escritório em São Paulo, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem. Moni Terena, por sua vez, afirma que, nos últimos anos, teriam sido coletadas várias provas da ocupação e das reivindicações do seu povo pela terra — por exemplo, documentos que estavam sob a guarda de anciões. De acordo com a líder indígena, a área que está em disputa judicial tem sido usada apenas para a plantação de mandioca, feijão e milho, mas não para moradia, por medo de ameaças e pela falta de infraestrutura. O projeto de instalar ali uma caixa d'água, por exemplo, não foi à frente por conta da incerteza com o processo judicial, afirma ela. Ainda segundo a líder, representantes do governo federal teriam afirmado à comunidade que eles ainda poderiam usufruir da terra, por exemplo com plantações, mesmo com a anulação da demarcação no STF. Moni Terena argumenta que a confirmação da área da terra indígena em 5 mil hectares é necessária para suprir as demandas por moradia e por áreas para agricultura familiar. "Nossa aldeia tem em torno de 900 famílias e já está muito pequena", diz Moni, nascida em Limão Verde e neta de Amâncio Gabriel, que foi cacique da aldeia. Mas, depois da guerra, intensificou-se o processo de colonização da região de Aquidauana, com a constituição de vilas e propriedades privadas. Mesmo após a multiplicação de propriedades na região, os indígenas terena continuaram trabalhando nas fazendas, acrescentou Eloy Amado. Defensores dos povos originários e pesquisadores afirmam que os indígenas de Limão Verde foram expulsos das áreas hoje em disputa em 1953, sendo impedidos de ocupá-las para habitação, mas continuaram praticando a caça e a coleta ali. Com isso, argumentam que esse cenário impossibilita a comprovação de ocupação da terra em 1988, como exigiria o marco temporal, pois os indígenas foram impedidos de viver ali décadas antes; e, ao mesmo tempo, demonstra como esses locais continuaram sendo fundamentais para sobrevivência do povo, que continuou realizando ali atividades como a caça. A tese do marco temporal, que pode afetar a comunidade no Mato Grosso do Sul e várias outras, foi impulsionada em um julgamento de 2009 no STF, sobre a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Na ocasião, foi discutido o caso em particular — mas, depois, o "marco temporal" foi incorporado como pauta pela bancada ruralista no Congresso e aplicada em diversas decisões judiciais pelo Brasil. Em nota enviada à reportagem, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que defende a tese do marco temporal, afirmou que "não é contrária aos direitos dos povos originários". "[A FPA] Defende o direito de propriedade e a segurança jurídica, quando um direito não pode se sobrepor aos de brasileiros que pagaram por sua terra e são retirados sem nenhum tipo de indenização", afirmou a entidade.
2023-06-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw5ge2zd791o
brasil
'O Pequeno Príncipe', 80 anos: as aventuras de Antoine de Saint-Exupéry no Brasil
"Por que você não escreve um conto infantil?". A ideia partiu de Eugène Reynal, um dos sócios da Reynal & Hitchcock, a editora de Antoine de Saint-Exupéry nos EUA. Até então, o escritor francês só tinha publicado livros para adultos e todos sobre aviação: O Aviador (1926), Correio Sul (1929) e Voo Noturno (1931). Exupéry estava em Nova York para receber o National Book Award por Terra dos Homens (1939) quando ouviu a proposta. Em um restaurante, fazia esboços de um bonequinho no guardanapo. O dom do desenho era algo que herdara da mãe, Marie. A toda hora, e em qualquer lugar, gostava de desenhar em cartas, cadernos, envelopes… Ideia aceita, Exupéry alugou uma mansão em Long Island, nos arredores de Nova Iorque, para dar início ao projeto. Fim do Matérias recomendadas Foi lá, no verão de 1942, que escreveu e ilustrou boa parte de O Pequeno Príncipe (1943). Costumava varar a madrugada escrevendo – por vezes, foi flagrado pela mulher, Consuelo, cochilando sobre a escrivaninha. Uma de suas inspirações para O Pequeno Príncipe foi o acidente que sofreu no dia 30 de dezembro de 1935. Exupéry e seu mecânico, André Prévot, participavam de um raide aéreo entre Paris e Saigon, atual Ho Chi Minh, no Vietnã. Quem conseguisse terminar o percurso em menos de 98 horas e 52 minutos, recorde alcançado pelo piloto André Japy em janeiro daquele ano, levava para casa um prêmio de 150 mil francos - uma bela soma em valores da época na moeda francesa que já não existe mais. Por volta das 2h45 do dia 30, o Caudron Simoun modelo C630 que Exupéry pilotava sofreu uma pane a 270 km/h e despencou no deserto da Líbia. Apesar de não terem sofrido ferimentos graves, piloto e mecânico tiveram de vagar por três dias pelo Saara. Só não morreram de sede porque foram resgatados por beduínos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Apenas três anos depois, em 16 de fevereiro de 1938, Exupéry sofreu outro acidente – o mais grave de sua carreira como piloto. E, mais uma vez, em companhia de André Prévot, seu fiel escudeiro. Ao participar do raide Nova York-Terra do Fogo, seu novo avião, um Caudron Simoun modelo C635, que ele comprou com o dinheiro do seguro, caiu na cabeceira da pista tão logo decolou da Guatemala. Motivo: o tanque estava cheio demais. Por sorte, a aeronave não explodiu. Mesmo assim, Prévot quebrou uma perna e Exupéry, além de sofrer oito fraturas, permaneceu em coma por oito dias e, por pouco, não precisou amputar o braço esquerdo. As peripécias de Exupéry como aviador não pararam por aí. Entre outras façanhas, salvou a vida de um amigo, o piloto Marcel Reine, que tinha sido sequestrado por mouros no Marrocos, e resgatou outro, o também aviador Henri Guillaumet, que se perdera nos Andes, durante uma tempestade de neve, no dia 13 de junho de 1930. "Cara, vou te dizer: o que eu fiz, bicho nenhum teria feito!", confidenciou Guillaumet ao ser reencontrado depois de cinco dias. A frase foi incluída em Terra dos Homens. No Brasil, o piloto francês também passou por apuros. O pior deles foi em Florianópolis, em 16 de abril de 1930. O então piloto da Aéropostale, correio aéreo francês, fazia um voo inaugural entre Buenos Aires e Rio de Janeiro – em vez de cartas, transportava passageiros. Da capital argentina, o Laté-28 trouxe oito jornalistas. Depois de fazer escala em Porto Alegre, a aeronave pousou em Florianópolis e, de lá, seguiria para a capital federal de então. "Tentou decolar, mas não conseguiu. O temporal não deixou e ele teve que voltar. Pernoitaram em Florianópolis", relata Mônica Cristina Corrêa, doutora em Língua e Literatura Francesa pela Universidade de São Paulo (USP), que assina a tradução e o posfácio de O Pequeno Príncipe (Companhia das Letrinhas, 2015). "Exupéry escapou ileso de acidentes inacreditáveis. Viu a face da morte diversas vezes. Era um piloto muito habilidoso e responsável." Ao todo, a viagem durou 12 horas e incluiu, entre outras cidades, Montevidéu, no Uruguai, e Pelotas e Santos, no Brasil. Quando finalmente chegaram ao Rio, os oito passageiros tiveram direito a um voo panorâmico. Exupéry não sofreu nenhum acidente grave no Brasil. Sempre que ouviam o ronco dos motores, pescadores de vilarejos como Praia Grande, em Santos, ou Campeche, em Florianópolis, a qualquer hora do dia ou da noite, acendiam lampiões e iluminavam a pista de aterrissagem. “Ele só sabia escrever sobre o que tinha vivido. Por isso, há tantos elementos biográficos em O Pequeno Príncipe. O acendedor de lampiões é um deles”, explica a pesquisadora. Com um desses acendedores de lampiões, inclusive, Exupéry chegou a fazer amizade. Trata-se do pescador Rafael Manoel Inácio, o Seu Deca. A amizade entre o piloto e o pescador está contada no livro Deca e Zé Perri (2000), escrito por Getúlio Manoel Inácio. Entre outras curiosidades, o filho de Seu Deca explica que, por causa do sobrenome de difícil pronúncia, os pescadores da região apelidaram Exupéry de “Zé Perri”. E mais: que seu pai ensinou o visitante a pescar, a preparar os peixes e a comê-los com beiju, uma iguaria feita à base de tapioca. Seu Deca morreu em 1993, aos 83 anos. Catarinense de Criciúma, Zé Dassilva cresceu ouvindo muitas dessas histórias. Adulto, escreveu e dirigiu Dás Um Banho, Zé Perri!, curta-metragem de ficção baseado na passagem do autor de O Pequeno Príncipe por aquelas bandas. Nele, um desenhista de Floripa, interpretado por Marcos Veras, convence o piloto francês, vivido por Rodrigo Fagundes, a realizar o sonho da garota por quem é apaixonado: dar uma volta de avião. Construir uma réplica em tamanho natural de um Breguet 14 foi a parte mais difícil da produção. “O filme teve vários desafios, como ir até uma ilha deserta e torcer para não chover, já que a maior parte das cenas eram externas. Mas, o principal mesmo foi construir o avião”, avalia o cineasta que, para criar o primeiro modelo cenográfico do cinema nacional, contou com a ajuda da diretora de arte Loli Menezes e do cenógrafo Michel Martins. “Quase 100 anos depois, o Breguet 14 que costumava pousar nas areias do Campeche estava lá de novo! As pessoas paravam para tirar fotos e contar histórias de parentes que conheceram Exupéry e outros aviadores”. Santos e Florianópolis eram apenas duas das 11 escalas da Aéropostale no Brasil. As demais eram: Natal, Recife, Maceió, Salvador, Caravelas, Vitória, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Pelotas. As cartas vinham de Toulouse, no sul da França, onde ficava a sede da companhia, e seguiam, em pesados malotes, até São Luís, no Senegal. Do norte da África, cruzavam o Atlântico em navios até Natal. Da capital potiguar, os pilotos viajavam até Pelotas. E, então, prosseguiam viagem até Santiago, no Chile, a última escala na América do Sul. Em cada uma das escalas, havia a casa de pilotos, conhecida como “popote” (“rancho”, em francês), local de refeição e pernoite; a casa de rádio, o hangar e as pistas de pouso e decolagem. As agências de correio, onde as pessoas deixavam cartas e encomendas, ficavam no centro das cidades. Como chefe da Aéropostale na Argentina, Exupéry veio incontáveis vezes ao Brasil entre 12 de outubro de 1929, quando desembarcou em Buenos Aires, e fevereiro de 1931, quando retornou definitivamente à Paris. No Brasil, o “poeta da aviação” gostava de passar alguns dias na casa que Marcel Reine comprou em Itaipava, distrito de Petrópolis, na região serrana do Rio. “Quando tiravam folga, os pilotos da Aéropostale não voltavam para a França. Traziam quem eles quisessem para o sítio. Ouviam discos, bebiam vinhos, andavam a cavalo… Era a Disneylândia deles”, revela José Augusto Wanderley, o atual dono da casa, batizada pelo próprio Marcel de La Grand Vallée (“O Grande Vale”). Desde 2016, está aberta à visitação, mediante agendamento telefônico. Por mês, La Grand Vallée recebe uma média de 100 visitantes. Para adultos, Wanderley relata histórias da aviação francesa. “Os primeiros modelos, feitos de madeira, eram bem frágeis. De metal, só mesmo o motor de automóvel. A cada seis decolagens, uma não chegava ao seu destino. Era a pré-história da aviação”, define. Para crianças, recorda “causos” engraçados de Antoine de Saint-Exupéry e seu livro mais famoso. “Certa vez, um repórter do jornal argentino Clarín perguntou à viúva Consuelo do que seu marido gostava mais. Ela respondeu: ‘90% de aviões, 10% do resto – eu, inclusive’”, cai na risada. Entre outras atrações, o anfitrião exibe, orgulhoso, seu acervo particular com mais de 40 edições de O Pequeno Príncipe, de esperanto a braile. Parece muito, e é, mas um colecionador suíço, Jean-Marc Probst, tem mais de 3,2 mil exemplares do best-seller. Já houve quem parasse o carro na frente da casa de José Augusto Wanderley e quisesse se hospedar lá. “Expliquei que não era pousada ou hotel. Mas, não adiantou. O sujeito chegou a tirar a bagagem do porta-malas”, diverte-se. Uma curiosidade: se Florianópolis tem o Morro do Lampião no Campeche, o Rio de Janeiro tem a Pedra do Elefante em Petrópolis. Reza a lenda que a montanha de 1.870 metros de altitude teria inspirado o escritor francês a criar a alegoria da jiboia que engoliu o elefante. Não faltam, aliás, supostas inspirações para O Pequeno Príncipe espalhadas pelo país. Em Natal, a primeira das 11 escalas da Aéropostale no Brasil, um baobá de 19 metros de altura por seis de diâmetro teria inspirado o escritor a incluir a árvore de origem africana em seu livro mais famoso. O Baobá do Poeta, como é conhecido na capital potiguar, fica na rua São José, no bairro da Lagoa Nova. No dia 7 de maio de 2009, por ocasião de sua visita ao Brasil, François d’Agay, o sobrinho e afilhado de Exupéry, visitou o famoso baobá. “Não há evidências da passagem de Exupéry por Natal. Só rumores”, afirma Mônica. Dos cinco irmãos da família Exupéry, a única que deixou herdeiros foi Gabrielle: François, Marie-Madeleine, Mireille e Jean. São eles que cuidam dos direitos autorais da obra do tio famoso. No Rio, o escritor costumava se hospedar no Itajubá, na rua Álvaro Alvim, na Cinelândia. Numa de suas estadias, anotou trechos de Voo Noturno em um papel timbrado do hotel. Em Santos, levou o pequeno Carlos Cirilo, então com quatro anos, para passear, no colo da mãe, pelos céus da Baixada Santista. Foi a avó do garoto, aliás, que vendeu o terreno para a Aéropostale construir o antigo aeródromo. Quando cresceu, não deu outra: Cirilo realizou o sonho de ser piloto. Morreu em 2019, aos 96 anos. Exupéry não viveu para ver o lançamento de O Pequeno Príncipe em sua terra natal. Nos EUA, The Little Prince foi lançado em 6 de abril de 1943. O cineasta Orson Welles chegou a fazer o esboço de um roteiro para o cinema, mas desistiu do projeto depois que Walt Disney se recusou a participar dele. Na França, Le Petit Prince só chegou às livrarias, pela Editora Gallimard, em 1946. No dia 31 de julho de 1944, durante a Segunda Guerra, Exupéry fez a última decolagem de sua vida. Partiu de uma base aérea na Córsega, por volta das 8h30, para uma missão de reconhecimento. Nunca mais voltou. À época, a França estava ocupada pelos nazistas. Por cinquenta e quatro anos, um mistério pairou no ar: o que teria acontecido ao piloto-escritor? Teria sofrido um acidente? Sido vítima de um ataque aéreo? Ou tirado a própria vida? O enigma começou a ser decifrado em 1998, quando Jean Claude Bianco, um pescador da Marselha, no sul da França, encontrou, em sua rede, um bracelete prateado com o nome do piloto gravado no verso. Mais seis anos se passaram até que, em 2004, o mergulhador francês Luc Vanrell, seguindo as indicações do pescador, localizou os destroços do caça Lockheed Lightning P-38 que Exupéry pilotava no dia do acidente. O corpo do escritor nunca foi encontrado. Ele e Consuelo não tiveram filhos. Em março de 2008, Horst Rippert, encaixou a última peça do quebra-cabeça. O ex-piloto alemão de 88 anos admitiu que, a bordo de um Masserschmidt ME-109, foi ele que, na tarde de 31 de julho de 1944, por volta de 13h, efetuou os disparos que derrubaram o caça de Antoine de Saint-Exupéry no Mar do Mediterrâneo. O piloto-escritor voava a 2 mil metros quando, por medida de segurança, o ideal seria 10 mil. “Estava voando baixo e irregular. Provavelmente, teve algum problema. Falta de oxigênio, por exemplo”, especula a pesquisadora. Quando teve a certeza de que fora ele o responsável pela morte do escritor francês, Rippert ficou mal. E pediu para conhecer François d’Agay. Queria pedir desculpas à família. O encontro aconteceu em Wiesbaden, na Alemanha, em 20 de fevereiro de 2010. “Se soubesse que era ele, não teria atirado”, pediu perdão, com lágrimas nos olhos. O mais curioso é que Rippert só se tornou piloto por influência de Exupéry. Quando adolescente, devorou todos os seus livros. Rippert morreu em 19 de abril de 2013, aos 91 anos. O Pequeno Príncipe chegou ao Brasil em 1952. O primeiro a traduzi-lo foi Dom Marcos Barbosa. De lá para cá, houve outras traduções: de Mário Quintana a Ferreira Gullar. A mais recente delas, para a Editora Rocco, é de Frei Betto. O frade dominicano leu O Pequeno Príncipe pela primeira vez aos 13 anos quando ingressou na Juventude Estudantil Católica (JEC), em Belo Horizonte. “Fiquei impactado pela leitura e, a partir dela, li toda a obra de Saint-Exupéry. Soou-me como um misto de Voltaire, pelos valores humanos, e Júlio Verne, graças às viagens interplanetárias”, explica o religioso. “Traduzir é sempre um desafio. A maior dificuldade é resistir à tentação de ‘falar’ o que o autor não disse”. O Pequeno Príncipe já foi traduzido para mais de 250 idiomas, como persa, árabe e chinês. Estima-se que seja o segundo livro mais lido do mundo – atrás somente da Bíblia. Em domínio público desde 2015, ganhou incontáveis edições: de bolso e capa dura, versão para colorir, literatura de cordel... E deu origem a inúmeros títulos, como A Volta do Pequeno Príncipe (1999), de Jean-Pierre Davidts; O Retorno do Jovem Príncipe (2008), de A. G. Roemmers; O Pequeno Príncipe Preto (2020), de Rodrigo França… Um dos mais curiosos é A Namorada do Pequeno Príncipe (2018), de Mário de Lima. O livro é inspirado no suposto affair entre Exupéry e Onília Ventura, uma jovem filha de pescadores, em 1930. O namoro, com direito a pedido de casamento recusado e tudo, teria ocorrido na Península de Maraú, na Bahia. Onília morreu em 2013. “Acredito, sinceramente, que o romance tenha acontecido: Onília nunca mais teve outro relacionamento e dizia que ‘Zuperri’ era o grande amor de sua vida”, observa o autor. “Além disso, nem as irmãs Ventura – Onília e sua irmã mais jovem, Aurora –, nem qualquer outro membro da família buscou algum benefício com essa história”. Maior especialista do Brasil na vida e na obra de Antoine de Saint-Exupéry, Mônica Cristina Corrêa lembra que, a princípio, os editores do livro torceram o nariz quando descobriram que o personagem-título morria no final. “Uma história para crianças nunca deve acabar mal”, alegaram. Mas, Exupéry insistiu. E explicou que as crianças aceitam tudo o que é natural. “E a morte é natural”, argumentou. Ele próprio perdeu o pai, Jean, quando tinha quatro anos. E um de seus quatro irmãos, François, quando tinha 17. “Atribuo o sucesso e a longevidade do livro ao seu tema principal. O que é universal a todos os homens? A morte. Ninguém escapa dela. Embora seja inexorável, Exupéry ensina que podemos dar sentido à vida”, filosofa. Mônica Cristina Corrêa é a curadora da exposição Pegadas do Pequeno Príncipe. Depois do Shopping Paulista, onde fica até julho, a exposição comemorativa segue para o Shopping Rio Sul, no Rio de Janeiro, em outubro.
2023-06-06
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brasil
'Menos juridiquês': o projeto que defende linguagem simples para Justiça ser mais democrática
Inane. Cônjuge supérstite. Inobstante. Hialinamente. São palavras incomuns, desconhecidas, complicadas e que podem ser substituídas por sinônimos bem mais simples: "cônjuge supérstite" é o mesmo que viúvo, "hialinamente" quer dizer "claramente". Apesar de tudo isso, não é raro encontrá-las em documentos de processos judiciais - em textos de advogados, promotores e decisões de magistrados. É o famoso "juridiquês" - uma linguagem desnecessariamente complicada usada com frequência em documentos judiciais. O Direito, como toda área de conhecimento, tem termos técnicos conhecidos por quem é da área e não pelos leigos. O problema não uso desses termos técnicos, mas a forma excessivamente rebuscada de escrever - nenhuma dessas palavras citadas no início do texto, por exemplo, é um termo técnico-jurídico necessário. Fim do Matérias recomendadas Pensando em aproximar o Judiciário da sociedade, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) está promovendo uma iniciativa bem sucedida do Tribunal de Justiça da Bahia para ampliar o uso de uma linguagem mais simples na Justiça e criar formas de traduzir as decisões para o público em geral. "Existe uma necessidade do Judiciário se aproximar mais da sociedade", diz o conselheiro do CNJ Mário Maia. "E existem muitas formas de tornar a Justiça mais acessível - a linguagem é uma delas." "Como primeira forma de contato, eu entendo que linguagem pode aproximar ou afastar. Da forma como ela normalmente se apresenta, é muito difícil de compreender." Segundo ele, a ideia da iniciativa não é acabar com o o uso dos termos técnicos, que são necessários, mas incentivar o uso de uma linguagem mais direta e também criar formas de "traduzir" o processo para quem não é da área. "Isso não desmerece o vernáculo jurídico, que vai continuar existindo, mas explicar as decisões para as pessoas não tiveram a oportunidade de aprendê-lo", diz Maia. "Não é que ele tenha que ser combatido. Ele deve ser preservado no ambiente jurídico, na academia. Existem tradições conservadas que carregam um valor histórico." Mas manter uma tradição não significa rejeitar o novo, diz ele. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O principal ponto da iniciativa é incentivar que os tribunais de Justiça disponibilizem uma explicação em linguagem simples de certas decisões, sentenças ou portarias a depender do perfil de pessoas que elas afetem. "Uma decisão que afeta empresas, que têm equipes jurídicas especializadas, não precisa disso. Mas uma decisão sobre aposentadoria, por exemplo, ou que afete o regime de trabalho do trabalhador rural, precisa ser acessível", defende Maia. Essa "tradução" seria produzida pelas próprias varas tanto em forma de texto como em forma de áudio - acessível por QR Code, por exemplo - pensando tanto em pessoas com deficiência visual quanto em pessoas que não sabem ler. "Para muitas pessoas é constrangedor ter que dizer que é analfabeto e pedir para alguém ler", diz Maia. "Disponibilizar uma explicação em áudio é uma forma de inclusão. O acesso à Justiça gera a noção de pertencimento, a pessoa começa a se sentir cidadã, detentora de direitos, de proteção." A iniciativa beneficia inclusive pessoas com alta escolaridade de outras áreas do conhecimento, segundo o conselheiro. Afinal, a dificuldade de entender decisões pode acontecer mesmo que as peças do processo estejam escritas de forma bastante objetiva, com sentenças na ordem direta e linguagem clara, já que o uso de certos termos técnicos é inevitável. "Se eu ler um comunicado de uma associação médica eu também não vou entender", diz Maia. "Então, essa iniciativa é algo que beneficia todo mundo." A iniciativa, no entanto, depende de cada tribunal - é uma recomendação do CNJ, não uma resolução, que tornaria seus termos obrigatórios. "É algo que pode ser iniciativa do tribunal, do magistrado ou mesmo da secretaria da vara, de acordo com o perfil de pessoas. Há locais onde seria importante, por exemplo, disponibilizar o conteúdo em linguagens de povos indígenas. Muitas vezes a gente esquece que o português não é a única língua falada no Brasil", diz Maia. A experiência do Tribunal de Justiça da Bahia, afirma, mostra que a iniciativa não gera gastos extras. "Sempre tem alguma resistência das pessoas, mas o debate é bom, ajuda a conscientizar e é uma forma da gente escutar os questionamentos", diz.
2023-06-06
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c7294ezjrnro
brasil
Governo intervém em fábrica de vacinas após rombo milionário e 'obra sem fim'
A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) anunciou na segunda-feira (5/6) que assinou um acordo para retomar a produção nacional da vacina BCG, que combate a tuberculose, e intervir na Fundação Ataulpho de Paiva (FAP), no Rio de Janeiro (RJ) — instituição filantrópica e única produtora do imunizante no Brasil. Desde 2016, a produção e distribuição do imunizante da FAP está irregular devido a interdições da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). No ano passado, por exemplo, o Ministério da Saúde pediu aos Estados o racionamento da vacina, "dada a disponibilidade limitada no estoque nacional em razão de dificuldades na aquisição deste imunobiológico." Segundo um dos laudos da Anvisa a que a BBC News Brasil teve acesso, a produção na atual fábrica da FAP, no bairro de São Cristóvão, zona norte do Rio, "apresenta risco à saúde da população brasileira" por não atender às boas práticas de produção de imunobiológicos. A intervenção da Fiocruz na FAP, assumindo parte da direção e do conselho deliberativo da entidade, é mais um capítulo de uma longa trajetória de problemas na produção nacional dessa que é uma das primeiras vacinas dada a recém-nascidos no Brasil. A FAP também fabricava, antes das interdições, a Imuno BCG, usada no tratamento de câncer de bexiga. Fim do Matérias recomendadas Prometida como solução para o abastecimento da BCG no Brasil, a nova fábrica começou a ser construída em 1989 e nunca produziu sequer uma dose do imunizante. A Fiocruz afirmou que vai “prestar auxílio para que a fábrica de Xerém seja finalmente concluída dentro de 2 a 3 anos.” Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Com essa demora de mais de três décadas, o próprio Ministério da Saúde recusou ao menos duas prestações de contas da entidade às quais a reportagem teve acesso, pedindo a devolução integral aos cofres públicos de ao menos R$ 12,4 milhões — parte desse dinheiro foi cobrada pessoalmente do ex-presidente da FAP, o médico patologista Germano Gerhardt Filho, e parte da própria fundação. Os valores seriam usados para a aquisição e a instalação de equipamentos na nova fábrica. No entanto, os dois relatórios do Ministério da Saúde constataram uma série de problemas na prestação de contas da FAP sobre como os recursos públicos foram utilizados em Xerém. A pasta apontou que, em alguns casos, a FAP comprou apenas “parcialmente” os equipamentos para os quais recebeu os recursos para adquirir. Além disso, o ministério afirmou que as prestações de conta foram entregues com atraso pela fundação. “Ao analisar toda documentação apresentada, assim como os pronunciamentos da área técnica responsável e os esclarecimentos prestados, ficou demonstrado a forma temerária em que todo o processo foi conduzido, arrastando-se por anos”, concluiu o ministério no documento. Com as mudanças anunciadas pela Fiocruz em junho, Gerhardt Filho deixou a presidência da FAP, mas permanecerá no conselho deliberativo. Assumiram a diretoria Luiz Roberto Castello Branco, que anteriormente era diretor científico da fundação; e Artur Couto, da Fiocruz. Segundo a Fiocruz, a nova diretoria vai começar a negociar as dívidas da FAP e vai apresentar, em até 30 dias, um plano de recuperação institucional e econômico-financeira. A BBC News Brasil questionou a FAP sobre as mudanças na gestão e as discrepâncias na prestação de contas, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem. O Ministério da Saúde não respondeu se o valor apontado em seu parecer foi devolvido pela fundação e por seu antigo presidente. “Os convênios celebrados junto à Fundação Ataulpho de Paiva se encontram em avaliação no âmbito do Ministério da Saúde, que considera medidas administrativas passíveis de aplicação para a finalização dos instrumentos”, afirmou a assessoria de imprensa da pasta. “O Ministério da Saúde mantém o compromisso com a defesa do interesse público, do erário e do bom atendimento à população, sempre com respeito às leis e com transparência”, completa a pasta. Enquanto a produção nas fábricas da FAP em São Cristóvão e em Xerém não é retomada, a Fiocruz diz ter iniciado uma negociação para que a vacina seja fabricada temporariamente na cidade de Vigo, na Espanha. O plano é que, a partir do segundo semestre de 2024, as doses produzidas lá sejam entregues e usadas no Brasil. Para que isso ocorra, porém, a Anvisa precisa antes analisar e autorizar as doses produzidas na Espanha. Todo esse projeto de retomada da produção da FAP envolve, além da Fiocruz, o Ministério da Saúde e o Instituto de Biologia Molecular do Paraná (IBMP) — este fruto de uma parceria entre a Fiocruz e o governo estadual do Paraná. “Não se trata de importar vacina de outro fabricante. É a mesma vacina BCG da FAP que, em vez de ser produzida na planta de São Cristóvão, seria produzida em uma fábrica contratada na Espanha. Estaríamos apenas transferindo temporariamente a produção para um novo local, até a planta de Xerém estar finalizada”, disse o diretor-presidente do IBMP, Pedro Barbosa, em um comunicado à imprensa. Após as sucessivas interdições da fábrica da FAP em São Cristóvão, o Brasil tem obtido doses de BCG com o Fundo Rotatório da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), braço regional da Organização Mundial da Saúde (OMS). O fundo vende vacinas e insumos, como seringas, a governos locais e nacionais que não têm produção nacional disponível. Fontes ouvidas pela reportagem afirmaram que as matérias-primas da vacina precisaram ser resgatada pela Fiocruz, pois corriam risco de serem perdidas nas más condições em que se encontravam nas instalações da FAP. Desde que a fabricação nacional da BCG começou a ficar irregular no país, as famílias de bebês recém-nascidos e pacientes com câncer de bexiga sofreram consequências. Juarez Cunha, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), comemorou o anúncio da retomada da produção nacional. “Durante muito tempo, a gente teve autonomia da produção nacional da vacina BCG. É fundamental que a gente retome, porque é estratégico ter um parque de produção nacional de imunobiológicos, de vacinas”, avalia o médico pediatra, acrescentando que a pandemia de covid-19 escancarou a importância de se ter uma indústria nacional de saúde. A vacina BCG protege contra a tuberculose miliar e a tuberculose meníngea — formas graves da doença. “Como os índices de tuberculose são muito importantes no país, a gente tem os casos mais complicados, então a vacina é a forma de proteger a criança dessas formas mais graves.” Como vários outros imunizantes, a cobertura vacinal da BCG teve quedas relevantes a partir de 2016. Antes disso, entre 1995 e 2015, a cobertura era considerada total (100%). Em 2021, ela chegou ao nível mais baixo já registrado, com cobertura de 74,9%. Em 2022, houve uma recuperação, com cobertura de 90% da população-alvo. Os números são do DataSUS. Para Cunha, a irregularidade do abastecimento da BCG no país é um dos fatores que explica a diminuição da cobertura vacinal — por exemplo, porque diante de racionamentos, secretarias estaduais passaram a oferecer a imunização apenas mediante agendamento. “Isso com certeza impacta nas coberturas vacinais, porque uma mãe vai procurar fazer a vacina [no filho] que não está disponível, ou tem que marcar para outro dia.” A aplicação da droga é chamada de um procedimento adjuvante, ou seja, é posterior à intervenção principal, que é a retirada do tumor. Achar o medicamento virou tarefa quase impossível para os pacientes com câncer, tanto através do Sistema Único de Saúde (SUS) quanto em farmácias particulares. Sem ele, o risco de que o tumor se infiltre nas camadas musculares da bexiga aumenta, podendo levar à retirada da bexiga ou à necessidade de quimioterapia — procedimentos considerados invasivos. Nos anos 1980, a Fundação Ataulpho de Paiva foi uma das instituições que receberam investimentos por meio do Programa de Autossuficiência Nacional em Imunobiológicos (Pasni) — que visava justamente garantir uma produção nacional, sem que o país precisasse passar por todos os trâmites aos quais está sendo submetido agora na importação. Quando o funcionamento da fábrica da FAP em São Cristóvão estava regular, as vacinas BCG eram compradas pelo governo federal através da modalidade "inexigibilidade de licitação", uma vez que esta era a única produtora no país do imunizante. Em uma proposta de convênio com o Ministério da Saúde, de 2016, a instituição defendeu que "tornou o Brasil sempre autossuficiente na produção da Vacina BCG, nunca tendo havido a necessidade de importação deste produto". Segundo o site da fundação, a nova unidade em Xerém teria o objetivo de produzir a BCG de forma a "suprir a demanda nacional e parte da internacional, uma vez que a instituição recebe consulta de vários países." Mas, 34 anos depois, a fábrica ainda não está cumprindo seu objetivo, nem nacional nem internacionalmente. Nascida em 1900, a FAP é uma das mais tradicionais fundações de pesquisa e produção de vacinas do país. Mas, além dos problemas já relatados, a instituição também está passando por uma crise administrativa, com demissões de funcionários e passivos trabalhistas a serem discutidos na Justiça. Além disso, em fevereiro de 2022, o Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) abriu um inquérito civil para "investigar possíveis irregularidades na gestão da Fundação Ataulpho de Paiva e supostas condutas ilegais praticadas pelos membros de sua diretoria" a partir de uma denúncia encaminhada à ouvidoria do órgão. Segundo a Fiocruz, a Curadoria das Fundações do MP-RJ aprovou todo o processo de recuperação da FAP anunciado nesta segunda-feira. *Versão anterior desta reportagem foi corrigida para ajustar o valor do rombo, anteriormente dimensionado em R$ 24,8 milhões; o correto é R$ 12,4 milhões
2023-06-06
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv28ex2y41yo
brasil
Como usar as notas do Enem para entrar em faculdades no exterior
O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), criado em 1998, é uma parte fundamental da vida acadêmica do Brasil — servindo para ingresso em diversas faculdades no Brasil através do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) e do Programa Universidade para Todos (ProUni). O Enem também permite pleitear financiamento estudantil em programas como o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). Mas o Enem também pode ser uma porta de entrada para universidades no exterior? A resposta depende de cada instituição e de cada país. Universidades de ponta no exterior costumam ter processos rigorosos de admissão em que o Enem não é levado em conta. Fim do Matérias recomendadas Alguns países têm processos próprios semelhantes ao Enem, e não aceitam o exame brasileiro. É o caso da Alemanha, onde mesmo estudantes brasileiros precisam fazer o exame nacional do país, o Abitur. O Abitur é realizado em algumas escolas no Rio de Janeiro e em São Paulo. O país onde o Enem é mais amplamente aceito como forma de ingresso é Portugal, devido a um acordo entre os governos dos dois países. Mas cada instituição portuguesa define as regras e os pesos para uso das notas. Veja no final desta reportagem as 51 instituições portuguesas que aceitam o Enem nos seus processos. Confira abaixo alguns países cujas instituições citam o Enem em seu processo de admissão. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "O Certificado de Ensino Médio não é considerado uma preparação adequada para uma candidatura competitiva à Universidade de Cambridge. Recomendamos fortemente que você faça um estudo mais aprofundado se desejar se candidatar a um diploma de graduação. Exemplos das qualificações que seriam consideradas adequadas para admissão em Cambridge são os A Levels, o International Baccalaureate (IB), cinco ou mais cursos de Advanced Placement (AP) ou possivelmente o primeiro ano de um curso de graduação em uma universidade fora do Reino Unido", diz o site Cambridge recomenda que os candidatos entrem em contato com a faculdade à qual desejam se inscrever para obter mais orientações. Mas há universidades britânicas que aceitam o Enem. O Enem também é citado como critério de admissão por diversas outras instituições, que exigem qualificações extra, além do exame brasileiro: Algumas instituições americanas mencionam o Enem como critério para admissão: Há 51 instituições portuguesas que aceitam nota do Enem como forma de ingresso como parte de um acordo conhecido como Enem Portugal. Em todas essas instituições, a nota do Enem é apenas um dos elementos considerados. As instituições são: 1. Universidade de Coimbra (UC) 2. Universidade do Algarve (UAlg) 3. Instituto Politécnico de Leiria (IPLeiria) 4. Instituto Politécnico de Beja (IPBeja) 5. Instituto Politécnico do Porto (P.Porto) 6. Instituto Politécnico Portalegre (IPP) 7. Instituto Politécnico do Cávado e do Ave (IPCA) 8. Instituto Politécnico de Coimbra (IPC) 9. Universidade de Aveiro (UA) 10. Instituto Politécnico da Guarda (IPG) 11. Universidade de Lisboa (ULisboa) 12. Universidade do Porto (U.Porto) 13. Universidade da Madeira (UMa) 14. Instituto Politécnico de Viseu (IPV) 15. Instituto Politécnico de Santarém (IPSantarem) 16. Universidade dos Açores (UAc) 17. Universidade da Beira Interior (UBI) 18. Universidade do Minho 19. Cooperativa de Ensino Superior Politécnico e Universitário (Cespu) 20. Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (Universidade Lusófona) 21. Instituto Politécnico de Setúbal (IPS) 22. Instituto Politécnico de Bragança (IPB) 23. Instituto Politécnico de Castelo Branco (IPCB) 24. Universidade Lusófona do Porto (ULP) 25. Universidade Portucalense (UPT) 26. Instituto Universitário da Maia (Ismai) 27. Instituto Politécnico da Maia (Ipmaia) 28. Universidade Católica Portuguesa (UCP) 29. Universidade Fernando Pessoa (UFP) 30. Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida (Ispa) 31. Instituto Leonardo da Vinci (ILV) 32. Escola Superior de Saúde do Alcoitão (Essa) 33. Universidade Lusíada - Norte 34. Universidade Lusíada 35. Escola Superior de Enfermagem de Coimbra (ESEnfC) 36. Escola Superior Artística do Porto (Esap) 37. Universidade Europeia 38. Instituto Universitário de Lisboa (Iscte-IUL) 39. Escola Superior de Saúde Norte da Cruz Vermelha Portuguesa (ESSNorteCVP) 40. Universidade Autônoma de Lisboa (UAL) 41. Instituto Politécnico da Lusofonia (Ipluso) 42. Instituto de Estudos Superiores de Fafe (IESFafe) 43. Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes (Ismat) 44. Instituto Superior Dom Dinis (Isdom) 45. Instituto Superior de Gestão (ISG) 46. Instituto Superior de Gestão e Administração de Santarém (Isla Santarém) 47. Instituto Superior de Gestão e Administração de Gaia (Isla Gaia) 48. Instituto Português de Administração de Marketing (Ipam) de Lisboa 49. Instituto Politécnico de Viana do Castelo (IPVC) 50. Instituto Português de Administração de Marketing (Ipam) do Porto 51. Universidade Nova de Lisboa
2023-06-06
https://www.bbc.com/portuguese/geral-60332597
brasil
Um ano da morte de Bruno e Dom: 'Não tenho palavras para descrever a frustração que sinto', afirma viúva do jornalista inglês
No dia 27 de fevereiro de 2023, a designer baiana Alessandra Sampaio, viúva do jornalista inglês Dom Phillips, realizou o sonho de conhecer a Amazônia. Até então, Alê – como era carinhosamente chamada pelo marido – só conhecia a maior floresta tropical do mundo através dos olhos azuis dele. Bem-humorado, Dom dizia que só não a levava porque, se ela fosse, não iria querer voltar. "Foi minha primeira vez na Floresta Amazônica. Fiquei impactada com a mata, o rio, os indígenas... Foi uma viagem oficial com membros do governo. Me senti privilegiada por usufruir da logística para chegar a Atalaia (do Norte, no estado do Amazonas) com toda a segurança e facilidade de transporte. Profissionais competentes e comprometidos em fazer diferença na proteção da região e dos povos originários. Agradeci muito a oportunidade". Alessandra Sampaio integrou a comitiva da ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara. Quem também viajou para Atalaia do Norte, sede da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), a 1.136 km de Manaus, foi a antropóloga Beatriz Matos. A viúva do indigenista Bruno Pereira assumiu, em fevereiro, o cargo de diretora do Departamento de Proteção Territorial e de Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato do MPI. Em sua primeira incursão pela Amazônia, Alessandra Sampaio visitou o Vale do Javari, no Amazonas, a segunda maior terra indígena do Brasil. São, ao todo, 26 etnias, 6.317 indígenas e 8,5 milhões de hectares. A maior delas é a yanomami, com 8 etnias, 26.854 indígenas e 9,6 milhões de hectares. "O encontro com os indígenas foi uma emoção à parte", destaca. "Quando descobriram quem eu era, pediram abraços e fotos, e me diziam que, a partir de agora, cuidaríamos uns dos outros. Eles têm uma lealdade e um carinho com o Bruno e o Dom, que é muito bonito. Como ficamos na sede da Univaja, com uma agenda apertada, fiquei mais focada no que acontecia e nas pessoas que conhecia, e não na morte do Dom". Fim do Matérias recomendadas O indigenista era alvo constante de ameaças por denunciar e combater, entre outros invasores de terras indígenas, pescadores, garimpeiros e madeireiros. Acusados pelo Ministério Público Federal (MPF) de duplo homicídio qualificado e ocultação de cadáver, os réus Amarildo da Costa Oliveira, o "Pelado"; Oseney da Costa de Oliveira, o "Dos Santos", e Jefferson da Silva Lima, o "Pelado da Dinha", deverão ir a júri popular. "Espero que os réus sejam julgados nos termos da lei. Acho importante que a justiça seja bem aplicada, para que o caso sirva de exemplo para diminuir a impunidade na região", afirma a viúva que acompanha as investigações pelos jornais. "Costumo dizer que a justiça só será completa quando o Vale do Javari estiver protegido das organizações criminosas que destroem, ameaçam e matam quem se coloca na defesa da floresta." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Um levantamento da ONG britânica Global Witness revela que, entre 2012 e 2021, 1.733 defensores da terra e do meio ambiente, como Bruno Pereira e Dom Phillips, foram executados no mundo. Desses, 342 (quase 20% do total) só no Brasil, o país recordista em mortes de ambientalistas. Mais de 85% dos assassinatos ocorreram na Amazônia. A Colômbia aparece em segundo lugar, com 322 ativistas mortos, e as Filipinas, em terceiro, com 270. Durante o velório do marido, realizado no Cemitério Parque da Colina, em Niterói (RJ), no dia 26 de junho de 2022, Alessandra Sampaio fez um importante alerta: "Defensores do meio ambiente seguem em risco." Um ano depois, ela garante que, por enquanto, nada mudou. "É com indignação e angústia que digo que sim, defensores da floresta ainda estão em perigo. Em vários territórios, incluindo o Javari, onde pessoas continuam sendo ameaçadas e não contam com a proteção do Estado. Imagine como é viver nessa tensão, sabendo que, a qualquer momento, podem te emboscar e te matar? É uma loucura isso!" "Tenho esperança de que o governo Lula siga comprometido com suas promessas de campanha de proteger o meio ambiente. Infelizmente, o Congresso e o Senado não estão atentos aos desejos da maioria dos cidadãos brasileiros, que concordam que é importante conservar nossas florestas", prossegue. "Poderíamos ser um país pioneiro ao usar nossos recursos naturais com estratégia sustentável. Mas temos uma classe política com mentalidade ambiental atrasada, que favorece a destruição de florestas. Não tenho palavras para descrever a frustração que eu sinto." Nascido em Bebington, a oito quilômetros de Liverpool, a terra natal dos Beatles, Dominic Mark Phillips chegou ao Brasil em 2007. A princípio, o jornalista fixou residência em São Paulo. Como repórter freelancer, escreveu para jornais dos EUA e do Reino Unido, como The Washington Post, The New York Times e The Guardian. Em 2012, Dom se mudou para o Rio de Janeiro, onde conheceu Alessandra numa festa em Santa Teresa, zona sul da cidade. Juntos, gostavam de andar de bike, fazer trilha na mata e praticar stand-up paddle. Moraram no Rio até 2020 quando, depois de sofrerem um assalto a faca, resolveram se mudar para Salvador. Na capital baiana, o casal sonhava em adotar duas crianças. "Lembro todos os dias do Dom, grata por ter compartilhado minha vida com ele por quase 10 anos. Não tenho apenas uma lembrança dele, lembro da nossa rotina simples e feliz. Dom era um cara legal. Muito legal mesmo. Ele vive em mim." "Esse ano foi intenso. Senti muita saudade e vivi dias de enorme tristeza", continua. "Alguns momentos foram duros, mas, no geral, me senti acolhida amorosamente pela família, por amigos e até por desconhecidos, que diziam rezar por Dom, Bruno e nós da família. Me preocupei em cuidar da saúde física e mental para seguir adiante. A vida segue seu fluxo, não dá para parar ou desistir de viver." A vida de Alessandra Sampaio virou pelo avesso no dia em que ela recebeu o telefonema de um amigo jornalista comunicando o sumiço de Dom Phillips no Vale do Javari. A última vez em que ele e Bruno foram vistos com vida foi no domingo, dia 5, em uma expedição pelo rio Itaquaí, rumo à cidade de Atalaia do Norte, no Amazonas. Desde o desaparecimento de Bruno e Dom, no dia 5 de junho de 2022, até a localização de seus restos mortais, no dia 15, se passaram dez dias. Dez dias de muita angústia, recorda a viúva. "Durante as buscas, estava alerta o tempo todo. Desregulei hora de dormir, perdi a noção de tempo... Me sentia melhor quando fazia meditação, pedia força para mim e luz para Dom e Bruno. Meu maior medo era que não encontrassem os corpos deles. Desde o início, achava que eles estavam mortos." Nesta segunda-feira (5/6), manifestações pelo país afora lembrarão um ano da morte de Bruno e Dom. No Rio, o ato foi marcado para 10h na Praia de Copacabana; em Salvador, às 15h, no Farol da Barra; em Atalaia do Norte, será realizada uma expedição ao local dos crimes. Em Londres, no Reino Unido, o evento acontecerá na Rich Mix, entre 19h e 23h. Quanto ao livro Como Salvar a Amazônia, que Dom Phillips estava escrevendo no Vale do Javari quando foi assassinado, Alessandra diz que ele será lançado. O projeto é financiado pela Alicia Patterson Foundation, com sede em Washington, que concedeu uma bolsa ao jornalista inglês. "A ideia é seguir o planejamento que Dom já havia feito com relação aos assuntos", adianta. "É um desafio terminar o livro, ainda falta dinheiro, pois teremos que contratar escritores para os capítulos que faltam ser escritos e organizar viagens para as suas pesquisas na Amazônia." Outro projeto, anuncia a viúva, é a fundação de uma ONG, o Instituto Dom Phillips, para manter vivo o legado ambiental do marido. A proposta é divulgar informações sobre a Amazônia e seus múltiplos aspectos. "Temos uma riqueza ambiental incomparável. Temos a sabedoria dos povos indígenas e comunidades tradicionais. Temos muito o que aprender com eles! Quanto mais conhecermos a Amazônia, mais esforços faremos para protegê-la. É um bem inestimável que não pode ser destruído pela ganância de alguns poucos."
2023-06-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3gmd6mmkm0o
brasil
Brasil vive 'Lava Jato às avessas' contra políticos de direita?
Um juiz superpoderoso que concentra em suas mãos processos de grande repercussão e adota decisões controversas a partir de aplicações inovadoras da lei. Para alguns, a descrição se aplicaria facilmente à atuação do hoje senador Sergio Moro (União Brasil-PR) quando era juiz da Operação Lava Jato, à frente da 13ª Vara de Curitiba. Para outros, ela define bem o desempenho de Alexandre de Moraes como ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Mas seria correto aplicar a descrição a ambos? Fim do Matérias recomendadas As avaliações são diversas (confira em detalhes ao longo da reportagem). Em geral, entrevistados apontam algumas semelhanças, em especial na grande concentração de casos importantes no gabinete de um mesmo magistrado, algo que parece desrespeitar o princípio do juiz natural, uma garantia constitucional que busca evitar perseguições com o direcionamento de investigações para determinado promotor ou juiz. Por outro lado, também enfatizaram diferenças relevantes entre os dois casos, como a relação indevida de parceria entre o Ministério Público Federal e Sergio Moro, que não se repete na atuação da Procuradoria-Geral da República nas investigações sob relatoria de Moraes. Ou a obtenção de acordos de delação premiada após longas prisões preventivas, uma prática comum na Lava Jato que até hoje não foi usada nas investigações contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e seus aliados que tramitam no gabinete de Moraes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para Fábio de Sá e Silva, professor da Universidade de Oklahoma (EUA) e autor de estudos sobre a Lava Jato, as grandes responsabilidades depositadas sobre o então juiz Sergio Moro (o combate à corrupção) e agora sobre Alexandre de Moraes (a defesa da democracia) trazem o risco de decisões controversas ou mesmo fora da lei. "Tanto o Moro quanto o Alexandre são juízes que estão lidando com questões complexas e que têm uma ampla repercussão na sociedade e na política. Isso aproxima muito os dois. Mas os instrumentos que o juiz tem para interferir na realidade e conseguir enfrentar essas questões complexas são sempre muito limitados, porque o juiz age dentro da lei, ou pelo menos tem que agir", afirma. "Então, se fica tudo nas costas do juiz, seja enfrentar a corrupção, seja defender a democracia, o risco que existe de fazer um uso não autorizado desses instrumentos é sempre muito grande", ressalta. O advogado Horácio Neiva, doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP, tem leitura semelhante. Para ele, tanto a atuação da Lava Jato como a de Moraes têm um traço em comum: a instrumentalização do Direito na busca de um resultado. Essa instrumentalização, segundo Neiva, consiste em interpretar as leis de forma excepcional para alcançar determinado objetivo. "No caso da Lava Jato, era a instrumentalização do Direito para obter o resultado combate à corrupção. E agora, no caso (de Moraes), tem sido a instrumentalização sob o argumento de proteção à democracia", afirma. "O excesso de instrumentalização foi o que pegou a Lava Jato, o que permitiu uma reação (à operação). Quando você se afasta da legalidade estrita pontualmente, às vezes consegue justificar, mas quando é sistemático, não. Isso me parece que também é um risco para o Supremo e o TSE. Uma hora a exceção vai ter que parar, sob pena dela virar regra", afirma Neiva. Para o advogado, a grande concentração de casos nas mãos de Moro e Moraes ilustra bem essa instrumentalização. Embora a lei brasileira preveja que novas investigações que têm conexão com outras em andamento devem ser distribuídas por prevenção ao mesmo juiz, o advogado avalia que têm sido adotadas interpretações forçadas para manter casos distintos no gabinete do ministro, como ocorreu na Lava Jato. O resultado, nota ele, é o desrespeito a regras previstas em lei que determinam em qual vara um caso será investigado e julgado. Isso vai depender, por exemplo, de qual é o suposto crime, o local que ele teria sido cometido e quem são os suspeitos (se possuem foro especial ou não). Um fator importante para explicar os "superpoderes" adquiridos pelo então juiz Sergio Moro e agora por Moraes é a grande quantidade de casos com impacto político sob suas responsabilidades, acreditam os juristas entrevistados. Mas como isso aconteceu? A Operação Lava Jato, iniciada em 2014, sacudiu o país ao atingir, de forma inédita, executivos e políticos poderosos, acusados de desviar recursos públicos da Petrobras e de outras estatais e obras públicas. O preso mais ilustre foi Lula, reeleito presidente após ter suas condenações anuladas pelo Supremo. Muito celebrada inicialmente, contando com grande apoio popular e respaldo das Cortes Superiores, a operação conseguiu aval do STF para concentrar as investigações que envolviam possíveis desvios da petrolífera na 13ª Vara de Curitiba. Isso deu grandes poderes a Moro, ao colocar em suas mãos o julgamento de supostos crimes cometidos nos mais variados cantos do Brasil. O argumento era de que todos esses casos teriam relação com um grande esquema de corrupção revelado a partir de desdobramentos de investigações contra organizações criminosas que atuavam no Paraná, envolvendo doleiros, como Alberto Youssef, e o ex-deputado federal do PP José Janene. Depois, essas anulações foram reforçadas em outra decisão do Supremo, que considerou Moro parcial nos processos contra Lula. Os casos acabaram prescrevendo e foram encerrados sem novo julgamento em Brasília. O ministro se tornou relator de inquéritos que investigam os mais diversos crimes relacionados a Jair Bolsonaro e seus aliados: de ataques antidemocráticos aos Três Poderes no 8 de janeiro à suposta tentativa do ex-presidente de incorporar joias doadas à Presidência da República ao seu patrimônio pessoal, passando pela falsificação de certificados de vacina contra covid-19. As investigações concentradas no gabinete de Moraes tiveram origem no chamado inquérito das Fake News, alvo de controvérsia jurídica já no seu início, por ter sido aberto em 2019 por decisão direta do então presidente do STF, Dias Toffoli. Isso foi feito à revelia da PGR – ou seja, sem a participação do Ministério Público, que é a instituição responsável por investigar e denunciar criminalmente no país, segundo a Constituição Federal. A partir daí, outros inquéritos foram instaurados, como os que investigam atos antidemocráticos ou a atuação de milícias digitais. Em vez de a relatoria dessas investigações serem sorteadas entre os ministros do STF, elas foram mantidas com Moraes, sob a justificativa de apurarem possíveis crimes relacionados ao inquérito inicial. O professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal Fluminense (UFF) João Pedro Pádua questiona se parte dessas novas investigações deveria ser mantida no Supremo, já que em alguns casos não está claro se há pessoas com foro privilegiado (devido ao sigilo de parte dos inquéritos, nem tudo é de conhecimento público). Porém, ainda que haja fundamento para o foro no STF, ele defende que seria mais adequado sortear a relatoria entre todos os ministros da Corte nos casos sem forte conexão com os inquéritos que já tramitam no gabinete de Moraes. "Essa concentração de competência (no gabinete de Moraes) é muito questionável. E, aparentemente, o motivo pelo qual ela (a competência) está sendo mantida é a mesma que levou o STF a manter muitos casos com Moro por anos: é um juiz forte, sem medo de tomar decisões duras, e que está tomando uma posição que, no âmbito da esfera pública, é a posição que está sendo mais valorizada", analisa Pádua. "No momento, essa posição é a de ser duro com o grupo bolsonarista, com pessoas ligadas à extrema direita. Então, como essa posição é a preferida pela comunidade jurídica, pela comunidade política de modo geral, o Supremo Tribunal Federal mantém, com pouquíssimas dissidências, as competências concentradas em si mesmo, no Supremo, e, dentro dele, na relatoria do ministro Alexandre de Moraes", acrescenta. Pádua e Horácio Neiva citaram como exemplo o inquérito que investiga a fraude nos certificados de vacinas. Para ambos, essa investigação não parece ter forte conexão com outras que já tramitam no gabinete do ministro. Conforme mostrou reportagem do jornal Folha de S.Paulo, Moraes justificou manter sob sua relatoria essa investigação com o argumento de que a falsificação dos certificados foi usada para manter a coerência da campanha de desinformação contra vacinas da covid-19. Por isso, argumentou o ministro, o caso teria conexão com o inquérito das milícias digitais, do qual é relator e apura a disseminação de notícias falsas nas redes sociais, inclusive sobre os imunizantes. "Esse caso da vacina é um exemplo bastante elucidativo disso (a manipulação da competência). Porque dizer que falsificar (certificado de) vacina tem a ver com desmerecer a vacina é até engraçado. É exatamente o oposto", critica Pádua. Para a professora de direito constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Estefânia Barboza, a concentração dos inquéritos no gabinete de Moraes acaba fragilizando o STF. "Os tribunais existem justamente para serem colegiados. É a colegialidade que dá legitimidade aos tribunais, (que garante a) imparcialidade. Na hora que eu coloco todas as questões que envolvem discussão de crimes na esfera digital, ou relacionados a atentados à democracia ou a fake news com um ministro, eu acho que enfraquece o tribunal como um todo", avalia. A professora lembra que um dos argumentos que foram usados para justificar a manutenção dos inquéritos com Moraes seria uma suposta omissão de órgãos de investigação, como Polícia Federal e Procuradoria-Geral da República, para apurar os ataques à Corte e suspeitas contra aliados de Bolsonaro durante seu governo. Para Barboza, esse contexto mudou com a troca de presidente. "Me parece que agora é preciso caminhar para normalidade, não estamos vivendo um estado de exceção. Você tem o Lula como presidente, você tem as instituições funcionando, então não se pode usar das práticas que a gente condenava antes. Não queremos um 'lavajativismo' da esquerda, né?", questiona. À BBC News Brasil, o jurista Miguel Reale Júnior defendeu que haja uma "uma análise mais detida" sobre a distribuição de novas investigações que eventualmente sejam abertas no STF. Ele, porém, lembrou que o plenário do Supremo validou a concentração da relatoria dos inquéritos com Moraes e elogiou a atuação da Corte na "defesa da democracia" diante de "fatos gravíssimos". "Eu critiquei a cassação do Deltan (pelo TSE), mas eu não vejo nenhum 'lavajatismo' ou alguma parcialidade nas decisões que são feitas em defesa da democracia. O papel do Supremo Tribunal Federal foi fundamental", defendeu. "Quem segurou a democracia no país, durante o governo Bolsonaro, e também diante da omissão da Procuradoria (PGR), foi o Supremo", disse. Procurado por meio da assessoria do Supremo Tribunal Federal, Moraes não quis se manifestar. Apesar de concordar que a concentração de investigações e processos em um mesmo juiz é "um ponto de crítica semelhante" a Moro e Moraes, o professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Rafael Mafei vê grandes diferenças entre os dois casos e considera equivocado usar a Lava Jato como parâmetro para supostos erros do ministro. "Eu fico um pouco preocupado com as pessoas usarem a Lava Jato como o gabarito da crítica porque acho que isso força uma série de comparações que são equivocadas e, às vezes, a gente perde a oportunidade de fazer críticas, e eventualmente, apontar coisas erradas (na atuação de Moraes), mas que não têm nada a ver com a Lava Jato", diz Mafei. O professor aponta duas diferenças que considera importantes entre os dois casos. A primeira, diz, seria a existência de um "conluio entre juiz e promotor" no caso da operação. "Para mim, (esse conluio) é a grande marca do abuso da Lava Jato. E é completamente inexistente no caso das críticas que podem ser feitas Alexandre de Moraes. Aliás, uma das principais críticas que se faz ao Alexandre de Moraes deriva justamente do fato de que a atuação do Ministério Público Federal foi tudo menos aquilo que ele queria", ressalta. A segunda grande diferença, na visão de Mafei, seria a presença de um direcionamento político-ideológico apenas na Lava Jato. Para ele, a operação mirou principalmente os partidos da base dos governos de Lula e Dilma – PT, MDB, PP e PL – com objetivo de enfraquecê-los. Como exemplo, aponta a divulgação da delação do ex-ministro petista Antonio Palloci com graves acusações contra Lula às vésperas da eleição presidencial de 2018, quando o atual ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), foi derrotado por Bolsonaro. A retirada do sigilo foi determinada por Moro de ofício, ou seja, sem pedido do MPF. "Parece que o Judiciário está tentando, mais uma vez, ser protagonista do processo político. Vejo nesse levantamento do sigilo tentativa de influenciar na eleição presidencial. Espero estar errado", disse, por exemplo, o procurador João Carlos de Carvalho Rocha. Para Mafei, o fato de as investigações no gabinete de Moraes mirarem principalmente Bolsonaro e seus aliados não se trata de uma perseguição ao grupo, mas de uma reação a ataques que partiram desse campo ao Poder Judiciário. "Tirando as pessoas que vivem no delírio mais amalucado da interpretação política, não acho que exista qualquer um que ache que o Moraes esteja mancomunado com o PT por afinidade ideológica para dar hegemonia à esquerda", avalia. "O Moraes é uma pessoa que tem histórico de filiação e de atuação política adversária à esquerda. E os embates que ele teve com o espectro específico de Jair Bolsonaro foram no contexto de uma reação a ataques feitos ao sistema de Justiça, à Justiça Eleitoral e ao Supremo Tribunal Federal", reforça. Moro e Dallagnol sempre negaram qualquer ilegalidade nas conversas reveladas pela Vaza Jato. Eles criticam a anulação das condenações e destacam os R$ 6,7 bilhões recuperados pela Petrobras de empresas e ex-executivos alvos da Lava Jato como comprovação dos crimes combatidos pela operação. "Não tem inocente que foi condenado na Lava Jato. Quem foi condenado é porque pagou suborno ou porque recebeu suborno. Você não vai encontrar nada naquelas mensagens (mostradas na Vaza Jato) de alguém que foi incriminado indevidamente", afirmou Moro em entrevista ao UOL no ano passado. "Ora, a Petrobras recuperou R$ 6 bilhões. Ela mesmo divulgou. Não é uma estimativa. Você teve as pessoas que confessaram os crimes. Você teve as grandes empreiteiras que pagaram indenizações e multas. Os fatos estão lá, eles existiram", disse também na ocasião. Moraes também tem sido questionado por possível uso abusivo de prisões preventivas com objetivo de forçar delações premiadas, uma crítica comum à Lava Jato. Até o momento, porém, não há informação pública de que algum acordo de colaboração foi firmado nos inquéritos que tramitam no gabinete do ministro contra o campo bolsonarista. A decisão inicial pela prisão de Torres foi referendada pela maioria do STF (9 votos a 2), no julgamento que manteve também o afastamento do governador Ibaneis Rocha. Depois, Moraes prorrogou a prisão preventiva sob argumento de que era "adequada para garantia da ordem pública e conveniência da instrução criminal", ou seja, para evitar a repetição dos supostos crimes e não atrapalhar a investigação. Torres foi solto em maio, sob condições como usar tornozeleira eletrônica, não portar arma de fogo e ficar afastado das redes sociais. Para aliados de Bolsonaro, a prisão teria objetivo de forçar uma delação premiada que atingisse o ex-presidente. O deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) chegou a dizer que Torres teria "procurado se suicidar". "Não há qualquer motivo para a prisão. Anderson Torres já tem um quadro depressivo. (…) A prisão preventiva se enquadra apenas quando existe risco de fuga, que não foi o caso. Anderson Torres, inclusive, retornou ao país (dos Estados Unidos). Ele não está atrapalhando as investigações nem pondo sob risco a ordem econômica ou a ordem pública", disse o deputado ao portal Metrópoles. Outro aliado próximo de Bolsonaro que segue preso é seu ex-ajudante de ordens Mauro Cid. Alvo de diferentes inquéritos no gabinete de Moraes, ele foi detido preventivamente no início de maio, no caso dos cartões falsos de vacinação, com a justificativa de que poderia atrapalhar as investigações caso estivesse solto. Autor do livro Prisões Preventivas da Lava Jato – Uma análise empírica e crítica de seus fundamentos, o advogado Álvaro Chaves estudou as prisões determinadas por Moro entre 2014 e 2017 em sua pesquisa de mestrado, na Universidade de Brasília (UnB). Ressaltando não ter o mesmo conhecimento aprofundado das decisões de Moraes, ele apontou à BBC News Brasil duas diferenças entre as prisões determinadas pelo ministro e as da Lava Jato: a duração e a liberação após a delação premiada. "Analisando a questão temporal, me parece que não tem nenhum paralelo esse tipo de comparação (entre prisões de Moro e Moraes). Houve prisões na Lava Jato que duraram três anos, dois anos e meio. E o Torres ficou preso quatro meses. Se você pegar uma análise mínima da jurisprudência, eu te desafio a achar (alguma decisão que aponte) excesso de prazo com quatro meses", ressalta. Na sua pesquisa sobre Lava Jato, Chaves analisou também as decisões em que Moro revogou prisões preventivas. Na metade dos casos estudados, a pessoa foi solta após fechar acordo de delação. "Fiz uma análise histórica de três anos que, na minha visão, mostra que esse modo de agir é bastante claro. As prisões da Lava Jato tinham, sim, a finalidade de aumentar os acordos de colaboração premiada", avalia o advogado. "No caso do Torres, ficou preso quatro meses, algo ordinário no Brasil, e o Moraes não soltou ele porque estava negociando delação premiada. Na Lava Jato, teve prisão preventiva que foi revogada por Moro antes da pessoa ser presa, porque a pessoa começou a negociar a delação", disse ainda. Além de concentrar a relatoria de inquéritos importantes, Moraes acumula mais poderes no momento por ser o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O comando da Corte é exercido rotativamente por ministros do STF e o mandato de Moraes vai até junho de 2024. Ele decidirá, por exemplo, quando será julgada uma ação que tem potencial de deixar Jair Bolsonaro inelegível por oito anos, por suspeita de ter cometido falsos ataques ao sistema eleitoral brasileiro. O caso foi liberado no final de maio pelo corregedor da Justiça Eleitoral, o ministro Benedito Gonçalves, que hoje é visto como um aliado de Moraes no TSE. No total, o ex-presidente enfrenta 16 ações que pedem sua inelegibilidade. Especialistas eleitorais, como a advogada Vânia Aieta, professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), veem risco real do ex-presidente ser condenado, tanto pelos ataques ao sistema eleitoral, como por uso da máquina pública para favorecê-lo na campanha de 2022. Bolsonaro, por sua vez, nega qualquer irregularidade e diz que as críticas que fez às urnas eletrônicas eram uma preocupação legítima com a segurança da votação. Dallagnol não tinha processos abertos quando pediu demissão do MPF, mas enfrentava outros 15 procedimentos preliminares relacionados a supostos abusos quando atuava na Lava Jato que, em tese, poderiam resultar na abertura de novos PADs. Como o então procurador se demitiu meses antes do prazo para disputar eleição, o TSE entendeu que ele antecipou sua saída para evitar a abertura de um PAD contra si, realizando assim uma fraude ao objetivo da lei da Ficha Limpa de evitar que integrantes do Ministério Público que enfrentem esses processos possam disputar eleição. A decisão dividiu juristas. Na visão do ex-juiz eleitoral Márlon Reis, considerado o idealizador da Lei da Ficha Limpa, a decisão do TSE foi "irretocável" e seguiu o "espírito da lei" de buscar evitar que autoridades driblem as hipóteses de inelegibilidade. Já Reale Júnior considerou a decisão arbitrária, ao cassar o mandato de Dallagnol sem que houvesse de fato um PAD aberto contra ele. Na sua visão, a decisão alimenta o discurso do ex-procurador de perseguição aos antigos integrantes da Lava Jato. "Eu creio que dá fôlego para essa argumentação, e dá fôlego para alimentar esse antagonismo, esse Brasil como um rio fora do leito, espalhando e disseminando controvérsias e ódios. Então não facilita de forma nenhuma a união", criticou. "Eu acho que a decisão do TSE foi, a meu ver, manifestamente errada e não se pode fazer uma ampliação da lei para punir gravemente com perda de mandato", disse ainda.
