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brasil
O motivo de mudança inédita no uniforme da seleção feminina de futebol
Faltando pouco mais de três meses para a Copa do Mundo de futebol feminino, a seleção brasileira ganhou novos uniformes – e com uma tecnologia inédita pensada para dar maior conforto às atletas que menstruam. Os calções agora serão acompanhados de um short avulso (para ser usado por baixo), com um revestimento ultrafino e absorvente que ajuda a proteger contra vazamentos menstruais. O objetivo é garantir uma proteção prolongada às atletas em competições ou treinos durante seus ciclos menstruais. De acordo com a patrocinadora, Nike, a criação foi feita a partir de feedback das jogadoras. Ao todo, 13 das 34 seleções participantes do Mundial (todas as patrocinadas pela Nike), receberam as peças para o torneio, que acontece na Austrália e Nova Zelândia entre os dias 20 de julho e 20 de agosto. A empresa descreve que o short, chamado de "Nike One Leak Protection", é composto por duas camadas de reforço laminado (unindo materiais diferentes) e forro que absorve e retém o sangue com uma membrana que atua como uma barreira anti-vazamento. As seleções femininas da França e da Inglaterra, que usavam calções brancos, também passaram por outra mudança – as peças antigas foram substituídas por cores mais escuras, também pensando em possíveis vazamentos menstruais. Fim do Matérias recomendadas A marca também terá versões de shorts com proteção anti vazamentos para os consumidores gerais, que levar o nome "Nike One Leak". Em comunicado global, a Nike descreve que as peças estarão à venda a partir do começo de abril – não há previsão específica para venda no Brasil. A reportagem encontrou uma versão do short em modelo biker (com um comprimento de cerca de 30 centímetros), à venda no site da Nike Vietnã. Convertendo o valor anunciado de dongs vietnamitas para reais, o produto está anunciado por cerca de R$ 329. O uniforme das brasileiras também passou a ter um design novo, que será estreado em jogo nesta quinta-feira (6/4), na primeira edição da Finalíssima feminina, entre as campeãs da Copa América (Brasil) e Eurocopa de 2022 (Inglaterra). Depois da coleção de 2022 em homenagem à onça-pintada, um dos principais símbolos nacionais, a nova amarelinha celebra a biodiversidade do Brasil e da Amazônia, trazendo a estampa de folhagem tropical – inspiradas nas folhas do Buriti, do Jaci e da Jarina – inserida na textura da malha da camisa por toda a peça. A camisa agora tem detalhes em verde na barra das mangas e na gola, e os shorts são azuis com a numeração em verde, enquanto as meias brancas têm detalhes em verde e azul. Na parte interna das duas camisas, na altura da nuca, há um grafismo em homenagem à "Mãe Natureza”, em uma referência à Floresta Amazônica e seu bioma. Já os meiões trazem a inscrição “Brasil” na parte de trás.
2023-04-06
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c04vjdzjxp8o
brasil
Creche em Blumenau: publicar imagem de agressor potencializa 'efeito contágio' para novos ataques, alerta especialista
Quando um ataque violento a uma escola acontece, aumenta a probabilidade de ataques semelhantes se repetirem, o que é chamado por especialistas de "efeito contágio". Segundo Michele Prado, pesquisadora do Monitor do Debate Político no Meio Digital da USP (Universidade de São Paulo), este fenômeno pode ajudar a explicar a proximidade entre os ataques dessa quarta-feira (5/4) a uma creche em Blumenau (SC), e o atentado a uma escola de São Paulo, que deixou uma professora morta e quatro pessoas feridas ao fim de março. E a especialista em radicalização alerta: novos ataques podem acontecer. "Estamos no que chamamos de 'janela de efeito contágio', quando há um potencial de imitadores", diz Prado. "Quando a mídia publica imagens do agressor ou cenas do atentado, tudo isso potencializa esse efeito contágio para outros que estão sendo radicalizados. Eles se sentem mais mobilizados a cometer atentados que já estavam planejando." Fim do Matérias recomendadas Segundo Prado, a literatura mostra que essa "janela" dura cerca de 13 ou 14 dias após um ataque acontecer e ganhar notoriedade. "O ataque de Blumenau parece estar ligado a subculturas extremistas online. Algumas dessas subculturas vêm planejando atentados simultâneos. Então há um potencial grande para o ataque de hoje não ser único", alerta a especialista. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em coletiva de imprensa na tarde desta quarta-feira, o delegado-geral da Polícia Civil de Santa Catarina, Ulisses Gabriel, afirmou que o ataque em Blumenau foi um “caso isolado” e que não há indícios de que o ato foi coordenado por outros indivíduos por meio de redes sociais, jogos ou outras plataformas virtuais. Prado observa que o atentado de São Paulo em 27 de março foi muito comemorado nessas subculturas de ódio online, pelo fato de, mesmo tendo sido realizado com arma branca, ter resultado em morte. "Em algumas dessas subculturas, eles já estavam anunciando e instruindo que os alvos deveriam ser mais vulneráveis. Então o agressor de Blumenau pode ter buscado uma creche, pois ali as vítimas são mais vulneráveis a um ataque de arma branca", avalia a pesquisadora. Antes do caso de Blumenau, e sem incluir na conta um ataque a faca em escola no Rio de Janeiro, 11 desses casos haviam sido registrados somente em 2022 e 2023. Com os dois casos mais recentes, portanto, os últimos dois anos já superam em número de ataques os 20 anos anteriores. Levantamento feito por pesquisadores da Unicamp chegam a números semelhantes. Considerando apenas casos envolvendo alunos e ex-alunos como agressores, o grupo liderado pela pesquisadora Telma Vinha registra 22 ataques entre 2002 e 2023, sendo 10 deles nos últimos dois anos. A maioria dos agressores são jovens (de 10 a 25 anos), brancos e do sexo masculino. Para Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da USP e um dos coordenadores da equipe de transição do governo de Luiz Inácio Lula da Silva para a área de Educação, o avanço no número de ataques é fruto de uma sociedade que tem sido vitimizada pela falta de perspectiva dos jovens. "É uma sociedade que não tem enfrentado a emergência do discurso de ódio, que é um problema global, não um caso específico do Brasil", diz o educador. Para Cara, entre as culturas mobilizadoras desses ataques estão a do ódio às mulheres, a do racismo e a exaltação de símbolos neonazistas e fascistas. "Esse é um tema que o Brasil resiste a enfrentar", avalia. Cara lembra que, durante os trabalhos da equipe de transição do novo governo, aconteceu o caso do ataque a escola em Aracruz, no Espírito Santo, que deixou quatro mortos e ao menos 11 feridos em dezembro de 2022. Foi esse caso que motivou a elaboração do relatório O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental, produzido por um grupo multidisciplinar de pesquisadores e que traz recomendações de políticas públicas para enfrentar esse problema. Segundo o especialista, trata-se de uma questão complexa, multifatorial e que necessita de uma articulação da sociedade para o enfrentamento adequado. Entre as prioridades nesse enfrentamento ele cita a necessidade de monitoramento do discurso de ódio na internet; realização se campanhas de conscientização e condenação social sobre ataques nas escolas; processos de formação nas escolas sobre o risco de ataques e prevenção a eles; além de protocolos para lidar com ataques e para evitá-los. "Essa é a maior urgência, porque, por exemplo, a própria forma como a imprensa tem lidado com os ataques acaba realizando o objetivo dos atacantes: ter a imagem deles divulgada, ganhar notoriedade. Por isso o efeito [do ataque] de São Paulo gerou gatilhos", observa o especialista.
2023-04-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3g6967q55yo
brasil
Os dados que mostram explosão no número de ataques a escolas no Brasil
O ataque a uma creche em Blumenau (SC), que deixou quatro crianças mortas nesta quarta-feira (5/4), é mais um exemplo trágico de uma estatística alarmante: somente em 2022 e 2023, o número de ataques em escolas no Brasil já supera o total registrado nos 20 anos anteriores, segundo pesquisadores. Somente neste início de ano, já foram ao menos quatro casos de mais destaque: o ataque com bomba caseira por um ex-aluno em Monte Mor (SP), em 13 de fevereiro; o ataque a faca por um aluno de 13 anos a uma escola em São Paulo, que deixou uma professora morta e quatro pessoas feridas em 27 de março; o ataque a faca por um aluno a colegas em uma escola do Rio de Janeiro em 28 de março; e agora o atentado à creche em Santa Catarina. Levantamento feito pela pesquisadora Michele Prado, do Monitor do Debate Político no Meio Digital da USP (Universidade de São Paulo), registrou 22 ataques a escolas entre outubro 2002 e março de 2023. Antes do caso de Blumenau, e sem incluir na conta o ataque a faca no Rio de Janeiro, 11 desses casos haviam sido registrados somente em 2022 e 2023. Com os dois casos mais recentes, portanto, os últimos dois anos já superam em número de ataques os 20 anos anteriores. Fim do Matérias recomendadas Levantamento feito por pesquisadores da Unicamp chegam a números semelhantes. Considerando apenas casos envolvendo alunos e ex-alunos como agressores, o grupo liderado pela pesquisadora Telma Vinha, registra 22 ataques entre 2002 e 2023, sendo 10 deles nos últimos dois anos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os ataques a escola também foram tema de um relatório entregue ao governo de transição no final do ano passado. Além dos ataques efetivamente realizados, o documento mostra os atentados evitados. O padrão aqui também revela um forte aumento da frequência em anos recentes. Segundo o relatório O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental, foram 34 ataques a escolas evitados no Brasil entre 2012 e 2022, sendo 22 deles somente no ano passado. Dos 22 ataques evitados em 2022, oito tinham como alvos escolas em Goiás e 4 em Minas Gerais. Segundo os pesquisadores, os agressores são em geral jovens (10 a 25 anos), do sexo masculino. E muitos deles são vítimas de bullying na escola, possuem características de isolamento social e indícios de transtornos mentais não diagnosticados ou acompanhados. Eles se articulam em comunidades online onde há incentivo à violência, à misoginia, e em plataformas de fácil acesso na internet. Para Michele Prado, o aumento da frequência dos ataques no país é fruto de um processo de radicalização online em massa que atinge principalmente o público jovem, a partir dos 10 anos. “Elas não estão da deep web ou na dark web, estão na superfície, em aplicativos como Discord, Twitter, TikTok, Telegram e WhatsApp”, diz Prado. A pesquisadora afirma que não há uma razão única para a radicalização e os agressores têm perfis radicalizados distintos. “Alguns jovens se queixam de bullying, outros parecem ter transtorno de personalidade narcisista, com perfil de agressores e não de vítimas. Nas redes, eles são expostos a teorias conspiratórias que desumanizam grupos específicos”, exemplifica. Para Danila Di Pietro, pesquisadora da Unicamp e parte do grupo liderado pela professora Telma Vinha, o aumento no número de ataques a escolas nos últimos anos está relacionado também ao avanço da cultura de violência no país. "De cinco anos para cá, passamos por uma banalização da violência. O uso de armas de fogo, de um discurso de ódio, separatista, racista, misógino, homofóbico, até por autoridades oficiais, com isso ganhando escala pública, tudo isso faz com que as pessoas que cultivavam esses valores no seu ambiente privado passem a ganhar corpo público", afirma Di Pietro. As pesquisadoras destacam ainda o papel da cobertura da imprensa na multiplicação desses casos, já que os agressores em geral buscam notoriedade e se inspiram a partir de ataque anteriores. "Nosso pedido à imprensa é de não divulgar em detalhes como a coisa se deu, porque isso acaba ensinando como se fazer. É preciso focar muito mais nas vítimas do que no agressor, porque tudo que ele querem é notoriedade", diz a pesquisadora da Unicamp.
2023-04-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ckryl4epnpeo
brasil
O que é o 'dilema do prisioneiro', que inspira estratégia da PF em depoimentos sobre joias de Bolsonaro
Nesta quarta-feira (05/04), o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), seu ex-ajudante-de-ordens, tenente-coronel do Exército Mauro Cid, e outras oito pessoas irão prestar depoimento no inquérito aberto pela Polícia Federal para apurar as circunstâncias envolvendo a entrada no Brasil de conjuntos de joias - entre eles, um avaliado em R$ 16,5 milhões - dados à família Bolsonaro em 2021 pelo governo da Arábia Saudita. Todos os depoimentos estão marcados não apenas para o mesmo dia, mas para a mesma hora: 14h30. A escolha da data e horário, segundo fontes ouvidas pela BBC News Brasil, não foi aleatória. A ideia por trás desse agendamento avaliado por advogados ouvidos pela reportagem como "inusual" seria pôr em prática os mecanismos de um experimento estudado por matemáticos, economistas, psicólogos e cientistas sociais há quase 70 anos O experimento ficou mundialmente conhecido como "dilema do prisioneiro". Mas o que um mecanismo teria a ver com o depoimento de Jair Bolsonaro e as joias dadas pela Arábia Saudita num contexto em que ninguém, até o momento, está está na condição de "prisioneiro"? Fim do Matérias recomendadas Em primeiro lugar, é importante rememorar o que levou Bolsonaro a prestar depoimento à PF. Em março, reportagens do jornal O Estado de S. Paulo revelaram que a Receita Federal reteve, em 2021, um estojo com joias dado pelo governo da Arábia Saudita à família Bolsonaro. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Entre os itens estava um colar de diamantes destinado à então primeira-dama Michelle Bolsonaro. Pela legislação brasileira, bens acima de US$ 1 mil que entrem no Brasil precisam ser declarados à Receita. Caso não o sejam, seus donos precisam pagar os impostos devidos e uma multa. No caso de presentes oficiais destinados ao acervo público da Presidência da República, a legislação prevê a isenção de impostos. O pacote estava na mochila de um assessor do então ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque, que havia voltado de uma viagem oficial à Arábia Saudita. O assessor não declarou os bens ao chegar ao Brasil. Reportagens também mostraram que, a três dias do fim do mandato de Bolsonaro, seu então ajudante-de-ordens, Mauro Cid, assinou um ofício endereçado ao então secretário especial da Receita Federal Julio Soares solicitando a liberação das joias. Um emissário da Presidência foi enviado à Receita Federal em Guarulhos munido do ofício e solicitou a devolução das joias. Os fiscais, no entanto, alegaram que o ofício não era o documento adequado para a liberação e manteve o pacote retido. Apesar disso, o atual ministro da Justiça, Flávio Dino, determinou a abertura de um inquérito para apurar o caso. Em entrevista, ele citou a suspeita de pelo menos três crimes: peculato (quando servidor se apropria de um bem público), descaminho (quando bens são desviados para não serem tributados) e lavagem de dinheiro (quando a origem de recurso é dissimulada para ter aparência de legalidade). Desde então, Bolsonaro tem negado qualquer irregularidade em relação ao caso e dito que só soube da existência do pacote confiscado pela Receita a partir das reportagens publicadas pela imprensa. "Um ministro nosso foi na região da Arábia Saudita e ganhou dois presentes. Um pra mim e pra primeira-dama. O (que era) pra mim, tomei conhecimento no final do ano passado que tinha chegado. O da primeira-dama ficou na Alfândega. Ela e eu tomamos conhecimento pela imprensa", disse Bolsonaro em entrevista à CNN Brasil, no dia 29 de março. É nesse contexto que os depoimentos de Bolsonaro, Mauro Cid e outras oito pessoas foram agendados. O mecanismo que ficou conhecido como "dilema do prisioneiro" faz parte de uma linha de estudos mais ampla chamada Teoria dos Jogos. Ela se dedica a analisar como indivíduos ou corporações envolvidos em uma determinada situação buscam melhorar os seus resultados. O filme Uma Mente Brilhante, estrelado pelo ator Russell Crowe, mostra a vida de um dos grandes estudiosos da Teoria dos Jogos, o matemático John Forbes Nash, que em 1994 foi um dos vencedores do Prêmio Nobel de Economia. A partir da segunda metade do século 20, a Teoria dos Jogos se transformou em um dos principais arcabouços teóricos de um campo das Ciências Econômicas que ficou conhecido como economia comportamental. E foi justamente nos início dos anos 1950 que o "dilema do prisioneiro" começou a ser estudado pelos cientistas Melvin Dresher e Merrill Flood e ficou famoso após ser formulado pelo matemático americano Albert William Tucker. Os três buscavam entender os mecanismos que faziam indivíduos cooperarem entre si. Uma das formulações mais conhecidas do dilema é a seguinte: a polícia prendeu duas pessoas, "Row" e "Col", suspeitas de um crime grave. Elas são postas em celas diferentes e ficam sem comunicação uma com a outra. O promotor do caso chega um dos presos e oferece o seguinte acordo: Os estudiosos apontam que, pela forma como as regras do jogo são colocadas, os incentivos são para que tanto um quanto o outro neguem as acusações, conseguindo assim, penas mais brandas. No entanto, o fato de eles não saberem exatamente o que cada um vai dizer, aumenta as chances de eles não cooperarem entre si e acabarem condenados a penas mais severas. "A lição geral é que sempre que dois ou mais jogadores interagem e suas preferências têm uma estrutura muito comum e razoável, as ações que mais beneficiam cada indivíduo não beneficiam o grupo. Isso torna o dilema do prisioneiro relevante para uma ampla gama de fenômenos sociais", escreveu o professor de Filosofia na Texas A&M University, dos Estados Unidos, no livro The Prisoner's Dilemma (Classic Philosophical Arguments) ("O Dilema do Prisioneiro - Debates Filosóficos Clássicos", em tradução livre), publicado em 2015. Na esfera criminal, o dilema do prisioneiro e a teoria dos jogos são frequentemente usados para explicar os mecanismos que levam pessoas a delatar crimes a partir de incentivos previamente estabelecidos. No Brasil, por exemplo, a lógica vem sendo aplicada em acordos de leniência entre o governo federal e empresas que cometem crimes contra a ordem econômica ou a administração pública. Em casos de carteis, por exemplo, a ideia é que a primeira empresa que confessar a prática leva os melhores benefícios. A premissa é de que oferecendo esse tipo de estímulo, haveria menos incentivos às empresas em manter o cartel. O dilema do prisioneiro também vem sendo abordado em artigos científicos para ilustrar os mecanismos que levaram a delações premiadas durante a Operação Lava Jato. No caso envolvendo as joias dadas a Bolsonaro, os investigadores buscam entender, por exemplo, se Bolsonaro tinha ou não conhecimento de que as joias haviam sido apreendidas pela Receita e se foi ele quem ordenou Mauro Cid a tentar reaver o material. Como Mauro Cid era ajudante-de-ordens de Bolsonaro, um dos seus assessores mais próximos, a expectativa é sobre o que os dois irão responder quando forem questionados sobre isso. Para o professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Gustavo Badaró, a tomada de depoimentos simultâneos no caso envolvendo Bolsonaro lembra a estratégia do dilema do prisioneiro. "Lembra o dilema (do prisioneiro) porque ele dificulta uma eventual combinação de versões entre os depoentes. Eles não têm como saber com antecedência exatamente o que é que a outra pessoa vai dizer. Isso cria um ambiente de incerteza para quem está dando o depoimento", afirmou Badaró à BBC News Brasil. Badaró diz ainda que, apesar de criar um ambiente de suspeição sobre o que as outras pessoas irão dizer, os depoimentos simultâneos não são uma garantia de que versões não possam vir a ser combinadas ou mesmo que os depoentes não possam receber alguma orientação. "Se os trâmites forem respeitados, os depoentes deverão estar acompanhados dos seus advogados e eles podem auxiliar seus clientes no momento das perguntas. A estratégia pode demonstrar alguma astúcia das autoridades policiais, mas não é infalível", disse Badaró. Para o também professor de Direito da USP Pierpaolo Bottini, a tomada dos depoimentos de forma simultânea não representa uma prática abusiva da Polícia Federal. "Eu não vejo nenhum tipo de abuso de marcar os depoimentos ao mesmo tempo, desde que todas as pessoas tenham seus direito a advogados, acesso aos autos e direito ao silêncio", disse Bottini. O advogado de defesa de Mauro Cid, Rodrigo Roca, disse à reportagem da BBC News Brasil que a medida adotada pela PF é "inusual", mas que não vê nenhuma ilegalidade na convocação dos depoimentos ao mesmo tempo. Apesar disso, ele criticou a estratégia. "Essa estratégia só faz sentido numa ficção policialesca. Se a intenção fosse evitar (combinação de versões), seria uma tolice. Os interrogatórios são cercados de garantias processuais que impediram esse joguinho. Todos os interrogados podem se recusar a responder uma pergunta a qualquer momento", disse Roca. "Apesar de ser inusual, parece que é uma forma de otimização do serviço. Pode ser usado pro bem ou pro mal. Estão querendo correr com alguma finalidade espúria ou há tanto serviço que resolveram otimizar os autos das oitivas pra caberem no prazo?", indagou o advogado. Procurada pela BBC News Brasil, a Polícia Federal disse, em nota, que não pode fornecer dados sobre as investigações. "A Polícia Federal não fornece informações sobre possíveis oitivas a serem realizadas em seus inquéritos policiais", disse a PF. A BBC News Brasil não conseguiu localizar a defesa de Bolsonaro neste processo.
2023-04-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4nz589515xo
brasil
'Fui pegar pipa e perdi braços e perna': choque elétrico mata 2 brasileiros por dia
Era fevereiro de 2020, Renato* estava ajudando o pedreiro nas obras de ampliação do seu imóvel em São José do Rio Preto (SP), quando levou um choque elétrico ao retirar a última camada de concreto da máquina betoneira. Apesar do socorro, o rapaz de 27 anos acabou não resistindo. Situação parecida aconteceu com Lucas Antônio Lacerda da Silva, que durante um pré-carnaval, no centro de São Paulo, em 2018, tocou em um poste energizado e morreu após sofrer um choque elétrico. "Até hoje a palavra choque me choca, pois é muito triste saber que seu filho saiu para se divertir e nunca mais voltou para casa por conta de um acidente que poderia ter sido evitado", diz Carla Maria Ramos de Lacerda, mãe do jovem que morreu aos 22 anos. Fios desencapados, uso constante de 'benjamins' ou 'Ts' por falta de tomadas elétricas, compra de equipamentos eletrônicos sem certificação do Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro) e manuseio incorreto da energia elétrica estão na lista das principais causas de acidentes envolvendo a eletricidade no Brasil. Dados da Associação Brasileira de Conscientização para os Perigos da Eletricidade (Abracopel) revela que em dez anos, 6.312 pessoas morreram por choque elétrico no país. Uma média de quase duas mortes por dia. Fim do Matérias recomendadas Para se ter uma ideia, apenas em 2022, 592 brasileiros morreram enquanto manuseavam um equipamento movido a eletricidade dentro de casa ou no trabalho. "Apesar do número já ser alarmante, estimamos que esses dados são até três vezes maior, pois o levantamento que realizamos é com base em pesquisas na internet. Ou seja, muitas mortes são subnotificadas. Assim, se tivemos 592 mortes por choque elétrico no Brasil, em 2022, provavelmente, estamos falando de aproximadamente 1,8 mil mortes", estima Edson Martinho, diretor executivo da Abracopel. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em média, 87% dos óbitos por choque elétrico no Brasil são de pessoas do gênero masculino e somente 13% de pessoas do gênero feminino. Isso ocorre, principalmente, pelo fato de os trabalhadores que atuam direta e indiretamente com a eletricidade serem em sua maior parte do gênero masculino e por homens - mesmo aqueles sem a devida formação - serem maioria dos que tentam solucionar problemas dentro de casa envolvendo eletricidade. No país, a região Nordeste é a que concentra a maior parte das mortes por choque elétrico. Em dez anos, a região registrou 2.631 óbitos nessa categoria, o que corresponde a 41,6% das mortes do país. "Ainda estamos tentando descobrir e comprovar as motivações para que todos os anos tanta gente morra de choque elétrico no Nordeste. Mas o que a gente observa é que a fiscalização é pequena, o conhecimento sobre os riscos da eletricidade não é eficiente e muitas pessoas em busca de mão de obra mais barata contratam profissionais que não são capacitados. Isso tudo, infelizmente, acaba resultando em morte", aponta Martinho. No ranking, a região Sudeste aparece na segunda posição (1.239 mortes), seguida pela região Sul (1.024 mortes), Centro-oeste (735 mortes) e Norte (683 mortes). Grande parte das mortes por choque elétrico no Brasil acontece dentro de casa e envolve pessoas comuns que, ao manusear equipamentos simples, cometem erros e sofrem acidentes, segundo os especialistas. As ocorrências geralmente são causadas pela energização acidental dos equipamentos elétricos que possuem envoltório metálico, falta de manutenção dos equipamentos e ausência de aterramento elétrico na residência. "Acidentes com extensão e benjamins ou ‘Ts’ também são significativamente elevados. É necessário observar que estes equipamentos não são regulares e, por esse motivo, não fazem parte de qualquer controle de qualidade - desta forma, precisam ser evitados pelos usuários", alerta Edson. Segundo o capitão André Elias, porta-voz do Corpo de Bombeiros de São Paulo, a falta de conhecimento sobre os perigos envolvendo a eletricidade é uma das principais barreiras no combate aos acidentes. "Muita gente ignora os riscos envolvendo a eletricidade e acaba por realizar procedimentos que teriam que ser feitos por um profissional especializado. Só que o barato pode sair caro", falou o capitão. Em casa, atitudes simples podem ser cruciais para evitar acidentes. É o caso, por exemplo, de nunca usar aparelhos elétricos em locais com água, ou com as mãos e os pés molhados. "Algumas pessoas adquiriram o hábito de levar equipamentos elétricos para o banheiro, como celular e o rádio portátil, e isso também representa um risco, principalmente, quando você toca nele com as mãos molhadas e com ele carregando", orienta Martinho. Outra causa recorrente de acidentes envolvendo a eletricidade ocorre com pedreiros e instaladores de TV a cabo, telefonia, toldos e calhas. Com eles, geralmente, os acidentes acontecem durante trabalho próximo à rede aérea de distribuição de energia. Foi o que ocorreu, por exemplo, com o instalador Manoel*. Durante a instalação de um painel luminoso em um estabelecimento comercial de São José do Rio Preto, em 2015, ele levou um choque elétrico que o derrubou de uma altura de cinco metros. Apesar dos graves ferimentos causados pela corrente elétrica e pela queda, Manoel sobreviveu. "Graças a Deus, não tive nenhuma sequela." Segundo Ricardo Sebba, médico do trabalho e membro da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT), o choque elétrico está entre as quatro principais causas de acidente de trabalho no Brasil. "Mesmo com as normas regulamentadoras atualizadas e abrangentes, ainda enfrentamos muito desrespeito à legislação vigente, que abre caminho para ocorrências de acidente de trabalho", assinala. Sebba ressalta que, além da falta de conhecimento adequado, muitos acidentes de trabalho envolvendo eletricidade ocorrem por jornada de trabalho excessiva e falta de equipamentos de segurança. "No Brasil, profissionais da construção civil, distribuição e geração de energia são os que mais sofrem acidentes envolvendo a eletricidade no local de trabalho. Instalações provisórias sem o cumprimento de regras básicas e adversidade dos locais de prestação de serviço contribuem para essa estatística", explica. É o que revelam dados da Abracopel. Entre 2013 e 2022, 15% das mortes envolvendo eletricidade no país foram de pedreiros, instaladores ou pintores. O levantamento aponta 513 óbitos de pedreiros ou ajudantes; 207 de instaladores de TV a cabo, telefonia, placas solares, toldos e calhas; e 199 de pintores ou ajudantes. Foi o simples ato de pegar uma pipa ao lado da rede elétrica que deixou Gleisson Rodrigues Batista sem os dois braços e a perna direita, quando ainda tinha 11 anos. "Só lembro que sentia meu corpo duro e não conseguia falar com as pessoas ao meu redor. Nem abrir a boca eu conseguia", lembra. O acidente que aconteceu na favela Cabana Pai Tomás, em Belo Horizonte (MG) há 29 anos não apenas mudou a vida dele, como também o alertou sobre os perigos da eletricidade. "A gente, quando criança, não tem muita noção dos perigos. Na época, estava com meus primos e peguei uma barra de ferro para tirar a pipa enroscada dos fios. Levei uma descarga elétrica de 13,8 mil volts." Acidentes como o de Gleisson, envolvendo crianças e adolescentes, são mais comuns do que se imagina. Levantamento feito com base em dados da Abracopel aponta que choques elétricos mataram 688 brasileiros entre zero e 15 anos nos últimos dez anos. "Fora o tradicional acidente com pipa, temos muitos casos de acidente dentro de casa, quando a criança coloca objetos metálicos ou até a mão dentro da tomada. Ela não tem noção que aquilo é um perigo - por isso, a importância de os pais ficarem atentos", diz Martinho. Conscientização sobre os perigos da eletricidade que, hoje, Gleisson aplica dentro de casa com os dois filhos. "Eu não nasci deficiente, mas me tornei deficiente por conta de um choque elétrico. Por isso, sempre digo que todo cuidado com a eletricidade é importante", diz. Quando uma pessoa recebe um choque elétrico, várias são as lesões que ele pode causar no corpo da vítima. Por esse motivo, cada caso deve ser analisado individualmente por um médico. "O choque elétrico pode causar uma variedade de lesões, que podem ir desde queimaduras leves até a morte", explica Marcus Vinicius Viana da Silva Barroso, presidente da Sociedade Brasileira de Queimaduras (SBQ). Entre as lesões mais comuns estão queimaduras na pele, geralmente na entrada e saída da corrente elétrica; fibrilação ventricular (uma condição em que o coração bate de forma descoordenada, o que pode levar à parada cardíaca e à morte); e até lesão muscular e no sistema nervoso central. Estudos também mostram que vítimas de choque elétrico são mais suscetíveis a experimentar problemas psicológicos, como ansiedade e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). "É importante lembrar que mesmo os choques elétricos aparentemente leves podem ter consequências graves e duradouras. Portanto, é fundamental seguir todas as precauções de segurança ao lidar com eletricidade e, quando sofrer um acidente, procurar ajuda", alerta Barroso. Estimativa da Sociedade Brasileira de Queimaduras (SBQ) aponta que choques elétricos correspondem a cerca de 3% a 5% do total de acidentes por queimaduras registradas anualmente no país. Contudo, quando analisado o número de óbitos, esse percentual sobe para 46%. "Existe uma diferença no tratamento da queimadura tradicional com fogo e a envolvendo choque elétrico. As queimaduras elétricas geralmente são mais graves e profundas do que as queimaduras térmicas, pois a eletricidade pode causar danos mais profundos nos tecidos do corpo. Além disso, as queimaduras elétricas podem ser acompanhadas de outras lesões, como fraturas, lesões musculares e lesões neurológicas", explica Barroso, da SBQ. Pedro Henrique Soubhia Sanches, cirurgião plástico da Unidade de Tratamento de Queimados (UTQ) do Hospital Padre Albino, em Catanduva (SP) — referência no interior de São Paulo em atendimento a vítimas de choque elétrico — ressalta que o primeiro ato ao socorrer uma vítima da eletricidade é o de desligar a energia elétrica. "É importante que nunca a pessoa toque na vítima enquanto a fonte de eletricidade estiver ativa. Pois ela também corre risco de sofrer um choque elétrico", alerta. Sanches ainda aponta que, normalmente, as pessoas acreditam que apenas o local de entrada e saída do choque elétrico pode apresentar lesões. Contudo, em muitos casos os danos da eletricidade estão invisíveis aos olhos das pessoas. "Por isso, sempre é importante a pessoa fazer um acompanhamento médico, pois o choque elétrico pode causar uma série de lesões. A lesão que pode estar pequena por fora pode ser grave por dentro", recomenda. A maioria dos incêndios que acontecem no Brasil ocorrem devido a curtos-circuitos ocasionados, principalmente, por fios e cabos de baixa qualidade. Ou seja, um simples carregador de celular pirata ou fios e cabos de baixa qualidade podem causar um incêndio em sua casa, segundo especialistas. Um estudo realizado pela Associação Brasileira pela Qualidade dos Fios e Cabos Elétricos (Qualifio), em parceria com o Sindicato da Indústria de Condutores Elétricos, Trefilação e Laminação de Metais Não-Ferrosos do Estado de São Paulo (Sindicel) aponta que 70% dos fios e cabos elétricos ensaiados produzidos no Brasil estão irregulares. "O que acontece é que muitas empresas fazem cabos que deveriam ter cobre e colocam alumínio cobreado, que é mais barato. Quando instalado na parede da residência, esse cabo vai virar uma bomba relógio. Isso porque a capa que deveria proteger de pegar fogo vai ajudar a propagar ainda mais o incêndio", explicou Ênio Rodrigues, diretor-executivo do Sindicel. Conhecidos como 'cabos desbitolados', esses cabos de baixa qualidade, além de provocar risco de curto-circuito e concomitantemente incêndio, podem provocar aumento no consumo de energia elétrica. "Os fios e cabos devem ser certificados pelo Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro), porém, existem fabricantes que desrespeitam as normas, mesmo tendo o selo do Inmetro e, ainda por cima, produzem cabos desbitolados com custos menores, pois utilizam menos cobre que o exigido e muito mais PVC, o que acaba colocando em risco a segurança do consumidor", alerta Rodrigues. Ao mesmo tempo, dados da Abracopel indicam que o número de incêndios provocados por curto-circuito cresceu assustadoramente nos últimos dez anos no Brasil: de 216, em 2013, para 874, em 2022. Um total de 5.315 incêndios de origem elétrica e 385 mortes. "Os acidentes ocorrem geralmente em ambientes residenciais, seguido de comércio. Mas, historicamente, os acidentes com hospitais vêm aumentando nos últimos três anos, chegando a números significativos (52) em 2022. O aumento indiscriminado de equipamentos para o controle da pandemia de covid-19 sem uma avaliação da instalação elétrica de forma adequada pode ter sido o motivo desse aumento", diz Martinho. No caso do carregador de celular, além de risco de incêndio, ele também pode causar choque elétrico. Entre 2017 e 2022, 84 brasileiros morreram após receberem uma corrente elétrica do aparelho celular. "Via de regra, o carregador de celular funciona como uma boia de caixa d’água. Quando ele atinge o nível máximo de bateria, ele para de enviar elétrons, tanto que você pode notar que, ao pegar a fonte, comumente ela está fria ao acabar de carregar e ficar conectada na tomada. No caso do carregador de má qualidade, não, ele continua mandando elétrons, podendo causar um sobreaquecimento", explica Martinho. O Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro) disse, por meio de nota, que hoje existem 205 empresas que produzem fios, cabos e cordões flexíveis elétricos com registro ativo na entidade e que os consumidores devem adquirir os cabos no mercado formal. Os Institutos de Pesos e Medidas (Ipem) são os órgãos delegados do Inmetro nos estados responsáveis pela fiscalização rotineira de fios e cabos. Segundo o órgão, práticas adotadas para coibir as irregularidades são a investigação prévia de estabelecimentos, a fim de identificar potenciais alvos de fiscalização, e a manutenção de contato próximo com associações e representantes setoriais. "Fios, cabos e cordões elétricos estão entre os produtos que sempre estiveram no radar do Inmetro, sendo objeto de programas de monitoramento constante como, a 'Operação Energia Segura'. Cabe destacar que no ano de 2022, o Inmetro empreendeu 4.083 operações de fiscalização nas quais foram encontradas 14.773 unidades de fios e cabos irregulares. O índice de irregularidade, no ano, foi de 10,17%", diz o comunicado. Além de comprar fios, cabos e produtos movidos a eletricidade no mercado formal, contratar profissionais qualificados e realizar manutenção periódica, especialistas ouvidos pela BBC News Brasil ressaltam que a maioria dos acidentes internos nas edificações poderia ser evitado pela execução de um sistema de aterramento e o uso de dispositivos de proteção à fuga de corrente, como o Dispositivo Diferencial Residual (DR), que é obrigatório no Brasil. O Dispositivo Diferencial Residual, popular DR, é um interruptor que desliga automaticamente a corrente elétrica quando identifica fuga ou vazamento de energia elétrica dos condutores do imóvel. Além de evitar choques elétricos, ele também evita curto-circuito. Entretanto, segundo o estudo Raio-X das Instalações Elétricas Residenciais Brasileiras, feito pelo Instituto Brasileiro de Cobre (Procobre) e pela Abracopel, menos da metade do total de imóveis brasileiros contam com o DR. "Sempre digo que o primeiro passo é as pessoas lembrarem que a eletricidade não é uma brincadeira. Ela requer sempre um profissional habilitado e atualizado. Porque o que se fazia na eletricidade há 15 anos não se faz mais", diz Martinho. *Os nomes foram trocados para proteger a identidade dos entrevistados
2023-04-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72vrjv957lo
brasil
As críticas que levaram governo Lula a suspender cronograma do Novo Ensino Médio
O ministro da Educação, Camilo Santana, anunciou nesta terça (4/4) que vai suspender por 60 dias a implementação da reforma do ensino médio, introduzida por meio de uma medida provisória do governo de Michel Temer (MDB) em 2017 e instituída por lei em 2018. Camilo fez um pronunciamento depois de se encontrar mais cedo com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para discutir as mudanças, alvo de muitas críticas e discussões nas últimas semanas. O Novo Ensino Médio já começou a ser implementado, por etapas. No ano passado, o novo projeto foi introduzido apenas para estudantes do 1º ano do ensino médio. Neste ano estava em curso a adoção pelo 2º ano e, em 2024, a reforma chegaria ao 3º ano e ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Entre as principais mudanças propostas pelo Novo Ensino Médio (NEM) estão: Fim do Matérias recomendadas O ministro da Educação disse que assinaria ainda nesta terça a suspensão formal da portaria 521, publicada em 13 de julho de 2021, que inicia o cronograma de aplicação do Novo Ensino Médio. "Como há ainda esse novo processo de discussão, nós vamos suspender essa portaria para que, a partir dessa finalização dessa discussão, a gente possa tomar as decisões", afirmou Camilo, segundo o portal de notícias G1. Atualmente está sendo realizada uma consulta pública sobre o Novo Ensino Médio — iniciada em 9 de março e com duração de 90 dias. Depois haverá um mês para elaboração do relatório com as manifestações e sugestões. "Vamos apenas suspender as questões que vão definir um novo Enem em 2024 por 60 dias. E vamos ampliar a discussão. O ideal é que, num processo democrático, a gente possa escutar a todos. Principalmente, quem está lá na ponta, que são os alunos, os professores e aqueles que executam a política, que são os Estados", declarou o ministro. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mesmo antes de ser eleito, Lula já era pressionado por sua base para derrubar a reforma. Em junho do ano passado, uma carta aberta assinada por mais de 50 entidades — como sindicatos de professores e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) — pediu a revogação da medida. Segundo o documento, ela foi implementada pelo governo de Michel Temer e "ganhou continuidade natural no governo de extrema-direita e de viés conservador de Jair Bolsonaro". Mas o ministro da Educação, que é do PT, já havia se posicionado na semana passada contra a derrubada do projeto — o que permaneceu no pronunciamento desta terça. "Simplesmente revogar e voltar ao passado eu não vejo que é o caminho”, disse Camilo em evento do Lide Ceará, de acordo com o Diário do Nordeste. Vitor de Angelo, presidente do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e secretário do Espírito Santo, disse que a "reforma carece de ajustes", mas que "a revogação seria apagar o caminho percorrido até aqui, literalmente jogar fora o esforço empreendido pelas redes estaduais de ensino até o momento e nos lançar num cenário de absoluta incerteza". Confira pontos da reforma que vêm sendo alvo de discussões. Uma das principais marcas da reforma é a divisão da carga horária em 60% para a formação geral básica, pela qual todos os alunos passam, e com os outros 40% voltados para os chamados itinerários formativos, projetados para dar mais flexibilidade ao currículo e para aproximar o estudante de seus interesses. Antes da reforma, a carga horária era de 800 horas de aula para cada ano do ensino médio — totalizando 2.400 horas para o segmento. Com as mudanças, ampliou-se esse valor para no mínimo 3.000 horas. E há um teto para a formação geral básica: ela não pode passar de 1.800 horas. Para Olavo Nogueira Filho, diretor-executivo da organização Todos Pela Educação, esse teto deve ser alterado pois é "muito baixo" — em uma escola de tempo integral, por exemplo, o tempo dedicado às disciplinas obrigatórias acaba bastante diluído. Nogueira também critica a possibilidade de que até 20% da carga horária do ensino médio — e até 30% do ensino médio noturno — seja realizada via ensino a distância. Para ele, esta regra é "um risco para a precarização". "Não defendemos a revogação completa. Dito isso, a qualidade do desenho da política é crucial, e temos observado muitas falhas. Por isso defendemos ajustes substanciais", diz Nogueira. Já Fernando Cássio, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) e integrante do comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, defende a revogação total da reforma para "pensar um modelo que seja minimamente democrático, que não seja excludente". Ele critica particularmente os itinerários ao citar um estudo da Rede Escola Pública e Universidade (Repu), da qual faz parte, relacionando o leque reduzido de disciplinas eletivas na rede pública à falta de condições materiais (salas de aula disponíveis, equipes docentes). O estudo da Repu mostrou que, nas escolas estaduais de São Paulo em que a reforma do ensino médio já foi implementada, 22,1% das aulas dos itinerários do 1º semestre ainda não haviam sido atribuídas a nenhum professor. Na prática, segundo o documento, "é como se os estudantes tivessem um dia letivo a menos por semana por falta de professores". Outra crítica está em disciplinas eletivas como "Brigadeiro Gourmet", "Mundo Pet" e "Torne-se Um Milionário" que foram introduzidas nesses itinerários. Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, o ex-ministro da Educação Mendonça Filho (União Brasil), em cuja gestão foi instituído o projeto do Novo Ensino Médio, declarou que as questões apontadas são exceções. "Alerto apenas para que exceções e possíveis desvios não sejam usados para manipular o debate, que deve ser sério, apenas para servir a interesses que não sejam o da educação de qualidade." A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo disse que a nova gestão "segue em diálogo com os estudantes e rede escolar, buscando aprimorar de forma colaborativa as estratégias em andamento [...] a Pasta estuda ajustar o NEM para que se tenha menos itinerários e novas abordagens exploradas, de forma que possa ocorrer reavaliação da distribuição da carga horária". Fernando Cássio, no entanto, afirma que o problema é mais amplo. "A questão é que a reforma do não entrega nada do que promete. Pelo contrário, ela piorou a escola. Os alunos não têm aula. O problema é menos a coisa esdrúxula do brigadeiro gourmet e mais o fato de que não tem professor, não tem aula, que as redes de ensino não são capazes de oferecer a carga letiva mínima obrigatória pela lei." Débora Goulart, professora do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), critica o que considera falta de "pensamento crítico" em algumas dessas novas disciplinas. "Nas chamadas competências emocionais desse novo currículo há disciplinas como 'Projeto de Vida'. E o que é isso? É discutir como sobreviver com autogestão, resiliência, autocontrole e perseverança nesse novo mundo do trabalho, precarizado e uberizado. Mas não existe uma discussão crítica sobre essas novas formas de trabalho, e sim uma aceitação delas." Nogueira, da Todos Pela Educação, defende que é preciso definir melhor os itinerários formativos, "hoje muito amplos". Mas, para ele, a crítica não deve significar o abandono da proposta de flexibilidade para os estudantes do ensino médio — marcado por altos índices de evasão escolar. "Acreditamos que a essência da reforma, que busca aumentar a carga horária, avançar um currículo mais atrativo com um ensino profissionalizante, aponta no sentido desejável", diz o diretor-executivo da organização. "O modelo antigo brasileiro é anacrônico." Diretor-geral do Colégio Marista Arquidiocesano, em São Paulo (SP), Everson Ramos também aponta para os itinerários formativos como uma das inovações benéficas da reforma, mas reconhece que sua aplicação pode ser desigual. No colégio particular que dirige, Ramos afirma que os itinerários já estão em uso em todos os anos do ensino médio desde 2018 e têm "uma boa adesão e motivação dos educadores, estudantes e da comunidade em geral". "Se a reforma for revogada, acreditamos que podemos manter os pontos que promoveram avanços na formação dos nossos estudantes. Infelizmente essa não é a realidade para muitos dos estudantes brasileiros", diz o diretor. "O mesmo ensino médio que, para alguns, é inclusivo, transformador, significativo, emancipador e consistente, para muitos pode ser exatamente o contrário, a depender do contexto no qual ele está inserido. Entendemos que mudanças são necessárias e que ajustes e correção de rumos são sempre bem vindas." Para Fernando Cássio, a reforma deve ser revogada porque sua essência é equivocada. "Não vejo que essa reforma possa produzir outra coisa que não o aprofundamento de desigualdades. E ela não é 'reformável' ou 'ajustável'. Porque do ponto conceitual ela foi feita para baratear a educação pública dos mais pobres", afirma. "Basta lembrar que 88% dos estudantes do país no ensino médio estão na escola pública." Goulart concorda: "O desenho dessa política [da reforma] é uma alteração do ponto de vista curricular. Mas não altera o financiamento, não altera a formação de professores, não altera a estrutura física, não altera o investimento". "A gente tem historicamente um problema em relação ao ensino médio, que não tem política específica para seu fortalecimento, para a permanência dos estudantes. É uma etapa que ainda não está universalizada. E aí você tem uma reforma que fragmenta todo o ensino médio." Na época em que o projeto foi apresentado pelo governo Temer, houve críticas por ele ter surgido como uma medida provisória — que tem tramitação rápida e parte do Executivo. Em 2018, o Banco Mundial firmou um acordo com o governo brasileiro para emprestar US$ 250 milhões (dos quais já foram desembolsados 68,45%) que, em parte, servem para financiar atividades ligadas à reforma do ensino médio. Olavo Nogueira Filho critica mais os capítulos posteriores, o da implementação. "A última gestão do Ministério da Educação, no governo Bolsonaro, virou as costas para o Novo Ensino Médio. Os estados atuaram por conta própria. Isso gerou uma implementação muito desigual Brasil afora", afirma. O presidente da Todos pela Educação diz esperar que a falta de diálogo não se repita. "A hora é justamente de muito diálogo e escuta. É o momento de promover a consulta pública anunciada, identificar os desafios que as escolas estão encontrando e construir um verdadeiro Novo Ensino Médio. Neste sentido, é importante ver o Ministério da Educação reassumindo a coordenação nacional sobre o tema, após quatro anos de abandono na gestão anterior", diz Nogueira. Mendonça Filho, em entrevista à Rádio Jornal de Pernambuco, defendeu a reforma dizendo que "o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica [Ideb] estava estagnado há cerca de dez anos em [um índice de] 3.8. A avaliação do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), que avalia a educação básica do Brasil, colocava o desempenho dos alunos brasileiros do ensino médio como insuficiente em português, matemática e ciência. Um desastre completo".