2023-06-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjmy0ey4k3ko
brasil
Como árvore escondida na Amazônia levou Manaus e Belém ao auge — e à decadência
Uma árvore com até 30 metros de altura e 60 centímetros de diâmetro, que vive escondida e espalhada pela Floresta Amazônica. Ficam distantes alguns quilômetros umas das outras, mas sustentaram por mais de 40 anos, no final do século 19 e início do 20, a riqueza de cidades como Manaus e Belém. Trata-se da Hevea brasiliensis, planta nativa da Amazônia, da família das euforbiáceas, mais conhecida como seringueira, da qual se extrai o látex — uma seiva leitosa — com o qual se faz a borracha. Esse produto foi responsável pela chamada "Belle Époque cabocla", quando as duas capitais do norte do Brasil tinham características que não deviam nada às das principais cidades europeias na época: ruas largas, arborizadas e calçadas, sistemas de abastecimento d'água, luz elétrica, telefone, teatros, palácios, jornais impressos, exposições e espetáculos de música lírica e outros requintes que só as cidades modernas de então disponibilizavam. Toda essa riqueza era fruto do que ficou registrado na historiografia nacional como Ciclo da Borracha, período que se estendeu da década de 1860 até 1912, no qual o Brasil era seu maior produtor e exportador, suprindo 90% das necessidades do mercado mundial. Fim do Matérias recomendadas "A exploração da borracha estava diretamente atrelada ao grande acontecimento mundial, que foi o surgimento da Revolução Industrial na Europa, mais especificamente na Inglaterra", explica o pesquisador José Silva Carmelo da Silva, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas. Isso ocorreu em 1760, mas a revolução se aprofundou ao longo dos séculos seguintes. Esse grande evento tornou possível o desenvolvimento de vários setores industriais, que se propagaram e se intensificaram ao longo do tempo, entre eles a indústria automobilística, grande consumidora de borracha. "Sem ele não se teria o boom da borracha numa escala industrial", diz Silva. Por causa de suas características, entre as quais estão elasticidade, plasticidade e resistência ao desgaste, além de ser isolante elétrico e impermeável a líquidos e gases, a borracha natural é a única matéria-prima que pode ser usada para fabricar mais de 40 mil produtos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas para se chegar a esse ponto, primeiro foi necessário driblar algumas deficiências. Ao tentar usá-la para fabricar os primeiros produtos, como peças de vestuário ou calçados, se percebeu que suas características mudavam conforme a temperatura. No calor, ela ficava mole e pegajosa, e no frio, dura e inflexível, quebradiça ou se esfarelava. Por isso, sua primeira aplicação prática foi como um humilde apagador de escrita a lápis, inventado em 1752 pelo físico e químico português João Jacinto de Magalhães (1722-1790), descendente do célebre navegador Fernão de Magalhães (1480-1521). Mas tudo mudou em 1839, quando o engenheiro e cientista americano Charles Goodyear (1800-1860) descobriu por acaso o processo de vulcanização e depois o aperfeiçoou, o que acabou com os problemas existentes. Várias novas tecnologias, produtos e aplicações começaram a surgir a partir de então, como o pneu de automóvel, inventado e patenteado em 1845 pelos irmãos Édouard (1859-1940) e André Jules Michelin (1853-1931), que em 1888 fundaram a Manufatura Francesa de Pneus Michelin, que existe até hoje. Em 1847, o inglês Robert William Thomson (1822-1873) criou a câmara de ar para colocar dentro do pneu, que passou a ser então um pneumático, com maior flexibilidade e conforto e um menor nível de ruído. Mais tarde, em 1888, John Boyd Dunlop (1840-1921) inventou o pneumático para bicicletas. Foi depois dessas invenções e do consequente aumento da procura por borracha que o Brasil passou a fazer parte dessa história e Manaus e Belém começaram a se transformar em duas das mais importantes cidades da América Latina. "Antes do início do Ciclo da Borracha, a Amazônia era mera fornecedora de especiarias com a exploração das chamadas drogas do sertão: canela, cravo, anil, cacau, raízes, sementes oleaginosas, salsaparrilha e outros (produtos naturais da floresta) de grande procura no mercado europeu", diz Silva. O Brasil atingiu o ápice da sua produção de borracha em 1912. Segundo o historiador Daniel da Silva Klein, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), a borracha chegou a figurar como o segundo produto mais importante da agricultura brasileira, respondendo por pouco mais de 23% do total das vendas externas. "Obviamente que esse posto figurava muito abaixo do café, responsável por 64% do valor das vendas externas do país", conta. Em toneladas, no entanto, o volume produzido de borracha era 3,5 vezes maior que o de café: 42 mil ante 12 mil. Para o engenheiro de pesca Thiago Marinho Pereira, da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOP), hoje é impossível visitar Manaus e Belém, as duas maiores metrópoles da Amazônia, sem deixar de perceber construções e resquícios de uma arquitetura neoclássica, de um período conhecido mundialmente como Belle Époque. "Apesar de ser considerada uma época estritamente europeia, coincidiu com o apogeu econômico, de ambas as cidades, provocado pela hegemonia mundial na produção da borracha, catapultada pelo descobrimento dos processos de vulcanização e pela produção de pneumáticos com câmara de ar", explica. De acordo com ele, é nesse contexto que Manaus e Belém, até então cidades irrelevantes no cenário geopolítico e econômico mundiais, são jogadas em um processo abrupto e fugaz de desenvolvimento econômico. "Abrupto, pois foi algo que deu à região amazônica, pela primeira e única vez na história, a hegemonia sobre algo de relevância mundial e de forma muito rápida", diz. "Em um curto espaço de tempo de 20 anos (1890-1910), a renda per capita subiu 800% e a população aumentou em 400%." Segundo Klein, em número absolutos, a população de Manaus passou de pouco mais de 29 mil pessoas em 1872 para mais de 75 mil em 1920. "Belém, por sua vez, nesse mesmo período, saltou de quase 62 mil para cerca de 236 mil habitantes", conta. "Lembrando que essas cidades ficavam fora do eixo Rio-São Paulo e tiveram altas taxas de crescimento populacional." Praticamente todo esse aumento populacional se deve à chegada de nordestinos, principalmente do Ceará, para trabalhar nos seringais. O pesquisador Reinaldo Corrêa Costa, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), diz que durante o Ciclo da Borracha criou-se uma nova configuração regional, que incluiu novos circuitos de mercadorias, novos hábitos de consumo com bens importados, assim como uma desarticulação das produções locais, devido à chegada dos produtos estrangeiros de consumo das classes alta e média, entre os quais se destacam alimentos, roupas e transporte, por exemplo. Grupos ligados ao circuito da borracha também tiraram proveito da situação de fluidez de mercadorias e algumas famílias se destacaram nesse contexto. "Houve uma melhora, uma modernização nos sistemas de comunicação diretos com Londres com cabo submarino e com a então capital do Brasil [Rio de Janeiro]", explica Costa. Além disso, de acordo com Reinaldo Corrêa Costa, ocorreu um processo de urbanização em cidades como Belém, com a criação de bairros planejados, melhoria na infraestrutura de portos e chegadas de jornais da França e da Inglaterra, que facilitavam a atualização com as informações do mundo. "Assim como houve um fator de fortalecimento da proximidade geográfica com os centros internacionais e um distanciamento das realidades de exploração dos seringueiros, do processo só de endividamento que viviam e não tinham como denunciar ou recorrer", acrescenta. "Ao mesmo tempo em que as cidades se aproximaram dos centros internacionais, os seringueiros que viviam um processo de exploração e endividamente ficaram isolados, sem ter como denunciar ou recorrer", acrescenta. Nessa época, de acordo com o geógrafo Fadel David Antônio Tuma Filho (1948-2014), autor do artigo Riqueza e miséria do ciclo da borracha na Amazônia brasileira: um olhar geográfico através de Euclides da Cunha, de 2011, o cosmopolitismo de Belém e Manaus podia ser medido pelos elogios feitos por ilustres personagens que estiveram na região de passagem. De acordo com ele, a intensa ligação com a Europa trouxera os hábitos de "finesse", o gosto apurado, a predileção pela moda e pelos autores franceses. "As casas comerciais ostentavam nomes sugestivos como 'Bon Marché', 'Au Palais Royal', 'Bazar Paris', 'La Corbeille'", escreveu. "No primeiro decênio do século 20, era comum companhias de óperas italianas se apresentarem em Belém e Manaus. Espetáculos no estilo vaudeville eram apresentados por companhias de danças espanholas, italianas e portuguesas, numa reedição do 'Moulin Rouge' nos trópicos." Ainda de acordo com Tuma Filho, a vida literária e intelectual da região podia ser medida pelo número de jornais que se editavam em Manaus (seis) e Belém (também seis) nesta época, após 1900. "Grande era o número de escritores, jornalistas e poetas que agitavam a vida boêmia e literária nestas duas capitais", disse. "Comum era a frequência com que as pessoas viajavam para a Europa, fossem elas abastados donos de seringais ou jovens intelectuais, filhos da burguesia, que se dirigiam principalmente à França." Centenas de paraenses e amazonenses, acrescentou, atravessavam o Atlântico, uns para estudar, outros em busca de saúde nas estações termais, outros pelo prazer de viajar, de enriquecer a alma de sensações e conhecimentos. "A Europa representava, naquele tempo, o que hoje significa o Rio de Janeiro para as populações regionais", registrou. "Aliás, quase ninguém conhecia a [então] capital do país, de onde só se irradiava uma influência nitidamente oficial, do interesse de governo a governo." A opulência e riqueza proporcionada pelo Ciclo da Borracha foram experimentadas primeiro na capital do Pará, cidade mais desenvolvida e mais próxima da Europa. "Belém levava vantagem de sua infraestrutura e posição, visto que tinha cabo submarino direto com Londres e a maioria dos grandes navios que atravessavam o Atlântico para buscar a borracha paravam na cidade e dali voltavam", explica Costa. "Além disso, muitas das elites administrativas das empresas que viajavam ficavam em Belém, não iam para o interior da região amazônica." No fim do século 19, a capital paraense experimentou um grande crescimento econômico, principalmente por meio de seus "aviadores", comerciantes que recebiam produtos importados e os vendiam para as mais longínquas regiões produtoras de látex. Os navios que vinham buscar borracha ou trazer produtos de consumo chegavam à cidade carregados de queijos franceses, vinhos portugueses, vestidos italianos e até empregados europeus, como costureiras belgas, por exemplo. Como se não bastasse, a elite enriquecida com a borracha esbanjava dinheiro com hábitos exóticos e caros, como mandar engomar roupas em lavanderias de Lisboa e importar patins, para usar durante férias em países frios. "Suas feiras detinham os mais variados produtos e sua associação comercial comandava grande parte dos seringais amazonenses e acreanos", conta Pereira. "Era impossível dissociar a importância da produção de borracha das outras regiões da Amazônia para a economia belenense e paraense." Segundo Pereira, usando os recursos disponíveis e pelos mesmos motivos que Manaus tinha em relação a se autoafirmar como grande metrópole moderna, Belém priorizou a construção de sua casa de ópera, o Theatro da Paz, inaugurado em 1878 e então a maior do Brasil. O dinheiro abundante advindo do comércio da borracha patrocinava a contratação de famosas companhias líricas brasileiras e estrangeiras para se apresentar no monumental teatro. A casa também recebia visitas ilustres, como a do compositor Carlos Gomes, autor de O Guarani, que, em 1882, apresentou a ópera Salvador Rosa em Belém. Mais tarde, foi a vez de Manaus alcançar estágio semelhante de desenvolvimento e prosperidade. Entre os resquícios da Belle Époque na Amazônia aludidos por Pereira, está o Teatro Amazonas. Construído no largo de São Sebastião, no centro de Manaus, a casa foi inaugurada em dezembro de 1896, Inspirado na Ópera Garnier de Paris, decorado com porcelana italiana e em alto estilo. Foi um marco de período, que ainda está de pé – embora sem a pompa e o esplendor da época em que foi construído. "Manaus foi a primeira cidade brasileira a ser urbanizada e a primeira capital a receber energia elétrica", diz Pereira. "No auge do Ciclo da Borracha, contava com iluminação pública, água encanada, telefone e telégrafo, além de uma linha de bonde. Mas é impossível não dizer que o maior símbolo desse período é o Teatro Amazonas. Com seus 700 lugares, foi concebido de forma luxuosa para poder atrair os melhores artistas e rivalizar com as principais casas de ópera de Paris." Nessa época, Manaus tinha várias alcunhas: "Capital da Borracha", "País das Seringueiras" e "Paris dos Trópicos". "Várias são as histórias que se contam da cidade", revela Pereira. "Relatos que permeiam o imaginário dão conta de que, ao cair da tarde, era possível ver os comerciantes locais em frente ao suntuoso Teatro Amazonas, fumando charutos feitos com notas de dólares e vestidos à moda parisiense." Mas há 110 anos, a partir de 1913, todo esse cenário começou a desmoronar. Nesse ano, a produção já havia caído para cerca de 36 mil toneladas. Embora desde então o volume produzido de borracha tenha crescido 6,5 vezes até 2021, quando atingiu 235 mil toneladas, último dado disponível, o consumo cresceu mais, chegando a 417 mil toneladas, com o país tendo que importar cerca de 182 mil toneladas. O que significa que o Brasil passou de maior produtor e exportador de borracha natural no início do século 20 para importador atualmente. A região dos seringais também mudou. O maior produtor não é mais o Amazonas nem o Pará, mas o estado de São Paulo, que responde hoje por 60% do total do país. A história desse declínio e do fim da riqueza gerada pela borracha na Amazônia começou bem antes de 1913, no entanto. Mais precisamente em 1876, quando o inglês Henry Wickham (1846-1928), um "aventureiro" para alguns ou um agente a serviço da rainha Vitória para outros, contrabandeou 70 mil sementes de seringueira para o Royal Botanic Gardens de Kew, uma famosa instituição de pesquisas em botânica do Reino Unido. De acordo com o arqueólogo Vinicius Eduardo Honorato de Oliveira, da UFOP, por causa da grande demanda pelo látex da seringueira, outros países, particularmente a Inglaterra, começaram a tentar ambientar a espécie em outros locais. "O objetivo era produzir borracha em fazendas com as árvores próximas umas das outras", explica. Na Inglaterra, apenas 2.600 das sementes levadas por Wickham germinaram, mas foi o suficiente. Elas geraram mudas, que foram transplantadas para as colônias britânicas no Sudoeste Asiático (Tailândia, Malásia, Ceilão, hoje Sri Lanca), onde se adaptaram com sucesso. As vantagens do seringalistas asiáticos em relação aos brasileiros eram enormes. Como nota Pereira, no Brasil o processo de coleta, processamento e envio da borracha natural para os mercados consumidores era primitivo. "Era algo realizado em locais acessíveis somente por via fluvial, com meses de viagem entre o local de extração do látex e o destino final", explica. Quanto mais distante e afastado era o seringal, mais produtivo ele era, mas isso aumentava os custos operacionais. Além disso, outros problemas contribuíram para o declínio dos seringais amazônicos, como o período de extração do látex, que ficava restrito aos seis meses do ano em que os seringais não estavam inundados (período de vazante do rio Amazonas). Pereira cita ainda o rendimento médio da seringueira silvestre, que era de 2,5 a 6 kg de látex em comparação com as árvores plantadas, sistematicamente, em solo asiático, que apresentavam mais de 20 kg de rendimento individual. "Essa sistematização do plantio fazia com o que o trabalhador asiático pudesse cortar, no mesmo tempo, duas vezes mais árvores do que o seringueiro amazônico", diz. "A soma desses e de outros fatores tornou o mercado mundial inacessível para a borracha natural amazônica." Para Oliveira, não foi surpresa, portanto, que com o avanço da produção "racional" na Ásia (particularmente na Malásia), o preço da borracha tenha caído demais (já no começo do século 20).. "Muitos seringalistas quebraram e abandonaram os seringueiros e os seringais", diz. "Nesse momento os seringueiros começaram a desenvolver o modo de vida que se vê hoje em muitos lugares." Era o fim do Ciclo da Borracha e do apogeu de Manaus e Belém.
2023-06-04
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cmmeremj267o
brasil
O que explica disparada de aluguéis nas maiores cidades da América Latina?
Para muitas pessoas na América Latina não está sendo fácil encontrar uma casa para alugar devido à escalada de preços. Com a onda de inflação global, os salários perderam poder de compra, enquanto o custo do crédito atingiu níveis recordes. Como é muito caro comprar uma casa devido ao aumento frenético das taxas de juros, muitos preferem alugar uma moradia, o que faz subir o preço do aluguel. Essa tendência de alta começou no final da pandemia de covid-19, mas os maiores aumentos ocorreram em 2022. “Parte da alta dos preços é explicada como uma recuperação após sua queda durante a pandemia”, disse Vinicius Oike, analista do Grupo QuintoAndar, à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC. Fim do Matérias recomendadas "Os preços subiam e desciam na forma da letra U", diz. Mas há cidades, aponta, onde os valores subiram muito acima de uma simples recuperação. De acordo com os dados compilados pelo site de locação QuintoAndar, considerando os preços anunciados em plataformas online, entre março de 2022 e março de 2023, o custo médio do aluguel de um apartamento subiu 126% em Buenos Aires; 12% na Cidade do México; 11,2% em São Paulo, 10,9% em Quito, e na Cidade do Panamá e 6,3% em Lima. Com uma inflação anual de quase 109%, a Argentina é o país mais afetado do Cone Sul. "Pagar o aluguel é muito difícil para mim", diz Paula Serenelli, uma chefe de família de 35 anos que mora com o filho em Villa Lugano, em Buenos Aires. "No ano passado aumentaram o aluguel em 90%, e neste ano pode vir outro aumento maior. Isso é ultrajante." Algo semelhante aconteceu com Gastón Levy, 38 anos, que mora em Palermo, uma área de alto poder aquisitivo de Buenos Aires onde não é incomum o aluguel superar o aumento da inflação. "Eles aumentaram em 87%, o que é bom se você olhar o índice em relação à inflação, que foi maior", diz. "Mas outras pessoas pegam um aumento médio de 60% a cada seis meses." Embora exista uma lei que regule o mercado de aluguéis, “na prática não funciona”, afirma Gervasio Muñoz, presidente da Associação de Inquilinos. "Aluguéis na Argentina funcionam sob a lei da selva." Os especialistas preveem que, enquanto a inflação no país não cair, os preços dos aluguéis em Buenos Aires também não vão diminuir. No restante das maiores economias da região, a escalada inflacionária está atingindo fortemente as famílias, mas longe dos níveis dramáticos experimentados pela Argentina. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No México, onde a inflação gira em torno de 10%, o preço dos aluguéis na capital segue uma tendência semelhante ou um pouco acima do aumento geral do custo de vida. "Os aluguéis têm sido reajustados entre 10% e 15%, em média", diz Leonardo González, analista imobiliário da empresa propiedades.com, referindo-se à alta dos valores. Segundo González, o aumento dos preços é explicado pela alta geral da inflação, uma menor demanda por empréstimos imobiliários (o que faz com que mais pessoas procurem alugar) e uma preferência crescente por locais com mais espaço para home office. Em bairros específicos da Cidade do México, onde moram pessoas com maior poder aquisitivo, os aumentos no preço do aluguel chegaram a até 40%, diz o especialista. Essa escalada está relacionada à chegada dos “nômades digitais” que, em muitos casos, recebem salários em dólares. Os bairros mais centrais estão “gentrificando”, diz Óscar García, que mora em Colonia del Valle e cujo aluguel de seu apartamento aumentou 30%. “Estou procurando alugar e está difícil”, diz. “Chegaram muitos estrangeiros que podem pagar preços altos e há casas que são alugadas exclusivamente pelo Airbnb.” Projeções de especialistas sugerem que o preço do aluguel na Cidade do México continuará crescendo. “O ano de 2023 vai ser caracterizado por uma tendência de alta dos preços. Projetamos um aumento médio de 12%”, diz González, ressaltando que o índice também pode variar a depender da inflação geral do país. Em outras capitais latino-americanas, os aumentos nos preços dos aluguéis foram menores. Quando os contratos de locação são renovados na Colômbia, os preços são ajustados de acordo com a taxa de inflação registrada em dezembro do ano imediatamente anterior. Se essa regra fosse cumprida, a alta dos valores atuais seria de 13%, que era o IPC (Índice de Preços ao Consumidor) de dezembro de 2022. Porém, na prática, muitas negociações não seguem essa tendência. O problema, apontam os que se dedicam ao negócio de aluguel, é que muitas vezes os proprietários saem perdendo ao baixar preços, principalmente quando o aluguel é essencial para sua renda. "Para muitas pessoas, o que recebem do aluguel é uma espécie de pensão", diz Liliana Báez, corretora de imóveis independente em Bogotá. O outro lado da moeda são os inquilinos que não podem pagar um aumento de 13% no preço do aluguel. Por fim, a negociação é o que define o aumento real do preço, diz Sergio Olarte, economista-chefe do Scotiabank Colpatria. Embora o Departamento Administrativo Nacional de Estatísticas (Dane), não tenha divulgado dados de preços de aluguel discriminados por cidade, Olarte estima que Bogotá seguiu a tendência em nível nacional, com um aumento próximo a 7%. O comportamento dos preços no futuro dependerá em grande parte do que ocorrer com a inflação geral do país. Entre as megacidades da América Latina está São Paulo, o maior centro comercial e financeiro do Brasil. Na cidade, o valor dos aluguéis subiu cerca de 11% no último ano, segundo o QuintoAndar. Após a pandemia, houve uma espécie de boom imobiliário em São Paulo, tanto no mercado de vendas quanto no de locação. As pessoas, principalmente os mais jovens, têm procurado os chamados microapartamentos, que podem ter menos de 30 metros quadrados e geralmente são construídos perto de estações de metrô. Estes microapartamentos costumam ser caros por causa da localização propícia. E, olhando para o futuro, os especialistas sugerem que o índice deverá continuar a aumentar devido à falta de terrenos disponíveis para construir nas zonas mais acessíveis. Se houver pouca terra disponível e alta demanda, o resultado é um aumento nos valores de venda e aluguel. Apesar da crise política e econômica que o Peru atravessa, os preços no mercado de aluguel em Lima não caíram. O aumento é menor em comparação outras cidades latino-americanas, mas o valor médio continua subindo, apesar das grandes diferenças que existem entre um distrito e outro. “Neste ano todos os bairros estão com preços acima dos de antes da pandemia”, explica Luciano Barredo, gerente de marketing da empresa Grupo Navent. Ao analisar os preços oferecidos nos anúncios de aluguel, o aumento médio no último ano em Lima chega a 6,3%. No entanto, ressalta Barredo, o valor divulgado nos anúncios tende a cair nas negociações. Então, levando isso em consideração, a alta em Lima fica mais próxima de 2,8%, explica o especialista. Esse fenômeno, segundo ele, é influenciado por fatores como a inflação geral — que fechou em 8% no ano passado —, a queda nas vendas de casas devido às altas taxas de juros dos empréstimos hipotecários, a taxa de câmbio e a incerteza causada pelo contexto político do país. Soma-se a esse panorama o fato de que “na área metropolitana de Lima há muito poucos terrenos disponíveis e os materiais de construção subiram muito depois da pandemia”, diz Barredo. Nesse contexto, "é quase impossível que os preços não continuem subindo". Com uma inflação próxima de 10% em abril, o valor dos aluguéis não acompanhou essa tendência na capital chilena. “O valor do aluguel cresceu bem menos que a inflação”, diz Daniel Serey, gerente de estudos do portal imobiliário TOCTOC. “Para o bolso das pessoas, o metro quadrado de aluguel subiu 2,1%, mas se olharmos por outro ponto de vista, o preço caiu mesmo”, diz Serey. Como se explica esta divergência? O analista argumenta que no Chile muitos aluguéis são fixados em relação ao aumento ou queda de um índice chamado Unidade de Fomento, mais conhecido como UF. Então, “se corrigirmos o preço do aluguel pela inflação e convertermos para UF, o preço na verdade caiu 9,5%”. Por mais que você olhe para os números, a questão é que em Santiago o valor dos aluguéis não subiu como está acontecendo em outras capitais. "O preço do aluguel não está subindo agora porque a situação da habitação é complexa", diz Serey. “O mercado imobiliário no Chile está sob uma pressão muito forte porque há um déficit habitacional muito grande. Estamos vivendo um fenômeno de explosão da habitação informal, dos acampamentos”, acrescenta. "A situação econômica está mais desacelerada. Menos pessoas compram casa e só lhes resta recorrer ao mercado de aluguel", diz o analista. Enquanto as construtoras continuarem criando novos projetos, os preços serão contidos, acrescentou. Mas se a indústria parar de construir casas no ritmo que vem construindo até agora, os preços vão subir. No caso das cidades latino-americanas onde o valor dos aluguéis tem subido rapidamente, Vinicius Oike, do QuintoAndar, projeta que "o mercado deve esfriar" neste ano e no próximo, à medida em que o crescimento econômico será menor. Isso dependerá muito de como vai evoluir a combinação de crescimento, inflação e juros em cada país, além das notícias econômicas que possam chegar do exterior.
2023-06-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cq5qrlpyxjgo
brasil
Após derrotas no Congresso, Sonia Guajajara diz que não entregará ministério de bandeja
No espaço de duas semanas, a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, enfrentou sua primeira crise política como integrante do Governo Federal. E não foi uma crise qualquer. Primeiro, o Congresso Nacional retirou, com aval do governo, a responsabilidade de sua pasta no processo de demarcação de terras indígenas. Depois, em um novo movimento, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que instituiu o marco temporal para as demarcações de terras indígenas em 5 de outubro de 1988. O primeiro movimento aconteceu em meio às negociações do governo para conseguir aprovar a medida provisória que criou a atual estrutura de órgãos e ministérios da gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Diante do risco de a medida provisória perder a validade, o governo cedeu e chancelou a retirada da demarcação da pasta de Guajajara, além de também desidratar o Ministério de Meio Ambiente, comandado por Marina Silva. Fim do Matérias recomendadas O segundo movimento, no entanto, foi o que mais deixou analistas e defensores da pauta indígena preocupados. O marco temporal é considerado uma ameaça pelo movimento indígena sob o argumento de que ele pode paralisar novas demarcações e colocar em xeque a segurança jurídica daquelas que já foram homologadas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A preocupação ficou ainda maior porque mostrou que, diante de um Congresso Nacional majoritariamente conservador e com uma bancada ruralista turbinada, o governo Lula não vem tendo condições políticas de impedir o avanço de pautas contrárias ao movimento indígena. Na sexta-feira, (02/06), Sonia Guajajara recebeu a BBC News Brasil em seu gabinete ainda em obras, em Brasília. Ela é a primeira pessoa indígena do Brasil a ocupar um ministério de Estado. O ministério foi criado após promessa feita por Lula ainda durante a campanha. Nos corredores do prédio, na Esplanada dos Ministérios, há tapumes por toda parte. Líder da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) por quase uma década, Sonia Guajajara foi candidata à vice-presidência da República em 2018 e, em 2022, foi eleita deputada federal pelo PSOL de São Paulo. À BBC News Brasil, a ministra disse não estar surpresa com o que classificou como "ataques" vindos do Congresso. Ela minimizou a falta de potência política do governo para tentar reverter as derrotas no Parlamento, disse que não pensou em se demitir após membros do governo voltarem atrás e apoiarem o relatório da MP que desidratou seu ministério e disse que não desistiria fácil. "Não, de jeito nenhum. Imagina… (Foram) 523 anos para criar um ministério e vou entregar de bandeja na primeira pedra que aparece no meu caminho?", disse a ministra. Confira abaixo os principais trechos da entrevista. BBC News Brasil - Nas últimas semanas, ministros do governo e, ao que tudo indica, o próprio presidente, deram aval para desidratação da pasta do Ministério dos Povos Indígenas. A senhora se sentiu de alguma forma traída pelo presidente? Sonia Guajajara - Não pelo presidente Lula. Mas o Congresso Nacional articulou muito para retirar essa atribuição do Ministério dos Povos Indígenas, que é a etapa da portaria declaratória. Quem vota é o Congresso. Quem aprovou essa medida provisória foi o Congresso Nacional. E a gente viu como eles (parlamentares) se comportaram, inclusive em relação ao Projeto de Lei 490 (que estabelece marco temporal para demarcações de terras indígenas) e até a retirada de outras pautas de outros ministérios. Foi uma pressão real, uma articulação forte dos parlamentares na Câmara dos Deputados. BBC News Brasil - Mas a senhora acha que o governo fez o suficiente para evitar que isso acontecesse? Sonia Guajajara - O governo interveio, sim. Tentaram articular, mas o relator, o (Isnaldo) Bulhões (MDB-AL), já chegou irredutível dizendo que o Congresso Nacional não apoiaria e que ele não teria força de conseguir a manutenção dessa pasta aqui no Ministério dos Povos Indígenas. BBC News Brasil - Quando o relatório foi aprovado, os ministros da articulação política disseram que tentariam reverter. Depois disso, eles disseram que iriam apoiar aquele relatório, dando aval à desidratação da sua pasta. A senhora disse recentemente que se sentiu frustrada com isso. Qual o seu sentimento hoje? Sonia Guajajara - É claro que eu não posso dizer que fiquei totalmente satisfeita, porque o ato declaratório (para demarcação de terras indígenas) é uma das principais pautas do Ministério dos Povos Indígenas e, inclusive, uma das principais razões para ele ter sido criado. Porém, essa atribuição já era do Ministério da Justiça e tendo o Flávio Dino como ministro da Justiça, ele assumiu toda a responsabilidade de não paralisar os processos que estão em andamento. Então, nós sentimos aqui essa confiança no ministro Flávio Dino de que nossas pautas irão continuar avançando e também com o compromisso do presidente Lula. BBC News Brasil - O que aconteceu nas últimas duas semanas teve, obviamente, repercussão internacional. Especialmente porque, durante a posse, o presidente Lula subiu a rampa do Palácio do Planalto na companhia do cacique Raoni, que é uma figura internacionalmente conhecida. Diante de tudo que aconteceu, surge a questão: o presidente Lula subir a rampa com Raoni dando a entender que daria apoio total à causa indígena foi apenas um jogo de cena? Sonia Guajajara - Não creio que foi um jogo de cena. O presidente Lula está muito comprometido com a questão indígena. Já tem dado muitos sinais importantes. Nós assinamos seis homologações (de terras indígenas). Durante dez anos, foram apenas 11 terras homologadas e, em quatro meses, nós conseguimos a assinatura de seis [...] Isso não esvaziou o ministério. Tirou uma das partes que para nós era uma das principais demandas, mas ações para a gente fazer aqui não faltam. BBC News Brasil - A senhora disse numa entrevista que a retirada da demarcação de terras da sua pasta removia o coração do seu ministério. Seu ministério corre o risco de se tornar um ministério decorativo sem essas atribuições? Sonia Guajajara - Não, de jeito nenhum. Tiraram o ato declaratório. Mas nós estamos também nesse diálogo para que o ministério tenha a participação nesse processo, que é o processo demarcatório. E temos a garantia tanto do presidente Lula quanto do ministro Flávio Dino, de que o ministério vai participar sim desse processo. BBC News Brasil - Ao longo de todo esse processo, a senhora pensou em pedir demissão? Sonia Guajajara - Não, de jeito nenhum. Imagina… 523 anos para criar um ministério e vou entregar de bandeja na primeira pedra que aparece no meu caminho? Nós vamos continuar trabalhando e lutando para fortalecer cada vez mais esse ministério, para consolidá-lo como um ministério que vai ter continuidade. BBC News Brasil - Há uma contradição entre o discurso que o presidente faz, inclusive internacionalmente, de defensor da pauta ambiental, de defensor da pauta indígena e a prática, quando, em menos de cinco meses, pressionado pelo Congresso, ele topa desidratar tanto a sua pasta quanto a pasta do Ministério do Meio Ambiente? Sonia Guajajara -Eu acho que não é bem o presidente Lula topar. Há uma incompreensão por parte do povo do Congresso Nacional sobre aquilo que realmente é de interesse do Brasil. No governo Lula, o presidente tem assumido vários compromissos de fortalecer a pauta ambiental e de reduzir o desmatamento ou zerar o desmatamento até 2030, de fortalecer a política climática. São três pautas que o presidente Lula tem colocado como uma das prioridades no seu governo. E o Congresso Nacional tem agido, inclusive, como uma reação a essa afirmação e à efetividade dessas políticas no governo Lula. Eles querem, de qualquer forma, constranger ou evitar que essas pautas avancem, porque eles são contrários. A maioria no Congresso Nacional é contrária à proteção do meio ambiente porque querem avançar cada vez mais com a política desenfreada do agronegócio. Isso não é uma contradição do presidente Lula. BBC News Brasil - Por um lado, há um governo que precisa da governabilidade diante de um Congresso majoritariamente conservador e, como a senhora mencionou, aparentemente contrária às pautas ambientais e às pautas indígenas. A senhora teme que, nesse contexto, um governo que precisa da governabilidade vá sacrificar ainda mais pastas como da senhora e a de Marina Silva? Sonia Guajajara - Eu não posso garantir que ele vai ceder. Eu só acho que eles precisam se articular mais com o Congresso Nacional para evitar que ocorram mais perdas. BBC News Brasil - Então, na sua avaliação, houve falha na articulação política que resultou no que aconteceu no Congresso? Sonia Guajajara - O Congresso sabe muito bem o que quer. Eles foram eleitos para defender as suas pautas e eles têm maioria. Eles se articularam. Não tinha como reverter essa situação, porque eles já estavam muito bem definidos sobre as pautas às quais eles iriam aderir ou não. BBC News Brasil - A senhora teme que novos ataques possam acontecer e o governo não tenha como reverter a situação? Sonia Guajajara - Eu não duvido que até o final desses quatro anos eles vão continuar investindo muito para que o governo Lula não implemente a sua política. Mas nós vamos estar aqui para tentar evitar o máximo que puder. Se a gente vai conseguir ou não, eu também não posso garantir. Mas nós vamos estar sempre de pé, como sempre estivemos na luta, com o apoio do movimento indígena, nessa parceria com o Ministério do Meio Ambiente, com outros ministérios, para que a gente possa evitar mais danos ou perdas. BBC News Brasil - Nas últimas semanas, houve a aprovação pela Câmara do projeto de lei que estabelece o marco temporal para demarcação de terras indígenas. O que significa o marco temporal para os povos indígenas? Sonia Guajajara - Então, o PL (projeto de lei) 490 é um risco geral pois ele tenta impedir toda e qualquer demarcação de terras indígenas para explorar os territórios e ainda transferir essa responsabilidade para o Congresso. Ele é muito danoso aos direitos indígenas. Nós estamos também nessa articulação com o Senado, com o Supremo, para que seja questionada a inconstitucionalidade desse projeto de Lei 490. No STF, está marcada a retomada do julgamento para o dia 7 de junho. (Se for aprovado o marco temporal), o tamanho do prejuízo é que as terras demarcadas de1988 para cá podem ser questionadas, e eles podem querer rever os processos de demarcação já concluídos, além de impedir novas novas demarcações e os novos processos que estão já em andamento. BBC News Brasil - Agora, o que isso significa lá na ponta? O que isso significa para os povos indígenas que já tiveram suas terras demarcadas? Sonia Guajajara - Além de um retrocesso, é uma insegurança total para os povos indígenas. [...] Isso é realmente muito perigoso, porque a gente já tem um passivo muito grande de terras indígenas a demarcar no Brasil e o marco temporal ainda pode desestabilizar muito mais esse processo. BBC News Brasil - Na sua avaliação, o presidente Lula não poderia ter feito mais para evitar esse resultado lá na Câmara? Sonia Guajajara - Olha, o governo fez o que pôde. Garanto que fez. Inclusive, quase que não consegue nem aprovar a própria medida provisória que estabelecia os órgãos de governo. BBC News Brasil - Se o governo fez o que pôde e mesmo assim não conseguiu (evitar a aprovação do PL 490), a senhora teme pelo futuro do que pode acontecer em relação à pauta indígena nessa composição de um governo que não tem maioria (no Congresso)? Sonia Guajajara - A gente sempre teme. Não tem como não temer. Afinal de contas, nós estamos aqui por pura resistência, por pura insistência. Para continuar a garantir esses direitos. Porque a tentativa (das forças políticas contrárias) sempre foi essa mesmo: a de acabar com direitos indígenas, de não cumprir. E o Congresso Nacional tem se fortalecido cada vez mais nessa tentativa de destruir os direitos indígenas. BBC News Brasil - A votação do marco temporal na Câmara mostrou que o Parlamento é capaz, sim, de aprovar pautas a despeito do interesse do governo. Como é para a senhora ser a primeira pessoa indígena, a primeira mulher indígena, a ocupar um ministério no Brasil, ao mesmo tempo em que vê o Congresso aprovando pautas consideradas pelo movimento indígena como anti-indígenas? Sonia Guajajara - Te garanto que para mim não fico surpresa com essa votação do Congresso, porque nunca foi diferente. A minha vida inteira, durante os dez anos em que eu estive à frente da Apib, sempre foi ali tentando conter a aprovação dessas medidas e eles sempre vieram pra cima desse jeito, sabe? Então, a diferença agora é que eu estou no lugar de governo, né? Mas a luta vai chegar mesmo. BBC News Brasil - Mas como a senhora está no governo, essa situação traz algum tipo de frustração maior para a senhora? Sonia Guajajara - Não traz porque eu já vivo isso a vida inteira, né? Eu realmente não tenho surpresa com esse comportamento e esses ataques que vêm do Congresso Nacional. BBC News Brasil - O ministro Kássio Nunes Marques, do STF, que votou a favor do marco temporal, disse que a não adoção dessa regra causaria uma insegurança jurídica muito grande no Brasil, à medida em que terras que já estariam incorporadas ao mercado imobiliário poderiam ser reivindicadas como terras indígenas. Qual sua avaliação sobre esses argumentos? Sonia Guajajara - Quem é contra a pauta indígena, quem é contra demarcações, sempre tenta confundir muito a opinião pública. Eu não tenho dúvida que tem muitas terras indígenas que hoje estão sobrepostas por vários outros tipos de empreendimentos [...] Agora, isso não quer dizer que nós estamos reivindicando todas as áreas no Brasil [...] Mas nós temos, sim, um mapeamento das terras indígenas que são reivindicadas. E tem um limite para isso, né? A forma como eles colocam é que isso seria ilimitado e que a gente está reivindicando Copacabana e a Avenida Paulista. Bom, se você considerar os primeiros habitantes do Brasil, se considerar quem estava aqui desde 1500, é claro que os povos indígenas teriam direito sobre todas as terras. Mas o que hoje a gente reivindica não é isso. BBC News Brasil - Uma das críticas frequentes de quem é contra o marco temporal reside no fato de que hoje, no Brasil, 13% do território nacional é composto por terras indígenas ou reservas indígenas. No entanto, os indígenas, segundo o IBGE, representam 0,45% da população. Setores como o agronegócio questionam: por que mais terras? Sonia Guajajara - E por que eles não questionam também que 46% do território nacional está na mão da propriedade privada rural? É um dado a se questionar. A diferença é que as terras indígenas são de usufruto coletivo. Não é individual. E é exatamente nas terras indígenas onde há a maior biodiversidade protegida, as maiores áreas de floresta em pé e as maiores áreas de nascentes de água, que é o que todo mundo precisa. Então, esses 13% de território indígena hoje no Brasil já incluem inclusive a maioria das que estão sendo reivindicadas, que não tem processo de demarcação concluído. BBC News Brasil - A Constituição prevê a possibilidade de mineração em terras indígenas, embora isso nunca tenha sido regulamentado. Há um projeto que foi apresentado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) que prevê a mineração em terras indígenas. Porque a senhora é contra a mineração em terras indígenas? Sonia Guajajara - A Constituição fala que tem que se ouvir o Congresso Nacional e as partes envolvidas para que se possa tomar essa decisão. Então, hoje nós não temos no Brasil nenhuma legislação para explorar a mineração em terras indígenas. O PL 191, que foi apresentado pelo ex-presidente, tentava legalizar a mineração em terras indígenas, porém ele não foi aprovado [...] E nós somos contra, sim, porque nós temos exemplos cruéis do que representa a mineração. Nós temos aí os casos de Brumadinho e Mariana [rompimentos de barragens de mineração ocorridos em 2015 e 2019, em Minas Gerais] que tanto trouxeram prejuízos ambientais, contaminando os rios e impedindo as pessoas de se banhar, de nadar, de exercer sua cultura, além de matarem muita gente. Nós temos consequências drásticas da presença do garimpo dentro dos territórios indígenas. O fato de legalizar não quer dizer que vai resolver esses problemas e que eles não vão existir. O garimpo traz prostituição, alcoolismo, doenças, drogas, além de alterar totalmente o modo de vida dos povos indígenas em seus territórios. BBC News Brasil - Em países como os Estados Unidos e o Canadá, algumas comunidades dos povos originários recebem royalties a partir da exploração tanto de minérios quanto de petróleo. Essa política de não permitir a exploração desses recursos não acaba empurrando para a ilegalidade parte de populações indígenas, como os Cinta Larga de Rondônia ou o Munduruku do Pará, considerando que alguns deles exploram e apoiam a atividade garimpeira? Sonia Guajajara - O que se tenta divulgar sempre é que tem indígenas favoráveis e não se amplia que a maioria dos indígenas é contrária [...] É importante que se diga que a maioria não está de acordo. O que a gente quer, sim, são políticas públicas adequadas. A gente quer acesso à educação de qualidade, à uma saúde eficiente. A gente quer essa presença do poder público nesses territórios indígenas e que se garanta proteção ambiental, a proteção dos territórios [...] É bem diferente dos Estados Unidos [...] O (ex-presidente) Bolsonaro, quando era deputado, chegou a dizer que eficiente mesmo era a cavalaria dos Estados Unidos que acabou com todos os povos indígenas, e hoje eles (os norte-americanos) não têm esse problema. Nos Estados Unidos, há sim indígenas que se beneficiam (com a exploração de recursos naturais). Mas, por outro lado, cadê a cultura? Acabaram com a cultura desses povos. E aqui, a gente luta muito para manter nossa identidade, nosso modo de vida e a nossa cultura viva. BBC News Brasil - Essa declaração do ex-presidente Bolsonaro foi feita há mais de 15 anos, aproximadamente. A senhora acha que ainda hoje há pessoas que pensam dessa forma em relação aos indígenas brasileiros? Sonia Guajajara - Acredito que sim. Afinal de contas, o Bolsonaro deixou muitos discípulos. BBC News Brasil - Quais alternativas econômicas estão sendo oferecidas aos povos indígenas que possam competir com o lucro da exploração ilegal de madeira, pescado e de ouro, por exemplo, na Amazônia? Sonia Guajajara - Acho que não é exatamente competir. É a gente fortalecer as atividades que os povos indígenas já fazem hoje e que nem sempre são valorizadas. Muitos indígenas, hoje, têm a sua produção própria. Desde que seja de forma sustentável, nós aqui também estamos trabalhando formas de apoiar essa produção indígena. O que a gente não quer é entregar os territórios indígenas para que sejam arrendados ou explorados para exportação, por exemplo. Então nós temos que fortalecer sim a economia indígena, conforme as iniciativas próprias já praticadas. BBC News Brasil - Diante desse cenário tão complexo da relação do governo com o Congresso, a senhora tem um limite de até onde pode chegar para se manter no governo? Sonia Guajajara - Olha, eu não posso prever. É claro que eu não posso prever agora que limite é esse. Assim como também eu não vou ficar se não houver um avanço nas políticas sociais, nas políticas que a gente defende para os povos indígenas. O presidente Lula falou para mim: "Soninha, você está ministra para fazer diferença na vida dos povos indígenas. E você não está aqui só pelo cargo." Ele mesmo falou isso para mim. Eu disse: "Certamente que não." Eu vou até onde achar que está sendo benéfico, onde a gente tiver espaço para continuar defendendo e fazendo essa diferença que ele mesmo defende. BBC News Brasil - Mas em termos de medidas, a senhora enxerga um limite até onde consegue ir? Sonia Guajajara - Não sei o que pode vir pela frente. Vamos tentar ver como é que rola.
2023-06-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c9e7r44d9e8o
brasil
Por que Brasil é o segundo país com mais casos de hanseníase no mundo
O dermatologista Marco Andrey Cipriani Frade trabalha com pacientes de hanseníase e estuda a doença há mais de 25 anos. Ele é professor da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, no interior paulista, e atualmente preside a Sociedade Brasileira de Hansenologia. Em meados de 2008, ao voltar de um pós-doutorado na Holanda, o especialista sentiu algo estranho. Dois dedos do pé começaram a formigar enquanto ele caminhava numa praia. Pouco depois, uma região da coxa perdeu pelos e ficou dormente. "Como eu não queria me autodiagnosticar, procurei dois colegas e relatei essa perda de sensibilidade. Eles disseram que provavelmente não era nada demais, apenas 'coisa da minha cabeça'", relata. Os exames laboratoriais que o médico fez também não permitiram nenhuma conclusão definitiva. Fim do Matérias recomendadas Não satisfeito, Frade foi conversar com sua chefe na universidade. "Ela examinou, disse que aquilo era hanseníase e precisava ser tratado", diz. A história do dermatologista, ele próprio um dos principais especialistas no tema do país, reflete uma realidade pouco divulgada. O Brasil ainda é o segundo país do mundo com mais casos de hanseníase — só fica atrás da Índia. Para piorar, dificuldades para reconhecer os sintomas mais frequentes desta doença e a falta de conscientização sobre o tema dificultam o diagnóstico precoce de uma condição para a qual há tratamento e cura. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A hanseníase é descrita em tratados de Medicina da Índia do século 6 a.C. Ela também aparece em diversas passagens do Novo Testamento da Bíblia, ainda com o nome pelo qual era conhecida no passado: lepra. No Evangelho de Marcos, por exemplo, há uma passagem em que um "leproso" se aproxima de Jesus Cristo e pede para ser curado. "E Jesus, movido de compaixão, estendeu a mão, tocou-o [...] Logo a lepra desapareceu e [ele] ficou limpo", diz o texto. Na Europa durante a Idade Média, indivíduos com a doença eram expulsos das cidades e obrigados a andar com um sino para anunciar a passagem. Muitos eram internados nos "leprosários" ou "lazaretos", instituições que continuaram (e continuam) a existir em muitos lugares — inclusive no Brasil. Em suma, a hanseníase é causada pela bactéria Mycobacterium leprae. Ela é transmitida por meio de gotículas de saliva e do contato próximo e frequente com um indivíduo infectado. Esse micro-organismo tem uma preferência pelos lugares mais frios do corpo — como cotovelos, joelhos, pés e lóbulos da orelha —, onde há uma menor circulação de sangue. Ele costuma se esconder nos nervos periféricos, que ficam logo abaixo da pele, e podem permanecer ali por anos ou décadas antes de manifestar qualquer sintoma. "Cerca de 90% da população consegue se defender bem do patógeno. Mas há 10% que, por uma questão de imunidade, vão desenvolver a doença", estima o médico Egon Daxbacher, coordenador do Departamento de Hanseníase da Sociedade Brasileira de Dermatologia. O nome hanseníase, aliás, faz referência ao cientista norueguês Gerhard Hansen, que descobriu o patógeno e o identificou como o causador da moléstia no século 19. Outra característica marcante da Mycobacterium leprae é o tempo que ela leva para se reproduzir: enquanto outras bactérias geram descendentes em 12 ou 24 horas, essa espécie tem uma replicação lenta, que demora até 15 dias. Essa morosidade ajuda a entender uma das características mais marcantes da enfermidade: os anos ou as décadas que ela demora a se manifestar e provocar os efeitos mais graves no organismo. Isso representa 13% de todos os casos registrados no mundo — segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), foram 140.594 pacientes detectados com o Mycobacterium leprae em todo o planeta naquele ano. No documento, o Ministério da Saúde faz uma análise das notificações de hanseníase no país entre 2010 e 2021. A boa notícia é que a taxa de novos casos está em queda: na maioria dos Estados, esse índice diminuiu. A doença só continua a ser considerada "hiperendêmica" (quando há mais de 10 casos por 100 mil habitantes) em Tocantins e Mato Grosso. Ela também está "muito alta" (5 a 9,99 casos por 100 mil habitantes) no Maranhão e no Piauí. Para completar, oito Estados têm uma taxa "alta" (2,5 a 4,99 casos) nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Daxbacher indica que a queda maior observada nos últimos dois ou três anos não deve ser encarada com tanto otimismo. "Eu gostaria muito que isso indicasse uma melhora da situação, mas certamente há um efeito da pandemia de covid-19 na diminuição dos diagnósticos da hanseníase", avalia. Ou seja: como falamos de uma doença de progressão lenta, a tendência é que as estatísticas também se modifiquem pouco a pouco. Na visão do dermatologista, grandes mudanças epidemiológicas num espaço tão curto de tempo refletem mais a urgência relacionada ao coronavírus, que exigiu um desvio em esforços e recursos de todo o setor de saúde. Frade faz outra ponderação a respeito desses números recém-divulgados. Ele lembra que, no início dos anos 2000, a OMS lançou uma estratégia para diminuir a hanseníase em todo o globo — a meta era ter menos de um caso por dez mil habitantes e, assim, tirar a doença da lista dos principais problemas de saúde pública. "E isso de fato ocorreu em boa parte do mundo. Mas o Brasil não alcançou esse objetivo", destaca o dermatologista. "Porém, com a meta global atingida, as campanhas de busca ativa de novos casos deixaram de ocorrer e as próprias Faculdades de Medicina passaram a não falar mais sobre a hanseníase com os novos alunos", lembra ele. Esse alívio das medidas até fazia sentido do ponto vista internacional — porém, no caso particular do Brasil e das outras nações que ficaram pelo caminho e não tiveram a diminuição esperada, a hanseníase perdeu a atenção que vinha recebendo. E isso, por sua vez, fez com que os casos e as transmissões continuassem a acontecer na surdina, sem o devido cuidado das instituições de saúde regionais, nacionais e internacionais. "O dado que aparece nos boletins epidemiológicos é nada mais, nada menos, que a representação da realidade. A questão é que os profissionais formados hoje em dia sabem pouco sobre quando suspeitar de hanseníase", opina Frade. Mas o que faz do nosso país um dos líderes do ranking global de hanseníase até hoje? Daxbacher explica que a doença está muito relacionada à pobreza e aos locais onde várias pessoas dividem a mesma casa. "Índia, Brasil e Indonésia são países muito populosos e com grandes aglomerados urbanos, onde mora boa parte da população", contextualiza. O dermatologista lembra que a bactéria causadora da enfermidade é transmitida por meio da respiração e depende do contato constante. "As pessoas mais acometidas ficam muito próximas umas das outras e moram em casas com poucos cômodos e baixa ventilação. Essa ainda é a realidade de parte da população brasileira e desses outros países", complementa. E isso, claro, se alia ao fato de a hanseníase ser uma doença que recebe menos atenção das políticas públicas. Sem diagnóstico e tratamento, os infectados seguem transmitindo a bactéria por muitos anos — o que perpetua as cadeias de transmissão dela na comunidade. Mas Frade lembra que a moléstia pode acometer gente de qualquer classe social. Segundo ele, a hanseníase está de fato vinculada à pobreza, mas ela não é exclusiva dos menos favorecidos. "Nós temos muitos pacientes de classe média ou alta que passam por inúmeras ressonâncias magnéticas ou ultrassonografias e demoram décadas para ter um diagnóstico adequado", destaca. Frade também chama a atenção para o fato de os sintomas da hanseníase serem mais amplos do que é conhecido pelo imaginário popular — em linhas gerais, as pessoas pensam que ela só provoca lesões deformadoras de pele. "Precisamos lembrar das manifestações neurológicas dessa doença", diz o professor da USP de Ribeirão Preto. Ele ainda estima que as lesões de pele clássicas aparecem em menos de 30% dos casos mais recentes. "As pessoas sofrem por muito tempo com outros sintomas neurológicos e há uma dificuldade enorme em reconhecê-los como um sinal de suspeita", lamenta ele. Os outros incômodos relacionados à hanseníase que vão além da pele incluem dormência e formigamentos de partes específicas do corpo (especialmente mãos, braços, pés, pernas e rosto), perda de sensibilidade de trechos da pele, cãibras e dores. E todas essas pistas da infecção têm repercussões práticas na qualidade de vida e na saúde dos acometidos. "É a dona de casa que encosta na panela quente e não sente nada. Ela só vai perceber a bolha na pele depois, enquanto toma banho. Ou o mecânico que não consegue mais rosquear um parafuso com a ponta dos dedos", exemplifica Frade. Com o passar do tempo — e a destruição dos nervos pela Mycobacterium leprae —, ocorre a perda de movimentos, deformações e outras complicações secundárias. "Há pacientes que calçam um sapato com uma pedra dentro e nem se dão conta. Eles só vão perceber algo de errado quando veem a meia cheia de sangue no fim do dia", lembra. "Fora que essas lesões despercebidas elevam o risco de outras infecções, que às vezes necessitam até de amputação", acrescenta o médico. O dermatologista destaca que, nas definições oficiais da OMS, o diagnóstico da hanseníase é feito a partir de um trio de manifestações: "Se há um desses três fatores, mesmo que o teste dê negativo, é necessário pensar em hanseníase", esclarece Frade. Daxbacher pondera que o xis da questão está na detecção precoce. "Se realizarmos o diagnóstico nos primeiros estágios, o paciente pode apresentar apenas queixas neurológicas sem manifestações na pele", diz. "Portanto, é importante procurar o serviço de saúde para uma avaliação se você estiver com dormência persistente em partes do corpo ou o aparecimento de manchas na pele, especialmente aquelas que não ardem, não coçam e não doem", orienta. Esses sintomas podem ser várias coisas — de diabetes à hérnia de disco, de micose à dermatite. Mas também sugerem o início de uma hanseníase. Feito o diagnóstico, o tratamento é relativamente simples e está disponível a todos os brasileiros no Sistema Único de Saúde (SUS). A depender do estágio e do grau de acometimento, o médico vai prescrever dois ou três antibióticos, que são tomados por seis a doze meses. Esse esquema terapêutico tem poder curativo — mas pacientes que já tiveram lesões profundas em nervos muitas vezes não recuperam 100% dos movimentos ou da função de pés, mãos e outras partes do corpo, infelizmente. Daxbacher destaca que, nos últimos meses, o Ministério da Saúde atualizou a estratégia para lidar com a hanseníase. "Uma novidade que já está em curso em vários Estados é a implantação de um teste rápido que permitirá acompanhar os familiares de indivíduos que foram diagnosticados com a doença", resume. "A ideia é seguir mais de perto essas pessoas ao longo dos anos para conferir se elas se infectaram. A partir daí, é possível fazer a detecção mais precoce e iniciar o tratamento", complementa. A esperança é que esse rastreamento de contatos permita flagrar os casos nos estágios iniciais e impedir a criação de novas cadeias de transmissão do Mycobacterium leprae na comunidade — para, futuramente, ter taxas cada vez menores dessa enfermidade no país. Para Frade, a hanseníase deixará de ser um problema de saúde pública no Brasil quando médicos, enfermeiros e outros especialistas estiverem melhor treinados sobre o problema. "É necessário formar e capacitar profissionais de saúde para que eles não tenham preconceitos e sejam capazes de reconhecer os três sinais cardinais da hanseníase", conclui ele.
2023-06-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjr1gx29421o
brasil
'Cabo de guerra' entre Lula e Lira é fruto do 'presidencialismo do descaso' criado por Bolsonaro, diz professor da USP
À época, a então presidente resolveu apostar na pauta anticorrupção como marca de sua gestão. Essa decisão, de acordo com o cientista político Fernando Limongi, da Universidade de São Paulo e da Fundação Getúlio Vargas, levou a uma espiral de resultados que custariam a Dilma não só o próprio mandato, mas levariam a um processo que enterrou o presidencialismo de coalizão como o país o conhecera até então. Em seu lugar, veio o que Limongi batiza de “presidencialismo do descaso”, fundado por Jair Bolsonaro (PL) que teria legado à Câmara — e particularmente a Lira — a administração de recursos que historicamente cabiam ao Executivo. Com isso, estabeleceu um "cabo de guerra" entre Lira, que tenta preservar o protagonismo da era Bolsonaro, e Lula, que quer retomar o poder que experimentou nos dois primeiros mandatos. Possivelmente, no entanto, a situação do país — e de seus políticos — teria sido diferente se Dilma não tivesse apostado muitas fichas na Operação Lava Jato. No primeiro mandato, embora fosse popular, Dilma buscava uma assinatura política própria e, em oposição ao PT, cujos quadros históricos enfrentavam o julgamento do Mensalão no Supremo Tribunal Federal, apostou no saneamento dos focos de corrupção da Petrobras como legado. Fim do Matérias recomendadas Ex-ministra de Minas e Energia, Dilma via na petroleira a chave para seu programa de reindustrialização do Brasil, que seria financiado a partir do lucro obtido pela exploração do pré-sal. A empresa, porém, coalhada de indicações políticas, patinava em entregar os resultados que a presidente esperava. Foi por isso que, na interpretação de Limongi, Dilma alimentou a Operação Lava-Jato, uma criatura da qual ela perdeu o controle, que se voltou contra a própria presidente e seu padrinho, Lula, e que foi central para que ela também perdesse a base parlamentar sólida de que dispunha no Congresso, herdada do antecessor. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ao investir no combate à corrupção, Dilma criou as condições necessárias para o seu próprio impeachment, argumenta Limongi, em seu recém lançado Operação Impeachment - Dilma Rousseff e o Brasil da Lava Jato (Editora Todavia). “Para salvar a embarcação, o sistema político resolveu lançar a carga (Dilma) ao mar”, diz Limongi. Usando centenas de reportagens dos jornais Folha de S. Paulo, O Estado de São Paulo, O Globo e Valor Econômico, Limongi reconstrói a história dos anos entre o começo do primeiro mandato de Dilma até o desfecho do impedimento da então presidente. Ele tenta demonstrar que não foram a crise econômica, as pedaladas fiscais, os protestos de 2013 ou a queda de popularidade os fatores determinantes para a derrubada da presidente. E que as repercussões de suas apostas e de sua saída, em agosto de 2016, ainda não deixaram de se desdobrar. Leia a seguir os principais trechos da entrevista, concedida por videochamada e editada por concisão e clareza. BBC News Brasil - O PT diz que Dilma sofreu um golpe, interpretação que parte da ciência política tem chancelado. O senhor diz que “impeachments não são golpe”. O impeachment de Dilma é um golpe ou não? Fernando Limongi - Do ponto de vista de uma definição clássica de golpe, não é golpe, é impeachment. Impeachment está previsto na Constituição. É um recurso de última instância que deve ser usado em casos excepcionais, e o caso contra Dilma não era um que pedisse isso. Tanto que, é interessante notar, eu não faço menção no livro, em nenhum momento, à justificativa dada para fazer o impeachment, que são as pedaladas fiscais. Porque não foram as pedaladas que levaram ao impeachment. E quem defende que precisava ter o impeachment justifica buscando questões de políticas públicas, má gestão da economia ou coisa desse tipo. Mas isso não pode ser motivo de impedimento. E além do que, você obtém essas correções por outros meios muito menos traumáticos. Então não é um golpe, mas é um processo traumático e desnecessário. BBC News Brasil - O senhor argumenta no livro que o PSDB estaria disposto a radicalizar, a um golpe… Limongi - Não é um golpe, mas é ali, é na margem. E o PSDB está disposto (naquele momento) a ir às últimas consequências para tirar o PT do poder, e puxando a corda ao limite, ou mesmo ultrapassando o limite, como quando vai ao TSE (questionar a lisura das urnas após a derrota em 2014). (No segundo mandato de Dilma) o PSDB vai jogando o tempo inteiro com duas alternativas: o impeachment e a cassação da chapa (Dilma-Temer). Então o PSDB, de uma forma ou de outra, quer abreviar o mandato e antecipar a alternância no poder, está desrespeitando as regras (democráticas). Mas meu argumento é que o PSDB, mesmo sendo extremado, radical, inconsequente e irresponsável, ele seria incapaz de derrubar a Dilma sozinho. O PSDB não tinha força para tanto, não tinha os votos para tanto. A oposição não derruba, não é capaz de fazer um impeachment. Era preciso um outro elemento aqui para explicar o que aconteceu. BBC News Brasil - E esse outro elemento foi o rompimento entre Dilma e sua base parlamentar por causa da prioridade que ela deu à pauta anticorrupção? Limongi - É isso. Ela faz do combate à corrupção uma das suas bandeiras. É uma tentativa dela de liderar esse processo, mas ela perde o controle, o gênio sai da garrafa. Ela monta e insufla a Lava Jato, deixa a Lava Jato se constituir (no período, ela propõe a lei da delação premiada e outros recursos que foram usados pela Lava Jato), percebendo que essa é uma agenda importante para a sociedade brasileira, que está mobilizando a sociedade brasileira, porque teve o julgamento do mensalão (em 2012), teve (as manifestações populares de) 2013, então essa questão está posta. E é uma batata quente que o PT e sua coalizão estão fazendo de conta que não existe, querem pôr debaixo do tapete. E a Dilma decide que não. E eu acho que não era um plano originalmente dela. É uma briga que ela tem com algumas pessoas dentro do PT em relação a uma política específica, que é a Petrobras e como fazer a Petrobras funcionar. Quando ela tenta fazer a Petrobrás funcionar, ela põe a mão no vespeiro, briga com gente graúda dentro do PT, briga com a Construindo um novo Brasil, que é a tendência mais forte do PT, que tinha mantido Sérgio Gabrielli como presidente da Petrobras por todo aquele período. Ao fazer essa modificação e trazer a Graça Foster para a presidência e fazer um saneamento da Petrobras (com demissão dos diretores indicados pelos partidos aliados) para ver se a Petrobras podia ser a locomotiva do processo de industrialização brasileiro que ela tinha em mente, ela mexe nesse grupo e nos interesses que estão rodando ali com a geração de recursos ilícitos dentro da Petrobrás. E aí ela faz disso a sua bandeira política, ou tenta fazer, para se contrapor a esse grupo. E esse conflito vai se estender no tempo. A ruptura para valer com o PMDB e com o (então presidente da Câmara) Eduardo Cunha se dá só (mais tarde) quando Cunha é denunciado pela Lava Jato e passa a ser processado ou citado no Supremo Tribunal Federal. Aí o Cunha passa para a oposição e começa a liderar o processo de impeachment da presidente Dilma. BBC News Brasil - O PSDB surge no processo de redemocratização do Brasil e é o segundo partido com maior sucesso eleitoral na presidência na democracia. Por que, de repente, decide romper com as regras do jogo democrático? Limongi - É muito difícil de entender. A única explicação que eu tenho, e que eu sugiro no livro, é que o (atual deputado federal) Aécio (Neves) está, em verdade, inebriado com o sucesso final (em 2014), depois de ter passado a campanha toda lá embaixo (nas intenções de voto para a presidência), ele chega a quase desistir em favor da Marina (Silva), ia sair como derrotado e de repente dá um sprint fabuloso (Aécio teve 8 pontos percentuais nas urnas a mais do que indicavam as pesquisas da véspera e foi ao segundo turno). Ali criou um sonho na cabeça dele: 'Se a campanha tivesse mais dois, três dias, eu teria ganho.’ Isso é um equívoco digno de político inexperiente, porque sempre no final da campanha há algum rearranjo, pode acontecer um sprint assim. E teve um certo movimento de rua ali. No final da campanha dele, gente que tinha ido às ruas em 2013, como o Vem pra Rua, o MBL, esse pessoal também vai para rua no segundo turno de 2014 e dá esse caráter, digamos, de movimento social, à campanha do PSDB no final. Então o PSDB vive um sonho de que o partido poderia se transformar num partido de massa e que poderia combater e vencer o PT nas ruas e vencer o PT nas ruas. Tem vários projetos que são ali acalentados, o (José) Serra delira de formar umas caravanas, e de fazer vídeos com o Fernando Henrique. Estavam delirando, como mostra aquela frase do Antonio Imbassahy, um líder baiano do PSDB, que fala: 'é como se a gente tivesse ganho a Copa do Mundo e tivesse entrando no estádio'. Então é assim, os caras perderam o pé no chão de um lado. De outro lado, a quarta derrota seguida à presidência faz com que o PSDB comece a questionar suas estratégias ou que os derrotados, a direita como um todo, passe a questionar a própria liderança do PSDB sobre a direita. Então, por exemplo, o Bolsonaro já põe a cara de fora e diz 'Eu sou candidato na próxima eleição'. E vem com esse papo de que o PSDB é muito mole, muito parlamentar e que para vencer o PT precisa usar dos mesmos meios que o PT usa, e que o PT é um partido de gente descompromissada com a moral e que faz qualquer nota para ganhar eleição. Então nós também precisamos fazer isso. Então, o PSDB está sendo pressionado pela direita e o Aécio vê nisso a possibilidade dele, na verdade, ser o líder desse movimento e instrumentalizar essa pressão para vencer a concorrência com o Geraldo Alckmin, que, pelas regras não escritas do partido, seria o candidato (à presidência) em 2018. Então ele embarca nessa radicalização e o partido se divide entre os que entram com o Aécio e os que tentam chamar o partido à razão. BBC News Brasil - Outro ponto crítico na história, do lado da esquerda, é por que a Dilma, que era extremamente popular quando decide abraçar a pauta anticorrupção, toma esse caminho? Limongi - Evitei abordar isso no livro até porque não parecia uma coisa muito estabelecida, mas a pessoa forte na orientação da Dilma e que definiu essa estratégia dela foi o (marqueteiro) João Santana, porque ela começa a subir de popularidade quando faz aquela faxina ministerial no primeiro ano de governo (em que demite uma série de ministros acusados de malfeitos nos primeiros meses da gestão). Então aquilo vai dando muita repercussão. O João Santana está fazendo pesquisa de opinião pública e está vendo que aquilo está pegando bem. Aí vem o julgamento do mensalão (em 2012) e esse passa a ser o grande ponto negativo do PT, ao qual o PT não sabe como reagir. Nesse meio tempo, a Dilma entra em conflito com o PT na Petrobras. Ali, ela não queria moralizar, mas queria tornar a empresa eficiente. Ela percebe que os navios-sonda não estão saindo, que a exploração do pré-sal não vai se concretizar, daí coloca a Graça Foster, tira os diretores políticos para tentar fazer funcionar. Mas mesmo que desse certo, seria uma medida de muito longo prazo, ela não veria resultado imediato, então ela precisava de uma marca, porque apesar da popularidade, até então ela não tinha uma bandeira. Então ela acaba adotando esse projeto (do combate à corrupção), que é um projeto tolo, é um projeto contraproducente. É uma bandeira que necessariamente vai gerar problema de popularidade e de apoio para ela. O governo não pode dizer que ele vai acabar com a corrupção porque (se há) a corrupção, (ela) é o governo. Não adiantava a Dilma dizer que corrupção existia desde 1500, as pessoas não querem saber, (no fim) ela seria a responsável final. Aí é o erro do João Santana, porque ele cria uma estratégia que não tinha como dar certo. BBC News Brasil - E historicamente não deu certo no Brasil, onde as pessoas costumam votar com base na economia… Limongi - Sim, quando a Marina quase ganha a eleição, ou mesmo quando o Aécio ameaça a Dilma, o João Santana volta para a economia. Ele refaz a campanha e vai para a economia dizer que seu prato que vai ficar vazio ou você vai ficar com fome porque os outros candidatos vão fazer recessão, retoma o mote do PT de investir na renda dos mais pobres, e assim que ele ganha a eleição (de 2014). BBC News Brasil - Durante a última campanha, em 2022, ficou evidente o mal-estar do Lula em falar de corrupção. O tema continua sendo uma ferida aberta para o PT? Limongi - Eu acho que sim. A oposição foi muito hábil em construir essa imagem de que o PT é intrinsecamente corrupto, que é da natureza do PT e que o PT praticaria uma corrupção diferente, mais poderosa, porque o PT tem um projeto de poder. Mas não é diferente coisa nenhuma. Tanto que os atores são os mesmos: a Odebrecht, a JBS, a Camargo Corrêa financiando os dois lados, e da mesma forma, pelo mesmo tipo de relação. E é isso que vai dar lá no final, quando a Lava Jato começa a puxar a base de dados da Odebrecht e revela está todo mundo na folha de pagamento da Odebrecht, que não é só o PT, aí que dá o desespero. Aí (a classe política diz:) ‘Vamos jogar a mercadoria (Dilma) ao mar pra salvar a embarcação’. BBC News Brasil - A gente tem ouvido ao menos desde o governo Temer que o Brasil vive uma situação de semipresidencialismo. Depois que o Orçamento Secreto foi adotado como prática, com a transferência do controle de grandes recursos para o legislativo no governo Bolsonaro, essa ideia ganhou força. Essa semana, o Congresso ameaçou desconfigurar o Executivo de Lula. A queda de Dilma também implicou na derrocada do sistema de presidencialismo de coalizão como o conhecíamos? Limongi - Não foi imediato, quem acabou de implodir isso (o presidencialismo de coalizão) foi o Bolsonaro. O que a Lava Jato e o impeachment da Dilma implode é o sistema partidário brasileiro, sobretudo a centro-direita. O PT consegue se reerguer com base nos seus governadores do Nordeste. Mas o resto do sistema político sucumbe ao terremoto. Bolsonaro poderia ter reconstituído, organizado a direita e a gente ter um sistema novamente funcional, minimamente equilibrado. Mas não fez. Então, a destruição completa que a Lava Jato traz é quando a Lava Jato chega ao poder, o espírito Lava Jato chega ao poder com Bolsonaro. O Bolsonaro é um lavajatista, é desse espírito de que justiça boa é justiça rápida e eficaz para eliminar os criminosos. Não é casual que o Moro virou o Ministro da Justiça dele, porque há esse casamento ideológico e de princípios. Para Bolsonaro, governar nunca foi o negócio dele, nunca foi a preocupação, o norte ou o objetivo dele. E com isso ele deixa o poder de governar ou a definição (do destino) dos recursos que o Estado tem nas mãos escapar do Executivo ou ser puxado pelo Legislativo. Era um processo que já vinha ocorrendo e Bolsonaro deixou ir ao paroxismo com o Orçamento Secreto, que é essa manifestação de que Bolsonaro não queria saber do orçamento. (O então ministro da Fazenda Paulo) Guedes também não queria saber de orçamento. Então, (dizem ao Congresso): 'toma que o filho é seu. Vocês sabem o que fazer com isso? Façam alguma coisa’. Então esse é o quadro que a gente está vivendo agora, que tem essa continuidade que foi dada pela eleição do presidente da Câmara, que permanece o mesmo do segundo biênio do Bolsonaro, quando Bolsonaro realmente completa esse presidencialismo de descaso que o caracteriza, quando passa ao Congresso a função de governar. Então, isso desequilibrou ou reequilibrou o sistema. Acho que seria exagero falar em semipresidencialismo ou coisa desse tipo. Acho que o que a gente tem é um certo conflito e uma indefinição quanto aos rumos que isso vai tomar. BBC News Brasil - A Dilma contou por muito tempo com uma base parlamentar sólida, negociada, como seus antecessores também fizeram, à base de cargos e emendas. Hoje, o governo Lula não tem essa base e parece muito difícil formá-la. O que mudou? Limongi - O sistema está mais rígido. Lula e Dilma puderam contar com uma enorme migração partidária para montar suas bases. O PSD, por exemplo, foi criado no governo Dilma puxando deputados do DEM. O Lula tem uma migração partidária pro PP e pro PTB enorme no início do primeiro mandato (ambos compunham a base naquele momento). Essa migração não existe mais (a reforma eleitoral de 2015 estabelece que migração partidária só pode ocorrer dentro de janela específica ou com justa causa). Os partidos que estão fora do governo se comprometeram muito fortemente com o projeto do Bolsonaro. Boa parte deles tem um governador eleito ou uma liderança estadual a qual poderiam se ligar e lançar para enfrentar Lula na eleição de 2026 ou mesmo seguir aderindo a Bolsonaro. A adesão ao governo era muito mais fácil antigamente, porque você sabia que o candidato de oposição ia ser do PSDB. Agora, você não sabe de onde vai ser. Então esses partidos estão lutando ali para ver se de repente é um deles 'o novo PSDB' que vai liderar a oposição. E o bolsonarismo está espalhado por todos eles, pelo PL, União Brasil, PTB, PR. Então você não consegue ter previsibilidade e coesão das máquinas. E ainda em toda a questão da cláusula de barreira e o fim das coligações proporcionais, que criam uma baita incerteza para os partidos sobre a sua sobrevivência na próxima eleição. Então é uma questão difícil de ser resolvida. E tem o fator Lira, que concentrou muito poder como presidente da Câmara nos últimos anos, com as sessões remotas durante a pandemia. Por tudo isso não está claro qual vai ser o novo equilíbrio ou se não teremos um equilíbrio e um confronto aberto entre presidente da República e presidente da Câmara vai se tornar o novo padrão. BBC News Brasil - Seu livro deixa claro que Dilma cai quando perde sua base parlamentar. Considerando que o Lula até agora sequer construiu uma base, seria ele um forte candidato ao impeachment também? Limongi - Não, porque hoje o Lula teria os votos para barrar. E acho também que o impeachment da Dilma foi muito traumático para que as elites políticas voltem a brincar com fogo. BBC News Brasil - A gente sabe que os operadores diretos do processo de impeachment, como o grupo de Eduardo Cunha e Michel Temer, no PMDB, e Aécio, no PSDB, acabaram alvejados pela Lava Jato e tiveram seu poder político reduzido. Mas eu queria jogar luz na figura do Lula. Seu livro mostra o quanto de fogo amigo do PT a Dilma enfrentou. Lula fez tudo o que podia para salvar o mandato de Dilma? O senhor arriscaria pensar aqui o que teria acontecido com Lula se ele tivesse virado ministro de Dilma no auge da crise (a posse foi impedida pelo STF e pela divulgação de um grampo irregular de conversa entre Dilma e Lula)? Seria ele hoje presidente? Limongi - Esse contrafactual é muito difícil de ser feito. Eu acho que o Lula fez aquilo que um líder deveria ter feito ali. Ele tem um conflito com a Dilma, que se estende até agosto, setembro de 2015. O fogo amigo está rolando ali de parte a parte e não tem o bonzinho, a vítima, são os dois e suas facções que estão brigando por poder e por controle da máquina do Estado. E isso é política. Mas a hora que a Dilma é ameaçada pelo Cunha e por uma possibilidade real de impeachment, eles se entendem melhor. E o Lula ajuda a Dilma a remontar o ministério e vencer o Cunha, quando traz o grupo do Jorge Picciani para dentro do governo e o PT cede o Ministério da Saúde para o PMDB, que é a joia da coroa, principal ministério, com maior recurso. Então o PT, a Dilma e o Lula se entendem e fecham um acordo e a ‘Construindo um novo Brasil’ vem para o centro do governo, com o Jaques Wagner e com (Ricardo) Berzoini, e começam a encaminhar as coisas. Acho que esse movimento estava dando certo até a Lava Jato partir para destruir o governo. A Lava Jato parte para cima da Dilma e do Lula ao mesmo tempo. Naquele momento, a decisão do Lula é muito difícil. Ele tem duas alternativas: vir para o governo e salvar a Dilma. Ou se preservar, deixar a Dilma cair, e voltar em 2018, concorrendo às eleições. Do ponto de vista do partido, se pode pensar que a melhor alternativa era preservar o seu grande líder, deixar o governo Dilma ir pro brejo e tentar recuperar o poder em 2018. Mas essa alternativa se torna inviável porque seria politicamente insustentável que Lula deixasse Dilma se afogar sem ajudar. É por isso que ele aceita entrar para o governo. Mas Lula sabe que é tarde. Aparentemente, ele tem a noção de que vai ser muito difícil salvar o governo Dilma. E pela minha reconstituição (dos fatos a partir da cobertura jornalística), eu acho que, quando ele aceita ser ministro, ali já estava selado (o destino do governo Dilma). O PMDB e o PSDB já tinham se entendido, e o PP também. Então o impeachment viria mesmo com o Lula. Agora, claro, de repente isso muda todo o cenário, era uma possibilidade. BBC News Brasil - Então, claro que Lula não desejava ter sido preso e tudo o que se seguiu, mas aparentemente as decisões de Sergio Moro “salvaram” Lula de virar ministro de um governo que seria derrubado, o preservaram politicamente? Limongi - No médio prazo, primeiro, quem salvou o Lula foi o Gilmar (Mendes, ministro do STF), ao impedir que ele tomasse posse (como ministro). Aí ele não precisa dizer 'Eu não tentei salvar a Dilma'. Ele pode dizer: 'Eu tentei, mas fui impedido’. Se ele não fosse preso, teria sido o melhor dos mundos para ele. Mas a prisão acaba adiando (em quatro anos) a volta política dele. Acho que se ele tivesse assumido o ministério, mesmo que ele tivesse evitado a queda da Dilma, seria impossível que ele evitasse a crise econômica. Teria que ter um ajuste econômico, ele sabia, tanto que estava propondo que o Henrique Meirelles fosse o ministro da Fazenda. Então ele teria que assumir a crise, era um abraço de afogados. Não tinha como ele escapar. E é por isso que ele hesita tanto (em assumir o ministério). Mas isso tudo é especulação nossa, porque o que acontece de verdade é que o Lula é impedido de ser ministro, acaba condenado pela Lava Jato e é preso, o que lhe deu a possibilidade de se isolar durante o governo Bolsonaro e como o PT sobrevive muito fortemente no Nordeste, usar essa base para voltar ao poder. É interessante ver que esse PT que chega ao poder tem pouco a ver com o PT que se elege em 2002. Agora, no Executivo, há lideranças com experiência de executivo no Nordeste (e não do meio sindical paulista): Rui Costa, Wellington Dias, Camilo Santana, Flávio Dino. BBC News Brasil - Na sua avaliação, a solução do imbróglio de Lula com Lira depende de uma reestruturação da direita? Limongi - Depende da reestruturação da direita e o quanto a direita acredita que pode passar a pão e água até a próxima eleição. A direita acredita que terá um candidato para confrontar o Lula em 2026 ou vai querer negociar ministério e apoio? BBC News Brasil - O governo Lula tem sido muito criticado por problemas de articulação política… Limongi - Ninguém ganha nem perde todas. Agora, às vezes se perde não porque você é ruim, mas porque o outro é bom também. Ou porque nas condições dadas ninguém conseguiria ganhar. Então tem que entender que a situação é ruim, a gente tem um cenário em que o Bolsonaro ganhou a eleição legislativa, essa é a verdade. A gente tem um Congresso que é de direita e que é de direita irresponsável, que é esse modelo Bolsonaro, que é o cara que quer fazer farra, que quer botar peruca (referência ao deputado Nikolas Ferreira), que quer fazer lacração e que não tem o menor interesse no que vai acontecer com a política pública. E por isso é difícil de negociar, porque esses deputados não têm interesse de pegar um ministério e transformar o ministério em algo que vai fazer alguma coisa. Eles querem fazer fuzarca.
2023-06-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4n95n54jl5o
brasil
Gasolina subiu mais do que inflação nos cinco primeiros meses do governo Lula: o que esperar agora?
A gasolina ficou mais cara desde que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assumiu, em 1º de janeiro, e o aumento ficou acima da inflação até o mês de maio. O preço nas bombas voltou a subir na quinta-feira (1/6) com uma mudança na cobrança do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) pelos Estados. A estimativa de especialistas ouvidos pela BBC News Brasil é que isso deve elevar o preço cobrado na bomba em R$ 0,17 em 23 dos 26 Estados brasileiros e no Distrito Federal. Antes, o ICMS acrescia R$ 1,05 ao valor da gasolina nestes locais, mas agora isso deve passar para R$ 1,22 - de forma unificada no país todo. As três exceções são o Amazonas, Alagoas e Piauí, que tinham uma alíquota superior a R$ 1,22, e, com a mudança que torna esse valor uma alíquota em todo o Brasil, terão uma queda no preço da gasolina. Fim do Matérias recomendadas Na média nacional, essa alteração do ICMS deve, na prática, anular a queda nos preços anunciada pela Petrobras em meados de maio, de acordo com cálculos feitos por economistas a pedido da reportagem. Os especialistas apontam que, com a mudança no ICMS, o preço médio da gasolina no Brasil deve ficar em R$ 4,67. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Considerando a média de dezembro de R$ 4,30, divulgada pela Agência Nacional de Petróleo (ANP), o balanço dos primeiros cinco meses do governo Lula é de um aumento de 8,6% em relação ao último mês do governo de Jair Bolsonaro (PL). Isso é mais do que o dobro a prévia da inflação oficial acumulada até maio, de 3,12%, calculada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ao assumir, Lula prorrogou por dois meses a isenção de impostos federais (PIS/Cofins) sobre os combustíveis que havia sido aplicada por Bolsonaro em junho de 2022. Os impostos voltaram a ser cobrados em março, encarecendo os combustíveis. Em maio, o preço dos combustíveis caiu após a Petrobras anunciar uma mudança em sua política de preços. Adotar uma nova política de preços na estatal foi uma promessa de campanha de Lula. As regras que estavam em vigor desde 2016 seguiam de perto as oscilações do valor do petróleo no mercado internacional. A nova política passou a levar em conta alguns fatores domésticos, mas continuarão seguindo parâmetros internacionais. Agora, o novo formato de cobrança do ICMS deve anular esse ganho para o consumidor. "Um se sobrepõe ao outro", explica André Braz, economista e pesquisador do FGV IBRE (Instituto Brasileiro de Economia). Na refinaria, a queda da gasolina após a mudança anunciada pela Petrobras foi de 12,5%, de acordo com o cálculo do economista. A expectativa, explica Braz, é que metade dessa redução - cerca de 6% - chegue aos postos de gasolina em um período de um mês - os postos têm liberdade para definir seus próprios preços. Mas, por conta da data do anúncio, dia 17 de maio, metade desta queda (3%) ocorreria em maio e a outra metade, no início de junho. De acordo com os dados mais recentes da ANP, o mês de abril fechou comum preço médio da gasolina (levando em conta todos os Estados) de R$ 4,82. Em maio - que ainda não tem dados oficiais da ANP -, diz Braz, a expectativa é que, com a queda de 3% do primeiro impacto da mudança na Petrobras, o preço feche em torno de R$ 4,67. Com a queda de mais 3% prevista para o mês de junho, o economista calcula que isso resultaria em um preço médio de R$ 4,52 em junho. Mas, como o aumento do ICMS deve fazer a gasolina ficar R$ 0,15 mais cara na bomba, o preço médio ficaria novamente em R$ 4,67 na bomba, aponta Braz. "Em conclusão, volta ao valor de maio - um neutralizou o outro." Os analistas ouvidos pela BBC News Brasil é que o preço da gasolina pode voltar a cair nos próximos meses, embora os efeitos da nova política de preços da Petrobras ainda sejam turvos. Embora a nova política esteja menos sujeita à variação do preço do petróleo no mercado global, esse é ainda um fator levado em conta no cálculo. Mas há um limite de quanto o governo pode segurar um eventual repasse da alta dos custos no mercado externo, na avaliação do ex-diretor da ANP. A economista Mirella Hirawaka, da Az Quest, aponta que os preços já têm oscilado entre um intervalo de preços similar nos últimos meses. "Há um espaço para queda de preços de gasolina que ainda oscile dentro deste intervalo que foi sinalizado recentemente como nova política de preços da Petrobrás." A economista explica que, com base no preço do petróleo que é importado e exportado pelo Brasil, é possível delimitar uma banda para a variação do preço da gasolina. O valor mais alto seria o da paridade de preços com o cobrado na importação e o mais baixo, a paridade com o cobrado na exportação. Segundo Hirawaka, o preço atual está abaixo do máximo, mas acima do mínimo, o que abre espaço para cortes. Esse espaço, calcula Hirawaka, é de 5% a 10% no preço da gasolina cobrado nas refinarias - e a metade disso chegaria às bombas. Braz não descarta que isso seja usado pelo governo para reduzir o preço dos combustíveis, que costuma ser determinante para a popularidade de quem está no Planalto. "Governos usam esse tipo de artifício há muitos anos, e isso não é um privilégio da direita nem da esquerda. Ter uma carta na manga é um artifício para tentar diminuir a possível insatisfação e ganhar um pouco mais de popularidade e simpatia." De acordo com o economista da FGV IBRE, a valorização recente do real frente ao dólar também pode contribuir para uma queda do preço. "Outro ponto que afetou a previsão [do preço da gasolina] e que não estava no radar, justamente por que não tem como antecipar muito, é a queda no preço do barril de petróleo", afirma Braz. O barril de petróleo tipo brent fechou a quarta-feira (31/5) negociado US$ 72,60 - uma queda de 15,5% desde que Lula assumiu. Além disso, Braz afirma que o aumento de juros em vários países para conter a inflação reduziu a demanda por produtos derivados do petróleo. "A gente sabia que o mundo - não só o Brasil - estava caminhando para uma desaceleração da inflação, ela não é alta só no Brasil, e isso afetou o preço do barril", explica Braz.
2023-06-01
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cx05kwvnyqno
brasil
Quem é Cristiano Zanin e por que sua indicação ao STF causa controvérsia
O advogado Cristiano Zanin Martins, indicado pelo presidente Lula para a vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), não tinha experiência em direito penal quando assumiu a defesa do petista nos casos da operação Lava Jato. Formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Zanin era especializado em Direito Processual e atuava em Direito Empresarial, especialmente em disputas complexas e grandes casos de recuperação judicial. Suas vitórias na defesa de Lula, no entanto, o projetaram como um dos principais nomes da advocacia brasileira nos últimos cinco anos. Com as condenações anuladas pelo STF em causas reconhecidamente difíceis, Lula conseguiu concorrer novamente e assumir seu terceiro mandato como presidente da República. Advogado de Lula desde 2013 e ao seu lado no que foram os momentos mais difíceis de sua vida, segundo o próprio Lula, Zanin ganhou a confiança do presidente e agora foi indicado ao prestigiado cargo de ministro do STF, considerado o topo da carreira jurídica. Fim do Matérias recomendadas O presidente Lula afirmou em sua página no Twitter que Zanin será um "grande ministro" e que conhece suas "qualidades, formação, trajetória e competência". "Acho que o Brasil irá se orgulhar", escreveu o presidente. Antes de assumir, o advogado precisa passar por uma sabatina no Senado. Embora Zanin não seja o primeiro advogado que atuou em defesa de um presidente a ser indicado para a Corte, a sua nomeação ao STF tem dado munição a críticos de Lula que reclamam da grande proximidade do presidente com o advogado. Mas afinal, quem é Cristiano Zanin Martins e por que sua indicação gera controvérsias? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A relação de Cristiano Zanin Martins com Lula vem do fato de que o advogado é casado com Valeska Zanin Martins, afilhada de Lula e filha do seu amigo Roberto Teixeira, próximo de Lula há mais de 40 anos. Nascido em uma família de classe média no interior de São Paulo, Zanin é filho do advogado Nelson Martins. Estudou em colégios particulares de Piracicaba e depois fez direito na PUC-SP, indo para a área de direito processual e direito empresarial. Quando assumiu o caso de Lula, Zanin era sócio do sogro no escritório Teixeira Martins, localizado nos Jardins, em São Paulo. A região é cheia de escritórios de advocacia e de restaurantes onde era comum encontrar os nomes em ascensão no direito durante o curso dos casos da Lava Jato. A notoriedade trazida por ter Lula como cliente - e os riscos -, no entanto, faziam com que Zanin não estivesse entre eles. Reservado, ele costumava pedir comida e almoçar no escritório. Após um rompimento com o sogro, Zanin criou seu próprio escritório com a esposa, o Zanin Martins Advogados. O escritório que deve ser tocado por Valeska com a ida do marido para o STF - os dois têm três filhos e são bastante unidos, segundo advogados que conhecem o casal ouvidos pela BBC News Brasil. Zanin tem hoje 47 anos, o que significa que poderia atuar por 28 anos na Corte, até a aposentadoria compulsória aos 75 anos. Apesar de ser jovem, ele não é o ministro mais novo a ser nomeado e cumpre todos os requisitos determinados pela Constituição como necessários para a indicação, diz o especialista em direito constitucional e administrativo Wallace Corbo, professor de direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Em seu Artigo 12, a Constituição Federal determina que os ministros do Supremo devem ser escolhidos entre "cidadãos com mais de 35 e menos de 70 anos", de "notável saber jurídico" e "reputação ilibada". "Nos últimos anos ele (Zanin) se consolidou como um dos advogados mais conhecidos do país e foi muito bem sucedido em casos que estavam desenganados, é um advogado de grandes causas, não há dúvidas sobre ter um notório saber jurídico", diz Corbo. "Ele também tem reputação ilibada - não há nenhum fato que o desabone." As críticas que têm sido feitas, diz Corbo, não são à figura do advogado em si, mas ao fato de ele ser muito próximo ao presidente - algo que tem gerado desgaste político a Lula. Adversários criticam a proximidade pessoal de Zanin com Lula e afirmam que a indicação poderia ferir o princípio da impessoalidade da administração pública. Corbo aponta, no entanto, que não há nenhum impedimento legal à nomeação de alguém próximo, desde que a pessoa seja capacitada. "É inevitável que o presidente busque profissionais que conhece ou indicações de pessoas muito próximas a ele. O desenho da indicação ao STF na Constituição é feito para que o presidente possa imprimir na Corte sua orientação, colocando alguém que compartilhe sua visão." Após a indicação, diz Corbo, o ministro se torna independente e o fato de ter sido próximo não significa que vai decidir a favor dos interesses de quem o indicou. O ministro Dias Toffoli, por exemplo, que foi indicado por Lula e foi advogado do PT, teve uma postura dura que não favoreceu Lula nos casos da Lava Jato, lembra o professor de direito. Zanin não é o primeiro indicado a ter atuado na defesa do presidente que fez a nomeação. O mais recente ministro da Corte, André Mendonça, fez a defesa de Bolsonaro como Advogado-Geral da União (AGU). O ministro Gilmar Mendes também foi AGU no governo de Fernando Henrique Cardoso antes de ser nomeado pelo tucano ao STF. Dias Toffoli também foi AGU por quase dois anos. Alguns ministros atuais da Corte já se posicionaram publicamente para dizer que não veem impedimentos à indicação de Zanin e elogiando sua atuação como advogado. "Não vejo nenhum conflito ético, nem moral, nem violação da impessoalidade. É um advogado que desempenhou o trabalho quando tudo parecia perdido, quando tudo estava ladeira acima", disse o ministro Luis Roberto Barroso em uma entrevista ao portal Uol neste ano. No julgamento que declarou Moro suspeito para julgar Lula, em 2021, o ministro Gilmar Mendes descreveu o trabalho da defesa do petista como "brilhante". "Vimos um advogado que não se cansou de trazer questões ao tribunal, muitas vezes até sendo censurado, incompreendido", afirmou. Bolsonaristas têm questionado a indicação de Zanin com a pergunta sobre qual seria a reação se Bolsonaro indicasse o advogado da família, Frederick Wassef, para o STF. "É uma comparação totalmente sem cabimento", diz Corbo, "porque Wassef não tem o histórico de atuação jurídica de Zanin, não tem o notório saber jurídico nem reputação ilibada". Wassef é investigado em casos criminais envolvendo a família Bolsonaro e o ex-assessor Fabrício Queiroz, que chegou a ficar foragido e foi encontrado pela polícia na casa de Wassef. Eles negaram quaisquer irregularidades. "Em termos de proximidade, a indicação da Zanin é muito mais comparável à indicação do André Mendonça ou de Gilmar Mendes", diz Corbo. O professor aponta que a sabatina no Senado do novo ministro serve justamente para barrar indicações inapropriadas. "E a sabatina do Zanin não será fácil. Antigamente elas eram mais simples e protocolares, mas nos últimos anos não têm sido", diz Corbo. A composição do Senado, embora mais amigável ao PT do que a da Câmara dos Deputados, tem nomes que devem dificultar a sabatina de Zanin. Entre eles, está o atual senador e ex-juiz de primeira instância Sergio Moro - que condenou Lula à prisão e contra quem Zanin conseguiu vitórias no STF. O Supremo decidiu em 2021, por 7 votos a 4, que Moro era suspeito para julgar Lula e anulou suas condenações. Mas não são só a direita e os adversários do presidente que tem críticas à indicação de Zanin. Parte da esquerda - e membros do próprio governo - têm ressalvas à nomeação. Uma das principais é que não se conhece publicamente a posição de Zanin em relação a temas importantes e muito caros ao partido, como direito trabalhista e direito tributário, por exemplo. Encontros do possível futuro ministro com petistas, como um jantar na casa do deputado Alencar Santana (PT-SP) em março, não ajudaram a esclarecer essas visões, disse um deputado à BBC News Brasil - afirmando, no entanto, que confia "na escolha pessoal do presidente". Outra ressalva é que a indicação de Zanin não ajuda a contribuir com a diversidade da Corte, que hoje tem apenas duas mulheres e nenhum negro.
2023-06-01
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjl9e0z6py9o
brasil
Zanin no STF? Como funciona o processo de escolha em outros países
A indicação do advogado, assinada pelo presidente Lula, foi publicada nesta quinta em edição extra do Diário Oficial da União. Desde que a indicação passou a ser cogitada, começou a gerar polêmica e reacendeu debates sobre o processo de escolha dos ministros que compõem a mais alta corte do país. "Já era esperado que eu fosse indicar o Zanin para o STF, não só pela minha defesa, mas porque eu acho que se transformará em um grande ministro da Suprema Corte. Conheço suas qualidades, formação, trajetória e competência. E acho que o Brasil irá se orgulhar", escreveu Lula em seu perfil no Twitter. Mais cedo, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), havia confirmado à imprensa que Lula havia escolhido Zanin para a vaga. Fim do Matérias recomendadas "Me encontrei ontem com o Cristiano Zanin. Ele será o indicado pelo presidente da República para a vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF)", disse o presidente do Senado. Segundo Pacheco, a indicação deve chegar ainda nesta quinta-feira ao Senado para ser apreciada. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Desde que Lewandowski deixou o STF, no início de abril, a corte está com 10 integrantes em vez de 11. Lula se encontrou com Zanin na noite de quarta-feira (31/5), no Palácio do Planalto. O advogado defendeu Lula na Operação Lava Jato e os dois se aproximaram ainda mais quando o presidente esteve preso. Zanin é casado com Valeska Teixeira Zanin Martins, afilhada do petista. Como manda a Constituição, ele será sabatinado por senadores e, se sua escolha for aprovada por maioria absoluta, será empossado como ministro do STF. Os membros da Suprema Corte devem ser "brasileiros natos", ter mais de 35 anos e menos de 75 anos, além "de notável saber jurídico" e "reputação ilibada". Eles são nomeados pelo presidente da República. E não há mandatos: os ministros devem deixar o cargo quando completam 75 anos. Neste sentido, o processo de escolha é, essencialmente, político e se espelha no da Constituição dos Estados Unidos, que estabeleceu os três poderes e o sistema chamado de freios e contrapesos. Em teoria, o objetivo é evitar que haja abuso de um poder sobre o outro, a partir da participação integrada dos poderes Executivo e do Legislativo — os que defendem tal processo alegam que ele é democrático, pois o presidente e senadores são eleitos diretamente pelo povo. Há mais de 20 propostas de emendas à Constituição (PEC) para mudá-lo. Confira abaixo como funciona o processo de escolha para a Suprema Corte em outros países. Esses tribunais são, no geral, as últimas instâncias de apelações de casos civis e criminais e julgam assuntos de grande importância pública. O Supremo Alemão, a Corte Constitucional, é composto por 16 integrantes, divididos em dois conselhos de mesma hierarquia, com oito integrantes cada um. Eles são escolhidos por meio de eleição, para um mandato de 12 anos, sendo vedada a reeleição. Metade dos membros é indicada pelo Bundestag (Parlamento alemão) e a outra metade pelo Conselho Federal Bundesrat, por maioria de dois terços, em ambos os casos. O Supremo argentino, a Corte Suprema de Justiça da Nação Argentina, é formado por cinco membros. O processo de escolha é semelhante ao brasileiro. Seus integrantes são indicados pelo presidente da República e aprovados pelo Senado, com maioria de pelo menos dois terços. Para ser indicado à corte, exige-se idade mínima de 30 anos, reputação ilibada e experiência como advogado por, no mínimo, oito anos. Embora, assim como no Brasil, caiba ao presidente argentino indicar os membros do tribunal e essa escolha tenha que ser aprovada pelo Senado, durante o governo do ex-presidente Nestor Kirchner (2003-2007) foram estabelecidos mecanismos que conferiram maior transparência e propiciaram a participação popular na escolha. Por exemplo: quando uma vaga é declarada aberta, há um prazo de 15 dias para qualquer cidadão interessado, ONGs, associações profissionais, entidades acadêmicas e de direitos humanos, enviar considerações sobre os indicados para a corte. Além disso, os escolhidos devem refletir "as diversidades de gênero, especialidade e procedência regional no marco ideal de representação de um país federal". No ano passado, numa decisão polêmica e criticada por juristas, o Senado argentino aprovou um projeto de lei para ampliar a composição do Supremo do país dos atuais cinco membros para 15. A iniciativa é apoiada pela coalizão governista do presidente Alberto Fernández e poderia beneficiar sua vice, Cristina Kirchner, que enfrenta acusações de corrupção quando esta chefiava o Executivo argentino. A Corte Suprema do Canadá é composta por nove membros, indicados pelo governador-geral, sendo que ao menos três juízes devem proceder da Província do Quebec. Os indicados podem ser membros das cortes superiores do país ou advogados com pelo menos dez anos de prática forense. Não há requisitos mínimos de idade, mas eles são obrigados a se aposentar aos 75 anos, como no Brasil. Doze membros integram o Tribunal Constitucional da Espanha. Eles são nomeados mediante decreto real para um mandato de nove anos. Do total, são indicados quatro juízes pelo Congresso, quatro pelo Senado, dois pelo Governo e dois pelo Conselho Geral do Poder Judiciário. Só podem ser indicados cidadãos espanhóis membros da magistratura ou do Ministério Público, advogados, professores universitários ou funcionários públicos com mais de quinze anos de exercício profissional na área jurídica O processo de escolha da Suprema Corte dos Estados Unidos inspirou o brasileiro. Nove juízes formam o Supremo daquele país; eles são escolhidos pelo presidente e por ele nomeados após aprovação do Senado, por maioria simples. Não há limites mínimos e máximos de idade, aposentadoria compulsória ou quaisquer requisitos de capacidade, exceto a cidadania americana. Os magistrados têm mandato vitalício ou podem decidir se aposentar. Assim como no Brasil, tal sistema, vez outra, desencadeia batalhas políticas sobre a sucessão de seus membros. Foi o que aconteceu, por exemplo, após a morte da juíza Ruth Bader Ginsburg. Ela morreu vítima de um câncer em setembro de 2020, pouco meses antes do término do mandato do ex-presidente republicano Donald Trump. Ícone da luta pelos direitos das mulheres, Ginsburg era, então, a integrante mais antiga da Suprema Corte americana. Ela serviu por 27 anos e era vista como parte da ala mais liberal do tribunal. Os opositores democratas bem que tentaram, mas não conseguiram evitar a nomeação, por Trump, de uma juíza conservadora para substituir Ginsberg, Amy Coney Barrett. O Supremo Francês, o "Conselho Constitucional", é composto por nove membros, escolhidos pelo Parlamento francês e pelo Poder Executivo, para um mandato de nove anos, vedada a reeleição. Além disso, os ex-presidentes da República integram a Corte como membros natos vitalícios. Dos nove membros não vitalícios, três são indicados pelo Presidente da República, três pelo Presidente da Assembleia Nacional e três pelo Presidente do Senado. No entanto, pela legislação francesa, um terço dos assentos na Corte tem que ser renovados a cada três anos. Não há requisitos de habilidades ou de idade. Quinze membros compõem a Corte Constitucional da Itália, sendo um terço deles indicado pelo Parlamento italiano, um terço pelo Presidente da República e um terço pelas cortes superiores do país, para um mandato de nove anos, vedada a recondução. Pela lei italiana, os integrantes da Corte têm que ser escolhidos dentre magistrados da jurisdição superior ordinária ou administrativa, advogados e professores universitários com, ao menos, 25 anos de exercício profissional, inexistindo limites mínimo e máximo de idade para a posse. O Tribunal Constitucional de Portugal é formado por 13 juízes, sendo dez eleitos pela Assembleia da República (Parlamento português) e três escolhidos pelo próprio Tribunal, para um mandato de nove anos, vedada a recondução. Dos 13 membros, pelo menos seis têm que ser escolhidos dentre juízes de outros tribunais portugueses. O restante, juristas. Não há limites mínimos e máximos de idade ou aposentadoria compulsória. A Suprema Corte do Reino Unido é formada por 12 integrantes. O processo de escolha para o tribunal mudou em 2005 com a promulgação da Lei da Reforma Constitucional. Por essa lei, toda vez que houver a abertura de uma vaga no Supremo britânico, uma comissão de seleção independente deve ser formada. Essa comissão é composta pelo presidente da Suprema Corte, outro juiz sênior do Reino Unido (que não seja um juiz da Suprema Corte) e um membro da Comissão de Nomeações Judiciais da Inglaterra e do País de Gales, do Conselho de Nomeações Judiciais da Escócia e, por fim, da Comissão de Nomeações Judiciais da Irlanda do Norte. Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte formam o Reino Unido. Qualquer cidadão pode se candidatar ao cargo, desde que cumpra as seguintes exigências: tenha ocupado altos cargos judiciais por um período de pelo menos 2 anos ou ser um profissional de Direito qualificado há pelo menos 15 anos. A aposentadoria é obrigatória aos 75 anos. Até abril de 2022, o Supremo Tribunal de Justiça da Venezuela era formado por 32 magistrados, mas seu número foi reduzido para 20. Seus integrantes devem ser venezuelanos de nascimento, sem outra nacionalidade, e juristas com reconhecida experiência. A escolha cabe à Assembleia Nacional (Parlamento venezuelano), após concurso de nomeação e avaliação dos candidatos para um mandato de 12 anos. Em 1999, após a aprovação da Constituição pela Assembleia Nacional recém-eleita e de maioria chavista, o então Supremo venezuelano e um novo tribunal, formado. A presidente da corte na ocasião, Cecilia Sosa, renunciou ao cargo e denunciou o que chamou de fim do Estado de Direito. Atualmente, o Supremo venezuelano tem reconhecimento parcial e concorre com o "Supremo Tribunal de Justiça no exílio" em decorrência da crise presidencial iniciada em 2019, com o país e o mundo divididos em apoio ao atual presidente, Nicolás Maduro, e seu então arquirrival político, Juan Guaidó. O "Supremo Tribunal de Justiça no exílio" é formado por 33 magistrados empossados em julho de 2017 pela Assembleia Nacional durante a crise institucional da Venezuela e a onda de protestos daquele ano, em substituição aos nomeados em 2015. Esses magistrados vivem em cinco países: Panamá, Chile, Colômbia, Espanha e Estados Unidos, reunindo-se semanalmente.
2023-06-01
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c809lgdkl1go
brasil
PIB cresce 1,9%: como Brasil se compara a outros países
A economia brasileira cresceu 1,9% nos primeiros três meses do ano em comparação com os três meses imediatamente anteriores — um crescimento acima do que vários analistas de mercado esperavam. Os números foram divulgados pelo IBGE nesta quinta-feira (1/6). Os dados mostram que a agropecuária foi o “motor” do crescimento brasileiro no início de 2023 — com expansão de 21,6% nos três primeiros meses do ano em comparação com o último trimestre de 2022. O setor de serviços também registrou alta, de 0,6%. Já a indústria teve uma leve queda de 0,1% na atividade. Enquanto o Brasil começou 2023 com crescimento acima do projetado por analistas de mercado, que previam expansão em torno de 1,3%, alguns países parecem estar diante de um cenário mais complexo. No Brasil, o boletim Focus — que contém as previsões semanais feitas pelo mercado financeiro brasileiro e é divulgado pelo Banco Central — vem mostrando redução nas expectativas de inflação. O mercado brasileiro acredita que a inflação de 2023 terminará em 5,71% e que a taxa de juros cairá dos atuais 13,75% para 12,5%. Fim do Matérias recomendadas Nos últimos doze meses, a economia brasileira cresceu 3,3%, na comparação com os quatro trimestres imediatamente anteriores. No resto do mundo, algumas das economias têm registrado fraco crescimento econômico. A Alemanha recentemente confirmou que está em recessão técnica. O Reino Unido escapou de uma recessão até agora, mas seu PIB vem crescendo a uma taxa de apenas 0,1% nos últimos dois trimestres consecutivos. Os EUA confirmaram crescimento abaixo do esperado no primeiro trimestre deste ano, e diversos analistas debatem até mesmo uma recessão americana ainda neste ano. Entre os emergentes, Índia e China continuam registrando fortes taxas de crescimento — ambas superiores ao Brasil (veja números abaixo). Em seu relatório de abril, o FMI fala que a esperança de que haveria uma recuperação suave do mundo em 2023 não está se confirmando. Em vez de inflação caindo e crescimento voltando, o mundo vê hoje uma inflação alta e tremores nos mercados financeiros, segundo o Fundo. O FMI agora prevê que a inflação mundial — que foi de 8,7% em 2022 — deve cair para 7% ao final deste ano. Os níveis pré-pandêmicos de inflação e juros só viriam em 2025, de acordo com o Fundo. A economia mundial vive um contexto de muita incerteza sobre o futuro. O mundo inteiro sofreu fortemente com a pandemia de coronavírus, que desde 2020 provocou desemprego e fechamento em massa de amplos setores da economia mundial. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em alguns países, a recuperação foi relativamente rápida, e os níveis econômicos pré-pandemia foram reestabelecidos. No entanto, desde o ano passado, muitas dessas economias estagnaram. Isso se dá, em parte, por uma nova crise provocada desta vez por inflação alta. A pandemia desorganizou as cadeias internacionais de produção em um momento em que houve aquecimento do consumo no mundo todo, com o fim do momento mais drástico da pandemia. Com escassez de oferta, muitos preços dispararam. Diversos lugares — como no Brasil, Europa e EUA — passaram a enfrentar as chamadas crises de custo de vida. Em países como Reino Unido e EUA, a inflação atingiu o maior patamar em 40 anos. Para controlar os preços, os bancos centrais no mundo todo começaram a aumentar suas taxas de juros — o que provoca desaceleração econômica, por aumentar os custos de investimentos para empresas. A inflação alta também tem provocado greves gerais na Europa. O cenário ficou ainda mais complexo com o início da guerra da Ucrânia no ano passado — que abalou preços de commodities — e com crises bancárias localizadas este ano. Economistas não sabem dizer exatamente o que pode acontecer de agora em diante. O único consenso é que o futuro imediato não é promissor. “A previsão é que o crescimento [da economia mundial] caia de 3,4% em 2022 para 2,8% em 2023, antes de establizar em 3% em 2024. Espera-se que as economias avançadas vejam uma desaceleração de crescimento especialmente pronunciada, de 2,7% em 2022 para 1,3% em 2023”, escreveu o FMI no seu relatório de abril sobre as perspectivas da economia global. Alguns acreditam que o ciclo de aumento dos juros pode estar perto do fim em alguns países. No Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vem criticando o Banco Central — presidido por Roberto Campos Neto — por manter os juros no patamar mais alto dos últimos anos. Há quem preveja que esse cenário de juros altos e crescimento baixo vai continuar por alguns meses no mundo — e há até quem diga que países como os EUA podem entrar em recessão em breve. No mês passado, a Alemanha anunciou que está em recessão técnica (dois trimestres consecutivos de crescimento negativo). A recuperação mundial passa pela queda da inflação, que tem respondido lentamente aos juros altos. Mas até agora não houve sinais claros em nenhum país de que a inflação pode cair. A maior preocupação no mundo hoje é com o lento ritmo da maior economia — a dos Estados Unidos. A economia americana se recuperou relativamente rápido da crise do coronavírus, mas agora vive momentos de incerteza. Nos primeiros três meses do ano, a economia americana cresceu a um ritmo anualizado de 1,1% — muito abaixo da projeção próxima de 2% da maioria dos economistas. Nos trimestres anteriores, a economia americana estava crescendo em um ritmo anualizado muito mais acelerado — de 2,6% (quarto trimestre de 2022) e 3,2% (terceiro trimestre de 2022). O consumo das famílias — que é o principal motor da economia americana — segue em alta. No entanto, todos os setores parecem estar sofrendo com o esforço das autoridades monetárias de baixar a inflação com um ciclo de alta de juros. O banco central americano aumentou os juros americanos em dez reuniões consecutivas — atingindo a faixa de 5% a 5,25%. A bolsa americana tem mostrado pouco otimismo em relação ao futuro. O Dow Jones está no patamar de 33 mil pontos este mês — o mesmo do começo do ano. Entre 2020 e 2022, durante a pandemia, o Dow Jones chegou a subir 75% — partindo de cerca de 20 mil para cerca de 35 mil pontos. Agora há diversos sinais de que a economia americana está em um ciclo de deterioração: a produção industrial e os empréstimos bancários estão em queda. O setor bancário teme uma crise devido à quebra de bancos médios. Grandes empresas seguem promovendo demissões em massa. Há economistas que preveem uma recessão para o final deste ano. “Continuamos esperando uma leve recessão técnica nos EUA, com duas contrações consecutivas no segundo e terceiro trimestres”, disse a consultoria Economist Intelligence Unit. Uma recessão nos EUA teria impacto em todo o mundo, dada a importância do mercado americano para o comércio e finanças internacionais. A economia britânica escapou por pouco de uma recessão técnica. O PIB do Reino Unido cresceu 0,1% no primeiro trimestre deste ano — o mesmo ritmo registrado no último trimestre do ano passado. Para este ano, o Banco Central da Inglaterra acredita que a economia seguirá estagnada no primeiro semestre, com recuperação no segundo. A previsão é levemente mais otimista do que a feita em fevereiro, quando o banco previa recessão para o Reino Unido. Ao contrário do resto da Europa e dos EUA, foi só recentemente que a economia britânica conseguiu atingir os níveis pré-pandemia. O Reino Unido tem hoje a pior performance econômica entre as sete maiores economias do mundo. Na zona do euro, o PIB cresceu 0,1% neste ano. Os dois gigantes emergentes — China e Índia — seguem registrando fortes índices de crescimento. Na quinta-feira (31/5), a Índia informou que sua economia cresceu 6,1% no primeiro trimestre deste ano em comparação com o último trimestre do ano passado — algo atribuído aos setores de serviços e indústria. Já o PIB da China cresceu 4,5% no primeiro trimestre do ano — superando expectativas do governo e a performance recente da economia chinesa. Diferente da maioria dos demais países do mundo, a economia chinesa continuou sofrendo com a pandemia de coronavírus e com lockdowns ao longo de 2022. No ano passado, a economia chinesa havia crescido apenas 3%. O Banco Goldman Sachs prevê que 2023 será um ano de retomada da economia chinesa, com possibilidade de crescimento de 6%. Economistas acreditam que o governo da China deve anunciar novos estímulos para investimento neste ano.
2023-06-01
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy0j40d0v3jo
brasil
MP dos Ministérios aprovada no limite do prazo: Lula está emparedado pelo Congresso?
O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) enfrenta, nos últimos dias, uma situação inusitada para uma gestão com pouco mais de cinco meses de vida. Teve que esperar, até as últimas horas antes do prazo de vencimento, o Congresso aprovar a medida provisória que reestruturou a Esplanada, aumentando de 23 para 37 o número de ministérios. A votação na Câmara foi expressiva, com 337 votos a favor, 125 contrários e uma abstenção. No Senado, foram 51 votos a favor, 19 contra e uma abstenção. Mas isso ocorreu no limite do prazo para a MP não perder validade. A demora para aprovar a medida importante para o governo foi lida como um recado do Congresso de insatisfação com a articulação política do Planalto. Fim do Matérias recomendadas Lula foi eleito por uma pequena margem sobre o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), a primeira vez em que um presidente no poder perde uma reeleição. Mas o consenso entre analistas é de que a composição política do Congresso Nacional, marcadamente mais conservadora, criaria dificuldades para a governabilidade de Lula. Nos últimos meses, derrotas seguidas (veja as principais abaixo) lançaram um "sinal amarelo" no Palácio do Planalto e fizeram com que o presidente Lula convocasse uma reunião de emergência com os responsáveis por sua articulação política no Congresso Nacional. Em meio a tudo isso, uma pergunta passou a circular entre os analistas políticos: Lula está emparedado pelo Congresso? Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que o presidente enfrenta, hoje, muito mais dificuldade para obter governabilidade do que em seus dois primeiros mandatos. Segundo eles, isso acontece por uma combinação de fatores que envolve mudanças estruturais no funcionamento do Parlamento e falhas na equipe de articulação política do governo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Apesar disso, nos últimos meses, Lula também amargou uma série de derrotas, o que levantou dúvidas sobre a capacidade de articulação política do atual governo. As principais derrotas foram: A aprovação da mudança na estrutura dos ministérios pela Câmara muito perto do fim do prazo é emblemática ao mostrar como a atual gestão vem tentando se equilibrar na articulação com os deputados. Por lei, as medidas provisórias têm validade de 180 dias e precisam ser aprovadas pelo Congresso Nacional nesse prazo. Do contrário, elas perdem a validade. A MP que reestruturou o governo precisa ser votada pelo Senado até esta quinta-feira (1/6) para não "caducar" e deixar de ter efeito. O impacto prático disso é que, se não a MP não for aprovada, o governo Lula terá, em tese, que adotar a mesma estrutura deixada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. Isso implicaria na extinção de algumas pastas, como o Ministério dos Povos Indígenas e da Igualdade Racial, o que representaria uma grande derrota para o governo. O relatório da MP aprovado pelo relator, deputado Isnaldo Bulhões (MDB-AL), tirou atribuições consideradas estratégicas dos ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas. Apesar da reação pública de Marina Silva e Sônia Guajajara, o relatório foi endossado pelo ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha. O temor no governo era de que reagir às mudanças nas duas pastas poderia resultar em algo pior: a não aprovação da MP. "Vamos defender o relatório do jeito que está, vamos fazer a defesa da aprovação desse relatório. Não digo que é o relatório ideal para o governo, porque esse seria o do texto original, mas não existe isso, existe uma construção feita com as Casas", disse Padilha na terça-feira (30/05), após uma reunião com parlamentares. Além disso, durante a votação na quarta-feira, o governo cedeu e deputados aprovaram a recriação da Fundação Nacional da Saúde (Funasa). O cientista político Sérgio Abranches, que formulou o conceito de presidencialismo de coalizão, nos anos 1980, disse à BBC News Brasil que Lula não é "refém" do Congresso Nacional como um todo, mas, neste momento, estaria na condição de "refém" de Arthur Lira (PP-AL), o presidente da Câmara dos Deputados. "Ele é refém do Arthur Lira porque Lira ficou com muito poder nesse desarranjo que existe hoje nas relações entre o Executivo e o Legislativo. Arthur Lira tem problemas sérios com o governo porque não se sente prestigiado, não se sente atendido em suas demandas", afirmou o cientista político. Lira vem sendo apontado por analistas como o principal obstáculo de Lula para obter governabilidade no Congresso Nacional. O presidente da Câmara apoiou Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais, prometeu que não iria dificultar as ações de Lula, mas fez críticas abertas à capacidade de negociação política da equipe do petista. Ele já afirmou, por exemplo, que distribuir ministérios a partidos para tentar montar uma base parlamentar não seria suficiente. A saída, segundo ele, seria maior agilidade na liberação de emendas parlamentares. Abranches afirma que Lula não poderia ser considerado um refém do Congresso Nacional porque, no Senado, o presidente ainda aparenta ter condição de negociações melhores por conta, entre outros motivos, da sua proximidade com o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). "Com o (Rodrigo) Pacheco, com o Senado, Lula consegue alinhavar acordos. A situação lá é diferente. Mas, com a Câmara, o cenário é totalmente diferente", afirmou. A cientista política Beatriz Rey, pesquisadora visitante da Universidade Johns Hopkins, em Washington, diz que as dificuldades enfrentadas pelo atual governo na sua relação com o Congresso são o resultado dos seguintes fatores: "Estamos diante de uma virada institucionalizada, de um fortalecimento do Parlamento e uma dificuldade do governo de lidar com um novo cenário da relação entre o Executivo e o Legislativo. Além disso, vemos alguns erros sendo cometidos desde o começo do ano", afirmou. A professora de Ciência Política da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Graziella Testa diz que, historicamente, todos os presidentes brasileiros eleitos desde a redemocratização tiveram que enfrentar problemas na sua relação com o Poder Legislativo. Testa pontua, no entanto, que Lula enfrenta, agora, um cenário diferente do que ele encontrou no passado. "Até 2018, essa mediação entre o Executivo e o Legislativo era feita entre o governo e as lideranças partidárias. Agora, essa mediação é feita pelos presidentes da Câmara. Esse cenário mudou e a resposta sobre como as coisas vão se desenrolar ainda é incerta", afirmou. Segundo ela, outro motivo que tornou a margem de manobra com o Parlamento ainda menor é que os ministérios, tradicionalmente usados para atrair partidos aliados, passaram a não ser mais considerados tão interessantes assim. "Hoje, as pastas não são tão atrativas porque, com o orçamento tão apertado, os recursos disponíveis estão muito comprometidos. Ocupar o cargo de ministro não dá a liberdade de ação que podem se transformar em votos como acontecia antes", afirmou a professora. Sérgio Abranches aponta que apesar de o cenário ser desfavorável para Lula na sua relação com o Parlamento, há medidas que ele pode tomar para tentar contornar a situação. Segundo ele, três ações seriam necessárias: redistribuição de ministérios; mudar sua equipe de articuladores políticos; e estabelecer prioridades claras para o seu governo. "Lula precisa ter mais ministros de outros partidos. O PT está desproporcionalmente representado na Esplanada dos Ministérios. Tem que haver maior representação de partidos que não fazem parte do núcleo duro do governo", afirmou. Atualmente, o PT tem, na Câmara, 68 deputados federais, o equivalente a 13% do total. Apesar disso, pontua Abranches, o partido tem 10 ministérios de um total de 37 pastas, equivalente a 27%. "Acho que, para haver uma reação, o governo tem que mudar sua estrutura de articulação. Hoje, Alexandre Padilha (Relações Institucionais) e Rui Costa (ministro da Casa Civil) não têm sido bons consultores políticos. Todo diálogo com o Congresso é por meio de ministros do PT. Não é um governo de coalizão falando com o Congresso. Isso faz diferença", disse Abranches. Abranches também afirma que é preciso que o governo se envolva mais diretamente nas negociações com o parlamento e estabeleça pautas claras. "Ele (Lula) precisa ter prioridades e negociá-las. Ele tem que fazer isso numa conversa com Lira e Pacheco e dizer: 'Olha, essas pautas aqui eu preciso que seja aprovada. O resto, a gente conversa. Ninguém está interessado no impasse'", disse Abranches. Beatriz Rey também defende que o governo faça mudanças na sua forma de interagir com o Congresso. "O governo tem que dar menos peso ao PT e repensar quem serão seus principais articuladores. Acho que um caminho seria colocar alguém que tivesse mais trânsito com o Centrão", disse a cientista política em alusão ao bloco de partidos de centro-direita conhecido como Centrão composto por legendas como o MDB, PSD, PP, PR, entre outros. Outro ponto defendido por Beatriz Rey é que o governo "pare de errar" em sua articulação política. Ela pontua, por exemplo, que o governo errou ao tentar derrubar pontos do Marco do Saneamento Básico via decreto. Segundo ela, isso fez com que o governo "queimasse" parte de seu capital político. "Este não é um governo que chega com muito capital político de origem. Ele encontra que joga contra, e, ainda por cima, ainda vem queimando parte do seu capital político", avalia. Beatriz Rey também defende que o governo defina de forma objetiva quais são as suas prioridades na pauta parlamentar. "Escrevi um artigo, recentemente, em que eu dizia que o governo tinha que ter entre 10 e 15 pautas prioritárias. Hoje, acho que talvez nem seja possível falar nesse número. Mas é preciso, sim, sentar com os interlocutores e estabelecer uma pauta de prioridades. Acho que é uma boa solução. Mesmo assim, o cenário é incerto", afirmou. A cientista política ressalta, porém, que o governo precisa mudar suas expectativas em relação ao que ele poderá aprovar no Congresso. "Não dá para ter a expectativa de passar muitas pautas à esquerda. Esse é um Congresso mais à direita do ponto de vista ideológico. Eu acho que isso é uma coisa que o governo tem que incorporar no seu modus operandi", disse. Graziella Testa diz que o futuro da governabilidade no atual mandato de Lula ainda é incerto por conta de mudanças na forma como ela se dava, por exemplo, durante o governo do ex-presidente Bolsonaro. Segundo ela, a governabilidade durante a gestão do ex-mandatário foi obtida a partir do chamado "orçamento secreto", um mecanismo de distribuição de emendas parlamentares em que os responsáveis diretos pelas indicações das emendas não tinham seus nomes divulgados. Um dos principais apoiadores do mecanismo, conhecido oficialmente como "emendas de relator", era, justamente, Arthur Lira. O mecanismo, no entanto, foi proibido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 2022. "Sou cética à ideia de que não vai haver mais coalizão ou base parlamentar. Pode ser que mudem os instrumentos que serão usados na construção dessa governabilidade, mas o cenário ainda está incerto por conta da proibição das emendas de relator. É preciso pensar em novos caminhos", disse a professora.