2023-04-04
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgx4ed47wyqo
brasil
Inferno no circo: o dia em que o Brasil assistiu ao pior incêndio de sua história
Quando pediu à mãe para ir à matinê de domingo do Gran Circo Norte-Americano, que tinha acabado de chegar a Niterói, município vizinho ao Rio de Janeiro, Maria José Martins de Oliveira, a Zezé, ouviu um sonoro “não” como resposta. Dias antes, Arlete Martins de Oliveira tivera um pesadelo medonho: sonhou que a filha de 11 anos tinha sofrido um acidente de ônibus e, presa nas ferragens, suplicava por socorro. Alheia aos “maus pressentimentos” da mãe, Maria José pediu ajuda ao pai, Geraldino Leite de Oliveira, que intercedeu em favor da filha. Conclusão: a menina foi ao circo acompanhada por uma afilhada de batismo da mãe, nove anos mais velha. O Gran Circo chegou a Niterói no dia 8 de dezembro de 1961 e foi montado na Praça do Expedicionário, em frente à Estação Leopoldina. O mastro principal media 17 metros de altura e a lona, feita de algodão e revestida de parafina, pesava seis toneladas. Para ajudar na montagem, o dono do circo, o gaúcho Danilo Stevanovich, contratou 50 operários. Depois de armado, o Gran Circo ocupou um diâmetro de 50 metros em um terreno baldio que, aos sábados e domingos, servia de campo de futebol improvisado para a garotada da vizinhança. O circo estreou em Niterói na noite de 15 de dezembro, uma sexta-feira, com lotação esgotada. Fim do Matérias recomendadas Aluna do Colégio Maria Tereza, em São Domingos, Maria José voltava para casa em Tribobó, São Gonçalo, quando, na avenida Feliciano Sodré, viu, pela janela do ônibus, o desfile de alguns dos 40 artistas do circo, entre palhaços, trapezistas e domadores, e dos seus 150 animais, como leões, girafas e elefantes, pelas ruas de Niterói. “Fiquei doida!”, resume a hoje professora aposentada, com 73 anos. Ela e a afilhada de sua mãe conseguiram comprar os últimos ingressos para a matinê de sábado, que começava às duas e meia da tarde. O circo tinha capacidade para 3,4 mil espectadores, divididos por nove arquibancadas, 800 cadeiras e 25 camarotes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Cada uma das 10 sessões do Gran Circo em Niterói começava com um número de domadores de leões e terminava com outro de trapézio. Foi um dos integrantes dos Flying Santiago, aliás, a primeira pessoa a gritar “Fogo!” naquela tarde calorenta de 17 de dezembro. A trapezista Nena, nome artístico de Antonietta Stevanovich, irmã de Danilo, tinha acabado de fazer seu número quando avistou, por volta das quatro e vinte da tarde, as primeiras labaredas, a cerca de 20 metros da entrada principal. O fogo começou na parte de baixo da lona. Ela e os outros dois trapezistas, Santiago Grotto e Vicente Sanches, conseguiram escapar ilesos pela porta dos fundos. Maria José não teve a mesma sorte. Na confusão, a menina se perdeu da afilhada de sua mãe. Sozinha, foi empurrada pela multidão e pisoteada. Conseguiu se levantar com dificuldade. Mas, quando se preparava para sair correndo, alguém pisou na sandália de borracha que ganhou de presente da mãe e levou outro estabaco. “Caí por cima de várias pessoas. E várias pessoas caíram por cima de mim. Caí e ali fiquei, sem conseguir me levantar. Tudo o que eu conseguia fazer era pedir a Deus para me tirar dali. Até hoje, não sei como consegui”, recorda Maria José que, sob o nome artístico de Zezé Pedroza, contou sua história no romance Vidas em Chamas (Editora Viseu, 2016), dedicado à sua mãe e ao cirurgião plástico que a operou, Jacy Conti de Alvarenga. Enquanto os trapezistas corriam para a porta dos fundos, Semba, uma das cinco elefantas indianas da trupe, abria um gigantesco rasgo na lona. Minutos antes, ela e suas irmãs – Jane, Lisa, Yoga e Mary – divertiram o público, jogando bola, dançando valsa e levantando as patas. No entanto, ao ouvir o grito de fogo, o paquiderme de quatro toneladas fugiu em debandada e deixou um rastro de admiração e cólera. “Herói para uns, porque abriu espaço por onde muitos passaram, vilão para outros, porque provocou mortes em seu caminho”, descreve o jornalista Mauro Ventura em O Espetáculo Mais Triste da Terra — O Incêndio do Gran Circo Norte-Americano (Companhia das Letras, 2011). Na hora do “salve-se quem puder”, poucos conseguiram fugir pela porta dos fundos — apesar de larga, era escondida por uma cortina —, outros tantos pegaram carona na fuga alucinada de Semba. A maioria tentou sair por onde entrou. Para chegar sãos e salvos do lado de fora, tinham que atravessar um túnel de treze metros de comprimento por quase quatro de largura. No caminho, dois gradis de ferro usados para facilitar a entrada do público dificultavam sua fuga. Perto do fim da sessão, seriam retirados. Mas, com o incêndio, ninguém se lembrou disso. Conclusão: o tal túnel ganhou o macabro apelido de “corredor da morte”. Ao longo de dois anos, Ventura entrevistou dezenas de pessoas, entre sobreviventes, familiares, médicos, voluntários e escoteiros. Das muitas dificuldades que enfrentou, destaca três: ninguém queria dar entrevista (“O trauma foi tão grande que as pessoas preferiam evitar o tema”), as memórias vinham embaralhadas (“Eram muitas as contradições. Muita gente confundia a data e o local da tragédia”) e documentos importantes se perderam (“A começar pelo processo judicial, que simplesmente desapareceu”). “Caso estivesse fazendo o livro hoje, a principal dificuldade seria a ausência de fontes. Os principais entrevistados morreram de 2009 para cá”, lamenta. Um dos relatos mais emocionantes foi o de Lenir Ferreira de Queiroz Siqueira. Na tragédia, ela perdeu o marido, Wilson, e os filhos, Regina e Roberto, de três anos e meio e dois, respectivamente. Perdeu também os gêmeos que esperava. “Ele me convenceu a ir porque a girafa era ‘xará’ de nossa filha”, contou Lenir ao programa Linha Direta Justiça: O Incêndio do Gran Circus Norte-Americano, exibido pela TV Globo em 29 de junho de 2006. No hospital, Lenir não foi reconhecida sequer pela mãe. Maria Benigna só se convenceu de que aquela paciente era sua filha quando ouviu seu murmúrio: “Mamãe”. “Nossa Senhora! É ela mesma”, espantou-se. O incêndio do Gran Circo durou apenas 10 minutos. Mas deixou, segundo estimativas oficiais, 503 mortos — sete em cada dez eram crianças. “Jamais tantos brasileiros morreram em tão pouco tempo e no mesmo lugar”, afirma Ventura. O incêndio da Boate Kiss, em 27 de janeiro de 2013, registrou 242 vítimas fatais e do edifício Joelma, em 1º de fevereiro de 1974, 188. A exemplo do que acontecera com a mãe de Lenir, parentes e amigos tinham dificuldade para reconhecer seus mortos e feridos. De tão carbonizado, Wilson, o marido de Lenir, só foi identificado pela aliança. No verso dela, o nome da esposa. Quando todos imaginavam que aquele pesadelo não poderia piorar, o que restava da lona de algodão parafinado despencou, em chamas, sobre a multidão. Na ânsia de proteger o rosto, muitos sofreram queimaduras de terceiro grau nas mãos e nos braços. Durante o resgate, voluntários quiseram levantar o toldo, mas foram impedidos por bombeiros. A manobra poderia arrancar a pele das vítimas incineradas. Lenir só conseguiu ser resgatada dos escombros porque ouviu um bombeiro gritar: “Quem estiver vivo faça algum movimento ou dê algum sinal!”. Lenir Siqueira entrou e saiu do coma várias vezes, recebeu o sacramento da extrema-unção no leito do hospital e permaneceu por nove meses internada no Hospital Municipal Antônio Pedro (HMAP). Deixou a unidade no dia 8 de setembro de 1962. “Apesar de tudo pelo que passou, achava que existiam dois caminhos: o da lamentação e o do sorriso. Optou pelo segundo. ‘Tenho que falar bobagem para os outros rirem’, costumava dizer. Quando enfrentava algum problema de saúde, sequela do incêndio, dava bronca em Santo Antônio: ‘Não me leva, não. Ainda tenho muito o que viver’”, relata o jornalista. Lenir morreu em 2018, aos 81 anos. O livro de Mauro Ventura também desfaz algumas lendas urbanas. Uma delas afirma que as feras do circo teriam escapado das jaulas e estariam devorando crianças pelas ruas de Niterói. A mais famosa, porém, faz alusão ao Profeta Gentileza (1916-1996). Dizia que o empresário José Datrino, dono de uma pequena empresa de cargas, teria se transformado em pregador depois de perder a família no incêndio. Nada disso. Por ocasião da tragédia, alega ter recebido uma “revelação” que o levou a trocar sua vida material por outra, espiritual. A bordo de um caminhão, seguiu para o local da tragédia. Lá, permaneceu por quatro anos, consolando as famílias das vítimas. “Desde os 12 anos, José Datrino sabia que, um dia, teria que cumprir uma missão na Terra”, diz Leonardo Guelman, doutor em Literatura Comparada pela UFF e autor de Univvverrsso Gentileza (Mundo das Ideias, 2008). “O incêndio do circo foi o episódio que deflagrou essa transformação interior. Para Gentileza, o circo era a representação do mundo. A lona circense corresponderia à abóbada celeste”. Com barba e cabelos grandes e vestindo bata branca, o andarilho eternizou versos como “Gentileza gera gentileza” nas 56 pilastras do viaduto do Gasômetro, no Centro do Rio. Ganhou homenagens musicais de Gonzaguinha (1945-1991) e Marisa Monte. Gentileza morreu em 28 de maio de 1996, aos 79 anos, na cidade de Mirandópolis (SP), a 594 km da capital. O número de mortos no incêndio foi tão grande que o então governador do Rio, Celso Peçanha (1916-2016), convocou todos os marceneiros de Niterói para fabricarem quatrocentos caixões. O estádio Caio Martins, com capacidade para 12 mil torcedores, foi transformado em uma imensa oficina de carpintaria. Se faltavam caixões para inúmeros cadáveres, também faltavam sepulturas para incontáveis enterros. O prefeito de Niterói, Dalmo Oberlaender, resolveu criar um anexo ao Cemitério do Maruí, no Barreto. Chamou 300 funcionários da prefeitura para abrir novas covas no alto do morro. Até 50 presos, todos com bom comportamento, foram deslocados para o trabalho. Até onde se sabe, ninguém tentou fugir. Do lado de fora do circo, também faltavam ambulâncias para tantos feridos. Muitos foram socorridos em táxis, ônibus e caminhões. Até um carrinho de picolé foi usado na remoção de uma criança. Mas, para a tristeza do vendedor da Kibon, morreu a caminho do hospital. Nas unidades superlotadas, as vítimas esperavam por atendimento médico em todo e qualquer canto: deitadas nos corredores, sentadas no chão, estiradas nas macas... “Perdi mais de 60 crianças. Não conseguia socorrer a todas ao mesmo tempo”, lamenta o cirurgião plástico Ronaldo Pontes, de 90 anos, que dava plantão no Hospital Pediátrico Getúlio Vargas Filho, o Getulinho, no Fonseca. “Fiquei duas semanas sem voltar para casa, trabalhando sem parar”. Quem também emendou plantões foi o clínico geral Waldenir Bragança. Até pensou em levar os filhos mais velhos ao circo, mas uma reunião de última hora em Araruama, na Região dos Lagos, o obrigou a refazer seus planos. Na volta para casa, levou um susto ao se deparar com o caos pelas ruas. Como o Hospital Antônio Pedro, o maior de Niterói, estava em greve, Bragança correu para o Hospital Psiquiátrico de Jurujuba. “Encontrei um antigo colega de ginásio entre as vítimas”, relata, aos 92 anos. “Já estava sem visão, com os olhos e parte do corpo queimados. Chamou meu nome, apliquei uma injeção nele e, logo em seguida, morreu”. Maria José foi levada para o Hospital Orêncio de Freitas (HOF), no Barreto, em Niterói. “Sofri queimaduras de terceiro grau em 90% do corpo”, relata. Quando completou 12 anos, no dia 25 de dezembro de 1961, estava em coma. Passou quase um mês inconsciente. Foi submetida a 15 cirurgias plásticas e a oito enxertos de pele. Recebeu alta em julho de 1962, sete meses depois da tragédia. Dona Arlete entrou na Justiça em 1962. Mas, o processo, a exemplo do que acontecera com outros documentos importantes, como os registros dos hospitais e dos cemitérios, desapareceu. Até hoje, Maria José não recebeu um centavo de indenização. No entanto, ingressou com uma ação no Tribunal Internacional de Haia por crime contra a humanidade. A suspeita da polícia recaiu sobre Adilson Marcelino Alves, o Dequinha, um dos 50 operários contratados por Stevanovich para ajudar na montagem do circo. Denunciado por um funcionário, Maciel Felizardo, foi preso e interrogado. Em seu depoimento à polícia, confessou ter ateado fogo à lona. “Se eu soubesse que ia morrer tanta gente, não teria feito o que fiz”, declarou o rapaz. Foi condenado a 16 anos de prisão. Seus cúmplices, Walter Rosa dos Santos, o Bigode, e José dos Santos, o Pardal, também cumpriram penas — de 16 e 14 anos, respectivamente. Dequinha escapou em 26 de janeiro de 1973. Foi morto a tiros, menos de uma semana depois. Está enterrado no mesmo cemitério construído às pressas para as vítimas da tragédia. Ainda hoje, a causa do incêndio divide opiniões. “Para uns, Dequinha era um ‘monstro incendiário’. Para outros, um bode expiatório. Afinal, interessava às autoridades encontrar logo o culpado”, explica Ventura. Há quem acredite na hipótese de acidente. Neste caso, a versão mais provável é a de curto-circuito. “O que mais me chamou a atenção foi a ausência de fiscalização”, observa a historiadora Ana Maria Mauad, do Laboratório de História Oral e Imagem (LABHOI) da Universidade Federal Fluminense (UFF). “Deixaram instalar um circo para mais de 500 pessoas com lona altamente inflamável e sem controle de segurança das instalações elétricas”. “O caso levou à condenação de um jovem de origem pobre e com deficiência mental, que mesmo as vítimas não acreditam ter sido capaz de realizar o ato”, endossa o historiador Paulo Knauss, do LABHOI-UFF. Não foi o primeiro circo da família Stevanovich a pegar fogo. O Bufallo Bill e o Shangri-lá também foram destruídos pelas chamas, em 1951 e 1952, ambos no Rio de Janeiro. Danilo morreu em 2001. Mas, o Gran Circo, rebatizado de Le Cirque, continua em atividade, sob a direção de George Stevanovich, sobrinho de Danilo. O incêndio no Gran Circo gerou uma comoção internacional. O papa João 23 (1881-1963) mandou rezar uma missa em homenagem às vítimas. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) doou a quantia de 1 milhão de cruzeiros. E o Santos de Pelé (1940-2022) e o Botafogo de Garrincha (1933-1983) fizeram uma partida beneficente em pleno Maracanã. Por outro lado, provocou um trauma sem precedentes. Niterói só voltou a assistir a um espetáculo do gênero em 1975. Mas, ao contrário do Gran Circo, o Hagenback tinha lona italiana à prova de fogo, seis saídas de emergência e numerosos extintores de incêndio. Muitos moradores ainda passam mal ao entrar em ambientes fechados, evitam frequentar lugares abarrotados de gente ou deixaram de comer churrasco por causa do cheiro de carne queimada. É o caso de Cézar Teixeira Honorato, de 69 anos. “O maior impacto talvez seja o de não conseguir, passado tanto tempo, ir a um circo”, diz. O professor de História Econômica e Social da UFF não foi à matinê porque seu pai deixou para comprar os ingressos na hora da sessão. “Naquele domingo, almoçamos na casa dos meus avós. Ao voltar de bonde, soubemos do incêndio e seguimos direto para casa. Como morávamos ali perto, pudemos ver toda a tragédia”, relata Cézar. O terreno que, em 1961, abrigou o Gran Circo cedeu lugar, sete anos depois, à Policlínica Militar de Niterói.
2023-04-04
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c89y43gvdl4o
brasil
Como mulheres conseguiram conter poder da milícia em área dominada do RJ
*A BBC News Brasil trocou os nomes das entrevistadas e omitiu detalhes sobre onde atuam para garantir sua segurança. Na Zona Oeste do Rio de Janeiro, uma mulher conta para um integrante da milícia que o filho dela furtou coisas da sua casa “de novo”. “O que eu posso fazer? Você deveria ir lá. Estou tão irritada. Como podemos dar um susto nele?”, diz ela. O homem responde: “Nós podemos consertar qualquer coisa. O negócio é que você não pode se arrepender depois. Tem que ter certeza”. Ele lembra que “resolveu” a situação de Ana, uma mulher que foi agredida pelo marido. Fim do Matérias recomendadas “O marido bateu nela. Ela ligou para a gente. Eu perguntei se ela tinha certeza (do que queria). Ela tinha.” A mulher, então, recusa a oferta de "ajuda" no caso do filho. “Não, eu não vou fazer isso. Eu estou brincando.” Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O diálogo foi presenciado pelo pesquisador Nicholas Pope, do King’s College London, que passou dois anos nesta região do Rio estudando a relação entre moradores e a milícia. No bairro onde o diálogo ocorreu, o poder paramilitar permeia cada aspecto da vida cotidiana e a violência é o meio de resolução dos problemas do dia a dia - dos mais simples aos mais graves. “O instinto natural nessa comunidade que abraçou a milícia é chamar os milicianos para agir quando há, por exemplo, um jovem fumando maconha, uma pessoa bêbada sendo inoportuna na rua ou em casos de violência doméstica. A milícia é chamada a resolver de crimes a comportamentos antissociais”, diz Pope à BBC News Brasil. Na mesma região, moradores de outro bairro, que reúne algumas dezenas de famílias, têm uma relação completamente diferente com a milícia. Paramilitares também controlam o comércio, mas problemas cotidianos graves, como fome e violência doméstica, são resolvidos com a ajuda de um grupo de mulheres que fundaram a comunidade décadas atrás e formaram uma rede de apoio. Elas criticam a ausência do Estado, mas discordam e resistem ao poder da milícia. Conseguiram, com uma ação social eficaz, reduzir a dependência da comunidade da “ajuda” paramilitar. Em vez de homens armados, é esse grupo de mulheres, a maioria delas negras, que se tornou o ponto de apoio e referência para solucionar problemas do bairro. “Por meio de laços de solidariedade, essas mulheres conseguiram resistir às pressões da milícia ao longo do tempo e até mesmo erodir e diminuir formas violentas de dominação no bairro”, diz Pope. Pope explica que a milícia não sobrevive apenas de coerção - depende de um apoio popular conquistado à base de uma relação de dependência. Quanto menor a dependência, menor o poder da milícia. Por isso, os paramilitares oferecem “proteção” e ajuda na solução de problemas. Na ausência do Estado, tornam-se uma opção de garantia da “ordem” e resolução de conflitos. Mas às custas de extorsões e violências cotidianas. “A milícia não se sustenta apenas com armas e controle territorial pela violência física. Ela subsiste graças a uma interdependência econômica e apoio social. Ela depende de renda de aluguéis, de taxas cobradas do comércio local, de as pessoas usarem seus meios de transporte, da construção de laços com a comunidade”, explica Pope. “Se a milícia não obtém o apoio da população por meio dessa dependência, a população vai resistir ou abrir brechas para outros grupos tomarem o poder, sejam eles lideranças de outras milícias ou traficantes.” No bairro onde as mulheres assumiram a dianteira na solução de conflitos e carências sociais, os milicianos encontraram menos espaço para agir. Elas recebem as demandas dos moradores e os direcionam para instituições que podem ajudar, como ONGs, abrigos, o serviço social ou a Defensoria Pública, além de acolherem elas próprias, com os recursos que têm, as mulheres que precisam de moradia por causa de violência doméstica. O principal vetor dessa rede de solidariedade é comida. Tudo começou com uma pequena horta comunitária, com legumes e frutas sem agrotóxicos. A horta virou ponto de encontro para discutir o direito a uma alimentação saudável. Jovens e crianças passaram a levar mudas para casa, ajudar na venda dos produtos em feiras e a cobrar de ONGs e do Estado cestas básicas com alimentos de melhor qualidade. Os adolescentes que participavam dos encontros começaram a trazer outros problemas para o conhecimento do grupo de mulheres, entre eles dificuldades de aprendizado na escola e violências sofridas por suas mães em casa. “Debater sobre comida é uma forma muito inteligente de fazer política e ação social nesse ambiente. Porque parece ser algo que não apresenta ameaça. Algo que a milícia não compreenderia como competição”, diz Pope. “Mas, a partir da discussão sobre direito à comida, outros temas entram em jogo. Há uma troca de conhecimento, a formação de vínculos e de redes de suporte. E é aí que reside o poder do trabalho sobre a comida que elas fazem.” A BBC News Brasil conversou com mulheres do grupo, mas, por questões de segurança, não revela seu nome, do projeto ou do bairro onde vivem. Elas chegaram à Zona Oeste décadas atrás, em uma ocupação onde a maioria dos moradores eram mulheres e crianças. Desde o início, a construção de casas, ruas e serviços naquela área foi liderada por mulheres, embora a milícia também já estivesse se instalando no território. Esse trabalho consolidou laços de solidariedade e estimulou a criação de uma rede para solucionar problemas da comunidade. “Nós não trabalhamos com armamentos e comércio. Somos leveza da poesia, música, educação, então temos passagem. Tem o elemento da ancestralidade também. Chegamos primeiro. Temos conseguido resistir assim”, explica Juliana*, uma das mulheres que fazem parte do grupo, à BBC News Brasil. A partir da horta e dos encontros regulares de jovens, as mulheres passaram a oferecer aulas gratuitas para adolescentes em várias disciplinas escolares, com a participação voluntária de professores. Aos poucos, firmaram parcerias com ONGs e órgãos públicos, como a Defensoria, para resolver diferentes tipos de problemas, como violência doméstica. “Já resgatamos várias mulheres em situação de violência. Levamos ao hospital, exigimos boletim de ocorrência, arrumamos abrigo”, conta Juliana. A intenção do grupo em criar programas e redes de apoio não foi, inicialmente, combater o poder da milícia. Mas elas acabaram, como efeito “colateral”, impedindo que os paramilitares ampliassem suas atividades e influência, como ocorre em muitos bairros da Zona Oeste, afirma Pope. “O que foi possível perceber analisando essa comunidade por dois anos é que atividades políticas e comunitárias como a dessas mulheres têm o potencial de frear sistemas violentos de liderança, substituindo soluções violentas por outras formas de resolver conflitos”, explica Pope. Amanda* também integra o grupo e explica por que, na sua visão, as populações de vários bairros do Rio recorrem às milícias. “Temos essa cultura patriarcal de que um homem vai salvar, resolver a situação. Temos a figura do padre, do pastor. As pessoas vão até eles para resolver problemas sociais”, diz. “A milícia é um braço desse poder, desse modo de pensar soluções. E ela traz o modo de viver do medo, do pavor, da dependência em ajuda. Queremos mostrar que o caminho não é viver de ajuda, temos direitos e precisamos lutar por eles.” Segundo Pope, controlar o comércio e o acesso à alimentação é uma forma de domínio da milícia sobre comunidades no Rio de Janeiro. Com a venda de alimentos e, em algumas ocasiões, com doação de comida a pedido de líderes comunitários, os milicianos angariam dinheiro e poder de barganha. Mas, durante a pandemia de covid-19, o grupo de mulheres conseguiu criar um sistema eficiente de arrecadação e distribuição gratuita de cestas básicas com alimentos saudáveis, ajudando a reduzir a fome em uma das áreas mais afetadas pela doença. As cestas foram entregues também em áreas que vão além de onde moram, alcançando populações de bairros onde a presença da milícia é mais ostensiva. Pope explica que esse projeto, em tempos normais, poderia provocar reações da milícia, por “invadir” uma seara normalmente controlada pelos paramilitares. Mas a pandemia agravou a fome, e as mulheres conseguiram ocupar um espaço antes dominado por milicianos. “A milícia tem lidado com alimentação e acesso a comida por muitos anos. Em circunstâncias normais, a atuação das mulheres nesse campo poderia ser vista como uma espécie de competição, uma entrada em um mercado que é deles”, diz Pope. “Mas a pandemia foi um período de tamanho caos e crise que promoveu uma oportunidade para que (o projeto delas ocorresse) sem maiores repercussões. As pessoas estavam passando fome e passaram a receber ajuda. Era um momento em que seria mais difícil contestar essa ação social.” Para Pope, embora a atuação desse grupo de mulheres tenha alcançado resultados em um pequeno bairro do Rio, o exemplo serve para pensar políticas amplas de combate à milícia que não envolvam só ações de segurança pública. “As milícias são um sintoma violento da desigualdade no desenvolvimento urbano. Elas cumprem um papel social, político e econômico nas comunidades onde atuam”, diz Pope. “O trabalho desse grupo de mulheres mostra que é preciso pensar políticas para substituir a dependência que as pessoas têm da milícia por outras dependências que não envolvam uma forma violenta de gestão. É sobre reinventar sistemas e instituições que substituam modelos violentos de controle e coerção por outros mais justos e inclusivos.”
2023-04-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ceq52y879lxo
brasil
Por que brasileiros vêm perdendo lugar entre estrangeiros no Japão
Brasileiros vêm perdendo espaço para outras nacionalidades entre os estrangeiros residentes no Japão, um país historicamente avesso à imigração, mas que, nos últimos anos, tem recebido cada vez mais imigrantes. Por quase duas décadas, brasileiros se mantiveram como a terceira maior comunidade de estrangeiros na "terra do sol nascente", atrás dos chineses e dos sul-coreanos. Mas tudo mudou nos últimos dez anos. Primeiro, foram ultrapassados pelos filipinos. Depois, pelos vietnamitas. Nesse período, a população de brasileiros no Japão praticamente se manteve no mesmo nível — há cerca de 200 mil vivendo no país, após o pico de 300 mil antes da crise econômica mundial de 2008. Os vietnamitas cresceram em número e somam hoje 500 mil, ou 16% do total de 2,6 milhões de estrangeiros residentes no país. Fim do Matérias recomendadas São o segundo maior grupo, atrás apenas dos chineses (744 mil, ou 25,1% do total), de acordo com o Ministério de Justiça japonês. Na opinião de Eiji Shimada, executivo de uma empresa especializada em recrutamento de mão de obra estrangeira, os brasileiros vêm perdendo competitividade no mercado de trabalho do Japão por dois motivos: envelheceram e muitos não se preocuparam em aprender o idioma japonês. "E os asiáticos que estão chegando vêm com proficiência equivalente ao nível 4 (em uma escala crescente de 1 a 5). Isso é um alívio para os empregadores", diz. O boom da imigração brasileira para o Japão ocorreu com a revisão da lei de controle de imigração, em junho de 1990. Animados com a possibilidade de trabalhar e morar por um período relativamente longo no país, milhares de descendentes de japoneses e seus cônjuges até a terceira geração desembarcaram para trabalhar como operários em fábricas. O trabalho era pesado, mas financeiramente recompensador. Entre os anos 1990 e 2000, o número de brasileiros quintuplicou e chegou a 250 mil pessoas. Já no caso dos vietnamitas, o salto foi mais alto em igual intervalo de tempo: de 70 mil, essa comunidade passou para quase 500 mil em dez anos. Mas o professor Angelo Ishi, do Departamento de Mídia e Sociologia da Universidade de Musashi, em Tóquio, assinala diferenças importantes entre os dois grupos. "A maior delas é que a comunidade brasileira é predominantemente nikkei (nipodescendente). E essa peculiaridade faz que tenham a vantagem do visto com poucas restrições às atividades, o que ajudou muito na adaptação ao país e para navegar no mercado de trabalho japonês (facilidade de mudar de emprego e de setor)". No caso de vietnamitas, a maioria tem o visto de guinoo jisshusei (estagiário), e outra parcela considerável é estudante (ryugakusei) — em ambos os casos, sofrem mais restrições do que os vistos de nikkei. Shimada, especialista em Recursos Humanos, diz que a vantagem para o empregador em ter um estagiário técnico asiático é poder reter essa mão de obra, já que esse tipo de visto não permite que o estrangeiro mude de empregador enquanto estiver no Japão. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na década de 1990, o Japão implantou o Programa de Estágio Interno com o objetivo declarado de fornecer treinamento, habilidades técnicas e experiência em tecnologia para trabalhadores de economias em desenvolvimento. Porém, o sistema acabou sendo comparado a um tipo moderno de escravidão, devido às inúmeras queixas de estagiários sobre o não pagamento de salários e as péssimas condições de trabalho. Críticos dizem que o programa visava, na verdade, compensar a falta de trabalhadores pouco qualificados no setor empresarial. Em abril de 2019, o programa para estagiários técnicos foi expandido para permitir a entrada de 345 mil trabalhadores. Eles teriam direito de permanecer no Japão por no máximo cinco anos e trabalhar em setores como agricultura, construção e cuidados de enfermagem, onde a escassez de mão de obra é severa. Após a conclusão do treinamento, há a possibilidade de mudar o status do visto para outro, o de Habilidades Especificadas, e, com isso, prolongar a permanência no país por no máximo dez anos. Segundo o Ministério da Saúde, Trabalho e Bem-Estar Social do Japão, cerca de 1,8 milhão de pessoas (dois terços da população estrangeira) são considerados trabalhadores com vistos diversos, sendo que mais de 327 mil estão registrados como estagiários técnicos. Esse total vem aumentando desde que as estatísticas passaram a ser computadas, em 2007. Por nacionalidade, os vietnamitas encabeçam a lista de trabalhadores em geral, com 462 mil indivíduos (25,4% do total). Os brasileiros vêm sentindo essa mudança no ambiente de trabalho e tendo reações diversas. Muitos veem filipinos e vietnamitas como uma ameaça. Outros, como a carioca Selma da Silva, preferem aprender uma nova cultura com os colegas. Em 2014, ela decidiu retornar ao Brasil depois de três décadas morando no Japão. Naquele ano, viviam na Província de Aichi cerca de 22 mil brasileiros e 18 mil vietnamitas. Dois anos atrás, contudo, quando Selma fez as malas de volta ao Japão, se deparou com um cenário diferente em Aichi. "Havia muitos deles (vietnamitas) onde eu trabalho — uma fábrica de peças para fogão —, e quase todos são jovens. Não entendo o idioma, mas tentamos nos comunicar com gestos e o japonês que dá para quebrar o galho", diz. Atualmente há 298.790 empresas que recrutam mão de obra estrangeira no Japão, sendo que mais de 60% são de pequeno porte (com menos de 30 trabalhadores). Um exemplo é a T.S. Farm, do brasileiro Walter Toshio Saito. Conhecido como o "Rei da Cebolinha" devido ao volume da produção, ele decidiu ampliar a contratação de asiáticos (vietnamitas e indonésios) para o trabalho na lavoura. "Para o empregador, os estagiários custam menos do que outros trabalhadores de empreiteiras. Além disso, são esforçados e suportam as condições para enviar dinheiro para casa", diz. Segundo Edson Urano, professor associado do programa de pós-graduação em Políticas Públicas Internacionais da Universidade de Tsukuba, a ênfase na otimização do trabalho tem sido maior devido à competição do mercado. "O Programa de Estágio Técnico acaba sendo interessante para os empregadores, que tentam reduzir o custo com a mão de obra. Contudo, significa uma pressão a mais para os brasileiros, pois as empresas combinam diferentes tipos de contratos e trabalhadores precários no sistema de produção para cortar custos, o que pressiona os salários para baixo". Ele lembra que os brasileiros chegaram ao Japão em uma época em que o país estava saindo da bolha econômica, havia escassez de mão de obra e os salários eram altos. "Por outro lado, no Brasil, a economia estava ruim, então, havia um ganho muito grande para quem quisesse vir para cá. Mas depois da crise financeira em 2008, o cenário foi mudando", acrescenta. Segundo ele, o trabalhador brasileiro precisa mudar seu foco. "Se o brasileiro decidir se sujeitar ao mercado periférico de mão de obra, continuará em uma situação frágil. Para quem vive do trabalho, o corpo e a saúde são o maior patrimônio, e com a idade, talvez o corpo não consiga trabalhar por mais dez anos em uma linha de montagem", diz Urano. A falta de perspectiva não é um sentimento compartilhado apenas por estrangeiros. Atualmente, há um desânimo institucionalizado que afeta a população japonesa em geral. Urano observa que diferentemente da década de 1980, quando o país manifestava otimismo, para alguns até exagerado, sobre o futuro, agora a sociedade japonesa carece de vitalidade, depois de quatro décadas "perdidas" — o Japão cresceu apenas 0,43% entre 1980 e 2022. "O Japão parece estar conformado com um futuro não muito próspero, porque sabe que vai ter um declínio e envelhecimento acentuado da população e, consequentemente, da economia também", diz. Embora não tenha ocorrido melhorias pelo lado da renda, Shimada destaca que, no geral, houve mudanças benéficas para o trabalhador, especialmente em relação a seu bem-estar. O Japão aprovou a Lei da Igualdade de Gênero no Trabalho para garantir salário igual para homens e mulheres, e realizou a reforma trabalhista durante o governo do ex-premiê Shinzo Abe, que prometia uma "revolução na forma como as pessoas trabalham", visando o aumento da produtividade do país. A ideia é incentivar as empresas a investirem mais em tecnologia e a implementar jornadas flexíveis de trabalho. No entanto, especialistas dizem que, para lidar com o déficit de trabalhadores pelo qual o país passa, a mão de obra estrangeira será cada vez mais necessária. Apesar disso, os estrangeiros continuam sendo apenas uma ínfima parcela da população do Japão. Em 2020, eles eram 2,2%, enquanto representam 13,3% nos Estados Unidos, 19% na Alemanha e 21% no Canadá. Segundo especialistas, há forte concorrência pela mão de obra de países da Ásia, responsáveis pelo envio de mais de 40% dos trabalhadores para o mercado global, e o Japão precisará fazer novas concessões, melhorar o ambiente de trabalho e a remuneração se quiser permanecer atrativo. "O país vem relaxando algumas de suas regras para receber os estrangeiros, enquanto sua população aprende a conviver com eles. Mas deve se esforçar mais para utilizar os recursos humanos globais", diz Urano. O Japão tem sido um dos principais destinos dos jovens do Vietnã em busca do sonho de melhorar de vida. Tanto os brasileiros quanto os vietnamitas parecem satisfeitos com o país, como revela pesquisa sobre a situação dos estrangeiros, realizada desde 2020 pela Agência de Imigração do Ministério da Justiça do Japão. "Já na primeira pesquisa em 2020, constatamos que o grau de satisfação em relação à vida no Japão é relativamente alto. A tendência se confirmou nesta segunda edição. Praticamente nove em cada dez residentes (87,8%) estão satisfeitos ou relativamente satisfeitos." Os mais satisfeitos com a vida no Japão são os filipinos (68%) e os americanos (62%), e na outra ponta se encontram taiwaneses (35,8%) e chineses (36,1%). Já os brasileiros e os vietnamitas estão bem na média: respectivamente, 53% e 52% satisfeitos, e 31,2% e 35,6% relativamente satisfeitos. Segundo a mesma pesquisa, os vietnamitas também se mostraram mais vulneráveis aos efeitos da pandemia do que os brasileiros, observa Ishi, que participou como consultor acadêmico de todas as edições do levantamento. Enquanto 29,5% dos brasileiros responderam que "sua renda diminuiu ou perderam o emprego", no caso dos vietnamitas essa taxa foi de 51,6% — a maior entre todos os estrangeiros. A perda da renda foi generalizada entre os estrangeiros. Diante da pergunta "qual o seu maior problema no trabalho", 35,6% de todos os entrevistados responderam que “o salário é baixo demais". "Sobre a renda, é preocupante que 18% dos respondentes estejam se virando com menos de 2 milhões de ienes anuais (média mensal de 166 mil ienes, ou o equivalente a R$ 6,6 mil) diante da inflação galopante que o Japão tem", afirma Ishi. Entretanto, para concretizar o "sonho japonês", o custo tem sido alto para os asiáticos. Segundo um levantamento realizado em 2022 pela Agência de Imigração do Japão, os vietnamitas assumem dívidas altas para conseguir pagar cerca de 688 mil ienes (quase R$ 28 mil) cobrado por agências e grupos de intermediadores. Embora o Japão tenha assinado acordo com 14 países envolvidos no Programa de Treinamento de Estagiário Técnico, há diferenças locais. Segundo a agência, enquanto o governo filipino proíbe a cobrança de taxas de despacho, esta é permitida pelo Vietnã. Segundo a mesma pesquisa, 79% dos estagiários entrevistados disseram ter recebido o salário esperado ou até superior, mas, para 21%, o valor era aquém da expectativa. A Agência de Imigração acredita que a frustração com a baixa remuneração e as condições de trabalho podem explicar a maioria dos 7.167 casos de fuga de estagiários (60% deles procedentes do Vietnã) registrados. Em princípio, quem vem pelo programa de estágio técnico não pode mudar de emprego, mesmo que esteja insatisfeito. Muitos preferem, então, abandoná-lo, mas continuar no Japão de forma irregular para quitar sua dívida e perseguir seus sonhos.
2023-04-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c84d07lzdk5o
brasil
Lula deve negociar venda de até US$ 10 bi por ano em 'licença para poluir' à China
Quando finalmente se encontrar com o presidente chinês Xi Jinping em Pequim, o mandatário brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva deve tentar convencer a China a comprar o equivalente a até US$ 10 bilhões (ou R$ 51 bilhões) por ano em créditos de carbono gerados pelo Brasil. O gás carbônico é um dos gases responsáveis pelo aquecimento global. Créditos de carbono são um mecanismo criado pelo Protocolo de Kyoto, em 1997, pelo qual países que emitem menos gás carbônico na atmosfera do que suas metas recebem créditos que podem vender a outros países com dificuldade em reduzir sua própria poluição. Na prática, é como se a China comprasse do Brasil uma espécie de licença para poluir um dado limite adicional à sua própria meta original de emissões. A negociação entre Brasil e China se dá em um contexto no qual a pauta ambiental tornou-se uma prioridade na agenda internacional do novo governo Lula. Nos últimos anos, o Brasil viu sua taxa de emissões ultrapassar mais de 30% a meta estabelecida no Acordo de Paris e se tornou o quinto maior poluidor do mundo, atrás apenas de China (1o), EUA (2o), Índia (3o) e Rússia (4o). Mas diferentemente dos demais países na lista - cujas emissões são geradas por uso de combustível fóssil para energia, no Brasil, o desmatamento é responsável por cerca de metade do carbono liberado na atmosfera. Ao mesmo tempo em que promete zerar o desmatamento ilegal na Amazônia até 2030 - o que derrubaria os índices de carbono brasileiros, Lula já demonstrou frustração por não ver os instrumentos criados nos fóruns multilaterais, como um mercado internacional de carbono, serem implementados. “Uma das agendas do presidente Lula é o comércio de carbono entre os dois países. Essa relação de ‘parceria estratégica’ com a China deve gerar oportunidades como um acordo de enfrentamento da crise climática em que a China, que tem as maiores emissões, possa se juntar com o Brasil, país que tem a maior biodiversidade e nesta junção criarem o maior mercado de carbono do mundo, fundamental para esta transição para um modelo de produção e consumo descarbonizado”, afirmou, em Xangai, Jorge Viana, ex-senador e atual presidente da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex Brasil). Fim do Matérias recomendadas Após o cancelamento de sua viagem a Pequim por causa de uma pneumonia, o presidente brasileiro tenta remarcar a agenda com Xi Jinping para a primeira quinzena de abril. Partiu da diplomacia brasileira a iniciativa de incluir as mudanças climáticas como um dos temas centrais da reunião bilateral e há a perspectiva de criação de um inédito mecanismo ambiental bilateral de cooperação entre Brasil e China nos moldes daqueles já estabelecidos pelos brasileiros com os europeus. “O Brasil tem hoje a oportunidade de trazer US$ 10 bilhões anualmente com a criação de um mercado regulado internacional de carbono. O Brasil presta serviços biossistêmicos para o mundo”, afirmou Pablo Machado, diretor-executivo da Suzano na China. Com o plantio de 1,2 milhão de mudas de árvores por dia, a empresa brasileira de celulose é superavitária em carbono e poderia se beneficiar da criação de um mercado internacional de créditos. Machado, no entanto, se recusou a estimar o tamanho dos ganhos da Suzano porque a empresa é listada em bolsa. A companhia acaba de inaugurar um laboratório de inovação em Xangai. A China compra atualmente 45% de toda a produção de celulose de eucalipto da Suzano. Embora seja atualmente a maior emissora de carbono do mundo, a China tem investido em soluções para adequar sua economia a um desenvolvimento mais sustentável. O país é líder mundial na produção de placas fotovoltaicas para geração de energia solar e na fabricação de automóveis elétricos. Em 2021, os chineses regulamentaram seu mercado nacional de créditos de carbonos (com 4 bilhões de toneladas de CO2), que já é o maior do mundo. Mas ainda não contam com um arcabouço internacional do gênero, algo que seria relevante para o país já que, apesar do esforço interno, a China segue dependente de uma matriz energética extremamente poluente, baseada em carvão e petróleo. Em um seminário promovido pela Apex com empresários chineses, em Pequim, o embaixador do Brasil na China, Marcos Galvão, fez questão de anunciar, genericamente, o lançamento “de um novo eixo das relações Brasil-China”. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast “A construção de uma parceria cada vez mais forte para o desenvolvimento sustentável de ambos os nossos países, (com) parceria na transição energética, descarbonização, no mercado de créditos de carbono, combate à mudança do clima, desenho e compartilhamento de novas tecnologias, preservação da biodiversidade e estabelecimento de atividades econômicas que ofereçam alternativas de prosperidade em áreas ameaçadas por práticas danosas ao meio ambiente”, afirmou Galvão. Empresários brasileiros ouvidos pela BBC News Brasil disseram reservadamente que, embora os chineses ainda não exerçam pressão semelhante a dos compradores europeus por uma produção limpa, essa já é uma preocupação do país, que compra matéria-prima brasileira para manufaturar e exportar para a Europa e por isso também está sujeita às regulamentações ambientais da União Européia. “A China está adotando medidas muito fortes pra descarbonizar”, diz Viana, que defendeu na China que o Brasil não pode esconder seu recente passado de desmatamento, em uma declaração que desagradou representantes do agronegócio brasileiro, frequentemente relacionado a práticas de desmatamento. Viana se desculpou por “qualquer mal entendido” provocado por suas declarações e afirmou que suas ponderações se referiam ao governo de Jair Bolsonaro, que “estimulou desmatamento no país”. Nesta sexta (31/3), Viana teve uma reunião com a ex-presidente Dilma Rousseff, que recém assumiu a liderança do banco dos BRICS (bloco composto por Brasil, Rússia, índia, China e África do Sul) para propor que o total de financiamentos destinado para a produção agropecuária salte de US$ 200 milhões para US$ 500 milhões. A linha de financiamento, com juros de 7%, seria exclusiva para exportadores. “Eu estou aqui para valorizar essas empresas (do agronegócio). Conversei com a presidente Dilma para que a gente busque ampliar ou trazer de volta uma carteira que o agronegócio tinha para o governo brasileiro. O Banco dos BRICS é uma oportunidade”, disse Viana. Dilma assumiu o posto de presidente rotativa da instituição bancária que cabe ao Brasil até 2025 em substituição a Marcos Troyjo. "Como país anfitrião, a China dá as boas-vindas a Rousseff para assumir seu novo cargo, continuará a aprofundar a cooperação geral com o NDB e a apoiará totalmente em seu bom desempenho de funções na China", disse nesta quinta, 30/3, o porta-voz do governo Mao Ning.
2023-03-31
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd16zk25e6zo
brasil
'Soube da morte da minha mãe ao receber um vídeo dela após ser esfaqueada'
Atenção: esta reportagem contém detalhes perturbadores Na tarde de 21 de junho de 2022, a vendedora Grasiela Ramalho, de 37 anos, estava no trabalho quando soube das primeiras informações sobre um ataque a facadas em um ônibus no centro de Piracicaba, em São Paulo, cidade em que mora com a família. A princípio, a vendedora não prestou atenção nas notícias sobre o caso, porque não acreditava que poderia conhecer alguma das vítimas. Ela não cogitava que a mãe, Roseli Ramalho Ferreira, de 55 anos, pudesse estar no ônibus. "Meu pai tinha mudado de horário no serviço e deu certo de os dois quase sempre voltarem para casa juntos. Então ela só pegava ônibus às vezes", diz à BBC News Brasil. Com a repercussão do caso, no entanto, ela começou a se questionar se a mãe estava no veículo. "Surgiu um pensamento: meu Deus, será que ela estava no ônibus? Aquele era justamente o horário em que ela saía do serviço." "Comecei a sentir um aperto no coração, mas na hora a gente nunca acha que pode ser. Entrei no Facebook e em várias páginas de jornais locais", diz Grasiela. Naquele dia, Roseli havia pegado o ônibus sentido Centro-Vila Sônia ao fim do expediente. Enquanto o veículo passava pela região central, um homem atacou alguns passageiros com uma faca. Grasiela mandou mensagens para a mãe, mas não obteve resposta. Também tentou contato com o pai, mas não conseguiu falar com ele, que estava no trabalho. "Começaram a chegar várias mensagens em grupos de WhatsApp e eu comecei a ver os vídeos. Até então, só mostravam o lugar em que o ônibus foi atacado." "Mas quando compartilharam um outro vídeo, eu abri e mostrava um menino que foi esfaqueado, aí a câmera virou e mostrou uma mulher caída no chão (na calçada). Eu reconheci que era a minha mãe principalmente por causa do tênis que ela usava, que a gente tinha dado para ela pouco antes, no Dia das Mães", conta. Grasiela começou a passar mal e a gritar desesperadamente. Os trabalhadores de comércios próximos correram para ajudá-la. "Me perguntaram o que tinha acontecido, mas eu não conseguia falar nada, só gritava 'a minha mãe, a minha mãe'", relembra. Hoje, além de lamentar a trágica morte da mãe, Grasiela também se revolta pela forma como descobriu o fato. "Foi uma situação horrível. Nunca imaginei descobrir a morte da minha mãe por uma filmagem do corpo dela ali. Nunca passou pela minha mente, isso não passa pela cabeça de ninguém", desabafa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Assim como no caso do crime em Piracicaba, é cada vez mais comum que acidentes, crimes ou desastres naturais sejam filmados ou fotografados e logo sejam compartilhados nas redes. Os registros dessas situações se tornaram comuns com a propagação dos smartphones e com o avanço das redes sociais e aplicativos de mensagens. Em razão disso, em alguns casos essas imagens podem chegar a parentes das vítimas. A psicóloga Maria Júlia Kovács, professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, destaca que uma das possibilidades é que a descoberta de uma morte por meio de uma foto ou um vídeo na rede torne o início do processo de luto ainda mais difícil. Ela aponta que o ideal em uma situação de perda de ente querido é que a notícia seja dada de forma "delicada e respeitosa" e pessoalmente. "Se a gente pensa em um ser humano que acabou de perder alguém, com quem tem um vínculo, é importante que haja uma dimensão humana nessa comunicação, um encontro, uma preocupação com essa pessoa, um acolhimento que nem sempre as redes sociais oferecem", pontua a especialista, que ajudou a fundar o Laboratório de Estudo Sobre a Morte na USP. "Evidentemente, o risco nas redes sociais é sempre muito grande de devassar uma intimidade, uma privacidade, de expor o sofrimento ou escancarar uma série de situações complicadas", diz a especialista. Ela aponta que o apoio é importante porque pode ser que a pessoa que recebeu a notícia se coloque em risco. "Principalmente quando é uma morte inesperada, como em um acidente. Ao dar a notícia, é preciso observar o que acontece com a pessoa e se oferecer para dar acolhimento, ver o que ela precisa, ter um copo d’água próximo e ir acompanhando a pessoa", diz. Ao mesmo tempo, a psicóloga comenta que as redes sociais também podem ter um papel positivo durante o período de luto. "Elas podem, em algum momento, dar essa possibilidade do acolhimento, da troca, de dizer sobre sentimentos compartilhados. Então não vamos só demonizar. Mas, certamente, no momento de dar a notícia na rede social não é o melhor caminho", diz. O tenente Gilberto Algarra, da Polícia Militar de Piracicaba, considera que esse comportamento de gravar e compartilhar situações que mostram vítimas de acidentes ou crimes "expõe um lado obscuro" das pessoas. "Outro dia, negociamos com um homem que queria pular da ponte. Enquanto isso, do outro lado passavam alguns veículos com pessoas gravando com o celular e gritando para ele pular. Perceba o nível da insanidade. Tivemos que interditar a ponte para facilitar a negociação com o homem, que por fim desistiu da ideia de saltar", comenta o militar. Algarra acompanhou o caso do ataque ao ônibus de Piracicaba e diz que outros familiares de vítimas do crime também souberam que elas haviam sido esfaqueadas ao ver alguns vídeos compartilhados na rede. "A sensação de exclusividade na divulgação de notícias de tragédias move um número cada vez maior de pessoas que perdem a sensibilidade e fazem de tudo para obter uma imagem para divulgar nas redes sociais ou aplicativos de mensagens. Elas não se preocupam se isso pode ferir alguém. Isso é um absurdo", diz o militar. Para Grasiela, o compartilhamento do vídeo da mãe após ser esfaqueada foi uma crueldade. "É preciso saber que a família daquela pessoa pode ver. O ser humano é curioso, vai abrir o vídeo, como aconteceu comigo, para ver o que estava acontecendo. Mas é cruel quando você vê que é um ente querido seu ali. É bem duro, não é fácil", diz. As famílias que tiveram vídeos ou fotos dos parentes mortos compartilhados nas redes podem buscar formas de denunciar o conteúdo na plataforma em que foi compartilhado e solicitar a retirada dele — ou até mesmo, caso necessário, buscar a Justiça para cobrar a exclusão dos registros. "É possível buscar na Justiça a retirada do conteúdo das redes sociais ou quaisquer outras mídias em que tenha sido divulgado. A retirada, no entanto, não é garantida. Tudo depende do contexto", comenta o advogado Marcelo Crespo, especialista em Direito Digital e coordenador de Direito na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Segundo Crespo, se for um contexto "absolutamente exploratório da situação de vulnerabilidade da família ou para exposição do cadáver" pode ser mais fácil para conseguir deletar o conteúdo da rede. Em nota à BBC News Brasil, o WhatsApp informa que não faz moderação de conteúdo porque usa criptografia de ponta a ponta como padrão, o que, segundo a plataforma, impede que tenha acesso ao conteúdo de mensagens trocadas entre os usuários. "O WhatsApp incentiva os usuários a refletir cuidadosamente antes de compartilhar conteúdo com seus contatos. Além disso, nossos Termos de Serviço indicam atividades proibidas no uso do aplicativo e podemos banir usuários em caso de suspeita de violação desses termos", diz comunicado da empresa à reportagem. O aplicativo ainda ressalta na nota que incentiva que "comportamentos inapropriados, além de conteúdos ofensivos e ilegais, sejam denunciados às autoridades competentes e diretamente nas conversas no app, por meio da opção "denunciar” (menu > mais > denunciar) ou simplesmente pressionando uma mensagem por mais tempo e acessando menu > denunciar." Os parentes de Roseli optaram por não buscar formas para excluir ou impedir a propagação do vídeo na plataforma de mensagens. Isso porque afirmam que o material em que ela aparecia morta não teve grande divulgação nos dias seguintes. A filha conta que nunca mais assistiu ao vídeo, passou um período sem mexer no celular e logo depois trocou de aparelho. "Fiquei traumatizada", diz. "Se eu não tivesse visto o vídeo, nem saberia que era a minha mãe, talvez eu só soubesse quando a polícia ou algum familiar me procurasse. Eu poderia ter descoberto de outra forma", comenta. Mesmo após assistir ao vídeo, Grasiela ainda não queria acreditar que a mãe dela estava morta. "Eu não queria aceitar que era a minha mãe deitada no chão com sangue. Eu pedi a Deus para que não fosse a minha mãezinha ali, mas infelizmente era", diz. Quando chegou com o pai ao local do crime, Grasiela viu que diversas pessoas continuavam registrando a cena. "Um policial acompanhou a gente e disse que ia colocar a gente numa viatura, porque tinha muita gente filmando a nossa dor e ele disse que não achava isso legal". Além de Roseli, outras duas pessoas também foram esfaqueadas no ônibus e morreram. Outras três pessoas foram feridas. Segundo a Polícia Civil, o responsável pelo crime, identificado como José Antônio Santana Filho, de 52 anos, entrou no ônibus e escolheu as vítimas de modo aleatório. Conforme a investigação, não havia motivo para o ataque. O homem permanece preso desde a data do crime. A defesa do acusado apresentou à Justiça um laudo psiquiátrico que atesta a insanidade mental dele para solicitar que ele seja internado em um manicômio judiciário. O pedido ainda não foi avaliado pela Justiça. "Acredito que nos próximos dias teremos um posicionamento do judiciário", diz o advogado Gustavo Chacur, responsável pela defesa do acusado. A família de Roseli agora espera pelo julgamento do acusado – ainda sem previsão para ocorrer. "A gente entregou nas mãos de Deus, porque só ele faz Justiça. É muita maldade matar três pessoas e arrasar com três famílias. Mas a gente já entregou nas mãos de Deus, porque esse homem já tirou a nossa joia rara da gente e isso não tem como trazer de volta", diz Grasiela.
2023-03-31
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ce42y8w90gxo
brasil
Bolsonaro e os tribunais: de joias a eleições, os problemas que o ex-presidente enfrenta na Justiça
O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) regressou ao Brasil na quinta-feira (30/03) após três meses morando nos Estados Unidos. Ele deixou o país no dia 30 de dezembro do ano passado, dois dias antes do fim de seu mandato. Com isso, ele deixou de entregar a faixa presidencial ao seu sucessor, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Sua volta animou dezenas de apoiadores e políticos da direita conservadora que tentaram encontrá-lo no saguão do Aeroporto Internacional de Brasília. Um dos planos do ex-presidente é viajar pelo Brasil, agora como presidente de honra do PL, que pretende utilizá-lo como principal cabo eleitoral para as eleições de 2024. Mas apesar da animação, Bolsonaro deverá ter pela frente um intenso embate com a Justiça brasileira. Isso poderá ocorrer porque ele é alvo de uma série de inquéritos e processos em diferentes instâncias do Poder Judiciário. Há desde ações que podem deixá-lo inelegível e, portanto, fora de futuras disputas eleitorais, a investigações sobre as joias dadas pelo governo da Arábia Saudita a ele e sua mulher, Michelle Bolsonaro. Fim do Matérias recomendadas Confira, abaixo, as principais frentes que Bolsonaro terá de enfrentar na Justiça: A frente de batalha mais recente de Bolsonaro com a Justiça é a que investiga as circunstâncias nas quais joias dadas pelo governo da Arábia Saudita ao ex-presidente e à sua mulher, Michelle Bolsonaro, entraram no Brasil. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O caso foi revelado pelo jornal O Estado de S. Paulo. Segundo as reportagens, a Receita Federal reteve um conjunto de joias dadas a Bolsonaro pelo regime saudita em 2021. No pacote havia um colar de diamantes, um anel, um relógio e um par de brincos, também de diamantes. As joias estavam na mochila de um assessor do então ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque que tentou entrar no Brasil com o produto sem declarar os bens ao Fisco, livrando-se, assim, do pagamento dos impostos. Depois disso, o governo enviou assessores a Guarulhos para tentar reaver as joias. Após a revelação feita pelo jornal, foi divulgada a existência de outros dois conjuntos de joias dados pela Arábia Saudita à família Bolsonaro. Em março, o Ministério da Justiça pediu a abertura de uma investigação para apurar se houve alguma ilegalidade no caso. Em entrevista sobre o assunto, o ministro da Justiça, Flávio Dino, mencionou três possíveis crimes a serem investigados: descaminho, peculato e lavagem de dinheiro. As suspeitas são de que Bolsonaro teria tentado reaver as joias em benefício próprio e sem pagar os impostos devidos. Em entrevistas, Bolsonaro e sua defesa vem negando qualquer irregularidade em relação às joias. Segundo ele, todas as medidas relativas às joias teriam sido cadastradas de forma legal. "Um grupo de joias, em 2021, ficou retida na Alfândega. Eu e minha esposa ficamos sabendo pela imprensa. Parece que seria um valor alto [...] se não tivéssemos cadastrado, se eu tivesse tentado camuflar isso aí, jamais o Estado de S. Paulo ia saber que eu tinha recebido essas joias", disse Bolsonaro em pronunciamento dado nesta quinta-feira (30/3), após seu retorno ao Brasil. Na quarta-feira (29/3), o jornal O Estado de S.Paulo divulgou que a Polícia Federal já marcou o primeiro depoimento de Bolsonaro em relação ao caso das joias. Será na quarta-feira (5/4). O caso das joias, diferente dos demais, está sendo conduzido na primeira instância da Justiça, uma vez que Bolsonaro não tem mais foro privilegiado. Além desses, o ex-presidente ainda responde a pelo menos oito ações que foram, recentemente, redirecionadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) à primeira instância. Nesse grupo de processos há ações sobre pronunciamentos feitos por Bolsonaro nas celebrações do 7 de Setembro de 2021 e ataques a ministros do Supremo como Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes. No STF, Bolsonaro é alvo de pelo menos seis inquéritos. Em todos eles, os casos ainda estão na fase de investigação e o ex-presidente não foi processado. Alguns desses casos ainda tramitam na Corte porque decorrem de investigações envolvendo outros alvos e que já vinham sendo tratadas na Corte. Em um deles, ele é investigado por seus ataques à confiabilidade das urnas eletrônicas nos últimos anos e por sua suposta atuação em uma milícia digital que teria como objetivo atentar contra a democracia. O caso está sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes. Bolsonaro também é investigado no inquérito que apura a responsabilidade pela ação de milhares de pessoas que invadiram as sedes dos Três Poderes, no dia 8 de janeiro deste ano. Bolsonaro foi incluído no inquérito, que também está sob a relatoria de Alexandre de Moraes, a pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR). O inquérito tem como objetivo identificar os autores intelectuais dos atos ocorridos no início deste ano. Bolsonaro entrou na mira das investigações após publicar um vídeo em suas redes sociais após as invasões que colocava em dúvida o resultado das eleições de 2022, uma das principais queixas dos militantes que invadiram as sedes dos Três Poderes. O vídeo foi apagado pouco depois de a conta de Bolsonaro publicá-lo. Logo após a invasão, o presidente Lula atribuiu a Bolsonaro a responsabilidade pela invasão dos prédios. "Tem vários discursos do ex-presidente da República estimulando isso. Ele estimulou invasão na Suprema Corte, estimulou invasão [...] só não estimulou invasão no Palácio porque ele estava lá dentro. Mas ele estimulou invasão nos Três Poderes sempre que ele pôde. E isso também é responsabilidade dele e dos partidos que sustentaram ele", disse Lula à época. Em suas redes sociais, porém, Bolsonaro rebateu as acusações feitas por Lula e negou seu envolvimento com os atos de 8 de janeiro. "Ao longo do meu mandato, sempre estive dentro das quatro linhas da Constituição, respeitando as leis, a democracia, a transparência e a nossa sagrada liberdade" disse uma postagem. "No mais, repudio as acusações, sem provas, a mim atribuídas por parte do chefe do Executivo do Brasil", disse Bolsonaro. Além desses, Bolsonaro ainda é alvo de investigações que apuram: Seu advogado nos inquéritos que tramitam no STF, Marcelo Bessa, disse estar confiante em relação ao futuro dos casos. "As suspeitas levantadas sobre o ex-presidente foram feitas dentro de um contexto político, fazem parte de uma narrativa. Mas quando a gente analisa os fatos e as provas, verificamos que nada se sustenta", afirmou. Os processos avaliam se houve abuso de poder econômico, abuso de poder político e abuso do uso dos meios de comunicação pelo então presidente. Ele é acusado de ter se aproveitado do cargo e da estrutura da Presidência da República em benefício próprio durante o processo eleitoral. Se for condenado em alguma dessas ações e, se a Corte entender que a conduta que levou à sua condenação foi grave, Bolsonaro pode ficar até oito anos inelegível. Dependendo de quando (e se) essa condenação ocorrer, o ex-presidente poderá ficar fora das disputas presidenciais de 2026 e 2030. De todos os processos eleitorais contra Bolsonaro, há dois que são considerados pelos especialistas como os mais importantes. O primeiro deles é uma ação movida pelo PDT, partido do candidato derrotado à Presidência em 2022, Ciro Gomes. Na ação, Bolsonaro é acusado de praticar ataques ao sistema eleitoral. Um dos exemplos citados na ação foi a reunião organizada por Bolsonaro com embaixadores de diversos países, em Brasília, na qual ele fez uma apresentação sobre supostas falhas no sistema eleitoral do país. No entendimento do PDT, Bolsonaro praticou abuso de poder no episódio. Um dos desdobramentos mais recentes desta ação aconteceu em janeiro deste ano. O ministro Benedito Gonçalves, admitiu como prova a minuta de um decreto encontrada na casa do ex-ministro da Justiça durante a gestão Bolsonaro, Anderson Torres, que previa o estado de defesa e a suspensão do processo eleitoral de 2022. Ainda não há previsão sobre quando o caso será julgado. O segundo processo considerado importante foi movido pelo PT e que contesta uma série de benefícios concedidos por Bolsonaro durante o período eleitoral, o que, segundo a acusação, configura abuso de poder político e econômico. O chamado "pacote de bondades" seria composto por dez medidas, entre elas: Em janeiro, juristas ouvidos pela BBC News Brasil avaliaram que este processo é o que teria mais chances de levar a uma condenação de Bolsonaro e à sua possível inelegibilidade. A advogada Paula Bernardelli explicou que já existe um grande número de decisões do TSE que consideram a aprovação de benefícios do tipo como abuso de poder político e econômico. "A gente nunca teve um presidente condenado por isso, mas esse tipo de condenação é bem comum em prefeituras do interior", disse a advogada. "Você vê muitos casos em que prefeitos são cassados por distribuir benefícios, por troca de favores - casos que de alguma forma se aproximam dos que estão na ação (contra Bolsonaro), embora sejam em escala diferente", completou Bernardelli. Existe uma jurisprudência nesse sentido que não favorece Bolsonaro, explica Luis Fernando Pereira, coordenador-geral da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep). "Talvez o fato de ser um pleito presidencial, dada a dimensão, exija uma demonstração mais categórica desse abuso. Mas se nos orientarmos pelas decisões da Justiça até agora, o risco de condenação de Bolsonaro nessa ação é o maior", afirmou. Quando ainda era presidente, Bolsonaro negou que o apelidado "pacote de bondades" tivesse viés eleitoral e argumentou que as medidas se justificavam pela situação de "emergência" do país, após a pandemia de covid-19. A reportagem da BBC News Brasil procurou o advogado Tarcísio Vieira, que defende Bolsonaro na esfera eleitoral, mas ele não respondeu às tentativas de contato. Para a cientista política e professora da Escola Superior de Propaganda e Marketing Denilde Holzhacker, apesar de enfrentar processos em diversas esferas, a principal fonte de preocupação do ex-presidente e do seu partido, o PL, está na Justiça Eleitoral. Segundo ela, haveria uma tendência para que a Corte o condenasse e o tornasse inelegível pelos próximos oito anos. Isso obrigaria Bolsonaro e o PL a recalcular seus planos. "Se isso acontecer, isso vai ter uma série de implicações, a começar pela estratégia de construção de uma nova candidatura (presidencial) e pela necessidade de saber quem seria o herdeiro do bolsonarismo", disse a professora. "Isso também afetaria a capacidade do PL de executar o plano do seu presidente, Valdemar da Costa Neto, de aumentar o número de prefeituras do partido em 2024", afirmou Holzhacker em referência às eleições municipais do ano que vem. A professora, no entanto, avalia que se Bolsonaro não ficar inelegível, ele tende a continuar a ser um ator importante nas próximas eleições. "Se isso (condenação) não acontecer, teremos uma lógica ligada ao retorno da capacidade de Bolsonaro de arregimentar e construir uma candidatura futura", avaliou.
2023-03-31
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cx9xn81zzjyo
brasil
Arcabouço fiscal: nova regra para gastos do governo pode fazer impostos subirem?
O Ministério da Fazenda apresentou nesta quinta-feira (30/03) sua proposta de novas regras para substituir o chamado "teto de gastos", que limitava o aumento das despesas públicas à inflação do ano anterior. O objetivo é tirar as contas do governo do vermelho — ou seja, parar de gastar mais do que arrecada — ao mesmo tempo em que garante a expansão de programas sociais e investimentos. Para isso, o chamado "novo arcabouço fiscal" continua prevendo um limite para a expansão dos gastos, mas estabelece um teto mais alto que o atual. A proposta ainda será enviada para votação no Congresso. Especialistas em contas públicas ouvidos pela BBC News Brasil dizem que o sucesso do novo arcabouço, caso seja aprovado, vai depender de um bom desempenho da receita, ou seja, mais arrecadação de tributos. Já o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que não haverá aumento de carga tributária para cumprimento da proposta de nova regra fiscal. Fim do Matérias recomendadas No entanto, ele próprio anunciou o envio de um pacote de medidas ao Congresso na semana que vem para ampliar as receitas do governo em até R$ 150 bilhões. Segundo Haddad, esse valor viria não da criação de novos impostos, mas do que chamou de fim dos "jabutis" tributários. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na prática, a ideia é passar a taxar setores econômicos que hoje são beneficiados com isenções ou que precisam ser regulamentados para pagar impostos (como sites de apostas esportivas). Mas não houve ainda maiores detalhamentos de quais seriam os setores atingidos. "Se por carga tributária se entende criação de novos tributos ou aumento de alíquota dos tributos existentes, a resposta é: não está no nosso horizonte (aumentar a carga). Não estamos pensando em CPMF (antigo imposto sobre transações financeiras), não estamos pensando em acabar com o Simples (regime especial para pequenas empresas), não estamos pensando em reonerar a folha de pagamento. Não é disso que se trata", afirmou. "Temos que fazer quem não paga imposto pagar. Temos muitos setores que foram demasiadamente favorecidos com regras que foram sendo estabelecidas ao longo das décadas e não foram revistas", disse ainda. O mercado reagiu bem ao anúncio da proposta. O Ibovespa, principal índice de ações da Bolsa brasileira, fechou em alta de 1,89%. Já o presidente do Banco Central (BC), Campos Neto, disse que ainda não tinha visto a proposta final do governo, mas deu uma declaração de apoio ao Ministério da Fazenda. "Nós entendemos que existe uma boa vontade muito grande do Ministério da Fazenda de fazer um arcabouço robusto", afirmou. O Banco Central vem sendo pressionado pelo governo Lula a reduzir a taxa básica de juros (Selic). Por outro lado, o BC tem sinalizado que essa redução seria facilitada caso o governo reverta o rombo das contas públicas. Entenda a seguir as novas regras e qual pode ser seu impacto sobre a carga tributária do país. O Teto de Gastos, adotado no governo Michel Temer, estabelecia que o crescimento das despesas do governo ficava limitado ao aumento da inflação no ano anterior. Apoiadores da proposta dizem que se tratou de uma regra simples para equilibrar as contas públicas. Para críticos, porém, o teto criou um problema na prática: como algumas despesas obrigatórias crescem automaticamente (como o pagamento de aposentadorias), outras despesas (como obras e programas sociais) precisavam ser cortadas para que o orçamento geral não furasse o teto. Nesse contexto, o Congresso passou a aprovar mudanças na Constituição para criar exceções ao limite de gastos, como a adotada em 2022 para permitir o aumento do Auxílio Brasil, o que na prática acabou com o cumprimento do teto. O governo de Luiz Inácio Lula da Silva está propondo, então, uma regra mais complexa e flexível do que o teto de gastos — o argumento do Ministério da Fazenda é que isso vai permitir preservar gastos sociais e investimentos ao mesmo que estabelece um arcabouço fiscal mais "crível" (ou seja, com mais chance de ser cumprido de fato). Se a proposta for aprovada no Congresso, os gastos públicos vão crescer sempre acima de inflação, mas dentro de um intervalo que vai de 0,6% até 2,5%. A regra básica é que o crescimento da despesa fique limitado a 70% da expansão da receita. Ou seja, se a arrecadação do governo subir 2%, por exemplo, a despesa poderia crescer até 1,4%. No entanto, mesmo que a receita tenha um crescimento muito baixo ou o governo tenha perda de arrecadação em determinado ano, ainda assim fico garantido ao menos 0,6% de expansão da despesa acima da inflação. Por outro lado, mesmo que a arrecadação tenha uma alta mais expressiva, a expansão da despesa ficará limitada ao teto de 2,5%. Segundo Haddad, isso vai obrigar o governo a poupar mais em momentos de bonança (quando a arrecadação crescer muito) e, por outro lado, vai proteger gastos essenciais para a população mais pobre em momentos de piora da economia. Enquanto o Teto de Gastos era uma regra constitucional, o novo arcabouço fiscal será criado por meio de um projeto de lei. Por isso, algumas despesas que têm regras previstas na Constituição ficarão de fora desse limite, como os recursos para o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) e para cumprir com piso salarial da enfermagem. Além disso, há regras constitucionais que estabelecem que despesas com saúde, educação e emendas parlamentares devem cumprir determinados patamares da receita do governo. Isso significa que esses gastos podem vir a crescer acima do novo limite proposta para o conjunto das despesas, o que pode exigir aumento menor ou cortes em outras partes do orçamento federal. Outro ponto importante da nova regra é a adoção de uma banda para o cumprimento da meta de resultado primário (diferença entre o que o governo gasta e arrecada, excluído o pagamento de juros da dívida). Por exemplo, na apresentação do novo arcabouço fiscal, o governo prevê como meta de 2024 zerar o rombo (o equivalente a uma meta primária de 0% do PIB). Mas, caso a proposta seja aprovada, haverá um intervalo mais flexível, de 0,25 ponto percentual para cima ou para baixo. Ou seja, na prática, o resultado primário poderia ficar entre um rombo de 0,25% do PIB e um saldo positivo de 0,25% do PIB. Segundo Haddad, isso vai evitar que o governo precise acelerar no fim do ano gastos sem planejamento, caso esteja acima da meta, ou contingenciar gastos essenciais, caso esteja abaixo do objetivo estipulado para o resultado primário. A proposta prevê ainda que, se o governo não cumprir o resultado previsto nesse intervalo, o limite de crescimento da despesa do ano seguinte será reduzido de 70% para 50% da expansão da receita (sempre respeitando aquele patamar mínimo e máximo de crescimento real entre 0,6% e 2,5%). Caso a nova regra seja aprovada, o governo prevê zerar o rombo das contas públicas no próximo ano e passar a registrar resultados positivos (gastar menos que arrecada) a partir de 2025. Para este ano, a previsão do último relatório bimestral da Fazenda é de um rombo de R$ 107 bilhões (cerca de 1% do PIB). Com a melhora do resultado primário, a projeção da Fazenda é que a dívida pública bruta pare de crescer no último ano do governo (2026), se estabilizando em cerca de 77% do PIB. Em 2002, esse indicador fechou em 73,5% do PIB. Para defensores do controle dos gastos, é importante reduzir o endividamento público para reforçar a confiança de agentes econômicos na economia brasileira, estimulando mais investimentos no país. O anúncio gerou reações mistas entre especialistas em contas públicas. O economista-chefe e sócio da Warren Renascença, Felipe Salto, disse à BBC News Brasil ver "como positivo o novo arcabouço fiscal". Segundo ele, as metas de resultado primário anunciadas, prevendo o fim do rombo nas contas públicas já no próximo ano, são "muito ambiciosas". Ainda assim, ele avalia que "o cumprimento parcial do plano já seria suficiente para melhorar a perspectiva para a trajetória da dívida/PIB". Salto, que foi secretário da Fazenda do Estado de São Paulo na gestão de Rodrigo Garcia (PSDB), aprovou o intervalo de crescimento real para os gastos públicos entre 0,6% e 2,5%. Por um lado, diz, o teto evita uma alta forte das despesas. Já o piso, afirma, garante que gastos públicos importantes sejam preservados, como programas sociais e investimentos. "Um crescimento de 0,6% (da despesa) real é muito baixo. Imaginar algo aquém disso é praticamente inviável. A verdade é que o novo arcabouço conta com um peso grande do lado arrecadatório. Isso é fato. Mas é importante que se tenha uma regra de gasto com maior flexibilidade, mas limitada a no máximo 2,5%", reforçou Salto, que foi também diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI), do Senado Federal. Já outro ex-integrante da IFI, Gabriel de Barros, hoje economista-chefe da Ryo Asset, teve uma leitura mais negativa a proposta da Fazenda. Ele criticou o fato de a despesa do governo sempre crescer no novo arcabouço, mesmo em momentos de queda da arrecadação. "A regra proposta só é crível no cenário de crescimento econômico. Despesa nunca cai e ajuste no primário é integralmente focado em ampliação da arrecadação", ressalta. "Incentivo é para busca crescente de receitas extraordinárias", reforçou. Já economista Sergio Gobetti, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e da Secretaria de Fazenda do Rio Grande do Sul, disse à reportagem que, independentemente de qual seja o novo arcabouço fiscal, não é crível esperar um ajuste capaz de estabilizar ou reduzir a dívida pública sem aumento de carga tributária no momento. Sua expectativa é que governo fará uma grande revisão dos benefícios fiscais para aumentar as receitas. "Se a economia crescesse 7% ao ano, bastaria manter a carga tributária constante (para realizar o ajuste fiscal). Mas, se a economia permanecer crescendo 2% a 3% ao ano, aí a receita do governo precisa crescer mais do que o PIB", nota ele.