2023-06-01
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2e63173qzvo
brasil
Por que Venezuela tem dívida bilionária com Brasil — e quem paga a conta
Maduro veio ao Brasil para participar de uma cúpula com líderes de 11 países da América do Sul em Brasília que havia sido proposta por Lula. A última vez que o presidente venezuelano esteve no Brasil foi em julho de 2015, quando participou de uma cúpula do Mercosul em Brasília, durante o governo de Dilma Rousseff (PT). Desde 2019, ele estava impedido de entrar no país após uma portaria editada pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL) proibir seu ingresso e de outras autoridades venezuelanas no Brasil. Bolsonaro revogou a portaria um dia antes de deixar o cargo em uma negociação com o governo de transição para abrir a possibilidade de Maduro participar da posse de Lula, mas o presidente venezuelano acabou não participando da cerimônia. Fim do Matérias recomendadas Maduro só voltou ao Brasil de fato no último domingo (28/5), quando desembarcou em Brasília para participar da cúpula. No dia seguinte, teve uma reunião bilateral com Lula, em que os dois trataram desta dívida e de como ela será quitada. Maduro e Lula foram questionados após o encontro por jornalistas sobre o total da dívida. Lula disse não saber e questionou Maduro: "Você sabe qual é o tamanho da dívida?". O presidente venezuelano respondeu: "Vai ser estabelecida uma comissão para estabelecer esse tamanho e retomar os pagamentos". De acordo com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, Maduro pediu que seja criado um grupo de trabalho com o governo brasileiro para consolidar o valor do débito e, a partir daí, reprogramar seu pagamento. Pelo lado brasileiro, devem participar a Secretaria-Executiva da Câmara de Comércio Exterior (Camex), vinculada à Fazenda, a secretaria do Tesouro Nacional e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) - que é um dos principais interessados no assunto. Mas, afinal, de quanto é essa dívida, de onde ela veio e quem vai pagar essa conta? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Após o encontro de Lula e Maduro, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) informou à BBC News Brasil que o valor da dívida venezuelana totaliza atualmente quase US$ 1,27 bilhão (R$ 6,4 bilhões). "Os débitos da Venezuela junto ao governo brasileiro soma US$ 1.268.151.276,81, sendo: i) US$ 1.095.002.908,09 referente a valores já indenizados pelo Fundo de Garantia à Exportação (FGE); ii) US$ 53.987.162,42, referentes a indenizações a serem pagas pelo FGE". O Fundo de Garantia à Exportação é um fundo de natureza contábil vinculado ao Ministério da Fazenda. Ele foi criado em setembro de 1997 para cobrir operações amparadas pelo Seguro de Crédito à Exportação (SCE). O Seguro de Crédito à Exportação é um mecanismo de garantia oferecido pela União para proteger as exportações brasileiras de bens e serviços de potenciais riscos comerciais, políticos e extraordinários e, assim, evitar calotes às empresas nacionais. Caso haja inadimplência de quem comprou os bens e serviços, o FGE indeniza o financiador e busca recuperar o valor em atraso do devedor. O BNDES é o principal financiador público de longo prazo para operações de comercialização de exportações. Segundo o MDIC, os débitos da Venezuela são referentes a uma inadimplência relativa a exportações brasileiras de bens e serviços para o país vizinho que contrataram o Seguro de Crédito à Exportação. "As operações foram financiadas em sua maior parte pelo BNDES, porém havendo operações com financiadores estrangeiros", disse a pasta em nota. O BNDES, que era vinculado ao então Ministério da Economia durante o governo de Bolsonaro e passou a fazer parte do MDIC sob Lula, atua como principal instrumento de execução da política de investimentos do governo federal. Durante os governos petistas, tanto nos dois primeiros mandatos de Lula quanto nos de Dilma Rousseff, atual presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD, popularmente conhecido como "Banco dos Brics"), houve desembolsos bilionários no banco, em particular para o financiamento à exportação dos bens e serviços de engenharia brasileiros. No caso da Venezuela, foi concedido R$ 1,5 bilhão a vários projetos de infraestrutura realizados por empresas do Brasil. Ou seja, a empresa brasileira que vendeu produtos ou serviços para fora do país recebe um pagamento do BNDES por isso. Quem fica com a dívida neste caso é a empresa ou país estrangeiro que comprou o bem e serviço, que fica com a responsabilidade de pagar de volta o BNDES com juros, em dólar ou em euros. Se há inadimplência, o BNDES aciona a estrutura de garantias e é ressarcido por mecanismos como o FGE. A maior parte das operações de exportação de serviços de engenharia beneficiou cinco grandes empreiteiras brasileiras, todas envolvidas na Operação Lava Jato. Especificamente nessa categoria, de financiamentos para exportação de serviços a outros países, três deram calote - a Venezuela entre eles - "em um valor total de US$ 1,09 bilhão acumulado até março de 2023", segundo o BNDES. "Outros US$ 518 milhões estão por vencer desses países", informou o banco. O governo brasileiro explicou em nota à BBC News Brasil que o FGE "cobriu o calote". No entanto, segundo o economista e professor do Insper Sérgio Lazzarini, isso é uma "falácia". Ele explica que, por conta das dívidas e dos calotes acumulados, o patrimônio do fundo foi minguando, cujos recursos são provenientes, dentre outras fontes, do orçamento federal. "Quem paga essa conta é, em última análise, o contribuinte", diz. O problema está, segundo Lazzarini, justamente na avaliação de risco dos empreendimentos nesses países. Ele publicou, ao lado de outros pesquisadores, um estudo que analisou o custo financeiro incorrido em algumas das operações realizadas pelo BNDES entre 2007 e 2015. Segundo Lazzarini, o banco emprestou para países "com altíssimo risco de crédito e isso não foi precificado adequadamente". "Então, esse fundo, vire e mexe, está tomando calote. Se ele toma muito calote, não há recursos", diz o economista. "Se estivéssemos emprestando a países com baixo risco de crédito, o mecanismo funciona. Mas tomamos calote atrás de calote." Desde 2020, é discutido no âmbito do governo federal um novo modelo para o FGE, mas nada foi decidido até agora. Em fevereiro, durante a posse de Aloizio Mercadante como presidente do BNDES, Lula disse ter "certeza" que a Venezuela e outros países inadimplentes quitarão as dívidas com o banco durante seu governo. "Porque são todos países amigos do Brasil e certamente pagarão a dívida que têm com o BNDES", disse Lula.
2023-05-31
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c6pl463dp3lo
brasil
O que é o 'marco temporal' para terras indígenas aprovado na Câmara e que deve ser julgado pelo STF
Sob protestos de representantes de povos indígenas no Congresso Nacional, a Câmara dos Deputados aprovou na terça-feira (30/5) um projeto de lei que estabelece o "marco temporal" — a tese de que a demarcação de terras indígenas só pode ocorrer em comunidades que já ocupavam esses locais quando a Constituição foi promulgada, em 5 de outubro de 1988. A pauta, uma das mais disputadas nos últimos anos no que diz respeito aos indígenas no país, segue para votação no Senado. Na Câmara, houve 283 votos favoráveis ao projeto e 155 contrários. Por outro lado, a questão do marco temporal já estava pautada para julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) previsto para 7 de junho. A análise pelo plenário do Supremo foi iniciada em 2021 e logo interrompida por um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes. Fim do Matérias recomendadas Até agora, votaram os ministros Nunes Marques, que foi favorável ao marco temporal; e Edson Fachin, contrário (leia mais abaixo). No STF, a pauta tem repercussão geral, o que significa que a decisão para este caso específico — relativo à disputa por terras em Santa Catarina — valeria para outros parecidos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No Congresso, o estabelecimento do marco temporal é uma antiga demanda da bancada ruralista e do Centrão, bloco informal de partidos sem linha ideológica clara, mas que compartilha valores conservadores. Enquanto isso, na sociedade civil, o projeto é duramente criticado por ambientalistas e indígenas. Em 24 de maio, a Câmara aprovou requerimento de urgência para analisar o projeto de lei. O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) liberou sua base para votar o requerimento, gerando críticas de apoiadores e até da ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara — que foi à Câmara nesta terça-feira pedir aos deputados que a pauta não fosse retirada da pauta do dia. Após a derrota, Guajajara escreveu no Twitter esperar que o texto não avance no Senado: "Aprovado o PL490 pela Câmara: um ataque grave aos povos indígenas e ao meio ambiente. Seguimos lutando pela vida. Ainda no Senado, dialogaremos para evitar a negociação de nossas vidas em troca de lucro e destruição. Não desistiremos!" Também na rede social, a presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), Gleisi Hoffmann, afirmou torcer para que "o Senado pare esse absurdo". Representantes de povos indígenas, como a Articulação dos Povos Indígenas no Brasil, foram à praça dos Três Poderes e ao Salão Verde da Câmara protestar contra o estabelecimento do marco temporal nesta terça-feira. Antes da votação, o relator do projeto, deputado Arthur Oliveira Maia (União-BA), defendeu que o texto trará mais segurança jurídica para proprietários rurais e pediu que o STF deixe de julgar o tema, uma vez que ele já está sendo deliberado no Legislativo. A deputada Silvia Waiãpi (PL-AP), indígena, afirmou que o projeto de lei não ataca os direitos dos povos originários. “Estamos discutindo o futuro da nação. Querem criar guerras de narrativas para subjugar um povo para viver eternamente em 1500”, disse. Além da questão do marco temporal, o texto aprovado na Câmara prevê a permissão para cultivo de transgênicos por indígenas e a proibição da ampliação de terras indígenas já demarcadas. O projeto de lei votado nesta terça-feira na Câmara é originalmente de 2007. Inicialmente, ele tinha o objetivo de transferir do Executivo para o Legislativo o poder de demarcar terras indígenas — mas, desde então, ele recebeu várias modificações, por meio de mais de 10 apensados e de um texto substitutivo do deputado Arthur Oliveira Maia, relator da matéria. Desde que o requerimento de urgência foi aprovado na semana passada, o texto avançou rapidamente. Somente nesta terça-feira, antes de chegar ao plenário, ele passou pelas comissões de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC); de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial (CDHMIR); de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (CAPADR); e da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais (CPOVOS). O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), afirmou que a votação no plenário ocorreu rapidamente por conta da previsão do julgamento no STF. “Tentamos um acordo para que a gente não chegasse a este momento, mas o fato é que o Supremo vai julgar no dia 7 e este Congresso precisa demonstrar que está tratando a matéria com responsabilidade em cima dos marcos temporais que foram acertados na Raposa Serra do Sol. Qualquer coisa diferente daquilo vai causar insegurança jurídica”, disse Lira, defendendo o projeto de lei e a possibilidade de que os indígenas cultivem bens agrícolas em suas terras. “Nós não temos nada contra povos originários, nem o Congresso tem e não pode ser acusado disso. Agora, nós estamos falando de 0,2% da população brasileira em cima de 14% da área do país", completou, segundo informações da Agência Câmara de Notícias. Lira se referiu à Terra Indígena Raposa Serra do Sol porque foi no julgamento de um caso referente a ela, em 2009, que o termo foi impulsionado. Naquela ocasião, o tribunal estabeleceu 1988 (ano da promulgação da Constituição) como marco temporal para as demarcações. Mas o caso a ser julgado pelo STF, segundo a previsão de julgamento para o próximo dia 7, refere-se a uma parte da Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ, em Santa Catarina, habitada pelos povos xokleng, kaingang e os guarani. A disputa judicial envolve, de um lado, a Fundação Nacional do Índio (Funai); e de outro, órgãos do governo estadual de Santa Catarina, que reinvindicam áreas que a Funai havia declarado como tradicional ocupação indígena. O Tribunal Regional da 4ª Região (TRF-4) havia determinado a reintegração de posse aos órgãos catarinenses, ao que a Funai recorreu. Vários grupos indígenas, por outro lado, são contrários à aplicação do marco temporal, pois dizem que muitas comunidades foram expulsas de seus territórios originais antes de 1988. É esse o argumento usado pelos Xokleng no julgamento no STF: eles afirmam que décadas de perseguições e matanças forçaram o grupo a sair do território que hoje tentam retomar. Já o governo de Santa Catarina afirma que essa área era pública e foi vendida a proprietários rurais no fim do século 19. O relator do caso de Santa Catarina, ministro Edson Fachin, foi o primeiro a votar. Entre outros argumentos, ele afirmou que os direitos territoriais dos indígenas são protegidos desde pelo menos 1934 por leis e por Cartas Constitucionais, e que a Constituição de 1988 apenas trouxe novas garantias. Para o relator, os direitos territoriais indígenas são direitos fundamentais. Já o ministro Nunes Marques votou, em 2021, a favor do marco temporal. Ele reconheceu que a Constituição de 1988 ratifica os direitos originários dos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam, mas defendeu que essa proteção constitucional está condicionada ao marco temporal — segundo ele, a posse tradicional não deve ser confundida com posse imemorial.
2023-05-31
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cp0zn65j548o
brasil
As críticas de presidentes de esquerda e direita às falas de Lula sobre Venezuela
As alegadas violações de direitos humanos na Venezuela fizeram com que presidentes de diferentes orientações ideológicas se unissem e contestassem as declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre a situação no país vizinho. As críticas foram feitas durante a cúpula de líderes sul-americanos convocada por Lula realizada nesta terça-feira (30/05). Durante o evento, o presidente do Chile, Gabriel Boric, que é de centro-esquerda, e o presidente do Uruguai, Luis Alberto Lacalle Pou, de centro-direita, rebateram as declarações de Lula. A cúpula convocada por Lula reuniu líderes de 11 dos 12 países da América do Sul. A única presidente que não participou do evento foi a do Peru, Dina Boluarte - por questões judiciais, ela não pode se ausentar do país. Fim do Matérias recomendadas A iniciativa vem sendo apontada pela diplomacia brasileira como uma tentativa para que a região voltasse a ter um diálogo político após alguns anos de hiato. A reunião também é vista como parte do esforço do governo do presidente Lula de ampliar seu papel de liderança regional após os quatro anos do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O encontro, porém, vem sendo marcado pelas polêmicas em torno da participação de Nicolás Maduro, presidente da Venezuela. O governo liderado por ele é apontado por entidades vinculadas à Organização das Nações Unidas (ONU) como responsável por graves violações de direitos humanos como tortura, execuções e perseguição a adversários políticos. Historicamente, o governo venezuelano vem se defendendo alegando que as acusações fariam parte de uma campanha internacional contra o regime liderado por Maduro. O pivô das controvérsias foram as declarações feitas por Lula na segunda-feira, quando recebeu Maduro com honras de chefe de Estado. Segundo Lula, a Venezuela teria sido alvo de uma narrativa construída. "Se eu quiser vencer uma batalha, eu preciso construir uma narrativa para destruir o meu potencial inimigo. Você sabe a narrativa que se construiu contra a Venezuela, de antidemocracia e do autoritarismo", disse Lula. O presidente brasileiro também afirmou que caberia a Maduro mudar a opinião pública internacional a partir de uma nova narrativa. "Eu vou em lugares que as pessoas nem sabem onde fica a Venezuela, mas sabe que a Venezuela tem problema na democracia. É preciso que você construa a sua narrativa e eu acho que, por tudo que conversamos, a sua narrativa vai ser infinitamente melhor do que a que eles têm contado contra você", disse o presidente brasileiro. Nesta terça-feira, porém, líderes convidados por Lula reagiram às falas de Lula. O primeiro a se manifestar de forma crítica em relação ao episódio foi o presidente do Uruguai, Luis Alberto Lacalle Pou. Ele é do Partido Nacional, um dos principais partidos de centro-direita do país, e é conhecido por defender pautas como a liberdade econômica e redução do tamanho do Estado. Durante a reunião entre os chefes de Estado, Lacalle Pou transmitiu seu discurso pelas redes sociais e disse ter ficado "surpreso" com as declarações. Ele, no entanto, não citou nominalmente o presidente Lula. "Fiquei surpreso quando foi dito que o que acontece na Venezuela é uma narrativa. Já sabem o que pensamos sobre a Venezuela e o governo da Venezuela." "Se há tantos grupos no mundo tentando mediar para que a democracia seja plena na Venezuela, para que os direitos humanos sejam respeitados e não haja presos políticos, o pior a fazer é tapar o sol com a mão", disse o presidente uruguaio. Não há informações sobre como Lula ou Maduro reagiram às falas de Lacalle Pou. Mais tarde, foi a vez de Boric abordar o assunto. O presidente chileno tem 36 anos de idade e é uma político de esquerda que iniciou sua carreira política no movimento estudantil. Ele disse que celebrou a participação da Venezuela na cúpula, mas afirmou que não poderia fazer "vista grossa" para a situação na Venezuela. "Para muitos de nós é a primeira oportunidade que temos de compartilhar o mesmo espaço que o presidente Nicolás Maduro. E que a verdade é que nos alegra que a Venezuela retorne às instâncias multilaterais. Cremos que é nestes espaços que se resolvem os problemas", disse. Boric, no entanto, disse abertamente discordar dos termos usados por Lula em sua menção à realidade venezuelana. "Eu manifestei respeitosamente que tinha uma discrepância com o que disse o senhor presidente Lula ontem no sentido de que a situação dos direitos humanos na Venezuela era uma construção narrativa. Não é uma construção narrativa. É uma realidade que é séria e eu tive a oportunidade de ver a dor de centenas de milhares de venezuelanos que vivem em nossa pátria", disse Boric. As declarações de Boric e de Lacalle Pou acompanham o tom de crítica de parte da comunidade internacional em relação à situação política na Venezuela. Entidades como a Anistia Internacional, a Human Rights Watch e a Organização das Nações Unidas (ONU) acusam o governo comandado por Maduro de ser uma ditadura que usa da violência para manter o poder. Os métodos incluiriam execuções, sequestros, estupros e prisão de opositores. Iniciado por Hugo Chávez, o grupo político de Maduro - o chavismo - está no poder na Venezuela de desde 1999. Segundo elas, o governo usaria o aparato de inteligência civil e militar para vigiar a sociedade civil, inclusive sindicalistas e membros da imprensa. As acusações mais recentes de violação de direitos humanos ao governo Maduro foram em março deste ano pela Missão das Nações Unidas para Verificação de Fatos sobre a Venezuela (FFMV, na sigla em inglês). A missão relatou a existência de pelo menos 282 presos por razões políticas no país, e apontou a permanência de um clima generalizado de medo por parte da população. A reunião entre os líderes deverá se estender até o fim da tarde desta terça-feira. Alguns presidentes vão deixar o Brasil ainda hoje, como Gabriel Boric. Outros deverão participar de um jantar oferecido por Lula no Palácio da Alvorada. A expectativa é de que boa parte dos presidentes que participaram da cúpula de hoje também façam parte de outro encontro convocado por Lula previsto para agosto, em Belém. O encontro reunirá líderes dos países que compartilham o bioma amazônico.
2023-05-30
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c885lv6x36qo
brasil
Vídeo, 3 controvérsias da visita do presidente da Venezuela ao BrasilDuration, 2,58
O presidente da Venezuela, Nicolas Maduro, está no Brasil nesta semana. É a primeira vez que ele vem ao país desde 2015 – e desde que o ex-presidente Jair Bolsonaro proibiu-o de entrar em território brasileiro, em 2019. Maduro participa de uma cúpula de presidentes da América do Sul, que foi convocada por Lula e que acontece nesta terça-feira (30/5), em Brasília. Apesar da presença esperada de quase dez líderes da região, a chegada de Maduro é uma das que mais chama atenção. Neste vídeo, nosso repórter Leandro Prazeres conta três polêmicas envolvendo a visita de Maduro ao Brasil: as acusações de violações de direitos humanos na Venezuela, as dívidas com o Brasil e os números da imigração de venezuelanos fugindo do país. Assista e confira.
2023-05-30
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-65753781
brasil
Por que Brasil tem maior número de advogados por habitantes do mundo
Quando Brenda Moura escolheu cursar Direito, não imaginava que estava prestes a ingressar em uma carreira tão procurada pelos brasileiros. Recém-aprovada no Exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ela diz que somente se deu conta quando passou a exercer a advocacia. “Confesso que deu um frio na barriga, porque de fato tem muito aluno de Direito e advogado no Brasil. Mas acredito que, quando você mostra seu diferencial, você consegue seu espaço. Inclusive, hoje a internet ajuda muito na divulgação do nosso trabalho.” Assim como Brenda, cerca de 120 mil brasileiros fazem todos os anos a prova para poder exercer a advocacia. Não é à toa que o Brasil tem a maior proporção de advogados por habitantes do mundo. No país, existe um profissional da advocacia para cada 164 brasileiros, enquanto, nos Estados Unidos, por exemplo, há um advogado para cada 253 habitantes. Fim do Matérias recomendadas Um estudo da OAB, com base em dados da International Bar Association (IBA), aponta que, em números absolutos de advogados, só a Índia fica à frente do Brasil, com pouco mais de 2 milhões de advogados. Entretanto, como a população do país asiático é muito maior do que a brasileira (1,4 bilhão de indianos frente a 212,7 milhões de brasileiros), a Índia tem uma proporção menor de advogados em relação ao número de habitantes: um advogado para cada 700 habitantes. O grande número de profissionais da advocacia no Brasil fica claro em mais comparações com outros países, a começar pela vizinha Argentina. Em uma população de 46,1 milhões de pessoas, segundo estimativa da Organização das Nações Unidas (ONU), existem 126 mil advogados — número informado pela Federación Argentina de Colegios de Abogados (FACA). Logo, uma proporção bem mais tímida do que a brasileira: 1 advogado para 365 pessoas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em Portugal, entre os 10 milhões de habitantes, 16 mil são profissionais da advocacia: 1 advogado para cada 625. O Reino Unido tem, por sua vez, 146 mil advogados em uma população de 68,8 milhões de pessoas — 1 advogado para 471 habitantes. No Brasil, segundo a OAB, 1,3 milhão de brasileiros exercem regulamente a advocacia como profissão. Em 2008, o Brasil tinha um advogado para cada 322 habitantes. Eram 571,3 profissionais da advocacia entre 183,9 milhões de brasileiros. Na época, o país ocupava a terceira posição no ranking mundial entre os países com o maior número de advogados em relação ao número de habitantes, atrás da Índia e dos Estados Unidos. O número de advogados, hoje em dia, somente não é maior porque, em média, 45% dos 120 mil alunos que prestam o Exame da Ordem todos os anos, escolhem outras profissões ou ingressam em concursos públicos, de acordo com estudo da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES). O apelido "terra dos advogados" foi conquistado, na última década, após o Brasil alcançar primeira posição no ranking de países com maior número de advogados em relação ao número de habitantes, principalmente, pelo crescimento do número de cursos de Direito. Para ter uma ideia, em 1995, o Brasil tinha 235 cursos na área. Em 2023, são 1.896 — um aumento de 706%. Só nos últimos cinco anos, foram criados 697 cursos. Segundo a OAB, o Brasil é o país com o maior número de cursos de Direito no mundo. Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam diversas razões para o sucesso desta formação profissional entre os brasileiros. O primeiro é relacionado à tradição histórica. Isso porque a graduação na área jurídica foi uma das primeiras oferecidas no país. “As profissões ligadas ao conhecimento jurídico sempre tiveram um apelo social importante. Ao lado de Medicina e Engenharia, Direito permitia àquelas e àqueles que se bacharelavam o exercício de profissões social e financeiramente mais valorizadas como advocacia”, aponta Antonella Galindo, vice-diretora da Faculdade de Direito do Recife. “Além disso, o que parece ter ocorrido de 1988 para cá, com a promulgação da Constituição, foi um prestígio ainda maior desse tipo de conhecimento. Com menos autoritarismo e arbítrio (comum em ditaduras) e maior necessidade de construção de argumentos e teses sólidas e convincentes na perspectiva de um Estado democrático de direito, profissionais jurídicos tiveram maior valorização”, diz a professora. Claudinor Roberto Barbiero, presidente da comissão especial de ensino jurídico da OAB de São Paulo, também aponta a procura cada vez maior de brasileiros por concursos públicos. “Em um país de muitas incertezas políticas e econômicas, é cada vez maior o número de brasileiros que buscam nos concursos públicos a tão sonhada estabilidade e, normalmente, os concursos públicos com melhor remuneração são da área jurídica.” Diferente de outros cursos de graduação, em que apenas a formação superior permite que o graduado exerça a profissão, no Direito, o estudante formado é apenas um bacharel que precisa ser aprovado em um concurso público ou no Exame da OAB para exercer as profissões jurídicas mais conhecidas. “Quem cursa Direito, por exemplo, pode ser advogado, mas seguir outras funções ligadas à aplicação da lei, como de juiz, promotor do ministério público e alguns cargos da segurança pública, como o de delegado de polícia”, explica Barbiero. Também é apontada por especialistas, entre os motivos, a forte midiatização do Poder Judiciário, principalmente, após a Operação Lava Jato, que despertou o interesse dos brasileiros pelas profissões da área. “Agora, o que temos visto muito nas instituições de ensino é um número crescente de brasileiros procurando o Direito como uma segunda formação superior. Hoje, por exemplo, temos muitos presidentes de grandes empresas que são formados na área jurídica”, afirma Bruno Coimbra, assessor da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES). Com o aumento exponencial de cursos de Direito no país, a OAB criou um levantamento próprio para aferir sua qualidade. O último, realizado em 2022, mostra que dos 1.896 cursos aptos a funcionar no território brasileiro, apenas 11% foram considerados como de boa qualidade. “Infelizmente, é um número preocupante. Não tenho dúvida que, se outros ramos do conhecimento fizessem o mesmo levantamento sobre os cursos do Brasil, teríamos um diagnóstico parecido”, diz Marco Aurélio de Lima Choy, presidente da Comissão Nacional do Exame de Ordem. Para fazer a avaliação, a OAB leva em conta os resultados de aprovação dos alunos matriculados da instituição de ensino nos últimos Exames da Ordem e na prova do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade). Cruzando esses dados, é gerado um indicador de qualidade que varia de 0 a 10. Se a nota for de 7 para cima, o curso recebe o Selo OAB. Apesar de a OAB fazer sua própria aferição, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão ligado ao Ministério da Educação (MEC), é o responsável no Brasil pela avaliação da qualidade dos cursos de graduação e pós-graduação. No entanto, gestores educacionais argumentam que o modelo está ultrapassado e necessita de uma reformulação, com o objetivo de melhor aferir a qualidade dos cursos oferecidos no país. “Esse é um problema antigo que atinge todo o ensino superior, público e privado. Existe um sistema de avaliação executado pelo Inep, mas que é ultrapassado. Hoje, ele pouco avalia e poucas informações oferecem sobre a qualidade dos cursos”, ressalta Rodrigo Capelato, diretor executivo da Semesp, que representa instituições de ensino superior do Brasil. Choy aponta que o Brasil pode ganhar ainda mais cursos de Direito nos próximos anos, porque está em discussão no Ministério da Educação a autorização para que instituições de ensino superior do país também ofereçam a formação na modalidade à distância, conhecida pela sigla EAD. A OAB é contrária à autorização de novos cursos de Direito na modalidade à distância. “Nossa preocupação não é quantitativa, mas qualitativa", diz Choy. "Se no Brasil, em média, apenas 20% dos candidatos passam na primeira fase da OAB, que é um exame sem concorrência e que o candidato necessita acertar no mínimo mais da metade da prova para ser aprovado, significa que primeiro precisamos melhorar os cursos presenciais que já oferecemos do que oferecer mais vagas". Atualmente, o curso, que somente pode ser oferecido na modalidade presencial, concentra 750 mil matrículas. “Diferente da Medicina, o Direito é um curso mais fácil e de menor custo de ser implantado pelas instituições de ensino superior. Isso também ajuda a explicar esse aumento do número de cursos nos últimos anos”, diz Capelato. Por outro lado, entidades que representam instituições de ensino superior defendem a abertura de cursos de direito na modalidade à distância, desde que os métodos de avaliação de todos os cursos oferecidos no país sejam revistos. “Por vezes, quando se crítica o EAD, esse julgamento normalmente se restringe à modalidade. Mas, na prática, o que precisamos discutir é a importância da fiscalização da qualidade dos cursos de graduação do país”, afirma Coimbra. Para Antonio Freitas, pró-reitor da Faculdade Getúlio Vargas (FGV), a qualidade do ensino jurídico independe do curso ser na modalidade presencial ou com mediação tecnológica. “Existem cursos bons e ruins, independente da modalidade. A mediação tecnológica, no Direito, ajudará os profissionais competentes e penalizará os profissionais medíocres. Ou seja, a tecnologia bem usada alavancará os cursos e os egressos”, defende Freitas. O Ministério da Educação disse, por meio de not, que a oferta de cursos de educação superior, bem como o aumento de vagas para os já existentes, depende de autorização do órgão e seguem fluxos estabelecidos pelo Decreto nº 9.235, de 15 de dezembro de 2017. “Os cursos de Direito dependem de manifestação do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil para serem ofertados. Uma vez autorizados, os cursos continuam a ser monitorados periodicamente pelas autoridades educacionais, em especial com base em avaliações produzidas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira”, informou. Segundo o MEC, caso o curso seja considerado como de desempenho insatisfatório, poderá ser celebrado um protocolo de compromisso para a superação das fragilidades detectadas e, caso haja denúncias de irregularidades e de não atendimento do protocolo de compromisso, é iniciado um processo de supervisão. Sobre a oferta de cursos de Direito na modalidade à distância, a pasta ressaltou que instituiu iniciativas de diálogo com a sociedade civil sobre o tema. “A Portaria MEC número 398, de 8 de março de 2023, instituiu Grupo de Trabalho para coletar subsídios para instruir a regulamentação da oferta dos cursos de direito, odontologia, enfermagem e psicologia, na modalidade de (EAD). Os encontros do GT estão na última rodada (ocorreram quatro encontros em cada área) e têm contado com a participação de representantes de outros órgãos públicos e de uma ampla gama de entidades representativas dessas formações de nível superior e de associações dos setores público e privado de ensino superior.”
2023-05-30
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cl52ql8y1jgo
brasil
Nicolás Maduro: as acusações que pesam contra líder da Venezuela
Depois de oito anos e quatro meses de ausência, o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, está de volta ao Brasil. Acusado de graves violações de direitos humanos pela Organização das Nações Unidas (ONU) e de "narcoterrorismo" pelos Estados Unidos, Maduro aterrissou em Brasília para uma reunião dos chefes de Estado e de governo de 11 países latinoamericanos, a ser realizada na terça-feira (30/05). O venezuelano estava acompanhado da primeira-dama, Cilia Flores, quando subiu a rampa do Palácio do Planalto para uma reunião bilateral com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Maduro não vinha ao Brasil desde janeiro de 2015, quando esteve na posse da ex-presidente Dilma Rousseff, também do PT. Ao assumir o governo brasileiro em 2019, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) rompeu relações com o governo de Nicolás Maduro – que comanda de fato o país desde 2013 – e passou a reconhecer o opositor Juan Guaidó como presidente interino da Venezuela, embora este nunca tenha exercido o poder no país vizinho. Fim do Matérias recomendadas Em 2017, ainda no governo de Michel Temer (MDB), o então encarregado de negócios da Venezuela no Brasil, Gerardo Antonio Delgado Maldonado, foi considerado "persona non grata" no Brasil. A medida foi uma resposta à decisão de Caracas de fazer o mesmo com o embaixador brasileiro na Venezuela, o diplomata Ruy Pereira. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast E, em setembro de 2020, já sob Bolsonaro, o corpo diplomático venezuelano no Brasil também deixou de ser reconhecido pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE) – os profissionais não foram expulsos de Brasília, mas não tinham mais o status de representantes diplomáticos para o governo brasileiro. Sob o governo do ex-capitão, o Estado brasileiro passou a relacionar-se com representantes indicados por Guaidó. Na reunião desta segunda-feira, Lula e Maduro trataram da normalização das relações entre o governo brasileiro e o regime de Caracas. Segundo Lula, é "um prazer" receber Maduro novamente em Brasília. "É difícil conceber que tenham passado tantos anos sem que mantivessem diálogos com a autoridade de um país amazônico e vizinho, com quem compartilhamos uma extensa fronteira de 2.200 km", disse Lula após o encontro. O presidente brasileiro disse ainda que as acusações de autoritarismo contra a Venezuela são apenas "narrativas". "Você sabe a narrativa que se construiu contra a Venezuela. Da antidemocracia, do autoritarismo… Então eu acho que cabe à Venezuela mostrar a sua narrativa, para que possa efetivamente fazer as pessoas mudarem de opinião. (...) E eu acho que, por tudo que nós conversamos, a sua narrativa vai ser infinitamente melhor que a narrativa que eles têm contado contra você", disse Lula em entrevista no Palácio do Planalto, ao lado de Maduro. Na prática, o governo brasileiro já havia retomado as relações com o governo Maduro logo após a posse de Lula – na última quarta-feira (24/05), o petista recebeu as credenciais do novo embaixador da Venezuela no Brasil, Manuel Vicente Vadell Aquino. A cerimônia marcou o início dos trabalhos do embaixador em Brasília. Entidades como a Anistia Internacional, a Human Rights Watch e a Organização das Nações Unidas (ONU) acusam o governo comandado por Maduro de ser uma ditadura que usa da violência para manter o poder. Os métodos incluiriam execuções, sequestros, estupros e prisão de opositores. Iniciado por Hugo Chávez, o grupo político de Maduro - o chavismo - está no poder na Venezuela de forma ininterrupta desde 1999. Segundo as entidades, o governo usaria o aparato de inteligência civil e militar para vigiar a sociedade civil, inclusive sindicalistas e membros da imprensa. Em 2020, o governo dos Estados Unidos acusou Maduro de envolvimento com o tráfico de drogas e de "narcoterrorismo" contra a população americana – as acusações continuam em aberto, e há uma recompensa pela prisão do chefe de Estado venezuelano. Por fim, os principais índices que se propõem a medir o grau de democratização dos diferentes países ao redor do mundo são unânimes em considerar o atual regime venezuelano como uma ditadura. Para o índice V-Dem, baseado na Suécia, a Venezuela é hoje uma "autocracia eleitoral" – um regime autoritário, apesar das eleições. Maduro foi eleito presidente em 2013 e reeleito em 2018. A eleição vencida por ele em 2018, porém, foram colocadas sob suspeita por diversos outros países. Além disso, após ter sofrido uma derrota na eleição de 2015 para obter maioria na Assembleia Nacional - o Legislativo unicameral da Venezuela -, Maduro convocou uma Assembleia Nacional Constituinte. Na prática, o movimento serviu para esvaziar o Legislativo eleito e comandado pela oposição. As últimas acusações de violação de direitos humanos dirigidas contra o governo Maduro foram apresentadas em março deste ano pela Missão das Nações Unidas para Verificação de Fatos sobre a Venezuela (FFMV, na sigla em inglês). A missão relatou a existência de pelo menos 282 presos por razões políticas no país, e apontou a permanência de um clima generalizado de medo por parte da população. "Num contexto de impunidade generalizada de crimes sérios mencionados em nossos relatórios anteriores, os cidadãos que criticam ou se opõem ao governo se sentem ameaçados e desprotegidos. O medo da prisão e de torturas por parte do governo impedem as pessoas de se expressarem ou protestarem", disse Marta Valiñas, a chefe da FFMV. Em outro relatório, de setembro de 2020, a mesma missão da ONU detalhou a forma como o governo venezuelano usava agências de inteligência civis e militares para reprimir opositores. "Ao fazê-lo (o governo) comete crimes graves e violações de direitos humanos, incluindo atos de tortura e violência sexual. Estas práticas precisam parar imediatamente", disse Valiñas na ocasião. O relatório foi baseado em 245 entrevistas confidenciais com cidadãos venezuelanos, além de análise de documentos. No fim de março deste ano, a Anistia Internacional estimou entre 240 e 310 o número de presos políticos na Venezuela, além de destacar as dificuldades econômicas enfrentadas pela população. A maioria dos venezuelanos sofre com "severa insegurança alimentar e falta de acesso a cuidados médicos adequados", enquanto o Estado trata de forma repressiva "jornalistas, integrantes da mídia independente e defensores de direitos humanos", segundo a organização. A reportagem da BBC News Brasil procurou a embaixada venezuelana em Brasília por e-mail no começo da tarde desta segunda-feira para comentários sobre as acusações, mas até o momento não houve resposta. Em 2020, porém, o então embaixador da Venezuela na ONU, Jorge Valero, classificou a iniciativa das Nações Unidas como "hostil" e disse que a produção dos relatórios fazia parte de uma iniciativa dos Estados Unidos para atacar o governo de Caracas. A professora do curso de Relações Internacionais da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), Carol Pedroso, diz que o Brasil tem uma tradição de buscar relações com todos os países – mesmo os que são considerados ditaduras. "Existe uma tradição na diplomacia brasileira, consolidada no começo do século vinte, de que o Brasil não se posiciona contra governos. o Brasil (...) não faz críticas diretas à situação interna de outros Estados. O entendimento é de que se nós (Brasil) nos posicionamos contra questões domésticas de outro país, nós também nos colocamos em posição de receber críticas dos outros", diz ela. "E sendo o Nicolás Maduro o presidente de fato da Venezuela, aquele que governa realmente o país, que controla as instituições, ele deve ser recebida como chefe de Estado", diz. "Agora, tem a questão simbólica, com todo esse histórico recente. Há várias acusações graves de violação de direitos humanos por parte do governo Maduro, e até questionamentos de se a Venezuela seria de fato uma democracia", diz a pesquisadora à BBC News Brasil. "Nessa dimensão simbólica, a recepção do Maduro com honras de chefe de Estado pesa contra o Lula, sobretudo no âmbito interno (ao Brasil)", completa ela. Segundo Carol Pedroso, a aproximação de Lula com Maduro pode estar relacionada à tentativa do brasileiro de trazer o regime venezuelano de volta às negociações com a oposição. "O Lula pode (tentar) ganhar uma projeção internacional como mediador, assim como ele está tentando fazer no caso do conflito da Ucrânia. A gente sabe que ele pessoalmente tem uma capacidade de negociação grande, porém as condições atuais (na Venezuela) são muito diferentes daquelas dos dois primeiros governo dele", diz ela.
2023-05-29
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c997jjg7pveo
brasil
Sucesso de Vini Jr. causa 'pânico racial' em pessoas brancas, diz pesquisador negro
Atletas de alto desempenho como o jogador de futebol Vinícius Junior têm um papel de prestígio na nossa sociedade contemporânea, mas o fato de o brasileiro ser um negro gera uma quebra de expectativas na hierarquia social dominada pelos brancos, segundo analisa o jurista Adilson Moreira. "A 'degradação moral' de pessoas não brancas é um elemento central de todas ou quase todas as formas de racismo", diz Moreira, doutor em Direito pela Universidade de Harvard e professor visitante da Universidade de Stanford, ambas nos Estados Unidos. "O caso do Vinícius Junior atesta isso de forma ainda mais clara, porque ele é um homem negro retinto e um profissional de altíssima competência. Isso leva muitas pessoas brancas a uma situação de pânico racial." Moreira, que é também professor assistente na Universidade Presbiteriana Mackenzie, é autor do livro Racismo Recreativo (Editora Jandaíra). O conceito que ele propõe, e que dá título à obra, refere-se a mensagens que demonstram desprezo por minorias raciais através do humor e de atividades como os esportes. Fim do Matérias recomendadas O livro analisa programas humorísticos que retrataram personagens negros de forma depreciativa e também 88 decisões judiciais no Brasil em que o humor racista foi utilizado para se referir a minorias raciais. Segundo o pesquisador, tanto os programas quanto as decisões judiciais recorrem aos mesmos estereótipos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Recentemente, outra acusação de racismo que ganhou repercussão chegou à Justiça brasileira: em meados de maio, o Tribunal de Justiça de São Paulo exigiu que o humorista Leo Lins retirasse um vídeo do ar. A decisão afirma que o vídeo propagava "comentários odiosos, preconceituosos e discriminatórios contra minorias e grupos vulneráveis". Lins foi também proibido de realizar nas suas apresentações novos comentários contra minorias. A BBC News Brasil procurou o humorista através do seu contato para publicidade, mas não teve retorno. Falas de Lins sobre negros em 2017 são, inclusive, mencionadas por Adilson Moreira em seu livro. Além de Racismo Recreativo, Moreira é autor de outras publicações, como o livro Pensando Como Um Negro: Ensaio de Hermenêutica Jurídica (Editora Contracorrente), que foi finalista do Prêmio Jabuti em 2020, na categoria Ciências Sociais. O jurista, que está morando na Califórnia, conversou com a BBC News Brasil por chamada de vídeo. Confira os principais trechos da entrevista. BBC News Brasil - Nos últimos dias, dois casos relacionados ao racismo tiveram repercussão no Brasil: primeiro, a decisão da Justiça contra o humorista Leo Lins e depois manifestações racistas contra Vini Jr. durante um jogo de futebol na Espanha. Ambos são casos de racismo recreativo? Adilson Moreira - Não tenho dúvida alguma. Os dois casos envolvem manifestações racistas, e o racismo é um sistema de dominação social que tem dois propósitos fundamentais. Primeiro, garantir vantagens competitivas para pessoas brancas. Segundo, garantir que a respeitabilidade social seja um patrimônio exclusivo de pessoas brancas, para que pessoas brancas continuem tendo acesso privilegiado ou exclusivo a oportunidades sociais, pelo simples fato de serem brancas. Isso ocorre tanto no Brasil quanto na Espanha e em várias outras sociedades ocidentais. A sociedade precisa ser permanentemente convencida de que pessoas não brancas não são atores sociais competentes. Então, a degradação moral de pessoas não brancas é um elemento central de todas ou quase todas as formas de racismo. Ela é certamente o elemento central do que eu chamo no meu livro de racismo recreativo. O caso do Vinícius Junior atesta isso de forma ainda mais clara, porque ele é um homem negro retinto e um profissional de altíssima competência. Isso leva muitas pessoas brancas a uma situação de pânico racial. Porque se há pessoas negras tão competentes, se a sociedade for convencida de que pessoas negras, asiáticas ou indígenas podem desempenhar funções sociais com a mesma competência — e, no caso dele, com uma competência muito maior do que a maioria de pessoas brancas —, o status social privilegiado [dos brancos] está ameaçado. Então, eu preciso degradar aquela pessoa. E, nesse caso, há ainda outro ponto. A advogada Ângela Leite demonstra [no capítulo "Ofender para ganhar", do livro Direito Antidiscriminatório e Relações Raciais] o seguinte: jogadores de futebol são atletas. Atletas são pessoas que ocupam um papel muito importante no nosso imaginário social. Eles não tinham nenhuma relevância no século 19, mas desde a segunda metade do século 20, eles se tornaram modelos de masculinidade. Então você tem aí uma relação de ambivalência, porque o Vini Jr. é um atleta, um profissional de alto desempenho, mas ele é negro. Isso significa que ele não representa a masculinidade ideal. BBC News Brasil - Você poderia exemplificar que oportunidades sociais seriam essas que seriam restringidas pelo status social dos brancos? Moreira - Há centenas de milhares de exemplos de como o humor e os estereótipos afetam pessoas negras. Isso ocorre no acesso à Justiça, no acesso ao trabalho, no acesso à saúde... No SUS [Sistema Único de Saúde], mulheres brancas são atendidas em média por 15 minutos, homens brancos por 12 minutos, mulheres negras por 8 minutos e homens negros por 5 minutos. Veja só a discussão sobre o episódio do Leo Lins. Há uma série de atores sociais argumentando que aquilo é censura, que aquilo é o politicamente correto tomando conta do sistema judiciário brasileiro, que teríamos uma legislação antipiada. Mas o humor é uma mensagem, que produz sentido para a outra pessoa na medida em que ela compartilha as opiniões do indivíduo que contou a piada. Então, para que o humor racista, sexista, homofóbico possa produzir o efeito cômico, grande parte ou a sociedade como um todo precisa acreditar que mulheres, negros e homossexuais são pessoas inferiores, diferentes, incompetentes, moralmente degradadas. O que está por trás da ideia de que "quem não quer consumir, não vá" é a noção de que o elemento cognitivo que faz alguém rir da piada está circunscrito àquele momento. Então, depois que eu saio do show e me encontro com pessoas negras, asiáticas ou indígenas, em outras situações, eu agiria de maneira civilizada. Não. O elemento cognitivo que me faz rir de uma piada racista também molda a minha percepção daqueles indivíduos em todas as outras circunstâncias. Então, se eu sou um profissional de recursos humanos e tenho que decidir entre um homem negro e um homem branco, eu vou decidir em favor do homem branco, porque eu sou culturalmente treinado a acreditar que só pessoas brancas são competentes. BBC News Brasil - Então, uma piada não fica restrita ao teatro em que ela foi proferida? Moreira - É inteiramente impossível. E o livro [Racismo Recreativo] mostra isso. Eu fiz questão de primeiro analisar uma série de personagens negros em programas humorísticos e depois, de uma série de processos judiciais, que mostram que os estereótipos são exatamente os mesmos observados nos programas. BBC News Brasil - Quando há leis e decisões judiciais influenciando no conteúdo do humor, isso não traz risco nenhum à liberdade de expressão? Moreira - A liberdade de expressão é um princípio constitucional que surgiu dentro de um contexto muito específico, nos Estados Unidos do início do século 19, em função de leis chamadas de atos de sedição, que proibiam críticas ao governo federal — em um momento que o governo estava fazendo uma série de coisas contrárias ao interesse coletivo. Isso foi considerado um ato de censura, porque ele impedia críticas da população a atos governamentais que efetivamente estavam prejudicando a população. Isso é censura, quando um indivíduo exerce seu cargo de forma inapropriada e diz: você não vai me denunciar. Estamos em uma democracia onde a informação precisa circular, onde eu, você e o Leo Lins precisamos tomar conhecimento [da informação], expressar opiniões, para decidir pelo bem comum. É algo muito diferente de discurso de ódio. BBC News Brasil - Então a censura é algo circunscrito à política institucional? Moreira - Essa é a origem tanto da discussão sobre censura quanto de liberdade de expressão. Mas certamente a censura pode ser exercida contra qualquer indivíduo, contra qualquer grupo cujas manifestações, discursos, são contrários aos interesses dos grupos dominantes. Porque censura implica uma relação de poder. Pessoas brancas tentam nos convencer que a luta contra o racismo é uma questão de censura. Não. A luta contra o racismo é uma luta pelos valores civilizatórios. Não creio que há problema de pessoas de humoristas brancos fazerem piadas em relação a pessoas negras. Essas piadas podem assumir uma variedade de formas, sem que isso signifique a degradação moral de pessoas negras. Eu posso fazer piadas sobre mulheres ou sobre mulheres específicas sem que isso expresse a degradação moral. Eu posso construir um programa de televisão em torno de uma mulher que é uma alpinista social, sem que isso seja uma uma degradação das mulheres, como no programa de televisão mais popular da BBC, Keeping Up Appearances. BBC News Brasil - E o que você pensa no humor que faz graça com os brancos pobres nos EUA? Moreira - Eu não vejo propósito em fazer piadas racistas com pessoas brancas, pobres e norte-americanas, que eles chamam de red necks (em tradução literal, "pescoços vermelhos"). Especialmente quando nós consideramos o fato de que pessoas brancas sofrem com a homofobia, sofrem com a pobreza. E aqui nos Estados Unidos, sofrem tremendamente com a pobreza. E vamos lembrar que representantes de grupos minoritários e de grupos subalternizados também produzem humor sobre si mesmos. Há toda uma tradição riquíssima de humor de judeus e em relação a costumes existentes dentro da comunidade judaica, sobre a mãe judaica, sobre tradições judaicas... A mesma coisa em relação a negros e a comunidade negra. BBC News Brasil - Então a questão do identitarismo se torna mais prominente aí? Ou seja, é mais aceitável que uma pessoa negra faça piada sobre sua comunidade? Moreira - Eu acho que nesses casos é diferente porque o humor não está partindo de uma pessoa com o objetivo de legitimar a dominação social. O humor tem uma pluralidade de objetivos, então um deles é produzir prazer e graça através de situações irônicas, jocosas, sobre membros do próprio grupo. Tem o objetivo de alívio e relaxamento. A teoria do racismo recreativo não está baseada em um senso de hipersensibilidade, como as pessoas, especialmente homens brancos heterossexuais, dizem: "Ah, agora a gente não pode falar mais nada que eles ficam ofendidos". Não é sobre ofensas no sentido superficial da palavra. Não. As pessoas negras ouvem comentários racistas todos os dias. Elas confrontam atitudes e atos racistas todos os dias. E esse essas atitudes, essas falas, comprometem o status coletivo [dos negros]. As piadas sexistas comprometem o status coletivo de mulheres. Como o humor atua para reproduzir essa ideia? Por meio de piadas que falam que mulheres são emocionalmente descontroladas, que elas são muito sensíveis. O que elas realmente estão dizendo é: "Mulheres são muito emotivas. Nós homens, pelo contrário, somos seres racionais. Portanto, nós é que devemos ter acesso a cargos de comando e as mulheres devem estar numa posição subordinada." O humor racista, sexista, homofóbico é, antes de tudo, comportamento estratégico. BBC News Brasil - Depois das últimas manifestações racistas contra o Vini Jr., algumas pessoas levantaram a questão sobre se o Brasil estaria mais avançado no combate ao racismo no futebol. O que você acha? Moreira - Eu detesto futebol e não acompanho futebol [risos]. Mas, no livro, eu menciono decisões de tribunais esportivos que condenaram clubes pela prática de racismo, como foi o caso do Grêmio [em 2022, o clube foi condenado pela Justiça a pagar multa por um grito racista da torcida]. Eu não creio que isso tenha ocorrido na Espanha. BBC News Brasil - Quem deve regular e decidir os limites da liberdade de expressão? O Legislativo, o Judiciário, a própria reação espontânea da população...? Moreira - Cada um destes atores sociais tem uma função importante nesta regulação. Primeira, nós temos uma Constituição. Nós temos também uma lei que regula crimes de racismo [a lei 7.716]. A Constituição garante a liberdade o direito à liberdade de expressão, mas nunca foi sobre a possibilidade de você dizer o que você quiser. Nunca. [O princípio da] A liberdade de expressão tem uma origem em um objetivo muito específico, que é permitir a circulação de discursos de informação que podem contribuir para o bem comum. Racismo, sexismo, homofobia, nada disso, são coisas que promovem o bem comum. BBC News Brasil - Referindo-se ao caso Leo Lins, o humorista Fabio Porchat escreveu no Twitter que "dentro da lei pode-se fazer piada com tudo". Tecnicamente, isso é verdade? Moreira - Não, não é. Por causa da lei 7.716. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou uma lei no início deste ano que traz modificações na lei 7.716, e uma delas caracteriza o crime de injúria racial quando há o objetivo de promover riso e entretenimento jocoso. Além da Constituição, que traz os princípios da igualdade e da dignidade humana. BBC News Brasil - No caso do humorista Léo Lins, a Justiça o proibiu de fazer quaisquer comentários daqui para frente em suas apresentações contra minorias e categorias vulneráveis. Isso não extrapola os limites de como a Justiça pode interferir na expressão de uma pessoa? Moreira - O Tribunal de Justiça agiu corretamente, de acordo com a lei, a lei 7.716. Isso não foi censura prévia ou qualquer coisa dessa natureza. O tribunal apenas acenou para ele: olha, tome cuidado para não fazer esse tipo de comentário racista, porque isso configura crime. BBC News Brasil - Você é a favor de cotas na magistratura? Moreira - Eu sou integralmente a favor de cotas. Isso é absolutamente essencial para que o sistema de justiça brasileiro possa operar de forma adequada. A maioria dos membros do sistema judiciário brasileiro são pessoas brancas, heterossexuais e de classe alta. As pessoas brancas de classe média-alta no Brasil têm pouco ou absolutamente nenhum contato com negros. Além disso, são socializadas a partir da ideia de que o racismo não tem relevância no Brasil. Como você não tem contato com negros, a representação que você tem, especialmente de homens negros, é que eles são sujeitos perigosos. Isso vai, conscientemente ou inconscientemente, modificar a sua decisão. Isso é tão notório que é escrito em decisões judiciais: "O acusado não parece ter uma aparência de bandido porque ele tem cabelos loiros e olhos azuis."
2023-05-29
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv2k2mk2mz4o
brasil
Quais os riscos do superfungo mortal que causa surto em Pernambuco
A Secretaria de Saúde de Pernambuco confirmou, no fim de maio, três casos de infecção por Candida auris, conhecido popularmente como "superfungo". Segundo as informações divulgadas até o momento, os pacientes são do sexo masculino e estavam internados em três hospitais diferentes nas cidades de Paulista, Olinda e Recife. O primeiro diagnóstico ocorreu em 11 de maio no Hospital Miguel Arraes, em Paulista. Por ora, a unidade de saúde parou de fazer novos atendimentos para evitar que outras pessoas sejam afetadas por esse patógeno. O Candida auris foi detectado nos outros dois indivíduos nos dias 14 e 23 de maio, respectivamente. Os especialistas ainda não conseguiram estabelecer uma cadeia de transmissão e se há alguma relação entre os três episódios ocorridos em locais diferentes. Fim do Matérias recomendadas O Governo de Pernambuco anunciou na sexta-feira (26/5) a criação de um comitê específico para monitorar e lidar com os casos da infecção. Essa não é a primeira vez que o Estado sofre com um surto desse tipo: entre dezembro de 2021 e setembro de 2022, o Hospital da Restauração, em Recife, registrou 47 indivíduos acometidos por esse "superfungo". Mas por que Candida auris causa tanta preocupação? E quais os riscos individuais e coletivos deste fungo? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na maioria das vezes, as leveduras do gênero Candida residem na pele, na boca e nos genitais sem causar problemas, mas podem causar infecções quando uma pessoa está com a imunidade baixa ou quando esse fungo invade a corrente sanguínea ou os pulmões. No caso específico do Candida auris, ele costuma causar problemas na corrente sanguínea, mas também pode afetar o sistema respiratório, o sistema nervoso central e órgãos internos, assim como a pele. Os sintomas mais comuns dessa infecção fúngica são febre, calafrios, suores excessivos e pressão arterial baixa — mas há muitos indivíduos que não apresentam muitos incômodos sugestivos. O patógeno foi estudado pela primeira vez em 2009 no canal auditivo de uma paciente no Japão — mas pesquisas recentes detectaram cepas dele em 1996, na Coreia do Sul. Segundo o infectologista Arnaldo Lopes Colombo, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e especialista em contaminação com fungos, é possível ser colonizado de forma passageira pelo C. auris na pele ou na mucosa sem ter problemas. O fungo apresenta risco real se contaminar a corrente sanguínea. Pacientes internados em unidades de terapia intensiva (UTI) por longos períodos e com uso prévio de antibióticos ou antifúngicos também são considerados grupo de risco para a contaminação. Além disso, o Candida auris costuma ser confundido com outras infecções, levando a tratamentos inadequados. Para completar, detergentes e desinfetantes comuns não são suficientes para eliminar o fungo do ambiente. Muitas vezes, os profissionais de saúde precisam fechar alas inteiras de hospitais e aplicar produtos especiais para conseguir tornar aquele local seguro novamente para receber os pacientes. Do ponto de vista preventivo, cuidados básicos com a higiene das mãos, uso de equipamentos de proteção em ambientes como a UTI e a vigilância constante podem ajudar. Nos Estados Unidos, a infecção está se espalhando rapidamente e de forma "alarmante", segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos. Os casos nos EUA quase dobraram em 2021: passaram de 756 para 1.471, de acordo com um relatório da entidade divulgado em março deste ano. Na maioria das infecções diagnosticadas em terras americanas, o fungo era resistente aos tratamentos disponíveis. Por esse motivo, o CDC classifica a situação como uma "ameaça urgente relacionada à resistência antimicrobiana". Muitos pacientes afetados estão em hospitais e lares de idosos. Outro motivo de preocupação é o aumento de casos que se tornaram "resistentes às equinocandinas", que é a classe de antifúngicos mais recomendada para o tratamento da infecção por Candida auris. O CDC atribui o aumento à falta de medidas de prevenção nas unidades de saúde e às melhoras nos serviços de acompanhamento e diagnóstico de casos. Outro fator que parece ter contribuído, segundo a entidade, foi o estresse ao sistema de saúde relacionado à pandemia de covid-19. No Brasil, já foram identificados ao menos quatro surtos de maior importância relacionados a esse micro-organismo nos últimos anos. Segundo os pesquisadores, o Candida auris "requer uma grande vigilância por sua alta capacidade de formar colônias e biofilmes, o que contribui para a disseminação do fungo". "A identificação rápida e precisa dessa espécie é essencial para gerenciar, controlar e prevenir infecções", concluem os especialistas.
2023-05-29
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51dyzylm4qo
brasil
CPMI de 8 de janeiro: quem é quem na comissão e o que esperar
Composta por 32 membros — 16 senadores e 16 deputados federais (além de seus suplentes) —, a CPMI terá maioria de congressistas aliados do governo Lula. São 18 parlamentares alinhados ao Planalto no total (9 senadores e 9 deputados federais) e 9 de oposição, além de 5 independentes (ou seja, que não se declaram alinhados nem com um lado nem com o outro). O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) terá aliados em dois postos-chave: a senadora Eliziane Gama (PSD-MA) foi escolhida como relatora, e o senador Cid Gomes (PDT-CE) será o 1º vice-presidente. Fim do Matérias recomendadas O senador de oposição Magno Malta (PL-ES) completa a mesa diretora como 2º vice-presidente. Confira a composição completa da CPMI ao final desta reportagem. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A postura tanto do governo quanto da oposição em relação à comissão variou ao longo do tempo. Ele é atualmente um dos membros da CPI e investigado no Supremo Tribunal Federal (STF) em inquérito sobre os ataques de 8 de janeiro, a pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR), com base em postagens feitas por ele nas redes sociais. A comissão foi criada formalmente em 26 de abril, mas só foi instalada em 25 de maio, quando ocorreu a primeira reunião do grupo. Inicialmente, a oposição estava empenhada em fazer a comissão acontecer pois imaginava ter conseguido munição contra o governo com os vídeos que mostravam o então ministro do Gabinete de Segurança Institucional, o general da reserva Marco Edson Gonçalves Dias, no Planalto no dia dos ataques. Já o governo Lula demorou para indicar os nomes porque não queria que a instalação da comissão atrapalhasse a aprovação pelo Congresso do arcabouço fiscal — que vai substituir o atual teto de gastos e era a grande prioridade de Lula no início do governo. A relatora da CPMI, Eliziane Gama, diz que não descarta a possibilidade de convocar Bolsonaro para depor na comissão, por exemplo. No entanto, o fato de Lula ter maioria na comissão não significa que o resultado será necessariamente positivo para o governo, diz o cientista político Creomar de Souza, professor da Fundação Dom Cabral e fundador da consultoria política Dharma. Ele diz que, embora a CPMI seja, para o governo, "um ambiente relativamente controlado de que pode até sair com resultados favoráveis", também pode ser palco para "parlamentares bolsonaristas criarem tumulto e alimentarem a máquina de fake news da extrema direita". Souza afirma que o governo tem tido muita dificuldade de se articular no Congresso e perdeu a oportunidade de fazer uma CPI no Senado — cuja composição é mais simpática ao governo do que a Câmara — logo após os ataques em janeiro. "O governo, no que eu acredito que foi um erro de avaliação, achou que não seria positivo fazer uma CPI naquele momento. Mas aí veio a CPMI com a Câmara, na qual o presidente, Arthur Maia, não é aliado do governo", explica ele. Maia é próximo do presidente da Câmara, Arthur Lira, e ambos foram aliados de Bolsonaro durante seu governo. Para Souza, a relação do governo com a Câmara tem oscilado tanto que é difícil fazer uma previsão do andamento da comissão. "O governo pode ter uma vitória enorme em uma terça e, na quarta, sofrer uma perda significativa", afirma. "O governo tem tido dificuldade tanto de perspectiva — tem articulado mal —, quanto de aritmética — o número de parlamentares que estão dispostos a sentar ao lado do governo (na Câmara) é baixo." Quanto à possibilidade de desgaste, diz Souza, o governo está mais preocupado com a CPI do MST, que vai investigar ocupações recentes do movimento sem-terra e tem o potencial de ser muito mais problemática para o governo. Mesmo que o relatório final não resulte de fato em ações administrativas ou judiciais concretas, uma CPI é sempre um debate sobre interpretações da realidade — a simbologia, o barulho, o tumulto e o resultado midiático são componentes centrais, afirma. Um exemplo, diz ele, é a forma como a CPI da Covid gerou desgaste para o governo Bolsonaro mesmo que o relatório final — que o acusava de crimes — não tenha levado a ações criminais por recusa da Procuradoria Geral da República (PGR) em iniciar um processo criminal. Quanto à CPMI de 8 de janeiro, outra possibilidade problemática para o Executivo é que seu funcionamento tem potencial de tirar a atenção do Congresso de pautas consideradas importantes para o governo Lula, como a Reforma Tributária. "Esse tipo de clima (de animosidade criado pela disputa de narrativas da CPMI) interessa mais ao bolsonarismo", diz Sérgio Praça, cientista político e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV). "CPI sobre esse assunto é fundamental e deveria mesmo ocorrer", diz Praça, "mas infelizmente há essa consequência negativa de desviar o debate público para um tema 'bolsonarista'" em vez de focar na aprovação de reformas estruturais importantes. No entanto, Praça pontua que não necessariamente a CPMI de 8 de janeiro é algo que coloca governo e oposição em polos opostos — como se somente o governo estivesse interessado na punição dos responsáveis pelos atos golpistas. "Há parlamentares de oposição que são contra golpes. O PT e sua coalizão não são a única força política que prefere democracia à ditadura no Brasil — mas o governo pode usar a CPI para vender essa ideia, que considero equivocada", diz Praça. Seu dispositivo não consegue visualizar este interativo
2023-05-29
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-65730615
brasil
Como China está expandindo influência do yuan na América Latina em meio a disputa global com EUA
Talvez você não veja isso nos preços de carros ou eletrodomésticos do país, mas o yuan, a moeda que a China promove como alternativa ao dólar, está abrindo um espaço crescente na América Latina. Alguns sinais disso surgiram nas últimas semanas. Na Argentina, o governo anunciou no mês passado que suas compras da China passariam a ser pagas em yuans em vez de dólares, para preservar suas enfraquecidas reservas internacionais. E aqui no Brasil, onde o yuan superou o euro como segunda maior moeda de reserva externa, o governo também anunciou um acordo para negociar com a China nas moedas dos dois países e evitar recorrer ao dólar. Essas mudanças em duas das maiores economias latino-americanas são apontadas pelo presidente boliviano, Luis Arce, como parte de uma "tendência" regional à qual seu país pode aderir. Mas também é visto por especialistas como reflexo do compromisso da China em tornar sua moeda mais internacional, em meio à luta cada vez mais intensa com os Estados Unidos. "Existem vários mecanismos que a China pode usar para introduzir sua moeda em diferentes mercados; é um fenômeno regional, não algo exclusivo do Brasil e da Argentina", diz Margaret Myers, diretora do programa da Ásia e América Latina do Diálogo Interamericano, um centro de análises regional com sede em Washington, nos Estados Unidos. No entanto, ela adverte em entrevista à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) que ainda não se sabe até onde chegará esse impulso da moeda asiática. Pequim demonstrou sua intenção de aumentar a presença do yuan na América Latina na última década, depois de se tornar um importante parceiro comercial na região e uma fonte de financiamento para alguns países. Em 2015, as autoridades chinesas assinaram acordos de investimento e câmbio com o Chile, onde anunciaram a abertura do primeiro banco de compensação de yuans na América Latina. Alguns meses depois, fizeram o mesmo na Argentina. O objetivo dessas instituições, também conhecidas como clearing houses – ou câmaras de compensação –, é facilitar as transações internacionais entre a moeda local e o yuan, sem a necessidade de passar pelo dólar, como costuma acontecer. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em fevereiro, após acordos de compensação de yuans em outras regiões, a China anunciou a mesma medida no Brasil, seu maior parceiro comercial na América Latina com uma troca bilateral que em 2022 atingiu um recorde de US$ 150 bilhões (cerca de R$ 750 bilhões). Operado pelo Banco Industrial e Comercial da China, um importante ator financeiro que garante aos empresários brasileiros a conversão imediata para reais dos negócios fechados em yuan, o mecanismo compensatório no Brasil processou sua primeira operação de liquidação internacional em moeda asiática em abril. Com um volume considerável de câmbio bilateral, esse mecanismo teoricamente pode tornar as operações em yuan mais atrativas porque evita a dupla conversão em dólar, explica Welber Barral, ex-secretário de Comércio Exterior do Brasil. "É uma estratégia chinesa tentar tornar sua moeda conversível e mais amplamente utilizada", declara Barral à BBC News Mundo. Mas ele destaca que mais de 90% do comércio exterior brasileiro ainda é feito em dólares. Embora o yuan possa ganhar mais peso como segunda moeda nas reservas internacionais do Brasil com acordos recentes, ainda é marginal em relação ao dólar (a moeda chinesa ocupava menos de 6% desse total em dezembro, e os EUA mais de 80%). O ministro da Economia argentino, Sergio Massa, anunciou em abril um acordo para deixar de pagar as importações da China em dólares e passar a adotar o yuan, após ativar um swap ou acordo de câmbio financeiro com o país asiático equivalente a US$ 5 bilhões. Desta forma, a Argentina calculou oficialmente que somente em maio suas empresas pagariam com yuans mais de US$ 1,04 bilhão por importações originárias da China (de eletrônicos a automóveis) e, depois, uma média de US$ 790 milhões por mês. O governo argentino buscou com esses acordos preservar as reservas internacionais do país, que caíram a níveis preocupantes em meio à crise econômica e à medida em que o Banco Central vendia dólares no mercado de câmbio para conter a desvalorização do peso. Na Bolívia, onde as reservas internacionais também diminuíram e os dólares rarearam, o presidente citou a nova utilização do yuan no comércio exterior da Argentina e do Brasil como um possível caminho a seguir. "As duas maiores economias da região já estão negociando em yuan em acordos com a China", disse Arce em entrevista coletiva neste mês. "A tendência na região vai ser essa”, acrescentou. Claro, os fatores geopolíticos também desempenham um papel em tudo isso. Diferentes analistas acreditam que a China redobrou seu desejo de internacionalizar sua moeda não apenas como uma forma de impulsionar o seu comércio exterior, mas também para corroer o poder que o dólar americano teve por décadas. As sanções internacionais à Rússia por invadir a Ucrânia pareciam abrir uma oportunidade para a valorização da moeda chinesa. O yuan desbancou o dólar como a moeda mais negociada na Rússia este ano, depois de representar 23% dos pagamentos de importações russas em 2022. E a China, pela primeira vez em março, usou mais yuan do que dólares para pagar suas transações internacionais, embora sua moeda tenha movimentado menos de 5% do comércio mundial. Alguns especialistas acreditam que, ao tentar reduzir a dependência do dólar, Pequim quer se proteger do risco de futuras sanções ao dólar. A China também fechou acordos recentes com outros parceiros comerciais – do Paquistão a empresas na França – para facilitar as trocas de yuans, desenvolveu sua própria moeda digital e uma alternativa à Swift, a rede global de mensagens interbancárias. Paralelamente, também surgiram questionamentos da América Latina sobre a primazia do dólar. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sugeriu a adoção de uma moeda diferente dos EUA para financiar o comércio entre os países do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). "Quem decidiu que o dólar deveria ser a moeda depois que o ouro desapareceu como paridade?", perguntou Lula durante visita à China em abril. "Precisamos ter uma moeda que transforme os países em uma situação um pouco mais tranquila", disse, "porque hoje um país precisa correr atrás do dólar para poder exportar". Mas, de acordo com especialistas, a chave aqui é que o dólar tende a atrair a demanda internacional por ativos seguros e é difícil para o yuan competir nesse aspecto sem que a China relaxe suas próprias restrições de capital. Myers considera improvável um aumento explosivo do uso do yuan na América Latina após os anúncios da Argentina e do Brasil, ainda que a moeda tenha maior presença na região. "Vemos um crescimento no uso (do yuan) e um esforço real da China para que isso aconteça", diz ele. "Mas o grau em que será usado como moeda global depende das próprias reformas internas da China e do quanto ela abrirá seus mercados financeiros. E isso não está ocorrendo."