2023-03-30
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ce906dgrlnjo
brasil
Tênis Vert: como CLT e agroecologia viraram propaganda do 'made in Brazil' na Europa
Movimentos sociais no campo, democracia, legislação trabalhista. Esses foram os elementos que atraíram, em 2003, os franceses François-Ghislain Morillion e Sébastien Kopp a produzirem seus calçados da marca Vert no Brasil. "A gente estava procurando um lugar para fazer tênis que respeitasse o ser humano e a natureza, e a gente encontrou todos esses ingredientes", diz Morillion. Naquele ano, a dupla dava a volta ao mundo passando por quatro países diferentes, três meses em cada um deles: China, África do Sul, Índia e Brasil. Foram parar em Rondônia, onde se depararam com um plantio de palmito pupunha em sistema de agrofloresta exportado para a França, onde era vendido por uma marca de comércio justo. "Foi ali que a ficha caiu. Era 2003, e eles estavam já muito à frente naquela época. Foi o único projeto que a gente realmente achou que tivesse um impacto social e ambiental bom", relata. Duas décadas depois, a marca da dupla - batizada de Veja no exterior e vendida como Vert no Brasil - produz 4 milhões de calçados por ano. São quatro fábricas parceiras, duas no Rio Grande do Sul, duas no Ceará. A borracha vem da Amazônia; o algodão, do Nordeste; o couro, do Sul. Fim do Matérias recomendadas O Brasil não costuma ser a primeira opção de marcas de calçados que querem produzir para o mundo. Uma das razões é o custo da mão de obra, mais caro do que em países como China e Vietnã, que se tornaram grandes fabricantes globais do setor. Além dos salários mais altos, a legislação trabalhista, de forma geral, confere um grau de proteção maior do que na Ásia - o que geralmente também significa custos maiores. Em uma época em que consumidores olham cada vez mais para valores como sustentabilidade, contudo, são características como essas que têm atraído algumas marcas para o país e repaginado o valor do "made in Brazil". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O caso da brasileira Undo For Tomorrow é exemplar nesse sentido. Depois de alguns meses operando no Brasil, a empresa de calçados se lançou no mercado europeu em junho de 2021 com um crowdfunding (financiamento coletivo) em que apresentava um tênis feito com borracha da Amazônia, garrafas recicladas e balões de festa descartados, entre outros materiais. Na pré-venda, a marca conseguiu arrecadar 110 mil euros em um mês e meio. Hoje, as vendas para o mercado europeu respondem por algo entre 60% e 65% da receita total. "Existe um valor maior por trás disso - e acho que aqui na Europa isso é muito reconhecido", diz Patrick Dohmann, que mora em Portugal e é fundador da marca, referindo-se ao fato de produzir no Brasil. Formado em design, o carioca cresceu no mundo do calçado. Trabalhou no negócio do pai, que foi dono da marca Andarella, com dezenas de lojas no país, e empreendeu no setor antes de se voltar para a sustentabilidade. A fábrica que produz para a marca está localizada no polo calçadista de Franca, em São Paulo. É chefiada por uma mulher e, segundo Dohmann, tem muitos empregados com longo tempo de casa, uma combinação que contribui para que o ambiente seja "quase familiar". O Brasil é, para o empresário, um lugar onde a atmosfera do local de trabalho e as condições físicas das unidades fabris têm um equilíbrio positivo de forma geral. Após ter conhecido mais de 30 fábricas, ele diz que, embora a estrutura "nem sempre seja a melhor", predomina "um ar muito amigável entre as pessoas". Não foi essa a impressão que ele teve das fábricas do Vietnã. O país asiático tem ganhado protagonismo no setor calçadista nos últimos anos, à medida em que o custo da mão de obra aumenta na China, com a expansão da indústria de tecnologia no país. Depois de ter visitado cerca de 15 fábricas vietnamitas, entre unidades de pequeno, médio e grande porte, Dohmann saiu com a impressão de que muitas das grandes fábricas têm boa estrutura, são "grandes e bem iluminadas", mas que o balanço entre trabalho e qualidade de vida dos colaboradores talvez não seja o melhor. Chamaram-lhe atenção a semana de trabalho de 6 dias, de segunda a sábado, e o fato de muitos dos funcionários morarem em alojamentos montados pela própria empresa, já que algumas das plantas de maior porte ficam afastadas dos centros urbanos. "Algumas pareciam verdadeiras cidades." Morillion chama atenção para um ponto parecido. "Para nós, o que era muito importante era a questão das condições de trabalho. No Brasil, não existe essa coisa de dormir na fábrica. Parece bobo para um brasileiro, mas, quando você vai olhar para as fábricas de tênis do outro lado do planeta, as pessoas dormem em dormitórios nas fábricas", diz. Nesse sentido, ele cita como pontos positivos da legislação brasileira a jornada estabelecida em 8 horas por dia, com pagamento de hora extra caso se trabalhe mais que isso. "A gente comparou o Brasil com o que tinha visto na Ásia, e não é que o Brasil tenha uma legislação incrível, mas tem uma legislação", pontua. "E tem uma democracia. A maioria dos tênis do mundo vem da China, do Vietnã, que são dois países que não têm democracias - então um trabalhador não consegue acessar a Justiça se ele quiser processar a empresa, por exemplo." A produção das marcas Vert e Veja conta hoje com cerca de 4 mil funcionários, sendo 500 de contratação direta da Vert/Veja. São 1.500 famílias envolvidas nas associações e cooperativas que fornecem borracha e 1.200 nas que fornecem algodão. Em relação aos fornecedores, Morillion diz ter se surpreendido com as iniciativas de agroecologia com as quais se deparou no país, as quais ele associa diretamente aos movimentos sociais no campo, que deixaram como legado associações e cooperativas que há anos produzem com uma lógica da sustentabilidade. "A gente estava muito pensando na ecologia [quando pesquisamos para começar o negócio]. Quando a gente chega no Brasil, se dá conta de que a ecologia é um movimento social. A agroecologia é uma luta pelos direitos dos povos originários e das populações tradicionais do campo." No Acre, diz ele, parte das associações e cooperativas que fornecem borracha para a marca são herdeiros dos "movimentos que nasceram com Chico Mendes". "No algodão, muitos são ligados aos movimentos de assentamento; muitos dos nossos produtores são assentados", acrescenta. Tudo isso custa mais caro do que produzir da forma como a indústria calçadista opera normalmente. No caso da Veja/Vert, o modelo de negócio busca compensar o custo maior com matéria-prima e mão de obra com gasto zero em publicidade, por exemplo. Não há propaganda com celebridades usando as peças da marca ou posts pagos em contas de influencers nas redes sociais. "A gente não queria criar uma marca de luxo, queríamos fazer um tênis acessível. Não digo que ele é barato, mas pelo menos consegue ter um preço de aquisição que é comparável aos outros [marcas multinacionais]", diz Morillion. Dohmann, da Undo For Tomorrow, ressalta que o custo mais alto de se produzir no Brasil pode ser um problema com o qual terá que lidar em algum momento de expansão da marca, que deve estrear no mercado americano nos próximos meses. "Um enorme percentual dos bens de consumo vendidos na Europa e nos Estados Unidos são produzidos na Ásia. Então, se eu quero concorrer com essas empresas, talvez chegue um momento em que vai ficar complicado, sabe?" A questão do custo também é algo que afeta a decisão dos consumidores, diz Camille Le Gal, fundadora da Fairly Made, empresa que oferece soluções para empresas do mundo da moda que querem rastrear e medir o impacto de seus produtos. "Sou uma pessoa muito otimista, realmente acho que a indústria da moda está mudando para melhor. Mas acredito que a sustentabilidade ainda é um nicho, no sentido de que é pequena a porcentagem de pessoas que escolhe comprar produtos que tenham rastreabilidade e sejam responsáveis", avalia. Também contribui para esse cenário, ela acrescenta, o fato de que não há uma definição propriamente dita de sustentabilidade a nível internacional. Se não há um padrão, é difícil saber o que exatamente cobrar das empresas - reciclabilidade? durabilidade? uso de matérias-primas cuja extração não contribua para a destruição de ecossistemas naturais? Le Gal coloca ainda um terceiro fator: a formulação de novas leis que balizem o comportamento do mercado e das empresas caminha devagar. Nesse sentido, a engenheira ambiental Ligia Zottin, que é gerente de impacto e compliance da Veja/Vert, acha que essa frente avança ainda mais lentamente no Brasil. "O que vejo é que essa pauta de ESG (sigla em inglês para "environment", "social" e "governance" - meio-ambiente, social e governança, em tradução literal) no Brasil é um pouco atrasada", diz a brasileira, que mora na Europa desde 2016. "A gente está vendo muitas legislações na Europa e Estados Unidos surgindo, no âmbito do due diligence [diligência prévia, em tradução literal, que se refere à investigação dos riscos e a análise da cadeia de fornecedores, por exemplo], de greenwashing [o marketing enganoso de práticas de sustentabilidade que na realidade não existem nas empresas], de trabalho escravo... E observo em algumas discussões que a gente tem com fornecedores que o assunto ainda é muito novo." Mesmo na ausência de legislações mais em linha com a economia sustentável, entretanto, as empresas vêm sentindo cada vez mais pressão por mudanças, pontua Rafael Benke, CEO da Proactiva, que presta consultoria na área de ESG. De um lado, pelos próprios clientes - ainda que o consumo da sustentabilidade ainda não seja massificado -; de outro, pelos investidores. "Alguns clientes nossos no ano passado tiveram financiamento suspenso porque certos quesitos ESG exigidos pelo financiador não estavam preenchidos. Isso é revolucionário", diz o executivo, que já foi diretor da Vale e líder da iniciativa de recursos naturais do Fórum Econômico Mundial. Para ele, as empresas com boa visão estratégica vão além das exigências da legislação local e se guiam pelas boas práticas internacionais. "Se você relaxar agora, circunstancialmente, porque alguém está fazendo vista grossa ou porque passou um decreto, por exemplo, a conta vai vir na frente."
2023-03-30
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn035nd7ypno
brasil
Bolsonaro volta ao Brasil: os 4 fatores que influenciaram decisão de retornar
Após três meses vivendo nos Estados Unidos, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) chegou ao Brasil na manhã desta quinta-feira (30/03). Ele chegou ao Aeroporto Internacional de Brasília às 6h37 no horário local. O retorno de Bolsonaro era esperado há meses, desde que deixou o país sem passar a faixa presidencial para seu sucessor, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Bolsonaro deixou o Brasil no dia 30 de dezembro, dois dias antes do fim de seu mandato presidencial. Ele perdeu as eleições para Lula em uma disputa apertada no segundo turno. Em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB), ele embarcou com assessores e a então primeira-dama, Michelle Bolsonaro, para a Flórida. Inicialmente, ele ficou na casa do lutador de artes marciais José Aldo. Desde então, ele tem participado de eventos conservadores nos Estados Unidos e, de lá, vem criticando os primeiros passos do governo Lula. Fim do Matérias recomendadas Foi de lá que ele postou um vídeo, depois apagado, em que questionava a vitória da Lula nas urnas. O vídeo foi postado três dias depois da invasão da sede dos Três Poderes, em Brasília, no dia 8 de janeiro - o ato levou à prisão de centenas de apoiadores bolsonaristas. Também foi de lá que ele se defendeu das acusações feitas por integrantes do governo Lula de que sua gestão teria sido responsável pela crise humanitária do povo indígena Yanomami. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast E também era dos Estados Unidos que ele vinha se defendendo das suspeitas de que teria usado a estrutura da Presidência para reaver joias apreendidas pela Receita Federal e que lhe haviam sido dadas de presente por autoridades da Arábia Saudita avaliadas em R$ 16 milhões. Ele nega qualquer irregularidade em relação ao caso, revelado pelo jornal O Estado de S. Paulo. Aliados do presidente, no entanto, avaliam que o retorno de Bolsonaro neste momento não acontece totalmente por acaso. Parlamentares e fontes que pediram para não se identificar apontam que o cálculo de Bolsonaro para o seu retorno ao Brasil atendeu a pelo menos quatro principais motivos: a avaliação de que há fragilidades no início do governo Lula no campo econômico, o momento de desgaste político do atual presidente, a iniciativa de liderar a oposição e, por fim, fortalecer o PL para a eleição de 2024. Para o cientista político e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Cláudio Couto, os fatores que influenciaram no cálculo de Bolsonaro para voltar ao Brasil fazem sentido. "De fato, tudo isso são fragilidades do governo Lula e que favorecem o Bolsonaro", disse Couto. O professor disse, porém, que nem tudo será fácil para Bolsonaro em seu retorno. "O problema dele é que vários esqueletos no armário estão aparecendo, o que torna a situação dele bem difícil", avaliou Couto. Para o professor, a volta de Bolsonaro pode tornar a vida de Lula no governo mais difícil. "Acho que o Lula não tem nada a ganhar com ele aqui, a não ser que a situação judicial do Bolsonaro piore. Por exemplo, com uma prisão ou uma busca e apreensão. Isso inverte o sinal. Se nada disso ocorrer, o Bolsonaro circulando por aqui é ruim para o Lula", disse. Confira, abaixo, em detalhes, os quatro principais fatores que influenciaram no cálculo de Bolsonaro para retornar ao Brasil. Uma fonte ouvida pela reportagem que acompanha de perto o retorno de Bolsonaro ao país avalia que a volta do ex-presidente tem como pano de fundo uma percepção de que, por vários fatores, Lula está em um momento de desgaste político acentuado e atípico para um mandatário que acabou de assumir a presidência. Os episódios que melhor traduziriam esse desgaste aconteceram na semana passada. O primeiro foi durante uma entrevista de Lula ao portal 247 em que ele usou um palavrão para se referir ao que pensava sobre o ex-juiz e agora senador Sergio Moro durante o período em que esteve preso na carceragem da Polícia Federal no Paraná. Em seguida, após a Polícia Federal deflagrar uma operação contra membros do Primeiro Comando da Capital (PCC) que teriam planejado matar Moro e outras autoridades, Lula disse, disse, em uma entrevista, que acreditava que o plano seria uma "armação" de Moro. "Eu acho que é mais uma armação do Moro. Quero ser cauteloso, é visível que é uma armação do Moro. Vou pesquisar, vou saber", disse Lula. A declaração causou reação negativa e foi rebatida por seus adversários e por Moro, que disse que Lula seria responsável por qualquer coisa que acontecesse à sua família. Além do desgaste causado por suas declarações, Lula também enfrenta dificuldades junto ao Congresso Nacional. Apesar de ter distribuído ministérios para partidos do chamado Centrão, como o União Brasil, a percepção é de que seu governo ainda não tem uma base sólida no Parlamento capaz de aprovar seus projetos. Essa percepção havia ficado expressa em declarações do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL) e do líder do União Brasil, deputado Elmar Nascimento (BA), que disse, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, que apesar de ter três ministérios, não seria conveniente ao partido entrar na base do governo. Nos últimos dias, o governo tem estado sob alerta depois que Lira e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), passaram a debater sobre o rito de tramitação de medidas provisórias. Lira quer maior participação da Câmara nas comissões mistas que precisam ser criadas para avaliar as medidas enviadas pelo Executivo. Pacheco, no entanto, resiste à proposta de Lira. O impasse, porém, pode acabar afetando o governo, uma vez que as medidas provisórias enviadas pelo Executivo têm validade de até 120 dias. Se não forem convertidas em lei antes disso, elas perdem a vigência. "A volta de Bolsonaro acontece em um momento em que o governo está batendo cabeça o tempo inteiro. Lula vem dando declarações desastrosas e isso tem aumentado o desgaste dele", disse o deputado federal Marco Feliciano (PL-SP), um dos principais aliados de Bolsonaro. "O presidente (Bolsonaro) é intutelável e faz as coisas que saem da cabeça dele, mas, com certeza, ele volta num momento de desgaste muito grande do Lula. Tanto pelas declarações quanto pela falta de articulação política", disse o também deputado federal Capitão Augusto (PL-SP). Um outro ponto destacado por aliados de Bolsonaro ao analisar o que levou o ex-presidente a retornar agora é o cenário econômico do país. Quase três meses depois de assumir a Presidência da República, Lula ainda não conseguiu colher seus primeiros resultados positivos na área econômica. Uma das principais e mais imediatas batalhas travadas por Lula nessa área tem sido a queda da taxa de juros básica da economia, definida pelo Banco Central e que tem como objetivo controlar o avanço da inflação. Desde o início do mandato, Lula e seus aliados mais próximos, como a deputada federal e presidente nacional do PT Gleisi Hoffmann (PR), têm feito críticas abertas ao presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, por conta do atual patamar da taxa de juros, que é de 13,75% ao ano, considerada uma das mais altas do mundo. A crítica é de que as taxas nesse patamar desestimulam investimento privado, dificultando a geração de empregos e o crescimento do PIB. E o crescimento do PIB é uma das principais metas de Lula. Segundo o último boletim Focus, elaborado pelo Banco Central, a previsão é de que a economia brasileira deva crescer em torno de 0,88% em 2023. Em reunião com ministros no dia 10 de março, Lula enfatizou que quer o empenho de sua equipe para acelerar o andamento de obras e projetos que gerem empregos. "A gente não pode aceitar a ideia de que o PIB não vai crescer porque alguém disse que o PIB não vai crescer... Nós vamos dizer que o PIB vai crescer porque nós vamos gerar emprego e vamos gerar emprego com as pequenas coisas", disse Lula durante a reunião. A expectativa de que a taxa pudesse cair após uma campanha de críticas do governo, porém, se desfez na semana passada depois que o Conselho de Política Monetária (Copom) manteve a taxa de juros no mesmo patamar em que estava. A ata da reunião ainda menciona a necessidade de o governo apresentar um novo conjunto de regras fiscais que norteiam como a atual gestão vai cuidar das contas públicas. O chamado "arcabouço fiscal" vem sendo desenhado pela equipe do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e deveria ter sido apresentado em março, mas Lula acabou adiando o anúncio às vésperas de sua viagem para a China. A viagem, no entanto, acabou não ocorrendo porque Lula foi diagnosticado com uma pneumonia. Agentes do mercado avaliam que o anúncio de um novo arcabouço fiscal que seja crível e transparente pode abrir caminho para a redução na taxa de juros. Uma fonte que acompanha de perto o retorno de Bolsonaro citou a fragilidade da agenda econômica de Lula como um dos elementos que influenciaram na escolha do ex-presidente sobre o momento do seu retorno. Segundo ele, faltando pouco mais de uma semana para a marca de 100 dias de mandato, Lula teria pouco a mostrar nessa área. Para o deputado federal Capitão Augusto (PL-SP), um dos principais aliados de Bolsonaro na Câmara dos Deputados, a economia é um dos principais pontos fracos desse início de governo de Lula e a chegada de Bolsonaro neste momento, colocaria ainda mais pressão sobre o novo governo. "A economia está em marcha lenta. Lula está com dificuldade em fazer a máquina andar e já estamos chegando a 100 dias de governo e ele não tem quase nada para apresentar. Bolsonaro, por outro lado, tem um mandato para ser comparado", disse o parlamentar. Um dos fatores que, segundo aliados, também influenciou na escolha do momento de retorno de Bolsonaro é o fato de que, desde sua partida, a direita conservadora no país não teria encontrado nenhum outro substituto para liderar a oposição ao governo Lula. A permanência de Bolsonaro nos EUA também vinha incomodando ex-aliados de seu governo com o presidente do Partido Republicanos, ligado à Igreja Universal do Reino de Deus, o deputado federal Marcos Pereira. Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo no início deste mês, ele disse que Bolsonaro não seria uma liderança da oposição. "Acho que não, porque se fosse líder da oposição, ele teria de estar fazendo oposição aqui no Brasil. Ele é um turista nos Estados Unidos", disse. Alguns dos principais nomes da direita no Parlamento ainda não teriam conseguido se transformar em protagonistas da oposição ao governo Lula. Entre eles está o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), que foi o mais votado do Brasil em 2023, com 1,4 milhão de votos. No Dia Internacional da Mulher, ele protagonizou um episódio polêmico ao usar uma peruca e fazer um pronunciamento com frases interpretadas como ofensivas à comunidade LGBTQIA+. O outro nome da oposição que recuperou alguma notoriedade nos últimos dias foi o de Moro, especialmente depois das falas de Lula sobre ele. Apesar disso, aliados de Bolsonaro entendem que nenhuma dessas lideranças teria, hoje, condições de organizar a oposição ao governo Lula. "A ala conservadora da direita ainda vê o Bolsonaro como a principal liderança do país nesse campo. Ninguém surgiu nesse tempo em que ele esteve fora e assumiu esse posto", disse o deputado Marco Feliciano. "Não tem outra liderança hoje em dia. Assim como o Lula é a principal liderança da esquerda, o Bolsonaro é a principal liderança na direita. Novas lideranças não surgem do dia pra noite", afirmou o deputado Capitão Augusto. O outro fator apontado como determinante para o retorno de Bolsonaro ao Brasil é um plano do presidente nacional do PL, Valdemar da Costa Neto, para usar o ex-presidente e sua mulher, Michelle Bolsonaro, como cabos eleitorais durante as eleições municipais de 2024. No PL, Bolsonaro deverá ocupar o cargo de presidente de honra do partido, com direito a um salário estimado em até R$ 40 mil. Michelle Bolsonaro também exercerá atividades no partido. Ela é a presidente do PL Mulher e terá um salário estimado em R$ 33,7 mil. A meta de Valdemar é que o partido conquiste pelo menos 1 mil prefeituras em todo o país no ano que vem. A ideia é quase triplicar o número de cidades comandadas pelo partido na comparação com as últimas eleições. Em 2020, a legenda, quando ainda não tinha Bolsonaro como filiado, o PL ficou em sexto lugar em número de prefeituras conquistadas, com 345. Naquele ano, o partido que obteve o maior número de prefeituras havia sido o MDB, com 784. "Bolsonaro teve 58 milhões de votos em 2022. Ele é nosso maior cabo eleitoral no país. O plano do Valdemar (da Costa Neto) é a gente aumentar e muito o nosso número de prefeituras. Metade do Brasil apoia o Bolsonaro. É um capital eleitoral muito grande", disse Marco Feliciano. "O presidente do partido quer aumentar o número de filiações e de candidaturas. Com Bolsonaro viajando pelo Brasil, a gente vai se transformar no maior partido do país em número de filiados, uma vez que já somos o maior partido em número de deputados", disse Capitão Augusto. Em 2022, o PL, ancorado no bolsonarismo, elegeu a maior bancada da Câmara dos Deputados: 99 parlamentares. No senado, o PL tem a segunda maior bancada, com 13 senadores, atrás apenas do PSD, com 15. - Este texto foi publicado em
2023-03-30
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn0qqygx29lo
brasil
Como Brasil e China pretendem fechar negócios sem usar dólar americano
Brasil e China deram mais um passo para aprofundar sua cooperação comercial - e para excluir uma possível influência americana nos negócios entre os dois países. Na manhã desta quarta (29/3), os dois países anunciaram a criação de uma “Clearing House” (ou Câmara de compensação), uma instituição bancária que permita o fechamento de negócios e a concessão de empréstimos entre os dois países sem que o dólar americano tenha que ser usado para viabilizar a transação internacional. O ICBC (Banco Industrial e Comercial da China, na sigla em inglês), é o banco que operará a clearing house no Brasil para permitir que empresários brasileiros e chineses possam fazer transações comerciais e empréstimos em yuan, e não apenas em dólar, como acontece hoje entre os dois países. Como se trata de uma grande instituição financeira chinesa, o banco seria capaz de garantir aos empresários brasileiros a conversão imediata de seus ganhos em real, caso eles decidam fechar negócios em yuan. “É uma opção de compensação do yuan para uma moeda local, existem 25 assim no mundo, e corta custos de transação porque não passa pelo dólar”, afirmou a secretária de assuntos internacionais do Ministério da Fazenda, Tatiana Rosito. Fim do Matérias recomendadas Nos últimos 13 anos, a China é a maior parceira comercial do Brasil - em 2022, o volume de transações entre os dois países atingiu o recorde de US$150 bilhões. Na balança comercial, o Brasil tem superávit de US$ 29 bilhões, embora as vendas para a China sejam esmagadoramente de commodities, enquanto o país asiático exporta ao Brasil produtos de maior valor agregado. Os chineses querem diminuir essa distância e este foi um dos motivos para apresentarem a demanda ao Brasil, que vinha sendo negociada em etapas nos últimos meses. “O Brasil firmou acordo para pagamento em yuan, o que facilita muito o nosso comércio. Vamos trabalhar ainda mais no setor de alimentos e minérios, vamos buscar possibilidade de exportação de mercadorias de alto valor agregado da China ao Brasil e do Brasil para a China”, afirmou Guo Tingting, vice-ministra de comércio da República Popular da China durante o Fórum de Negócios Brasil China, realizado em Chaoyang, bairro nobre da capital chinesa. No evento, que reuniu mais de 500 empresários, Tingting citou a mineradora Vale e o frigorífico JBS como “empresas brasileiras excelentes” que atuam na China. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O anúncio foi recebido com pouca empolgação por empresários brasileiros. “Ao menos é melhor que a moeda comum com a Argentina”, disse em tom de piada um executivo do agronegócio brasileiro em Pequim. Segundo ele, não há ainda estimativas sobre possíveis ganhos ou perdas para os negócios brasileiros com a novidade. Segundo Rosito, o mecanismo adotado no Brasil é semelhante ao já instaurado pelos chineses tanto no Chile como na Argentina, ambos países que compõem a Iniciativa Cinturão e Rota (BRI, na sigla em inglês), um programa de empréstimos e financiamentos em infraestrutura de Pequim que tem por prioridade garantir “negócios sem impedimentos” entre a China e seus parceiros. A China tem insistido pela adesão do Brasil ao BRI, um acordo que divide opiniões no governo brasileiro, já que seria mais um agrado político à China do que uma oportunidade grande de expansão de negócios - o Brasil já é o maior destino de investimentos chineses no mundo hoje. A entrada do Brasil no BRI é vista com preocupação pelos Estados Unidos, com quem o governo Lula tem tentado estreitar os laços também. Tanto a China quanto a Rússia tentam implantar mecanismos de negócios que excluam o dólar como forma de pagamento, para reduzir a influência econômica e política americana pelo mundo e driblar eventuais sanções a Washington “O Brasil não faz política com seu comércio exterior”, afirmou o embaixador do Brasil na China, Marcos Galvão, no evento. Originalmente, o fórum desta quarta-feira (29/3) contaria com a presença do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva. Ele acabou cancelando a viagem à China - que incluía um jantar com o presidente chinês, Xi Jinping - de última hora, após ser diagnosticado com uma pneumonia causada por bactérias e pelo vírus da gripe A. O líder chinês Xi Jinping chegou a enviar uma carta ao brasileiro desejando sua “rápida recuperação” e assegurando “compreensão” pela desistência, mas não mencionou uma possível nova data para o compromisso. Já o Brasil disse à diplomacia chinesa que espera ver o encontro remarcado o mais rápido possível - talvez ainda na primeira quinzena de abril. A ausência de Lula resultou no adiamento do anúncio de ao menos dois grandes negócios entre brasileiros e chineses. O primeiro seria a compra pela fabricante chinesa de carros elétricos BYD da fábrica da Ford, em Camaçari (BA). O segundo seria a compra de cerca de 20 aviões comerciais E-195-E2, da Embraer - um negócio estimado em mais de US$1 bilhão. Segundo Francisco Gomes Neto, CEO da Embraer, o contrato está “bem adiantado”, mas depende ainda do último impulso, que viria, segundo ele, com o encontro entre Xi e Lula. A Embraer estuda ainda estabelecer uma cooperação com a China para converter aviões comerciais em cargueiros. Gomes Neto disse ainda que as negociações receberam novo impulso com um “canal mais aberto” estabelecido pelo governo Lula, em oposição à gestão anterior, de Jair Bolsonaro, que acumulou desgastes públicos com a China. Durante o evento, Jorge Viana, o presidente da Apex Brasil, ensaiou um pedido de desculpas a Pequim: “Nos últimos 4 anos, o governo e o povo chinês não vêm sendo tratados como deveriam pelo nosso país”. Diplomatas brasileiros afirmam que os insultos disparados por bolsonaristas contra a China são mencionados com preocupação por chineses, que tentam se blindar de futuros ruídos na relação diplomática entre os dois países. Nada parecido havia acontecido em quase 50 anos em que China e Brasil são parceiros. Se agradou aos chineses, a participação de Viana na agenda gerou ruídos depois que o presidente da Apex rememorou em palestra no país que o Brasil desmatou 84 milhões de hectares de floresta amazônica nos últimos 50 anos e que o país precisava “parar de dizer fora do Brasil que o país não tem problema ambiental”. A fala foi encarada como uma crítica direta ao agro - especialmente à pecuária - que vem sendo apontada nos últimos anos como um dos vetores do desmatamento no bioma. Na plateia da palestra de Viana estavam representantes de frigoríficos como a JBS. O atual governo tem a questão ambiental como prioritária e antecipa a possibilidade de que os chineses passem a cobrar com mais assertividade uma produção de commodities sustentável do Brasil. Por enquanto, apenas a Europa impõe controles mais duros à produção oriunda de área desmatada. A declaração de Viana foi rebatida pela ex-ministra do Meio Ambiente de Bolsonaro e hoje senadora Tereza Cristina via Twitter: “Que Apex é essa que acusa o agro de desmatar a Amazônia diante de nossos maiores clientes, Na China? Querem derrubar de uma vez só a imagem do país, o saldo comercial e o PIB?” Em tréplica nesta quarta, Viana afirmou que em nenhum momento estava criticando o Agronegócio e que sua fala era uma referência ao governo de Bolsonaro que, segundo ele, “estimulava o desmatamento no país”.
2023-03-29
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0wqqne0zk2o
brasil
Como a Justiça lida com adolescentes que cometem atos como o ataque à escola em SP?
Crianças e adolescentes que cometem atos normalmente classificados como crimes pela legislação não são processados pelo sistema criminal normal. Mas isso não significa que eles não vão responder por suas atitudes na Justiça. O sistema de processamento de menores de 18 que cometem ilegalidades tem nomes técnicos diferentes para os crimes e sanções, mas na prática se assemelha muito ao sistema criminal, dizem juristas. O termo técnico para uma ilegalidade cometida por menores de 18 anos é “ato infracional”. Atos infracionais são equivalentes a crimes, mas julgados em uma instância especial da Justiça - as varas da infância e da juventude. A sentença do juiz pode estabelecer as chamadas “medidas socioeducativas”, que são diferentes das penas do sistema criminal porque deveriam focar na educação - mas que também podem restringir a liberdade da pessoa. Fim do Matérias recomendadas Para casos de atos em que há violência ou grave ameaça à pessoa, a medida socioeducativa pode ser a internação, ou seja, a criança ou adolescente fica detida em uma instituição, explica Maíra Zapater, professora de direito penal e processual penal na Unifesp e autora do livro Direito da Criança e do Adolescente. No Estado de São Paulo, por exemplo, crianças e adolescentes infratores que são internados vão para a Fundação Casa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast “O que a lei coloca é que o juiz deve levar em consideração o suficiente para a reprodução, educação e prevenção daquele delito”, explica a criminalista. A internação também pode ser determinada se o adolescente descumprir várias vezes medidas socioeducativas anteriores. “A internação é a medida socioeducativa mais rigorosa”, explica o criminalista Raul Abramo. “É como se fosse uma prisão em regime fechado, com a distinção de que o foco da internação deve ter o caráter formal de ser educativo.” O sistema socioeducativo foi criado com a intenção de oferecer mais oportunidades de ressocialização para adolescentes e crianças, que biologicamente ainda estão em fase de formação. "As medidas socioeducativas visam garantir atendimento social, psicológico, psiquiátrico, se necessário, educação, cultura, esportes, profissionalização, tendo mais efetividade na reeducação e ressocialização do jovem. Até para (o adolescente) refletir sobre os graves danos que ele causou e sobre as consequências dos seus atos”, afirma Ariel de Castro Alves, especialista em políticas de direitos humanos e segurança pública pela PUC- SP e recém-empossado Secretário Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Na prática, no entanto, é frequente que as instituições que recebem os menores acabem tendo similaridades com presídios, segundo pesquisas realizadas por instituições como o NEV-USP e a Universidade Federal do Maranhão, entre outras. Isso vale não só para as instituições, mas para a própria lógica de aplicação das sanções. “Na prática, existe muito uma aplicação de uma mentalidade do sistema prisional no sistema socioeducativo", afirma Maíra Zapater. Para Castro Alves, o sistema continua sendo preferível que enviar os adolescentes para o sistema prisional. “Na prática, o sistema socioeducativo se aprimorou nos últimos anos e oferece os atendimentos (psicossociais), diferentemente do sistema prisional, geralmente superlotado e dominado por facções criminosas”, afirma. As decisões nas varas de infância e juventude também costumam sair mais rápido do que no sistema criminal para adultos, no qual processos podem se arrastar por anos. “Os processos na Justiça da infância e juventude são mais céleres. Em até 45 dias a Vara da Infância e Juventude toma uma decisão”, aponta Castro Alves. No caso do adolescente que fez o ataque à escola em São Paulo, o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou, na noite de terça-feira (28/3), a internação provisória. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) determina que a internação, antes da sentença, pode ser determinada pelo prazo máximo de 45 dias. Quando um adulto comete um crime, o tipo e os limites mínimo e um máximo de pena são estabelecidos pelo código penal. No caso das infrações das crianças e adolescentes, no entanto, não existe essa determinação. É o juiz da vara da infância que decide se a medida será internação e, caso seja, quanto tempo vai durar. A internação pode ser renovada a cada seis meses com base em relatórios psicossociais sobre o adolescente feitos profissionais como pedagogos, médicos e psicólogos, explica Zapater. O limite para renovação da medida de internação é de 3 anos, mas isso não significa necessariamente que o adolescente não terá que responder à Justiça depois do fim desse período - ele pode ter outra medida socioeducativa decretada. “É comum que após o fim da internação o Ministério Público peça outras medidas, como a semiliberdade ou a liberdade assistida”, diz Abramo. A semiliberdade é parecida com o regime semi-aberto - o adolescente passa parte do dia fora da instituição e precisa voltar para dormir, explica o criminalista. Na liberdade assistida, o adolescente é acompanhado por um orientador que faz relatórios periódicos sobre ele. Além disso, o adolescente pode acabar cumprindo medidas socioeducativas por mais tempo caso cometa outro ato infracional. Em casos graves - como crimes muito violentos - também existe a possibilidade da Justiça determinar internação psiquiátrica após o fim do período de internação socioeducativa, explica Castro Alves. “Se laudos psiquiátricos demonstrarem que o adolescente gera riscos à sociedade, podendo cometer novos crimes e tendo distúrbios psiquiátricos, ele pode acabar ficando em internação psiquiátrica e não mais em internação socioeducativa. Já existe jurisprudência que permite esse tipo de internação psiquiátrica após medida socioeducativa”, afirma. O fundamento do limite de 3 anos de internação para menores é quanto tempo isso corresponde à vida daquela pessoa, explica Zapater. “No caso de um adolescente de 12 anos, 3 anos é 1/4 da vida dessa pessoa”, explica. Caso o crime seja cometido quando o adolescente está prestes a completar 18 anos, a Justiça pode decretar que a medida seja cumprida até ele completar 21 anos. Nesse caso, ele continua internado na unidade socioeducativa entre os 18 e 21, não é encaminhado para o sistema prisional, explica Raul Abramo. A lei determina que pessoas que estão internadas após os 18 anos sejam internadas em unidades em que haja separação dessas pessoas das crianças e adolescentes, mas na prática isso nem sempre é cumprido, diz Zapater. Os especialistas afirmam que, por não haver o estabelecimento em lei dos limites das sanções, existem casos em que a sanção no sistema socioeducativo é mais longa do que seria para um adulto. “Existem casos concretos de adolescentes que cometem crimes em coautoria com adultos e por vezes o adulto vai sair numa liberdade condicional antes do adolescente conseguir encerrar a internação”, explica Zapater. “É muito equivocada a ideia de que existiria impunidade dos adolescentes porque eles ‘só ficam três anos’. Primeiro porque 3 anos é um tempo muito representativo na vida dessa pessoa e depois porque as garantias do processo penal, como progressão de regime e liberdade condicional, não se aplicam aos adolescentes, porque em tese ele não está sofrendo uma pena”, diz ela. Castro Alves concorda. “O adolescente responde por seus atos, só não da mesma forma que os adultos”, diz ele, que afirma que problemas como os atentados em escolas não seriam resolvidos com o julgamento de crianças e adolescentes no sistema de adultos. “Medidas de recrudescimento da legislação penal, principalmente quanto à redução da maioridade penal, não evitariam esse tipo de atentado”, diz. Embora em tese as internações devessem ser reservadas para casos excepcionais, na prática, atos equivalentes a crimes contra a vida não são maioria entre os cometidos por menores internados em instituições socioeducativas. Os homicídios correspondem somente a 5,6% dos casos de crianças e adolescentes cumprindo medidas de internação, segundo a pesquisa mais recente do Sinase (o sistema nacional socioeducativo), de 2019 (com dados de 2017). A maioria dos casos de adolescentes internados é por furto ou roubo (43,7%) ou tráfico de drogas (26,5%). Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 apontam que as crianças e adolescentes são muito mais vítimas do que infratores. O número total de adolescentes e jovens internados (incluindo as internações provisórias) em 2021 foi de 13.884, segundo o anuário. Enquanto isso, crianças de até 13 anos representam, em média, 60% das vítimas de estupros registrados. E apenas entre 2016 e 2020, 35 mil crianças e adolescentes de até 19 anos foram mortos de forma violenta no país.
2023-03-29
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cpr5vg9ve94o
brasil
Por que pesquisadores brasileiros enviaram fungos para o espaço
Lançada do Centro Espacial John F. Kennedy da Nasa, na Flórida, em novembro de 2022, a missão CRS-26, com foguete da empresa SpaceX, carregava um material preparado por pesquisadores brasileiros em meio aos suprimentos enviados para os astronautas da Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês). Cerca de 17 horas depois, o foguete atracou na estação. Astronautas receberam o material em um tubo de ensaio especialmente preparado para experimentos feitos fora da atmosfera terrestre. Durante o mês seguinte, um deles ficou responsável por conduzir os experimentos de acordo com as instruções dos pesquisadores brasileiros. Entre essa outras dezenas de pesquisas do mundo todo enviadas para o espaço, além da manutenção da estação, a rotina dos astronautas é puxada, com dez horas de trabalho por dia — quase não sobra tempo para assistir aos 16 pores do sol visíveis da ISS todos os dias. Realizada por pesquisadores da farmacêutica brasileira Cimed em parceria com pesquisadores da USP, a pesquisa enviada à ISS pela CRS-26 é um estudo sobre a absorção de vitaminas e minerais por leveduras (fungos unicelulares), explica a farmacêutica Patricia Lazzarotto, especializada em biotecnologia e farmácia aeroespacial e consultora científica da empresa. Fim do Matérias recomendadas Mas qual a vantagem de fazer o estudo no espaço? “A estação espacial é um laboratório de condição extrema em que a gente consegue analisar fungos, bactérias, vírus e outras amostras em situação de estresse”, explica a pesquisadora. Segundo a pesquisadora, conseguimos simular microgravidade na terra, mas de forma intermitente, enquanto na ISS a microgravidade é uma constante, permitindo análises melhores. “Todos os organismos evoluíram com base na gravidade da Terra e a partir do momento em que eu retiro e coloco as células em microgravidade, elas ficam se sentindo desorientadas”, diz Lazzarotto. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O ambiente de estresse somado à presença de vitaminas, diz ela, gera uma série de alterações na expressão de diversos genes — os de interesse para a pesquisa são os relacionados ao envelhecimento das células. O objetivo da pesquisa é entender como vitaminas mantidas em contato com as leveduras alteraram os genes dos microrganismos — a análise genética molecular está sendo feita já em Terra, após o retorno do material. Lazzarotto afirma que os resultados preliminares foram muito positivos. “A levedura lá conseguiu sobreviver em um ambiente de estresse e conseguiu ter energia suficiente para se multiplicar e se desenvolver”, explica. Segundo ela, esse tipo de pesquisa pode auxiliar no desenvolvimento de novos tratamentos e fórmulas mais eficazes. Esse estudo faz parte da segunda fase de um projeto de pesquisa aeroespacial da empresa. Na primeira, os experimentos analisaram o processo de cristalização da proteína do vírus SARS-Cov-2, responsável pela covid-19, no espaço.
2023-03-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72d1351516o
brasil
Golpe 'abate do porco': brasileiro conta como fugiu de tráfico humano e de 'fortaleza' em Mianmar
Nos últimos anos, pessoas em todo o mundo perderam centenas de milhares de dólares em um esquema de fraude online conhecido como golpe "abate do porco" ("pig butchering" no original), que usa falsos relacionamentos online para extorquir as vítimas por meio de falsos investimentos. Mas por trás dos perfis em redes sociais e da manipulação psicológica há uma realidade ainda mais sombria — muitos dos golpistas são vítimas de tráfico humano, forçadas a conduzir a fraude a partir de complexos semelhantes a prisões no Sudeste Asiático. Uma investigação do Serviço Mundial da BBC revelou como é a vida dentro desses complexos e ouviu o ex-chefe de uma das quadrilhas sobre as táticas sofisticadas que eles usam para atrair suas vítimas. Em paralelo, a BBC News Brasil conversou com um dos mais de 10 brasileiros que foram ludibriados com falsas oportunidades de emprego, traficados para Mianmar e mantidos em situação análoga à escravidão por meses, como parte desse esquema. Patrick desembarcou na Tailândia em julho de 2022, para o que acreditava ser uma favorável proposta de trabalho em um call center em Bangcoc. Logo que colocou os pés no aeroporto, porém, começou a desconfiar das intenções de seus novos patrões. Fim do Matérias recomendadas O carioca de 25 anos viajava ao lado de uma amiga, que foi abordada sobre a oportunidade de trabalho pelo Instagram e decidiu convidá-lo para se juntar a ela na empreitada. “Em menos de três dias após aceitar o trabalho já nos compraram a passagem e estávamos embarcando”, conta ele. Mas assim que chegaram ao destino prometido, os amigos foram colocados em um carro e levados à força a uma cidade na fronteira de Mianmar. Lá encontraram um gigantesco complexo tomado por negócios ilegais. O lugar que se assemelha a uma cidade artificial fica localizado no município de Myawaddy e é apenas uma das bases dos criminosos que aplicam o golpe "abate do porco" no sudeste da Ásia. “Era como se fosse uma fortaleza, um lugar enorme cercado por muros e muita gente armada”, descreve Patrick. Segundo o brasileiro, era ali que as vítimas dormiam, faziam suas refeições e eram obrigadas a aplicar as fraudes. “Foi quando nos levaram para trabalhar que descobrimos realmente do que se tratava — um esquema ilegal para criar perfis falsos e dar golpes cibernéticos”, diz. “E você simplesmente não tinha a opção de não trabalhar.” Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O relato de Patrick é semelhante ao de outras vítimas encontradas pela investigação do Serviço Mundial da BBC: as pessoas traficadas são proibidas de deixar os complexos e obrigadas a trabalhar até 15 horas por dia, sob ameaça de tortura e agressões. “Eles levam as pessoas para uma prisão lá dentro e fazem tortura até ela ser libertada. Ou então batem com paus, socos e chutes.” O brasileiro afirma nunca ter sido agredido fisicamente pelos capatazes que organizavam o golpe, mas diz ter sido coagido a trabalhar com ameaças financeiras — aqueles que se recusavam a aplicar os golpes ficavam sem receber uma pequena ajuda de custo que era usada para manter o básico da alimentação dentro do complexo. Mas após cerca de quatro meses, Patrick e outros nove brasileiros que estavam presos em Mianmar foram libertados depois de uma negociação do Ministério das Relações Exteriores com as autoridades birmanesas e os rebeldes que controlam parte do país. “Eu comecei a filmar e registrar o que acontecia lá dentro com um celular escondido. Mandei tudo para minha mãe no Brasil e, depois de um tempo, recebemos a notícia de que iríamos ser libertados.” As imagens feitas por Patrick foram entregues por sua família a uma rede de televisão no Brasil e, pouco depois, a Polícia Federal e a Interpol se envolveram no caso. Mas não acabou aí. Após serem libertados do complexo em Mianmar, os brasileiros tiveram que passar vários dias em uma delegacia de polícia antes que as autoridades brasileiras conseguissem localizá-los e repatriá-los. “Eles [os criminosos] prometeram nos levar de volta para a Tailândia, mas basicamente nos entregaram para os rebeldes”, conta Patrick. “Ficamos em uma cela com outras 40 pessoas durante uma semana sem ver a luz do sol. Quando finalmente nos localizaram, viajamos 13 horas de ônibus por Mianmar até a Tailândia.” Ele voltou para o Brasil, mas carrega até hoje os traumas daquele período. “Foi um inferno ficar naquele complexo. Eu ia dormir todos os dias sem saber se iria acordar”, diz. “Comecei a fumar três maços de cigarro por dia, sendo que nunca tinha fumado antes.” Patrick conta que perdeu mais de 10 quilos nos quatro meses que passou em cárcere privado e viu sua saúde se deteriorar. “Desenvolvi estresse pós-traumático ao chegar no Brasil. No começo tinha alguns surtos, me tremia todo e não conseguia parar de chorar.” “Mas agora estou um pouco melhor.” Quando Xiaozui trabalhava como golpista, ele considerava sua voz profunda e rouca seu maior trunfo. Ao falar por telefone com seus alvos, diz que poderia levá-los a fazer qualquer coisa. Ele chamava suas vítimas de "porcos" e seu objetivo era "engordá-las" e, eventualmente, "abatê-las”. Os termos usados pelos golpistas descrevem a estratégia usada e ensinada a todos os envolvidos, de nutrir um relacionamento romântico com as vítimas antes de fazê-las investir o máximo de dinheiro possível em falsos esquemas de investimento em criptomoedas. "A chave para o esquema de abate de porcos são as emoções", disse Xiaozui, de quase 20 anos e nascido na China, à BBC de um esconderijo na capital do Camboja, Phnom Penh. Xiaozui parece relaxado em seu pijama Gucci falsificado e chinelos, um cigarro sempre equilibrado entre os lábios ou dedos. Ele diz que sua operação roubou milhares de dólares ao longo dos anos e que até escreveu um manual para ensinar outras pessoas a atrair vítimas em potencial. “No meu manual, os golpistas devem inventar uma história comovente, para acionar o 'amor de mãe'”, diz. Um de seus perfis favoritos era fingir ser um executivo de negócios traído por sua ex-esposa. Ele diz que o perfil conquistava muita simpatia de suas vítimas do sexo feminino. Depois de trocar mensagens, Xiaozui costumava pegar o telefone e encantar seus alvos com sua voz. "Na nossa indústria, chamamos isso de 'terapia de palavras'", diz ele. Fraudadores como Xiaozui são chamados de "cães" na linguagem interna do golpe. Eles costumam encontrar suas presas em sites de relacionamento, nas redes sociais e em aplicativos de mensagens. “Nosso perfil geralmente é de alguém bonito, rico e atencioso”, explica Xiaozui, acrescentando que todas as imagens que eles usaram foram compradas online ou roubadas de influenciadores de mídia social. Ele diz que, em alguns casos, os golpistas usam até mesmo softwares de deep fake para conversar por vídeo com seus alvos, fingindo ser as pessoas dos perfis, e tornar o golpe mais convincente. Eventualmente, a conversa migra de assuntos cotidianos para uma oportunidade de investimento em ações de criptomoedas. "Você cria um sonho", diz Xiaozui. "Por exemplo, se meu alvo mora em Pequim, eu diria a ela que quero morar com ela em Pequim. Mas um apartamento lá custa milhões de dólares, então precisamos trabalhar duro juntos para ganhar dinheiro." Segundo Patrick, o golpe era dividido em várias fases: a identificação das vítimas, o período inicial em que o suposto relacionamento era criado e, por fim, a extorsão por meio dos falsos investimentos. Ele diz que os brasileiros eram obrigados a atuar na fase inicial do esquema, buscando perfis com potencial para serem enganados e reunindo seus dados. “Nossa função ali era obter as informações básicas sobre as vítimas: nome, onde mora, o que gosta de fazer e se tem dinheiro ou não”, relata Patrick. “Mas eu escolhia de propósito perfis que sabia que não iam dar em nada, porque nunca quis dar golpe em ninguém.” Foi com um desses esquemas que Joyce foi enganada em janeiro de 2022. A funcionária de um escritório chinês de 36 anos pensou ter conhecido um parceiro romântico online. Ele disse que se mudaria de Xangai para Pequim para viver com ela. "Ele parecia um indivíduo solitário e trabalhador vivendo em uma cidade grande. Assim como eu", disse Joyce à BBC. "Eu nunca imaginei que era um golpista." Joyce foi persuadida a depositar dinheiro em uma conta de investimento e depois levada a acreditar que estava obtendo lucros com isso. Depois que ela esgotou todas as suas economias, o golpista a incentivou a fazer empréstimos para que ela pudesse continuar investindo. Quando ela desconfiou e tentou sacar o dinheiro do "esquema de investimento", não conseguiu. Ela perdeu mais de US$ 100 mil (R$ 520 mil) no total, a maior parte em empréstimos. "Foi a primeira vez que vi meu pai chorando. Minha família me culpou por ser burra. Comecei a chorar", diz ela. Se Joyce não pagar seus empréstimos, pode ser colocada na lista negra do sistema de crédito social da China, o que afetará todos os aspectos de sua vida. Desde então, ela assumiu empregos paralelos para obter uma renda extra, incluindo apresentações de dança clássica em plataformas de transmissão ao vivo na internet. O golpe "abate do porco" teve como alvo inicialmente, por volta de 2017, indivíduos na China. Mas desde então se tornou global, fazendo vítimas na Ásia, Europa e América do Norte. As autoridades chinesas conseguiram reprimir o esquema cibernético dentro de suas fronteiras, mas as operações fraudulentas foram reiniciadas no sudeste da Ásia, principalmente no Camboja, em Laos, Mianmar, na Tailândia e nas Filipinas. A rede parece ainda ter se expandido recentemente para além da Ásia, com novas operações nos Emirados Árabes Unidos e na Geórgia. A empresa ilegal comandada por Xiaozui ficava sediada na cidade costeira cambojana de Sihanoukville, muito visitada por turistas por suas praias de areia branca. No entanto, nos últimos anos, também se desenvolveu na região um vasto negócio de cassinos, muitos dos quais estão sendo usados como fachada pelas gangues de golpes online. Em Sihanoukville, Xiaozui gerenciou uma equipe de 40 golpistas, incluindo alguns que foram traficados e forçados a trabalhar. "Comprei e vendi pessoas", diz Xiaozui, acrescentando que o tráfico humano é comum na indústria. Didi foi um dos traficados por outro grupo em Sihanoukville. “Os traficantes até negociaram meu preço na minha frente”, diz ele, que afirma ter custado US$ 20 mil (R$ 103 mil). O ex-funcionário de um cibercafé de 30 anos deixou a China em janeiro de 2022 para o que acreditava ser um emprego bem pago no universo dos games online. Em vez disso, foi traficado para um complexo de cassinos murado chamado Huang Le, em Sihanoukville, e forçado a atrair potenciais vítimas de golpes online. A equipe da BBC estabeleceu contato com Didi enquanto ele estava preso dentro do complexo e ele passou a enviar vídeos diários sobre sua situação. "Eles me disseram, que se eu tentar escapar, eles vão me matar", sussurra Didi em um dos vídeos gravados secretamente no banheiro de seu dormitório. Ele tinha que trabalhar 12 horas por dia, abordando pelo menos 100 pessoas online na Europa e nos Estados Unidos todos os dias. Se não entregasse resultados, enfrentaria punições, incluindo eletrocussão e espancamento. Existem milhares de outros rapazes e moças como Didi que foram enganados pela indústria de golpes cibernéticos. Outro ex-golpista disse à BBC que foi sequestrado nas ruas e traficado para um dos complexos de fraude. A extorsão de trabalhadores chineses é tão conhecida em Sihanoukville que alguns se referem a eles como "dólares ambulantes". Até mesmo Xiaozui, que era vice-chefe de uma empresa fraudulenta, acabou por cair em desgraça com as gangues. Ele foi espancado depois de pedir um aumento de salário. Ele diz que acabou escapando depois de ser vendido para outra gangue, mas que seria morto se seu antigo chefe o encontrasse. Xiaozui afirma estar arrependido: "Na verdade, odeio esta indústria. Já ouvi os gritos desesperados das vítimas. Só quero viver uma vida normal agora". Depois de quatro meses de cativeiro, Didi nos mandou uma mensagem de despedida: "Não aguento mais... não quero machucar ninguém... tchau". Ele ficou offline por meio dia, mas acabou ressurgindo com uma mensagem esperançosa: "Saí em segurança". Ele escapou do complexo durante a noite, após encontrar um pequeno buraco na parede onde um dos aparelhos de ar-condicionado estava pendurado. Pulou de uma janela do terceiro andar e conseguiu pegar um táxi para fugir. A BBC conseguiu rastrear o proprietário do complexo Huang Le no Camboja, o empresário Kuong Li. O império de negócios de Li abrange imóveis, cassinos, hotéis e construção. Ele foi homenageado como um "Oknha", o título mais alto concedido a civis pelo rei do Camboja, e já foi fotografado ao lado de autoridades proeminentes do país em eventos públicos e privados. Apesar da evidência esmagadora da realização de tráfico de pessoas, abuso físico e operações fraudulentas dentro do complexo de Huang Le, ninguém foi preso ou acusado de qualquer crime. A BBC apresentou essas alegações a Kuong Li, mas ele não respondeu às tentativas de contato. A polícia de Sihanoukville também foi questionada sobre por que nenhuma ação foi tomada contra aqueles que operam dentro do complexo de Huang Le. Também não houve respostas. Assim como Patrick, Xiaozui e Didi conseguiram escapar, mas dezenas de milhares de golpistas continuam a operar o esquema do "abate do porco". Fotografia de Natália Zuo. Reportagem adicional de Natalia Zuo e Jake Tacchi *Os nomes de alguns dos entrevistados foram alterados para proteger suas identidades
2023-03-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c99ywk980qqo
brasil
Parente próximo comete 8 em cada 10 casos de violência contra crianças de até 6 anos no Brasil, diz pesquisa
O Brasil registra 673 casos de violência contra crianças de até 6 anos por dia ou 28 a cada hora, e 84% dessas agressões têm pais, padrastos, madrastas ou avós como suspeitos, segundo dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, analisados em estudo produzido pelo comitê científico do Núcleo Ciência pela Infância (NCPI). Ainda segundo o estudo, crianças até 13 anos representam a maior parte das vítimas de estupro no Brasil (61,3% do total de casos), segundo dados do Anuário Brasileiros de Segurança Pública. E a maior parte das crianças vítimas de morte violenta intencional são meninos (59%) e crianças negras de ambos os gêneros (66%). “A violência contra a criança no ambiente familiar tem impacto negativo a curto, médio e longo prazos na saúde física e mental das vítimas e pode levar a um ciclo intergeracional de violência — quando a vítima de violência na infância repete com os filhos os abusos que vivenciou”, alerta Maria Beatriz Linhares, professora da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP) e coordenadora do estudo. Para a pesquisadora, a solução do problema exige uma estratégia integrada de políticas públicas, envolvendo as áreas de saúde, educação, proteção social e Justiça. “Não podemos esperar chegar aos casos extremados para tomar providências. É preciso acabar com a naturalização da violência contra a criança, temos que progredir”, diz Linhares, que defende ainda a adoção de programas voltados para a formação dos pais contra a violência na infância. Fim do Matérias recomendadas Responsável pelo estudo, o NCPI é composto por sete organizações: Center on the Developing Child e David Rockefeller Center for Latin American Studies (ambos da Universidade Harvard), Faculdade de Medicina da USP, Fundação Bernard van Leer, Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, Insper e Porticus América Latina. A primeira infância vai do nascimento aos 6 anos da criança, uma fase determinante para definir habilidades afetivas, sociais e cognitivas – que dizem respeito à nossa capacidade de compreender o mundo ao redor e responder adequadamente aos estímulos recebidos. Assim, a violência nessa fase tem impactos no desenvolvimento e comportamento presente e futuro das crianças, destacam os pesquisadores do NCPI. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para mapear essa violência, eles analisaram dados do canal de denúncias Disque 100, compilados pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, atualmente ligada ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Também olharam para números do Anuário Brasileiros de Segurança Pública 2022, produzidos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Segundo os dados do Disque 100, em 2021, foram registradas 118.710 violações de direitos de crianças de 0 a 6 anos no Brasil. Em 2022, apenas no primeiro semestre, foram 122.823 casos — uma média de 673 violências registradas por dia, ou 28 casos a cada hora. Para os pesquisadores, o salto no número de casos registrados em 2022 pode ser um sintoma da subnotificação que marcou o período da pandemia de covid-19. “Durante a pandemia, ocorreram mais violências, mas não houve notificação compatível. Isso porque muitos serviços foram fechados e muitas das notificações são feitas pelos serviços de saúde, pelas escolas. Então o isolamento das crianças em casa pode ter impactado nessa subnotificação”, diz Linhares. Na maioria dos casos, os agressores eram familiares das crianças. No primeiro semestre de 2022, os suspeitos de violência em 57% dos casos eram as mães, seguidas pelos pais (18%), padrastos e madrastas (5%), além de avôs e avós (4%). A professora da USP observa, porém, que é preciso olhar com cautela para o fato de que as mães costumam ser as principais suspeitas de agressão contra crianças pequenas. Isso porque as crianças costumam passar mais tempo sob o cuidado delas e os pais muitas vezes são figuras ausentes. Então é preciso ponderar os dados considerando essa disparidade no tempo de cuidado. “A violência intrafamiliar é um fato”, afirma Linhares. “Temos um grande fator de risco e ameaça ao desenvolvimento [da criança], que é o próprio cuidador, que deveria proteger, estimular, cuidar física e afetivamente, ser muitas vezes o perpetrador da violência”, observa a pesquisadora “Às vezes você têm famílias com uma série de fatores de risco, desde o desemprego, abuso de drogas, psicopatologias, depressão materna, questões de estresse. Então há uma série de fatores que levam ao que chamamos dessa ‘parentalidade negativa’ — mas esses fatores não justificam as agressões. Nada justifica a violência contra a crianças”, enfatiza a especialista. Ainda conforme os dados do Disque 100 do Ministério dos Direitos Humanos, maus-tratos (15.127 casos), insubsistência afetiva (13.980 casos), exposição ao risco de saúde (12.636 casos) e tortura psíquica (11.351 casos) foram os principais tipos de violência registrados contra as crianças de 0 a 6 anos no primeiro semestre de 2022. Olhando para os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, um outro número chama a atenção: 61,3% dos estupros no Brasil são cometidos contra crianças de 0 a 13 anos – o que é considerado estupro de vulnerável, já que a criança não tem maturidade para consentir. Do total de estupros de vulneráveis registrados no Brasil em 2021, 19,5% das vítimas tinham entre 5 e 9 anos e 10,5%, entre 0 e 4 anos. Ainda conforme o Anuário, houve 2.555 mortes violentas intencionais de crianças e adolescentes em 2021 — incluindo crimes de homicídio culposo, feminicídio, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e morte decorrente de intervenção policial. Entre as crianças de 0 a 11 anos vítima de mortes violentas intencionais, 59% eram meninos e 41%, meninas. Por raça ou cor, 66% das crianças eram negras (soma de pretos e pardos) e 31% brancas. Maria Beatriz Linhares explica que a violência na infância tem efeitos para a criança e para a sociedade como um todo. “Crianças expostas à violência estão submetidas a situações de estresse tóxico. Isso provoca alterações fisiológicas e psicológicas que podem interferir no funcionamento do sistema nervoso central em áreas relacionadas à memória, ao aprendizado, às emoções e ao sistema imunológico. Tais alterações podem trazer prejuízos que persistem até a vida adulta, contribuindo, inclusive, para o surgimento de doenças crônicas”, diz a professora da USP. Além disso, a exposição à violência pode gerar agressividade, problemas de atenção, hipervigilância, ansiedade, depressão, problemas de adaptação escolar e problemas psiquiátricos como fobia e estresse pós-traumático, destacam os pesquisadores do NCPI. Também afeta o desempenho escolar e a sociabilidade e é um fator de risco para criminalidade e delinquência na adolescência, observa Linhares. Os pesquisadores observam que não é por falta de leis que a violência contra crianças se perpetua no Brasil. O país conta com marco regulatório extenso de proteção à infância, que tem se renovado ao longo dos anos. Vai desde a Constituição de 1988, passando pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de 1990, pela Lei da Palmada (2014), Marco Legal da Primeira Infância (2016), Lei da Escuta Protegida (2017) e Lei Henry Borel (2021), que tornou crime hediondo o homicídio contra menores de 14 anos. Para Linhares, um dos problemas no país é a morosidade da Justiça. Ela cita como exemplo o caso do menino Bernardo Boldrini, assassinado aos 11 anos em 2014. O autor do crime e pai da criança, Leandro Boldrini, foi condenado somente este ano – nove anos depois do crime – a 31 anos e oito meses de prisão, após uma primeira condenação (em 2019) ter sido anulada. “Não basta ter a lei, ela precisa ser aplicada”, diz Linhares. Ela destaca, porém, que a Justiça não basta e que o combate à violência na infância exige uma estratégia interdisciplinar. “A assistência social, a educação, as estratégias de saúde de família, todas têm papel importante no combate à violência na infância”, diz a pesquisadora. Ela destaca ainda a importância dos chamados “programas de parentalidade”, que ajudam a prevenir a violência aumentando “a compreensão dos cuidadores sobre o desenvolvimento infantil” e incentivando estratégias de disciplina positiva — isto é, não violenta ou punitiva. Programas do tipo, desenvolvidos em parceria com o poder público, já estão em aplicação em 24 municípios do Ceará e em Pelotas (RS), cita a professora.
2023-03-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw8d5xl8p4eo
brasil
Por que varejistas criticam Shein, Shopee e AliExpress por 'contrabando digital' no Brasil
A chegada de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao Planalto levou empresários brasileiros a renovarem seus esforços para tentar fazer frente ao avanço de plataformas de varejo internacionais, em especial as asiáticas, no Brasil. As reclamações não deram resultado na gestão de Jair Bolsonaro (PL), mas a troca de governo abriu uma janela de oportunidade para empresários brasileiros cobrarem providências mais uma vez. Ambos os lados dessa disputa já tiveram reuniões com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), para apresentar seus argumentos. As varejistas nacionais dizem que a competição é desleal, porque as plataformas internacionais não pagam os mesmos impostos e custos trabalhistas e, por isso, conseguem oferecer preços mais baixos. Acusam ainda as concorrentes de praticar um “contrabando digital” e evasão fiscal, ao supostamente se aproveitarem de brechas nas regras e fraudarem vendas para evitar a cobrança de impostos de importação. Fim do Matérias recomendadas Isso geraria, pelas contas dos empresários brasileiros, um prejuízo bilionário em perda de arrecadação para o país. As plataformas, que enfrentam acusações parecidas em países como Estados Unidos, África do Sul e Índia, dizem que cumprem as leis e normas locais. Afirmam também que seus serviços possibilitam ao consumidor brasileiro comprar produtos a que não teriam acesso de outra forma, a preços acessíveis, e que têm investido no desenvolvimento do mercado de varejo e de comércio eletrônico nacional. Esse é um tema especialmente sensível em Brasília neste momento, em que o governo Lula precisa lidar com um rombo fiscal e conseguir o dinheiro necessário para tirar propostas de campanha do papel. O novo governo afirmou que uma de suas prioridades para este ano é uma proposta de uma reforma tributária, que deve começar com mudanças em impostos sobre o consumo. A expectativa dos empresários brasileiros é que medidas que tratem do varejo digital sejam anunciadas em breve. O Ministério da Fazenda confirmou à BBC News Brasil que está analisando a questão. “As propostas serão apresentadas após validação interna no governo”, disse a pasta em nota. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O problema não vem de agora. As empresas brasileiras viram nos últimos anos varejistas digitais estrangeiras, especialmente as chinesas AliExpress e Shein e a Shopee, de Cingapura, abocanharem uma parte do mercado com produtos bem mais em conta. Alberto Serrentino, consultor especialista em varejo e fundador da Varese Retail, explica que isso ocorreu no Brasil e em outros lugares como um reflexo de acordos comerciais fechados entre países. Estes acordos facilitaram o comércio eletrônico entre fronteiras, ou cross-border, no jargão do mercado, e a venda de produtos nestas plataformas diretamente para consumidores internacionais. Serrentino aponta que Brasil e China firmaram um acordo bilateral em 2017 e que as plataformas chinesas tiraram proveito disso. Mas o mesmo movimento não ocorreu no sentido contrário, apesar de as empresas brasileiras terem a mesma oportunidade à mão para vender diretamente para os consumidores chineses. “Mas elas não tiveram o apetite, e a pandemia atrapalhou com o fechamento da China. O fato é que as empresas chinesas investiram. Não só elas, mas a Amazon também, a Shopee começou a atacar mercados emergentes e, mais recentemente, a Shein, que se tornou um fenômeno global”, diz Serrentino. As plataformas internacionais passaram a ter sites e aplicativos em português, a dar assistência aos consumidores brasileiros, melhoraram a logística para encurtar prazos de entrega, fizeram campanhas publicitárias e passaram a oferecer produtos de vendedores locais. “Isso aumentou a confiança nestas plataformas, e o consumidor começou a gostar e a se apegar a elas. Aí, escalou muito rápido”, afirma Serrentino. As compras cross-border mais do que triplicaram entre 2018 e 2021, de acordo com o Instituto para Desenvolvimento do Varejo (IDV), uma associação de empresas do setor. Dados da consultoria NielsenIQ Ebit apontam que essas transações passaram de R$ 7,7 bilhões para R$ 36,2 bilhões neste período. O IDV calcula que o cross-border já representava 16,5% do varejo no Brasil em 2021, e Serrentino diz que elas explodiram a partir daquele ano com o crescimento do comércio eletrônico, que virou a alternativa para fazer compras com as restrições de circulação impostas por causa da covid-19. As transações passaram de 36 bilhões em 2021, segundo dados da NielsenIQ Ebit, e a estimativa é de que tenham chegado a 50 bilhões em 2022. Shein, Shopee e AliExpress são as três principais empresas desse mercado no Brasil hoje, aponta Serrentino. “São números importantes, muito grandes. Isso começou a representar uma concorrência brutal para as empresas brasileiras e gera agora essas reclamações legítimas de falta de isonomia e de desvantagem competitiva, por não haver o mesmo tratamento tributário nestas transações.” As varejistas brasileiras dizem que, além de ter de arcar com tributos e custos trabalhistas que a concorrência internacional não paga, as plataformas estariam usando uma brecha na lei para evitar a cobrança de impostos. “No passado, as mercadorias que entravam no Brasil sem pagar impostos vinham do Paraguai. O Paraguai mudou para as plataformas depois que os vendedores internacionais, principalmente da China, descobriram um vácuo na tributação”, diz o deputado federal Marco Bertaiolli (PSD-SP), presidente da Frente Parlamentar Mista do Empreendedorismo. As compras feitas entre pessoas físicas no valor de até US$ 50 (R$ 262) são isentas de imposto de importação pela Receita Federal. A regra foi criada em 1980, e, em 1999, o limite, que antes era de US$ 100, foi cortado pela metade. Os empresários brasileiros dizem que as plataformas se aproveitam dessa regra para burlar o controle da Receita e fraudam as informações da compra nos pacotes de entrega, subfaturando os preços cobrados ou informando que as compras foram entre pessoas físicas. Ou que, se um cliente compra vários produtos em um site ou aplicativo, eles chegam no Brasil em pacotes e preços individualizados, abaixo do limite para a isenção. “Nesta regra, não está explicitamente dito que ela pode abrigar transações de empresas para pessoas e vendas de produtos de comércio eletrônico, mas isso também não está regulamentado, então, fica nesse limbo regulatório”, diz Serretino. A fiscalização é outro problema que os varejistas nacionais apontam. Um relatório produzido pelo empresário Luciano Hang, presidente da rede Havan, afirma que menos de 2% dos produtos que passam pela alfândega são fiscalizados. A BBC News Brasil questionou o Ministério da Fazenda a respeito disso, mas a pasta não tratou do assunto na resposta enviada à reportagem. Hang é um dos empresários à frente das denúncias contra as varejistas internacionais. Ele convidou Ricardo Patah, presidente da União Geral dos Trabalhadores, uma das principais centrais sindicais do país, para um encontro no início de março. Patah diz que, assim como ficou combinado com Hang, entregou o relatório ao ministro do Trabalho, Luiz Marinho (PT). “Dei uma cópia para ele e, se estiver com o Lula, vou entregar uma para ele, porque nós temos que nos preocupar com tudo que pode prejudicar os nossos membros”, diz Patah. O relatório de Hang diz que o Brasil deixou de arrecadar R$ 60 bilhões no ano passado por causa dos “contrabandistas digitais” e estima que o valor vai passar de R$ 100 bilhões em 2023. O IDV afirma que o prejuízo foi de até R$ 48 bilhões em 2020 e pode chegar a R$ 99 bilhões em 2025. “Nós somos a favor da livre-concorrência, é o mais sadio. O cross-border vem crescendo a números galopantes, de dois dígitos, o que é bom, mas começamos a verificar que não estão cumprindo as leis internas”, diz Jorge Gonçalves Filho, presidente do IDV. Ele afirma que o instituto passou a fazer compras nestas plataformas para provar que há irregularidades e que, “na maioria” dos casos, os tributos devidos não seriam pagos. “Constatamos que estes produtos vêm principalmente da China como sendo de pessoas físicas, mas muitas vezes não são. Você compra o produto e vem subfaturado, sem os documentos de importação corretos, e isso entra aqui em uma quantidade gigante”, diz Gonçalves Filho. As plataformas de comércio eletrônico internacionais afirmam que não estão fazendo nada de errado e que cumprem as normas. A Shopee, que vende no Brasil desde 2020, acrescenta que as transações internacionais são hoje a minoria do seu negócio por aqui. Mais de 85% das compras no país são feitas de vendedores locais, segundo Felipe Piringer, diretor de marketing da Shopee no Brasil, e 90% das vendas realizadas pelos 3 milhões de vendedores brasileiros da plataforma são feitas por empresas. “A nossa operação cross-border é bem pequena, e a gente segue as leis brasileiras. Por isso, a gente não concorda em estar sendo citado. Tem uma diferença entre a origem de uma empresa e seu propósito, que é o mercado local no nosso caso. Nem todas as empresas que vêm da Ásia são iguais”, diz Piringer à BBC News Brasil. A AliExpress, uma das pioneiras deste movimento no mercado, com 12 anos de operação no país e um site em português desde 2013, afirma que exige que seus vendedores sigam as regras do mercado brasileiro, que orienta os compradores a respeito e que coopera com a Receita Federal. “As plataformas cross-border permitem o acesso a milhões de produtos únicos que não estão disponíveis no país a preços acessíveis e que o consumidor não conseguiria acessar de outra forma”, afirma Bueno. A Shein, que está no mercado brasileiro desde 2020, disse em nota que “seu modelo único de produção, em pequena escala e com demanda garantida, produz produtos de qualidade e acessíveis”. A empresa afirmou ainda “que tem se esforçado também para estabelecer parcerias com diversos fornecedores e vendedores locais”. Jorge Gonçalves Filho diz que o varejo nacional não quer que as plataformas sejam proibidas de vender no Brasil, mas que atuem sob as mesmas condições das empresas brasileiras. “Escutamos que as plataformas vão investir bilhões no país e achamos sensacional, mas queremos isonomia de competição, porque a indústria e o varejo brasileiro estão sendo prejudicados e perdendo mercado”, diz o presidente do IDV. Sua proposta é que a cobrança dos impostos seja feita no ato da venda pelas plataformas, que seriam responsáveis por cobrar os valores devidos dos clientes. “Não precisa de uma lei específica, mas de normas e regulamentos”, diz Gonçalves Filho. O presidente do IDV diz ter tratado do assunto com o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB), ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços. “Ele entendeu nossa proposta e pediu providências.” Esta não é a primeira vez que o setor pede que o governo federal faça algo a respeito. Em 2020, a Receita Federal ensaiou uma resposta a estas demandas e disse que lançaria uma medida provisória com novas regras para esse setor. Mas o ex-presidente Jair Bolsonaro vetou a ideia. “Não era o momento certo para uma medida assim, que não era simpática à população, mas ela só é impopular no médio prazo, porque é bom para o país e para a geração de empregos”, diz Gonçalves Filho. Bolsonaro se justificou na época, dizendo que a saída seria uma maior fiscalização e não mais tributação. Mas o varejo não concorda. “Entram cerca de 500 mil pacotes por dia no Brasil pela alfândega, é um volume proporcional para a estrutura de fiscalização. Não dá para imaginar que vamos ter pessoas suficientes para conferir pacotinho por pacotinho”, diz Marco Bertaiolli, da Frente Parlamentar Mista do Empreendedorismo. O deputado defende que a cobrança dos impostos deve ser uma responsabilidade das plataformas, mas diz que o governo também tem a alternativa de desonerar o varejo nacional para equilibrar o jogo. “Não existe um modelo elaborado, mas a Fazenda e a Receita estão estudando e devem apresentar soluções para esse contrabando digital nos próximos dias ou semanas. Seja qual for a solução, defendemos a isonomia. O que não podemos é ter duas balanças e duas medidas e deixar a indústria vulnerável.”
2023-03-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgeqgvd417xo
brasil
A adolescente que levou tiro acidental em SC e não morreu por 2 mm
Era Natal de 2018 e a influenciadora digital Raylla Fachin da Silva, hoje com 18 anos, passava a data comemorativa em um sítio em São Lourenço do Oeste, no Estado de Santa Catarina, com o ex-namorado e a família dele. Durante uma brincadeira de tiro ao alvo com um grupo de amigos, a jovem foi atingida no rosto por um disparo acidental feito por seu ex-namorado com uma espingarda de chumbinho – equipamento normalmente usado para caça de pequenos animais ou prática esportiva, com projéteis de chumbo impulsionados por ar comprimido, com venda autorizada no Brasil. "Na hora eu não percebi que o tiro havia pegado em mim. Senti apenas uma dor de cabeça muito intensa e quando coloquei a mão no meu rosto percebi que meu olho estava sangrando. Deitei no chão e vi que poderia ter acontecido algo mais grave porque foi aquela correria para me levar ao hospital", conta Raylla. A influenciadora foi levada imediatamente para um hospital de São Lourenço (SC) e depois transferida para Chapecó (SC). Foram 11 dias de internação e Raylla precisou passar por uma cirurgia para a retirada do globo ocular esquerdo. Fim do Matérias recomendadas O projétil ficou alojado na cabeça da jovem e, segundo os médicos, por 2 mm não atingiu as meninges (membranas que revestem o sistema nervoso e a medula), o que teria levado a influenciadora a morte. "A bala ficou alojada e não é recomendado retirar porque na cirurgia posso ter complicações neurológicas e comprometer funções como a fala e os meus movimentos. Para mim, eu sou um verdadeiro milagre", diz a influenciadora. Moradora de Santa Isabel do Oeste (PR), a jovem faz tomografia todos os anos para acompanhar a posição do projétil e verificar se ele não está se deslocando. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No ano seguinte, como presente de 15 anos, Raylla colocou sua primeira prótese ocular. Feita sob medida, a prótese não faz com que a jovem volte a enxergar do lado esquerdo, mas ajuda em sua autoestima. "Eu usava tampão encobrindo o olho para sair de casa e as pessoas ficam me olhando. Eu sofri muito preconceito por ter perdido o olho, situações que até hoje eu não gosto de lembrar e comentar", diz. Por ser monocular (que possui apenas um olho), Raylla diz que precisa tomar alguns cuidados, como higienizar bem a região do olho e evitar ambientes com muita poeira ou areia. No mais, ela diz levar uma vida como qualquer garota da sua idade. Atualmente, Raylla usa as redes sociais para tentar diminuir o preconceito contra pessoas monoculares. Com vídeos divertidos, ela responde de forma bem-humorada as dúvidas dos seus 2,9 milhões de seguidores no TikTok. "Muita gente tem curiosidade, então eu faço vídeo tirando a prótese para mostrar que meu rosto é bonito sem ela também. Que apesar de eu não ter um olho, não fica um buraco horrível no rosto, como muita gente pensa. Tento responder de forma divertida para encorajar outras pessoas a se mostrarem também e acabar com o preconceito", diz. Raylla tem cinco próteses e alterna o uso entre elas. Algumas se assemelham à cor natural do seu olho, já outras são coloridas, o que, segundo ela, chama ainda mais a atenção para o tema. "As pessoas adoram quando eu uso uma lente diferente e até pedem para que eu use mais. Hoje eu me divirto por ter várias opções de 'olhos', acredito que é uma forma de deixar a situação mais leve", acrescenta. A prótese ocular, popularmente conhecida como olho de vidro, é confeccionada em resina acrílica, seguindo o modelo do olho do paciente. Elas não devolvem a visão, mas são essenciais na recuperação psicológica, da autoestima, e no convívio social de pessoas que nasceram com a deficiência ou que perderam um olho. "O formato é parecido com uma concha e fica por dentro das pálpebras. Essa pintura é feita à mão e personalizada para que fique o mais similar possível ao outro olho do paciente", explica Murilo Alves Rodrigues, diretor da Sociedade Brasileira de Oftalmologia. Além das questões estéticas, a ausência do globo ocular causa atrofia da pálpebra, fazendo com que o olho fique cada vez mais fechado e com o tempo perca seu movimento. Assim, o uso de prótese faz com que a musculatura da pálpebra seja preservada, fazendo com que a pessoa pisque normalmente. "Apesar de o paciente sentir um leve desconforto inicial, a adaptação à prótese é tranquila e, com o passar dos dias, o usuário praticamente não sente nada. É possível dormir com ela e retirá-la a cada uma ou duas semanas para que possa ser feita a higienização. O uso de colírio lubrificante continuamente também é indicado", acrescenta Rodrigues. E os cuidados com a prótese, a higienização dela e da área dos olhos são essenciais para evitar alergias e até mesmo infecções. É necessário que o paciente sempre tome cuidado com a pálpebra e cílios, fazendo a higienização correta deles também. Além de manter o acompanhamento com oftalmologista, principalmente em caso de desconfortos. "Sempre que precisar retirar a prótese, a pessoa deve lavar bem as mãos e a prótese deve ser lavada com água filtrada e sabão neutro. Deve-se evitar usar água de torneira, que pode ser contaminada", explica o oftalmologista Emerson Fernandes, do Hospital Sírio-Libanês. "Não deve usar álcool ou produtos de limpeza doméstica que podem prejudicar a prótese. Após a limpeza, deixar secar ao ar livre e evitar secar com toalhas ou tecidos, pois, além da contaminação, podem sobrar pedaços de algodão que vão machucar os olhos". E se engana quem pensa que as próteses oculares são todas iguais. Segundo os especialistas existem três principais tipos de prótese. Sendo elas:
2023-03-27
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c03k17pxxndo
brasil
Ferrovia, estrada e petróleo na foz do Amazonas: os projetos 'antiambientais' no governo Lula
Na noite de 30 de outubro de 2022, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) subia ao palco cercado de aliados para comemorar a vitória nas eleições e conquistar seu terceiro mandato. Após quase quatro anos de aumento nas taxas de desmatamento na gestão de seu antecessor, Jair Bolsonaro (PL), Lula fez uma promessa que animou ambientalistas do Brasil e do mundo. "Vamos provar mais uma vez que é possível gerar riqueza sem destruir o meio ambiente", disse Lula. Cinco meses depois deste discurso, a realidade se impôs e, agora, o governo Lula tem pelo menos três grandes dilemas que podem definir o futuro de parte da Amazônia e contribuir para a emissão de gases do efeito estufa. Os projetos foram elaborados em governos passados, mas ganharam ou mantiveram status de prioritários ou estratégicos na nova gestão de Lula: a pavimentação da BR-319, que corta uma das regiões mais preservadas da Amazônia; a exploração de petróleo na região da foz do Rio Amazonas, uma das regiões mais ambientalmente sensíveis do país; e o complemento das obras da Ferrogrão, uma estrada de ferro projetada para escoar a produção de grãos do Centro-Oeste pela região Norte, mas que, segundo entidades, pode causar prejuízo a inúmeras comunidades indígenas. Os três projetos foram colocados como prioritários pela atual gestão e pela Petrobras, que agora está sob a liderança de um indicado pelo presidente Lula, o senador Jean Paul Prates (PT-RN). Fim do Matérias recomendadas Especialistas alertam para o que seriam projetos "antiambientais" e afirmam que a execução deles na forma como está inicialmente prevista representa uma contradição grave em relação ao discurso ambiental de Lula e o que pode vir a ser a prática do seu terceiro mandato. Procurado pela reportagem, o Palácio do Planalto não respondeu. A Petrobras disse que suas atividades na foz do Rio Amazonas estão em fase inicial e que são desenvolvidas sob "protocolos rigorosos de responsabilidade social e ambiental". O Ministério dos Transportes disse que não dará "nenhum passo sem alinhamento prévio com o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A BR-319 é uma rodovia federal que liga Porto Velho (RO) a Manaus (AM). Ela tem aproximadamente 880 quilômetros e corta uma das regiões mais preservadas da Amazônia, conhecida como o interflúvio dos rios Purus e Madeira. No início do ano, o governo Lula colocou a rodovia na sua lista de obras prioritárias, conforme nota enviada pelo Ministério dos Transportes à BBC News Brasil. A BR-319 foi construída nos anos 1970, durante a ditadura militar, mas, sem obras de conservação, ficou praticamente intransitável durante anos. A partir de 2015, o governo federal começou a dar sinais de que poderia repavimentar a rodovia. Nos últimos anos, obras de recuperação foram iniciadas nas duas extremidades da rodovia e o governo começou o processo de licenciamento para pavimentar o chamado "trecho do meio", com uma extensão de aproximadamente 400 quilômetros. Defensores da obra apontam que trechos sem pavimento causam prejuízos a quem precisa passar por lá - e apontam que as alternativas são transporte aéreo ou por barco. Ambientalistas e cientistas, no entanto, alertam que a recuperação da rodovia pode levar ao desmatamento sem controle da região, a exemplo do que aconteceu na BR-163, que liga Mato Grosso ao Pará. Nessa região, ocorreu o que os cientistas chamam de "efeito espinha de peixe", que é a abertura de pequenas estradas vicinais conectadas à rodovia central e que servem para viabilizar o desmatamento da área. O temor é que o de que a finalização da BR-319 aumentaria a especulação fundiária na região e facilitaria o acesso de grileiros e desmatadores. Um estudo realizado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), divulgado em 2020, estimou que a pavimentação da rodovia poderia quadruplicar o desmatamento na região cortada por ela até 2050, lançando mais de 8 bilhões de toneladas de CO2 na atmosfera, contribuindo com o aquecimento global. Apesar disso, em julho de 2022, ainda durante o governo do então presidente Jair Bolsonaro, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) concedeu uma licença-prévia para a obra do trecho do meio. Essa licença ainda não autoriza o início das obras, mas é uma espécie de "atestado" de que ela é ambientalmente viável e dá sinal verde para que as próximas etapas dela continuem. Para o secretário-executivo da organização não-governamental Observatório do Clima, a pavimentação da BR-319 coloca o governo Lula diante de um dilema. "O governo vai ter que escolher. Ou ele vai controlar o desmatamento ou ele vai fazer a BR-319 do jeito como ela está sendo licenciada. As duas coisas não dá pra ter. A pavimentação na forma como está o projeto é uma bomba de desmatamento. Vai ser muito difícil proteger a Amazônia fazendo obras que incentivam o desmatamento", disse Astrini. Márcio Astrini afirma que a licença-prévia concedida pelo governo anterior não determina condicionantes consideradas importantes para impedir ou dificultar o avanço do desmatamento desordenado na região, como a criação de unidades de conservação ao longo da rodovia. Segundo ele, a área não tem uma estrutura sólida de governança que barre o desmatamento. "Com o crime ambiental muito mais empoderado como está hoje, a estrada vai ser uma espécie de tapete de concreto para o desmatador e para o grileiro", afirmou o especialista. Para prosseguir, a obra precisa de novas licenças do Ibama. À BBC News Brasil, o presidente do órgão, Rodrigo Agostinho, disse que a concessão da licença-prévia intensificou o desmatamento na região e afirmou que o órgão analisa recomendações feitas pelo Ministério Público Federal (MPF) sobre a obra. Agostinho admitiu que existe a possibilidade de a licença-prévia concedida no ano passado ser suspensa. "O MPF fez várias recomendações ao Ibama e estamos analisando todas elas [...] Dependendo das recomendações que foram feitas, se forem acatadas, existe possibilidade, inclusive, de suspensão dessa licença prévia. Estamos tratando isso com muita cautela", disse Agostinho. Outro projeto que vem deixando ambientalistas e populações tradicionais do Amapá preocupados é a exploração de petróleo na região conhecida como foz do Rio Amazonas. A região é considerada extremamente sensível e os impactos da exploração de petróleo na área ainda são desconhecidos. Em 2017, ambientalistas do Greenpeace realizaram uma expedição que conseguiu registrar em vídeo a existência de recifes de corais na região que vinha sendo cobiçada por petroleiras. Em 2020, a empresa Total, da França, desistiu de explorar petróleo na região. Apesar disso, a Petrobras colocou a exploração na área, que fica dentro da chamada Margem Equatorial, como uma de suas prioridades para os próximos anos. A posição é anterior ao início do governo Lula, mas foi mantida pela atual gestão. Em março, logo após assumir a presidência da estatal, Jean Paul Prates, indicado por Lula, disse a analistas de bancos que a Petrobras pretende prosseguir com os planos na Margem Equatorial. “Planejamos um futuro promissor na Margem Equatorial nas regiões Norte e Nordeste”, disse Prates, segundo reportagem do jornal Valor Econômico. Em nota enviada à BBC News Brasil, a estatal reforçou a fala de Prates. "A Margem Equatorial é considerada uma área estratégica para a Petrobras e se encontra em fase de estudos para avaliar seu potencial e viabilidade comercial", disse a empresa. A Petrobras também informou que o poço para o qual aguarda a liberação do Ibama se encontra a quase 3 mil metros de profundidade e distante da foz do Amazonas. "Parte do portfólio da Petrobras na Margem Equatorial se encontra em águas ultraprofundas do estado do Amapá (aproximadamente 2.880 m) e está localizada a cerca de 540 km da foz do Rio Amazonas propriamente dita", disse a estatal. A expectativa é de que os investimentos nessa região sejam de US$ 3 bilhões nos próximos cinco anos. O projeto pode se tornar um dos pontos de tensão entre a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, e o presidente Lula. Em entrevista publicada ao site Sumaúma, Marina Silva admitiu que a exploração na foz do Amazonas inspira cuidados, mas não adiantou que posição o Ibama daria sobre o assunto. "Estou olhando para esse desafio do petróleo na foz do Amazonas do mesmo jeito que olhei para (Usina Hidrelétrica de) Belo Monte. É altamente impactante, e temos instrumentos para lidar com projetos altamente impactantes", disse. O temor entre ambientalistas é de que a exploração de petróleo nessa região possa afetar ecossistemas ainda pouco conhecidos. Um dos pontos levantados é a falta de conhecimento sobre a dinâmica das marés na área e a influência da vazante do rio Amazonas. Atualmente, a Petrobras aguarda uma licença do Ibama para que a empresa possa perfurar um poço na costa do Amapá, a aproximadamente 2,8 mil metros de profundidade. Caso a licença seja dada, a empresa deverá perfurar o poço que pode indicar se a exploração de petróleo na região é economicamente viável ou não. Para Márcio Astrini, do Observatório do Clima, além dos riscos aos ecossistemas locais, a aposta na exploração de petróleo é uma contradição no discurso de Lula, que prometeu conduzir o Brasil para uma transição energética e uma economia de baixo carbono. Isso acontece porque implicaria em mais investimentos na extração de combustíveis fósseis que contribuem para o aquecimento global enquanto diversos países aumentam suas apostas em fontes de energia limpa. "Isso é grave tanto do ponto de vista dos riscos mais imediatos para os ecossistemas e para a população que vive ali, quanto pela possibilidade de extrairmos mais petróleo num momento em que a gente deveria repensar esse tipo de aposta", diz Astrini. À BBC News Brasil, Rodrigo Agostinho, do Ibama, afirmou que a equipe técnica do órgão está analisando o pedido de perfuração da Petrobras e que o órgão deverá dar uma resposta em até 30 dias. A EF-170, conhecida como Ferrogrão, é um projeto de ferrovia que liga o município de Sinop, em Mato Grosso, a Miritituba, no Pará. A ideia é escoar a produção de grãos do norte mato-grossense em direção ao Rio Tapajós, de onde seguiria em barcaças até Barcarena, no Pará, e de lá para o exterior, em navios. Ela ainda não foi construída e o processo de concessão para que as obras fossem iniciadas foi suspenso em 2021, por uma decisão liminar (temporária) do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes. A decisão teve como base um pedido do PSOL que contestou o fato de que, para que o traçado original fosse mantido, seria necessário alterar a área da Floresta Nacional do Jamanxim, no Pará, uma unidade de conservação federal já afetada pelo avanço do garimpo e desmatamento ilegais. A obra também enfrenta questionamentos feitos por povos indígenas, que acionaram o Tribunal de Contas da União (TCU) alegando que não foram consultados pelo governo sobre os impactos que algumas comunidades sofreriam com o projeto. O Brasil é signatário da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que determina a consulta prévia de populações originárias em caso de projetos que possam afetá-las. Uma das etnias que exige ser consultada é a Kayapó. Para a assistente-técnica do Instituto Socioambiental Mariel Nakane, os possíveis impactos da Ferrogrão precisam ser vistos dentro do contexto da região. Ela argumenta que a obra, ao facilitar o escoamento de grãos na região, diminuindo os custos de produção, pode aumentar a especulação fundiária e atrair ainda mais desmatamento em Mato Grosso e no Pará em áreas próximas a terras indígenas. "Não podemos ver a obra de forma isolada. Os estudos que existem apontam que ela pode ser um vetor de pressão para o desmatamento na região e isso afeta populações tradicionais que já estão sob enorme pressão", afirmou. Rodrigo Agostinho, do Ibama, afirmou que o órgão aguarda o julgamento, pelo STF, da ação movida pelo PSOL. O mérito da ação está previsto para ser avaliado pela Corte em maio deste ano. Para Márcio Astrini e Mariel Nakane, a priorização de projetos como a BR-319, exploração de petróleo na Margem Equatorial e a Ferrogrão são uma contradição do governo Lula. "É uma contradição porque acontece em um governo que diz ter uma agenda ambiental diferente, que se pretende ser liderança nesse assunto", segundo Astrini. Nakane diz: "Isso é uma contradição porque a gente percebe que a agenda de investimentos do governo está caminhando em paralelo com a agenda ambiental. Isso nos preocupa porque parece haver uma caixa-preta no processo de definição dessas obras prioritárias". Indagado sobre a BR-319, Rodrigo Agostinho, do Ibama, negou que haja "bateção de cabeça" entre diferentes órgãos do governo. "Não há bateção de cabeça. O que há é cada órgão fazendo a sua atribuição. A do DNIT é tocar as estradas. A nossa é cuidar do meio ambiente", afirmou. Sobre a exploração de petróleo na Margem Equatorial, Agostinho disse que o Ibama não é responsável pela política energética do país, mas que, como cidadão, ele preferia ver a Petrobras investindo em energias renováveis. "Como cidadão brasileiro, meu sonho é ver a Petrobras investindo numa transição energética justa e sustentável que coloque o Brasil na liderança mundial de energia limpa e renovável. Agora, como presidente do Ibama, vamos analisar os empreendimentos que tramitam com o rigor necessário porque é uma região bastante sensível", disse.