2023-05-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c8vr3r7l4dmo
brasil
Governo não se empenhou e Congresso 'rifou' indígenas em negociação, diz deputada
Coordenadora da Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, a deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG) diz em entrevista à BBC News Brasil que faltou empenho do governo federal para evitar a aprovação no Congresso de um relatório que pode enfraquecer o Ministério dos Povos Indígenas, criado em janeiro. Indígena do povo Xakriabá, de Minas Gerais, a deputada afirma que, até as últimas semanas, os povos indígenas vinham sendo tratados como prioridade pelo governo federal. "Não deixamos de ser prioridade. Agora, a diferença é que estamos sendo prioridade como moeda de troca, tendo nossos direitos rifados e leiloados", ela afirma. Na última quarta-feira (24/05), uma comissão mista do Congresso aprovou um relatório do deputado Isnaldo Bulhões (MDB-AL) que altera a reorganização ministerial definida em janeiro pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Entre outras mudanças, o relatório de Bulhões retira do Ministério dos Povos Indígenas a atribuição de demarcar terras indígenas, devolvendo essa prerrogativa ao Ministério da Justiça. Fim do Matérias recomendadas A demarcação de terras indígenas é um tema sensível para a bancada ruralista, que representa fazendeiros e é um dos grupos mais fortes do Congresso. Os ruralistas não querem que o Ministério dos Povos Indígenas fique encarregado das demarcações e pressionam pela aprovação de propostas legislativas que freariam os processos. O relatório de Bulhões também pode enfraquecer o Ministério do Meio Ambiente, ao deslocar para outras pastas a gestão do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e a Agência Nacional das Águas (ANA). O texto de Bulhões precisa ser aprovado nos plenários da Câmara e do Senado até 1° de junho para vigorar. Caso contrário, seguirá valendo a reorganização ministerial definida por Lula, e os ministérios dos Povos Indígenas e do Meio Ambiente manterão suas atribuições. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para a deputada Célia Xakriabá, que apoiou a eleição de Lula e é um dos principais nomes do movimento indígena brasileiro, o governo poderia ter se esforçado mais para evitar a aprovação do relatório de Bulhões. "Faltou empenho, faltou prioridade (do governo), porque nesse momento tinha toda a condição de fazer a negociação (do relatório) a partir do Poder Executivo", afirma. Auxiliares importantes de Lula participaram da negociação do relatório. Segundo o jornal Folha de S.Paulo, os ministros Alexandre Padilha (Relações Institucionais) e Rui Costa (Casa Civil) jantaram com o deputado Isnaldo Bulhões na última segunda-feira (22/05) para tratar do texto. Xakriabá diz que também esteve com Bulhões antes da aprovação do relatório. Ela afirma ter defendido no encontro que a retirada da atribuição de demarcar terras equivaleria a "arrancar o coração do ministério dos Povos Indígenas". Segundo ela, deputados que defendem a mudança argumentam que haveria um "conflito de interesses" caso o Ministério dos Povos Indígenas ficasse encarregado das demarcações. O Ministério dos Povos Indígenas é chefiado pela indígena Sônia Guajajara (PSOL) e tem vários indígenas em postos-chave. Para Xakriabá, porém, ninguém questiona que agricultores comandem o Ministério da Agricultura. Ela diz que o argumento pela transferência das demarcações "parece uma proposta da época do Estatuto do Índio (1973), que falava que nós, povos indígenas, tínhamos de ser tutelados". Xakriabá diz ainda que, antes da posse de Lula, lideranças indígenas que participaram do Gabinete de Transição do novo governo defenderam que criar o Ministério dos Povos Indígenas "só teria sentido se o órgão assumisse a atribuição da demarcação". Segundo a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), há cerca de 200 processos de demarcação de terras indígenas em curso. Essas áreas equivalem a um décimo das terras já demarcadas e abarcam cerca de 1,2% do território nacional. Muitos desses processos estão travados na Justiça e são contestados por fazendeiros, que dizem ser os donos legítimos das terras pleiteadas por indígenas. Após pressão dos ruralistas, as demarcações foram desaceleradas nos governos Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB) e suspensas no governo de Jair Bolsonaro. Bastante popular entre fazendeiros, o ex-presidente costuma dizer que já há terras indígenas demais no Brasil e que as demarcações prejudicam o desenvolvimento do país. Já Lula se elegeu no ano passado prometendo priorizar pautas do movimento indígena e retomar as demarcações. Em 28 de abril, ele assinou decretos de homologação (última etapa do processo de demarcação) de seis terras indígenas e disse que concluiria todos os processos pendentes em seu governo. Para Célia Xakriabá, o governo "teve muito compromisso, muito comprometimento" com as pautas indígenas até o anúncio das demarcações, em abril. Ela também elogia o empenho de Lula em expulsar os garimpeiros da Terra Indígena Yanomami, em Roraima, e em atenuar a crise humanitária vivida pelos indígenas daquele território. "Existe um compromisso verdadeiro do presidente Lula, mas, neste momento, também existe uma correlação de forças contrária e é preciso o governo incidir", afirma, para "que ele retome ter os povos indígenas como prioridade". Xakriabá disse ter a esperança de que articuladores do governo consigam reverter as mudanças no relatório de Bulhões antes da votação do texto em plenário, na próxima semana. Nesta sexta (26/05), o ministro da Casa Civil, Rui Costa, afirmou a jornalistas que o governo trabalhará com o Congresso para tentar desfazer as alterações de Bulhões. "Vamos trabalhar no Congresso para que a essência das políticas publicas permaneça como na origem", disse o ministro. Segundo ele, Lula cobrou os ministros que negociam com o Congresso a "reafirmar a prerrogativa de quem ganhou a eleição e de quem ganhou a implementação de um projeto político" Segundo Célia Xakriabá, o enfraquecimento do Ministério dos Povos Indígenas afastaria o governo de uma de suas principais promessas de campanha: lutar contra as mudanças climáticas. Ela cita estudos que apontaram a demarcação de terras indígenas como um dos instrumentos mais eficientes para evitar o desmatamento. Para ela, se o governo recuasse nesse ponto, "seria como se arrancassem Raoni da fotografia do dia da posse", diz, referindo-se ao protagonismo que o líder indígena Raoni Metuktire teve na cerimônia em que Lula reassumiu a Presidência, em janeiro. Xakriabá diz ainda que, embora o movimento indígena tenha apoiado a eleição de Lula, o grupo não aceitará retrocessos nos ritos de demarcação. "Negociar a pauta territorial é negociar as nossas vidas, e nossas vidas não estão sob negociação." "Seja quem for (o governo), de direita ou esquerda, nós faremos contraposição, porque não permitiremos que rifem esse direito territorial", diz.
2023-05-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72j2x7xeg1o
brasil
Militares brasileiros não pediram apoio para golpe, diz general dos EUA
A comandante do Comando Sul das Forças Armadas dos Estados Unidos (Southcom), general Laura Richardson, disse, em entrevista exclusiva à BBC News Brasil, que militares brasileiros não procuraram suporte para um suposto golpe militar durante a corrida eleitoral que acabou na derrota do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), em 2022. "Absolutamente, não. Eles não pediram nenhum tipo de suporte. Nós não discutimos nada político", disse a militar na quinta-feira (25/5). O Southcom é o comando militar norte-americano responsável por atuar na América do Sul, Central e no Caribe. O suposto envolvimento de militares brasileiros em planos para resistir aos resultados das eleições de 2022 e impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vem sendo investigado pela Polícia Federal com base em mensagens de texto trocadas por oficiais próximos ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Entre eles está o coronel Élcio Franco, que atuou como secretário-executivo do Ministério da Saúde e como assessor especial do Ministério da Casa Civil, subordinado ao general Walter Braga Netto, que foi candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro à reeleição. O caso tramita no Supremo Tribunal Federal (STF). Fim do Matérias recomendadas Ao longo da corrida eleitoral, surgiram rumores de que os militares brasileiros pudessem ter sondado os norte-americanos para saber se os Estados Unidos dariam algum tipo de suporte em caso de desrespeito ao resultado das eleições - embora nunca tenha havido qualquer sinalização do governo e autoridades norte-americanas neste sentido. Os rumores se fundamentavam na percepção de proximidade entre os militares brasileiros e norte-americanos e por conta do histórico de apoio que o governo norte-americano deu ao golpe de estado ocorrido no Brasil em 1964, quando os militares brasileiros depuseram o então presidente João Goulart, visto como um político de esquerda que simpatizava com o então bloco comunista. Cinquenta e nove anos depois daquele episódio, a general norte-americana veio ao Brasil nesta semana para estreitar suas relações, justamente, com os atuais comandantes das Forças Armadas brasileiras sob um governo de centro-esquerda. Na quinta-feira, por exemplo, ela se reuniu com o ministro da Defesa, José Múcio. Laura Richardson é a primeira mulher a liderar o Southcom. Antes disso, ela também foi a primeira mulher a comandar o Northerncom, responsável pela área que abrange Estados Unidos, Canadá, México e parte da Groenlândia. Na entrevista à BBC News Brasil, a general também falou sobre o que ela classifica como ação "maligna" daqueles que são considerados os dois principais competidores dos Estados Unidos por influência na América Latina e no Caribe: China e Rússia. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Eles (China e Rússia) são nossos principais concorrentes. Os chineses são nossos principais concorrentes na região. Nossa estratégia de defesa nacional coloca a República Popular da China como o desafio número um", afirmou a oficial. Segundo ela, a política de financiamento de obras de infraestrutura como portos e redes de telecomunicações adotada pela China seria preocupante por conta da suposta possibilidade de que, no futuro, poderiam ter algum tipo de uso militar por parte do regime de Pequim. Especialista em guerras (ela lutou no Iraque e no Afeganistão), Laura Richardson se esquivou ao responder se o presidente Lula estava atuando como um ator neutro em relação ao conflito entre a Rússia e a Ucrânia. "O presidente Lula é um líder global. E ele tomará suas próprias decisões. O que a Rússia fez com a Ucrânia é uma invasão injustificada e não provocada da Ucrânia. Ponto final", disse. Confira os principais trechos da entrevista: BBC News Brasil - A senhora frequentemente menciona o fato de que atualmente China e Rússia são os principais concorrentes em relação à influência na região. O Comando do Sul está planejando expandir sua presença militar na região para enfrentar essa competição? Laura Richardson - Trabalhamos com todas as nossas nações parceiras na região, e acredito que o que realmente trazemos para a mesa com as 28 democracias de mentalidade semelhante à nossa é sobre democracia [...] O que está acontecendo na região é um chamado à ação, como eu gosto de chamar, entre democracia e autoritarismo. E acredito que, quando mostramos nações com valores semelhantes, compartilhamos os valores democráticos. BBC News Brasil - Em termos objetivos, o Comando do Sul planeja expandir sua presença militar na região ou não? Richardson - Vamos continuar fazendo o que fazemos há muitas décadas. Se precisarmos aumentar as forças porque temos uma assistência humanitária ou resposta a desastres que precisamos realizar, então provavelmente aumentaremos as forças e isso incluirá outras nações que estarão lá para ajudar a responder a um desastre ou uma crise. BBC News Brasil - Por que você diz que China e Rússia são os principais concorrentes em termos de influência na região? Richardson - Eles são nossos principais concorrentes. Os chineses são nossos principais concorrentes na região. Nossa estratégia de defesa nacional coloca a República Popular da China como o desafio número um. E, portanto, na região, as preocupações que tenho são de que, dos 31 países desta região, 21 assinaram a "Iniciativa Um Cinturão, uma Rota" (também conhecida como Nova Rota da Seda). Não há nada de errado com isso, se não houvesse coisas como empréstimos-armadilha de US$ 150 bilhões para países e projetos que não são feitos corretamente, com estouros de custos, trabalho mal-feito. Às vezes, esses projetos criam mais problemas do que resolvem. BBC News Brasil - A senhora tem descrito as ações da Rússia e da China na América Latina e no Caribe como malignas. A China e a Rússia representam uma ameaça para esta região ou apenas para os interesses dos EUA na região? Richardson - Eu acho que (é uma ameaça) aos interesses de todo mundo, das democracias da região e não apenas aos interesses americanos na região. Quero dizer…essa é a nossa região. É a nossa vizinhança. Quando você olha para as atividades malignas deles (China, Rússia) na região... Não se trata apenas da Nova Rota da Seda e de projetos que deram errado. Por que há tanto investimento? Por que há tanto foco em portos oceânicos? Por que há foco em telecomunicações, 4G e 5G? Houve um grande acúmulo de capacidade militar de arsenais convencionais e nucleares na China continental [...] Já vimos isso em outras regiões do mundo e na África e em todo o globo. Preocupo-me com o uso duplo (civil e militar) dessas estruturas. BBC News Brasil - Por outro lado, a senhora acredita que os Estados Unidos têm dado alguma opção para os países da região quando se trata desses investimentos? A senhora já disse que alguns desses países estariam desesperados por investimento… Richardson - E eu acho que todos nós podemos fazer mais como países democráticos e com mentalidades semelhantes. Será que as empresas chinesas estão fazendo lances menores e reduzindo os preços durante as licitações (em países da América Latina)? Será que eles oferecem o que realmente o projeto custa ou será que existem gastos excessivos associados a esses projetos? A resposta é: sim. Temos que olhar atentamente para o que está acontecendo na região e enfrentar essa situação. BBC News Brasil - A senhora acredita que o governo chinês tem competido de forma justa com os Estados Unidos pela influência na região? Richardson - Eu diria que, em termos de investimento e infraestrutura crítica, eu apenas apresento os fatos quando os vejo e começo a juntar todas as peças. Deixo que outras pessoas determinem se é justo ou não. Eu aponto atividades malignas quando as vejo. Se vemos isso no Comando do Sul, vamos expor e perguntar: "Para que isso serve? O que vocês estão fazendo?" Tem muitas coisas acontecendo. BBC News Brasil - A senhora tem levantado muitas perguntas, mas eu gostaria de lhe perguntar, então: que tipo de ameaças específicas a China e a Rússia representariam para o Brasil, por exemplo? Richardson - Então, o que tenho falado é principalmente em relação à China. E mais uma vez, volto ao fato de que a China tem um grande crescimento militar. Então: por que há tanto investimento dessas empresas estatais chinesas em infraestrutura crítica na região? E, em relação à informação, existe o Russia Today (veículo de informação russo), a Sputnik Mundo (veículo de informação russo em espanhol) e há um aumento na disseminação de desinformação na região. Eles têm mais de 31 milhões de seguidores. Não há verificação jornalística acontecendo nessas organizações. A desinformação, as notícias falsas e a intenção deliberada de enganar as populações não estão corretas. BBC News Brasil - Algumas semanas atrás, a senhora disse que a China vem manipulando governos na América Latina e no Caribe. Que evidências a senhora tem de que esse tipo de manipulação vem ocorrendo? A senhora acha que o Brasil poderia ser manipulado pelo governo chinês em algum momento? Richardson - Eu menciono algumas coisas nas quais a China parece estar investindo. Eu vejo como se fosse uma extração. Quando você chega numa nação anfitriã e você não contrata trabalhadores desse país para esses projetos bilionários, isso é o primeiro exemplo de que você não está investindo nos países em que esses projetos estão sendo executados. BBC News Brasil - Mas a senhora vê o Brasil como um país que pode ser de alguma forma manipulado pelo governo chinês? Richardson - Temos que estar de olhos bem abertos em relação ao que está acontecendo e estar muito cientes da situação ao lidar com a China neste momento. BBC News Brasil - A China construiu uma base espacial na Argentina e está negociando um acordo nuclear com o país. Em que medida isso lhe preocupa? Richardson - Estou preocupada com a infraestrutura espacial na região. E novamente, volto à infraestrutura crítica, os portos oceânicos, as telecomunicações [...] Sim, é preocupante. BBC News Brasil - Os Estados Unidos têm bases espaciais em diferentes países. Por que a China não poderia ter? Richardson - Bem… novamente, eu pergunto: por que há tanto investimento em infraestrutura crítica na América Latina e nesta região no hemisfério ocidental? BBC News Brasil - Mas essa é uma pergunta: o que a senhora acha que está por trás dessa decisão? Richardson- Bem, isso é para o público decidir o que pensa. Eu apresento os fatos como os vejo e deixo a audiência decidir. E não estou tentando levar ninguém a uma decisão. Como disse há alguns minutos, me preocupo com a natureza de uso duplo (dessas estruturas). Há um governo comunista que não respeita os direitos humanos de seu próprio povo investindo muito nesta região e vemos o que acontece quando uma nação tem a preponderância da influência e acesso a certas coisas [...] estou preocupada com isso. BBC News Brasil - No mês passado, o presidente Lula esteve na China e disse que quer fortalecer os laços com a China. A senhora está preocupada com o fortalecimento dos laços entre o Brasil e a China? Richardson - Bem, o Brasil toma suas próprias decisões [...] se isso me preocupa? Não me preocupa, porque temos nossa relação com o Brasil e continuaremos a trabalhar muito de perto com o país. BBC News Brasil - Gostaria de voltar um pouco ao passado porque, no ano passado, havia o temor de que o ex-presidente Jair Bolsonaro e alguns membros do alto escalão militar não aceitassem os resultados eleitorais. A senhora teve algumas conversas com militares brasileiros naquela época. A senhora ficou preocupada com a possibilidade de que membros das Forças Armadas brasileiras não aceitassem o resultado das eleições e estivessem dispostos a dar um golpe de estado? Richardson - Nossas Forças Armadas militares são muito profissionais e é isso que devemos fazer como militares. Nós temos uma longa relação com os militares brasileiros baseada no estado de direito, nos direitos humanos, no cumprimento da Constituição, assim como fazemos também. Nós falamos falando sobre cooperação de segurança militar e profissionalização da Força. E eu não tive dúvidas quanto à profissionalização das Forças Armadas do Brasil. Eles são extremamente profissionais e conhecem seu papel. BBC News Brasil - Eles pediram algum tipo de apoio no caso de não aceitarem os resultados das eleições naquele momento? Richardson - Absolutamente, não. Eles não pediram nenhum tipo de suporte. Nós não discutimos nada político. BBC News Brasil - Na sua opinião, houve alguma indicação de que o ex-presidente Bolsonaro ou os militares estariam dispostos a realizar um golpe naquele momento? Richardson - Não discutimos assuntos políticos. Falamos sobre cooperação de segurança militar, profissionalização de nossas forças, exercícios (militares), desafios de segurança na região [...] O que discutimos foi isso. Não falamos de coisas políticas. BBC News Brasil - Vamos falar, então, sobre um assunto militar: a guerra na Ucrânia. Tem havido algumas dúvidas na comunidade internacional sobre se o presidente Lula tem sido neutro em suas declarações sobre a guerra na Ucrânia. A senhora o vê como um ator neutro ou o vê atualmente mais como um aliado da Rússia? Richardson - O presidente Lula é um líder global e ele tomará suas próprias decisões. O que a Rússia fez com a Ucrânia é uma invasão injustificada e não provocada da Ucrânia. Ponto final. BBC News Brasil - Mas o presidente Lula disse que os Estados Unidos têm que parar de incentivar a guerra. A senhora concorda com essa declaração? Richardson - Não importa se concordo ou não. Volto ao que eu disse antes: o que a Rússia fez está errado. BBC News Brasil - A senhora acredita que o Brasil está de alguma forma em posição de desempenhar o papel de mediador de paz em relação ao conflito na Ucrânia? Richardson - Eu acredito que se algum líder estiver disposto a assumir esse papel para tentar trazer a paz, acho que todos gostariam que isso acontecesse. BBC News Brasil - O Brasil, na sua opinião, está em posição de desempenhar esse papel, considerando seu peso militar, político e econômico? Richardson - Eu diria que se algum país for capaz de mediar a paz, isso será bem-vindo. BBC News Brasil - Desde o ano passado, autoridades vêm investigando a existência de pelo menos três supostos espiões russos operando com identidades falsas brasileiras. A senhora tem alguma evidência ou teme que a Rússia possa ter transformado o Brasil em uma espécie de berçário para espiões? Richardson - Precisamos estar conscientes do nosso entorno o tempo todo e do que parecem ser os nossos desafios, os nossos adversários, como eu os chamo. Porque eles não são confiáveis. E precisamos ter os olhos bem abertos em relação ao que nossos adversários são capazes de fazer. BBC News Brasil - Existem pelo menos dois pedidos de extradição para um desses supostos espiões (Sergey Vladimirovich Cherkasov). Um é da Rússia e o outro é dos Estados Unidos. A senhora ficaria decepcionada se o governo brasileiro decidisse extraditá-lo para a Rússia e não para os Estados Unidos? Richardson - Deixo nossos líderes políticos lidarem com todas essas negociações. Novamente, estamos focados nas coisas que fazemos com o Brasil, na cooperação de segurança para combater os desafios de segurança na região. É nisso que nos concentramos.
2023-05-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c9xnzx9dg6go
brasil
Como caso Allan dos Santos pode frear extradição de suposto espião russo aos EUA
A suposta falta de cooperação dos Estados Unidos em processos de extradição como o do blogueiro Allan dos Santos faz com que a tendência hoje, no governo brasileiro, seja não enviar para os EUA o suposto espião russo Sergey Vladimirovich Cherkasov. A informação foi repassada à BBC News Brasil por fonte com conhecimento do caso em condição de anonimato. Procurado, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) enviou uma nota afirmando que não se pronunciaria sobre o caso, argumentando que "não comenta casos concretos em andamento". O Departamento de Justiça dos Estados Unidos informou que não se manifestaria sobre o caso. Fim do Matérias recomendadas O Ministério das Relações Exteriores (MRE), a Presidência da República e o Departamentos de Estado dos Estados Unidos também foram consultados pela BBC News Brasil, mas não enviaram resposta. O entrelaçamento dos dois casos acontece por conta de uma sequência de eventos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O caso envolvendo a extradição de Allan dos Santos vem colocando as autoridades brasileiras e norte-americanas em lados opostos desde 2021. Naquele ano, o governo brasileiro solicitou a extradição de Allan dos Santos aos Estados Unidos. Em novembro de 2022, o governo brasileiro cancelou o passaporte de Allan dos Santos. Após quase dois anos sem que o processo de extradição avançasse, o atual governo, liderado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), retomou conversas com as autoridades norte-americanas sobre o caso de Allan dos Santos. No entendimento de fontes do governo brasileiro, porém, os diálogos não foram satisfatórios e, até agora, Allan dos Santos não foi extraditado ou deportado. Pessoas familiarizadas com o caso de Allan dos Santos ouvidas pela BBC News Brasil em caráter reservado argumentam que as autoridades norte-americanas têm dito aos seus colegas brasileiros que parte dos crimes atribuídos ao blogueiro pelas autoridades brasileiras não constam do tratado de extradição entre Brasil e Estados Unidos, firmado em 1965. Esse tratado seria uma espécie de "guia" para as extradições entre os dois países. Por isso, os norte-americanos não estariam dispostos a realizar a extradição do brasileiro. A explicação não teria convencido as autoridades brasileiras uma vez que, caso os norte-americanos não quisessem extraditar Allan dos Santos, eles poderiam, em tese, deportá-lo. O argumento brasileiro é de que, como seu passaporte foi cancelado, Allan dos Santos estaria nos Estados Unidos na condição de imigrante ilegal. Questionado sobre o assunto, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos disse, por meio de nota, que não comentaria o episódio. O Departamento de Estado, equivalente a um ministério das Relações Exteriores, não enviou resposta. Allan dos Santos ficou conhecido nos últimos seis anos como uma das principais vozes da direita conservadora no Brasil. Ele também ganhou notoriedade ao se tornar um dos principais apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). A partir de 2020, ele passou a ser alvo de investigações em pelo menos dois inquéritos sobre sua suposta participação em milícias digitais e na disseminação de ataques a autoridades como o ministro do STF Alexandre de Moraes. Entre os crimes atribuídos a ele, segundo as investigações, estariam a participação e promoção de uma organização criminosa cujos objetivos seriam: atacar integrantes de instituições públicas, desacreditar o processo eleitoral, reforçar a polarização, gerar animosidade na sociedade brasileira e promover o descrédito dos poderes da República. Ainda de acordo com as investigações, Santos seria um dos líderes dessa organização. O blogueiro vem negando as acusações feitas contra ele e, em manifestações em suas redes sociais, diz ser vítima de perseguição política. Em meio ao avanço das investigações, em 2020, ele se mudou para os Estados Unidos. Procurada pela BBC News Brasil, a defesa de Allan dos Santos enviou uma nota. O advogado dele, Renor Oliver Filho, diz que Santos é alvo de perseguição promovida pelo ministro do STF, Alexandre de Moraes, que determinou sua prisão e solicitou sua extradição. "Diante da implacável perseguição do ministro Alexandre de Moraes, o jornalista Allan dos Santos se viu obrigado a enfrentar dificuldades para prover o sustento de sua família, composta por sua esposa e três filhos pequenos", diz um trecho da nota. A defesa também afirma que Allan dos Santos não foi condenado por nenhum crime junto ao STF e que tenta, há mais de um ano, ter acesso aos autos dos processos em que ele figura como investigado. Do outro lado desse tabuleiro jurídico-diplomático, está Sergey Cherkasov. Ele está preso no Brasil desde 2022, quando retornou ao país após ser impedido de entrar na Holanda. Lá, ele tentou entrar no país fazendo-se passar por brasileiro para atuar como estagiário no Tribunal Penal Internacional (TPI), que julga crimes de guerra. A tentativa aconteceu dois meses depois de a Rússia invadir a Ucrânia. Cherkasov cumpre pena de 15 anos de prisão em uma penitenciária federal em Brasília pelo uso de documentos falsos e é investigado por lavagem de dinheiro. Documentos obtidos pela BBC News Brasil mostram que, para a Polícia Federal, há indícios de que Cherkasov atuava como um agente de inteligência russo. Ainda não há indícios de que ele teria espionado instituições, pessoas ou empresas no Brasil. No país, ele admitiu ter usado documentos falsos e se passar por um brasileiro chamado Victor Müller Ferreira. Cherkasov, no entanto, negou atuar como espião. Em uma audiência no STF, ele se recusou a responder quando foi perguntado sobre o tema. Ele ainda responde a um inquérito por lavagem de dinheiro. As suspeitas levantadas pelos norte-americanos, até agora, são de que ele usava a sua personalidade falsa brasileira para se infiltrar em instituições de ensino norte-americanas e europeias para obter informações de interesse russo. Nos Estados Unidos, Cherkasov é acusado de ter atuado como agente de inteligência sem autorização em território norte-americano e ter coletado informações de forma ilegal. Segundo a acusação, ele faria parte de um programa de espionagem russo chamado "Ilegais", considerado a elite dos serviços de inteligência do país. O programa consiste no recrutamento e treinamento de jovens russos e no envio deles para diversos países. Para não despertar a atenção de possíveis inimigos, eles assumem uma personalidade totalmente diferente e vivem como se fossem nativos. Historicamente, a Rússia não admite o uso desse tipo de espião. A Embaixada da Rússia no Brasil tem, reiteradamente, se negado a comentar o caso. O relator do caso no STF, Luiz Edson Fachin, autorizou a entrega de Cherkasov aos russos, mas condicionou o procedimento ao fim de investigações conduzidas pela Polícia Federal sobre suspeitas de lavagem de dinheiro possivelmente associadas às suas atividades de inteligência no Brasil. No Brasil, a decisão final sobre extraditar ou não uma pessoa é atribuição do Poder Executivo. Por isso, a definição sobre Cherkasov possivelmente recairá sobre o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Para o professor de Direito Penal Internacional da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Rui Dissenha, condicionar uma extradição a fatores políticos é uma prática comum em outros países. "Esse tipo de consideração diplomática é bastante comum. Na maior parte dos países, a extradição tem duas fases. Uma jurídica e outra, política. Isso acontece porque as extradições são procedimentos que podem influenciar a política externa de um país e, por isso, em parte dos casos, quem tem a decisão final é o governo e não o Judiciário", afirmou. Para o advogado e também professor de Direito Internacional da UFPR Frederico Glitz, é pouco provável que o governo brasileiro deixaria explícito que uma eventual recusa em extraditar Cherkasov aos Estados Unidos teria como motivo a demora na extradição de Allan dos Santos. "A legislação brasileira prevê esse grau de discricionariedade ao Poder Executivo. Dificilmente o governo daria essa justificativa aos Estados Unidos formalmente porque poderia ensejar algum questionamento judicial", afirmou Glitz. Ele cita, no entanto, que esse tipo de disputa política pode ter consequências nas relações do Brasil com os Estados Unidos. Ele menciona como exemplo a extradição do militante italiano de esquerda Cesare Battisti, condenado por homicídio na Itália e que fugiu para o Brasil. Em 2010, o STF determinou que ele poderia ser extraditado para o país europeu, mas, após a decisão, o governo do então presidente Lula não autorizou sua entrega ao país. Battisti só foi entregue à Itália em 2019, após fugir do Brasil e ser localizado na Bolívia. "A decisão de não entregá-lo à Itália teve repercussões nas relações com o país. Quando o Brasil pediu a extradição de Henrique Pizzolato, envolvido no caso do Mensalão, os italianos dificultaram o processo", afirmou o advogado. O professor Rui Dissenha rebate eventuais críticas de que condicionar a extradição de Cherkasov à de Allan dos Santos poderia ser interpretada como uma "chantagem". "Eu não classificaria como chantagem. Trata-se de um espaço de negociação entre os países. Não necessariamente essa negociação vai acontecer de forma aberta." A indefinição em torno das extradições de Cherkasov e Allan dos Santos acontece em um momento marcado por dúvidas quanto ao posicionamento do governo brasileiro em relação aos Estados Unidos. O principal ponto de discordância vem sendo a guerra na Ucrânia, conflito em que os Estados Unidos dão suporte aos ucranianos contra a Rússia. Nos últimos meses, no entanto, o presidente Lula tem dado declarações que chamaram atenção da comunidade internacional ao responsabilizar tanto o presidente russo, Vladimir Putin, quanto o presidente Volodymyr Zelensky pela guerra. Em visita à China, em abril, Lula chegou a dizer que os Estados Unidos deveriam parar de "incentivar" a guerra na Ucrânia. Na semana passada, durante participação na reunião do G7 (grupo das sete economias mais industrializadas do mundo), no Japão, Lula alterou o tom do discurso, condenou a invasão russa, mas voltou a dizer que, no momento, nem Putin e nem Zelensky estariam interessados em discutir a paz na região. "Sinto que nem Putin nem Zelensky estão falando em paz neste momento", disse. Lula também criticou o discurso do presidente dos EUA, Joe Biden, durante a cúpula do G7. Segundo o brasileiro, o líder dos Estados Unidos defendeu uma postura de confronto com a Rússia e que isso não "ajuda" na resolução da guerra. "O discurso do Biden é de que tem que ir para cima do Putin até ele se render, pagar tudo o que estragou. Esse discurso não ajuda, na minha opinião", disse. Ainda durante sua passagem pelo Japão, Lula chegou a receber um pedido de Zelensky para uma reunião bilateral. Segundo o governo brasileiro, teriam sido abertas três possibilidades de horário para o encontro com o líder ucraniano, mas Zelensky não foi à reunião com o presidente brasileiro. Ao falar sobre o assunto, Lula disse que não faltarão oportunidades para se encontrar com o presidente da Ucrânia, mas afirmou que ficou chateado com a situação. "Eu não fiquei decepcionado, eu fiquei chateado porque eu gostaria de encontrar com ele e discutir o assunto, por isso que eu marquei com ele aqui no hotel. Apenas isso. Veja, o Zelensky é maior de idade, ele sabe o que faz", afirmou Lula. O governo ucraniano, por sua vez, afirmou que o encontro não foi possível devido a um "conflito de agendas".
2023-05-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ce5zk5rr781o
brasil
STF volta a julgar descriminalização do porte de drogas para consumo: o que está em jogo
Após quase oito anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) pode voltar a julgar nos próximos dias uma ação que discute a descriminalização do porte de drogas para consumo. O julgamento não analisa a questão da venda das drogas, que continuará ilegal qualquer que seja o resultado. Ele estava na pauta de julgamentos de quarta-feira (24/5), mas acabou não sendo avaliado. Defensores da liberação do porte de pequenas quantidades para uso pessoal dizem que a criminalização fere princípios constitucionais como o direito à privacidade de cada indivíduo. Também argumentam que a criminalização não mostrou resultados na redução do consumo e do tráfico, sendo mais adequado adotar políticas públicas de prevenção, como no caso do uso de cigarros. Por outro lado, críticos da descriminalização acreditam que a medida teria efeito de aumentar ainda mais consumo e tráfico e argumentam que o direito individual não deve ser colocado acima da saúde pública. Fim do Matérias recomendadas Há questionamentos também sobre se o STF deveria decidir sobre a questão, ou se apenas o Congresso poderia liberar o porte para consumo, aprovando uma mudança na lei atual. Quando o julgamento foi iniciado, em 2015, três ministros decidiram a favor da descriminalização, mas apenas Gilmar Mendes votou pela liberação para qualquer tipo de droga, enquanto Luís Roberto Barroso e Edson Fachin votaram para restringir a medida à maconha, por considerarem uma droga mais leve. O caso foi interrompido por um pedido de vista do então ministro Teori Zavascki, que morreu em 2017. Embora a ação esteja liberada para voltar à pauta desde o final de 2018, a forte oposição do ex-presidente Jair Bolsonaro acabou contribuindo para que o STF adiasse a retomada do julgamento, segundo juristas que acompanham o tema. Outro ponto em discussão é se a Corte vai fixar uma quantidade para diferenciar objetivamente o que é o porte para consumo ou para tráfico, parâmetros que podem ser adotados pelo STF mesmo que a criminalização seja mantida. Defensores da medida, como a associação que representa os peritos da Polícia Federal e integrantes da Procuradoria-Geral da República, dizem que a definição de parâmetros pode evitar que consumidores sejam enquadrados como traficantes indevidamente, reduzindo a grande quantidade de pessoas presas no país. Já os que se opõem à descriminalização questionam o impacto do julgamento na redução da população carcerária, tendo em vista que a lei atual já não prevê pena de prisão para usuário. Em quatro pontos, entenda o que pode ser decidido e possíveis impactos do julgamento: Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O STF está analisando um Recurso Extraordinário com repercussão geral (cuja decisão valerá para todos os casos semelhantes) que questiona se o artigo 28 da Lei de Drogas é inconstitucional. Esse artigo prevê que é crime adquirir, guardar ou transportar droga para consumo pessoal, assim como cultivar plantas com essa finalidade. Não há previsão de prisão para esse crime. As penas previstas nesse caso são “advertência sobre os efeitos das drogas”, “prestação de serviços à comunidade” e/ou “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”. O recurso foi movido pela Defensoria Pública de São Paulo em favor de um réu pego com 3 gramas de maconha na prisão. Pela posse da droga, ele foi condenado a prestar serviços comunitários. A Defensoria argumenta que a lei fere o direito à liberdade, à privacidade, e à autolesão (direito do indivíduo de tomar atitudes que prejudiquem apenas a si mesmo), garantidos na Constituição Federal. “Por ser praticamente inerente à natureza humana, não nos parece o mais sensato buscar a solução ou o gerenciamento de danos do consumo de drogas através do direito penal, por meio de proibição e repressão. Experiências proibitivas trágicas já aconteceram no passado, como o caso da Lei Seca norte-americana e mesmo a atual política de guerra às drogas, que criou mais mazelas e desigualdades do que efetivamente protegeu o mundo de substâncias entorpecentes”, argumentou o defensor Rafael Muneratt, ao sustentar no início do julgamento. Já o então chefe do Ministério Público em São Paulo, o procurador-geral Márcio Fernando Elias Rosa, se manifestou contra a descriminalização. "O tráfico no Brasil apresenta índices crescentes. O Estado não se mostra capaz nem sequer do controle efetivo da circulação das chamadas drogas lícitas. Não há estruturada rede de atenção à saúde ou programa efetivo de reinserção social", sustentou. Para a Federação Amor-Exigente (AE), que atua como apoio e orientação aos familiares de dependentes químicos, o direito individual do usuário não justifica a descriminalização. A organização foi aceita pelo STF para atuar no julgamento como amicus curiae (colaborador da Justiça que detém algum interesse social no caso mas não está vinculado diretamente ao resultado). "A saúde pública vem em primeiro lugar. A pessoa que está usando o crack, chega em determinado momento que ela não tem discernimento para decidir o que é bom e ruim. A pessoa que usa o crack pode matar por causa de R$ 10. É nesse sentido que esse direito (individual do usuário) não pode se contrapor à saúde pública e à tutela de toda a coletividade”, disse à BBC News Brasil o advogado Cid Vieira, que representa a Federação Amor Exigente. Para o advogado Pierpaolo Bottini, que representa a Viva Rio, amicus curiae favorável à descriminalização, a eventual descriminalização do porte não vai aumentar o consumo. Ele ressalta que o julgamento não poderá legalizar o uso de drogas, permitindo a comercialização. “Não estamos falando em autorizar o uso, mas simplesmente não criminalizar. Essa ação é até modesta nesse sentido, muito mais modesta do que tem acontecido nos outros países, que estão autorizando o uso de certas drogas”, argumentou à reportagem, citando o aumento da legalização em estados americanos. Para juristas que acompanham o tema, a Corte demorou a retomar o julgamento para evitar mais tensão com o governo anterior, do então presidente Jair Bolsonaro, que era fortemente contra qualquer flexibilização nesse tema. Embora o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não tenha uma postura abertamente favorável à descriminalização, integrantes do seu governo, como o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, defendem a medida com o objetivo de reduzir o grande número de pessoas presas no país. O ministro Alexandre de Moraes, que assumiu a vaga de Zavascki, liberou o processo para ser julgado no final de 2018. O então presidente do STF, Dias Toffoli, chegou a marcar o julgamento em 2019, mas retirou a ação de pauta dois dias após se reunir com o então presidente Jair Bolsonaro sobre um pacto entre os três Poderes a favor das reformas econômicas. Com a demora em julgar, houve mudança na composição da Corte, que se tornou mais conservadora com a entrada de dois ministros indicados por Bolsonaro: Nunes Marques e André Mendonça. A expectativa é que Lula indicará seu advogado pessoal Cristiano Zanin, mas, seja qual for sua escolha, o indicado precisa de aprovação do Senado para tomar posse. Estudos indicam que a atual Lei de Drogas, sancionada em 2006 por Lula, gerou uma "explosão" no número de pessoas presas por crimes relacionados ao tráfico de drogas. Em 2005, antes da nova legislação, havia 296.919 pessoas encarceradas no país, sendo 14% delas por crimes relacionados ao tráfico, segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen). Já em 2019, dado mais recente, eram 773.151 detentos (alta de 160%). Delitos relacionados ao tráfico representavam 27,4% do total de presos — entre as mulheres, esse índice chegava a 54,9%. Essa lei acabou com a pena de prisão para usuários e aumentou a punição para traficantes. A expectativa era que isso reduziria o número de prisões, mas o efeito foi o oposto, afirma o advogado Pierpaolo Bottini, que era secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça naquela época. “A impressão que se tinha é que isso ia desencarcerar, porque as pessoas que estavam presas por uso iam sair (da prisão). Mas acabou aumentando o encarceramento porque justamente as autoridades policiais acabaram jogando tudo para o tráfico, então acabou tendo efeito absolutamente inverso”, avalia. Por isso, Bottini defende que o Supremo fixe parâmetros para definir melhor quem pode ser considerado usuário, evitando que consumidores sejam indevidamente enquadrados como traficantes. A associação que representa os peritos da Polícia Federal (APCF) também apoia a medida. A instituição não se posiciona a favor ou contra a descriminalização do porte para consumo e defende que, independentemente do que for decidido nesse ponto, o Supremo fixe parâmetros para diferenciar o usuário do traficante. Segundo Davi Ory, advogado que representa a associação, a APCF avalia que “o principal fator para o aumento do encarceramento foi a adoção de critérios subjetivos demasiadamente amplos e que transferiram à estrutura do Poder Judiciário o ônus de definição de quem seria usuário e traficante tendo por base ‘as circunstâncias sociais e pessoais’, bem como o ‘local e condições em que se desenvolveu a ação’”. Isso, ressalta, estaria gerando prisões indevidas, principalmente, de pessoas negras e pobres. “A letra da lei permite que a interpretação dada ao caso seja facilmente enviesada e contribua para aprofundar as mazelas que já existem em nossa sociedade, especialmente a discriminação baseada na raça e nas condições sócio-econômicas”, disse ainda. A APCF defende, porém, que, mesmo em casos que estejam dentro de eventuais limites estabelecidos para consumo, seja possível enquadrar o suspeito como traficante “na hipótese de se constatar elementos de prova que indiquem finalidade diversa (ao consumo)”. A avaliação é a mesma da subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen. “Eu acho que o Supremo deveria fixar (critérios objetivos). Agora, eu reconheço que é complexo porque tem a variedade das drogas”, ressalta. “E não pode ser só assim: ‘x quantidade é uso’. Não, o Supremo precisa estabelecer que x quantidade (é usuário) se não estiver presente outros elementos que denotem tráfico, como por exemplo, anotações de contabilidade (da venda de drogas), a balança (usada para pesar a droga vendida), o dinheiro, a arma, a munição”, defende. Esse foi o espírito do voto de Barroso, único que até o momento defendeu a fixação de parâmetros de quantidade, apenas para maconha. Na sua visão, pode ser considerado usuário quem estiver com até 25 gramas de maconha ou que cultivar até seis plantas cannabis fêmeas para consumo próprio. O ministro ressaltou, porém, que essas quantidades são uma referência básica, podendo o juiz considerar o indivíduo como usuário, mesmo que esteja com quantidade maior, ou enquadrá-lo como traficante, mesmo que tenha quantidade menor, desde que outros elementos corroborem o crime de tráfico. Já o advogado Cid Vieira, da Federação Amor Exigente, questiona o impacto do julgamento na redução dos presos. “Eu não tenho notícia que dependente químico esteja preso. O artigo 28 da atual legislação de drogas não prevê a prisão daqueles que sejam surpreendidos com posse de droga para consumo pessoal. É uma colocação que não existe. Não é sob esse aspecto que as prisões vão estar mais lotadas ou não”, afirma. A decisão da presidente do STF, Rosa Weber, de marcar o julgamento para a quarta-feira gerou forte reação de parlamentares conservadores, em especial no campo bolsonarista. Líder da oposição na Câmara, o deputado Carlos Jordy (PL-RJ) defendeu que apenas o Congresso poderia aprovar a descriminalização, aprovando uma mudança na lei atual. “STF julga a constitucionalidade do crime de porte de drogas para uso pessoal. Querem descriminalizar o usuário. E eles seguem usurpando o papel do Legislativo, querem impor suas convicções ideológicas e pessoais ao povo brasileiro”, tuitou. Já parlamentares do campo progressista, como Chico Alencar (PSOL-RJ), exaltaram a possibilidade de o STF liberar o porte para consumo. “A compreensão de que a guerra às drogas só gera morte e desgraças e não diminui o consumo é quase que um lugar comum hoje no mundo. Eu entendo que é muito bom o Supremo apreciar essa matéria”, defendeu. Para Rodrigo Mesquita, vice-presidente da Comissão Especial de Direito da Cannabis da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), não há qualquer controvérsia no STF analisar o tema. Ele argumenta que é justamente função do STF analisar se uma lei aprovada pelo Congresso fere algum princípio da Constituição (a lei mais importante do país) e, por isso, deve ser anulada. “Não há nenhuma inovação aí, o Supremo faz isso todos os dias”, argumenta. Diante dos questionamentos sobre a legitimidade do STF para decidir sobre descriminalização, a subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen avalia que uma decisão que geraria menos reação do Parlamento seria a Corte manter a constitucionalidade do artigo 28, mas fixar os parâmetros de quantidade máxima de droga para consumo. Nesse caso, a Corte faria uma “interpretação conforme a Constituição” desse trecho da lei. Ou seja, diria que o artigo 28 é Constitucional, desde que aplicado seguindo os critérios de quantidade definidos no julgamento. No entanto, mesmo esse caminho é questionado por parlamentares. Embora seja favorável à legalização da maconha, o deputado Kim Kataguiri (União Brasil-SP) defende que apenas o Congresso poderia alterar a Lei de Drogas. “Sou absolutamente contrário. Isso só mostra que o STF está legislando (caso fixe parâmetros para uso). Ou seja, ele vai determinar até a quantidade, o que configura o que não configura tráfico”, criticou. “Isso envolve você escutar a polícia, Ministério Público, Judiciário, fazer audiência. Isso é pura construção legislativa.”
2023-05-24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/crge07602j2o
brasil
A rodovia que mata mais de 2 mil animais silvestres por ano
As carcaças de oito animais silvestres estendidas em uma lona com a frase: "E agora? Vocês nos veem?" ficaram por horas à frente da sede do DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, no dia 15 de maio. Os corpos dos animais foram levados como uma forma de protesto pela segurança das rodovias estaduais, em especial do trecho da BR-262, conhecida como "a estrada da morte" para a fauna do Pantanal e do Cerrado, que corta esses dois biomas e é administrada pelo DNIT. "Ela passou a ser chamada assim porque a visão dos animais mortos na pista infelizmente é algo comum nessa rodovia, que é muito utilizada. Todo mundo que vai para o Pantanal, saindo de Campo Grande ou de outros locais do Estado, precisa passar por ela", diz Gustavo Figueiroa, biólogo da SOS Pantanal e um dos ativistas responsáveis pelo protesto. A BR-262 é uma das maiores rodovias do Brasil - sua extensão tem mais de dois mil quilômetros e liga Espírito Santo, Minas Gerais, São Paulo e Mato Grosso do Sul. O trecho que vai de Campo Grande, a capital, até a cidade de Corumbá tem uma extensão de 420 quilômetros e é utilizado para o transporte de diversos tipos de cargas, como produtos agropecuários, minérios e combustíveis. Fim do Matérias recomendadas Essa parte da BR-262 é considerada por pesquisadores e ativistas de proteção animal como prioritária para receber medidas de mitigação para evitar mortes de animais e pessoas. "Não temos dados que provem que é a rodovia mais mortal do Brasil, já que os levantamentos que ficam públicos são geralmente coletados por instituições e ONGs. Mas sabemos que muitas vidas - animais e humanas - são perdidas ali", diz Figueiroa. No Mato Grosso do Sul, segundo dados da Polícia Rodoviária Federal, entre 2018 e 2023, ocorreram 372 colisões com animais envolvendo vítimas humanas fatais ou feridas. Em 3 anos de monitoramento, feito entre 2017 e 2020, pesquisadores do ICAS (Instituto de Conservação de Animais Silvestres) registraram 6.650 animais mortos, uma média de 180 por mês, na BR-262 entre Campo Grande e a ponte do Rio Paraguai - uma extensão de 339 km na mesma direção da cidade de Corumbá, mas parando a cerca de uma hora de carro antes. Destes, 316 eram de espécies ameaçadas de extinção (tamanduá-bandeira, anta, cervo-do-Pantanal, queixada, lobo-guará, cachorro-vinagre, gato-palheiro, gato-mourisco). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os pesquisadores apontam, no entanto, que o número deve ser muito maior do que esse. "Muitos dos animais que morrem em colisões somem, já que os próprios veículos podem jogar as carcaças de volta para a mata com o impacto da batida, alguns são levados pela chuva, comidos por outros bichos ou têm seus corpos atropelados várias vezes, o que nos impede de identificar a espécie", explica Arnaud Desbiez, fundador do Icas, zoólogo e Doutor em Manejo da Biodiversidade pelo Instituto de Conservação e Ecologia de Durrell, da Universidade de Kent, no Reino Unido. Dados mais recentes, levantados pelo Instituto Homem Pantaneiro entre 2016 e 2023, apontam que 19 onças-pintadas morreram vítimas de atropelamento na BR-262 no trecho de cerca de 200 km entre Miranda e Corumbá. Somente neste ano, de acordo com a Polícia Militar Ambiental, foram três animais da espécie mortos no mesmo trecho. De modo geral, os atropelamentos não são intencionais. "A partir do momento que o animal está na pista, por uma questão de segurança, não há como evitar a colisão. Frear ou desviar do animal seria muito mais perigoso do que colidir, em especial para veículos pesados", aponta o estudo do ICAS. O documento mostra que mais de 80% dos acidentes com animais na rodovia ocorrem no período noturno e que 40% dos animais registrados tinham tamanho suficiente para causar danos materiais aos veículos. "Ano após ano, a BR-262 continua oferecendo risco para animais e pessoas - não houve mudanças significativas", diz Arnaud Desbiez. Desbiez aponta que a estrada contribui diretamente com a redução da quantidade de animais que vivem no Cerrado e principalmente no Pantanal, bioma presente na maior parte do trecho. "É como se houvesse um sumidouro e os animais fossem a água. Eles vão sendo puxados até que a fonte seca." "Nossos dados mostram que os animais mais prejudicados são os que vivem perto da pista. É o caso do tamanduá-bandeira: as mortes causam uma redução da taxa de crescimento populacional de mais de 50%." "Em apenas um dia dirigindo na BR-262, entre Campo Grande e Miranda, vi cinco tamanduás-bandeiras mortos. É algo muito impactante", complementa Erica Naomi Saito, bióloga e presidente da REET Brasil (Rede Brasileira de Especialistas em Ecologia de Transportes). Desbiez aponta que a diversidade de espécies mortas em colisões é surpreendente. "Em 20 anos trabalhando no Pantanal, há espécies que eu nunca consegui ver com vida ou que vi uma única vez, como o cachorro-vinagre. E, aí, encontrá-los mortos nas estradas é um choque muito triste." A BBC News Brasil pediu dados mais recentes de atropelamentos fatais ao DNIT, assim como se há um plano para reduzir os óbitos na BR-262, mas não houve resposta aos questionamentos. Em vez disso, a autarquia enviou a seguinte resposta: "O DNIT informa que para os casos de atropelamento de fauna nas rodovias federais, o Departamento investe nos Programas Ambientais de Atropelamento de Fauna, no qual a sensibilização, o monitoramento e as medidas mitigatórias são abrangidas." "No caso da BR-262/MS foram instalados redutores de velocidade, placas de sinalização, cercas condutoras e passagens superiores de fauna. Nesse trecho, a rodovia passa pela região do Pantanal Sul-mato-grossense, onde o monitoramento dos casos de atropelamento da fauna demonstrou a necessidade de intervenção do poder público, visando a diminuição do conflito entre fauna e os veículos que trafegam pela rodovia. Está em andamento também por iniciativa da SR/MS, a contratação de monitoramento dos atropelamentos no segmento entre Campo Grande-MS e Anastácio-MS." Os ativistas presentes no protesto afirmaram à BBC News Brasil que o DNIT possui um plano de mitigação em mãos, mas que estavam demorando a implementá-lo. Na ocasião, Euro Nunes Varanis Júnior, superintendente estadual do DNIT, justificou que o plano citado não foi executado por falta de autorização do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). "Ano passado apresentamos plano de mitigação de acidentes de Aquidauana até Corumbá. Ele foi feito pela empresa Via Fauna. Agora, estamos esperando a aprovação do Ibama para saber se aquelas medidas propostas podem ser implementadas ou não", disse. Em resposta à BBC, o Ibama confirmou que recebeu o plano de mitigação do DNIT. "O Ibama analisou o conteúdo apresentado e solicitou complementação de informações, que já foi apresentada. No momento, a equipe que conduz o licenciamento ambiental da rodovia analisa o plano de forma prioritária com vistas a autorizar sua execução, o que está previsto para ocorrer ainda em maio." De acordo com o Ibama, o plano de mitigação tem como principais focos a definição dos pontos críticos de atropelamento e de medidas como a implantação de passagens de fauna e cercas direcionadoras, controle e redução de velocidade, sinalização das vias e campanhas educativas. "O cercamento vai impedir que o animal acesse a rodovia. Só que pode criar um problema de conectividade. Como é então que esse animal vai atravessar? Aí é que vem a importância da passagem da fauna [feita por cima ou por baixo das rodovias]. Essa combinação é muito importante e efetiva, principalmente para animais de médio a grande porte, que são aqueles que capazes de se envolver em acidentes bastante graves com vítimas humanas", explica Erica Naomi Saito, especialista em ecologia de transportes, complementando que as medidas devem considerar animais de diferentes tamanhos e espécies. A bióloga explica que, embora o problema chame atenção na BR-262 e no Estado do Mato Grosso do Sul pelos números, o problema é muito comum em todas as rodovias brasileiras. "Isso porque, infelizmente, no Brasil, essa preocupação em proteger a fauna e, por consequência, proteger os usuários da rodovia foi historicamente deixada de lado. Foi só na última década que começamos uma discussão mais intensa, e sabemos que o processo de implantação dessas medidas de mitigação é muito lenta."
2023-05-23
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxxy6jgpj6go
brasil
Eduardo Appio: por que novo juiz da Lava Jato foi afastado pela Justiça
O juiz que havia assumido neste ano os processos da operação Lava Jato, Eduardo Appio, foi afastado da 13ª Vara Federal de Curitiba na segunda-feira (22/5). A decisão foi da Corte Especial Administrativa do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4). Ele terá 15 dias para apresentar sua defesa. Appio está sendo investigado por supostamente intimidar o filho de um desembargador com um telefonema (entenda o caso abaixo). O juiz assumiu a 13ª Vara Federal de Curitiba em fevereiro com o objetivo de resgatar a credibilidade da operação Lava Jato — a investigação sobre a corrupção na Petrobras e em diversos partidos políticos. Fim do Matérias recomendadas Inicialmente apoiador dos métodos usados por procuradores e juízes na Lava Jato, Appio tornou-se crítico da operação nos últimos anos. No começo deste ano, Appio anulou decisões de Moro contra o ex-governador do Rio de Janeiro Sergio Cabral, alegando falta de imparcialidade do juiz. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O procedimento que investiga Appio começou depois que o desembargador federal Marcelo Malucelli comunicou que seu filho, João Eduardo Barreto Malucelli, havia recebido um telefonema com ameaças. João Eduardo é sócio do escritório de advocacia de Sergio Moro. Malucelli denunciou Appio à Corregedoria Regional. No dia anterior à ligação, o desembargador Marcelo Malucelli havia determinado "correições parciais" contra Eduardo Appio em um outro procedimento da Justiça contra o juiz, sem relação com a operação Lava Jato. O relatório da investigação contém uma transcrição completa do telefonema. Nele, João Eduardo é contatado por uma pessoa que se identifica como Fernando Gonçalves Pinheiro, servidor do TRF-4. No entanto, no julgamento que afastou Appio, o relatório afirma que há grandes semelhanças na voz de Appio e do homem no telefonema (segundo a perícia, uma semelhança de 3 em uma escala que vai até 4, em que há total semelhança). O servidor fala ao telefone que está contatando João Eduardo para tratar de créditos de Imposto de Renda referentes ao seu pai. Ao longo da conversa, João Eduardo mostra-se desconfiado da ligação. Ele questiona por que o número da chamada não aparece em seu celular, e o servidor responde que é porque a Justiça brasileira usa Skype (em que o número de quem telefonou não aparece) para economizar custos. No entanto, essa prática não é adotada pela Justiça brasileira. João Eduardo também questiona algumas incoerências na ligação, como o fato de o servidor estar fazendo perguntas a respeito de seu pai. Ao final da ligação, Malucelli alega ter recebido uma ameaça, no seguinte diálogo: João Eduardo Malucelli: Fernando Pinheiro Gonçalves. Tem certeza que esse é o nome do senhor? Voz no telefone: Tenho certeza absoluta. Malucelli: Então tá bom. Voz no telefone: E o senhor tem certeza que não tem aprontado nada? Malucelli: Ah agora tá, tá certinho. Aprontado? Na segunda-feira, Appio foi afastado e precisará encaminhar todos seus aparelhos usados no trabalho — notebook, computador e celular — para perícia. Ele terá 15 dias para apresentar sua defesa. Appio está sendo investigado por usar o privilégio de seu cargo para consultar dados de acesso restrito, por fazer telefonema sem identificador de chamada, por ter supostamente se passado por servidor falso e pela suposta ligação ao filho do desembargador. Procurado pela BBC News Brasil, Appio disse que ainda não tinha tido acesso aos autos e que foi orientado por sua defesa a não se manifestar. Desde que assumiu seu cargo, Appio vem sendo alvo de diferentes polêmicas. Seu nome apareceu na lista de pessoas que doaram dinheiro para Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na última campanha eleitoral. A doação foi no valor de R$ 13, mas Appio nega que tenha feito essa doação. Também foi revelado que Appio usava no sistema da Justiça uma senha LUL22, em alusão ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em entrevista à Globonews, Appio disse que a senha era um protesto silencioso contra a prisão do ex-presidente, mas que isso não afetava sua imparcialidade como juiz. Quando assumiu a Vara responsável pela Lava Jato, Appio absolveu o empresário Raul Schmidt Felippe Júnior das acusações de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Ele decidiu que a quebra de sigilo bancário feita pelo Ministério Público ocorreu sem autorização judicial. Appio também determinou a soltura do doleiro Alberto Youssef, contra uma decisão do desembargador Marcelo Malucelli. Em suas decisões, Appio disse que havia indícios de "cumplicidade" entre o ex-procurador Deltan Dallagnol e o ex-juiz Sergio Moro nas decisões da Lava Jato. Na segunda-feira, Dallagnol e Moro se manifestaram sobre o afastamento de Appio. "TRF4 acaba de afastar o juiz militante 'LUL22' da Lava Jato. O Tribunal descobriu que a ligação com ameaças feita ao filho do desembargador Marcelo Malucelli foi feita por Appio - conduta absolutamente inacreditável por parte de um juiz federal, capaz de gerar demissão", escreveu Dallagnol no Twitter. Sergio Moro também publicou uma mensagem no Twitter. "Nunca tinha ouvido falar, na história judiciária brasileira, de um caso no qual o juiz de um processo teria ligado ao filho de um desembargador, que revisava suas sentenças, fingindo ser uma terceira pessoa para colher dados pessoais e fazer ameaças veladas. Realmente…", disse Moro, que hoje é senador pelo Paraná.