2023-03-27
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2lnvljy79lo
brasil
Sem Lula, acordos bilaterais são adiados e Joesley Batista é tietado na China
Com o cancelamento da viagem do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva à China, a assinatura de ao menos 20 acordos bilaterais já negociados entre os dois países ficará adiada por tempo indeterminado. “Contratempos acontecem, como aconteceu. De qualquer forma, quando o presidente estiver restabelecido, nós ficamos aguardando o governo chinês. Quando o governo chinês tiver preparado e estiver com a agenda disponível, certamente será remarcado e vamos assinar todos os acordos e memorandos”, afirmou o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, o único do primeiro escalão do Executivo brasileiro a ir ao país asiático. De acordo com Fávaro, entre os acordos acertados há avanços importantes em novos protocolos sanitários para o agronegócio, a cooperação para o lançamento do satélite de monitoramento territorial Cbers 6 e a criação de um mecanismo bilateral para avançar agendas de meio ambiente e desenvolvimento sustentável. O ministro da Agricultura se adiantou à comitiva presidencial porque pretendia negociar a queda do embargo chinês à carne bovina brasileira, ocorrida há quase um mês em decorrência de um caso da doença da vaca louca. O embargo caiu e outros quatro novos frigoríficos brasileiros receberam licença para exportar para a China. A visita de Lula ao presidente Xi Jinping havia sido anunciada há meses, deveria durar cinco dias e incluir um jantar com o líder chinês, uma visita à Assembleia Popular Nacional da China e um ato cerimonial na Praça da Paz Celestial. Lula seria o primeiro aliado estrangeiro convidado por Xi a visitar o país desde sua recondução a um terceiro mandato, uma deferência da diplomacia chinesa. Fim do Matérias recomendadas Porém, a viagem que ocorreria entre os dias 26 e 31 de março, acabou cancelada depois que o presidente Lula foi diagnosticado com uma broncopneumonia causada por bactérias e pelo vírus da gripe A. Diante do risco de transmissão para outras pessoas e de um agravamento de seu quadro clínico - dada a longa viagem de avião em cabine pressurizada - a equipe médica do Planalto recomendou o cancelamento do compromisso. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na manhã deste domingo em Pequim, o governo chinês se pronunciou sobre o cancelamento. “A parte chinesa manifesta compreensão e respeito, expressa cumprimentos ao presidente Lula e deseja sua rápida recuperação”, afirmou o porta-voz, sem, no entanto, fazer qualquer menção a uma nova data para o compromisso. O cancelamento é um desfecho frustrante para uma agenda diplomática cercada por expectativas altas tanto do Brasil quanto da China. Prova disso é que, horas antes do anúncio do cancelamento, o jornal oficial China’s Daily publicou um artigo do chanceler brasileiro Mauro Vieira em que ele prometia que o encontro levaria as duas nações a um novo patamar na sua chamada “parceria estratégica”. Questionado sobre os prejuízos da ausência de Lula, Fávaro tentou minimizar. "Todos os acordos que seriam assinados na terça-feira (quando Lula e Xi se encontrariam) serão (firmados) em poucos dias, logo na sequência. Não vejo grandes problemas. Claro que a gente ficaria muito feliz de, antes dos 100 dias (de governo), já estar com tudo isso anunciado, mas vai ser muito em breve. E não vai deixar de ter bons resultados agora”, disse Fávaro. Segundo ele, as centenas de empresários brasileiros que vieram à China agora serão novamente convidados quando o encontro entre Xi e Lula se concretizar. Parte do empresariado expressou frustração com a ausência de Lula - mas é muito provável que a maioria deles volte a atravessar o mundo nas próximas semanas, quando uma nova visita for agendada. Isso porque o capitalismo chinês é fortemente dependente do Estado e os negócios com executivos daquele país tendem a ser facilitados quando Pequim chancela politicamente a liderança estrangeira e sua entourage empresarial. Além disso, no caso do agronegócio, é o Ministério da Agricultura do Brasil quem envia à China uma lista dos frigoríficos cujos negócios cumprem os requisitos técnicos para acessar o mercado consumidor chinês. Segundo Fávaro, a lista é enviada por ordem cronológica de pedidos, mas o governo de Xi pode escolher a quem franquear acesso sem cumprir a ordem. Neste domingo, um café da manhã promovido por Fávaro contou com a presença desde produtores médios a gigantes do agronegócio nacional, como os irmãos Joesley e Wesley Batista, executivos do grupo J&F, controlador do frigorífico JBS e Marcos Molina, da BRF. Na ausência de Lula, os irmãos Batista, que, em 2017, delataram ter pago propina a centenas de políticos brasileiros, se tornaram alvo de tietagem dos pares de menor porte, sendo cercados para fotos no hotel. Sorridentes, atenderam com paciência aos pedidos, mas se recusaram a comentar com a imprensa qualquer detalhe sobre a visita. A China é atualmente o maior mercado consumidor da J&F. Em rara exposição pública, no fim da tarde, os irmãos Batista caminharam de seu hotel, na zona mais nobre da capital chinesa, até a Embaixada Brasileira em Pequim, para detalhar em reunião ao Embaixador Marcos Galvão seu plano de exportação para o país. Questionado sobre a reaproximação dos executivos da JBS ao governo após o escândalo de corrupção, o ministro afirmou que era preciso “olhar pra frente”. “É a maior empresa de carnes do mundo. É uma empresa brasileira, que gera muitos empregos. E eles (Wesley e Joesley) cumprindo a legislação brasileira, não tem por que eles não poderem fazer parte da comitiva e buscarem a ampliação de negócios", afirmou o ministro Fávaro, ressaltando que o grupo empresarial dos Batista gera centenas de milhares de empregos. Em termos geopolíticos, porém, a China de 2023 espera que o Brasil seja mais do que um exportador de commodities. E isso não deve mudar, a despeito do adiamento. “A China mudou, é hoje um ator global muito mais ativo e propositivo, e o presidente Lula sabe disso”, afirmou um assessor presidencial brasileiro. Em 2004, quando Lula foi à China pela primeira vez como presidente do Brasil, acompanhado por mais de 400 empresários e políticos, Pequim via no Brasil um parceiro capaz de ajudar a viabilizar seu plano de desenvolvimento. Naquele momento, o governo chinês pretendia mover 300 milhões de seus habitantes do campo para as cidades até 2020 e se via diante do risco de escassez de alimentos. “A gente pode prover a comida que a China não puder mais produzir por si mesma”, disse à época o então ministro da Agricultura de Lula, Roberto Rodrigues. Cinco anos mais tarde, a China passaria a ser o maior parceiro comercial do Brasil graças, em grande parte, à compra de cerca de 80% da produção de soja brasileira, cuja safra mais que dobrou desde então. Muito mais poderosa economicamente do que em 2023, a China agora se vê mais isolada globalmente do que há duas décadas. “A China precisa dos amigos, está isolada no relacionamento com os grandes. Daí o Brasil ser relevante”, afirmou à BBC News Brasil o ex-embaixador do Brasil na China Marcos Caramuru. Preocupa aos chineses não só o fortalecimento da posição americana na Europa, com a coesão e a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) ocorrida desde a invasão da Ucrânia pela Rússia, como a expansão de sua influência na Ásia. Em janeiro, americanos e japoneses expandiram sua cooperação militar para a área espacial. Em fevereiro, o presidente americano Joe Biden anunciou um cronograma acelerado para a Austrália receber seus próprios submarinos movidos a energia nuclear no início da próxima década - apenas a segunda vez na história em que os americanos transferem sua tecnologia atômica. E ainda no mês passado, as Filipinas liberaram os EUA a utilizar quatro de suas bases militares. Todos movimentos para conter possíveis ações militares da China em relação à Taiwan, cuja autonomia os EUA reconhecem. A China tem reagido a isso tentando exercer com mais assertividade o que tem sido chamado de “diplomacia transacional”: o gigante se move com vistas a interesses pragmáticos, decidindo sua posição caso a caso, sem professar uma cartilha de princípios ou valores. Na recém lançada Global Civilization Initiative, a China afirma que os países “devem se abster de impor seus próprios valores ou modelos aos demais e de alimentar confrontos ideológicos”. Trata-se de uma crítica direta ao tipo de liderança global exercida pelos Estados Unidos, o principal antagonista da China no cenário global. Nas últimas semanas, a China deu mostras de que pretende assumir um novo protagonismo no mundo. O caso mais emblemático foi a mediação de Pequim para o restabelecimento de relações diplomáticas entre Irã e Arábia Saudita, rompidas desde a revolução islâmica do primeiro, em 1979. Os EUA monitoravam com tensão a escalada de hostilidades entre os dois inimigos no Oriente Médio e já havia alertado para o risco de uma corrida armamentista nuclear. Ao levar sauditas e persas de volta à mesa, os chineses desarmaram a bomba - e podem argumentar que sua atuação diplomática tornou o mundo um lugar mais pacífico. É também em torno da paz que gira o segundo exemplo de ação diplomática chinesa. Em sua primeira viagem internacional após a recondução ao terceiro mandato, Xi Jinping foi à Rússia com a alegada intenção de mediar a paz entre Putin e a Ucrânia. As iniciativas chinesas são consideradas cínicas pelos EUA, mas se encaixam na multipolaridade e na cooperação sul-sul que o Brasil e, especialmente, o governo Lula defendem. “Um Brasil mais independente e altivo, autor de suas decisões, é algo importante para a China”, afirma um embaixador brasileiro.
2023-03-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0wqdv7x7v4o
brasil
Série Vaga-Lume: os 50 anos da coleção que estimulou prazer da leitura em milhões de jovens
São Paulo, novembro de 1976. Marcos Rey (1925-1999) estava em um supermercado, acompanhado da mulher, Palma, quando, na hora de pagar as compras, flagrou trechos de uma conversa no caixa ao lado. “O que você está achando dessa novela que acabou de estrear?”, perguntou uma moça, referindo-se à história do trambiqueiro que se passava por milionário para dar um golpe. O autor de Tchan, a Grande Sacada, embora estivesse de costas, conseguiu ouvir a resposta da balconista: “É boa. Mas é muito lenta!”. Ao chegar em casa, o autor da tal novela “boa, mas muito lenta” começou a mexer nos capítulos já escritos. Cortou uma cena aqui, mudou um diálogo ali. Quinze dias depois, o telefone de sua casa tocou. Era Roberto Talma (1949-2015), diretor de teledramaturgia da Tupi. “Pô, Marcos, o que é que houve? Que melhorada você deu na novela!”, elogiou. “A crítica daquela balconista salvou meu emprego!”, brincou o autor em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo de 4 de setembro de 1983. Fim do Matérias recomendadas Nascido Edmundo Donato, Marcos Rey ficou famoso como escritor de livros adultos, como O Enterro da Cafetina (1967) e Memórias de Um Gigolô (1968), e roteirista de novelas e seriados de TV, como A Moreninha (1975) e O Sítio do Picapau Amarelo (1977). Mas, no começo dos anos 1980, recebeu um convite que mudaria sua carreira: escrever romances infantojuvenis para a Vaga-Lume. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast “Houve muita resistência por parte dele”, conta a editora Carmen Lúcia Campos, que trabalhou por mais de 20 anos na Ática, entre a década de 1980 e o início dos anos 2000. “Nunca tinha escrito para o público juvenil e seus temas adultos eram proibidos para menores”. Seu primeiro livro na coleção foi O Mistério do Cinco Estrelas (1981). Em apenas 15 dias, esgotou a tiragem de 200 mil exemplares. Logo, vieram outros: O Rapto do Garoto Dourado (1982), Um Cadáver Ouve Rádio (1983), Sozinha no Mundo (1984)... Não por acaso, é o recordista em títulos da Vaga-Lume: 16, sendo um deles, O Menino que Adivinhava (2000), pela Vaga-Lume Júnior, selo derivado surgido em 1999. Só O Mistério do Cinco Estrelas, segundo estimativa do editor Jiro Takahashi, teria vendido entre dois e três milhões de exemplares. “O autor precisava cativar seu público até a página sete”, explica ele, um dos idealizadores do projeto. “Se a história demorasse a decolar, as chances de o leitor se cansar dela eram grandes”. Marcos Rey foi o primeiro autor especialmente convidado para escrever para a coleção. Até então, a Vaga-Lume só publicava títulos que já tinham sido lançados por outras editoras. É o caso de O Escaravelho do Diabo, de Lúcia Machado de Almeida (1910-2005). Um dos best-sellers da coleção, foi publicado originalmente pela revista O Cruzeiro, entre 10 de outubro e 26 de dezembro de 1953, e adaptado para o cinema em 2016. “A Vaga-Lume seguia uma fórmula imbatível de sucesso: livros escritos para o leitor jovem, com personagens jovens, se deparando com questões típicas da juventude. Textos leves, com muita aventura, mistério e humor”, sintetiza Carmen Campos. “A coleção fez gerações de jovens descobrirem o prazer da leitura.” O título que inaugurou a Vaga-Lume, há 50 anos, foi A Ilha Perdida (1973), de Maria José Dupré (1898-1984). Publicada pela Brasiliense em 1944, é a recordista da coleção: 5 milhões de exemplares. Na pesquisa que fez para seu doutorado, À Sombra da Vaga-Lume (2007), com mais de 200 alunos do Curso de Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Cátia Toledo Mendonça constatou que A Ilha Perdida é o título mais amado — ou lembrado — da coleção. “Os textos da Vaga-Lume encantam gerações há 50 anos. Mesmo assim, não eram estudados pela academia. Há preconceito em relação à literatura de entretenimento”, admite a doutora em Letras. “Vários entrevistados declararam ter começado a gostar de ler por causa da Vaga-Lume”. No mesmo ano de A Ilha Perdida, a Ática lançou mais três volumes: Cabra das Rocas, de Homero Homem (1921-1991); Coração de Onça, de Ofélia (1902-1986) e Narbal Fontes (1899-1960); e Éramos Seis, também de Maria José Dupré. Alguns livros, como Éramos Seis, e O Feijão e O Sonho (1981), de Orígenes Lessa (1903-1986), fizeram tanto sucesso que ganharam adaptações para a TV. Só Éramos Seis já foi adaptada cinco vezes: em 1958, pela Record; em 1967 e 1977, pela Tupi; em 1994, pelo SBT; e em 2019, pela TV Globo. Cada volume tinha em torno de 120 páginas e trazia um suplemento de trabalho com proposta lúdica. Em geral, a Ática lançava quatro títulos por ano. Mas houve época em que, dependendo da demanda, foram lançados só dois ou até cinco. O nome do mascote da coleção, Luminoso, foi escolhido através de concurso. O vencedor foi um funcionário da editora que trabalhava no Rio de Janeiro. Editor da Vaga-Lume entre 1973 e 1984, Takahashi pedia aos autores uma sinopse de três páginas sobre a história que gostariam de contar. Em seguida, enviava aquele resumo, sem mencionar o nome do autor, para 3.000 alunos das redes pública e particular do Rio, São Paulo e Minas. Sob a orientação de professores, os estudantes avaliavam desde a trama até os personagens. Em alguns casos, davam notas. Em outros, sugeriam ajustes. Foi assim, conta Takahashi, que Marcos Rey incluiu um personagem cadeirante em O Mistério do Cinco Estrelas e mudou o gênero da protagonista de Sozinha no Mundo. “Se os alunos liam rápido demais a sinopse, era sinal de que o livro era bom. Se demoravam, hummm… algo estava errado”, raciocina Takahashi. “Um livro é bom quando termina a aula, começa o recreio e os alunos não param de falar dele.” Ao todo, a Vaga-Lume é composta de 106 livros. O mais recente é Os Marcianos (2021), de Luiz Antônio Aguiar. “Como a coleção é voltada para o público jovem, as histórias têm que ter muita aventura”, ensina Aguiar, que já tinha escrito Operação Nova York (2000) para a série. “Mas tem que ser aventura mesmo, com boas histórias, daquelas que seduzem o leitor, e bons personagens”. No auge da coleção, ou seja, no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, cada título vendia, em média, 120 mil exemplares. Na pior das hipóteses, emplacava 40 mil. “Os livros vendiam muito porque o preço era baixo. E os preços eram baixos porque os livros vendiam muito”, explica Takahashi. À época, cada livro da coleção não podia custar mais do que um exemplar de uma revista semanal, como Veja ou IstoÉ. Com o sucesso de vendas, a Ática lançou, em 1976, outra coleção infantojuvenil: a Para Gostar de Ler, que reunia cronistas como Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Rubem Braga (1913-1990), Paulo Mendes Campos (1922-1991) e Fernando Sabino (1923-2004). E, em 1999, o selo Vaga-Lume Júnior, com 25 títulos. Aos poucos, novos autores foram convidados a integrar a coleção. Mineiro de Guaxupé, Luiz Puntel foi um deles. Quando morava em Ribeirão Preto (SP), se comunicava, por carta, com Marcos Rey, na capital paulista. “Apesar da deformação nos dedos, era um furacão para escrever”, afirma Puntel, referindo-se à hanseníase que o colega contraíra aos 10 anos de idade. “Escrevia maravilhosamente bem. Morria de inveja dele”, ri. Para a Vaga-Lume, Puntel escreveu sete livros, de Deus me Livre! (1984) a O Grito do Hip-Hop (2005). Desses sete, considera dois imbatíveis: Açúcar Amargo (1986), sobre boias-frias, e Meninos Sem Pátria (1988), sobre exilados políticos. “Nunca sofri censura da Ática. Sofri do Santo Agostinho, no Rio”, lamenta Puntel. Em 2018, a direção suspendeu a leitura de Meninos Sem Pátria a pedido dos pais de alguns alunos do sexto ano. Ao colégio, alegaram que o livro “doutrina crianças com ideologia comunista”. A história foi livremente inspirada na vida do jornalista mineiro José Maria Rabelo (1928-2021). Depois da repercussão, a direção da escola evitou comentou o assunto. “Escrevia meus livros como se fossem roteiros de filmes de ação, com capítulos curtos e diálogos ágeis.” Logo, colégios do Brasil inteiro começaram a convidar os autores da Vaga-Lume para participar de debates com seus alunos. Um dos mais requisitados foi Raul Drewnick, autor de oito títulos: de Um Inimigo em Cada Esquina (1994) a A Noite dos Quatro Furacões (2005). Só Marcos Rey publicou mais livros pela Vaga-Lume do que ele. Os dois, aliás, trabalharam juntos na revista Veja. Foi Marcos Rey que, em 1992, indicou o nome de Drewnick aos editores Carmen Lúcia Campos e Fernando Paixão. “De dez em dez páginas, nos reuníamos e íamos tocando o projeto, discutindo forma e conteúdo”, recorda o autor. A princípio, Drewnick recusava todo e qualquer convite para visitar escolas. “Dizia não ter jeito com criança”, entrega Carmen Campos. Até que, um dia, se rendeu e não parou mais. Não bastasse ter inspiração para novos livros, ainda aprendia o linguajar dos jovens. Num dos colégios, ouviu de um aluno: “O senhor é celebridade?”. Rindo, respondeu que não, de forma alguma. Mas outro aluno rebateu: “É claro que é! Tem até jatinho”. “Um típico caso em que a imaginação do leitor é muito mais rica que a do mais criativo dos escritores”, ele cai na risada. Noutra ocasião, Marcos Rey conheceu um aluno do Colégio Magno que se apresentou como filho do editor da Global, Luiz Alves Júnior. Anos depois, os dois voltaram a se encontrar na sede da editora, em São Paulo. “Não gostava de apertar a mão das pessoas porque tinha os dedos comprometidos. Apesar disso, escrevia muito rápido. Geralmente, à noite e, quase sempre, acompanhado de um copo de uísque”, relata Richard Alves, diretor geral da Global, que relançou 14 dos 16 títulos publicados por Marcos Rey na Vaga-Lume. A Ática não recebia apenas convites para seus autores visitarem escolas. Recebia também cartas. Centenas delas. “Sempre fiz questão de responder uma por uma”, garante Sersi Bardari, autor de A Maldição do Faraó (1991), Ameaça nas Trilhas do Tarô (1992) e O Segredo dos Sinais Mágicos (1993). “Era um tempo sem internet, e-mail e redes sociais. Dava prazer receber e responder a essas cartas. Levá-las ao correio era um dos meus programas favoritos”. Muitos alunos cresceram e viraram escritores. E hoje se orgulham de fazer parte da coleção que despertou neles o prazer da leitura. É o caso do jornalista e escritor Marcelo Duarte, muito conehcido pela série Guia dos Curiosos. Autor de cinco títulos, de Jogo Sujo (1997) a Meu Outro Eu (2003), tinha 11 anos quando leu O Caso da Borboleta Atíria (1975), de Lúcia Machado de Almeida. Gostou tanto do livro — “O desfecho é maravilhoso!” — que emendou outros suspenses da autora. “Eram razoavelmente baratos e fáceis de ler”, elogia. “Li uns para a escola e outros por pura diversão”. Quando a Ática lançou O Mistério do Cinco Estrelas, Duarte ficou encantado. Decidiu que, quando crescesse, queria escrever igual ao Marcos Rey. “Tinha um sonho, quase uma obsessão, de, um dia, lançar algo pela coleção que tanta importância teve na minha vida”, explica. Mas, quando entregou a sinopse de Jogo Sujo, recebeu um tsunami de críticas de alunos e docentes. Alguns reclamaram de personagens mal construídos. Outros, de tramas mal amarradas. “Fiquei chateado. Achei que não fosse conseguir. Mas reescrevi a história e deu certo”, orgulha-se. Assim que Jogo Sujo saiu da gráfica, Carmen Lúcia mandou um exemplar para Marcos Rey. Em retribuição, o veterano enviou um exemplar autografado de Gincana da Morte (1997) e parabenizou o novato por ingressar no time da Vaga-Lume. “Muitos tentaram, mas poucos conseguiram”, dizia a dedicatória. “Nunca fiquei tão emocionado. Guardo esse livro até hoje como troféu”, emociona-se Duarte. Quem também fala com carinho da Vaga-Lume é Marçal Aquino, autor de quatro títulos, entre eles A Turma da Rua Quinze (1989) a O Primeiro Amor e Outros Perigos (1996). No finalzinho da década de 1980, ele trabalhava como redator do Jornal da Tarde de São Paulo quando seu chefe, o também escritor Fernando Portela, perguntou se ele não estaria interessado em escrever um livro infantojuvenil para a coleção. Na Ática, Aquino deu de cara com dois problemas: a sinopse (“Sempre gostei de escrever sem saber muito sobre o livro. É o prazer maior da coisa”) e o prazo (“Um colega estava enfrentando um ‘bloqueio criativo’ e eu teria três meses para entregar o livro”). Mesmo assim, topou o desafio e entregou o manuscrito no tempo estipulado. Dos quatro livros que escreveu, seu preferido é O Jogo do Camaleão (1992). Como a trama fazia menção ao tráfico e ao consumo de drogas, sofreu restrições. “Não vi problema em dar uma ‘amansada’ no texto porque não tirava em nada o impacto da narrativa”, avalia. “É a melhor trama que criei para a Vaga-Lume, com direito a um plot-twist radical que nenhum leitor consegue desvendar”, orgulha-se. O escritor, desenhista e roteirista Rubens Francisco Lucchetti, o R. F. Lucchetti, também precisou fazer ajustes no único texto que lançou pela Vaga-Lume: O Fantasma do Tio William (1994). Antes de ser lançado pela Ática, o livro foi publicado pela Cedibra, em 1974, e relançado pela Melhoramentos, em 1982. “Quando foi lançada, a história se passava na Inglaterra e se destinava ao público adulto. Depois, tive que adaptá-la para o Brasil. E, mais adiante, torná-la mais infantil”, relata o autor de 93 anos. “De todas, prefiro a versão adulta”. Uma curiosidade: Lucchetti criou a história, por volta de 1945, para distrair uma de suas irmãs, Célia, que estava doente, com câncer. A Vaga-Lume prosseguiu até 2008, quando foi lançado O Mestre dos Games, de Afonso Machado. Doze anos depois, a Somos Educação retomou a coleção, com o lançamento de Ponha-se no Seu Lugar (2020), de Ana Pacheco. “Quando enviei os originais para a editora, não imaginava que meu livro seria lançado pela Vaga-Lume. Soube depois que aceitaram e fiquei feliz da vida”, confessa a autora. Baseado no conto O Nariz (1836), de Nikolai Gogol (1809-1852), conta a história de um estudante de classe alta que, certa manhã, acorda sem nariz. “O mote é absurdo, mas as consequências são reais. Dá oportunidade para alunos e professores debaterem temas atuais, como padrão de beleza, classe social e cirurgia plástica.” A Somos Educação disponibiliza 68 títulos em seu catálogo, sendo 13 da Vaga-Lume Júnior. E não deve parar por aí. “Futuramente, pretendemos lançar novos títulos. Queremos manter a coleção viva e dar espaço a mais autores”, adianta Laura Vecchioli do Prado, coordenadora da Somos Educação. Jiro Takahashi não cabe em si de orgulho por ter ajudado a criar uma série editorial tão longeva e bem-sucedida. Mas lamenta o fato de não ter pensado lá atrás no licenciamento de produtos, como o boneco do Luminoso, o mascote da coleção, por exemplo. Ou, ainda, na adaptação de filmes, peças e jogos baseados nos livros da série. “Hoje em dia, você encontra de tudo: de álbum de figurinha do D.P.A. (Detetives do Prédio Azul) a parque temático do Harry Potter!”, espanta-se. “Muitos adultos vêm falar comigo. Uns dizem: ‘Ó, meu vaga-lume favorito é O Escaravelho do Diabo’. É uma coleção que ajudou a formar leitores.”
2023-03-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/clj7wykjykdo
brasil
Como onda de calor recorde na Argentina pode afetar bolso do brasileiro
A recente onda de calor no verão argentino, que levou o país a registrar as maiores temperaturas da história, não só atingiu de maneira significativa a economia local, mas também vem impactando o vizinho Brasil, seu principal parceiro comercial há 20 anos. A seca gerou perdas "dramáticas" na agricultura, enquanto incêndios danificaram a infraestrutura nacional, o que chegou a deixar metade da Argentina sem energia. "As perspectivas de produção agrícola para a safra 2022/23 são dramáticas, e as estimativas podem ser revisadas para baixo nas próximas semanas", diz Santiago Manoukian, chefe de pesquisa da consultoria Ecolatina, à BBC News Brasil. Segundo ele, os três principais cultivos da Argentina — soja, trigo e milho — acumulam perdas de 40% em relação à última safra, com um prejuízo de cerca de US$ 20 bilhões na mesma comparação. "A queda abrupta da safra de trigo, em cerca de 43%, está afetando seriamente os volumes de exportação desse cereal para o Brasil. Em janeiro, as exportações de trigo da Argentina para o País caíram 41% em relação ao mesmo período de 2022", afirma Manoukian. Fim do Matérias recomendadas O Brasil é o maior comprador de trigo argentino. Em seu índice mais recente para os preços globais dos alimentos, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação (FAO) destacou a "piora das condições na Argentina" como um dos elementos que impulsionaram os preços dos cereais em fevereiro. No entanto, o presidente-executivo da Associação Brasileira do Trigo (Abitrigo), Rubens Barbosa, pondera os impactos dos preços ao consumidor final, avaliando que não deve haver aumento significativo nos preços da farinha. Segundo ele, importadores brasileiros conseguiram se mobilizar para obter a matéria-prima por outras fontes, com destaque para a Rússia. "O maior risco do conflito (com a Ucrânia) no momento foi superado. Não há restrições à produção russa, que está alcançando níveis recordes", assinala. Para além da agricultura, a indústria argentina sofre impactos da recente crise. Além de maiores dificuldades na produção, o menor ingresso de divisas estrangeiras reduziu a capacidade de importação local. Manoukian estima uma redução significativa na atividade do setor e avalia "com preocupação" a relação com o Brasil, uma vez que os dois países possuem uma série de cadeias produtivas integradas. Cerca de 40% das exportações de manufaturas de origem industrial da Argentina na última década tiveram o Brasil como destino, segundo a Ecolatina. Grande parte integra a indústria automotiva brasileira. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Christopher Callaha, professor do Departamento de Geografia da Universidade de Dartmouth, na Inglaterra, aponta em um artigo que a América Latina é uma das regiões potencialmente mais afetadas economicamente por ondas de calor. Em entrevista à BBC News Brasil, ele avalia que os fenômenos devem ser mais frequentes e que estão ligados às mudanças climáticas provocadas pelos humanos. "O aumento das temperaturas globais tornou muito mais provável que os recordes de calor sejam quebrados e que as ondas de calor sejam mais severas do que costumavam ser. Acredito que a recente seca e os danos à infraestrutura sejam devidos, pelo menos em parte, às emissões humanas de gases de efeito estufa", afirma. "Locais de renda mais alta geralmente são mais adequados para resistir a eventos climáticos extremos. Rendas mais altas estão associadas a uma menor dependência dos setores agrícolas vulneráveis da economia. Como resultado, espero que os mercados emergentes serão menos resilientes a esses eventos extremos." Analisando as últimas décadas, o estudo de Callaha constatou que as perdas com as ondas de calor chegam a 6,7% do Produto Interno Bruto (PIB) per capita por ano para regiões no decil de renda inferior, mas apenas 1,5% para regiões no decil de renda superior. O PIB é um indicador que mede a soma de bens e serviços produzidos por um país. "Espero que eventos climáticos extremos terão grandes efeitos sobre os principais produtores de alimentos. Sabe-se que as ondas de calor e as secas prejudicam as colheitas, e as perdas causadas pelo clima podem aumentar os preços dos alimentos em todo o mundo", diz Callaha, que projeta efeitos econômicos negativos em outros países sul-americanos das ondas de calor atuais e futuras na Argentina. Outra pesquisa, da Atribuição do Clima Mundial (WWA, na sigla em inglês), publicada no ano passado, revelou que as mudanças climáticas aumentaram em 60 vezes a probabilidade de temperaturas extremas na região, em dezembro de 2022. Foram analisados os níveis de chuva nos últimos três meses de 2022 em uma área que inclui grandes partes da Argentina, todo o Uruguai e uma pequena região no sul do Brasil.