2023-05-23
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cl4zk5edrrdo
brasil
Espanha inventou racismo atual e tenta se provar branca, diz presidente de conselho do governo espanhol
A Espanha tem uma longa tradição de racismo e a legislação em vigor atualmente não dá conta de fiscalizar e punir agressores de forma compatível, afirmou à BBC News Brasil o presidente do Conselho para Eliminação da Discriminação Racial ou Étnica (Cedre) integrado ao Ministério da Igualdade espanhol, Antumi Toasijé, diante dos últimos ataques sofridos pelo jogador brasileiro Vinícius Júnior em uma partida no domingo (21/5). “O racismo tem uma longa tradição na Espanha”, diz o historiador, que além de fazer parte do conselho independente do governo espanhol, é professor da New York University em Madri. “Mas estamos vivendo um momento de retrocesso.” Segundo Toasijé, de origem hispano-colombiana, as normas em vigor do país não são suficientemente fortes para dar conta do crescimento do racismo e da extrema direita — e uma lei específica contra esse tipo de discriminação deve ser aprovada urgentemente. Além disso, de acordo com o historiador, a Espanha basicamente “inventou o racismo como conhecemos hoje” durante as disputas entre cristãos e mouros da Península Ibérica na Idade Média e perpetuou por muitos anos uma política racista contra imigrantes do norte da África. Mais recentemente, ele diz, a Espanha desenvolveu uma necessidade cada vez mais forte de “provar sua branquitude”, ao se sentir excluída do restante da Europa. Para Toasijé, esse passado está refletido diretamente na discriminação contra afrodescendentes imposta pela sociedade espanhola até hoje. Fim do Matérias recomendadas Segundo dados da Federação SOS Racismo, formada por organizações autônomas que lutam contra o racismo na Espanha, as denúncias de discriminação racial cresceram mais de 30% entre 2013 e 2021 no país. Na prática, os casos podem ser ainda mais volumosos: segundo uma pesquisa realizada pelo Cedre, 81,8% das vítimas de racismo na Espanha não prestam queixa às autoridades. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast “À medida que a extrema direita ganha espaço, criam-se todos os elementos para o crescimento exponencial do racismo em nossa sociedade — e a qualquer momento pode haver uma explosão.” “Isso é muito problemático e o governo espanhol tem que fazer mais, especialmente no marco legislativo, porque as leis são deficitárias”, diz. Ainda segundo o historiador, os atos de racismo que têm se repetido no futebol espanhol estão repercutindo em outros âmbitos da sociedade, especialmente entre os mais jovens. “Os insultos proferidos contra o Vinícius têm impacto na juventude e se repetem nas escolas, por exemplo, contra crianças negras que jogam futebol”, diz o especialista. “O racismo contra uma pessoa pública se multiplica muito rapidamente.” No domingo (21/5), a disputa entre Valencia e Real Madrid pelo Campeonato Espanhol foi interrompida no segundo tempo após parte da torcida presente no estádio Mestalla chamar o brasileiro de "macaco". Nesta segunda-feira (22/5), o Real Madrid apresentou uma denúncia na Procuradoria-Geral da Espanha por delitos de ódio e discriminação contra seu jogador. “A Espanha é provavelmente o país que inventou o racismo como conhecemos hoje”, diz Antumi Toasijé. Segundo o professor da New York University em Madri, a Península Ibérica foi palco de uma intensa luta entre muçulmanos e cristãos na Idade Média, durante a qual “se perpetuou uma narrativa racista que não existia até aquele momento no resto da Europa”. “Essa narrativa basicamente difundia a ideia da superioridade das pessoas brancas e cristãs”, diz o historiador. “Ela não só foi apoiada pela Monarquia e Igreja Católica, como resultou em uma série de leis que tinham como objetivo final o embranquecimento da Península.” Entre essas políticas, estavam as práticas conhecidas como "limpeza do sangue", segundo as quais pessoas que possuíam antepassados não-brancos eram excluídas da sociedade. Alguns desses costumes foram mantidos até o século 19 e, especialmente no período de colonização nas Américas, estabeleceu-se um sistema de castas que classificava e privilegiava os cidadãos de acordo com a cor de sua pele. Mas na história mais recente, segundo Toasijé, a população espanhola passou a se sentir excluída do restante da Europa por seu passado étnico e desenvolveu uma necessidade cada vez mais forte de “provar sua branquitude”. “Com a entrada na União Europeia na década de 1980, a Espanha reafirma sua posição europeia e começa a estabelecer políticas muito agressivas em sua fronteira com a África e contra imigrantes africanos”, diz o historiador. “E até hoje imigrantes e refugiados afrodescendentes são tratados de forma diferente”. “Historicamente, a Espanha conserva a ideia de que espanhol, branco e cristão são sinônimos.” Para Antumi Toasijé, os esforços de atendimento a vítimas de racismo empreendidos pelo Conselho para Eliminação da Discriminação Racial ou Étnica, que coordena, “são dificultadas pela inexistência de leis precisas e concretas”. Segundo ele, não só as legislações existentes hoje na Espanha são dispersas e pouco efetivas, como a normativa que diz respeito a casos de discriminação no esporte é fraca e negligenciada pelas autoridades. “Há uma lei contra o racismo no esporte, mas ela não oferece mecanismos imediatos de ação e se tornou totalmente obsoleta”, afirma o presidente do Cedre. “Em um caso como o do Vinícius Júnior, está estabelecido que se deve paralisar por completo a competição, mas isso não está acontecendo. As punições aos indivíduos que cometem esse tipo de agressão também são muito escassas”. Ainda segundo Toasijé, muitos árbitros não colaboram para os cumprimentos das normas por não entenderem o impacto e a periculosidade das ações de alguns torcedores. A lei 19/2007, de 11 de julho de 2007, estabelece, entre outras coisas, que os juízes podem decidir a suspensão provisória das partidas para o “restabelecimento da legalidade”. A normativa também prevê multas de 150 a 650 mil euros, proibição de frequentar estádios por até cinco anos para os infratores e suspensão do direito de sediar eventos desportivos por um período máximo de dois anos para os organizadores. “Mas não se aplica praticamente nada dessa lei. Se ela fosse cumprida, já seria um avanço”, diz o especialista Já a legislação geral contra casos de racismo trata a maior parte dos delitos como crime de ódio, especialmente em casos de assédio ou ameaças contra uma coletividade, ou como crime de injúria ou calúnia. Mas segundo o presidente do Cedre, as denúncias feitas pelos clubes à Procuradoria-Geral muitas vezes não são levadas adiante. Em comparação, o Brasil sancionou em janeiro deste ano uma lei que tipifica como crime de racismo a injúria racial — enquanto o racismo é entendido como um crime contra a coletividade, a injúria é direcionada ao indivíduo. Com a mudança na lei, as condutas tipificadas como injúria passam a ser inafiançáveis e imprescritíveis. A pena para quem cometer o crime, até então de 1 a 3 anos de reclusão, pode variar de 2 a 5 anos de prisão. Já no âmbito esportivo, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) definiu que clubes poderão perder pontos por atos cometidos por seus torcedores, entre eles ações racistas. Para Antumi Toasijé, outros países europeus como Alemanha, França e Reino Unido também têm legislações mais abrangentes e preparadas para lidar com casos de racismo no esporte e em outras circunstâncias do que a Espanha. “Cada país tem seus desafios e não há país perfeito na luta contra o racismo, mas isso não significa que a Espanha tenha que fazer muito mais esforços”, diz. Em nota divulgada à imprensa, a Comissão Estatal contra a Violência, o Racismo, a Xenofobia e a Intolerância no Esporte, parte do Ministério da Cultura e Esporte da Espanha, repudiou os atos de racismo contra Vini Jr. e afirmou que analisa as imagens disponíveis para identificar os autores das injúrias “de forma a propor as respectivas sanções”. “A Comissão considera necessária a colaboração dos clubes na identificação dos autores destes comportamentos execráveis ​​e, também, quer transmitir-lhes a necessidade de trabalhar na prevenção para combater a violência com suas torcidas face à indesejável normalização de comportamentos e insultos que estão muito distantes da boa ordem desportiva e prejudicam gravemente a imagem do nosso futebol e do esporte espanhol.” O caso envolvendo o jogador brasileiro virou assunto principal na Espanha e em outros países pelo mundo. Após a partida, Vini Jr. afirmou pelas redes sociais que essa “não foi a primeira vez, nem a segunda e nem a terceira” que passou por situação semelhante. Vini Jr. também acusou a primeira divisão da liga espanhola de futebol profissional de omissão. “O racismo é o normal na La Liga. A competição acha normal, a Federação também e os adversários incentivam. Lamento muito. O campeonato que já foi de Ronaldinho, Ronaldo, Cristiano e Messi hoje é dos racistas”, escreveu no Twitter. “Lamento pelos espanhóis que não concordam, mas hoje, no Brasil, a Espanha é conhecida como um país de racistas. E, infelizmente, por tudo o que acontece a cada semana, não tenho como defender. Eu concordo.” O presidente da La Liga, Javier Tebas, rebateu as críticas e afirmou que "nem a Espanha, nem a La Liga são racistas". Já o presidente da Federação Espanhola de Futebol, Luís Rubiales, defendeu Vini Jr. e afirmou que há, sim, um "problema com racismo em nosso país". O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) também se pronunciou. "Não é possível que quase no meio do século 21 a gente tenha o preconceito racial ganhando força em vários estádios de futebol na Europa", disse. "É importante que a Fifa e a liga espanhola tomem sérias providências, porque nós não podemos permitir que o fascismo e o racismo tomem conta dos estádios de futebol", acrescentou. No domingo, o Ministério da Igualdade Racial afirmou que vai notificar autoridades espanholas e a La Liga após os ataques racistas. Segundo o portal de notícias G1, o Ministério de Relações Exteriores também decidiu convocar a embaixadora da Espanha no Brasil, Mar Fernández-Palacios, para pedir explicações. Em nota conjunta, os ministérios das Relações Exteriores, Igualdade Racial, Justiça e Segurança Pública, Esporte, e Direitos Humanos e Cidadania instaram ainda as autoridades governamentais e esportivas da Espanha a tomarem “as providências necessárias, a fim de punir os perpetradores e evitar a recorrência desses atos”. O governo brasileiro também dirigiu seu apelo à Fifa (Federação Internacional de Futebol), à Federação Espanhola e à La Liga.
2023-05-23
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c9rx5vywxpwo
brasil
Por que roubos de carro despencaram em SP na última década
O número de roubos e furtos de veículos caiu pela metade no Estado de São Paulo desde 2014, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo. Naquele ano, foram subtraídos 221 mil veículos no Estado, incluindo carros de passeio, motocicletas, caminhões e outros veículos automotores — patamar mais elevado computado desde pelo menos 2003. O número caiu para pouco mais de 112 mil em 2021. Considerando a taxa de subtração (soma de roubos e furtos) por 100 mil habitantes, o movimento é similar: foi de 502 em 2014 para 241 em 2021. Para entender essa mudança, pesquisadores foram a campo para observar e conversar com participantes de cada um dos elos na trajetória dos veículos roubados: quem rouba, quem recepta, os diversos tipos de desmanche — legal, híbrido ou clandestino —, lojas de autopeças, oficinas e regiões de fronteira. Fim do Matérias recomendadas Segundo os pesquisadores, a implementação da Lei do Desmanche (Lei Estadual 15.276/2014), que regulou o mercado ilegal de autopeças, teve efeito decisivo na redução desses tipos de crimes. Mas transformações nas dinâmicas do Primeiro Comando da Capital (PCC), grupo criminoso hegemônico no Estado de São Paulo, e mudanças na indústria automotiva, com a entrada de peças chinesas baratas no mercado nacional, também contribuíram para a tendência observada. Para Gabriel Feltran, diretor de pesquisa do Centro Nacional da Pesquisa Científica (CNRS, na sigla em francês) e professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po), a experiência de "legalização de um mercado ilegal" com a Lei do Desmanche e seu impacto sobre a redução da violência podem servir de exemplo para outros mercados ilegais, como o de drogas. Em primeiro lugar, é preciso diferenciar os dois tipos de crime: furto e roubo. O furto ocorre quando o criminoso se apossa de um veículo sem contato com o proprietário. No roubo, há contato com a vítima e pode haver uso de violência ou ameaça para tomada do veículo. Os dois tipos de crime estão em baixa no Estado de São Paulo, segundo as notificações da Secretaria de Segurança Pública, mas a queda dos roubos foi mais acentuada desde 2014, mostra o estudo. Enquanto os furtos recuaram 35%, de 122 mil para 79 mil entre 2014 e 2021, os roubos diminuíram 66%, de 98 mil para 33 mil no mesmo intervalo — ou seja, caíram para um terço do que eram antes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "No furto, há uma dificuldade muito maior de recuperar o carro. Onde o mercado de carros e de autopeças é mais pujante, há mais furto e menos roubo. Porque o furto destina diretamente para o mercado [de desmanche], que consegue dar vazão mais facilmente a essa mercadoria." Já o roubo tem um circuito completamente distinto, explica o pesquisador, cujo livro Irmãos: uma história do PCC (Cia. das Letras, 2018) inspirou a série documental PCC: Poder Secreto, da HBO Max. "O roubo é feito pela molecada que está no crime, que está na quebrada, armada, e vai fazer uma abordagem mais violenta e tirar esse carro da mão do proprietário", afirma Feltran. "Não está diretamente ligado à destinação comercial: o roubo pode ser para realizar uma fuga, uso em outro crime, obtenção de uma peça específica." Outra característica do roubo, diz o pesquisador, é a alta taxa de letalidade policial contra os ladrões. De 2012 a 2016, por exemplo, em 60% a 70% dos homicídios cometidos por policiais no município de São Paulo, havia um veículo roubado na cena do crime, citam os pesquisadores no estudo. "Ou seja: morre-se muito em São Paulo depois de roubar carros e motos. Diferentemente do Rio de Janeiro, onde morre-se muito mais em confronto na fronteira das favelas", observa o sociólogo. Assim, trata-se de um crime violento, muito mais grave que o furto e muito menos eficiente do ponto de vista de mercado, destaca Feltran. "A grande maioria dos carros subtraídos que são encontrados são provenientes desse tipo de ação criminal: a ação violenta." Segundo os pesquisadores, existe uma "governança híbrida" do mercado de veículos, compartilhada entre Estado, crime (o PCC, no caso de São Paulo) e agentes de mercado. Assim, eles buscam avaliar as transformações nessas três esferas que podem explicar o comportamento das estatísticas de roubo e furto no Estado. Feltran lembra que o roubo de veículos teve um pico nos anos 1990, época marcada por "guerras" entre grupos armados nas periferias e prisões de São Paulo, em meio à disputa pelo controle de mercados ilegais — principalmente, o de cocaína. Já a primeira década dos anos 2000 é marcada por uma mudança significativa no mundo do crime, com a consolidação da hegemonia do PCC nas cadeias e favelas paulistas. "Entre 2003 e 2008, época mais tensa da expansão do PCC por todo o território estadual, ainda enfrentando alguma resistência de grupos criminais rivais e operadores de proteção, a subtração de veículos no Estado apresentou uma ligeira tendência de queda", observam os pesquisadores. "Em seguida, estabelecida a rotina pacificada nas dinâmicas e mercados criminais, com acertos financeiros sistemáticos nos mercados de proteção [policiais agindo ilegalmente para proteger a ação de criminosos], observa-se uma maior desenvoltura e expansão dos negócios da facção." Segundo os pesquisadores, a profissionalização das quadrilhas impulsionou a ampliação tanto no número de roubos, quanto dos furtos de veículos, com as revendas automotivas sendo usadas como uma forma comum para lavagem do dinheiro proveniente do tráfico de drogas. "O PCC é uma sociedade secreta que favorece o apoio mútuo entre empresários criminais", diz Feltran. "São empresários criminais de vários mercados, de várias habilidades, de vários níveis socioeconômicos, que apoiam uns aos outros para favorecerem seus negócios. Um cara que é muito bom de roubar carro, e que é irmão do PCC, vai ser acionado pelos caras que vão fazer um assalto a banco e vão precisar de carro. E o cara que rouba precisa destinar os carros dele", exemplifica. "Então é bom para todos eles que as redes de roubo de carro estejam associadas às redes de assalto a banco, de transporte de drogas, de logística e de lavagem de dinheiro. O PCC permite que todos esses empresários se encontrem e que um fortaleça o outro, como se diz na linguagem do crime." No âmbito do mercado, um fato relevante no período anterior a 2014 foi a ampliação da frota de veículos, que acompanhou a dinâmica de crescimento econômico do país, puxado pelo consumo. Os pesquisadores destacam que o peso da indústria automotiva no Produto Interno Bruto (PIB) industrial passou de 13,2% em 2003 para 19% em 2008, com um crescimento de 83% na quantidade de veículos emplacados no mesmo período. Com isso, a frota nacional passou de 12,6 milhões de veículos em 2003 para 31,4 milhões em 2021, um crescimento de 148% em pouco menos de duas décadas, o que fomentou o comércio de autopeças, ampliando a demanda por estes itens que são fruto de roubos e furtos. O ano de 2014 foi "um ponto de inflexão", destacam os pesquisadores. "Não apenas porque inverte a tendência observada nas notificações [de roubos e furtos de veículos] no período anterior, como por ser o momento de aprovação da Lei do Desmanche, que propõe uma política de segurança pública centrada na regulação de um mercado ilegal." Sancionada pelo então governador Geraldo Alckmin (à época no PSDB, hoje vice-presidente e no PSB) em 2 de janeiro de 2014 e em vigor desde 1º de julho daquele ano, a lei prevê o registro junto ao Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo (Detran-SP) de todos os estabelecimentos que atuam com desmanche, revenda ou reciclagem de autopeças usadas. Entre outras exigências, os desmanches precisavam a partir de então ter "ficha limpa", ou seja: Após a lei, cada peça de veículo — carro, ônibus, caminhão ou moto — passou a ser identificada com uma etiqueta de segurança com o nome do item, um número de rastreio e um QR Code. "Um dos efeitos práticos da lei é a estratificação do mercado de desmanches e a entrada de um grupo relativamente grande de desmancheiros no mercado legal, embora é evidente que sobre uma franja de mercado ilegal ainda", diz Feltran. "Há um gradiente que vai do ilegal ao legal. Se você anda numa avenida cheia de desmanches, todos vão ter o atestado de funcionamento, todos vão ter as notas fiscais das peças que estão lá. Mas nem todas as peças que estão lá são legais, porque a peça ilegal puxa o preço para baixo e torna esse negócio competitivo." Os empresários 100% legais acabam se focando em nichos de maior renda. Já quem é totalmente ilegal trabalha agora mais escondido, observa o pesquisador. "O mercado era inteiro ilegal, abastecido em maior proporção por carros roubados e furtados. Quando você legaliza, isso reduz a demanda por roubos e furtos, o que diminui as taxas [de notificação desses crimes]", afirma Feltran. A queda mais acentuada dos roubos em relação aos furtos se explica porque se torna mais difícil escoar a mercadoria roubada no mercado agora legalizado, explica o pesquisador. Segundo o pesquisador, a pesquisa revelou que a Lei do Desmanche foi de fato o principal elemento na queda do roubos e furtos de veículos no Estado. Mas há fatores adicionais, ainda que de menor impacto. O ano de 2014 também é um marco na atuação do PCC no Estado de São Paulo, quando a facção passa a ter a hegemonia do tráfico transnacional de cocaína através do Porto de Santos, o maior da América do Sul. Além do porto, a facção criminosa se expande para outros Estados, através de acordos com facções locais. "Em São Paulo, nesse momento de expansão, uma série de integrantes da facção, dedicados a 'crimes clássicos', como roubo de veículos ou grandes assaltos, passam a aderir às redes do tráfico internacional de cocaína, além do contrabando e dos mercados a ele associados (armas, lavagem de dinheiro etc.)", observam os pesquisadores. Além disso, o período de 2014 a 2021 é marcado pela crise econômica e pela pandemia de covid-19, com impacto sobre o consumo das famílias, o poder de compra dos salários e a oferta de crédito. O número de emplacamentos de veículos encolheu 44% entre 2014 e 2021, em comparação com o período 2003-2014, destacam os estudiosos. Também a crise dos semicondutores em meio à pandemia restringiu a produção de carros no Brasil e no mundo neste período. Por fim, os pesquisadores observam que a balança brasileira de autopeças ficou negativa entre 2014 e 2021, com importações concentradas na China, Japão, Estados Unidos, México e Alemanha. Em campo, eles ouviram relatos de aumento do uso e venda de peças chinesas, mais baratas que as originais novas e competindo em preço com as originais usadas. Mas os analistas ressaltam que mensurar o efeito disso sobre a dinâmica criminal exige avaliação mais aprofundada. "Nenhum dos outros fatores se mostrou tão efetivo quanto a lei para modificar o mercado de autopeças", observa Feltran. Segundo os pesquisadores, a lei representou uma novidade por ao menos três razões: "Há muita especulação em torno do que aconteceria com a legalização de drogas, por exemplo, da cocaína e da maconha", diz o sociólogo. "Ao mesmo tempo, nós temos uma experiência empírica, feita há dez anos no Estado de São Paulo, de legalização e um mercado ilegal e nós temos essas consequências concretas, reais, do que aconteceu, para pensarmos o que aconteceria. Então, acredito que é um exemplo fantástico do que pode acontecer com a legalização de um mercado ilegal", acrescenta. Ou seja, na avaliação de Feltran, pode acontecer, segundo a experiência da Lei do Desmanche e de outros países que legalizaram o mercado de drogas: "A ideia é que o mercado vá se tornando progressivamente mais legal, à medida que vai se tornando mais fácil o controle e mais difícil burlar esse controle. Você sai de uma situação em que é tudo ilegal e cria regras, que vão deixar alguns de fora no começo e outros dentro", afirma. Para o sociólogo, se as regras forem bem feitas, é possível fazer esse processo de transição com inclusão e distribuição dos benefícios desse novo mercado legal crescente e menos violento. "É só pensarmos nos extremos: quantas pessoas morrem por vender cerveja no Brasil? E quantos morrem por vender cocaína?", questiona Feltran. "É bem claro que uma droga legal produz menos violência na sua comercialização. Ninguém acha que tem que matar garçom, mas parte da sociedade acha que tem que matar o menino na quebrada que está vendendo maconha."
2023-05-23
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brasil
4 pontos defendidos por Lula na cúpula do G7
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez neste sábado (20/5) críticas ao que chamou de “blocos antagônicos” no mundo ao falar durante a cúpula do G7, grupo de sete dos países mais ricos do mundo, que se reúnem neste fim de semana em Hiroshima, no Japão. Nessa linha, Lula defendeu reformas e a inclusão de novos membros permanentes no Conselho de Segurança da ONU. Nas palavras do brasileiro, sem isso “a ONU não vai recuperar a eficácia, autoridade política e moral para lidar com os conflitos e dilemas no século 21”. O G7 engloba EUA, Canadá, França, Alemanha, Itália e Japão. Brasil e outros sete países - Austrália, Comores, Ilhas Cook, Índia, Indonésia, Coreia do Sul e Vietnã - participam como convidados. Durante as sessões “Trabalhando juntos para enfrentar múltiplas crises” e “Esforços compartilhados em prol de um planeta sustentável”, Lula centrou sua fala em ao menos 4 pontos: Fim do Matérias recomendadas Lula disse que, desde sua primeira participação como convidado do G7, em 2009 - ano seguinte à eclosão da crise financeira global -, ficou exposta a “fragilidade dos dogmas e equívocos do neoliberalismo”. “A arquitetura financeira global mudou pouco (desde então), e as bases de uma nova governança econômica não foram lançadas”, declarou Lula diante dos demais chefes de Estado. O brasileiro defendeu que para enfrentar as “múltiplas crises” atuais - desde a ambiental até segurança alimentar e ameaças à democracia, entre outras - seria preciso uma “mudança de mentalidade”. “O sistema financeiro global tem que estar a serviço da produção, do trabalho e do emprego. Só teremos um crescimento sustentável de verdade direcionando esforços e recursos em prol da economia real”, opinou. Ele emendou fazendo a defesa da ação do Estado na resolução dos problemas. Disse que degradação ambiental, fome, pandemia e desigualdade “demandam respostas socialmente responsáveis, uma tarefa que só é possível com um Estado indutor de políticas públicas voltadas para a garantia de direitos fundamentais e do bem-estar coletivo”. “Um Estado que fomente a transição ecológica e energética, a indústria e a infraestrutura verdes”, prosseguiu Lula. “A falsa dicotomia entre crescimento e proteção ao meio ambiente já deveria estar superada. O combate à fome, à pobreza e à desigualdade deve voltar ao centro da agenda internacional, assegurando o financiamento adequado e transferência de tecnologia.” Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Lula concluiu um de seus discursos com críticas ao que chamou de “blocos antagônicos”, exaltando o multilateralismo. “Nenhum país poderá enfrentar isoladamente as ameaças sistêmicas da atualidade. A solução não está na formação de blocos antagônicos ou respostas que contemplem apenas um número pequeno de países”, afirmou. “Não faz sentido conclamar os países emergentes a contribuir para resolver as ‘crises múltiplas’ que o mundo enfrenta sem que suas legítimas preocupações sejam atendidas, e sem que estejam adequadamente representados nos principais órgãos de governança global. (...) Sem reforma de seu Conselho de Segurança, com a inclusão de novos membros permanentes, a ONU não vai recuperar a eficácia, autoridade política e moral para lidar com os conflitos e dilemas do século 21”, declarou. Pedidos de mudanças no Conselho de Segurança - instância da ONU cuja missão principal é “manter a paz e a segurança internacional” - são uma agenda antiga de Lula, desde seus primeiros mandatos. O Conselho tem cinco membros permanentes (China, França. Rússia, Reino Unido e EUA) e dez não permanentes, eleitos para mandatos de dois anos (o Brasil participa do órgão atualmente). Mas apenas os membros permanentes têm poder de veto em resoluções. Em seu discurso na sessão dedicada à sustentabilidade, Lula cobrou mais dinheiro dos países ricos para a mitigação do aquecimento global. “Essa é uma crise que não afeta a todos da mesma forma, nem no mesmo grau, nem no mesmo ritmo. Mais de 3 bilhões de pessoas já são diretamente atingidas pela mudança do clima, em especial em países de renda média e baixa”, afirmou. “Insistimos que os países ricos cumpram a promessa de alocarem US$ 100 bilhões ao ano à ação climática. (...) De nada adianta os países e regiões ricos avançarem na implementação de planos sofisticados de transição se o resto do mundo ficar para trás ou, pior ainda, for prejudicado pelo processo.” “Seguiremos abertos à cooperação internacional para a preservação dos nossos biomas, seja em forma de investimento ou colaboração em pesquisa científica. É com esse espírito que manifesto meu apreço pelos aportes anunciados recentemente ao Fundo Amazônia”, declarou. Mas ele também almeja conseguir ajuda junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI) para a Argentina, além de revitalizar o G20 (grupo das 20 maiores economias do mundo) e se firmar como uma espécie de ponte entre o G7 e os Brics, grupo formado pelo Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Ao mesmo tempo, a principal preocupação diplomática do Brasil era com a possibilidade de o encontro do G7 adotar um tom de crítica aberta à Rússia em meio à guerra na Ucrânia, membro do Brics e com quem o Brasil mantém boas relações diplomáticas. Mas o comunicado final do encontro já coloca empecilhos nessa ambição brasileira. A repórter enviada da BBC a Hiroshima, Tessa Wong, explica que o texto diz que as sete economias mais avançadas do mundo estão comprometidas a “intensificar nosso apoio diplomático, financeiro, humanitário e militar à Ucrânia, para aumentar os custos à Rússia e aos que apoiam seus esforços de guerra”. Roubando a cena: Volodymyr Zelensky surpreendeu os países membros - e a mídia mundial - ao comparecer à cúpula do G7 um dia antes do esperado. O presidente ucraniano chegou a um avião do governo francês, após uma parada na Arábia Saudita. Compromisso com a região do Indo-Pacífico: Os países do G7 falaram em assumir um compromissomaior com países do indo-pacífico em uma declaração final conjunta. Isso também ficou claro pela decisão de convidar países como Indonésia, Índia e Ilhas Cook para a cúpula. Uma mensagem para a China: Os líderes assumiram uma postura firme contra o que chamaram de "coerção econômica" - usar o comércio para intimidar outros países - e pediram que a China "jogue de acordo com as regras internacionais". Enfatizando seu compromisso com a "resiliência econômica", eles prometeram tomar medidas para "reduzir dependências excessivas em nossas cadeias de suprimentos críticas" - uma referência a como os países do G7 ainda estão inextricavelmente ligados à China no comércio. Uma resposta furiosa: o Ministério das Relações Exteriores da China respondeu acusando o G7 de "manipular questões relacionadas à China" e "difamar e atacar a China". Durante a cúpula, os EUA deram sinal verde a seus aliados para que enviem caças de guerra à Ucrânia - e os líderes do G7 prometeram intensificar as sanções econômicas impostas à Rússia. O comunicado final do encontro deste final de semana foi antecipado para este sábado por causa da presença de Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, na cúpula japonesa. É esperado que Zelensky se reúna com Lula durante a cúpula - o presidente ucraniano fez o convite para o encontro, mas Lula disse que não sabia se a reunião aconteceria. Lula tem defendido uma posição de neutralidade na guerra, mas é pressionado por países ocidentais a adotar uma postura mais crítica a Moscou. Declarações de Lula nos últimos meses chegaram a gerar mal-estar com Europa e Estados Unidos, em particular quando ele disse que “a decisão da guerra foi tomada por dois países” e que “é preciso que os Estados Unidos parem de incentivar a guerra e comecem a falar em paz. É preciso que a União Europeia comece a falar em paz pra que a gente possa convencer o (Vladimir) Putin e o Zelensky de que a paz interessa a todo mundo e a guerra só está interessando, por enquanto, aos dois”. Na ocasião, o porta-voz de Segurança Nacional da Casa Branca afirmou que Lula estava “reproduzindo propaganda russa e chinesa” e fazendo comentários “simplesmente equivocados”. Tom semelhante foi adotado pelo porta-voz de Assuntos Externos da União Europeia, Peter Stano. Ele disse na ocasião: “Em referência às falas do presidente brasileiro, (...) é a Rússia, e apenas a Rússia, a responsável pela agressão ilegítima e não provocada contra a Ucrânia. Então não há dúvidas quanto a quem é o agressor e quem é a vítima”.
2023-05-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c9762966ln4o
brasil
Brasil no G7: quatro prioridades e uma preocupação de Lula em viagem ao Japão
A reunião do G7, grupo que reúne aquelas que são consideradas as economias mais avançadas do mundo, começou nesta sexta-feira (19/05), em Hiroshima, no Japão. O Brasil voltou ao evento na condição de convidado após 14 anos e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) chegou ao encontro levando na bagagem um "pacote" com quatro prioridades e uma preocupação. O encontro vai reunir os líderes do G7 (Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, França, Japão, Itália e Canadá) além de países convidados como Austrália, Ilhas Comores, Indonésia, Índia, Coreia do Sul, Ilhas Cook e Brasil. O evento acontece anualmente e, neste ano, os principais temas da reunião serão: segurança alimentar, saúde, desenvolvimento e a guerra envolvendo a Rússia e a Ucrânia. Diplomatas e especialistas ouvidos pela BBC News Brasil pontuam que entre as prioridades de Lula no evento estão a obtenção de mais doadores para o Fundo Amazônia, conseguir ajuda junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI) para a Argentina, revitalizar o G20 (grupo das 20 maiores economias do mundo) e se firmar como uma espécie de ponte entre o G7 e os BRICS, grupo formado pelo Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Fim do Matérias recomendadas A principal preocupação do Brasil é com a possibilidade de o encontro adotar um tom de crítica aberta à Rússia, membro do Brics e com quem o Brasil mantém boas relações diplomáticas. O encontro do G7 é visto como uma espécie de vitrine internacional para as lideranças dos países, mas também é encarado como uma oportunidade para que os países estreitem suas relações e debatam temas de interesse mútuo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Apesar da diversidade de temas e da previsão de que o grupo divulgue um comunicado conjunto sobre segurança alimentar ao final, o principal pano de fundo do evento é a guerra iniciada após a invasão da Rússia ao território ucraniano, em 2022. Todos os países do G7 já condenaram a invasão russa e parte deles adotou sanções econômicas contra a Rússia. É nesse contexto que diplomatas e especialistas em relações internacionais ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que Lula tentará se equilibrar. O presidente brasileiro terá sete reuniões bilaterais. Ele partiu para o Japão com encontros marcados com os chefes de governo de seis países: O encontro vai até o domingo (21/05). Além dessas reuniões, Lula ainda participará dos encontros em que todos os líderes estarão reunidos. E em meio a todos esses compromissos, Lula tentará, de um lado, fazer avançar quatro de suas principais agendas na esfera internacional. Do outro, a diplomacia brasileira tentará evitar que o tom do evento abertamente crítico à Rússia. A pauta ambiental deverá estar no centro das discussões que Lula terá nas reuniões que ele terá durante o evento. A expectativa é de que Lula tente convencer os demais países do G7 e os outros países convidados a fazerem doações ao Fundo Amazônia, criado pelo Brasil em 2008 com o objetivo de financiar ações de combate ao desmatamento e desenvolvimento da região amazônica. O Fundo Amazônia começou com doações da Noruega e Alemanha. Após quatro anos paralisado durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o fundo voltou a receber aportes e promessas de doações. Segundo o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o fundo já recebeu R$ 3,3 bilhões em doações. O governo da Noruega, com R$ 1 bilhão, é o maior doador até agora. Dos membros do G7, além da Alemanha que já fez doações, outros dois membros fizeram promessas de aportes no fundo neste ano: Estados Unidos (R$ 2,4 bilhões) e Reino Unido (R$ 500 milhões). Os recursos, no entanto, ainda não foram liberados. Para a professora do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC) Renata Albuquerque Ribeiro, a tentativa do governo brasileiro atende a uma dinâmica esperada da diplomacia do país. "Esta sempre será uma bandeira do governo brasileiro. A tentativa de obter mais recursos para o fundo faz bastante sentido pelo fato de o desenvolvimento sustentável ser um dos temas do encontro. É uma oportunidade importante porque os países já vão estar conversando sobre o assunto", disse a professora. A pauta ambiental é uma das principais bandeiras da atual gestão do presidente Lula que tenta, inclusive, fazer com que o Brasil seja a sede da Conferência das Nações Unidas para o Clima de 2025. Outra prioridade da equipe brasileira é fazer avançar a ideia de que o Brasil pode ser uma espécie de "ponte" entre os países do Brics e o G7. A suposta necessidade de que essa "ponte" seja feita resulta de pelo menos dois fatores principais: Diplomatas ouvidos pela reportagem em caráter reservado avaliam que o Brasil poderia exercer esse papel por manter boas relações tanto com a China quanto com a Rússia. Em relação à Rússia, o Brasil vem se equilibrando em uma posição em que, ao mesmo tempo em que vota com os Estados Unidos a favor de resoluções condenando a invasão, o governo brasileiro evita criticar abertamente o presidente russo Vladimir Putin e não adota sanções econômicas contra o país. Em outubro de 2022, por exemplo, o Brasil foi o único país do Brics a votar a favor de uma resolução que condenava a realização de referendos promovidos pela Rússia em áreas do território ucraniano invadido. Por outro lado, diversos países que integram o G7 estão direta ou indiretamente envolvidos na guerra na Ucrânia. Nações como os Estados Unidos, Alemanha e Reino Unido estão fornecendo recursos financeiros, informações de inteligência e armamentos para a Ucrânia enfrentar a invasão russa. Já em relação à China, Lula vem tentando aumentar a proximidade com o regime de Xi Jinping ao mesmo tempo em que os Estados Unidos continuam a ser o maior investidor estrangeiro no país. O professor de política internacional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Dawisson Belém Lopes, diz concordar com a avaliação de que o Brasil estaria bem posicionado para fazer essa ligação entre os dois grupos. "O mero fato de o Brasil ter sido convidado para participar dessa reunião com o G7 é, por si só, um indicativo do bom trânsito que o país tem neste momento entre os dois blocos. Não acho que haja uma percepção internacional de que o Brasil esteja pendendo para um lado ou para o outro", disse o professor. Para Renata Ribeiro, a tarefa de estabelecer uma ligação entre os dois grupos é difícil. "É uma tarefa muito difícil aproximar esse dois blocos, mas se alguém pode conseguir isso seria o Brasil. O país tem uma imagem de país negociador entre o mundo desenvolvido e os países em desenvolvimento", disse a professora. "Acho, no entanto, que essa intenção pode esbarrar nos interesses dos países que estão envolvidos no conflito na Ucrânia", afirmou Ribeiro. A terceira prioridade do Brasil na reunião do G7 seria o que os diplomatas brasileiros vêm chamando de "revitalização" do G20, que é o grupo das 20 maiores economias do mundo. Assim como o G7, o G20 também tem reuniões anuais e funciona como um fórum internacional mais amplo e com países de diferentes regiões do mundo. Atualmente, o grupo é liderado pela Índia, mas em 2024, o grupo será presidido pelo Brasil. Estimativas apontam que os 20 integrantes do grupo representam 80% do PIB mundial, dois terços da população mundial e três quartos do fluxo de comércio global. Nos últimos anos, porém, o G20 vem sendo criticado pela suposta falta de efetividade diante de problemas concretos como a pandemia de covid-19. Especialistas avaliam que uma das formas que o Brasil deverá usar para tentar "revitalizar" o G20 é dar um novo impulso à pauta climática entre as prioridades do grupo. "Acho que a principal possibilidade de atualização do G20 poderia vir a partir da inserção da pauta ambiental de forma significativa e duradoura. Ao assumir a presidência do grupo, o Brasil deve tentar aumentar a ambição climática e ambiental dos países do grupo. E o Brasil tem capital político e diplomático nessa área", avalia a professora Renata Ribeiro. Dawisson Lopes avalia que o trabalho a ser feito pelo Brasil no G20 será o de tentar estabelecer novas prioridades no grupo. "Há uma diferença considerável entre os temas que são de interesse imediato dos países do sul global e aqueles que interessam aos países mais ricos do hemisfério norte. Acho que essa revitalização passa pela repriorização de agendas e pelo lançamento de um foco especial em temas de maior interesse do Brasil", disse o professor. "Sul global" é um termo usado para caracterizar países em desenvolvimento à margem ou em contraposição à ordem internacional estabelecida por Estados Unidos e Europa. A quarta prioridade do Brasil durante a reunião do G7 será interceder junto aos países do grupo em favor da Argentina. O segundo maior país da América do Sul vive uma crise econômica e política a poucos meses das eleições presidenciais. No início deste mês, o presidente argentino, Alberto Fernández, veio ao Brasil e se encontrou com o presidente Lula. O brasileiro prometeu tentar ajudar o país por meio de medidas que visem facilitar o fluxo comercial com a Argentina. Lula também prometeu tentar sensibilizar o FMI em relação às dívidas do país com credores internacionais. "O FMI sabe como a Argentina se endividou, sabe para quem emprestou o dinheiro. Portanto, não pode ficar pressionando um país que só quer crescer, gerar empregos e melhorar a vida do povo”, disse Lula após o encontro com Fernández. O tema também foi abordado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em maio deste ano durante sua passagem pelo encontro de ministros da economia dos países do G7, também no Japão. Na ocasião, Haddad pediu apoio tanto do FMI quanto dos Estados Unidos. “Eu trouxe esse problema porque é uma questão importante. A Argentina é um país muito importante no mundo e, particularmente, na América do Sul. Em segundo lugar, porque a solução para a Argentina passa pelo Fundo Monetário Internacional. E se o Brasil e os EUA estiverem juntos nesse apoio, isso pode facilitar muito as coisas para a Argentina”, afirmou Haddad após um encontro com a secretária do Tesouro americano, Janet Yellen. Para a professora Renata Ribeiro, a tentativa do Brasil de ajudar a Argentina a enfrentar sua crise econômica faz parte do conjunto de interesses do Brasil na região. "Ajudar a Argentina está dentro do interesse regional do Brasil na América do Sul. A Argentina é um parceiro estratégico do Brasil tanto do ponto de vista político quanto econômico. Essa ajuda, me parece, vai além do alinhamento político de Lula com Fernández", diz a professora. Dawisson Lopes tem uma avaliação semelhante à de Renata Ribeiro. Ele diz, ainda que levantar a crise argentina durante o evento tem um caráter estratégico para o Brasil. "Além de Brasil e Argentina serem aliados, há uma jogada importante: quanto mais se falar de Argentina durante essa reunião, menos se falará de temas incômodos para o Brasil como a guerra na Ucrânia", disse. Apesar de ter claras as suas prioridades, o Brasil chega à reunião do G7 com uma preocupação evidente: o temor de que o evento se transforme em uma espécie de "condenação conjunta" à Rússia. Essa possibilidade teria sido um dos motivos que fizeram Lula demorar a aceitar oficialmente o convite feito pelo Japão para participar da reunião. Essa preocupação foi, em parte, externada pelo secretário de Assuntos Econômicos e Financeiros do Ministério das Relações Exteriores, o embaixador Maurício Carvalho Lyrio, durante uma apresentação à imprensa na segunda-feira (15/05). Questionado sobre a possibilidade de que a declaração conjunta dos países presentes ao evento sobre segurança alimentar contivesse críticas diretas à Rússia, ele admitiu que a diplomacia brasileira vem trabalhando na negociação sobre o texto final. "Como é uma declaração sobre segurança alimentar e há efeitos do conflito da Ucrânia sobre isso, uma referência inicial deverá ser feita ao conflito [...] Naturalmente, o governo brasileiro negocia essa linguagem para que seja compatível com a linguagem que o Brasil usa sobre o tema", disse o diplomata. Tradicionalmente, os textos de declarações conjuntas em eventos como o G7 são negociados pelas equipes diplomáticas dos países participantes até os últimos momentos do encontro. A preocupação do Brasil com o conteúdo do texto, portanto, deverá perdurar até o final do evento.
2023-05-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c84133nzj9do
brasil
Brasil no G7: como crise argentina pode ajudar Lula a se fortalecer como líder regional e global
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) desembarcou na madrugada desta sexta-feira (19/5) em Hiroshima, no Japão, para participar da reunião do G7 — grupo composto por Canadá, Reino Unido, Japão, Estados Unidos, Itália, Alemanha e França. Será a primeira vez em 14 anos que um mandatário brasileiro participa das reuniões do G7. Neste ano, oito nações foram convidadas: Índia, Indonésia, Austrália, Ilhas Cook, Comores, Coreia do Sul, Vietnã, além do Brasil. Diante dos líderes das sete nações mais industrializadas do mundo, Lula pretende expor um problema histórico e bem conhecido dos brasileiros: a crise econômica da Argentina. O cenário catastrófico — em ano eleitoral — levou o presidente argentino Alberto Fernandez a uma visita emergencial a Brasília há duas semanas, para pedir socorro financeiro. Fim do Matérias recomendadas “Na verdade, neste momento, a Argentina já tem passivos de mais de US$1 bilhão, já está no vermelho. É evidente que a perda de receitas de exportação com a seca teve efeitos violentos, mas o problema já vinha de antes. É uma situação em que literalmente daqui a pouco o Banco Central argentino terá que se declarar incapaz de entregar dólares para bancar os serviços. É uma situação de moratória em semanas, meses. O que está acontecendo agora é muito parecido ao cenário de 2001”, afirma o economista Otaviano Canuto. Nessa fala, o ex-vice-presidente do Banco Mundial e membro-sênior do Centro de Políticas para o Novo Sul Global refere-se ao Corralito, a última grande crise do país vizinho que levou a um pacote de medidas para impedir corrida aos bancos. Diante do quadro, Lula elegeu como uma de suas prioridades nos encontros com os líderes do G7 tentar ajudar a Argentina a renegociar as condições do empréstimo de US$ 44,5 bilhões contraído com o Fundo Monetário Internacional (FMI) em 2018. Preocupados com temas como a disputa entre EUA e China, segurança alimentar, cadeias de produtivas, aquecimento climático e a Guerra da Ucrânia, os integrantes do G7 não têm na crise econômica argentina uma de suas prioridades. No entanto, segundo assessores de Lula, a lógica do presidente para tentar emplacar a pauta é simples: “se eles (G7) querem discutir Ucrânia, nós queremos discutir Argentina, são as prioridades”. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast À exceção do Canadá, os demais seis membros do G7 estão entre os dez maiores financiadores do FMI (o Brasil é atualmente o décimo maior cotista do banco, e a Índia, que também estará no evento, é a nona). Segundo fontes ouvidas pela BBC News Brasil no Ministério do Planejamento, na Fazenda e no Palácio do Planalto, os argentinos pediram e Lula topou levar aos líderes o pedido para que o FMI flexibilize as metas fiscais do acordo de empréstimo vigente — que a Argentina será incapaz de cumprir — e para que aceite adiantar repasses em torno de R$80 bilhões, que deveriam ser desembolsados até dezembro pelo Fundo caso as metas fossem cumpridas pelo governo Fernandez. "Os bancos têm de ter paciência. Se for preciso, renovar o acordo e colocar a palavra tolerância em cada renovação porque não cabe ao banco ficar asfixiando as economias dos países, como está fazendo agora com a Argentina o Fundo Monetário Internacional", disse Lula. Antes mesmo da chegada de Lula ao Japão, coube ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tratar do tema Argentina no G7 Financeiro com ao menos três de suas contrapartes, durante reuniões bilaterais. O ministro tentou “sensibilizar” a secretária do Tesouro dos EUA Janet Yellen, o ministro da economia do Japão, Yasutoshi Nishimura e a ministra das Finanças Indiana Nirmala Sitharaman. Haddad tem justificado a mediação a partir de interesses imediatos brasileiros: junto com a China, o Brasil é o maior parceiro comercial da Argentina e possui uma balança comercial superavitária com os vizinhos. Economistas avaliam, porém, que por pior que seja a crise dos argentinos, um “efeito contágio” na economia da região é improvável. Questionados sobre o tema pela BBC News Brasil, diplomatas americanos disseram conhecer “as críticas” de Lula aos bancos multilaterais em Washington, mas evitaram se posicionar sobre o novo pedido da Argentina — os EUA representam quase 17% do capital do FMI. Publicamente, o FMI diz que mantém “debates construtivos” com autoridades argentinas e não discute os termos do acordo, que são sigilosos. Mas no mercado financeiro, a percepção é de que há pouca simpatia pelo pleito argentino. Recentemente, o jornal argentino La Nación citou fontes do fundo que afirmam temer o uso eleitoral de um eventual adiantamento — Fernandez recém anunciou que não concorrerá à reeleição. No Ministério da Fazenda e no Planejamento do Brasil, o entendimento é de que a disposição do Fundo “não é das melhores”. Mas que a pressão do governo poderia desestabilizar o atual representante do Brasil na diretoria Executiva, Afonso Bevilaqua, no posto desde a gestão Bolsonaro. “Esse pedido da Argentina só seria possível se os grandes shareholders quisessem e decidissem dar fundos adicionais, sem garantias. Não vejo isso como justificável (o pedido da Argentina), como viável pelas regras do FMI. Legalmente, o FMI não pode rolar a dívida. No fundo, o que o governo da Argentina está tentando fazer é empurrar com a barriga uma situação insustentável ”, diz Canuto. Se tem pouca chance de sucesso para amenizar a situação financeira argentina, o fato de Lula encampar a causa do país junto aos líderes globais é mais uma tentativa de alavancar a estatura do Brasil tanto regionalmente quanto globalmente. Para os países do Cone Sul, sinalizaria o compromisso do país em usar seus espaços privilegiados na política global em defesa dos interesses regionais. Para os líderes globais, mostraria que o Brasil não fala apenas por si, mas representa um conjunto de nações que o enxergam como líder. A percepção no governo Lula, segundo assessores, é de que essa seria outra oportunidade de mostrar que “o Brasil voltou”. Segundo o professor de relações internacionais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Dawisson Belém Lopes, o governo Lula começou “acelerando” uma política externa que, na verdade, já adota há décadas. “Brasil e Argentina são aliados na diplomacia desde os anos 1970 e 1980 com Itaipu, passa pelo Mercosul e chega hoje a fóruns como o G20 e até o Conselho de Segurança da ONU que, agora que o Brasil é membro não permanente, abre espaço para a Argentina, o Chile, e outros aliados da América do Sul nesse esforço para galvanizar os apoios e para se tornar uma liderança da sua região, e, eventualmente, da América Latina e Caribe”, afirma Belém Lopes. “No âmbito do G20, o grande aliado brasileiro é a Argentina. Há uma composição de interesses ali cujo objetivo maior, naturalmente, é juntar forças para conseguir exercer uma pressão, para conseguir pautar as reuniões e proporcionar uma atenção maior às visões do Sul global.” Os quatro anos da gestão Bolsonaro representaram um hiato nessa política externa. Mas ainda em janeiro, ao fazer sua primeira visita oficial de mandato à Argentina e ao Uruguai, Lula demonstrou a intenção de reverter a direção e apostar mais uma vez no Mercosul. No Itamaraty, o entendimento é que esse tipo de pauta é importante também para deixar claro que o Brasil não se vê e nem deseja ser tratado apenas como uma liderança ambiental. O Brasil assumirá a presidência do G20 em dezembro próximo e, na condição de líder do bloco, convidou Paraguai e Uruguai, parceiros do Mercosul, a atuarem como membros convidados do bloco. Nesse contexto, uma ausência notável nas discussões propostas pelo Brasil no G7 deve ser a do acordo comercial Mercosul-União Europeia. Tratado como prioridade durante a campanha de Lula, que criticava Bolsonaro por não ter concluído o acerto por questões ambientais, o texto passou a ser motivo de cizânia dentro do governo petista. O teor de uma carta enviada pela União Europeia com exigências ambientais caiu mal para as lideranças da região. Na administração federal brasileira, pastas como a Fazenda, o Planejamento e o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços acreditam que é possível responder aos europeus no mesmo tom por vias diplomáticas, sem necessidade de reabrir os termos do acordo já aprovado. O outro lado, representado especialmente pela Casa Civil, vê nos termos da carta e do acordo em si condições inaceitáveis. Diante da queda de braço da gestão, Lula passou a evitar comentários muito assertivos em relação ao acordo Mercosul e União Europeia e uma posição final do presidente só deve ser tomada após o retorno dele no Japão. Durante o G7 Financeiro, Haddad não abordou o tema. Belém Lopes propõe uma possível explicação para o aparente paradoxo do silêncio brasileiro em relação ao acordo Mercosul-União Europeia em um fórum tão privilegiado. “Sem entrar no mérito de se é bom ou ruim, acho que dá para entender (a posição do governo Lula). O Brasil quer liderar sua região, está claro que retomar o protagonismo regional é uma prioridade. Uma iniciativa como o Acordo Bi-Regional União Europeia-Mercosul poderia eventualmente diluir essa capacidade brasileira de liderar sua própria região, especialmente se o acordo não é percebido como bom para o Brasil ou para setores da economia brasileira, da indústria brasileira. Por isso o governo passou a lidar com isso sem nenhuma pressa”, afirma Belém Lopes.
2023-05-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72z553dpz2o
brasil
O brasileiro premiado por fazer 'melhor pizza da Europa fora da Itália'
Natural da pequena cidade de Rio Pardo, no Rio Grande do Sul, o gaúcho Rafael Panatieri decidiu que seria um grande cozinheiro aos 17 anos. Mas, naquela época, não poderia imaginar que 20 anos depois estaria à frente da melhor pizzaria da Europa fora da Itália. Hoje ele é sócio da Sartoria Panatieri, em Barcelona, na Espanha, que ficou em primeiro lugar no ranking do renomado guia italiano 50 Top Pizza 2023. Aberta em 2018, essa pizzaria artesanal com filosofia sustentável já conta com duas unidades na cidade espanhola — e é resultado de uma jornada gastronômica que começou quando Rafael Panatieri ainda era garoto, em Rio Pardo. De família de origem italiana, ele conta que teve contato com ingredientes e preparos mediterrâneos desde cedo. Foi sua avó, conhecida por reunir a família em grandes almoços, quem despertou sua paixão pela cozinha. Antes de decidir ser chef, Rafael chegou a passar em um vestibular para estudar medicina veterinária. Ele lembra que, na época, ser cozinheiro não tinha o reconhecimento que tem hoje. Mas, mesmo diante das incertezas, ele teve a sorte de contar com o apoio da família para seguir adiante com seu sonho. Fim do Matérias recomendadas "O único chef que eu tinha como referência no Brasil era o Alex [Atala], mas, na época, a profissão não era bem vista", diz ele à BBC News Brasil. Após fazer um curso de cozinha no Senac no Rio Grande do Sul, Panatieri teve certeza de que esta seria sua carreira. Continuou então seus estudos no Centro Europeu de Curitiba e trabalhou em alguns dos melhores restaurantes de hotéis em Gramado. Ele tinha 22 anos quando decidiu sair do país, e como já tinha documentos italianos, desembarcou primeiro em Milão. Após vencer a burocracia do país, já com o passaporte vermelho (europeu) em mãos, focou em conquistar seu espaço nas cozinhas europeias. "Sabia que tinha que me esforçar em dobro por não estar em casa, e aprender rápido o idioma. Acredito que o meu caráter mais 'sério' me ajudou a ser respeitado em cada lugar", conta o chef. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A esposa de Panatieri, Ana Carolina, se mudou para Europa seis meses depois. Farmacêutica, nunca havia trabalhado com hotelaria, mas conseguiu um trabalho como camareira na Itália. Foram quase quatro anos no país, e neste tempo o chef trabalhou em restaurantes da Sicília, Roma e Florença. Em uma viagem de fim de ano, o casal se encantou com a cidade de Barcelona. Eles fizeram as malas, ou melhor, as duas mochilas que tinham, e se mudaram para lá. Segundo ele, o ambiente cosmopolita da cidade espanhola é mais aberto a estrangeiros, e a gastronomia, mais livre para inovações. "Eu gosto muito da cozinha italiana pela base, pela tradição e pelo carinho que eles têm com a comida, mas, na época, com 25 anos, eu queria ter essa visão na Espanha da cozinha de criatividade." O maior representante desse movimento na época era o chef Ferran Adrià, e a gastronomia molecular desenvolvida no restaurante El Bulli. Panatieri conta que mandou diversos e-mails para conseguir um estágio com o chef, mas sem sucesso. "Quando Ferran Adrià fechou o El Bulli [em 2011], já se começava a falar dos irmãos Roca. Então meu foco se transformou em conseguir trabalhar com eles", afirma. Criadores do triestrelado restaurante Celler de Can Roca, os irmãos Joan, Josep e Jordi receberam Rafael como parte da família. Durante os seis anos em que trabalhou com os Roca, o brasileiro passou de estagiário a chef do restaurante Roca Moo. "Representar um restaurante estrelado é o sonho de muitos, por isso minha autocobrança era diária. O que ninguém conta é que se manter no pódio é mais difícil que chegar." Foi entre as panelas do Roca Moo que Panatieri conheceu em 2016 o espanhol Jorge Sastre, seu atual sócio na pizzaria. O madrileño foi seu sous chef (subchefe) — e os dois tinham uma sintonia que dispensava palavras. Em 2018, eles abriram a primeira unidade da Sartoria Panatieri — uma pequena porta, de número 51, no charmoso bairro da Gràcia. Um espaço aconchegante com forno a lenha e jardim que viria a ser conhecido como a melhor pizzaria da Europa. "Eu sempre sonhei em ter uma pizzaria, mas minhas experiências em restaurantes estrelados me levaram para outro caminho", conta o sócio brasileiro. O estabelecimento premiado se destaca por uma filosofia de respeito aos ingredientes locais e práticas sustentáveis. "A ideia sempre foi criar com ingredientes locais. Os produtos italianos são excelentes, mas decidimos olhar para nosso entorno com carinho", diz Panatieri. Em 2021, os sócios abriram a segunda unidade, desta vez no agitado distrito de Eixample. Os clientes triplicaram — mas Panatieri e Sastre decidiram seguir adotando a mesma filosofia artesanal e sustentável. Chegar ao Olimpo do guia italiano 50 Top Pizza 2023 é resultado de um trabalho que vai muito além da massa e do recheio. Os rigorosos critérios do guia também avaliam a proposta do restaurante, o ambiente e a experiência do cliente. O segundo lugar ficou com a pizzaria Bæst, em Copenhagen; e o terceiro, com a 50 Kalò, do chef Ciro Salvo, em Londres. "Acreditávamos estar entre os três primeiros, mas ser reconhecidos como melhor pizzaria da Europa fora da Itália foi uma ótima surpresa", diz Panatieri. Ele conta que antes da Sartoria nunca havia feito pizzas, além daquelas que testava em casa. Mas a passagem por cozinhas renomadas o ajudou a acelerar esse processo. Juntos, os sócios estudaram diferentes preparos, e, após diversas provas e erros, encontraram a fórmula perfeita. "Eu queria que a nossa pizza fosse um prato completo, mas com a massa no lugar da porcelana", revela. O conceito "from farm to pizza" (da fazenda à pizza), criado pela Sartoria Panatieri, preza pela valorização dos ingredientes e também dos produtores locais. Segundo os sócios, o segredo do sucesso da Sartoria não está no forno a lenha — mas, sim, nas zonas rurais que cercam a cidade de Barcelona. "Essa filosofia significa tudo para nós. É a proximidade com os produtores que nos leva a conseguir os melhores ingredientes, no melhor momento do ano", revela Panatieri. Um exemplo são os embutidos artesanais da fazenda ecológica Dpagès, em Lleida, na Catalunha. Para a fabricação da mortadela, do fuet e da sobrasada, são utilizados porcos Gascón, uma raça ibérica em perigo de extinção que a fazenda trabalha para recuperar. Já a massa das pizzas é feita com farinha ecológica — fermentada por mais de 70 horas. “O trigo que utilizamos vem dos moinhos de pedra da fazenda Cal Pauet, em Solsona. É mais caro que o industrial, mas é o que mais se encaixou na nossa massa”, afirma. A pizza que leva molho de tomates cereja assados, mozarella e molho holandês de manjericão foi eleita, também pelo guia italiano, a melhor pizza do ano de 2023. "Quando se fala em pizza, a Margherita é a primeira que vem em mente. Minha ideia foi fazer ela de outra maneira, mas sem faltar com o respeito", explica Panatieri. Segundo o chef, um dos desafios de utilizar apenas ingredientes locais foi o de substituir o tradicional tomate italiano San Marzano, cultivado entre Nápoles e Salerno. Como solução, Rafael resgatou uma das lembranças mais fortes que guarda do Brasil: sua mãe e avó transformando tomates da região de Rio Pardo em molhos deliciosos. Para chegar no equilíbrio esperado entre acidez e dulçor, o chef desenvolveu então uma receita com tomates cereja locais assados no forno a lenha — e para finalizar a releitura, substituiu o manjericão in natura por um molho holandês com as folhas aromáticas.
2023-05-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3g942vdlgno
brasil
O mistério da onça rara que dura quase 10 anos na região serrana do RJ
“Uma coisa surreal que jamais achei que veria”, pensou o técnico em segurança eletrônica Tales Oliveira, de 27 anos, ao avistar um ponto branco se movimentando entre as pedras em Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro, na manhã de 30 de março deste ano. Oliveira estava perto da janela de casa, junto com um amigo, quando avistou o que pensou ser uma onça-parda branca, um animal raríssimo, andando em uma área de proteção ambiental. “Resolvi pegar um binóculo e começamos a observar”, diz Tales, que cresceu na região de Petrópolis e ouviu desde pequeno sobre onças vivendo por ali - mas nunca tinha visto nenhuma. Poucas semanas depois, outro morador da região também fez registros que acreditava ser do mesmo animal. Supostamente, seria uma onça-parda com uma condição genética rara que deixa a maior parte da pelagem branca. Fim do Matérias recomendadas Há quase dez anos, um animal com essas características foi visto pela primeira vez no Parque Nacional da Serra dos Órgãos (Parnaso), em uma região da Mata Atlântica. Ele foi avistado outras três vezes nos meses seguintes, mas, depois, nunca mais foi localizado. Os registros recentes foram avaliados por pesquisadores, que apontaram que as imagens não são da onça rara. No caso das fotografias feitas por um morador, a onça na verdade era um gato. Já no vídeo de Tales, não foi possível confirmar qual era o animal, porque a imagem era de baixa qualidade. Com isso, o paradeiro atual da onça raríssima permanece incerto. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O leucismo é a condição por trás da pelagem branca dessa onça-parda. O primeiro registro do animal - um macho que tinha por volta de 2 anos de idade na época - foi feito em julho de 2013 por armadilhas fotográficas no Parnaso. Não havia, até então, nenhum outro caso confirmado dessa característica genética entre onças-pardas. Essa condição já havia sido identificada em outros felinos, como tigres e leões. O leucismo se caracteriza pela ausência de melanina na pelagem, que fica completamente clara por causa disso. “O albinismo, por exemplo, é a perda completa da pigmentação do animal, já o leucismo é a perda da pigmentação apenas na pelagem. É uma coisa muito rara”, diz o biólogo Lucas Gonçalves, que estuda o tema. O pesquisador do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília explica que o leucismo não costuma trazer vantagens ou desvantagens diretas. Mas é bem provável que o animal tenha dificuldade para se camuflar na paisagem, diz o biólogo. Gonçalves diz que houve outra suspeita de leucismo em onça-parda décadas atrás, mas o caso não foi confirmado porque as imagens do registro eram em preto e branco. Gonçalves foi quem identificou o caso inédito da onça-parda branca em Petrópolis. Em 2014, ele olhava as imagens das armadilhas fotográficas que monitoravam os animais do Parnaso quando viu uma onça-parda que não tinha a cor habitual da espécie, que varia entre tons de bege e marrom. O pesquisador avisou os responsáveis pelas imagens sobre a raridade do bicho. A partir de então, a onça com leucismo ganhou atenção e, em 2018, foi descrita por cientistas na publicação CAT News, da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês). Cinco anos atrás, pesquisadores quiseram instalar novas câmeras para monitorá-la e até cogitaram buscar alguma forma de fazer um estudo genético. Mas as ideias não foram para frente por falta de recursos. Os quatro registros da onça-parda com leucismo foram feitos entre julho e setembro de 2013. “Há outras imagens de onças-pardas durante a noite, mas as câmeras fotografam em infravermelho, e isso dificulta identificar a coloração do animal, por isso não sabemos se ela foi avistada outras vezes (depois de 2013)”, explica a bióloga Cecília Cronemberger, que coordena as armadilhas fotográficas para estudar as espécies da região. Quase uma década depois, pesquisadores ficaram em alerta quando souberam de novos possíveis registros que teriam sido feitos por moradores. Ainda no dia em que Tales Oliveira gravou seu vídeo, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) fez buscas com um drone para confirmar se realmente se tratava de uma onça-parda. "A gente também voltou nos dias seguintes, em uma sequência de dias e em horários alternados para pegar os períodos em que as onças estão mais ativas, mas, infelizmente, não conseguimos registrar o animal", comenta Victor Valente, chefe das unidades de conservação ambiental da serra fluminense. O vídeo de Tales foi analisado por especialistas do ICMBio. Eles avaliaram que, se realmente fosse uma onça-parda, provavelmente seria um animal de coloração normal. “Inicialmente, a gente até achou que pudesse ser (a onça rara), mas como era uma filmagem ao amanhecer, provavelmente era o sol batendo em uma pedra e dando a impressão de que a onça era mais clara do que realmente era, e isso confundiu os moradores”, explica Valente. Os pesquisadores dizem que, apesar de não ser comum que onças-pardas sejam avistadas por moradores, elas habitam a região de Petrópolis. É difícil saber exatamente o tamanho da população deste tipo de onça, também conhecida como puma ou suçuarana, mas há estudos que apontam que no Brasil há cerca de 4 mil – sendo que mil somente na Mata Atlântica. O ICMBio diz em nota à BBC News Brasil que quem avistar uma onça deve evitar tirar fotos ou se aproximar do animal. “Também não é recomendado atacar, perseguir ou ameaçar, tendo em vista que mesmo grandes predadores só atacam quando são provocados ou se estão com filhotes.” A onça-parda, encontrada do Canadá ao extremo sul do continente sul-americano, é uma espécie quase ameaçada de extinção. A expansão da agropecuária e da exploração de madeira, além do aumento das queimadas, são alguns dos fatores que levam a isso. Os estudiosos acreditam que há grande possibilidade de que a onça-parda branca nunca seja vista novamente. Eles apontam, por exemplo, que o animal já pode ter morrido “considerando o ciclo de vida de uma onça-parda, que é de 12 a 15 anos”, diz Valente. “Vai ser quase impossível registrar esse animal novamente, por ser algo raro. Pode ser que passem 50 ou 100 anos sem surgir uma outra onça-parda branca", diz o biólogo Lucas Gonçalves. "Mas, por ter existido em algum momento um animal branco como ele, a gente sabe que isso pode aparecer de novo nessa espécie", acrescenta Gonçalves.
2023-05-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cglzzkpnprko
brasil
O que big techs criticam em PL e ações sobre regulamentação das redes no Brasil
Após o adiamento da votação do PL (Projeto de Lei) das Fake News na Câmara dos Deputados, a regulamentação e responsabilização das redes sociais por conteúdos postados por usuários voltou a ser discutida com a aproximação de um julgamento de ações sobre o tema no Supremo Tribunal Federal (STF), que deve ocorrer na segunda quinzena de junho. Os casos colocados em pauta pela corte tratam, entre outras coisas, da possibilidade de suspensão de aplicativos e responsabilização das empresas de mídia em decorrência do não cumprimento de decisão judicial a respeito do conteúdo de mensagens e postagens. Na mesma linha, o PL 2630/2020 (mais conhecido como PL das Fake News) estipula um novo formato de regulamentação e fiscalização de plataformas digitais. Grandes empresas de tecnologia (as chamadas big techs) como Meta, Google, Twitter e Telegram acusam o PL de ser antidemocrático, ameaçar a liberdade de expressão e responsabilizar demais as empresas de uma forma que pode levar a uma “enxurrada de processos judiciais”. Entenda a seguir quais são os argumentos das big techs nas ações em discussão no STF e contra a aprovação do PL das Fake News. Fim do Matérias recomendadas O PL 2630 discute vários temas, mas um dos mais controversos diz respeito à criação de novas regras para a moderação de conteúdo por parte das plataformas digitais. A última versão do documento estipula que elas poderão ser punidas se não agirem “diligentemente para prevenir e mitigar práticas ilícitas no âmbito de seus serviços”. Essa nova abordagem é inspirada em uma legislação recentemente adotada pela União Europeia, a Lei dos Serviços Digitais (DSA, na sigla em inglês). Segundo as regras atuais, estabelecidas pelo artigo 19 do Marco Civil da Internet, as big techs não têm responsabilidade pelo conteúdo criado por terceiros e compartilhado em suas plataformas. De acordo com esse princípio, as empresas só são obrigadas a excluir conteúdos no Brasil em caso de decisão judicial. Mas se o projeto de lei for aprovado, as plataformas poderiam ser responsabilizadas civilmente pela circulação de conteúdos que se enquadrem em crimes já tipificados pela lei brasileira, como crimes contra o Estado Democrático de Direito, atos de terrorismo, racismo, entre outros. As big techs podem ser punidas quando esses conteúdos forem patrocinados ou impulsionados ou quando as empresas falharem em conter a disseminação do conteúdo criminoso, obrigação prevista pelo chamado “dever de cuidado”, um dos conceitos importados da legislação europeia. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Quatro ações devem ser julgadas pelo STF nos próximos meses. Elas questionam a constitucionalidade de trechos do Marco Civil da Internet — ou seja, se trechos dessa lei estariam em desacordo com princípios da Constituição e, por isso, devem ter sua aplicação alterada pela Corte. Duas delas discutem a validade do artigo 19, que estabelece que as plataformas digitais não podem ser responsabilizadas por conteúdos compartilhados pelos usuários, com exceção dos casos de "pornografia de vingança" (divulgação de imagens de nudez sem autorização da pessoa fotografada/filmada). Ou seja, o artigo 19 determina que as empresas, na maioria dos casos, só são obrigadas a apagar postagens após ordem judicial. As duas ações em julgamento tratam de casos concretos, mas a decisão terá repercussão geral, ou seja, fixará parâmetros gerais para o funcionamento das plataformas. Num dos casos julgados, uma professora processou o Google porque a empresa se recusou a apagar uma comunidade contra ela criada por alunos no Orkut, rede social que já não existe mais. A professora chegou a notificar extrajudicialmente a plataforma solicitando a exclusão da página antes de ingressar na Justiça, mas não foi atendida. No outro caso em análise, uma mulher processou o Facebook (rede social do grupo Meta) porque a empresa se recusou a apagar um perfil falso criado com seu nome para divulgar conteúdo ofensivo. As outras duas ações tratam da possibilidade de suspensão de aplicativos de mensagens como WhatsApp e Telegram em todo o país devido ao não cumprimento de decisão judicial. Elas foram movidas por partidos políticos (Cidadania e Republicanos) após juízes determinarem em 2015 e 2016 a suspensão do funcionamento do WhatsApp em todo o país porque a empresa não cumpriu decisão judicial para quebra de sigilo de conversas de usuários investigados criminalmente. O processo analisa a constitucionalidade da tecnologia de criptografia de ponta a ponta e se ela deve ser mantida em prol da privacidade dos usuários, mesmo em casos que envolvem apurações policiais. Os partidos que apresentaram as ações pedem que o STF proíba esse tipo de decisão, sob o argumento de que a suspensão desses aplicativos é desproporcional e viola o direito de livre comunicação de todos os cidadãos, previsto no artigo 5º da Constituição Federal. As companhias alegam que o tipo de monitoramento proposto pelo PL - e que pode ser fixado como parâmetro geral a depender das decisões do STF - transforma as plataformas em uma espécie de “polícia da internet” e pode levar a uma “enxurrada de processos judiciais”. Meta Em nota divulgada no final de abril, a Meta, conglomerado que engloba redes sociais como WhatsApp, Facebook e Instagram, afirmou que o projeto discutido pelo Congresso transfere para a iniciativa privada um poder que cabe ao Judiciário e cria “um sistema de vigilância permanente similar ao que existe em países de regimes antidemocráticos”. Já sobre as ações que aguardam julgamento no STF, a empresa afirmou em sua defesa que, no caso da mulher que processa o Facebook por se recusar a apagar um perfil falso criado com seu nome, não poderia remover conteúdos sem decisão judicial, sob risco de ferir a liberdade de expressão. "Ser obrigação dos provedores de aplicações na internet as tarefas de analisar e excluir conteúdo gerado por terceiros, sem prévia análise pela autoridade judiciária competente, acaba por impor que empresas privadas — como o Facebook Brasil e tantas outras — passem a controlar, censurar e restringir a comunicação de milhares de pessoas, em flagrante contrariedade àquilo estabelecido pela Constituição Federal e pelo Marco Civil da Internet", argumentou o Facebook na ação. Segundo a BBC Brasil apurou, também há uma oposição à visão de que o artigo 19 do Marco Civil represente uma forma de imunidade para as plataformas, como críticos argumentam. A intenção é fortalecer a ideia de constitucionalidade do artigo, ao defender que o Marco foi elaborado a partir de uma ampla discussão legislativa, com partipação popular, que ainda é atual. Ao mesmo tempo, defende-se dentro da empresa a possibilidade de manter uma moderação espontânea dos conteúdos impróprios, sem que isso se torne papel exclusivo das plataformas. Enquanto isso, nas ações que dizem respeito ao bloqueio dos aplicativos de mensagem, a apuração da BBC Brasil mostrou que há a expectativa de que o julgamento dessas ações abra precedentes que assegurem a constitucionalidade da tecnolgia de criptografia usada pelo WhatsApp em prol da privacidade dos usuários. Os advogados que representam a plataforma questionam, em sua manifestação oficial no processo, a ideia de que a criptografia atrapalha qualquer tipo de investigação conduzida pelas autoridades sobre crimes e irregularidades. A plataforma também afirma em seus posicionamentos que coopera ativamente com as autoridades e promove ações contra desinformação e disparo em massa de mensagens ilícitas. Google De forma semelhante à Meta, o Google, em um texto assinado por Marcelo Lacerda, diretor de Relações Governamentais e Políticas Públicas da empresa no Brasil, afirmou que as empresas de tecnologia terão que assumir “uma função exercida tradicionalmente pelo Poder Judiciário” caso o projeto legislativo seja aprovado no Congresso. “A incerteza do que pode ou não ser disponibilizado na internet levaria as empresas a restringir a quantidade de informações disponíveis, reduzindo a representatividade de vozes que existem nas plataformas. Isso violaria diretamente o princípio do acesso livre à informação, o que seria uma grande retrocesso na guerra contra conteúdos enganosos”, diz o artigo. Em nota enviada à BBC Brasil, o Google disse ainda que "abolir por completo regras que separam as responsabilidade civis das plataformas e dos usuários não necessariamente contribuiria para o fim da circulação de conteúdos indesejados nas plataformas de internet" e afirmou que não espera uma decisão judicial para a remoção de conteúdos que violam as políticas da plataforma. A empresa também reforçou a ideia de que mesmo boas políticas de moderação de conteúdo seriam incapazes de lidar com todos os conteúdos controversos, "na variedade e complexidade com que eles se apresentam na internet". Sobre a ação em análise no STF que avalia o pagamento de indenização a uma professora por conta da criação de uma comunidade no Orkut contra ela, o Google sustenta que não tem obrigação de pagar a reparação antes de uma determinação judicial. "Não sendo a Google possuidora do poder jurisdicional do Estado e não havendo qualquer conteúdo manifestamente ilícito no perfil objeto da lide, não se poderia esperar outra atitude sua do que aguardar o posicionamento do Poder Judiciário", disse a empresa em sua defesa. A professora que processou a rede social, por sua vez, argumentou ao STF que "admitir as razões da Recorrente (Google) seria correr o risco de se fazer da internet uma terra sem lei, onde anonimamente, invocando a liberdade de expressão e o direito de comunicação, praticar-se-á todo tipo de ato e crime sem vigilância, consequência ou punição alguma". Telegram Assim como as demais empresas, a companhia também afirmou que o projeto pode transferir poderes judiciais aos aplicativos, tornando-as “responsáveis por decidir qual conteúdo é ‘ilegal’ em vez dos tribunais”. O comunicado foi tirado do ar após a ordem do Judiciário, mas em nota enviada à reportagem o Telegram afirmou que “mantém sua análise e acredita que as leis que afetarão a vida de dezenas de milhões de pessoas exigem atenção pública e um período razoável de debate”. O aplicativo afirmou ainda que, se o PL for aprovado com a redação atual, provavelmente não conseguirá mais continuar atuando no Brasil. Sobre os casos em julgamento no STF, a empresa não se manifestou até a publicação da reportagem. Twitter Outro gigante da tecnologia que tem se mobilizado contra a aprovação do PL, o Twitter publicou um manifesto conjunto contra o projeto em fevereiro de 2022, afirmando, na época, que o PL “traz exigências severas caso as plataformas tomem alguma medida que seja posteriormente questionada e revertida”. “O receio de uma enxurrada de processos judiciais levará as plataformas a agir menos na moderação de conteúdo, deixando o ambiente on-line mais desprotegido do discurso de ódio e da desinformação. Isso vai totalmente na contramão das demandas da sociedade pela preservação de um debate público saudável, confiável e em igualdade de condições”, diz a carta. A BBC News Brasil procurou a empresa por e-mail para um posicionamento mais atualizado, mas obteve como resposta automática apenas um emoji de fezes, que se tornou o padrão da rede social para questionamentos da imprensa. O PL 2630/2020 também trata de outros temas que preocupam as companhias, além do monitoramento de conteúdo, e que não serão discutidos pelo STF. Um deles é a remuneração por conteúdos jornalísticos que circularem em suas plataformas. A proposta estabelece que terá direito à remuneração qualquer empresa em funcionamento há ao menos 24 meses, mesmo se individual (apenas um jornalista), que “produza conteúdo jornalístico original de forma regular, organizada, profissionalmente e que mantenha endereço físico e editor responsável no Brasil”. Caso o texto seja aprovado, a negociação poderá ser feita de forma individual entre veículos e empresas, ou de forma coletiva. Em seus posicionamentos, a Meta afirma que a proposta não é clara sobre como a lei afetaria relações e práticas comerciais por conteúdo com direitos autorais e cria “um ambiente incerto, confuso e insustentável”. “A lei proposta também não define o que é ‘conteúdo jornalístico’. Isso pode levar a um aumento da desinformação, e não o contrário. Imagine, por exemplo, um mundo em que pessoas mal intencionadas se passam por jornalistas para publicar informações falsas em nossas plataformas e sermos forçados a pagar por isso”, diz a Meta. Outra novidade da última versão do PL é a previsão de novas regras para remuneração de conteúdo protegido por direitos autorais, como músicas e vídeos. Sobre esse ponto, o Google afirmou que se o projeto for aprovado as plataformas não poderiam mais oferecer serviços gratuitos de hospedagem ou compartilhamento de conteúdo sem pagar aos criadores que desejam usar seus produtos. “Isso significa que poderá deixar de ser viável financeiramente para as plataformas oferecer serviços gratuitos”, afirmou a empresa. Para a pesquisadora da fundação Alexander von Humboldt e ativista da coalizão Direitos na Rede, Bruna dos Santos, as plataformas têm problemas com o processo de adaptação e custos que serão necessários caso as mudanças sejam implantadas. “As plataformas afirmam que não existe um mecanismo ou algoritmo que seja capaz de barrar absolutamente todo o conteúdo que está listado como irregular no projeto”, diz Santos, que tem atuado pela aprovação do PL. “Por isso há um temor da responsabilização imediata, sem que elas tenham tempo para empreenderem os esforços necessários para conter esse tipo de conteúdo.” Segundo a ativista, o mesmo argumento foi usado durante o período de discussão do chamado Network Enforcement Act (NetzDG), uma versão semelhante ao projeto de lei brasileiro que entrou em vigor em 2018 na Alemanha. No Brasil, porém, ela acredita haver uma falta de investimento em tecnologias específicas capazes de detectar infrações comuns ao contexto nacional ou cometidas na língua portuguesa. “Pode ser que de fato haja uma incapacidade em detectar todo e qualquer conteúdo, mas a falta de times que compreendam o contexto e as especificidades da sociedade brasileira, após tantos anos, é algo bastante problemático e pode ditar a complacência dessas empresas com conteúdos extremistas.” A pesquisadora afirma ainda que a resistência em torno dos trechos que tratam de direitos autorais e remuneração de conteúdos jornalísticos também está ligada à questão financeira. “A demanda é para que esses atores compartilhem parte do bolo, ou seja, do lucro que acumulam com o compartilhamento desses conteúdos jornalísticos, artísticos etc”, diz Santos. “Os autores desses conteúdos muitas vezes não são devidamente remunerados.” O advogado constitucionalista e especialista em direito digital André Marsiglia também vê relação entre a oposição das big tech e o aumento nos investimentos. “Essas mudanças trariam a necessidade de um ajuste tecnológico muito grande e, portanto, muitos gastos”, diz. Mas Marsiglia, que vê problemas na redação do PL 2630/2020 e defende outras soluções para a regulamentação, concorda com a posição adotada pelas empresas de tecnologia de que o projeto responsabilizaria demais as plataformas pela moderação. “O PL transfere o poder que hoje é do Judiciário de classificar conteúdos como ilícitos, nocivos, discurso de ódio ou desinformação para as plataformas - e ameaça aplicar multas caso esse gerenciamento não seja feito corretamente", diz. Para o advogado, esse arranjo poderia levar a um cenário de remoção exagerada de conteúdos e até censura. “Por outro lado, o PL não avança em um ponto muito importante dessa discussão, que é a transparência. Não sabemos totalmente como os algoritmos dessas plataformas atuam e, por exemplo, como e porque escolhem promover um conteúdo ao invés do outro. Isso deveria estar incluído no texto.”
2023-05-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2q1l2y2735o
brasil
As dicas de negociadores de paz para reconciliar Brasil polarizado
Nas últimas décadas, a mediação de conflitos virou uma espécie de ciência. Hoje há vários cursos universitários e pesquisadores dedicados ao tema, e técnicas desenvolvidas por eles já ajudaram a encerrar guerras em vários países. Esses métodos também vêm ganhando espaço em sistemas judiciais, onde são empregados como alternativas ao encarceramento e em conciliações entre vítimas e ofensores. Será que essas práticas poderiam ser úteis para uma sociedade brasileira tão polarizada? Mediadores experientes teriam dicas a compartilhar com brasileiros que brigaram com parentes ou amigos por causa da política? Apresentado pelo repórter João Fellet, o podcast trata de conflitos que dividem a sociedade brasileira. Os episódios vão ao ar às sexta-feiras. Ouça um trecho: Fim do Matérias recomendadas Afonso Celso Prazeres de Oliveira, de 83 anos, é um expert em mediação de conflitos, ainda que nunca tenha estudado o tema. Ele é síndico desde 1993 de um dos maiores edifícios do Brasil, o Copan, no centro de São Paulo. O Copan tem 1.160 apartamentos e cerca de 5 mil moradores — ou seja, é mais populoso do que muitas cidades brasileiras. Ele diz que o período mais difícil que enfrentou como síndico foram os anos 1990. Na época, o Copan era um grande ponto de tráfico de drogas e de prostituição. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Afonso diz que o combate às atividades lhe rendeu ameaças, e ele teve até que passar um tempo usando colete à prova de balas. Hoje, os problemas parecem ter sido superados, e o Copan se tornou um dos edifícios mais valorizados da região. Mas há outra explicação para o sucesso do síndico, segundo moradores ouvidos pelo podcast Brasil Partido: a forma como ele lida com brigas entre condôminos. “Aprendi ao longo do tempo a ouvir as pessoas. Quando é necessário o silêncio, ele permanece. Salvo o contrário, (faço) uma ou outra observação, nunca desfavorável”, afirma o síndico. “Tento sempre conversar com os dois lados, porque só ouvir uma parte você não vai fazer juízo do problema.” Ele diz que já viveu outros dois momentos de polarização intensa no Brasil: o segundo mandato de Getúlio Vargas (1951-1954) e a ditadura militar (1964–1985). Para ele, o conflito político atual “é uma repetição da história com personagens novos”. Segundo Afonso, Lula e Bolsonaro são reflexos “de um passado recente que não mudou e talvez tão cedo não vai mudar”. Mesmo sem jamais ter estudado mediação de conflitos, Afonso segue alguns preceitos dos especialistas nesse campo, como o de buscar ouvir, não fazer julgamentos sobre os interlocutores e jamais tomar partido numa disputa. Esses preceitos são alguns dos pilares de uma filosofia hoje usada para mediar conflitos em diferentes ambientes: a comunicação não violenta. Juliana Calderón é consultora em comunicação não violenta do Instituto Tiê, que dá treinamentos sobre esse tema em empresas. Ela diz que chegou a esse campo depois de ajudar a mediar a separação de seus pais. “Ali eu percebi essa minha aptidão para tentar conciliar”, conta. Mas foi só após se formar na faculdade de Comunicação que ela conheceu a obra do psicólogo americano Marshall Rosenberg, o principal teórico da comunicação não violenta. Morto em 2015, Rosenberg dizia que por trás de todo comportamento humano existe alguma necessidade: ser ouvido, respeitado, se sentir seguro, reconhecido, amado etc. Para ele, uma pessoa agride outra quando sente que alguma necessidade dela não foi atendida. Nesse caso, o que uma pessoa que usa a comunicação não violenta faz é buscar as razões que levaram o outro a ser agressivo, em vez de retribuir a agressão. Juliana conta que o emprego da comunicação não violenta numa discussão exige trocar julgamentos por fatos. Por exemplo: se uma pessoa está chateada com um amigo que não atendeu seus telefonemas quando ela precisava de ajuda, a pessoa deve evitar falas como “você não se importa comigo”, ou “você não tem consideração pelas pessoas”. Em vez disso, diz Juliana, a pessoa deve citar fatos: “Tentei te ligar X vezes, precisava muito da sua ajuda, mas você levou tantas horas para me atender”. Segundo Juliana, quando a conversa segue esses parâmetros, é mais fácil descobrir por que o amigo não atendeu os telefonemas e buscar uma conciliação que considere as necessidades das duas partes. Para ela, muitas brigas sobre política poderiam ser evitadas se as pessoas seguissem os princípios da comunicação não violenta. Juliana diz, inclusive, que a polarização política no Brasil é também um problema de comunicação. “A forma como a gente vê o mundo dessa maneira binária, dualista, está impregnada na nossa comunicação. Tem um conflito de ideias entre duas pessoas e a gente já está assim: ‘Quem é o certo, quem é o errado?’”, afirma. “Então a gente fica cada um na sua bolha, xingando a outra bolha e vivendo em realidades paralelas que não se afetam mutuamente.” A comunicação não violenta também tem sido usada para lidar com conflitos graves que chegam à Justiça. Joana Blaney e a Mariana Pasqual Marques trabalham no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular (CDHEP), uma ONG que funciona há décadas num casarão azul no Capão Redondo, na zona sul de São Paulo. A organização foi fundada em 1989 a partir de uma Comissão Pastoral da Arquidiocese de São Paulo. Joana e Mariana não são apenas mediadoras de conflitos: os métodos que elas empregam também buscam reparar os danos causados pela violência e reconciliar as pessoas envolvidas no caso. Depois de fazer Mestrado em Educação e de trabalhar como professora e diretora de escolas em Washington e na Filadélfia, Joana chegou ao Brasil no fim dos anos 90 como voluntária da Maryknoll, um dos principais órgãos missionários da Igreja Católica nos Estados Unidos. No início, ela trabalhou em favelas de São Paulo, ajudando comunidades a se organizarem. Alguns anos depois, Joana conheceu um projeto criado pelo padre colombiano Leonel Narvaez, as Escolas de Perdão e Reconciliação. Nessas escolas, vítimas da guerra civil na Colômbia — inclusive ex-combatentes — aprendiam a ler e escrever ao mesmo tempo em que eram estimuladas a falar sobre emoções. Muitos deles já eram adultos, mas nunca tinham se alfabetizado. As pessoas traziam para os encontros palavras que eram significativas para elas, como raiva, luta, medo e ódio. Então elas dialogavam sobre suas vidas e sobre os sentimentos que essas palavras despertavam. Depois, conforme aprendiam a escrever, as palavras podiam ser desconstruídas: as letras eram reposicionadas para formar outras palavras que remetessem a sentimentos menos dolorosos e mais pacíficos. As Escolas de Perdão e Reconciliação deram tão certo na Colômbia que se espalharam por vários outros países com altos índices de violência, incluindo o Brasil. “Fomos treinados para ser facilitadores e vimos como este curso ajudou muito as pessoas a se recompor dentro e ir para frente com sua vida, depois lidando com as dores e os traumas de uma maneira bem saudável”, diz Joana. A experiência com as Escolas de Perdão e Reconciliação aproximou a Joana de um campo em que ela se tornaria uma referência no Brasil: a Justiça Restaurativa. Trata-se de uma filosofia de resolução de conflitos não punitivista e em grande parte inspirada em práticas de diferentes povos indígenas e comunidades tradicionais. É o caso, por exemplo, dos Círculos de Construção de Paz, uma prática inspirada em tradições de povos indígenas canadenses. Nesses círculos, a pessoa que causou algum dano se reúne com as pessoas prejudicadas e outros membros da comunidade para debater sua ação e formas de remediá-la. Nesse modelo, o ofensor não é punido nem apartado da sociedade. O foco desse sistema é a reparação do dano, e o ofensor inclusive participa da construção de um acordo com esse objetivo. A reparação pode incluir trabalhos comunitários e uma indenização financeira às vítimas, além de demonstrações de remorso e arrependimento por parte do ofensor. “Tem bem menos reincidência, porque, comparado com mandar todo mundo para o presídio, a pessoa entende melhor o impacto (de seu ato) e já vai reparar o dano fazendo esse acordo com a própria vítima ou a família da vítima”, diz Joana. Segundo ela, como o ofensor não é preso, “tem condições de alugar um lugar para morar, de ter um emprego. Então, isso para mim é reabilitação”, afirma. Vários países têm incorporado práticas desse tipo em seus sistemas de Justiça, normalmente para lidar com crimes de menor gravidade — e desde que todas as partes do processo concordem. No Brasil, hoje pelo menos dez Estados têm tribunais com núcleos de Justiça Restaurativa onde atuam facilitadores formados pelo CDHEP. “Nossa ideia realmente é parar o encarceramento em massa que estamos vendo aqui no Brasil”, diz Joana. Para Mariana, no sistema de Justiça atual, que enfoca a punição, muitos infratores jamais têm de lidar com o impacto de suas ações nas vítimas. Ela conta que, ao trabalhar com Justiça Restaurativa em presídios de São Paulo, conheceu muitos detentos que nunca tinham refletido sobre as consequências de seus atos. “Claro, porque é um sistema de tanta reprodução da violência, que ele mesmo entra no lugar de vítima. Primeiro ele precisa ser reconhecido como vítima para depois ele entrar nesse processo de ‘olha, eu cometi um erro que não é aceitável e eu preciso reparar ele’. E aí alguns desses homens pediam para conversar com as suas vítimas”. É possível aplicar as técnicas que Joana e Mariana usam na Justiça Restaurativa para falar sobre política e reconciliar parentes que brigaram por causa desse tema? “É possível”, diz Joana. “O que me ajuda muito é lembrar que cada pessoa tem sua história, suas experiências e o direito de pensar e acreditar o que ela acredita, desde que não faça mal para a outra pessoa”. “Por que eu preciso convencer o outro que eu estou certa? Por que eu não posso tentar dialogar com o outro fazendo perguntas?”, questiona. Para Mariana, para que as pessoas saibam travar conversas difíceis, elas precisam aprender a nomear sentimentos. Segundo ela, porém, nas escolas, “a gente não tem nenhum tipo de letramento mais sentimental, de lidar com as coisas, de identificar — muito pelo contrário”. Mariana defende a construção de uma cultura de diálogo, o que envolve transformar instituições públicas como hospitais e escolas em espaços de diálogo. “Vai na unidade básica de saúde ser atendido para ver se é um espaço democrático. Você não vai falar nada”, critica. O Brasil não vive uma guerra civil, mas a história mostra que esse é um caminho possível quando uma sociedade se fragmenta. Foi o que aconteceu na Colômbia, onde décadas de conflitos entre guerrilhas e forças do governo provocaram cerca de 800 mil mortes, segundo a Comissão da Verdade da Colômbia. O conflito ficou mais próximo de um desfecho em 2016, quando a principal guerrilha colombiana, as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), assinou um acordo de paz com o governo do país. Negociado ao longo de quatro anos, o pacto mostrou que inimigos eram capazes de se sentar à mesa e chegar a um entendimento, mesmo depois de tantas mortes e tanta dor. O Brasil teria algo a aprender com esse processo? Sergio Jaramillo foi o chefe da delegação do governo colombiano que negociou o acordo de paz com as Farc. Ele cita ao podcast Brasil Partido três elementos que foram essenciais para o sucesso das negociações. O primeiro foi definir regras para as tratativas de paz que atendessem todos os lados, algo que ajudou a aproximar as partes. O segundo ponto foi estimular as partes, incluindo os militares colombianos, a reconhecer os impactos de suas ações e a lidar com as vítimas desses atos. Jaramillo diz que essa diretriz não é válida só para crimes de guerra: quando alguém reconhece seus erros, quem foi prejudicado por esse erro também se sente reconhecido. Por outro lado, quando uma parte se recusa a reconhecer as dores e necessidades da outra, o distanciamento entre elas tende a crescer até ficar intransponível. O último ponto foi criar espaços de encontro entre grupos que normalmente não conversam uns com os outros. Nas áreas da Colômbia mais afetadas pela guerra civil, sentavam-se à mesma mesa fazendeiros, sindicalistas e líderes religiosos — grupos com posições políticas diversas e muitas vezes antagônicas —, para debater formas de lidar com o conflito. Os encontros foram batizados de Diálogos Improváveis. A premissa era: não dava para encerrar o conflito por uma decisão de governo. As autoridades podiam ser facilitadoras, mas os diferentes segmentos da sociedade colombiana é que tinham de se entender. Apesar das dificuldades, Jaramillo diz que lentamente a paz vai criando raízes na Colômbia. Não por mérito das autoridades, mas porque “as pessoas nos territórios resolveram abrir espaços de diálogo, não se render às adversidades e tocar a paz adiante”.
2023-05-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/clk4jygg21po
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Vídeo, Como lei que inspirou Deltan Dallagnol levou à sua cassaçãoDuration, 5,24
Por unanimidade, os ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiram, em 16 de maio, cassar o registro de Deltan Dallagnol (Podemos-PR) como deputado federal. O relator do caso, ministro Benedito Gonçalves, afirmou que Dallagnol cometeu uma "fraude" contra a Lei da Ficha Limpa ao pedir exoneração do Ministério Público Federal 11 meses antes das eleições, enquanto enfrentava processos internos no MPF que poderiam levar à sua demissão — e, em consequência, à sua inelegibilidade. Neste vídeo, nossa repórter Giulia Granchi explica o caso e conta também como uma lei que foi amplamente defendida por Dallagnol – a da Ficha Limpa – durante seu período como coordenador da operação Lava Jato acabou sendo usada para embasar sua cassação. Assista e confira.
2023-05-18
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-65632368
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PM que fuzilou dois colegas era conhecido pela gentileza e falou com a BBC um mês antes do crime
Um homem calmo, educado, respeitoso e, principalmente, gentil. Assim é descrito o sargento Claudio Henrique Frare Gouveia, de 53 anos, por conhecidos, colegas de farda, comerciantes próximos ao batalhão onde ele trabalhava, nas redes sociais e por alunos de uma associação onde ele ensinava patinação. Mas, na segunda-feira (15/5), ele teria usado um fuzil para matar dois colegas de farda, o sargento Roberto da Silva e o capitão Josias Justi, comandante da PM na cidade de Salto, no interior de São Paulo. Em seguida, Gouveia se entregou a outro policial. A motivação do crime ainda não foi esclarecida oficialmente, mas a reportagem apurou que o duplo homicídio pode ter sido provocado por frequentes desentendimentos entre os policiais, principalmente por conta das escalas de trabalho. Casado, o capitão Justi deixa dois filhos, de 3 e 5 anos. Já o sargento Silva, também casado, deixa três filhos, de 15, 18 e 29 anos. Ambos foram enterrados no cemitério Pax, em Sorocaba. Fim do Matérias recomendadas Procuradas, a Secretaria da Segurança Pública e a Polícia Militar não deram detalhes sobre o caso e se resumiram a dizer, por meio de uma nota, que "todas as providências de Polícia Judiciária Militar estão em andamento neste momento e a Corregedoria da Instituição acompanha as apurações". Há um mês, a reportagem da BBC News Brasil entrevistou o sargento Claudio Gouveia. Durante uma conversa de quase uma hora, a reportagem buscou entender por que ele era considerado nas redes sociais, especialmente no YouTube, um dos policiais "mais gentis do Brasil" e o que ele pensava disso. Durante a entrevista, o sargento Gouveia agradeceu os elogios recebidos nas redes sociais e afirmou que apenas fazia o trabalho dele, seguindo o manual da Polícia Militar. "A polícia foi aprendendo [ao longo dos anos] com as situações adversas que ela foi encontrando e foi melhorando. Não tive nenhuma ocorrência grave na minha vida, na minha carreira. Hoje, eu estou com 32 anos de polícia. Passei por diversos batalhões por consequência do meu trabalho", afirmou. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na terça-feira (16/5), a BBC foi até Salto, onde conversou com dezenas de pessoas, entre testemunhas do crime, comerciantes da região e também com a mulher de Gouveia. A intenção foi saber mais sobre o que motivou a atitude do sargento contra seus colegas. A reportagem teve acesso ao boletim de ocorrência feito pela Polícia Militar, que contém o depoimento de 12 policiais militares que estavam no batalhão no momento do duplo homicídio. De acordo com as testemunhas, por volta das 9h, Gouveia disse para os militares que haveria um treinamento, que seria feito com fuzis na parte externa do batalhão, e pediu para que todos saíssem do prédio e fossem até o local. Quando todos saíram, dizem as testemunhas, ele trancou a porta e foi para a sala onde estavam as vítimas. Um policial disse à reportagem que, no caminho, ele passou pelo setor administrativo e fez um alerta. "Ele disse para as pessoas não se preocuparem porque não aconteceria nada com elas. Que poderiam ouvir barulhos, mas que ficaria tudo bem com as outras pessoas da equipe", afirmou à reportagem um policial que pediu para não ser identificado. Armado de um fuzil, ele fez diversos disparos contra Roberto da Silva e Josias Justi, contam as testemunhas. As vítimas chegaram a ser socorridas pelo helicóptero Águia da PM, mas não resistiram aos ferimentos. Logo após os tiros, Gouveia algemou a si mesmo e se entregou, segundo sua defesa. A previsão era de que ele passasse por uma audiência de custódia na terça-feira (16/5) para decidir se ele seria solto ou mantido preso no presídio Romão Gomes, dedicado a policiais militares, na zona norte da capital paulista. No entanto, ele passou mal e a audiência foi remarcada para esta quarta (17/5). Com bandeiras a meio mastro, o batalhão funcionou normalmente no dia seguinte, mas com um profundo clima de tristeza. Os policiais dizem que a tropa está psicologicamente abalada. "Está todo mundo arrasado. Ninguém tem condições de trabalhar aqui hoje. O enterro estava lotado e a nossa equipe foi ao velório. Ninguém consegue acreditar no que aconteceu", relatou um dos PMs à reportagem. Uma comerciante da região, que pediu para não ser identificada, disse que o sargento era visto frequentemente ajudando pessoas, como vizinhos e moradores de rua. "Foi por causa dessa bondade dele que as pessoas ficaram chocadas quando descobriram que foi ele [o autor do crime]. É inacreditável", exclamou. Outro, disse que faria um almoço para os soldados nesta semana e que já tinha inclusive comprado as carnes, a pedido do capitão Josias Justi. "Eu não tenho do que reclamar de nenhum deles. Conheço os policiais desse batalhão e não tem como acreditar no que aconteceu, principalmente o Gouveia. Eu não julgo porque não sei o que passou na cabeça dele, mas foi algo completamente imprevisível", afirmou à reportagem. Questionado sobre quais seriam as possíveis motivações, o policial se resumiu a dizer: "Muita pressão". Na terça, a BBC também conversou por telefone com a mulher do sargento Gouveia. Ela disse que, ao menos por enquanto, não vai comentar o caso. Mas mandou algumas fotos do policial durante as aulas de patinação e afirmou que ela está extremamente abalada. Procurada, a Polícia Militar não informou se Gouveia e a mulher dele, também PM, recebiam acompanhamento psicológico nem mesmo qual seria a motivação do crime. A reportagem não conseguiu contato com as famílias das vítimas do crime. Nascido no Paraná e criado em Araçatuba, no interior de São Paulo, o sargento Gouveia já atuou também na capital paulista, em batalhões da zona sul e central. Em Salto há dez anos, ele contou para a BBC que entrou na polícia por influência do pai. "Ele foi agricultor por muito tempo, analfabeto. Era o sonho dele entrar no Exército ou virar policial. E parte dos brinquedos que ele dava para a gente eram viaturas e distintivos. Nisso, servi o Exército e surgiu a oportunidade de prestar concurso. Prestei, passei e estou até hoje, incentivado pelo meu pai", contou ele. Ele disse ter iniciado a carreira na polícia em 1991 e que se orgulhava de não ter se envolvido até então em nenhuma ocorrência grave. Durante toda a entrevista, ele manteve um tom elogioso à corporação e citou uma evolução na conduta da tropa como um todo. Em um vídeo de pouco mais de um minuto, registrado por uma câmera acoplada ao capacete de um motociclista abordado na região de Salto, o sargento Gouveia conversa com o homem de maneira cordial e respeitosa. Com uma postura receptiva e sem armas em punho, ele pergunta o nome e o que o piloto está carregando no baú. "Marmita e bolo", responde o motociclista na sequência. "Senhor [nome do motociclista], está sendo desencadeada a Operação Rodovia Mais Segura em todo o Estado de São Paulo, simultaneamente. Desce um pouquinho (da moto), põe no pezinho e apresente o documento do senhor", disse com calma o experiente sargento Gouveia. "Esse policial tem meu completo e absoluto respeito. Policial digno e exemplar. Que pena que nem todos são assim tão simpáticos", diz o mais curtido deles. Entre as dezenas de comentários que rasgam elogios ao sargento, um deles também destaca o comportamento do oficial sem a farda. "Ele é meu treinador de hóquei. Ele é um dos melhores policiais que já conheci. Conheço ele de farda e na casa dele. Um exemplo de cidadão e de policial. Ele tem um projeto social onde ensina patinação aqui no meu bairro. Ele é muito respeitado na comunidade local", afirmou. Durante a entrevista à BBC News Brasil, os momentos que mais empolgaram o sargento Gouveia foram quando ele foi perguntado sobre as aulas de patinação que oferecia no bairro onde morava em Salto. "A minha atuação na comunidade lá se destaca. A gente consegue atingir mais de 300 pessoas, entre os que já saíram, que se formaram, e os que ficaram e hoje são voluntários. Nós hoje temos psicólogos, professores de história, profissionais liberais. Todo tipo de pessoa. Alunos, adolescentes que se tornam instrutores, ficam lá dentro do Instituto e continuam dando aula de patinação. Tudo de graça", contou. São 30 voluntários que participam das aulas gratuitas. Até mesmo o equipamento é oferecido pelo sargento. As pessoas que se destacam são chamadas para participar do time de hóquei da cidade, apelidado de Jump City, uma brincadeira com o nome da cidade em inglês. "O nosso foco aqui é só cuidar da criançada, da população", afirmou. Na entrevista, o sargento Gouveia criticou quem usa casos de violência policial para generalizar o comportamento da corporação. "Ocorre uma ocorrência lá no Amazonas e a pessoa não diz que foi lá no Amazonas, que foi aquele policial. Uma ocorrência foi lá no Pará. Você teria que falar: 'Foi um policial militar lá do Pará que cometeu aquela ocorrência e está sendo submetido a todo tipo de situação administrativa, respondendo por um fato que se tornou crime'. [Mas] não, a pessoa fala 'a Polícia Militar'. Hoje, com a globalização e a disseminação da notícia, é muito fácil. As pessoas acabam colocando no mesmo tonel", afirmou. Na ocasião, o sargento ressaltou as qualidades que um policial deve ter para lidar com o público e não se exaltar durante uma abordagem, por exemplo. "Para lidar com ocorrência, com o público, o policial militar precisa estar preparado emocionalmente, estar preparado espiritualmente, sabendo que ele corre o risco de ser ofendido e não levar para o lado pessoal, apenas profissionalmente. Então, se houver necessidade do emprego da força, será feito um escalonamento conforme está no manual. Mas o que eu posso adiantar é que isso é difícil de acontecer, uma vez que, se você vai trabalhar, você já está no controle de desviar de toda aquela energia negativa", explicou. No fim da conversa, a reportagem da BBC pediu que o sargento Garcia mandasse um recado para as pessoas que criticam e têm medo do trabalho da PM, e também aos policiais que agem de maneira truculenta. "Eu posso dizer para tu, tanto para os policiais militares, quanto para a população amiga num contexto geral. A Polícia Militar está aqui para servir e proteger. E posso dizer que todos nós policiais militares estamos atuando sobre a proteção de Deus, que é o ser mais divino que tem. Sob a proteção dele, a gente atua na defesa da vida, da dignidade da pessoa humana, de todos os direitos, integridade física, de tudo o que tem que ser preservado. Essa é a atuação da Polícia Militar", afirmou. E encerrou com um convite. "Eu quero agradecer a oportunidade. Muito obrigado. Você é um excelente profissional. E fica aberto um convite para você tomar café conosco e conhecer o nosso coronel. Esse pensamento que eu tenho é o mesmo do nosso coronel, o [Emerson] Drague. Ele atua com o batalhão dessa forma. É assim que ele comanda os policiais, assim ele quer que os policiais trabalhem. Ele é um excelente comandante. Então, fica aberto o convite para o senhor vir para cá conhecer a turma, conhecer Itu, uma das cidades mais antigas do país. Eu espero que essa notícia brilhe a Polícia Militar". *Reportagem com a colaboração de Felipe Corazza
2023-05-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c8vr5vylgr0o
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Dallagnol cassado: ele pode recorrer da decisão? As respostas a esta e outras seis perguntas
Por unanimidade, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) decidiu cassar o mandato do deputado federal Deltan Dallagnol (Podemos-PR), ex-procurador que coordenou a força-tarefa da Operação Lava Jato em Curitiba. Dallagnol foi o primeiro parlamentar a perder o mandato na atual legislatura. Confira abaixo seis perguntas sobre o caso: O relator do caso, ministro Benedito Gonçalves, do TSE, afirmou que o ex-procurador cometeu uma fraude contra a Lei da Ficha Limpa ao pedir exoneração do Ministério Público Federal (MPF) 11 meses antes das eleições, enquanto enfrentava processos internos no MPF que poderiam levar à sua demissão — e, em consequência, à sua inelegibilidade. Para o relator, outra evidência de que Dallagnol pediu a exoneração para escapar da Lei da Ficha Limpa foi a de que ele pediu essa saída 11 meses antes das eleições, sendo que os membros do Ministério Público precisam se afastar apenas seis meses antes do pleito, caso queiram se candidatar para um cargo eletivo. A Lei da Ficha Limpa está em vigor desde 2010 e prevê critérios para impedir que pessoas condenadas por órgãos colegiados (tribunais de justiça, cortes de contas ou conselhos superiores) possam ser candidatas a cargos eletivos. Fim do Matérias recomendadas Em sua defesa, Dallagnol alegou que os processos no CNMP já estariam encerrados quando ele pediu a saída do MPF. "Os 2 processos disciplinares a que respondi estavam encerrados? Sim e provo com documentos de encerramento dos 2 únicos processos a que já respondi na vida, 1 por ter criticado decisões do STF e outro, Renan Calheiros. Os dois encerrados muito antes de minha saída do MP", afirmou ele em suas redes sociais. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Após a cassação, no Twitter, Dallagnol escreveu: "344.917 mil vozes paranaenses e de milhões de brasileiros foram caladas nesta noite com uma única canetada, ao arrepio da lei e da Justiça." "Meu sentimento é de indignação com a vingança sem precedentes que está em curso no Brasil contra os agentes da lei que ousaram combater a corrupção. Mas nenhum obstáculo vai me impedir de continuar a lutar pelo meu propósito de vida de servir a Deus e ao povo brasileiro." Em um pronunciamento no Salão Verde da Câmara na quarta-feira (17/5), Deltan Dallagnol disse aos jornalistas que os ministros dos TSE usaram uma “inelegibilidade imaginária” para cassar o mandato dele. O argumento foi o de que não existem processos administrativos disciplinares abertos contra ele. Para ele, o motivo do afastamento foi uma vingança. "Eu fui cassado por vingança, porque eu ousei enfrentar o sistema de corrupção", afirmou. "Hoje o sistema da corrupção está em festa", disse. E seguiu dizendo os nomes de quem estaria comemorando o revés dele. "Gilmar Mendes está em festa, Aécio Neves, Eduardo Cunha, Beto Richa estão em festa". E acrescentou: "Perdi o meu mandato porque combati a corrupção. Hoje, é um dia de festa para os corruptos e um dia de festa para Lula". Ele ainda insinuou que há uma influência do STF na decisão. "Eles conseguiram que sete ministros superassem decisões e pareceres unânimes anteriores e que me cassaram. Liderados por um ministro, que já disse o ministro Alexandre de Moraes na cerimônia de diplomação de Lula: 'missão dada, missão cumprida’. Liderados por um ministro que, ao encontrar Lula certa vez, disse: 'está tudo em casa'". A acusação contra Dallagnol partiu do Partido da Mobilização Nacional (PMN) e da Federação Brasil da Esperança, que inclui o Partido dos Trabalhadores (PT). Eles questionavam a regularidade do registro do ex-procurador. O Tribunal Regional Eleitoral do Paraná (TRE-PR) havia negado o pedido de impugnação do registro da candidatura de Dallagnol. Assim, o grupo de partidos recorreu ao TSE. O registro da candidatura é pré-requisito para um candidato disputar as eleições. Para os partidos, dois motivos justificariam a inelegibilidade de Dallagnol: 1. Condenação do Tribunal de Contas da União (TCU) por gastos com diárias e passagens de outros procuradores da Lava Jato; 2. Pedido de exoneração do MPF enquanto pendentes 15 procedimentos administrativos no Conselho Nacional do Ministério Público, que poderiam levar a penas como aposentadoria compulsória ou demissão. Sim. A decisão do TSE tem caráter automático, ou seja, Dallagnol já perdeu o mandato. Caberá ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do Paraná executar imediatamente a decisão, segundo a corte. Mas Dallagnol pode apresentar recurso junto ao TSE. E também levar o caso ao Supremo Tribunal Federal (STF). Vale lembrar que dois dos ministros do Supremo também são ministros do TSE (Alexandre de Moraes e Carmen Lúcia). No entanto, segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, o STF costuma ratificar decisões do TSE. Dallagnol foi o deputado federal mais votado do Paraná, com 344 mil votos. Os votos que o agora ex-deputado e ex-procurador recebeu no pleito de 2022 serão mantidos em favor de sua legenda, o Podemos, segundo o TSE. Em teoria, seu suplente, Luiz Carlos Hauly (Podemos), o substituiria. Mas Hauly teve menos de 12 mil votos, portanto, pode ser barrado pelo quociente individual, regra pela qual cada candidato precisa ser 10% do quociente eleitoral de seu Estado. Segundo o TSE, "o quociente eleitoral é o resultado do cálculo que divide o total de votos válidos pelo total de cadeiras nas casas parlamentares. O procedimento serve para definir os partidos que têm direito a ocupar as vagas nas eleições proporcionais, ou seja, para os cargos de deputado federal, estadual e distrital e de vereador". Com isso, a vaga seria herdada pelo pastor evangélico Itamar Paim (PL), de Paranaguá (PR), que teve 47 mil votos, apesar de ter ficado atrás de outros seis candidatos que não foram eleitos. Questionado pela BBC News Brasil, o PL, por meio de sua assessoria de imprensa, informou que "não há definido" e que o partido "continua brigando" pela vaga. No entanto, Marina Morais, advogada eleitoralista e presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-GO, diz que as duas possibilidades estão em aberto. "Os votos do deputado Dallagnol foram preservados para a legenda, porque na data do pleito o registro ainda não havia sido julgado pelo TRE/PR. Por essa razão, entende-se que os eleitores depositaram de boa-fé esses votos, e a anulação não serviria a um propósito democrático", argumenta. "Como os votos da legenda são preservados, assume o primeiro suplente. Esse caso é interessante porque o suplente não atingiu a Cláusula de Desempenho, mas recentemente o STF confirmou a constitucionalidade do artigo que dispensa a necessidade de votação nominal mínima nesse caso, na ADI 6657", acrescenta ela à BBC News Brasil. Segundo ela, isso se deve à decisão recente do STF que, por unanimidade, julgou válido dispositivo do Código Eleitoral que dispensa a necessidade de votação nominal mínima (cláusula de desempenho) para a definição de suplentes de vereadores e deputados estaduais e federais. A decisão foi tomada na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6657. Apesar disso, Morais ressalva que "há uma corrente que entende que, embora o partido tenha feito o quociente, como Hauly não tinha votos suficientes na primeira rodada de distribuição de cadeiras, o partido não poderia levá-las. É dizer, não existe exigência de votação nominal mínima para suplente, mas não existiria suplente sem titular". Não. Dallagnol ingressou no serviço público por meio de concurso em 2002, ano em que colou grau de Direito. Na ocasião, ele prestou concurso para juiz do Estado do Paraná, sendo aprovado em 2º lugar; para promotor de Justiça do mesmo Estado (1º lugar) e para procurador da República (10º lugar). Segundo Thaisa Figueiredo Lenzi, advogada e professora, especialista em Direito Administrativo e Administração Pública pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Dallagnol "optou por deixar a carreira pública e, portanto, não pode ser readmitido. Caso ele queira voltar, ele teria que prestar novo concurso". Ela acrescenta que, se Dallagnol tivesse sido demitido do serviço público, contudo, essa reintegração seria possível "por meio de uma sentença judicial ou administrativa invalidando sua demissão", o que não foi o caso. Lenzi explica que uma exceção seria se ele tivesse se arrependido da decisão "antes da publicação da portaria da exoneração", mas essa janela de oportunidade "já passou". Por algum tempo, não. Como seu registro de candidatura foi cassado pela Lei da Ficha Limpa, ele está inelegível pelos próximos oito anos.
2023-05-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cx8prq1jzwpo
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Collor: 'impichado', inocentado e, agora, condenado a mais de 8 anos de prisão
A movimentada vida política do ex-presidente e ex-senador Fernando Collor de Mello (PTB-AL) ganhou nesta quarta-feira (31/5) um marcante novo capítulo: aos 73 anos, ele foi condenado a 8 anos e 10 meses de prisão pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Collor já havia sido condenado pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro no último dia 25, mas a pena só foi definida pelo plenário do STF nesta quarta. A condenação é relacionada a um processo derivado da Operação Lava Jato e relativo a crimes envolvendo a BR Distribuidora. Uma eventual prisão não deve ocorrer imediatamente, já que a defesa pode apresentar recursos — os embargos de declaração, que visam resolver possíveis omissões, contradições, pontos obscuros e até erros de digitação em uma decisão judicial, mas geralmente não alteram o resultado do julgamento. Oito ministros votaram pela condenação e dois (Nunes Marques e Gilmar Mendes), pela absolvição. Fim do Matérias recomendadas Além dos 8 anos e 10 meses de prisão em regime inicial fechado, Collor deverá pagar 90 dias-multa e dividir com os outros dois réus na ação o pagamento de indenização no valor de R$ 20 milhões, por danos morais coletivos. Collor e Luis Amorim, um dos réus, também foram proibidos de exercer cargos públicos pelo dobro do tempo de suas penas. O ex-presidente foi quem teve a maior pena, proposta por Alexandre de Moraes. O ministro argumentou que a culpabilidade de Collor foi maior por ele ter praticado crimes durante o mandato e por ter usado sua influência política para obter benefícios particulares. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Luis Amorim foi condeando a três anos de reclusão em regime inicial aberto e Pedro Paulo, o terceiro réu no processo, a quatro anos e um mês de reclusão em regime inicial semiaberto. Procurada antes da condenação, a defesa de Collor negou qualquer irregularidade e sustentou que ele é inocente. Após a condenação, a defesa preferiu não comentar. "O processo inteiro é baseado nos depoimentos de delatores e não há provas que os corroborem", defendeu Marcelo Bessa, um dos advogados de Collor no processo, no início do julgamento no STF. "Em nenhum desses conjuntos de fatos o Ministério Público fez prova suficiente ou capaz de gerar a mínima certeza com relação à culpabilidade de Fernando Afonso Collor de Mello." O julgamento, iniciado em 10 de maio no STF, é referente a uma denúncia apresentada em 2015 pela PGR. Entre outras acusações, a PGR apontou que Collor, com a ajuda dos outros dois empresários condenados na ação, favoreceu a UTC Engenharia em contratos com a BR Distribuidora, recebendo para isso R$ 20 milhões. Com seu poder político, Collor teria influenciado nas indicações à diretoria da BR Distribuidora e facilitado a negociação de contratos. Boa parte das evidências do processo foram reveladas por delatores da Operação Lava Jato, como o doleiro Alberto Youssef, um dos primeiros a aderir à delação premiada durante as investigações. De acordo com a vice-procuradora geral da República Lindôra Araújo, além dos relatos dos delatores, teriam sido colhidas provas como e-mails, extratos bancários e outros documentos que comprovariam as acusações. Para o relator do caso no Supremo, ministro Luiz Edson Fachin, as provas colhidas pelo Ministério Público comprovaram que Collor exercia influência sobre o controle da BR Distribuidora e teria exercido seu poder para viabilizar os contratos com a UTC Engenharia. Para Fachin, ficou também comprovado que houve lavagem de dinheiro, através de 42 depósitos feitos em contas correntes do ex-presidente e 65 em contas de empresas por ele controladas, de forma a ocultar a movimentação de autoridades financeiras. Gilmar Mendes e Nunes Marques, que votaram pela absolvição, argumentaram que não foram apresentadas provas suficientes contra os acusados, apenas depoimentos e documentos trazidos por delatores. Para além do julgamento no STF, Collor protagonizou uma carreira política das mais movimentadas e polêmicas desde a redemocratização do país, na década de 1980. Ele é oriundo de uma das famílias mais tradicionais da política de Alagoas, os Collor de Mello. A família tem empresas e emissoras de rádio e televisão no Estado. Com esse prestígio, foi eleito governador de Alagoas em 1986. E então, Collor foi eleito presidente em 1989, nas primeiras eleições diretas à Presidência da República após a ditadura militar (1964 -1985). Em sua campanha, fez forte oposição ao então presidente José Sarney (atualmente no MDB) e defendia o fim de privilégios às chamadas elites da burocracia brasileira. Ao longo da disputa, ele ficaria conhecido como o "caçador de marajás", em alusão a funcionários públicos com altos salários. Collor venceu as eleições em um segundo turno apertado, disputado contra o hoje presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Seu governo, no entanto, foi marcado por diversas turbulências. Na área econômica, sua equipe tentou debelar a hiperinflação que afetava o país na época, mas não obteve sucesso. Uma das medidas mais controversas adotadas no período foi o confisco da poupança de milhões de brasileiros e brasileiras, em 1990. A medida limitou a quantidade de dinheiro que as famílias poderiam sacar de suas economias e pegou parte da população de surpresa. Ainda na área econômica, Collor deu início a um processo de abertura do país a produtos importados, especialmente em áreas como a indústria automobilística. Foi na área política, contudo, que o governo de Collor sofreu os maiores reveses. Nos primeiros meses de sua gestão, surgiram os primeiros rumores sobre a atuação do tesoureiro de sua campanha à Presidência, o empresário Paulo César Farias, conhecido como PC Farias. À época, os rumores eram de que o empresário teria pedido propina a empresários em troca de vantagens em contratos com o governo federal. Em 1992, seu irmão, Pedro Collor de Mello, concede uma entrevista à Revista Veja e diz que PC Farias era, na verdade, uma espécie de "testa de ferro" de Collor. As suspeitas eram de que despesas pessoais de Collor eram pagas com recursos de sobras da campanha de 1989. O então presidente negou as acusações. As declarações deflagram uma crise política que resulta em uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar as relações entre o presidente e o seu ex-tesoureiro. A crise se agravou e, em setembro de 1992, foi instaurado um processo de impeachment contra Collor. No dia 29 daquele mês, ele foi afastado temporariamente do cargo. O caso foi então à votação no Senado. Diante da possibilidade de ter seu afastamento comprovado e ter seus direitos políticos cassados por oito anos, ele renuncia no dia 29 de dezembro. Apesar disso, o Senado aprova o impeachment e cassa seus direitos políticos. Em 1994, apesar do impeachment, Collor foi absolvido em um processo criminal no STF em que foi acusado de ter tido suas contas pagas por corruptores. Na época, os ministros da Corte alegaram não terem encontrado provas suficientes sobre as acusações. Em 2002, Collor retornou à cena política. Disputou e perdeu as eleições para o governo de Alagoas. Quatro anos depois, em 2006, foi eleito senador, cargo para o qual foi reeleito em 2014. Foi justamente a partir de 2014 que ele, assim como outros políticos do país, passaram a ser alvos da Operação Lava Jato. Ele foi alvo de mandados de busca e apreensão cumpridos pela Polícia Federal no âmbito das investigações conduzidas pela operação. A partir de 2018, Collor se aproximou e se tornou um grande apoiador do então candidato à Presidência Jair Bolsonaro (PL). Em 2022, já no fim de seu mandato como senador, Collor disputou a eleição para o governo de Alagoas, mas perdeu para Renan Filho (MDB), filho do senador Renan Calheiros — que chegou a ser ministro da Justiça do governo de Collor, nos anos 1990. Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil no início do julgamento avaliaram que o processo terá pouco impacto sobre seu legado. "Apesar de ter sido o primeiro presidente da República após a redemocratização, o fato de ele ter sido alvo de um impeachment corroeu muito do capital político que ele poderia ter. Além disso, nos últimos anos, ele não se firmou como uma liderança regional representativa", disse o professor de Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing Fabio Andrade, que também coordena o Legislab, uma entidade que pesquisa o funcionamento do Poder Legislativo no Brasil. Para o professor de Ciência Política da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Marco Antonio Teixeira, ainda que Collor seja condenado, dificilmente a sentença contrária iria representar uma grande alteração no legado político de Collor. "Ele tem um passado maior do que qualquer novidade em termos de eventual condenação. Ele renunciou à Presidência da República e ela não foi considerada e nada supera isso. Hoje, ele não tem cargo algum. Se for condenado, o impacto será pequeno", disse Teixeira. Andrade destacou, porém, que uma condenação por um processo oriundo da Operação Lava Jato seria um fato inusitado. "Nos últimos anos, a gente viu uma série de decisões judiciais revertendo condenações ou mesmo invalidando processos que tiveram origem na Lava Jato. Seria um fato curioso ter um ex-presidente condenado em um processo de uma operação com um legado tão controverso", disse Andrade. As controvérsias em relação à Lava Jato se fortaleceram após 2019, quando foram divulgados os conteúdos de conversas supostamente mantidas entre procuradores da República que atuava na operação e então juiz federal (atual senador) Sergio Moro. Lideranças do PT e de outros partidos de esquerda alegaram que as conversas revelavam uma espécie de conluio entre os procuradores e o então juiz. Tanto os procuradores da Lava Jato quanto Moro negaram qualquer irregularidade. Nos últimos anos, porém, uma série de decisões reverteram condenações originadas em processos da operação. A mais conhecida delas foi a decisão do STF de anular as condenações contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) após a avaliação de que ele deveria ter sido julgado por outras varas que não a vara federal de Curitiba onde Moro atuou. Para Fabio Andrade, a condenação de Collor teria, porém, um impacto negativo na cena política. "Acho que uma possível condenação dele nesse caso, por ser um ex-presidente, reforçaria uma opinião negativa que a população brasileira já tem sobre a classe política em geral", avaliou.