2023-03-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cedyvp74324o
brasil
Sem nova data: com pneumonia, Lula adia viagem à China
Diagnosticado com uma broncopneumonia, o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (PT) cancelou a viagem que faria à China neste domingo (26/3). A visita oficial a Pequim era planejada por Lula antes mesmo da posse e previa que o mandatário brasileiro fosse recebido em jantar por Xi Jinping no Palácio do Povo. Lula estaria acompanhado de uma comitiva de mais de 30 políticos e 200 empresários - incluindo os irmãos Joesley Batista e Wesley Batista, da JBS. Parte da comitiva j chegou à capital chinesa. Lula, no entanto, desenvolveu sintomas gripais nos últimos dias e precisou ir ao hospital na quinta (23/3), segundo o Palácio do Planalto. Os médicos diagnosticaram uma pneumonia causada por bactérias e pelo vírus da gripe A. Por conta do quadro, Lula chegou a adiar em um dia o embarque a Pequim, porém não foi o suficiente. “Após reavaliação no dia de hoje e, apesar da melhora clínica, o serviço médico da Presidência da República recomenda o adiamento da viagem para China até que se encerre o ciclo de transmissão viral”, diz a nota assinada pela médica Ana Helena Germoglio, do Hospital Sírio Libanês, divulgada neste sábado. De acordo com a presidência, as autoridades chinesas já foram informadas do cancelamento do compromisso e a remarcação da viagem será feita, mas ainda não há data prevista para o encontro entre os presidentes. Fim do Matérias recomendadas A viagem à China era uma das mais importantes na agenda de Lula, que se lançou em uma campanha de política internacional para restabelecer relações com parceiros estrangeiros brasileiros com quem o governo Bolsonaro teve atritos. Foi o caso da Argentina, visitada por Lula ainda em janeiro, e dos EUA, onde o presidente brasileiro esteve em fevereiro. Lula seria o primeiro líder estrangeiro a ser recebido por Xi desde que ele foi reconduzido pelo partido comunista a um terceiro mandato. A notícia frustrou a diplomacia dos dois países e o empresariado brasileiro, que contava com um evento com a presença de Lula para impulsionar os negócios com os chineses. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast “Se ele adiar, eu volto ao Brasil só pra buscá-lo e trazer aqui”, afirmou à BBC News Brasil um empresário do ramo de calçados quando a possibilidade de Lula desmarcar a viagem surgiu. Segundo este empresário, que também veio a Pequim junto com o então presidente Jair Bolsonaro, o comércio entre os dois países sofreu os impactos de insultos sinofóbicos disparados por bolsonaristas, como o então chanceler Ernesto Araújo e o filho do presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP). “O volume de negócios não diminuiu, mas não cresceu como poderia, e a vinda do Lula agora é crucial para esquentar a economia brasileira. Eu hoje opero só com 60% da capacidade instalada, temos que aproveitar esse mercado”. Embaixadores brasileiros qualificavam a visita como uma “refundação” das relações com a China. “Em 48 anos de laços diplomáticos, os chineses nunca tinham visto ruídos de política doméstica atrapalharem o relacionamento. E note que as relações foram estabelecidas na ditadura, por (Ernesto) Geisel, que não pode ser acusado de comunista. Então eles estão ressabiados e contando com gestos do Brasil”, descreveu um embaixador com conhecimento das negociações com os chineses antes do anúncio do cancelamento. Na mesa, havia ao menos 20 acordos a serem firmados pelos dois líderes. O Brasil também parecia inclinado a aderir à Iniciativa Cinturão e Rota, um plano de investimentos chinês em infraestrutura em dezenas de países ao redor do mundo que completa dez anos em 2023. Do ponto de vista econômico, mesmo sem aderir à iniciativa, o Brasil já é o país que mais recebe investimento chinês no mundo (foram quase US$6 bilhões em 2021). Logo, o ingresso no dispositivo seria um ato de deferência política aos chineses. E irritaria Washington, que vê no plano um modo de a China expandir sua influência política e econômica na América Latina. Em negociação, estavam ainda o lançamento do satélite Cbers 6, capaz de monitorar a Amazônia mesmo em dias chuvosos, quando demais satélites têm dificuldade de captar imagens. O acordo incluiria não só investimento chinês como transferência de tecnologia ao Brasil. Outro projeto avaliado pelos chineses seria a compra da planta da automotiva Ford, em Camaçari (BA), pela gigante chinesa de carros elétricos BYD. Chineses e brasileiros iriam ainda lançar um mecanismo de cooperação ambiental inédito entre os dois aliados, aos moldes do que o Brasil já tem com europeus e americanos. O Ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, veio à China antes da comitiva presidencial, no início da semana, e negociou o fim do embargo sobre a carne bovina, imposto há quase um mês por conta de um caso de vaca louca no rebanho brasileiro. Outros quatro frigoríficos nacionais foram credenciados a exportar para a China. Há ainda negociações em curso quanto à exportação de carne bovina. “A diplomacia amistosa faz muita diferença para os negócios. Em 2021, quando tivemos um caso de vaca louca, levou 4 meses até que os chineses liberassem a carne do Brasil. Agora resolvemos em 29 dias”, comemorou Fávaro. O governo chinês disse que o Brasil comunicou a decisão de adiamento da viagem de Lula devido a sua condição de saúde e manifestou “compreensão e respeito” e “desejo de rápida recuperação” a Lula. “A parte chinesa continuará a manter contato com o lado brasileiro sobre questões relacionadas à visita”, informou. Leia a íntegra da nota divulgada pela Secretaria de imprensa da Presidência da República: Em função de orientação médica o presidente Luiz Inácio Lula da Silva resolveu adiar sua viagem à China. O adiamento já foi comunicado para as autoridades chinesas com a reiteração do desejo de marcar a visita em nova data. Nota médica abaixo: O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva deu entrada no Hospital Sirio-Libanês - unidade Brasília, em 23/3/2023 com sintomas gripais. Após avaliação clínica, foi feito diagnóstico de broncopneumonia bacteriana e viral por influenza A, sendo iniciado tratamento. Após reavaliação no dia de hoje e, apesar da melhora clínica, o serviço médico da Presidência da República recomenda o adiamento da viagem para China até que se encerre o ciclo de transmissão viral. Dra. Ana Helena Germoglio
2023-03-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cevndw09011o
brasil
De Dom Pedro I a Neil Armstrong: frases famosas que nunca foram ditas
Certa vez, por deveres do ofício, este repórter acompanhava uma sessão na vetusta Academia Paulista de Letras, no Largo do Arouche, centro de São Paulo. Era princípio de março e o encontro dos acadêmicos, por ocasião do Dia Internacional da Mulher, trazia histórias protagonizadas por escritoras. A um dado momento, Lygia Fagundes Telles (1918-2022) pediu a palavra e proclamou um inflamado discurso. Sua revolta era contra “a internet”. Não por nenhuma idiossincrasia, mas pelo fato de que ali, ela constatava, havia muita gente atribuindo a autoria de “frases bonitinhas” à sua grande amiga, Clarice Lispector (1920-1977). “E Clarice não era de escrever frases ‘bonitinhas’”, disse Telles, enaltecendo o gigantismo e a profundidade literária da colega que “assina” milhares de posts de qualidade questionável nas redes sociais. Se Facebook e afins contribuíram para a propagação de citações falsamente atribuídas a personalidades, não é de hoje que esse tipo de falseio existe — pode ser encontrado até em velhos livros de história. Fim do Matérias recomendadas A seguir, a BBC News Brasil contextualiza oito frases que se tornaram muito famosas — mas que não podem ser entendidas como verdade. “Se eu não fora imperador, quisera ser mestre-escola. Nada conheço tão nobre como dirigir jovens inteligências, preparar os homens do futuro” Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mestre-escola é como eram chamados os professores do antigo curso primário, ou seja, os encarregados da alfabetização e da formação inicial dos alunos. E a frase é atribuída a Dom Pedro II (1825-1891), o segundo e último imperador do Brasil. E geralmente aparece no sentido de reconhecer as virtudes humanas do monarca. Até aí tudo bem. O problema é que, ao contrário do que se afirma, esta frase não aparece em nenhuma das linhas dos diários do imperador. “Todo mundo diz que ele escreveu isso no diário, mas não existe em nenhuma parte”, afirma à BBC News Brasil o pesquisador e escritor Paulo Rezzutti, biógrafo de diversos personagens da monarquia brasileira, inclusive dos dois imperadores. De acordo com Rezzutti, a menção mais parecida com esta é quando ele diz que era um homem “nascido para se consagrar às letras e às ciências, mais do que a ocupar posição política”. “E se ele tivesse de optar por alguma coisa, preferiria ser presidente da República ou ministro a ser imperador, porque, no entendimento dele, isso lhe daria mais tempo para estudar e dedicar-se ao que realmente gostava”, explica. “Isso de ser mestre-escola, dizem que ele teria falado na França e que o Barão do Rio Branco [o diplomata José Maria da Silva Paranhos Júnior (1845-1912)] anotou”, acrescenta o pesquisador. “Mas Dom Pedro mesmo nunca deixou isso registrado em lugar nenhum.” “Eu não concordo com o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo” Pois é, a frase acima pode representar muito bem a visão do filósofo iluminista francês Voltaire (1694-1778). Pena que nunca foi dita por ele. Conforme afirmam os historiadores Paul F. Boller Jr. e John H. George no livro They Never Said It: A Book of Fake Quotes, Misquotes and Misleading Attributions, essa que virou a máxima do direito da livre expressão teria sido uma invenção da escritora inglesa Evelyn Beatrice Hall (1868-1956), em seu livro Os Amigos de Voltaire, de 1906, uma biografia do filósofo. Em 1935, a própria Hall foi questionada a respeito. “Eu nunca tive a intenção de afirmar que Voltaire teria usado exatamente essas palavras e ficaria muito surpresa se essa frase fosse encontrada em algum de seus trabalhos”, respondeu a biógrafa. “Se é para o bem de todos e felicidade geral da nação, estou pronto. Digam ao povo que fico!” Atire o primeiro livro de história do Brasil quem nunca leu esta frase. Pois segundo historiadores contemporâneos, esta declaração atribuída a Dom Pedro I (1798-1834) em 9 de janeiro de 1822, quando ele declarou que não retornaria a Portugal, dando um passo importante no processo de emancipação política do Brasil, foi uma criação posterior, numa ideia de consolidação da historiografia nacional. Passou para os livros de História como o emblema do "Dia do Fico". “O que foi registrado em ata é um texto muito maior que, a grosso modo, poderia ser resumido a isso. Mas ele mesmo nunca teria pronunciado essa frase em nenhum momento”, diz Rezzutti, à reportagem. Conforme ata da Câmara do Rio, onde ocorreu o ato, o que o então príncipe do Brasil teria declarado foi: “Convencido de que a presença de minha pessoa no Brasil interessa ao bem de toda a nação portuguesa, e conhecido de que a vontade de algumas províncias assim o requer, demorarei a minha saída até que as Cortes e meu Augusto Pai e Senhor deliberem a este respeito, com perfeito conhecimento das circunstâncias.” “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” Está na Bíblia em três dos quatro evangelhos: Marcos, considerado o mais antigo deles, Mateus e Lucas. A frase teria sido a resposta de Jesus quando lhe questionaram se era lícito pagar os impostos aos dominadores romanos. E até hoje é interpretada pelos cristãos como uma justificativa sobre a necessidade de respeitar as regras e as autoridades terrenas. Entretanto, para o historiador André Leonardo Chevitarese, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor do livro Jesus de Nazaré: o que a história tem a dizer sobre ele, provavelmente não foi exatamente essa expressão a utilizada por Jesus. Isto porque há citações semelhantes em evangelhos apócrifos, como o de Tomé e o de Egerton, e uma análise mais minuciosa faz com que os pesquisadores entendam que se tratou de uma criação posterior. “Em Egerton, esse dito circulou de maneira independente, com um outro contexto, o que pode sugerir que a história contida em Marcos possa não ser original, mas, sim, criação do próprio evangelista”, explica Chevitarese, à reportagem da BBC News Brasil. De qualquer forma, mesmo aparecendo em narrativas distintas, a mensagem em si seria verdadeira. “O núcleo central da história parece ser no seu todo autêntico, isto é, a orientação sobre pagar ou não impostos às autoridades”, diz o historiador. “O que implica dizer que Jesus esteve às voltas com essa questão, ou com essa armadilha”, acrescenta. “Um pequeno passo para o homem, um grande salto para a humanidade” Aqui a culpa é atribuída à tecnologia. E o próprio astronauta Neil Armstrong (1930-2012) chegou a dar explicações em entrevistas, mas o erro já estava espalhado de tal forma que não teve jeito: ficou assim para a história a primeira declaração de um ser humano ao pisar na lua. O que acontece é que o sentido da frase, tal e qual acabou entrando para a história, compromete a ideia de contraste planejada por seu autor, Armstrong. Ele contrastava a humanidade coletiva com a façanha de um único indivíduo. Ele afirma que teria dito “Um pequeno passo para um homem” (ressaltando o sentido individual solitário), e não para “o homem” — que, nesta acepção, parece ter o mesmo sentido de humanidade. Segundo o astronauta diria depois, o mal-entendido foi devido à estática da transmissão. “Se não têm pão, que comam brioches” Segundo a versão amplamente conhecida, a rainha Maria Antonieta (1755-1793), quando informada que o povo francês passava fome e não tinha nem sequer pão, teria dito esta frase insensível. Pois tudo indica que seja uma invenção, criada para reforçar a fama negativa da monarca frente à população daquela época. O historiador Jacques Barzun (1907-2012) certa vez afirmou que essa história — ou variações dela — circulavam pela Europa como uma velha anedota muito anterior ao próprio nascimento de Maria Antonieta. Tudo indica que a frase tenha se eternizado graças ao livro As Confissões, do filósofo francês Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). No sexto volume da obra autobiográfica, Rousseau relata, em determinado momento, que queria pão para acompanhar um pouco de vinho. “Finalmente, me recordei da história de uma grande princesa a quem foi dito que os camponeses não tinham pão, e que ela respondeu: ‘que comam brioche’.” Ele não menciona o nome da tal nobre. Mas nem poderia ser Antonieta, já que embora As Confissões só tenham sido publicadas em 1782 (depois da morte do autor), os textos foram escritos nos anos 1760, quando a futura rainha da França ainda era uma criança. “Se eu vi mais longe, foi por estar sobre ombros de gigantes” Isaac Newton (1641-1727), certo? Até é verdade que o grande físico inglês, que entrou para a história como aquele que descobriu a gravidade, escreveu essa sentença modesta. Mas não foi uma ideia original sua. Conforme apontam os historiadores Boller e George, Newton usou a frase em uma carta a seu colega cientista Robert Hook (1635-1703). Acontece que a mesma ideia aparecia no livro A Anatomia da Melancolia, publicado antes do nascimento de Newton pelo cientista inglês Robert Burton (1577-1640). E o pai da teoria da gravidade conhecia o trabalho de Burton. “Pigmeus apoiados sobre ombros de gigantes veem mais do que os próprios gigantes”, era a frase original. Que nem era tão original. Segundo os autores de They Never Said, há construções semelhantes tanto em obras do século 12 quanto em textos do século 6. Ou seja: como a própria frase diz, foram levas de autores se apoiando em levas de gigantes anteriores… “O Estado sou eu” A história é que o então jovem Luís 14 (1638-1715), do alto do seu absolutismo, teria proferido esta frase. Segundo o livro They Never Said, a narrativa é de que isso teria ocorrido quando ele entrou no Parlamento de Paris, interrompendo um debate que lá ocorria. Contudo, embora a declaração ajude os estudantes de Ensino Médio a memorizarem os preceitos do absolutismo francês, não há nada que indique que ela tenha ocorrido de fato. “Não há evidência que ele tenha alguma vez feito isso, mas ele certamente acreditava nas palavras que lhe foram atribuídas”, pontuam os historiadores Boller e George.
2023-03-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv29lmeedgmo
brasil
Por que cada vez mais russas viajam ao Brasil para dar à luz
Anastasia Knyazeva, de 32 anos, teve seu primeiro filho em um hospital na Rússia. Segundo ela, a experiência não foi ruim, mas poderia ter sido melhor se seu médico a tivesse tratado com mais atenção e paciência. Quando ficou grávida pela segunda vez, a russa que vive em Sochi decidiu procurar outras opções que a ajudassem a realizar seu desejo de um parto mais humanizado. Após a indicação de uma amiga, escolheu viajar para o sul do Brasil para passar os últimos meses antes de dar à luz e ter seu bebê ao lado da família. “Tive meu primeiro filho na Rússia e não posso dizer que foi um parto ruim. Acho que não escolhi bem meu médico e não consegui relaxar. Foi tudo feito a toque de caixa e sem uma atitude mais carinhosa”, conta ela, que se mudou com o marido e o primeiro filho para Florianópolis em novembro de 2021 e deu à luz outro menino em janeiro. “Mas no Brasil tive uma experiência maravilhosa. Fiz o parto em casa, com uma obstetriz atenciosa que me ajudou e me fez sentir segura.” “Foi tudo tão bom que agora recomendo para todas as minhas amigas que vão ser mães. Mas até agora nenhuma delas seguiu meus passos, elas acham que fiquei maluca”, comenta, rindo. Fim do Matérias recomendadas A surpresa diante da escolha de dar à luz em um país estrangeiro relatada por Anastasia não é algo incomum quando o assunto é o chamado ‘turismo de parto’. A prática, porém, cresce no Brasil, segundo relatos, e vem atraindo especialmente o interesse de famílias russas. Os motivos relatados para a busca pelo Brasil envolvem o desejo de um atendimento mais exclusivo e amistoso, um crescente interesse pelos partos humanizados e realizados em casa, além da possibilidade de dar aos filhos a nacionalidade brasileira. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast “Descobri essa possibilidade quando uma amiga próxima me contou que daria à luz ao segundo filho no Brasil. Inicialmente fiquei chocada – tudo que eu conhecia sobre o país era Carnaval e Pelé”, conta Anastasia. “Mas depois entendi que era uma ideia perfeita para nossa família.” Russos não precisam de visto para entrar no Brasil para estadias de até 90 dias, segundo o Ministério das Relações Exteriores. Não há dados oficiais sobre a entrada de mulheres grávidas no Brasil. Os serviços de saúde também não registram a nacionalidade da mãe no momento do nascimento do bebê, apenas se ela é estrangeira ou não. Mas segundo a pesquisadora Svetlana Ruseishvili, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e que acompanha o tema há anos, o fluxo de russas que viajam ao Brasil para dar à luz não para de crescer desde 2015. “As cidades que mais têm atraído famílias russas são Rio de Janeiro, Florianópolis e Santos”, diz a socióloga russa que mora no Brasil há mais de uma década. A enfermeira obstetra Marli Nascimento atende famílias em Florianópolis e, só no mês de março, recebeu sete novas clientes da Rússia. “Cada vez mais russas me procuram. Só no ano passado acho que atendi mais de 50 mulheres que vieram dar à luz no Brasil”, diz a enfermeira, que também oferece serviços de atendimento pré-natal e consultoria de amamentação. “Se eu somar as clientes que me procuraram após o parto, para ajudá-las com a amamentação, foram mais de 80.” Segundo dados do Ministério da Saúde e da revista científica The Lancet, o Brasil é vice-campeão em cesarianas no mundo, atrás apenas da República Dominicana e com um índice bem acima do indicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) - esse procedimento representa 57,7% dos partos realizados no país, contra a recomendação de 15% da organização. Mas então porque o Brasil é destino preferencial de tantas famílias russas? Para Svetlana Ruseishvili, é uma alternativa melhor do que a Rússia para muitas mulheres. “As mulheres que vêm ao Brasil querem principalmente que sua voz seja ouvida no momento de dar à luz. Todas relatam que na Rússia isso é impensável”, diz. A pesquisadora explica que muitas mães sentem falta de um atendimento mais exclusivo e amistoso no país do leste europeu, em especial nos hospitais públicos. E os serviços particulares podem ser caríssimos. Além disso, há um crescente interesse pelos partos humanizados e realizados em casa, mas o parto domiciliar é proibido por lei na Rússia e obstetrizes pegas realizando o procedimento fora do hospital podem enfrentar processos criminais. Segundo Ruseishvili, as famílias russas que buscam o Brasil são de classe média ou alta e trabalham em áreas que permitem o trabalho à distância. Justamente por isso, têm condições financeiras para buscar serviços mais especializados e humanizados – algo que não está disponível para a maioria das brasileiras. “Mas há também aquelas que vão aos serviços públicos brasileiros – e muitas dizem ser melhor do que na Rússia”, diz. As mulheres que viajam ao Brasil afirmam ainda buscar uma alimentação mais saudável, um clima amigável e o contato com a natureza. “Além de fazer o parto em casa - que é proibido na Rússia - queria fugir do inverno, ver o oceano, comer frutas frescas e conhecer um novo país e uma nova cultura”, diz Anastasia. “Eu sei que no Brasil muitas mulheres escolhem a cesariana. Mas o Brasil também tem uma tradição profunda de ajuda às mulheres. Uma das parteiras mais famosas em todo o mundo por defender o parto natural vive no seu país. É incrível e fiquei feliz em fazer parte disso”, diz, se referindo à parteira mexicana Naoli Vinaver, que popularizou várias técnicas de parto natural e hoje mora e trabalha em Florianópolis.  Mais um ponto-chave para muitas das famílias - inclusive para a da russa de Sochi - é a possibilidade de dar aos filhos a nacionalidade brasileira. “Dar mais oportunidades ao nosso bebê nos pareceu uma boa ideia, especialmente agora com a guerra na Ucrânia.” Desde a invasão em 2022, a União Europeia (UE) passou a dificultar a emissão de vistos para turistas russos. Antes disso, os EUA já haviam encerrado seus serviços consulares em todo o país. Por outro lado, o passaporte brasileiro permite o acesso sem visto a mais de 150 países. E o Brasil, diferente da grande maioria dos países da Europa, África e Ásia, concede de forma irrestrita o direito à cidadania apenas pelo nascimento – o chamado "jus soli". “Trata-se de um fenômeno americano, justamente porque é nas Américas que fica a grande parte dos países em que a cidadania é atribuída pelo local de nascimento”, explica Ruseishvili. Mas Brasil, Argentina, México e Chile aparecem entre os destinos mais buscados, principalmente por conta dos valores e qualidade dos serviços de maternidade. “Houve um aumento dessa migração desde que a guerra começou, especialmente depois de 21 de setembro, quando houve a mobilização parcial”, diz a pesquisadora da UFSCar. “Mesmo antes da guerra, muitas famílias buscavam uma alternativa para os seus filhos, porque existe essa percepção de que a Rússia não tem futuro, vai viver fechada e sem oportunidades, inclusive econômicas.” Ainda segundo Ruseishvili, muitas chegam ao Brasil com a intenção de ficar definitivamente ou usar o país como destino intermediário antes de migrar para outro local. E a facilidade de regularização dos pais de crianças nascidas no Brasil é parte importante do processo. A lei brasileira concede a pais de bebês nascidos no país autorização de residência imediata. É possível ainda pedir a naturalização após um ano vivendo no Brasil, desde que se prove um nível básico de proficiência no português. Anastasia e o marido obtiveram autorização de residência após o nascimento de seu bebê, mas decidiram retornar à Rússia em maio de 2022. “Sabemos que podemos voltar ao Brasil para tentar o processo de naturalização, mas ainda não decidimos se esse é o caminho que queremos seguir”, diz. “A vida de imigrante não é fácil e eu amo meu país.” A procura das famílias russas pelo Brasil cresceu tanto que foram criadas agências específicas para atendê-las. Entre os serviços oferecidos estão tradução, auxílio para encontrar moradia, indicação da equipe médica, aluguel de berço, assistência para obtenção de documentos e até motorista particular, sessão de fotos e outros ‘extras’. O preço varia de acordo com a assistência escolhida, mas a média é de mais de US$ 5.000 (R$ 23 mil). As famílias também costumam trocar experiências e indicar serviços por meio de comunidades nas redes sociais. “Tive uma tradutora para me ajudar, embora minha parteira falasse inglês. Foi útil, porque me senti mais confortável usando minha língua nativa durante o trabalho de parto”, contou Anastasia à BBC Brasil. A russa também aprendeu um pouco de português e conheceu mais sobre a cultura local durante sua passagem pelo país. "O Brasil se tornou parte da nossa vida. Eu até comecei a fazer aulas de samba depois que voltei. Eu adoro!”. A pesquisadora Svetlana Ruseishvili afirma que, feita da maneira correta, a prática não é considerada ilegal. Na Argentina, o movimento gerou muitas críticas após o anúncio pelas autoridades locais de uma investigação sobre um "negócio milionário e rede ilícita" que supostamente fornecia a mulheres russas grávidas e seus parceiros documentos falsos emitidos em tempo recorde para permitir que elas viessem morar na Argentina. Mulheres também foram detidas ao chegarem no país por "problemas com a documentação", segundo a agência de migração argentina. “Mas não existe ilegalidade nenhuma nessa prática no Brasil”, opina Ruseishvili. “E é preciso tomar cuidado para que essas mulheres não se tornem vítimas de um discurso xenofóbico.” Para ela, o termo ‘turismo de parto’, usado para descrever o movimento de mulheres grávidas que dão à luz fora de seu país, também não é o melhor. “Creio que o melhor termo para descrever seja ‘mobilidade de parto’, pois não é um fenômeno simplesmente turístico. Turismo significa um deslocamento de curta duração, mas essas mulheres não necessariamente estão voltando para seus países”, diz. “Aqui estamos falando de uma forma de imigração extremamente contemporânea.”
2023-03-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjrydy5nk9lo
brasil
Após anistia a réu confesso, mãe de brasileira morta na Nicarágua pede ajuda de Lula por justiça
Já se passaram quase cinco anos mas, para a enfermeira aposentada Maria José Costa, todos os dias parecem os mesmos desde que sua filha foi morta, em 24 de julho de 2018, após ser alvejada, na Nicarágua. Raynéia Gabrielle da Costa, médica residente na capital Manágua, perdeu a vida em meio ao turbulento contexto político do país que dura até hoje — embora não haja qualquer evidência de que ela tenha tomado parte no conflito. A jovem dirigia na noite de 23 de julho daquele ano quando passou por um grupo de homens armados. Segundo as informações registradas em um processo judicial que correu na Nicarágua, o professor de taekwondo e segurança Pierson Gutiérrez Solís se assustou com a movimentação do carro de Raynéia e, com um tiro de fuzil, a atingiu no abdômen. Ela foi levada para o hospital e morreu no dia seguinte. Gutiérrez Solís foi condenado na Justiça nicaraguense a 15 anos de prisão em novembro de 2018; menos de um ano depois, ele foi perdoado e libertado por uma lei de anistia relativa às turbulências políticas no país. Para Maria José, "de jeito nenhum" houve justiça no caso da sua filha. Ela — e mais duas fontes entrevistadas pela BBC News Brasil — contesta a versão que se consolidou na Justiça nicaraguense e acredita que pessoas mais poderosas que Gutiérrez Solís podem estar por trás da morte. Fim do Matérias recomendadas Há também uma petição tramitando na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) que questiona o processo ocorrido na Nicarágua (leia mais abaixo). "Eu vivo a cada dia como se fosse o dia do acontecimento", desabafou, chorando, Maria José Costa em entrevista à BBC News Brasil por telefone no dia 15. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Minha filha não sai da minha mente. A falta dela é imensa, fazia quatro anos que eu não a via pessoalmente", diz a mãe, que hoje tem 60 anos e mora em Caruaru (PE). "Eu estou vivendo esperando o dia que Deus vai me chamar. Mas, antes disso, eu quero ver a justiça." Maria José deposita sua esperança por justiça no novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), de quem se diz eleitora. Na semana passada, a aposentada enviou uma carta à presidência pedindo "a ajuda necessária [...] para que o caso de minha filha seja resolvido". Ela deseja um encontro com Lula para conversar sobre o caso e para pedir que as investigações e os processos sejam impulsionados. Até a publicação desta reportagem, a aposentada diz não ter tido retorno. "Estou tentando enxergar uma luz no fim do túnel com o presidente atual, porque ele é uma pessoa mais para o pessoal carente, mais para o lado humano das pessoas", diz a mãe, afirmando não ter recebido apoio dos ex-presidentes Jair Bolsonaro (PL) e Michel Temer (MDB) — que ocupava a Presidência quando Raynéia morreu. Entretanto, a posição do governo Lula sobre a Nicarágua se tornou um ponto sensível: em 3 de março, o Brasil não assinou uma declaração do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas repudiando o regime autoritário de Daniel Ortega. O PT tem uma histórica simpatia com Ortega, que liderou a revolução sandinista — um movimento popular de esquerda que derrubou a ditadura dos Somoza, família que governou o país por mais de 35 anos. Lula fez nos últimos anos algumas declarações defendendo que a democracia vigore na Nicarágua, mas nem ele nem seu partido têm adotado uma postura contudente sobre o assunto. Ortega foi eleito presidente pela primeira vez nos anos 1980. Após ser novamente eleito em 2007, conseguiu alterar as regras do país para permitir a reeleição indefinida e intensificou o autoritarismo. O ano de 2018 foi um ponto crucial na guinada autoritária no país centro-americano: em abril, começaram protestos contra reformas previdenciárias anunciadas pelo governo. A repressão foi dura, inclusive com a participação de paramilitares pró-governo, segundo vários relatórios da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Dados divulgados pelas Nações Unidas mostraram que, nos primeiros três meses do conflito, a partir de 18 de abril, 280 pessoas morreram — incluindo 19 policiais. Duas fontes da Nicarágua entrevistadas pela BBC News Brasil sob condição de anonimato, um jornalista e um advogado, afirmam que Gutiérrez Solís é um paramilitar pró-Ortega. Em Manágua, na época dos protestos, havia um toque de recolher informal às 19h para civis — Raynéia circulava de carro por volta das 23h quando foi atingida. Não se sabe ao certo por que ela estava na rua, mas uma possibilidade é que ela estava se deslocando do trabalho em um hospital. No relatório de fatos anexado ao processo judicial, é dito que Gutiérrez parou para conversar com amigos que eram seguranças no bairro de Lomas de Monserrat quando viu o carro de Raynéia sendo conduzido de maneira "errática". "Gutiérrez é um conhecido paramilitar do governo. Ele fazia serviços como paramilitar e participou da repressão de forma direta", diz um advogado da organização nicaraguense Acción Penal, exilado na Espanha. "Pode ser que mais pessoas tenham disparado também. Mas também é possível que os superiores dele tenham dado sinal verde para atacar fortemente qualquer pessoa que se aproximasse daquela área." Maria José acredita que Gutiérrez foi um bode expiatório para proteger alguém mais poderoso responsável pela morte de Raynéia. A BBC News Brasil tentou falar com Gutiérrez por meio do WhatsApp dele e de ligações telefônicas, mas não foi atendida. Também buscou-se contato com ele por meio do departamento de esporte da prefeitura de Manágua, ao qual sua escola de taekwondo está vinculada, mas tampouco houve retorno. Na matéria publicada pelo Nicaragua Investiga, ele afirmou que não tinha "nada a responder" sobre o caso Raynéia. O advogado da Acción Penal diz que o réu teve um processo atípico: após confessar o crime, teve um julgamento "relâmpago" e um "direito de defesa que ningúem tinha naquele contexto". Ele acredita que apesar da promotoria ter mostrado eficiência na acusação teria havido intenção de beneficiar o réu abrandando a carga acusatória. "A promotoria, embora tenha sido eficiente na sua acusação, buscou beneficiá-lo. Como na acusação de homicídio, e não de assassinato, já que a pena por homicídio é muito menor do que a de assassinato", explica o advogado, que diz ter deixado a promotoria na Nicarágua após a politização da instituição. "Nesse caso, também não sabemos quais são as provas que existem. No local, havia câmeras de segurança. Desconhecemos o conteúdo, se é que ainda existe ou apagaram tudo. Ela [Raynéia] estava em um veículo. Não sabemos onde está esse carro e quantas marcas de disparos ele tinha." Em novembro de 2018, Gutiérrez foi condenado a 15 anos de prisão por homicídio e porte ilegal de armas e munições. Em julho de 2019, o réu confesso foi perdoado pelos crimes por conta de uma lei de anistia levada à frente pela bancada da FSLN e aprovada no Congresso. Os parlamentares afirmaram em conjunto que a lei teve como objetivos “a busca pela estabilidade, a garantia da paz e a melhoria das condições econômicas para alcançar o desenvolvimento integral das famílias nicaraguenses que foram afetadas pelos atos violentos e destrutivos iniciados em 18 de abril de 2018”. Ainda que alguns opositores ao regime tenham sido libertados — como os líderes estudantis Edwin Carcache, Amaya Eva Coppens, Nahiroby Olivas, Byron Corea e Kevin Espinoza, e os jornalistas Miguel Mora e Lucía Pineda —, a lei não foi exatamente motivo de comemoração para estes grupos. "Rechaçamos essa lei de autoanistia porque eles [o governo] estão pensando na impunidade das pessoas que torturam e mataram nicaraguenses que exerceram seu direito de protestar", disse na época Daniel Esquivel, porta-voz da Comissão Pró-Liberação de Presos Políticos, à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC). Para organizações de direitos humanos, aqueles que protestaram contra o governo e acabaram detidos eram "presos políticos"; para o governo da Nicarágua, eram "acusados por delitos contra a segurança comum e a tranquilidade pública". O advogado da Acción Penal denuncia também que sua organização tentou muitas vezes atuar como uma defesa particular representando Maria José na Nicarágua, mas isso "sempre foi negado". Outra lacuna no processo vem do fato de que testemunhas e pessoas próximas a Raynéia precisaram se exilar, como o namorado nicaraguense que a acompanhava na noite do crime, segundo conta a mãe. "Minha filha vinha dirigindo o carro dela e o namorado vinha seguindo atrás. Quando ela foi alvejada, foi ele quem viu o atirador. Foi ele quem socorreu ela. Depois, quando ele saiu do hospital, a polícia já estava na porta esperando ele para levar para a delegacia." Ela conta que o namorado da filha teria sido ameaçado na delegacia. " Lá, disseram: se você falar a verdade, você e sua família serão mortos", relata Maria José. "Ele e a família saíram às escondidas para um outro país, que eu não sei nem onde é", acrescenta. O Ministério Público Federal (MPF) em Pernambuco pediu em 2021 informações à Justiça nicaraguense sobre o caso Raynéia, mas não teve retorno. Por conta disso, no início deste mês, o órgão formalizou um pedido de cooperação internacional para investigar o caso. Já na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), está avançando uma petição para que o processo judicial realizado na Nicarágua seja revisto por conta da "investigação insuficiente e da aprovação de uma lei da anistia". A petição foi aprovada na etapa de admissibilidade em outubro de 2022 e está na fase de análise do mérito. Ela está em nome de Maria José e dois advogados especializados em direitos humanos. A Nicarágua rejeitou a petição, afirmando que os acontecimentos que levaram à morte de Raynéia fazem parte de um contexto que foi pacificado com a anistia e que o caso recebeu as devidas investigações e julgamentos. A BBC News Brasil pediu um posicionamento do governo do país por meio da embaixada da Nicarágua no Brasil, mas não teve retorno. No início do mês, o site jornalístico Nicaragua Investiga revelou que Pierson Gutiérrez Solís tem um cargo público no Instituto Regulador del Transporte del Municipio de Managua e, no momento do crime, era funcionário da Empresa Nicaragüense de Petróleo (Petronic). A reportagem afirma também que o "paramiltar" tem uma agitada vida pública, participando de eventos e entrevistas para meios de comunicação controlados pelo regime sandinista. "Só começamos a saber quem era Pierson quando ocorreu o caso Raynéia. Então, ficamos sabendo que ele era um militante fiel do regime sandinista e que foi um membro ativo do exército da Nicarágua", diz um jornalista da Nicaragua Investiga que não quis se identificar. "Ele participa de eventos públicos, é chamado de sabonim, que é uma posição de honra no taekwondo. A cada evento, ele não oculta sua afinidade com o regime sandinista, aproveita cada ocasião para endeusar o presidente Daniel Ortega." Maria José da Costa diz que "está vivendo por viver" desde que sua filha foi embora — uma dor não só pelo que passou, mas pelo que poderia ter sido. "Minha filha seria como uma ajuda pra minha velhice", afirmou à reportagem, depois caindo em prantos. Perguntada se recebeu auxílio psicológico neste período, Maria José afirma que experimentou algumas sessões de terapia, mas não se adaptou. Recebendo um salário mínimo e morando de aluguel em Caruaru, a enfermeira aposentada faz "bico" em uma escola para conseguir uma renda extra. Ela acrescenta que nunca pôde ajudar a filha na Nicarágua e que a jovem — que foi para o país estudar medicina na Universidad Americana de Managua — sempre passou dificuldades no país estrangeiro. Raynéia tinha pouco contato com o pai. "Minha filha passou uma dificuldade muito grande, muito grande mesmo, nos últimos anos vivendo lá sozinha. Ela fazia, nas horas vagas, brigadeiro e alguns docinhos para vender no hospital, para poder ter um trocadinho. Infelizmente, eu não podia fazer nada, não podia ajudar minha filha em nada financeiramente." A brasileira fazia residência em cirurgia pediátrica quando foi morta. "Começaram a ocorrer os protestos e aí o negócio foi piorando. Ela estava com medo, morrendo de medo", lembra a mãe. Maria José lamenta também que, com o passar do tempo, a morte de sua filha "ficou esquecida". "Foram quase 15 dias de notícias, era notícia de manhã, de tarde e de noite nas televisões, em jornal, nas redes sociais, em rádio. Tudo falava da morte da minha filha. Mas é aquela coisa: morreu, enterrou, acabou. Quando ela desceu ao chão, parece que aquilo ali nunca tinha existido", diz a mãe, acrescentando que raramente encontra informações sobre a Nicarágua no noticiário. A aposentada afirma que nunca recebeu ajuda do Itamaraty, apenas o auxílio do governo estadual de Pernambuco em alguns pontos, como o translado do corpo. Em nota enviada à reportagem, o Itamaraty afirmou que "prestou assistência consular aos familiares da nacional brasileira desde a notícia do assassinato" e que "não há previsão legal e orçamentária para o pagamento do translado com recursos públicos". "Tão logo tomou ciência da morte [...] a Embaixada em Manágua entrou em contato com a chancelaria nicaraguense para relatar o assassinato e solicitar informações e providências imediatas. Ademais, o Itamaraty coordenou-se com o governo de Pernambuco para possibilitar o traslado do corpo da vítima ao Brasil e intermediou os contatos entre o banco onde a brasileira mantinha conta na Nicarágua e sua família", completou o Ministério das Relações Exteriores. Sobre a posição do Brasil em relação ao regime sandinista, o Itamaraty destacou uma fala do representante brasileiro junto à ONU em 7 de março no Conselho de Direitos Humanos. Na ocasião, o representante Tovar Nunes afirmou que "o governo brasileiro acompanha com extrema atenção os acontecimentos na Nicarágua e está preocupado com os relatos de graves violações de direitos humanos e restrições ao espaço democrático naquele país, em especial as execuções sumárias, as detenções arbitrárias e a tortura contra dissidentes políticos". O Brasil ofereceu também abrigar os mais de 300 cidadãos da Nicarágua declarados apátridas pelo regime. Para o advogado da Acción Penal entrevistado pela BBC News Brasil, essas sinalizações recentes do Brasil o lembraram de um ditado da Nicarágua que diz: candil de la calle, oscuridad de su casa (algo como "lampião na rua, escuridão em casa"). O ditado fala de pessoas que têm condutas exemplares fora de casa, mas não a aplicam dentro dela. "Agradecemos o gesto aos cidadãos nicaraguenses, mas isso é como atender aqueles que estão na rua e deixar de lado quem esta em casa", diz o ex-promotor exilado. "Há uma vítima nacional do Brasil e a mãe dela, que também é uma vítima, está pedindo justiça. O Estado brasileiro tem obrigações com seus cidadãos. Não é possível que assassinem um cidadão brasileiro em um outro país e só por afinidades ideológicas ou para evitar um conflito, deixem indefesos e desprotegidos esses cidadãos. É inconcebível", diz o advogado nicaraguense.
2023-03-24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw4lggzk024o
brasil
A briga entre Pacheco e Lira que pode paralisar o governo Lula
Uma disputa de poder entre o Senado Federal e a Câmara dos Deputados está atrasando o andamento de pautas importantes do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no Congresso Nacional. E, se o impasse não se resolver, há o risco de medidas importantes, como a reestruturação do governo e a volta do Bolsa Família, serem anuladas. Sem chegar a um acordo, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) subiram o tom das críticas mútuas na quinta-feira. O problema está no andamento das medidas provisórias (MPs) editadas pelo Poder Executivo. Uma MP é a forma como o governo consegue adotar imediatamente ações que teriam que ser aprovadas pelo Congresso. Só que as medidas provisórias têm duração máxima de 120 dias. Se a proposta não recebe o aval da Câmara e do Senado nesse prazo, ela simplesmente caduca (perde a validade). No momento, as MPs estão travadas por um impasse sobre como deve ser feita sua tramitação no Congresso. Fim do Matérias recomendadas Antes da pandemia, essas propostas passavam por uma análise inicial conjunta em uma comissão mista, formada por 12 integrantes de cada casa. Dessa forma, havia uma alternância entre senadores e deputados para relatar as MPs – o relator é o parlamentar que concentra as negociações e redige a versão final que vai à votação, já que as medidas provisórias podem sofrer modificações no Congresso. Após essa comissão, a proposta era apreciada no plenário da Câmara e, em seguida, no do Senado. Esse rito, que está previsto na Constituição, foi alterado durante a pandemia de covid-19, quando o funcionamento das comissões ficou suspenso. Com isso, as medidas provisórias passaram a ser analisadas diretamente pela Câmara, o que deu poder extra a Arthur Lira de definir sempre um deputado para relatar a matéria. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O Congresso já voltou ao funcionamento de antes da pandemia, retomando outras comissões que estavam paradas. No entanto, a Câmara resiste a retomar o rito anterior das medidas provisórias. Lira argumenta que a Câmara dos Deputados estaria sub-representada nas comissões mistas, já que a casa indica o mesmo número de integrantes que o Senado (12), apesar de ser numericamente maior (são 513 deputados e 81 senadores). Ele defende a aprovação de uma alteração da Constituição para mexer nesse número. Pacheco, por sua vez, sugeriu uma emenda constitucional que acabaria com as comissões mistas, mas estabeleceria que o início da tramitação das MPs seria alternado entre Câmara e Senado. Assim, cada casa revezaria a indicação do relator. Isso também reduziria outra queixa do Senado, de que a Câmara demora muito para analisar as medidas provisórias, deixando pouco tempo para a atuação dos senadores. Lideranças da Câmara, porém, resistem a essa proposta, que na prática tiraria poder dos deputados. Lira também argumenta que, exceto problemas pontuais, “mais de 90%” das MPs foram encaminhadas dentro do prazo para o Senado e que não faria sentido mudar o rito atual. “Portanto, era de se esperar o bom senso por parte do Senado de que o que estava funcionando bem permanecesse”, defendeu. Diante da falta de acordo, Pacheco, que é também presidente do Congresso, decidiu na quinta-feira (23/03) que vai retomar as comissões mistas à revelia do desejo de Lira. A ideia é que esse rito seja aplicado às medidas provisórias do governo Lula, enquanto as remanescentes do governo Bolsonaro continuem tramitando do jeito atual. Hoje, há treze de cada presidente aguardando apreciação. A decisão foi adotada com apoio dos líderes partidários no Senado a partir de uma questão de ordem do senador Renan Calheiros (MDB-AL), que é rival político de Lira em Alagoas. “Encerrada a pandemia, felizmente, não havendo mais o estado de emergência, revogado inclusive pelo Poder Executivo, havia a necessidade, obviamente, da retomada da ordem constitucional e do cumprimento da Constituição no rito das medidas provisórias, isso com uma obviedade muito grande”, argumentou Pacheco, ao anunciar sua decisão. O presidente da Câmara reagiu de forma dura, chamando a decisão de “truculenta”. Ele anunciou que a Casa votará na próxima semana as 13 MPs remanescentes do governo Bolsonaro. E indicou que não aceitará a instalação das comissões mistas para as medidas provisórias de Lula. “Essa questão de ordem cedida, pelo que eu entendi na reunião de líderes (no Senado), não vai andar 1 milímetro na Câmara dos Deputados e o prejuízo vai ser para o governo atual”, afirmou em pronunciamento a jornalistas. Segundo Lira, as lideranças na Câmara estariam ao seu lado, inclusive os líderes do governo. “E eu quero aqui deixar claro para quem tiver dúvidas, eu recebi solicitação expressa do governo federal de manutenção do rito atual. Se o governo preferir as comissões mistas, ótimo, paciência. Vai arcar com o ônus de negociar as comissões mistas com 24, com 36, com 48 membros, e arriscar que as medidas provisórias caiam no plenário da Câmara, no plenário do Senado, as Casas são equivalentes”, ressaltou. Já o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), apoiou a decisão de Pacheco. “Até porque qualquer MP transformada em projeto de lei sem obediência ao rito constitucional pode ser questionada quanto à sua validade. Então o presidente [do Senado], que é o estilo dele, quis ouvir os líderes. Mesmo estando frustrados por não ter tido o acordo [com o presidente da Câmara], fomos unânimes no acolhimento da questão de ordem feita. E que se proclamem a instalação das comissões”, disse Wagner, segundo a Agência Senado. Existem treze MPs de Lula aguardando apreciação, como a medida que retornou o imposto sobre gasolina e etanol e criou um novo tributo sobre exportação de petróleo cru. Há também MPs que estabeleceram as novas regras de programas sociais, como Bolsa Família e Mais Médicos. Já outra MP importante reorganizou a administração federal, criando novas pastas, como o Ministério dos Povos Indígenas. Outras treze medidas provisórias do governo de Jair Bolsonaro também aguardam apreciação no Congresso, como a MP que tratou da contratação de profissionais para atuar no Censo 2022. Para a cientista política Beatriz Rey, pesquisadora sênior no Núcleo de Estudos sobre o Congresso da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a escalada na tensão entre Câmara e Senado evidencia as dificuldades do governo Lula na relação com o Congresso, já que o Palácio do Planalto não está conseguindo mediar um acordo entre Lira e Pacheco. Como até o momento não houve uma votação relevante no Congresso, Lula não pôde testar qual o tamanho real de sua base, lembra ela. Além da votação das medidas provisórias, o governo precisa aprovar até agosto um novo arcabouço fiscal (regras para os gastos públicos) e deseja passar também uma complexa reforma tributária. “Eu enxergo uma desorganização nessa articulação com o Congresso. É do interesse do governo resolver esse impasse, não só para poder destravar a pauta do governo, mas para testar a base, porque a gente tem votações importantes pela frente. Então, eu acho que o governo está batendo cabeça nesse primeiro momento”, nota Rey, que é especialista no funcionamento do Poder Legislativo no Brasil e nos Estados Unidos. Já o analista político Antônio Augusto de Queiroz, do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), acredita que o impasse das medidas provisórias está sendo útil ao governo, justamente para dar tempo de construir uma base parlamentar antes das votações mais importantes. Na sua visão, Lira e Pacheco terão que chegar a uma solução, sob o risco de arcar com a responsabilidade de uma paralisia do governo. "Ou o Congresso ficaria com a pecha de ser omisso por razões de disputa interna de cumprir sua função que é apreciar as políticas públicas propostas pelo governo", disse. No momento, o governo segue negociando com os partidos do chamado Centrão cargos no segundo e terceiro escalões da administração pública em troca de apoio no Congresso. Além disso, Segundo reportagem do jornal O Globo, o governo Lula estaria “reciclando” o chamado Orçamento Secreto, adotado no governo Jair Bolsonaro e proibido no fim de 2022 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). No antigo Orçamento Secreto, bilhões do orçamento federal eram destinados para obras e outros gastos públicos nos redutos eleitorais de deputados e senadores por meio de emendas parlamentares pouco transparentes, em troca de apoio no Congresso. Após a decisão do STF, parte dessa verba foi mantida sob controle do Congresso, com novas regras, e outra parte voltou para gestão dos ministérios. Segundo o jornal o Globo, essas verbas estariam sendo liberadas pelo governo em negociação com parlamentares, sem transparência. Um exemplo seria a liberação neste ano de R$ 124 milhões do Ministério da Integração para a superintendência da Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba) em Alagoas, órgão comandado desde 2021 por João José Pereira Filho, primo de Lira. O recurso servirá para financiar obras em dez cidades do Estado. Segundo a reportagem do Globo, o Planalto não se manifestou ao ser questionado pelo jornal. Lira, por sua vez, disse que “a relação das prefeituras e Estados com a União se dá entre membros do Poder Executivo, por meio de projetos devidamente aprovados e sujeitos à fiscalização pelos órgãos competentes”.