2023-05-31
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4npdpdx0zgo
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Deltan Dallagnol cassado: por que procurador da Lava Jato foi punido pelo TSE
Por unanimidade, os ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiram cassar o registro de Deltan Dallagnol (Podemos-PR) como deputado federal na terça-feira (16/5). O relator do caso, o ministro Benedito Gonçalves, afirmou que Dallagnol cometeu uma "fraude" contra a Lei da Ficha Limpa ao pedir exoneração do Ministério Público Federal (MPF) 11 meses antes das eleições, enquanto enfrentava processos internos que poderiam levar à sua demissão — e, em consequência, à sua inelegibilidade. Gonçalves entendeu que o acusado deixou o cargo para "burlar" a inelegibilidade e disputar as eleições 2022. "Referida manobra impediu que os 15 procedimentos administrativos em trâmite no CNMP [Conselho Nacional do Ministério Público] em seu desfavor viessem a ensejar aposentadoria compulsória ou perda do cargo", destacou o ministro. "Ele se utilizou de subterfúgios para se esquivar de PADs [processos administrativos-disciplinares] ou outros casos envolvendo suposta improbidade administrativa e lesão aos cofres públicos. Tudo isso porque a gravidade dos fatos poderia levá-lo à demissão." Fim do Matérias recomendadas Dallagnol foi o deputado federal mais votado do Paraná, com 344 mil votos. Ele ainda pode recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF) — dois dos ministros do Supremo também são ministros do TSE (Alexandre de Moraes e Carmen Lúcia). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Após a decisão, o ex-procurador se pronunciou pelo Twitter e classificou a sentença como "uma canetada". "Meu sentimento é de indignação com a vingança sem precedentes que está em curso no Brasil contra os agentes da lei que ousaram combater a corrupção. Mas nenhum obstáculo vai me impedir de continuar a lutar pelo meu propósito de vida de servir a Deus e ao povo brasileiro", escreveu. A BBC News Brasil procurou a assessoria de imprensa de Dallagnol, mas não obteve resposta. Em um pronunciamento no Salão Verde da Câmara na quarta-feira (17/5), Deltan Dallagnol disse aos jornalistas que os ministros dos TSE usaram uma “inelegibilidade imaginária” para cassar o mandato dele. O argumento foi o de que não existem processos administrativos disciplinares abertos contra ele. Para ele, o motivo do afastamento foi uma vingança. "Eu fui cassado por vingança, porque eu ousei enfrentar o sistema de corrupção", afirmou. "Hoje o sistema da corrupção está em festa", disse. E seguiu dizendo os nomes de quem estaria comemorando o revés dele. "Gilmar Mendes está em festa, Aécio Neves, Eduardo Cunha, Beto Richa estão em festa". E acrescentou: "Perdi o meu mandato porque combati a corrupção. Hoje, é um dia de festa para os corruptos e um dia de festa para Lula". Ele ainda insinuou que há uma influência do STF na decisão. "Eles conseguiram que sete ministros superassem decisões e pareceres unânimes anteriores e que me cassaram. Liderados por um ministro, que já disse o ministro Alexandre de Moraes na cerimônia de diplomação de Lula: 'missão dada, missão cumprida’. Liderados por um ministro que, ao encontrar Lula certa vez, disse: 'está tudo em casa'". Em sua decisão, Gonçalves mencionou que o ex-procurador e coordenador da força-tarefa da Operação Lava Jato já havia sido condenado a penas de advertência e censura em dois PADs e que ainda "tinha contra si 15 procedimentos diversos em trâmite no Conselho Nacional do Ministério Público". Para o relator, outra evidência de que Dallagnol pediu a exoneração para escapar da Lei da Ficha Limpa foi a de que ele solicitou isso 11 meses antes das eleições, sendo que os membros do Ministério Público precisam se afastar apenas seis meses antes do pleito, caso queiram se candidatar para um cargo eletivo. A Lei da Ficha Limpa está em vigor desde 2010 e prevê critérios para impedir que pessoas condenadas por órgãos colegiados (tribunais de justiça, cortes de contas ou conselhos superiores) possam ser candidatas a cargos eletivos. Com a decisão do TSE, Dallagnol se tornou o primeiro parlamentar da atual legislatura a ter o mandato cassado. Os votos que o agora ex-deputado e ex-procurador recebeu no pleito de 2022 serão mantidos em favor de sua legenda, o Podemos. Caberá ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do Paraná executar imediatamente a decisão, segundo o TSE. A acusação contra Dallagnol partiu do Partido da Mobilização Nacional (PMN) e da Federação Brasil da Esperança, que inclui o Partido dos Trabalhadores (PT). Eles questionavam a regularidade do registro do ex-procurador. O Tribunal Regional Eleitoral do Paraná (TRE-PR) havia negado o pedido de impugnação do registro da candidatura de Dallagnol. Assim, o grupo de partidos recorreu ao TSE. O registro da candidatura é pré-requisito para um candidato disputar as eleições. Para os partidos, dois motivos justificariam a inelegibilidade de Dallagnol: 1) condenação do Tribunal de Contas da União (TCU) por gastos com diárias e passagens de outros procuradores da Lava Jato; 2) pedido de exoneração do MPF enquanto pendentes 15 procedimentos administrativos no Conselho Nacional do Ministério Público, que poderiam levar a penas como aposentadoria compulsória ou demissão. Em relação ao primeiro item, Benedito Gonçalves afirmou que uma liminar do STF que suspensão dos efeitos do acórdão do TCU que desaprovou as contas dos procuradores afastou a hipótese de inelegibilidade neste ponto específico. O senador Sergio Moro (União Brasil-PR), ex-juiz que decidiu pela condenação de vários acusados da Lava Jato, inclusive a do atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), também foi alvo de um pedido de inelegibilidade por uma tese parecida com a apresentada contra Dallagnol. Em dezembro, o TSE rejeitou a ação, concluindo que, apesar de haver reclamações contra Moro quando ele pediu sua exoneração, em 2018, nenhuma delas havia sido convertida em procedimento disciplinar e nenhuma delas poderia resultar em penalidades. Porém, ainda tramita no Tribunal Regional Eleitoral do Paraná (TRE-PR) um pedido de cassação contra Moro baseado em supostas irregularidades nos gastos de campanha e a prática de caixa 2 nas eleições do ano passado. A solicitação está sob segredo de justiça, e foi aberta pelo diretório paranaense do Partido Liberal, mesma sigla do ex-presidente Jair Bolsonaro. Na terça-feira, o ex-juiz da Lava Jato reagiu ao resultado do julgamento de Dallagnol pelas redes sociais e lamentou a cassação. "Estou estarrecido por ver fora do Parlamento uma voz honesta na política que sempre esteve em busca de melhorias para o povo brasileiro. Perde a política. Minha solidariedade aos eleitores do Paraná", escreveu. Ele não foi o único a comentar o caso. O ministro da Justiça, Flávio Dino (PSB), usou uma citação bíblica ao comentar a decisão do TSE, dedicando-a ao presidente Lula. "Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados!", escreveu. Dino também apontou que foi de sua autoria a emenda na Lei da Ficha Limpa que permitiu a cassação do mandato de Dallagnol. A proposta foi feita pelo ministro em 2010, quando ele era deputado. "Mas juro que não viajo no tempo, antes de que disso me acusem", escreveu Dino. Alvos da operação Lava-Jato, o senador Renan Calheiros (MDB-AL) e o ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha (PTB) comemoraram a cassação. "Tchau, querido", escreveu Cunha. Já Calheiros chamou Dallagnol de "pivete" e disse que a "Justiça tarda, mas não falha". A perda do mandato de Dallagnol com base na Lei da Ficha Limpa causa curiosidade no meio jurídico. Um dos principais motivos para isso é o fato de que, enquanto procurador, ele fez inúmeras defesas da regra. A partir de 2015, Dallagnol passou a liderar um movimento de coleta de assinaturas para que tramitasse na Câmara dos Deputados uma série de projetos de lei que ficaram conhecidas como "10 medidas" contra a corrupção. Dallagnol defendia a adoção do pacote como uma das formas de melhorar os mecanismos de combate à corrupção no país. Na época, ele costumava citar a tramitação da Lei da Ficha Limpa como um dos exemplos para o projeto. Assim como as "10 medidas", a Lei da Ficha Limpa também chegou ao Congresso Nacional a partir da coleta de assinaturas de cidadãos comuns e foi defendida por ele como um exemplo de mobilização popular contra a corrupção. No dia 18 de março de 2016, Dallagnol postou um vídeo ao lado do ex-juiz Marlon Reis, um dos idealizadores da Lei da Ficha Limpa, pedindo assinaturas para que o pacote das "10 medidas" fosse levado ao Parlamento. "Assine você também, apoie, vamos mudar nosso país, alcançar nosso sonho de ter um país livre da corrupção e da impunidade", dizia Dallagnol ao fim do vídeo. A reportagem entrou em contato com o escritório de advocacia de Maron Reis para que ele comentasse sobre o caso. Segundo o escritório, o idealizador da Lei da Ficha Limpa estaria viajando e retornaria a ligação quando possível. Até o fechamento desta reportagem, Reis não entrou em contato. O advogado Luiz Fernando Pereira afirmou antes do anúncio da decisão final que a possibilidade de Dallagnol perder o mandato com base na Lei da Ficha Limpa seria uma "ironia do destino". "É uma ironia do destino porque ele sempre defendeu essa lei, apesar das várias críticas que muitos operadores do direito têm em relação a ela. Apesar de ela, aparentemente ter uma boa intenção, ela vai na contramão do direito internacional ao criar muitas regras para restringir os direitos à elegibilidade", diz o advogado. À BBC News Brasil, Dallagnol disse, também antes da publicação do resultado final do julgamento, não ver "ironia" no fato de a lei que ele tanto defendeu estar sendo usada contra ele. "Eu não colocaria como uma ironia. (A lei da Ficha Limpa) é algo que eu sempre vou defender, mas eu não estava lá quando houve o movimento (para a aprovação da lei)", disse o deputado. O ex-procurador disse ainda que a ação movida contra ele é uma forma de ataque supostamente perpetrado pelo PT por conta de sua atuação durante a Lava Jato. "Na minha leitura, isso é uma tentativa do PT me derrubar, mas não se trata só do Deltan. Para eles, é uma tentativa de resgate e de redenção política do Lula. É uma forma de impor uma narrativa de que a Lava Jato foi, na realidade, uma perseguição política e não uma tentativa de construir um país mais justo e sem corrupção", completou o parlamentar. Desde o início da Operação Lava Jato, lideranças do PT se posicionaram contra as ações da Força Tarefa de Curitiba. As críticas aumentaram depois que uma série de reportagens que ficou conhecida como "Vaza Jato", em 2019, revelou supostos diálogos mantidos entre Dallagnol, procuradores e Sergio Moro ao longo da operação. Segundo as reportagens, Moro e procuradores da Lava Jato teriam atuado de forma conjunta na condução de alguns casos, o que seria irregular uma vez que violaria o princípio da parcialidade. Na época, Dallagnol e Moro negaram qualquer irregularidade no episódio.
2023-05-16
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cnl9wkx79xpo
brasil
Como técnicas brasileiras de garimpo impulsionaram 'maior desastre ambiental' de região na Colômbia
Em grande parte da Colômbia, as primeiras referências que vem à mente quando o Brasil é mencionado são o samba e o futebol. No entanto, na região do Bajo Cauca, localizada ao norte do Departamento (Estado) de Antioquia, outro tema domina o imaginário sobre os brasileiros: o garimpo ilegal. O Bajo Cauca é composto por apenas seis munícipios, com uma população de aproximadamente 300 mil pessoas. Ainda assim, é responsável por mais de 50% da extração de ouro na Colômbia. Em 2005, dois brasileiros que haviam operado em Serra Pelada levaram uma série de equipamentos que impulsionaram a extração de ouro ilegalmente, assim como os impactos ambientais. Fim do Matérias recomendadas Em março deste ano, o governador de Antioquia, Aníbal Gavíria, afirmou que os danos causados pela mineração são responsáveis pelo "maior desastre ambiental" da história do Departamento. Antioquia perdeu mais de 500.000 hectares de floresta nos últimos 20 anos. Somente no Bajo Cauca já são 60.000 hectares desmatados e mais de 200.000 árvores derrubadas. Especialistas apontam o garimpo ilegal como um dos grandes responsáveis pelo cenário. Assim, o implemento de equipamentos como os chamados "dragões brasileiros" foi parte fundamental para a piora nas condições ambientais. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Além disso, há ainda o uso das chamadas "dragas", equipamentos metálicos feitos normalmente de maneira artesanal e que são utilizados nos rios da região, impulsionando o assoreamento. Em redes sociais, a BBC News Brasil encontrou perfis ensinando como produzir o material. O professor de negócios internacionais da Fundação Universitário CEIPA Daniel Bonilla Calle afirma que "os brasileiros são mais especializados no uso da maquinaria e das dragas. Antes, não havia tanta tecnologia na extração do ouro". Um pesquisador que estudou os impactos da mineração ilegal na região — e pediu para ter sua identidade preservada — também observou os equipamentos brasileiros agravando os danos na região. "Em 2005, comecei a escutar o tema dos dragões, que eram um tipo de reengenharia onde otimizavam a extração do mineral e não era tão necessária uma retroescavadeira. Assim, a extração ficou mais competitiva, já que se movia até 20 vezes mais quantidade de terra com um dragão que com uma retroescavadeira", apontou. Entre mais de 20 brasileiros presos nos últimos dez anos por conta da exploração ilegal de ouro no Bajo Cauca, dois haviam atuado no passado no garimpo histórico de Serra Pelada, no Pará. Eles foram apontados pela justiça colombiana como alguns dos grandes responsáveis pela implementação das novas técnicas de garimpo a partir de 2005. Em 2016, um deles foi preso e apontado pela polícia local como criador dos "dragões". Entre as acusações, estavam conspiração para cometer crime, contaminação ambiental, danos aos recursos naturais e violação de fronteiras para a exploração de recursos. Até o momento, ele segue detido. O segundo garimpeiro morreu de Covid-19 enquanto o processo contra ele, com acusações semelhantes, corria. Ambos também são acusados de intensificar a contaminação por mercúrio no Bajo Cauca. Bonilla Calle lembra que, a partir dos anos 2000, a alta das cotações internacionais do ouro deu forças à exploração. O metal vem de um avanço histórico nos preços, e opera perto das suas máximas atualmente, em cerca de US$ 2.000 a onça-troy cotada em Nova York. Em 2015, a cotação estava em cerca de US$ 1.000. Em algumas cidades da zona, a porcentagem da população que tem sua renda diretamente ligada à extração de ouro passa do 50%, aponta o professor. O relatório mais recente da Controladoria Geral da Nação na Colômbia apontou que cerca de 63% das 53 toneladas de ouro que o país explora anualmente são fruto de mineração ilegal. Como resultado, 85% das exportações do metal no país não possui origem lícita, de acordo com a publicação. A lucratividade da mineração ilegal chamou a atenção de grupos criminosos. Bonilla Calle aponta que o Bajo Cauca é uma região isolada, e que começou um controle violento dos negócios. Quem comanda hoje o garimpo é o chamado Clã do Golfo, uma organização paramilitar que exerce influências em uma série de negócios ilegais na Colômbia. "Há impacto limitado das ações do Estado. É uma região distante, que fica a seis horas de Medellín, por exemplo", afirmou o professor, mencionando a capital antioquenha. Alguns equipamentos utilizados no garimpo podem chegar a custar US$ 500 mil, e os recursos dos grupos criminosos são vistos como importantes para garantir acesso a tais meios. Além disso, Bonilla Calle afirma que grupos como o Clã do Golfo oferecem proteção aos mineradores ilegais. Normalmente, o grupo criminoso ganha parte da renda obtida com o ouro, incluindo frequentes extorsões. Em março deste ano, uma grande greve afetou a região do Bajo Cauca por semanas, movimento que o governo colombiano acusa de ter sido estimulado pelo Clã do Golfo. Manifestantes cobravam medidas para formalizar a mineração na região, um tema que conta com discussões antigas. Para o pesquisador que pediu para ter sua identidade preservada, existem atualmente mecanismos para buscar a legalização das extrações, mas o Estado falha na fiscalização do ouro que sai do Bajo Cauca. "Se o Estado não faz verificações e controles, desde o processo extrativo, é difícil que haja um controle, já que a exploração está praticamente dominada por grupos criminosos e ilegais. É necessário que haja a presença e verificação do Estado para todo esse processo" afirma. A relação entre brasileiros e colombianos nunca foi das mais fáceis. Wilmar Alexander Cano é professor da Universidade da Antioquia, e estuda tais movimentos no país. "Historicamente, as migrações para mineração têm gerado muitos conflitos. Os donos das terras são os locais, que têm o controle do território, e normalmente são buscados acordos para exploração", afirma ele. No entanto, com frequência algum tipo de acordo é firmado com os atores locais, e inclui contrapartidas para uma região com pouca presença do Estado. "Eles trazem renda para as cidades e, às vezes, infraestrutura, como escolas", aponta Cano. Em alguns pontos, o Bajo Cauca também teve alguma contenção dos danos relativos à mineração ilegal, e um dos mais notórios é o uso do mercúrio, que assolou a região por décadas. O pesquisador que pediu para ter sua identidade preservada destaca que, desde 2014, o governo implementou estratégias para reduzir o uso do material por empresas industriais e mineradores artesanais. "Tenho percebido que muitos já não usam mercúrio, eu vi que é uma prática que foi diminuindo pouco a pouco. Se começou a abordar o tema, e pode melhorar, mas não desaparecer da noite para a manhã. Há o resultado de anos e anos de descontrole", avalia. Para ele, a solução para o problema passa por maior investimento do estado. "Só há 15 anos se conseguiu ter um município no Bajo Cauca conectado a uma estrada nacional. É um processo de mudar esse paradigma de pensamento, é necessário maior investimento em educação e maior cobertura para famílias vulneráveis". Em sua visão, assim será possível que a população veja "a mineração como uma opção, mas não a única".
2023-05-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c894lpde888o
brasil
Por que Deltan Dallagnol corre risco de perder mandato por Lei da Ficha Limpa
Às 20h26 do dia 20 de novembro de 2015, o então procurador da República e coordenador da força-tarefa da Operação Lava Jato, Deltan Dallagnol, foi às suas redes sociais pedir ajuda. "Quer um basta na corrupção e impunidade? Colha assinaturas para que as #10medidas sejam lei, como a #fichalimpa", escreveu em seu perfil no Twitter. Oito anos depois, porém, o agora deputado federal Deltan Dallagnol (Podemos-PR) corre o risco de perder seu primeiro mandato eletivo com base, justamente, na Lei da Ficha Limpa na qual ele tanto se inspirou. Está previsto para hoje (16/05) o julgamento de uma ação movida por quatro partidos, entre eles o PT, em que Dallagnol é acusado de ter violado a Lei da Ficha Limpa. Fim do Matérias recomendadas Se for condenado, o ex-procurador será o primeiro parlamentar da atual legislatura a ter o mandato cassado. À BBC News Brasil, Dallagnol nega irregularidades em sua candidatura e diz ser alvo de ataques do PT. Dallagnol coordenou a Lava Jato no Paraná entre 2014 e 2020. Foi sob seu comando que a operação ficou conhecida nacional e internacionalmente ao revelar um esquema de corrupção envolvendo estatais e empreiteiras e por levar à cadeia empresários e políticos como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em 2021, Dallagnol deixou o Ministério Público Federal (MPF) e, em 2022, se candidatou a deputado federal pelo Paraná. Defendendo a bandeira do combate à corrupção e se posicionando contra o então candidato à Presidência Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Dallagnol foi o deputado federal mais bem votado do estado, com 344 mil votos. Nos últimos meses, porém, ele enfrenta uma batalha judicial depois que PT, PCdoB e PV e o PMN moveram uma ação pedindo a sua inelegibilidade com base na Lei da Ficha Limpa. A Lei da Ficha Limpa está em vigor desde 2010 e prevê critérios para impedir que pessoas condenadas por órgãos colegiados (tribunais de justiça, cortes de contas ou conselhos superiores) possam ser candidatas a cargos eletivos. O argumento da ação é o de que Dallagnol não poderia ter sido candidato em 2022 por dois motivos principais: "A nossa principal tese é de que ele pediu para sair do MPF para evitar uma condenação administrativa que o tornaria inelegível. A lei prevê que esse tipo de manobra não é permitida e por isso ela foi uma forma de burlar as regras da Lei da Ficha Limpa", diz um dos advogados que moveram a ação, Luiz Eduardo Peccinin. À BBC News Brasil, Dallagnol negou as acusações contra ele e disse que elas fazem parte de um ataque patrocinado pelo PT. Segundo ele, não havia procedimentos administrativos pendentes de julgamento quando ele pediu exoneração. Dallagnol diz que o que havia eram reclamações disciplinares e que elas não seriam procedimentos administrativos, que é o termo usado na lei para impedir ex-membros do Judiciário ou do Ministério Público de disputarem eleições. "Eles querem fazer uma confusão entre reclamação e um processo administrativo disciplinar. Qualquer pessoa pode fazer uma reclamação contra um procurador e, na época da Lava Jato, houve muitas", disse. Em primeira instância, o pedido de perda de mandato de Dallagnol foi rejeitado. Mais recentemente, a Procuradoria-Geral Eleitoral (PGE) deu um parecer contrário à perda de mandato do deputado. No meio jurídico, a tese levantada pela acusação contra Dallagnol para pedir a perda de seu mandato é considerada nova e teria poucos precedentes. O texto da Lei da Ficha Limpa diz que os membros do poder Judiciário ou do Ministério Público que forem aposentados compulsoriamente, que tenham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária enquanto respondiam a processos administrativos disciplinares ficariam inelegíveis por oito anos. Para o advogado especializado em Direito Eleitoral Luiz Fernando Pereira, do escritório Vernalha Pereira Advogados, o dispositivo conhecido como "alínea q" da Lei da Ficha Limpa, tem a intenção de impedir que juízes, promotores ou procuradores que estejam prestes a serem condenados, expulsos ou demitidos escapem de uma condenação e ingressem na vida política. Ele diz, no entanto, que a "alínea q" foi pouco citada em ações até agora. "Ela foi pouco usada porque não houve tantos casos assim de procuradores, juízes ou promotores pedindo exoneração e entrando na vida política. É um fenômeno relativamente novo. Quando a lei foi formulada, talvez ninguém imaginasse que isso poderia acontecer de verdade", disse. Apesar de pouco usada, a tese já foi testada pelo menos uma vez no mesmo TSE que irá julgar Dallagnol. Em dezembro, a Corte rejeitou uma ação que pedia a inelegibilidade do senador Sergio Moro (União Brasil-PR). A ação também foi movida pelo advogado Luiz Eduardo Peccinin. Na ocasião, o tribunal rejeitou o pedido alegando que, apesar de haver reclamações contra Moro quando ele pediu sua exoneração, em 2018, nenhuma delas havia sido convertida em procedimento disciplinar e nenhuma delas poderia resultar em penalidades contra o agora senador. Pereira diz, no entanto, que o fato de que o TSE julgou contra a tese no caso de Moro não garante que o resultado será o mesmo no processo de Dallagnol. "A diferença é que no caso do deputado, as reclamações que estavam pendentes poderiam, sim, levar à sua demissão. O que está em jogo neste caso é se o TSE vai adotar uma posição mais ou menos restritiva da Lei da Ficha Limpa", disse o advogado. A possibilidade de que Dallagnol possa perder seu mandato com base na Lei da Ficha Limpa causa curiosidade no meio jurídico. Um dos principais motivos para isso é o fato de que, enquanto procurador, ele fez inúmeras defesas da regra. A partir de 2015, Dallagnol passou a liderar um movimento de coleta de assinaturas para que tramitasse na Câmara dos Deputados uma série de projetos de lei que ficaram conhecidas como "10 medidas" contra a corrupção. Dallagnol defendia a adoção do pacote como uma das formas de melhorar os mecanismos de combate à corrupção no país. Na época, ele costumava citar a tramitação da Lei da Ficha Limpa como um dos exemplos para o projeto. Assim como as "10 medidas", a Lei da Ficha Limpa também chegou ao Congresso Nacional a partir da coleta de assinaturas de cidadãos comuns e era defendida por ele como um exemplo de mobilização popular contra a corrupção. No dia 18 de março de 2016, Dallagnol postou um vídeo ao lado do ex-juiz Marlon Reis, um dos idealizadores da Lei da Ficha Limpa, pedindo assinaturas para que o pacote das "10 medidas" fosse levado ao Parlamento. "Assine você também, apoie, vamos mudar nosso país, alcançar nosso sonho de ter um país livre da corrupção e da impunidade", dizia Dallagnol ao fim do vídeo. A reportagem entrou em contato com o escritório de advocacia de Maron Reis para que ele comentasse sobre o caso. Segundo o escritório, o idealizador da Lei da Ficha Limpa estaria viajando e retornaria a ligação quando possível. Até o fechamento desta reportagem, Reis não entrou em contato. O advogado Luiz Fernando Pereira diz que a possibilidade de Dallagnol perder o mandato com base na Lei da Ficha Limpa seria uma "ironia do destino". "É uma ironia do destino porque ele sempre defendeu essa lei, apesar das várias críticas que muitos operadores do direito têm em relação a ela. Apesar de ela, aparentemente ter uma boa intenção, ela vai na contramão do direito internacional ao criar muitas regras para restringir os direitos à elegibilidade", diz o advogado. À BBC News Brasil, Dallagnol diz não ver "ironia" no fato de a lei que ele tanto defendeu estar sendo usada contra ele. "Eu não colocaria como uma ironia. (A lei da Ficha Limpa) é algo que eu sempre vou defender, mas eu não estava lá quando houve o movimento (para a aprovação da lei)", disse o deputado. Em seu primeiro mandato, Dallagnol diz que a ação movida contra ele é uma forma de ataque supostamente perpetrado pelo PT por conta de sua atuação durante a Operação Lava Jato. "Na minha leitura, isso é uma tentativa do PT me derrubar, mas não se trata só do Deltan. Para eles, é uma tentativa de resgate e de redenção política do Lula. É uma forma de impor uma narrativa de que a Lava Jato foi, na realidade, uma perseguição política e não uma tentativa de construir um país mais justo e sem corrupção", completou o parlamentar. Desde o início da Operação Lava Jato, lideranças do PT se posicionaram contra as ações da Força Tarefa de Curitiba. As críticas aumentaram depois que uma série de reportagens que ficou conhecida como "Vaza Jato", em 2019, revelou supostos diálogos mantidos entre Dallagnol, procuradores e Sergio Moro ao longo da operação. Segundo as reportagens, Moro e procuradores da Lava Jato teriam atuado de forma conjunta na condução de alguns casos, o que seria irregular uma vez que violaria o princípio da parcialidade. Na época, Dallagnol e Moro negaram qualquer irregularidade no episódio. Agora deputado, Dallagnol diz que vem recebendo o apoio de diversos parlamentares em razão da ação que será julgada pelo TSE. "Encontrei um grande número de pessoas que veio prestar solidariedade e apoio por conta do nosso trabalho e combate à corrupção. Agora, em geral, as pessoas não conhecem esse caso e não chegam a entrar em detalhes sobre esse caso em particular", disse. A BBC News Brasil entrou em contato com o senador Sergio Moro para comentar sobre o julgamento de Deltan. O ex-juiz da Lava Jato, porém, preferiu não se pronunciar sobre o caso. Luiz Eduardo Peccinin, que representa o grupo de partidos que moveu a ação contra Dallagnol, lembra que foi estagiário foi estagiário do MPF no Paraná no início dos anos 2010. Na época, o hoje deputado já atuava no órgão onde o então jovem estudante de direito apenas fazia estágio. Ele nega que haja perseguição contra o ex-procurador. "Eu estagiei lá, mas não trabalhei direto com ele. Não se trata de perseguição. Trata-se de uma ação movida em um regime de estado democrático de direito. Qualquer partido poderia impetrar essa ação e ele, como homem público, terá o direito de se defender", disse.
2023-05-16
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1z28n0n50o
brasil
Bolsonaro sabia? O que ex-presidente deve explicar à PF sobre suspeita de fraude em cartão de vacina
O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) deve prestar depoimento às 14h desta terça-feira (16/5) na Polícia Federal — o terceiro em menos de dois meses. Desta vez, o inquérito apura se ele teve algum envolvimento em um suposto esquema de fraude em seu cartão de vacinação. A PF levantou indícios de que seu ex-ajudante de ordens Mauro Cid e outros assessores próximos teriam colaborado para emitir certificados falsos de imunização contra a covid-19 para Bolsonaro e sua filha para garantir a entrada de ambos nos Estados Unidos no final de 2022. O que a PF deve tentar esclarecer é se Bolsonaro sabia ou não da suposta falsificação de documentos. O ex-presidente negou que tivesse conhecimento, como declarou à imprensa no dia em que foi alvo de uma operação policial que investiga o caso e que prendeu Cid e outras cinco pessoas. Para a PF, registros no aplicativo ConecteSus — sistema do Ministério da Saúde que emite o certificado de vacinação — de que a conta associada ao ex-presidente foi acessada de dentro do Palácio do Planalto por seu ex-ajudante de ordens para a emissão de comprovantes falsos reforçaria a hipótese que Bolsonaro sabia da falsificação. Fim do Matérias recomendadas Outro ponto central que a PF investiga e que deve ser tratado no depoimento é se os certificados falsos foram usados por Bolsonaro em alguma ocasião. A falsificação do documento para entrar nos Estados Unidos pode configurar crime federal naquele país, com pena de até dez anos de prisão. O advogado criminalista Celso Vilardi, professor da Fundação Getúlio Vargas, avalia que há indícios fortes que justificam investigar eventual participação de Bolsonaro. “Neste momento da investigação, evidentemente que não é possível descartar que ele esteja envolvido nessa trama. Afinal, ele é o principal beneficiário e (segundo a investigação da PF) tudo foi feito dentro do Palácio do Planalto, com seus assessores mais próximos", diz à BBC News Brasil. É a terceira vez em menos de dois meses que Bolsonaro presta esclarecimentos à PF. Em abril, ele depôs sobre joias recebidas da Arábia Saudita e não declaradas à Receita Federal e sobre sua suposta influência nos ataques antidemocráticos de 8 de janeiro. No caso do certificado de vacinação, o ex-presidente chegou a ser convocado a depor no dia 3 de maio, quando a PF realizou uma ação de busca e apreensão em sua residência, mas não quis falar à polícia naquele momento porque, segundo sua defesa, os advogados ainda não tinham tido acesso aos autos. Questionado por jornalistas ao sair de sua casa em Brasília sobre as suspeitas de adulteração nos cartões de vacina, Bolsonaro disse que "não tem nada disso". "Havia gente que me pressionava para tomar a vacina, e eu não tomei. Não tomei porque li a bula da Pfizer. Não tem nada disso. Se eu tivesse que entrar (nos EUA) e apresentar o cartão vocês estariam sabendo", disse. A Constituição Federal garante o direito de investigados não prestarem depoimento, ao estabelecer que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo. A expectativa, porém, é que dessa vez o ex-presidente deve falar à PF para tentar se defender das acusações. Uma possibilidade é que ele repita que desconheceria a suposta falsificação e atribua qualquer crime a uma iniciativa autônoma de seus subordinados. A BBC News Brasil tentou contato com Bernardo Fenelon, um dos advogados de Mauro Cid, mas não teve retorno. À CNN Brasil, a defesa do ex-ajudante de ordens disse que “todas as manifestações defensivas serão feitas nos autos do processo”. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para a PF, alguns elementos indicam que Bolsonaro sabia da falsificação. A investigação mostrou que os certificados de vacinação para Bolsonaro foram emitidos quatro vezes entre dezembro de 2022 e março deste ano, por meio do aplicativo ConecteSUS, e que isso foi feito de um computador de dentro do Palácio do Planalto e do celular de Mauro Cid. A apuração apontou ainda que era Cid que administrava o acesso de Bolsonaro ao ConecteSUS, já que a conta do presidente estava associada a um email do ex-ajudante de ordens. No relatório apresentado ao STF, a PF avalia que “os elementos informativos colhidos demonstraram coerência lógica e temporal desde a inserção dos dados falsos no sistema SI-PNI até a geração dos certificados de vacinação contra a Covid-19”. Para o órgão, isso indica que Jair Bolsonaro e Mauro Cesar Cid “tinham plena ciência da inserção fraudulenta dos dados de vacinação, se quedando inertes em relação a tais fatos até o presente momento". A PF tenta ainda esclarecer se os certificados falsos que teriam sido emitidos foram de fato utilizados por Bolsonaro e sua filha. Pessoas com passaporte diplomático, como era o caso do ex-presidente durante seu mandato presidencial, são liberadas de cumprir essa exigência em viagens oficiais. Da mesma forma, sua filha, por ser menor de idade, também estaria isenta, segundo as regras americanas. Em janeiro, Bolsonaro solicitou um visto de turista para permanecer nos Estados Unidos. A BBC News Brasil questionou a embaixada americana no Brasil se havia exigência de comprovante de vacinação quando foi solicitado o visto, mas não obteve retorno esclarecendo a questão. Além de questionar Bolsonaro no depoimento, é possível que a PF ou a Procuradoria-Geral da República busque apurar essa informação diretamente com os Estados Unidos. Segundo o advogado especialista em cooperação internacional Yuri Sahione, esses órgãos podem solicitar ao Departamento de Justiça americano essa informação, já que os dois países assinaram em 2001 um tratado bilateral para colaboração em investigações criminais. “O governo americano vai analisar se atende ou não o pedido e, se entender que pode atender, vai mandar a informação”, explica Sahione. A PF fez no início do mês uma operação contra Bolsonaro e pessoas do seu entorno, autorizada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal. Foram realizadas buscas na casa do ex-presidente, que teve o celular apreendido. A PF cumpriu também seis mandados de prisão. O grupo é suspeito de ter inserido dados falsos de vacinação contra a covid-19 no sistema do Ministério da Saúde para forjar os certificados de vacinação de Bolsonaro e da sua filha; de Mauro Cid, da sua mulher e de três filhas do casal (duas menores de idade); e de mais dois assessores do ex-presidente. Supostamente, a finalidade das falsificações seria viabilizar a entrada dessas pessoas nos Estados Unidos, país que até 12 de maio exigia esse documento para entrada em seu território (salvo exceções, como viagens de autoridades em missão oficial). Segundo a PF, a inserção dos dados falsos foi realizada por meio da Prefeitura na cidade de Duque de Caxias (RJ). No caso de Bolsonaro, foram colocadas no sistema informações de que o ex-presidente teria sido vacinado naquele município com doses da Pfizer em 13 de agosto e 14 de outubro do ano passado. No entanto, o relatório da PF diz que não há qualquer comprovação que o presidente tenha estado em Duque de Caxias no dia 13 de agosto, quando cumpriu agenda no município do Rio de Janeiro. Já no dia 14 de outubro, Bolsonaro teve agenda curta em Duque de Caxias, sem registro de que tenha sido vacinado nessa data, apontou a investigação. Também não há evidências de que a filha de Bolsonaro estivesse naquele município nas datas em que teria sido vacinada (24 de julho e 13 de agosto de 2022), segundo as informações suspeitas registradas no sistema do Ministério da Saúde. Além disso, a filha de Bolsonaro morava na época com seus pais em Brasília, aponta a PF em um relatório, e, por isso, "não faria sentido" ela ter ido até Duque de Caxias para se vacinar. O delegado do caso, Fábio Shor, destacou ainda como evidência de fraude o grande tempo transcorrido entre a suposta vacinação de Bolsonaro e sua filha e o registro da aplicação das doses no sistema, realizada em 21 de dezembro.
2023-05-16
https://www.bbc.com/portuguese/articles/clelzyevl3eo
brasil
'Privilégio' de Lula a evangélicos no passado favoreceu 'fundamentalismo', diz líder do Conselho de Igrejas Cristãs
Enquanto muitos líderes evangélicos reclamam de falta de espaço no governo Lula 3, a pastora luterana Romi Bencke tem uma visão totalmente oposta. Para ela, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deu "privilégios" a igrejas evangélicas em seus dois primeiros mandatos e não deve repetir isso agora. Recentemente o governo Lula anunciou os 246 integrantes do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social e Sustentável, ligado à Presidência da República. Nenhuma liderança evangélica foi convidada a participar, o que gerou crítica de pastores e especialistas em política e religião. Conhecido como Conselhão, esse grupo formado por integrantes da sociedade civil se reúne mensalmente com ministros e o presidente para debater políticas públicas. Silas Malafaia, pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo e forte apoiador do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), integrou o conselho no primeiro mandato de Lula. Fim do Matérias recomendadas Mas, segundo a pastora Romi Bencke, que é secretária-geral Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, o espaço que Lula e depois Dilma Rousseff garantiram a lideranças cristãs conservadoras em seus primeiros mandatos ajudou a expandir o que chama de movimentos religiosos "fundamentalistas" e antidemocráticos. "O rosto de cristianismo no Brasil está cada vez mais fundamentalista. E esse é o grande debate: como é que a gente vai enfrentar esse fundamentalismo? Não é garantindo presença na participação do Conselhão ou em outros espaços de governo. Isso não vai resolver em nada", avalia. O Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, liderado por Bencke, reúne igejas e organizações católicas e protestantes, como a Associação de Batistas do Brasil e a Confederação dos Bispos do Brasil (CNBB). Bencke cita como exemplos de "privilégios" a igrejas evangélicas concessões de emissoras de rádio e TV a grupos neopentecostais, a manutenção de benefícios fiscais a igrejas, e o espaço concedido a lideranças neopentecostais nos primeiros governos de Lula e Dilma. No governo Lula, por exemplo, foi assinada a concessão da Record News, segundo canal aberto ligado ao bispo Edir Macedo, da Igreja Universal. E o presidente fez questão de comparecer ao lançamento da emissora, em 2007, com a presença de Macedo e outras lideranças evangélicas. Já Dilma Rousseff chegou a nomear o bispo Marcelo Crivella, também da Igreja Universal, como seu ministro da Pesca em 2012. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Eu acho que os dois governos Lula anteriores e depois um pedacinho do governo Dilma ofereceram muitas concessões a determinados segmentos do que hoje a gente chama de evangélicos", diz. "E isso não tem contribuído em nada. Por que? Porque só foi aprofundando essa dimensão fundamentalista do cristianismo." Bencke diz que a facilidade com que grupos religiosos passaram a controlar rádios comerciais e comunitárias nos últimos anos favoreceu a expansão de um discurso conservador que, depois, encontrou eco no governo Bolsonaro. "Toda a concessão das rádios comunitárias nos governos Lula e governos anteriores, que acabaram indo parar nas mãos de grupos evangélicos, fortaleceu uma cadeia de comunicação religiosa de caráter cristão que não é fundamentada nos direitos humanos e no direito à igualdade entre homens e mulheres." A pesquisadora Olivia Bandeira, do Laboratório de Antropologia da Religião, da Unicamp, diz que, de fato, o espaço dado a igrejas evangélicas nos governos Lula 1 e 2, e o início do governo Dilma, fortaleceram grupos neopentecostais que, depois, acabaram aderindo ao governo de Jair Bolsonaro. "O governo Lula fez alianças com esses grupos religiosos neopentecostais e essas alianças ajudaram a fortalecer esses grupos, sim", disse Bandeira, que também é coordenadora executiva do coletivo de comunicação Intervozes. Mas ela destaca que o processo de crescimento da influência política dos evangélicos havia começado décadas antes de Lula assumir o poder em 2003. Legislações que favoreceram igrejas já existiam antes do governo Lula, como a lei que prevê isenção fiscal a templos de qualquer culto. Além disso, já havia o movimento de obter concessões de rádio e TV por parte dos neopentecostais — A Record TV, por exemplo, foi adquirida pelo Bispo Edir Macedo no final da década de 1980. "O que o governo Lula e Dilma fizeram foi seguir dando essas concessões aos religiosos. Não tem mudança na legislação específica para favorecer os religiosos, mas tem, sim, um apoio à concessão em troca de uma base aliada. E vários religiosos fizeram parte do governo Lula e Dilma", diz Bandeira. A BBC News Brasil enviou email à Secretaria de Comunicação da Presidência e aguarda retorno. Agora, no governo Lula 3, lideranças neopentecostais afirmam que não estão recebendo o mesmo tipo de espaço. E há divergência sobre se essa é a melhor estratégia. O pastor neopentecostal Paulo Marcelo Schallenberger, que apoiou Lula na eleição passada, diz que a ausência de uma estratégia de comunicação com o público evangélico pode acabar distanciando ainda mais esse segmento, empurrando-o para o ex-presidente Bolsonaro e seus aliados. Ele tem uma visão diferente do da pastora Romi Bencke e critica a ausência de lideranças evangélicas no Conselhão. "A presidente Dilma teve na última eleição dela, em 2016, 16 milhões de votos evangélicos. Haddad teve 10 milhões em 2018. O presidente Lula agora teve 7 milhões. E no ano que vem tem eleições municipais", destacou Schallenberger à BBC News Brasil. "Então, eu penso que, se o PT e a esquerda desejam realmente ter uma participação nesse aglomerado de brasileiros e brasileiras, precisa ser feito algo urgentemente." À BBC News Brasil, a Secretaria de Relações Institucionais da Presidência, que coordena o Conselhão, disse que o processo de escolha dos conselheiros do grupo "levou em conta a consideração de lideranças dos mais diversos setores da sociedade, com foco na promoção do desenvolvimento econômico, social e sustentável do Brasil." "Os convites não contemplaram entidades de representação religiosa de nenhuma crença – e não apenas evangélicas. Os representantes do colegiado foram convidados por causa da atuação de cada um deles em campos distintos, e não pela sua opção religiosa", completou a SRI, na nota enviada à BBC News Brasil. Durante a campanha eleitoral para a Presidência, Lula sofreu oposição de líderes evangélicos que nos anos 2000 apoiaram seus governos, incluindo Silas Malafaia da Assembleia de Deus Vitória em Cristo e Edir Macedo, da Igreja Universal. Lula venceu a eleição por uma margem apertada, de menos de 2%, e várias lideranças evangélicas esperavam que o governo fosse adotar uma estratégia de aproximação com setores neopentecostais, o que não ocorreu. Enquanto isso, pesquisas indicam que a popularidade de Lula entre evangélicos está caindo. Levantamento da Genial/Qaest divulgado em abril mostrou que 36% dos eleitores aprovam o governo Lula, uma queda de quatro pontos percentuais em relação à pesquisa de fevereiro, quando a aprovação era de 40%. Entre evangélicos, a avaliação positiva é bem menor: 27% aprovam o governo, enquanto 39% o avaliam negativamente. Neste caso, houve piora ainda mais acentuada de uma pesquisa para outra. Em fevereiro, 30% dos evangélicos avaliavam o governo negativamente. "Eu acho que tem que isolar os líderes evangélicos ideológicos, mas tem que haver uma comunicação diretamente com a população evangélica. Primeiro, precisamos combater a desinformação. E, segundo, trazer políticas públicas para essas comunidades", defende o pastor Schallenberger. "O governo precisa de alguém que fale em seu nome, mas que saiba usar a linguagem evangélica para ir destruindo e desmistificando todos os diálogos que estão sendo feitos sobre aborto e fechamento de igrejas." Schallenberger, que foi pastor da Assembleia de Deus e hoje está na Igreja Batista, chegou a se reunir com Lula na campanha e apresentar um plano para ampliar o contato do presidente com evangélicos. Na época, foi divulgado que ele faria um podcast com Lula para falar sobre questões importantes ao público cristão. Mas setores do PT foram contra e o projeto acabou não sendo implementado. "Houve uma paralisação a respeito (de projetos para se comunicar com evangélicos) e agora esse Conselhão (sem integrantes evangélicos). Eu vejo que ainda existem pessoas lá dentro do governo que estão indo contra", avalia. "Você deixa de falar com milhões de eleitores. Se você fica progressista demais, você não entra no mundo alcançado pelo bolsonarismo. Daqui a quatro anos tem eleição novamente e você pode perder sem o apoio evangélico." Já a pastora Romi Bencke diz que o fórum adequado para ter lideranças religiosas não é Conselhão e a solução também não passa por indicar evangélicos para cargos ou firmar alianças com lideranças neopentecostais. Para ela, o governo deveria recriar o Conselho de Diversidade Religiosa, que existia nos primeiros mandatos de Lula e era ligado à Secretaria de Direitos Humanos. Esse conselho, que foi extinto no governo Bolsonaro, reunia representantes de diferentes religiões existentes no Brasil. "Eu particularmente não vejo problema nenhum (na ausência de evangélicos no Conselhão), porque se a gente defende a laicidade do Estado, eu penso que não tem porque priorizar e privilegiar um grupo religioso específico", disse. "Se você vai por esse critério, de ter que ter participação evangélica, você vai ter que trazer a comunidade Bahai, tem que trazer muçulmano, tem que trazer terreiro, tem que trazer budismo, vai virar um conselheiro religioso, o que não é o objetivo."
2023-05-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cpvx401g3wdo
brasil
Como mosquito egípcio chegou ao Brasil e matou 10 mil pessoas
Popularmente conhecido como mosquito da dengue, o Aedes aegypti há mais de um século é o mais temido "inimigo público" do Brasil. A espécie, originária do Egito, é responsável pela transmissão das arboviroses urbanas mais comuns do país: dengue, chikungunya e zika. Seu tamanho inferior a um centímetro e suas listras brancas no tronco, cabeça e pernas parecem esconder sua alta capacidade de transmissão de doenças. O que pouca gente sabe é que nas últimas três décadas o Aedes aegypti foi responsável pelas mortes de 10 mil brasileiros. Levantamento feito pelo Ministério da Saúde a pedido da BBC News Brasil aponta que desde 1990, 10.096 brasileiros morreram após serem picados pelo mosquito. Foram 9.186 mortes por dengue, 875 por chikungunya e 35 por zika. Fim do Matérias recomendadas Sem contar as milhões de pessoas que são contaminadas todos os anos pelo mosquito e conseguem se recuperar. Para ter uma ideia, somente em 2022, foram registrados 1.450.270 casos e 1.017 mortes de dengue no Brasil – um recorde, desde que os óbitos pela doença passaram a serem registrados oficialmente. Cientificamente, o Aedes aegypti foi descrito pela primeira vez, em 1762, quando foi denominado Culex aegypti - culex de 'mosquito' e aegypti em referência a sua região de origem: o Egito. Contudo, em 1818, pesquisadores notarem que a espécie tinha características morfológicas e biológicas semelhantes às de espécie do gênero Aedes. Com isso, o nome passou a ser Aedes aegypti. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No Brasil, estudos apontam que a chegada do mosquito transmissor da dengue, chikungunya, zika e febre amarela urbana ocorreu entre os séculos 17 e 19, através de navios que traziam pessoas do continente africano para serem escravizadas na América Latina. A capacidade dos ovos da espécie de resistir até um ano sem contato com água ajudou para que rapidamente o mosquito do Egito encontrasse ambiente favorável para se reproduzir nos navios e, em seguida, no território brasileiro. Tamara Nunes de Lima Camara, pesquisadora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), ressalta que apesar do primeiro caso oficial de dengue no Brasil ser de 1981, existem evidências que, desde o início do século 19, o Aedes aegypti já era um problema no país. "Existem relatos de epidemias de doença com sintomas similares à dengue em 1916, em São Paulo (SP); e em 1923, em Niterói (RJ), mas sem diagnóstico laboratorial, apenas clínico. A primeira confirmação em laboratório de dengue no país somente ocorreu em 1981, a partir de uma epidemia na cidade de Boa Vista, em Roraima." Antes do primeiro caso de dengue ser confirmado oficialmente, o Aedes aegypti já era um problema no território brasileiro pela sua capacidade de transmitir o vírus da febre amarela urbana. Na época, por falta de conhecimento que a picada do Aedes aegypti poderia transmitir doenças muitas pessoas acreditavam que a febre amarela, por exemplo, era contraída a partir do contato com um infectado. Foi somente no século 20, que houve o consenso que eram os vetores, entre eles, o mosquito Aedes aegypti, os grandes responsáveis pela transmissão da doença e que o combate não seria apenas isolando as vítimas, mas combatendo os focos de reprodução dos mosquitos transmissores. "Foi apenas entre 1905 e 1906, que o médico inglês Thomas Lane Bancroft, propôs na Austrália que o Aedes aegypti quando infectado, poderia, através da picada, transmitir o microrganismo causador da dengue. Em seguida, em 1908, as observações de Bancroft foram confirmadas pelo médico cubano Aristides Agramonte y Simoni", explicou Jorge Tibilletti de Lara, pesquisador em história das ciências e saúde da Fiocruz. Com a descoberta, começou no Brasil uma verdadeira "caça aos mosquitos". Quem estava contaminado precisava ficar em isolamento e na residência era instalada uma armação de madeira revestida de tela ao redor da cama para impedir o acesso dos mosquitos ao doente. No resto da casa, papéis eram colados em todas as aberturas para evitar a entrada dos insetos. Além disso, era comum a queima de pó de piretro, que liberava um vapor capaz de atordoar os mosquitos. A busca por acabar com os mosquitos transmissores da febre amarela - na forma silvestre os vetores são o Haemagogus e o Sabethes; e na forma urbana (último registro em 1942), os mosquitos Aedes aegypti e Albopictus - levou o Brasil a adotar uma série de medidas, na primeira metade do século 20, contra a procriação de mosquitos. Proprietários de terrenos, por exemplo, eram punidos com multas caso tivessem criadouros de vetores e até farmácias tinham que informar quem estava com febre amarela ou dengue. O esforço deu certo e vetores de doenças comuns começaram a ser erradicados do Brasil. A primeira espécie foi a Anopheles gambiae, em 1940. O extermínio desse mosquito, um perigoso vetor da malária, ocorreu antes do uso do pesticida DDT (dicloro-difenil-tricloretano) ser utilizado no país. "Em 1958, a erradicação do Aedes aegypti no Brasil foi reconhecida pela a Organização Pan-americana da Saúde (OPAS), após uma campanha que teve grande importância para a cooperação interamericana em saúde pública, mas que também foi marcada por problemas internos, como a adesão tardia dos Estados Unidos ao programa de erradicação. Isso somente ocorreu em 1964 e foi finalizado em 1969 sem ter atingido as metas estabelecidas", apontou Gabriel Lopes, pesquisador em história das ciências e saúde da Fiocruz. Foi o estopim para que em 1967, o Brasil voltasse a registrar reinfestação dos mosquitos. Quando o Aedes aegypti voltou a ser problema, na década de 1970, o Brasil já não tinha as mesmas características dos anos 1900. O êxodo rural que fez brasileiros se mudarem do campo para as cidades estimulou o crescimento urbano desordenado, a falta de saneamento básico e concomitantemente a reprodução acelerada da espécie. "A dengue, como conhecemos hoje, se espalhou pela América Latina a partir da década de 1980, afetando 25 países e se expandindo rapidamente pelas cidades mais povoadas. O retorno e propagação do mosquito Aedes aegypti, que se intensificou ao final da década de 1970, foi fundamental para esse processo. A permanência desse mosquito em regiões urbanas pouco saneadas garantiu a circulação de epidemias sem precedentes no século 21, como o caso da zika e da chikungunya", apontou Gabriel. Outra explicação está atrelada ao ciclo de vida do Aedes aegypti. Sua rápida reprodução com ovos capazes de ficar até um ano em ambiente seco para conceder larvas são apontados como motivações para que o vetor continue sendo temido. "Os mosquitos têm o ciclo de vida holometábolo, ou seja, com metamorfose completa. O ciclo possui as fases de ovo, larva, pupa e adulto. Os ovos são muito resistentes à dissecação e o embrião pode permanecer viável até um ano sem contato com a água", explicou Tamara. Diferentemente do que muita gente imagina, os mosquitos são os animais mais letais do planeta. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que cerca de 725 mil pessoas morrem todos os anos por doenças transmitidas por eles. Isso porque, diferentemente de muitas outras criaturas perigosas, os mosquitos podem ser encontrados em praticamente todas as partes do mundo sem serem notados. No caso do Aedes aegypti, para que a transmissão da dengue aconteça é preciso que o vetor esteja infectado. Isso porque, ao mesmo tempo em que pica para sugar o sangue, o Aedes expele saliva infectada e transmite a doença para o ser humano. Além disso, a pessoa infectada, ao entrar na fase aguda da dengue e ser picada por um outro mosquito, vai contaminá-lo, iniciando novamente o ciclo de transmissão do vírus. "Hoje, sabemos que até os ovos da fêmea infectada também nascem com o vírus", ressaltou Lívia Vinhal, coordenadora de vigilância de arboviroses do Ministério da Saúde. Jorge Tibilletti de Lara, pesquisador em história das ciências e saúde da Fiocruz explica a transmissão de muitos dos vírus relacionados ao Aedes aegypti se dá pelo sangue. "Esses vírus se replicam no estômago do mosquito. Ao mesmo tempo, o sangue humano, alimento preferido das fêmeas da espécie, aumenta as aptidões dos mosquitos e a taxa de reprodução dos vírus." Além disso, o fato de os mosquitos se alimentarem várias vezes de forma sorrateira, pelos tornozelos, aumentam as chances de transmissão. Isso porque muitas vezes a pessoa não consegue ver a tempo o inseto em contato com sua pele. "O Aedes aegypti não é o único mosquito que transmite patógenos aos humanos, mas preenche muito bem vários critérios que corroboram seu protagonismo como transmissor de doenças: utiliza humanos como fonte de alimentação sanguínea; e vive em estreita associação com humanos numa ampla distribuição geográfica", apontou Jorge. Ou seja, diferente de outros mosquitos que vivem mais em áreas de mata, o Aedes aegypti se adaptou bem ao ambiente urbano. Com isso, tem um maior contato com os seres humanos em relação aos outros vetores do planeta, ganhando protagonismo em transmitir doenças. "Cidades populosas sem saneamento adequado ao serem atingidas pelas chuvas, produzem condições muito boas para a proliferação do Aedes aegypti no Brasil. De forma geral, as regiões urbanas que possuem piores condições relacionadas ao descarte do lixo, drenagem e obras inacabadas ou precárias podem produzir criadouros muito produtivos para o vetor", disse Gabriel. Pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil dizem que dificilmente o Brasil vai conseguir erradicar o Aedes aegypti, como fez há 70 anos. "Hoje, o vetor é altamente domiciliado. O que falamos atualmente é em diminuir a infestação do vetor e consequentemente a transmissão dos vírus", disse Livia Vinhal, coordenadora de vigilância de arboviroses do Ministério da Saúde. Segundo a OMS, a dengue é considerada endêmica em pelo menos 100 países, abrangendo as regiões das Américas, África, Oriente Médio, Ásia e Ilhas do Pacífico. Atualmente, a grande esperança está relacionada aos resultados positivos de vacinas contra formas graves da dengue – doença mais comum de ser transmitida pelo Aedes aegypti no Brasil. No entanto, Alda Maria da Cruz, diretora do departamento de doenças transmissíveis da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde, ressalta que, com ou sem vacina, a melhor maneira de evitar a dengue, chikungunya e zika continua sendo acabar com os criadouros do Aedes aegypti. "A população muitas vezes acredita que o fumacê é uma das medidas mais efetivas no combate ao Aedes aegypti, mas usamos ele quando todas as oportunidades de controle já não estão dando mais certo. O que é altamente efetivo no combate ao vetor é evitar água parada. Por isso, precisamos muito da colaboração de todos."
2023-05-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/crgeqq9j2l1o
brasil
O artista brasileiro que viveu 50 anos em instituições psiquiátricas e foi tema de exposição nos EUA
Era quase véspera de Natal quando o sergipano Arthur Bispo do Rosário, então com 29 anos de idade, recebeu a revelação que iria definir sua vida e obra. Na noite de 22 de dezembro de 1938, guiado pelo que descreveu como a aparição de sete anjos e vozes celestiais, ele peregrinou durante dois dias pelas ruas do Rio de Janeiro, onde morava, até chegar ao Mosteiro de São Bento, no centro da cidade. Após anunciar aos monges que era um enviado de Deus para "julgar os vivos e os mortos", Bispo foi encaminhado ao Hospital Nacional de Alienados, antigo manicômio localizado na Praia Vermelha. Diagnosticado com esquizofrenia paranoide, foi transferido dias depois para a Colônia Juliano Moreira, instituição psiquiátrica em Jacarepaguá onde passaria a maior parte das cinco décadas seguintes. Segundo Bispo, as vozes que o acompanhavam diziam que ele deveria se "trancar em um quarto e começar a reconstruir o mundo" e "representar todas as coisas existentes na Terra". Durante o resto da vida, ele se dedicou incansavelmente a cumprir a missão divina que acreditava ter recebido, de catalogar e organizar "o caos do mundo" em preparo para o Dia do Juízo Final. Ele transformou as celas em que estava confinado em oficina de trabalho e começou a recriar cenas do cotidiano e a contar a sua versão da história do universo. Utilizava qualquer material que encontrasse, como lençóis, uniformes, pedaços de madeira de caixas de feira, cabos de vassouras, chinelos, tênis Conga, talheres, canecas e todo o tipo de sucata e objetos que ganhava e trocava com outros pacientes. Fim do Matérias recomendadas Quando morreu, em 1989, aos 80 anos, havia deixado um acervo de mais de mil objetos, entre estandartes, indumentárias, bordados, vitrines, fichários, móveis, esculturas, miniaturas e outras peças diversas sem categorização. Nenhuma tinha data ou a assinatura do autor. Pobre, negro e considerado "louco", Bispo passou a vida inteira à margem da sociedade, e não se considerava um artista e nem via seu trabalho como arte. "Essa é minha missão, representar a existência na Terra. É o sentido da minha vida", dizia. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas, a partir da década de 1980, nos anos finais de sua vida, o mundo artístico começou a descobrir suas obras. Após a morte, ele continuou a ganhar reconhecimento da mídia e da crítica especializada, com exposições no Brasil e no exterior e uma apresentação na Bienal de Veneza, em 1995, onde sua arte foi aclamada como vanguardista. "Bispo do Rosário é um dos maiores artistas brasileiros", diz à BBC News Brasil o curador do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, Ricardo Resende. O museu funciona nas instalações da Colônia Juliano Moreira. "Quando sua obra emergiu, não se encaixava em nada do que havia registrado na história da arte, mas parecia se inserir em tudo o que a modernidade e a contemporaneidade haviam criado. Na verdade, pode-se dizer, precede tudo", diz Resende. "O que poderíamos chamar de ‘estética da precariedade’, ou ‘estética da pobreza’, tão comum na arte contemporânea, expressando a simplicidade da vida na instituição, nas cidades e campos, e da criança que nunca foi esquecida. É isso que Bispo involuntariamente nos apresenta como sua estética." Agora, sua vida e obra são tema de uma exposição na galeria da Americas Society, em Nova York, no que é a primeira retrospectiva dedicada a ele nos Estados Unidos. O título da mostra, que vai até 20 de maio, é Bispo do Rosario: All Existing Materials on Earth (Todos os Materiais existentes na Terra), uma referência à missão que marcou a trajetória do artista. Bispo do Rosário nasceu em 1909 na cidade de Japaratuba, em Sergipe. Teve passagem pela Marinha, de onde foi desligado em 1933 por indisciplina, e uma breve carreira como pugilista profissional, encerrada após um acidente em que teve o pé esmagado. Também trabalhou como lavador de bondes na companhia Light e empregado doméstico, até ser internado. "Todas essas experiências de vida, marcadas por diferentes graus de marginalização por conta de raça, classe e doença mental, se refletem em sua obra", diz à BBC News Brasil uma das curadoras da mostra, Tie Jojima, responsável pela exposição ao lado de Ricardo Resende, Aimé Iglesias Lukin e Javier Téllez. Após a internação inicial, Bispo chegou a passar alguns períodos fora de instituições psiquiátricas, por ter fugido ou recebido alta. Em 1954, fugiu da Colônia Juliano Moreira, e nos anos seguintes exerceu diversas atividades, como segurança, porteiro e funcionário em uma clínica pediátrica, onde continuou a se dedicar a sua obra, trabalhando no porão do prédio. Em 1964, voltou definitivamente à Colônia e foi instalado no Núcleo Ulisses Vianna, que era composto por 11 pavilhões cercados por um muro alto, nos quais eram alojados pacientes considerados violentos ou agitados. Os pavilhões eram divididos em enfermarias, cada uma com cerca de 40 camas, onde não havia privacidade, e também tinham uma ala sem camas, chamada de "bolo". Segundo o Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, "nessas alas, os pacientes ficavam amontoados no chão e, ao seu redor, 10 celas-fortes – pequenos cubículos com portas de ferro – mantinham os mais agitados contidos ou isolados por punição". Eles "recebiam alimentação pela fresta da porta e utilizavam um buraco no chão como sanitário". Bispo acabou transformando um conjunto de celas no Pavilhão 10 em ateliê. "Forte e sisudo, o ex-boxeador tornou-se um 'xerife', posição que lhe assegurou privilégios e permitiu a recusa de eletrochoques e medicações", descreve o museu. "Nunca se interessou em participar dos ateliês de arteterapia, mas estava sempre produzindo objetos num processo criativo incessante e solitário." Tie Jojima ressalta a capacidade de Bispo de "resistir e sobreviver às forças que o reprimiam" e de encontrar formas de "subverter o sistema hospitalar que deveria controlá-lo". "Ele transformou o espaço em que vivia em um lugar onde criava seu trabalho e, eventualmente, tinha as chaves e controlava quem entrava e saía. Também trocava favores com funcionários para conseguir materiais", destaca. Bispo trabalhava dia e noite, e só concedia acesso ao local a quem respondesse qual era a cor de sua aura. "A criação obsessiva de trabalhos têxteis e o acúmulo de objetos o levaram do caos à ordem e o ajudaram a sobreviver às duras condições de sua vida", diz à BBC News Brasil o co-curador Javier Téllez. Há traços da Colônia por toda a sua obra, como nas linhas azuis extraídas dos uniformes e utilizadas nos bordados, nas representações de prédios e nas listas de nomes de pacientes, psiquiatras e funcionários. "Era um lugar extremamente difícil para os pacientes, mas forneceu a Bispo tempo e materiais para desenvolver sua obra, o que ele não teria conseguido em outro lugar, considerando sua condição social", observa Téllez. Em 1980, Bispo e seus trabalhos apareceram em uma reportagem de TV que mostrava a Colônia Juliano Moreira e denunciava a precariedade em que viviam pacientes psiquiátricos no Brasil. Dois anos depois, ele foi tema do curta-metragem "Prisioneiro da Passagem", do fotógrafo e psicanalista Hugo Denizart. Também em 1982, estandartes produzidos por Bispo foram incluídos na mostra coletiva "À margem da vida", no Museu de Arte Moderna do Rio, na primeira vez que sua obra foi exibida fora da Colônia. Nos anos seguintes, Bispo foi tema de outras reportagens, mas somente após a sua morte, em 1989, ele ganhou a primeira exposição individual, intitulada "Registros de minha passagem pela Terra". Suas obras continuaram a chamar a atenção dos críticos e do público e circularam em mostras em diversas capitais brasileiras. Em 1991, foi realizada sua primeira exposição internacional, em Estocolmo, na Suécia, com curadoria de Frederico Morais, que organizou várias das mostras dedicadas ao artista. A arte de Bispo continuou ganhando notoriedade, representando o Brasil na Bienal de Veneza em 1995, e sendo exposta em diversas cidades e países nos anos seguintes. Sua vida e obra inspiraram filmes, livros, teses, peças de teatro, espetáculos de dança e até enredo de escolas de samba, e seu acervo foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). A mostra na Americas Society, primeira exposição solo nos Estados Unidos e realizada em colaboração com o Museu Bispo do Rosário, reúne suas obras mais icônicas, com destaque para o "Manto da Apresentação", considerado sua obra-prima, que ele planejava vestir no Dia do Juízo Final. "A parte externa (do manto) traz uma seleção de palavras, formas e objetos pertencentes ao seu universo visual. Na parte interna, bordou nomes de mulheres que conheceu e escolheu para acompanhá-lo no Dia do Juízo Final", diz Jojima. Muitos dos trabalhos em exposição são reconstrução de objetos do cotidiano, com materiais simples que ele conseguia obter na Colônia. Os bordados têm destaque, assim como os temas que remetem à sua biografia, como os navios. Jojima cita, entre os outros pontos altos da mostra, os Estandartes, feitos de lençóis que Bispo costurava, com nomes de pessoas que conheceu, eventos mundiais, embaixadas de diferentes países, navios de guerra e suas experiências de vida no Rio de Janeiro, entre outros temas. "Funcionam como uma enciclopédia visual e incluem referências autobiográficas", diz a cocuradora. A vida e a obra de Bispo geram debates sobre os limites entre loucura e genialidade e sobre questões de categorização. "Desde a década de 1980, quando se tornou conhecido no Brasil e depois internacionalmente, curadores e historiadores debatem se sua obra pode ser considerada 'arte'", dizem os responsáveis pela exposição. "Quando chamou a atenção de instituições de arte e curadores, muitos acharam que não condizia com nada do que já havia sido visto na história da arte, embora ressoasse com estratégias e experimentos de artistas do pós-guerra e contemporâneos, que desafiaram fronteiras disciplinares e abraçaram objetos do cotidiano com o objetivo de fundir arte e vida", diz o catálogo da mostra em Nova York. Javier Téllez ressalta que, apesar das semelhanças com outros artistas modernos e contemporâneos pelo uso de objetos, há "diferenças radicais em termos de intencionalidade" entre a obra de Bispo e práticas artísticas de vanguarda e neovanguarda. "A obsessão de Bispo do Rosario por colecionar e classificar as coisas é uma necessidade interna que corresponde a uma visão mística, e não a uma estratégia estética conceitual", salienta o co-curador.
2023-05-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cp0ez7m7qg7o