2023-03-24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c03k0lzwxdzo
brasil
'Quebrei o braço e fiquei sem dinheiro para comida': os limites da PEC das Domésticas, 10 anos depois
“Boa tarde, venho humildemente pedir uma ajuda para quem puder ajudar. Estou desempregada, tenho uma filha de 4 anos. Moro de aluguel e estou passando necessidade, pois, há uns meses atrás, eu quebrei o braço no trabalho.” “Ainda não estou totalmente bem do braço, ainda fazendo fisioterapia, mas negaram minha perícia... Eu não era registrada. Pagava o MEI. Trabalhava de faxineira... Agora estou sem dinheiro para pagar aluguel e comprar comida.” O apelo foi feito numa rede social por Jocelene Cristina Forlin, de 32 anos e moradora do município de Gaspar, em Santa Catarina. A dificuldade vivida pela faxineira diarista, que trabalhava como MEI (microempreendedora individual) antes de se machucar em serviço, revela a precariedade ainda enfrentada por milhares de trabalhadoras domésticas brasileiras, dez anos depois da aprovação da Emenda Constitucional 72, de 2 de abril de 2013, que ficou conhecida como “PEC das Domésticas”. O MEI garante alguns direitos como aposentadoria por idade, salário maternidades e auxílio-doença — ao qual Jocelene perdeu acesso após ter sua perícia negada —, mas não outros previstos na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), como férias remuneradas, 13º salário, hora extra, entre outros. Fim do Matérias recomendadas Demanda histórica dos movimentos de trabalhadoras domésticas, feminista e negro, a PEC foi apresentada em 2012 pelo deputado federal Carlos Bezerra (MDB/MT) e sancionada pela então presidente Dilma Rousseff (PT) no ano seguinte. Transformada em lei, garantiu às domésticas direitos que os demais trabalhadores brasileiros já tinham, como o recolhimento de FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço), limite de horas para a jornada de trabalho, pagamento de horas extras e acesso ao seguro-desemprego. Mas, passados dez anos – marcados por uma crise econômica, uma pandemia e mudanças demográficas no país –, o mercado de trabalho doméstico brasileiro mudou, e muitos dos direitos conquistados com a PEC já não respondem à realidade da maior parte das trabalhadoras domésticas em atividade. Há cada vez menos mensalistas, principais beneficiárias da lei, e um número crescente de diaristas, como Jocelene. A maioria delas trabalha na informalidade, sem qualquer proteção trabalhista e previdenciária. Atualmente, três em cada quatro trabalhadoras domésticas no Brasil trabalham sem carteira, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). E mesmo quem trabalha como MEI não está completamente protegida, como mostra o caso da faxineira que quebrou o braço e se viu sem renda. Levantamento exclusivo feito pela LCA Consultores a pedido da BBC News Brasil revela ainda outras mudanças nesses dez anos: entre as trabalhadoras domésticas, aumentou a proporção de mulheres mais velhas, de negras (pretas ou pardas), de chefes de família e essas mulheres estão contribuindo cada vez menos para a Previdência Social. Entenda todas essas mudanças e os desafios que elas colocam para a proteção social e trabalhista das trabalhadoras domésticas, dez anos após a aprovação da PEC das Domésticas. Após 70 anos da CLT e 25 anos da Constituição de 1988, a PEC das Domésticas de 2013 finalmente deu a essas profissionais direitos já assegurados para outros trabalhadores – ainda que não de forma totalmente igual. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Os direitos das trabalhadoras domésticas foram concedidos de forma muito paulatina”, observa Cristina Vieceli, economista do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) “Na CLT [Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943], as trabalhadoras domésticas foram excluídas, junto com os trabalhadores rurais. E na Constituição de 1988, foram relegados a elas somente alguns direitos”, acrescenta a pesquisadora. Somente 30 anos depois da CLT, uma lei (Lei 5.859 de 1972) garantiu às domésticas o direito à carteira assinada, férias remuneradas e acesso a benefícios da Previdência Social. Mais de uma década depois disso, a Constituição de 1988 garantiu alguns direitos a mais para a categoria: salário mínimo, 13º salário, repouso semanal remunerado, licença maternidade e direito ao aviso prévio. “Na Constituinte, iniciamos um processo para que as trabalhadoras domésticas fossem reconhecidas tal qual os demais trabalhadores. Conseguimos algumas coisas, mas outras não conseguimos”, lembra Benedita da Silva, deputada federal (PT-RJ), que já foi um dia trabalhadora doméstica e uma das 26 mulheres entre os 559 deputados constituintes. “A PEC das Domésticas foi chamada de ‘nova Lei Áurea’ porque ela garantiu direitos que vínhamos reivindicando há muito tempo – há décadas”, lembra Luiza Batista, coordenadora geral da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad). “Garantiu o FGTS, jornada de trabalho, seguro-desemprego, adicional noturno, abono família, comunicação de acidente de trabalho. Infelizmente, depois levou dois anos e três meses para ela ser regulamentada”, observa a liderança sindical, lembrando que a regulamentação da lei só viria em junho de 2015. À época, a PEC sofreu forte resistência de setores da classe política e da classe média. Os críticos argumentavam que ela iria encarecer e burocratizar a contratação dessas trabalhadoras, gerando desemprego em massa de domésticas e de mulheres que não poderiam mais contar com a ajuda dessas profissionais para o cuidado da casa e dos filhos. Ana Luiza Neves de Holanda Barbosa, economista e pesquisadora do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), participou de estudo que analisou os impactos da PEC anos depois de sua aprovação. “Não encontramos resultados muito adversos, houve algum aumento da informalidade, mas não encontramos resultados tão alarmantes quanto se advogava à época”, afirma. (Veja dados sobre informalidade abaixo) Luiza Batista destaca que, mesmo após a EC 72/2013, alguns direitos ainda são diferentes para as trabalhadoras domésticas. Por exemplo, as domésticas só têm direito a três parcelas do seguro-desemprego, no valor de um salário mínimo nacional, enquanto as demais categorias têm direito a cinco parcelas, até o teto máximo do seguro-desemprego (que em 2023, está em R$ 2.230.97, conforme tabela). Outro exemplo é o atestado médico. Para os trabalhadores em geral, após 15 dias de afastamento mediante atestado, os custos salariais passam à Previdência. Já para as domésticas, caberia ao INSS pagar desde o 1º dia de afastamento – o que na prática não acontece, criando um jogo de empurra entre patrão e Previdência sobre quem paga. Mesmo com essas desigualdades, Batista afirma que a PEC das Domésticas não deixa de ser uma grande conquista da categoria. “Foi uma luta histórica das trabalhadoras domésticas, juntamente com o movimento feminista e o movimento negro. Dessa luta, despontam várias lideranças, como Laudelina de Campos Melo, Creuza Maria de Oliveira e Luiza Batista”, observa Cristina Vieceli, do Dieese. “Teve uma força muito grande dessas trabalhadoras domésticas de assegurar que esse trabalho fosse considerado um trabalho como qualquer outro. Porque, historicamente, a doméstica era considerada como uma pessoa que 'fazia parte da família’ e que por isso não deveria receber os mesmos direitos da totalidade dos trabalhadores”, diz a economista. “Essa noção permanece até os dias de hoje e tem raízes no trabalho escravo.” Em dez anos, a mudança mais marcante no mercado de trabalho doméstico no Brasil é o avanço da informalidade. A parcela de trabalhadores domésticos sem carteira passou de 69% para quase 75% entre dezembro de 2013 e igual mês de 2022. A mudança se acentuou após a pandemia, mostram dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), compilados pela LCA Consultores a pedido da BBC News Brasil. “A PEC das Domésticas teve toda uma boa intenção quando foi implementada. As pessoas que estavam mais tempo trabalhando em casas de família foram bastante beneficiadas. Só que o que aconteceu anos depois não estava dentro do previsto, e a tendência foi outra”, observa Bruno Imaizumi, economista especializado em mercado de trabalho da LCA Consultores. “A ideia era formalizar, garantir benefícios e que elas tivessem carteira assinada. Mas o que aconteceu é que tivemos duas crises após a implementação da PEC – a crise de 2015-2016 e a pandemia”, afirma. O economista explica que, quando crises acontecem, as famílias perdem renda e acabam trocando funcionárias mensalistas por diaristas. Além disso, com a pandemia, muitas pessoas passaram a trabalhar em esquema híbrido e, ao passar tempo maior em casa, assumiram parte das tarefas domésticas antes desempenhados por estas profissionais. Cristina Vieceli, do Dieese, aponta ainda um fator demográfico que contribui para a mudança: a redução das famílias numerosas e avanço de famílias pequenas e de pessoas morando sozinhas também favorece a contratação de diaristas, em detrimento das mensalistas. Maria Conceição Santos Afonso, de 60 anos e doméstica mensalista há 20 deles, cita ainda um outro fator que explica a mudança: a busca das trabalhadoras domésticas por ganhar mais. “Tem diarista que ganha R$ 3 mil, R$ 4 mil, e a mensalista muitas vezes não ganha tudo isso. Então elas vão pelo salário, mas se você for ver, é mais desgastante”, diz Maria Conceição. Apesar dessa busca por maiores rendimentos, em dez anos desde a aprovação da PEC das Domésticas, a renda dos trabalhadores domésticos pouco avançou em termos reais. Em 2013, os com carteira ganhavam em média R$ 1.460 e os sem carteira, R$ 912. Em 2022, esses valores passaram a R$ 1.495 e R$ 932. Segundo a economista do Dieese, a renda das domésticas está muito atrelada ao valor do salário mínimo, cujos reajustes perderam força na última década, em meio à crise econômica e ao abandono, a partir de 2019, de política que atrelava o reajuste do mínimo ao crescimento do PIB. Embora a informalidade tenha aumentado, o número de trabalhadores domésticos no Brasil permaneceu praticamente estável nesses dez anos: em torno de 5,8 milhões, dos quais mais de 90% são mulheres. Mas o perfil destes trabalhadores mudou bastante neste período. Em 2013, pouco mais da metade dos trabalhadores domésticos brasileiros (53%) tinham 40 anos ou mais, percentual que chegou a 65% em 2022. Embora esses trabalhadores estejam pela idade mais próximos da aposentadoria, com o avanço da informalidade, eles estão contribuindo menos para a Previdência. O percentual de contribuintes caiu de 38,6% para 36,2% nestes dez anos, segundo os dados da Pnad do IBGE. Com o envelhecimento dessas trabalhadoras, também cresce a parcela de chefes de família entre elas, de 40% em 2013, para 53% em 2023. O avanço da educação no país e a busca das mulheres mais jovens por outros tipos de trabalho explicam o envelhecimento das trabalhadoras domésticas, diz Vieceli, do Dieese. “Desde os anos 2000, há uma participação menor das trabalhadoras jovens [no trabalho doméstico], porque há um acesso dessas trabalhadoras a outros postos de trabalho, onde elas têm melhor remuneração e mais direitos trabalhistas”, afirma a economista. Camila Silva Passos, de 31 anos e moradora de Barra do Piraí, no interior do Rio de Janeiro, é um exemplo dessa mudança. Com avó e mãe domésticas, ela é farmacêutica pós-graduada. “Minha avó casou aos 22 anos e sofreu muita violência doméstica. Depois que se separou, ela criou sozinha oito filhos. Todos esses oito filhos passaram fome e necessidade. Assim, minha mãe começou a trabalhar aos 9 anos, cuidando de outras crianças”, conta Camila. “Ela estudou até a quarta série e foi mãe solteira. Trabalhando como empregada doméstica, ela conseguiu pagar minha van para eu fazer faculdade, o que eu consegui através do Prouni”, diz farmacêutica, que conseguiu pelo programa uma bolsa integral para estudar numa universidade privada na cidade vizinha de Vassouras. Assim, ela se tornou a primeira pessoa de sua família a se formar numa universidade. “Decidi fazer o Enem para ter uma vida melhor, receber mais do que um salário mínimo e ter mais direitos. Eu queria uma coisa melhor para mim”, afirma. Diante da queda recente na busca de jovens pelo Enem e nas inscrições em instituições de ensino superior, Camila defende a importância das políticas públicas de educação, para que mais pessoas como ela tenham alternativas ao trabalho doméstico. “Os programas sociais são importantes para quebrar esse ciclo: o Sisu [Sistema de Seleção Unificada], cotas raciais, Prouni. Tudo isso facilita que nós tenhamos oportunidades que nossas mães não tiveram”, diz a farmacêutica. Com mais mulheres buscando outras profissões, o percentual de domésticas entre o total de trabalhadoras ocupadas recuou de 14,9% para 12,8% em dez anos. Mas, enquanto 8,8% das brancas trabalham atualmente como domésticas, esse percentual chega a 16,4% das negras. Camila, que como mulher preta foi na contramão dessas estatísticas, ao romper o ciclo de trabalho doméstico das mulheres de sua família, avalia que os dados mostram como as oportunidades são diferentes paras brancas e negras. “Assim como todas as subocupações, o trabalho doméstico é o que resta para uma mulher negra, que está na base da pirâmide social”, diz a farmacêutica. “Assim como tudo no Brasil, a mulher branca, mesmo sendo pobre, tem mais oportunidade de sair desse tipo de subemprego e, por exemplo, encontrar emprego numa loja.” Como então proteger os direitos das trabalhadoras domésticas, dez anos depois da PEC, nessa nova realidade em que há um número crescente de trabalhadoras diaristas, sem carteira assinada; que estão ficando mais velhas, mas contribuindo menos para a Previdência? E onde as desigualdades raciais e baixa remuneração persistem, apesar dos avanços na educação das mulheres? Aqui, não há respostas fáceis, segundo os entrevistados, mas um consenso entre os especialistas é de que é preciso avançar na proteção dos trabalhadores informais de forma geral, em meio ao avanço da automação e das novas tecnologias. Para Luiza Batista, da Fenatrad, é necessário também aprofundar as conquistas da PEC das Domésticas, igualando os direitos conquistados aos dos demais trabalhadores – como no caso do seguro-desemprego e do atestado médico. Para que haja melhora na remuneração dessas profissionais, ela também defende que mais Estados avancem em convenções coletivas de trabalho para trabalhadoras domésticas, a exemplo do que já acontece hoje em São Paulo. Também são prioridades para a categoria uma maior oferta de creches, de escolas em tempo integral e a retomada do TDC (Trabalho Doméstico Cidadão), programa criado em 2006, que oferecia elevação da escolaridade, qualificação profissional e formação de lideranças sindicais. Para Batista, apesar de ser uma alternativa para contribuição à Previdência para as trabalhadoras sem carteira, o MEI não é a solução ideal para a formalização dessas trabalhadoras, que em geral não têm características de empreendedoras. “Tem patrão usando de má-fé e inscrevendo a trabalhadora no MEI para se desobrigar dos encargos sociais e de pagar salários, férias, 13º”, afirma Batista. “E ela não sabe que tem que fazer relatório anual para a Receita Federal, pode acabar se complicando, contraindo uma dívida, por não ter consciência de que, ao se inscrever no MEI, ela vira uma pessoa jurídica.” Para Maria Conceição, doméstica mensalista há 20 anos na mesma casa, é preciso também fazer cumprir os direitos previstos na PEC das Domésticas. “Há 20 anos, qual era o direito da empregada doméstica? Nenhum. Ela saía [de um trabalho] como ela entrou, com as mãos vazias”, diz a doméstica. “Hoje nós temos direito ao INSS, ao Fundo de Garantia, ao seguro-desemprego. Tudo isso foi uma conquista grande para a gente. E nós temos que continuar na luta, porque eu fico triste quando vejo companheira nossa trabalhando três dias numa mesma casa e o patrão não assina a carteira dela. Ainda tem muito patrão que não cumpre a lei.”
2023-03-23
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv29epq03jdo
brasil
O que executivos de sucessora da Odebrecht farão em viagem de Lula à China?
No próximo domingo (26/03), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) inicia sua viagem oficial à China. Além da delegação formada por ministros e ministras e políticos, quase 200 empresários de diferentes setores da economia brasileira farão parte de uma missão empresarial ao país. A BBC News Brasil teve acesso à lista completa de empresários que vão à China e, em meio a dezenas de nomes, dois deles chamam atenção por conta das empresas que representam. São executivos da Novonor, atual nome da Odebrecht, aquela que já foi a maior empreiteira do país e que esteve no centro do esquema investigado durante a Operação Lava Jato, que levou líderes do PT, inclusive Lula, à prisão. Os executivos da Novonor (atual nome da Odebrecht) que estão na lista de empresários que irão à China são: Héctor Nuñez e Cláudio Medeiros, CEO e diretor de Relações Exteriores do grupo, respectivamente. Na lista recebida pela reportagem da BBC News Brasil também aparece o nome "Odebrecht S.A" e OEC S.A, novo nome da Construtora Odebrecht, entre as empresas que participarão do evento. Fontes ouvidas pela reportagem apontam que eles farão parte de eventos oficiais que estão sendo organizados pelos governos brasileiro e chinês. Nenhum dos dois foi investigado ou processado pela Operação Lava Jato. Procurada, a Novonor não respondeu às questões enviadas pela reportagem. Nos últimos anos, com o afastamento da família Odebrecht do comando da companhia e a implementação de medidas de compliance exigidas pelas autoridades brasileiras e norte-americanas, a Novonor vem tentando recuperar sua participação no mercado nacional e internacional. "A melhora da reputação após uma crise sem precedentes é uma construção diária e permanente e vemos como um reconhecimento das ações de integridade e condutas de todo o nosso time", disse Nuñez em entrevista ao jornal O Globo, em julho de 2022. Apesar de a Novonor ainda ser um dos maiores grupos empresariais do Brasil, a possível reaproximação de executivos da empresa com um governo petista chama atenção nove anos depois da deflagração da Operação Lava Jato. Mas afinal: o que executivos do grupo que sucedeu a Odebrecht farão na China? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A reportagem da BBC News Brasil apurou que os executivos Novonor irão à China participar de eventos oficiais organizados pelos governos da China e do Brasil. A previsão é de que eles participem de pelo menos duas reuniões do tipo: um seminário e uma rodada de negócios. Em princípio, não há previsão de os executivos viajarem juntamente com integrantes do governo. Durante um briefing concedido pelo Itamaraty na semana passada, a expectativa é de que os empresários que acompanharão a comitiva brasileira à China banquem suas próprias viagens e estadias. Fontes ouvidas pela BBC News Brasil afirmam que a ida dos executivos da empresa à China faz sentido do ponto de vista comercial considerando o fato de que a Novonor é um dos maiores conglomerados econômicos do país e que a chamada "nata" do empresariado brasileiro estará nesta comitiva. Atualmente, a Novonor atua em setores como a construção civil, indústria naval, petroquímica (por meio da Braskem), serviços para a indústria de óleo e gás, empreendimentos imobiliários e infraestrutura e mobilidade. Há, também, a expectativa de que a antiga Odebrecht possa prospectar negócios juntos aos chineses em algumas das áreas de atuação do grupo. Um dos exemplos dados foi o fato de que a OEC S.A, braço de engenharia do grupo, tem fornecedores de equipamentos chineses em obras que executa em países africanos. A relação entre a antiga Odebrecht e os chineses também remonta ao período em que a empresa se viu em apuros durante a Operação Lava Jato. Em 2017, em meio a dificuldades financeiras e pressionada pelas investigações no país vizinho, a companhia vendeu uma hidrelétrica no Peru para o grupo chinês China Three Gorges por US$ 1,4 bilhão. A Novonor foi o nome escolhido para a Odebrecht após o sobrenome da tradicional família baiana ser associado a crimes de corrupção durante o auge da Operação Lava Jato. Entre 2014 e 2018, executivos da empresa, entre eles o então presidente da empreiteira, Marcelo Bahia Odebrecht, foram presos sob acusações de terem pago propina a agentes públicos e políticos em troca de contratos com o governo e estatais como a Petrobras. Após quase dois anos preso, Marcelo assinou um acordo de delação premiada com autoridades brasileiras. Dezenas de executivos do grupo fizeram o mesmo, além de um acordo envolvendo o Departamento de Estado norte-americano. No total, a empreiteira se comprometeu a devolver aproximadamente R$ 7 bilhões. Na época, a empresa divulgou uma nota afirmando que havia identificado "necessidade de implementar melhorias em suas práticas". Nos acordos, os executivos confessaram terem pago vantagens indevidas a agentes políticos em diversos países do mundo onde a empresa operava, entre eles o Brasil. Em sua delação, Marcelo chegou a afirmar que disponibilizou um total de R$ 300 milhões para serem usados pelo PT tanto a título de doações oficiais como por meio de caixa 2. Ao longo das investigações, foi revelada a ligação entre líderes do PT como Lula e executivos da Odebrecht, como o ex-presidente do Conselho de Administração da companhia, o empresário Emílio Odebrecht. Foi justamente essa proximidade entre a companhia e Lula que deu origem a uma das suas condenações na Justiça Federal. Em 2019, Lula foi condenado a 12 anos e 11 meses de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso de um sítio em Atibaia usado pela família do então ex-presidente e que havia sido reformado por empreiteiras como a OAS e a Odebrecht. Lula e sua defesa negaram qualquer envolvimento em qualquer irregularidade. Em março de 2021, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Edson Fachin, anulou as condenações de Lula sob a alegação de que os casos não deveriam ter tramitado na Justiça Federal do Paraná. A anulação abriu espaço para que Lula recuperasse seus direitos políticos e disputasse as eleições de 2022. Segundo os dados de 2021, o grupo teve uma receita líquida de R$ 113 bilhões e atua em 20 países, entre eles o Brasil, Estados Unidos, além de países na Europa e na África. A empresa alega ter hoje, aproximadamente 25,5 mil funcionários, bem distante dos quase 130 mil que a Odebrecht chegou a ter durante o auge da construção civil da primeira década dos anos 2000. Atualmente, há apenas um membro da família Odebrecht no conselho de administração da Novonor. Maurício Odebrecht é filho de Emílio Odebrecht e irmão de Marcelo Bahia Odebrecht. Uma holding vinculada a integrantes da família Odebrecht ainda tem quase 80% das ações da Novonor. A coordenadora de projetos do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre-FGV), Ana Maria Castelo, afirma que a ida de executivos da Novanor à China durante a visita presidencial faz sentido do ponto de vista estratégico. "É uma das maiores empresas do setor no Brasil e na região. O novo governo vem reforçando a necessidade de retomada do setor de infraestrutura. É natural que a empresa vá à China e possa buscar possíveis investidores em projetos no Brasil ou em outros países", afirmou Castelo. Segundo ela, apesar da sombra das investigações da Operação Lava Jato, o ambiente de negócios no setor de infraestrutura no Brasil é diferente daquele observado nas primeiras décadas dos anos 2000. "Houve uma série de mudanças, inclusive de compliance, que foram exigidas pelos acordos e pelo próprio mercado. Hoje, o cenário de mercado é muito diferente. O governo não tem mais condições de fomentar um volume grande de investimentos em infraestrutura. O contexto mudou muito", explica. A Novonor (antiga Odebrecht) não é a única empresa que foi investigada pela Operação Lava Jato a vai enviar executivos para a comitiva de Lula à China. Na semana passada, o jornal O Globo revelou que os empresários Joesley e Wesley Batista, do grupo JBS, estão na lista que compõe a comitiva de executivos e empresas brasileiras. Os dois foram figuras centrais da delação da J&F, que controla a JBS. Eles revelaram que teriam pago vantagens indevidas a dezenas de agentes públicos e políticos. Entre acordos de leniência e multas, o grupo pagou aproximadamente R$ 12,4 bilhões aos cofres públicos do Brasil e dos Estados Unidos. Entre 2017 e 2018, os dois chegaram a ser presos, mas foram liberados. O jornal Folha de S. Paulo revelou nesta terça-feira (21/03) que a processadora de proteína animal Marfrig também enviará empresários para a viagem. Segundo a reportagem, o fundador da empresa, Marcos Molina admitiu à Polícia Federal ter pago R$ 617 mil ao operador Lúcio Funaro para obter a liberação de empréstimos na Caixa Econômica Federal (CEF). Ele não está na lista de empresários que irão à China. Ele firmou um acordo com a Justiça em que se comprometeu a ressarcir prejuízos e ficou livre de punições judiciais. Para o presidente da organização não-governamental Contas Abertas, Gil Castelo Branco, a anulação de processos no âmbito da Operação Lava Jato "avalizou" a reaproximação entre pessoas investigadas no passado e o atual governo. "A Lava Jato evidenciou, no mínimo, uma enorme proximidade de integrantes do governo do PT com empresários que foram investigados na Operação, alguns, inclusive, condenados e até presos. O desfecho da Lava Jato, entretanto, inocentou ou anulou processos de investigados e condenados. Assim sendo, a Justiça brasileira, viabilizou - e até de certa forma avalizou - essa reaproximação", disse Castelo Branco. Para o cientista político e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Marco Antonio Teixeira, a presença de executivos de empresas que já foram alvo de processos e investigações é reflexo do empresariado brasileiro. "Isso reflete o que é a realidade do ambiente empresarial brasileiro. Estamos falando de segmentos como o de carnes, infraestrutura e outros negócios que, por mais que tenham sido atingidos pela Operação Lava Jato, são empresas que seguiram suas vidas e, de alguma maneira, pagaram pelo que fizeram, mas suas atividades permaneceram", afirmou. Em nota, o Ministério das Relações Exteriores (MRE) disse que a participação de empresários na comitiva que vai acompanhar Lula é "reflexo da densa relação econômico-comercial entre Brasil e China". "A visita oferece oportunidade para que o setor privado brasileiro estabeleça interlocução com dirigentes empresariais chineses e identifique oportunidades de negócios e de investimentos", diz um trecho da nota. O Itamaraty disse ainda "que entende que os empresários deverão viajar por meios próprios". O Palácio do Planalto não respondeu às perguntas enviadas pela reportagem. - Este texto foi publicado em
2023-03-22
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cyrpxlj8m4po
brasil
O que se sabe sobre operação da PF contra plano de assassinar autoridades
O ministro da Justiça, Flávio Dino, anunciou nesta quarta-feira (22/3) que a Polícia Federal (PF) identificou um plano de homicídios de vários agentes públicos, entre eles um senador e um promotor de Justiça. Chamada de “Operação Sequaz”, a ação da PF inclui prisões e buscas sendo feitas contra a organização criminosa em pelo menos cinco estados, segundo a própria PF. Os planos da quadrilha eram de realizar ataques, como homicídios e sequestros, contra diversas autoridades e servidores públicos. Entenda o que já se sabe sobre a operação. Entre os alvos da quadrilha estavam um senador e um promotor de Justiça, de acordo com o ministro. Um comandante da Polícia Militar também estava entre os alvos, segundo o portal G1. O promotor de Justiça Lincoln Gakiya, do Gaeco, grupo do Ministério Público de São Paulo especializado em combate ao crime organizado, era um dos principais alvos do plano, segundo o site Metrópoles. Fim do Matérias recomendadas Gakiya vive escoltado por policiais militares fortemente armados desde dezembro de 2018, quando pediu a transferência do líder PCC (Primeiro Comando da Capital) para um presídio federal de segurança máxima. As transferências aconteceram em 2019, quando foram autorizadas pela Justiça. O senador Sergio Moro (União Brasil-PR) disse em uma postagem nesta quarta que ele era um dos alvos da organização criminosa. De acordo com as investigações, o plano estava sendo arquitetado por criminosos desde o ano passado. Eles seguiam e vigiavam os alvos para levantar informações, segundo a PF. O objetivo da quadrilha era de assassinar autoridades e servidores públicos ou de sequestrar os alvos para obter resgate e fazer a negociação de soltura de líderes da facção. Os ataques estavam planejados para acontecer ao mesmo tempo em diversos estados. A maioria dos investigados atuava em São Paulo e no Paraná, mas os ataques estavam planejados em pelo menos cinco estados. Nesta quarta), cerca de 120 policiais cumprem 24 mandados de busca e apreensão, sete de prisão preventiva de suspeitos e quatro de prisão temporária nos estados de Mato Grosso do Sul, Rondônia, São Paulo, Paraná e no Distrito Federal, de acordo com a Polícia Federal.
2023-03-22
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cqqz6drqwq7o
brasil
Críticas de Lula, crise de bancos, nova regra fiscal: o que está em jogo em decisão do BC sobre juros?
Sob intensa pressão do governo de Luiz Inácio Lula da Silva e diante de um cenário global adverso devido à recente quebra de bancos nos Estados Unidos e na Europa, o Banco Central do Brasil decide nesta quarta-feira (22/3) os rumos da taxa básica de juros (Selic), que serve como referência para os juros praticados no país em operações de crédito e financiamento. Apesar das duras críticas ao elevado patamar da Selic, atualmente em 13,75% ao ano, a expectativa do mercado é que o Comitê de Política Monetária do BC (Copom) não realize cortes na taxa por enquanto, sob a justificativa de que a inflação continua pressionada no país. O acumulado em 12 meses do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) fechou em 5,6% em fevereiro. Isso significa que a taxa já caiu pela metade desde abril de 2012, quando atingiu o pico de 12,13%. Apesar disso, segue acima da meta de inflação do Banco Central, que foi fixada pelo governo anterior em 3,25% para 2023 e 3% para 2024, com uma tolerância de 1,5 ponto para mais ou para menos. "O Banco Central sempre colocou (em seus comunicados) que traria a inflação a todo o custo para a meta estabelecida para ele", ressalta Claudia Moreno, economista do C6 Bank, que acredita que a Selic permanecerá onde está por algum tempo. Fim do Matérias recomendadas Nesse contexto, o BC tende a manter a Selic alta para deixar o crédito caro no país, esfriando o consumo e, consequentemente, freando o aumento de preços – embora alguns economistas, como o prêmio Nobel Joseph Stiglitz, considerem que juros elevados não sejam o remédio adequado para segurar a inflação no momento, já que a disparada global nos últimos anos tem mais relação com problemas de oferta causados pela pandemia e a guerra entre Rússia e Ucrânia. "Uma coisa que eu acho absurda é a taxa de juros estar a 13,75%, num momento em que a gente tem o juro mais alto do mundo, num momento em que não existe uma crise de demanda, não existe excesso de demanda", afirmou Lula na terça-feira (21/03), fazendo coro ao argumento de Stiglitz. Além da inflação ainda alta no Brasil, também há uma leitura entre os analistas brasileiros de que a crise deflagrada pela quebra dos bancos americanos Silicon Valley Bank (SVB) e Signature Bank e do banco suíço Credit Suisse (comprado pelo UBS) parece contida pela ação das autoridades européias e americanas, não havendo sinais de uma grave turbulência sistêmica no horizonte com impactos relevantes sobre inflação e atividade econômica no Brasil. O próprio Banco Central Europeu (BCE) optou por uma nova alta da sua taxa de juros, que subiu de 3% para 3,5% na quinta-feira (16/03). Outro fator que contribui para a manutenção da Selic no atual patamar é a incerteza em torno do novo arcabouço fiscal em elaboração no governo. Esse arcabouço trará novas regras para as despesas públicas, substituindo o chamado teto de gastos, que limita o crescimento dos gastos do governo à inflação do ano anterior. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Isso é considerado importante para o rumo dos juros no país porque, quando o governo reduz o aumento das despesas, isso freia o crescimento do consumo no país, desacelerando a inflação. Além disso, afirma Moreno, também contribui para reduzir o crescimento da dívida pública, o que gera mais confiança na economia brasileira, valorizando o real. Isso deixa produtos importados mais baratos, diminuindo a inflação. "Quando você tem uma dívida que é sustentável, uma dívida mais controlada, você passa credibilidade para os agentes econômicos e as pessoas investem mais no Brasil. O câmbio se valoriza e, com isso, você também consegue reduzir inflação mais rápido", nota a economista. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, esperava apresentar a proposta de novo arcabouço fiscal que o governo enviará ao Congresso antes do fim da reunião do Copom, mas Lula adiou o anúncio para abril, evidenciando as dificuldades para fechar as novas regras. No entanto, mesmo que as novas regras tivessem sido divulgadas, isso não teria impacto nessa reunião, acredita Moreno. Ela lembra que o BC já deixou claro que não levará em conta medidas ainda não aprovadas no Congresso, já que a proposta a ser encaminhada pelo governo poderá ser modificada pelos parlamentares. Desde a última reunião do Copom, no início de fevereiro, quando a Selic foi mantida em 13,75% pela quarta vez seguida, o BC se tornou forte alvo de Lula e do entorno do presidente, que temem o impacto dos juros altos sobre a economia. A insatisfação vem também do setor produtivo: na segunda-feira (20/03), o presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), Josué Gomes da Silva, disse que as taxas de juros do país são "pornográficas". "Se não abaixarmos essas taxas de juros, de nada adiantará fazermos políticas industriais", disse em evento do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), no Rio de Janeiro. Críticas partiram até mesmo de economistas de renome internacional, como Joseph Stiglitz, vencedor do Nobel de economia, professor da Universidade de Columbia (EUA) e antes economista-chefe do Banco Mundial (1997-2000). Isso porque, na avaliação do economista, a alta no custo de vida que aflige o mundo hoje é provocada principalmente por restrições na ponta da oferta causadas pela pandemia e pela guerra entre Rússia e Ucrânia, além de mudanças no padrão de consumo também derivadas da crise sanitária. Assim, no contexto atual, elevar juros – uma medida de política monetária que tem por objetivo aumentar o custo e restringir a oferta de crédito – pode fazer mais mal do que bem, defendeu o Nobel. "Há um custo enorme em ter taxas de juros altas. Isso coloca o Brasil em desvantagem competitiva, estrangula as empresas brasileiras, enfraquece a economia do país. Então o presidente Lula está absolutamente correto em estar preocupado com essas questões ", disse Stiglitz à BBC News Brasil. Na visão de Claudia Moreno, a pressão política não atinge a decisão do Copom devido à independência do Banco Central aprovada pelo Congresso em 2021. Por isso, o BC continua sendo presidido por Roberto Campos Neto, nomeado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, já que seu mandato se encerra apenas em dezembro de 2024. Campos Neto, que chegou a votar na eleição de 2022 com uma camisa da seleção brasileira, o que foi lido como claro sinal de apoio à tentativa de reeleição de Bolsonaro, passou a sofrer questionamentos sobre sua independência política. Em resposta a essas críticas, ele diz que o BC subiu a Selic durante a eleição, em um movimento que desagradou o governo anterior. "É verdade que teve um choque de oferta que atingiu a economia brasileira e outras economias. A inflação chegou a rodar a 12% no Brasil. Só que aqui a gente tem um problema de inércia (da inflação) muito elevada. Então, quando a inflação sobe bastante, é difícil fazer com que ela volte pra meta de uma maneira rápida", avalia Moreno.
2023-03-22
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c80x72znp7yo
brasil
Antes de Lula ir à China, EUA aumentam presença no Brasil e mostram preocupação
Depois de anos de relações mornas resultantes de ruídos causados pelo governo Bolsonaro tanto com americanos quanto com chineses, o Brasil vai se consolidando como a nova trincheira da disputa de influência e poder entre Estados Unidos e China. Nesse contexto, chineses e americanos competem pela lealdade do Brasil. Para os americanos, a boa relação com os brasileiros é fundamental para ter um aliado de peso na América Latina (já que as relações com México e Colômbia estão instáveis) e avançar o combate às mudanças climáticas e a promoção da democracia, duas pautas centrais na agenda do governo Biden. Para os chineses, o Brasil é um importante mercado consumidor, um grande exportador de alimentos, e, se não um completo aliado em assuntos internacionais, ao menos um país relevante e não alinhado – em um momento em que Europa Ocidental, Austrália, Japão e Coreia do Sul fecharam questão com os americanos e a China se encontra em um incômodo polo nesta bipolaridade global. Com o mote de que o "Brasil voltou", o governo de Luiz Inácio Lula da Silva tenta reconstruir uma relação robusta e privilegiada com as duas nações (primeiro e segundo maiores parceiros comerciais do Brasil) - e se esquivar das pressões e constrangimentos que surgem nessa aproximação simultânea. Fim do Matérias recomendadas Com apenas 40 dias de governo, o presidente Lula foi a Washington se encontrar com o presidente americano Joe Biden. E, 40 dias mais tarde, será recebido em jantar em Pequim pelo presidente chinês, Xi Jinping, no próximo dia 28. "Se os dois gigantes quiserem brigar para saber quem será o melhor parceiro para o Brasil, só temos a ganhar", afirmou reservadamente à BBC News Brasil uma das integrantes da comitiva presidencial brasileira. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Às vésperas do embarque de Lula para a China, a comissão de relações exteriores do Senado dos EUA convidou autoridades do governo Biden para uma discussão sobre o "futuro das relações entre EUA e Brasil". É a primeira vez em anos que o Legislativo americano toma tal iniciativa, o que diplomatas brasileiros viram como um sinal do novo patamar de importância que Washington dá a Brasília. Na audiência, porém, tanto congressistas (dos dois partidos) quanto membros do Executivo expressaram mal-estar com a aproximação entre Brasil e China. "O governo Biden está fazendo o suficiente para desencorajar países como o Brasil de buscarem investimentos e comércio com a China?', questionou o senador republicano Pete Ricketts (Nebraska), que chegou a citar a Doutrina Monroe, de 1823, que preconizava ser dos EUA o papel de liderança política nas Américas, "alertando potências contra a interferência no Hemisfério Ocidental", nas palavras de Ricketts. Na mesma linha, a senadora Jeanne Shaheen, democrata de New Hampshire, notou que o Brasil é um dos únicos países na região a não ter aderido à iniciativa chinesa "Cinturão e Rota", de empréstimos para desenvolvimento de infraestrutura. Argentina e Chile, por exemplo, já estão no programa, também conhecido como "nova rota da seda". Segundo ela, esta seria uma "oportunidade para os EUA se destacarem”. O senador Benjamin Cardin, Democrata de Maryland, reforçou a questão: "O Brasil tem hoje uma quantidade incrível de parcerias com a China. Qual é a nossa estratégia para tentar minimizar a influência da China no Brasil e em nosso hemisfério? Em que estamos trabalhando - não apenas em ações governamentais, mas em atividades do setor privado - para contrapor o que a China está fazendo?", questionou. "Você está preocupado com o que a China tem feito em relação à América Latina e o Brasil?", resumiu Ricketts. "Com certeza", respondeu o Secretário-assistente de Estado para o Hemisfério Ocidental, Brian Nichols, para depois completar: "Estamos focados em demonstrar que os EUA são o melhor parceiro para os países de toda a região, principalmente o Brasil. Os EUA são a maior fonte de investimento estrangeiro direto no Brasil, gerando oportunidades de trabalho de alta qualidade e crescimento para o benefício de nossos dois povos". Já Richard Duke, vice-enviado especial para o Clima, reconheceu o tamanho do desafio para a política externa americana de Biden. "A China é hoje o maior parceiro comercial do Brasil e o maior mercado para muitas das commodities brasileiras. Também é o maior investidor em projetos de infraestrutura. A China investiu em construir fortes relações com legisladores e outros líderes brasileiros. Há uma forte base pró-China no país". Para Ryan Berg, diretor do programa de Américas do Center for Strategic and International Studies, em Washington D.C., os EUA veem o Brasil na "linha de frente" de sua rivalidade com a China. "O governo americano vai acompanhar esta viagem muito de perto, talvez mais de perto do que qualquer outra que Lula faça", afirmou Berg à BBC News Brasil. E o que Washington viu até agora certamente inspirou preocupação. Enquanto Lula passou menos de 48 horas em território americano, em fevereiro, na China ele ficará ao menos 5 dias. Se aos EUA Lula veio acompanhado de uma comitiva enxuta de ministros, à China ele irá com boa parte da equipe ministerial, os presidentes da Câmara (Deputado Arthur Lira) e do Senado (Senador Rodrigo Pacheco), além de mais 30 parlamentares e centenas de empresários (incluindo mais de cem do agronegócio). "Essa disparidade é uma prova do peso que a China assumiu nas últimas décadas e das oportunidades potenciais que o país representa em um contexto em que os EUA têm dificuldade de fazer aportes e propostas viáveis e alternativas para o desenvolvimento na América Latina", afirma Fernanda Magnotta, especialista na relação EUA - Brasil - China e coordenadora de Relações Internacionais da FAAP. E se a visita de Lula a Biden teve um clima de "correria", sem anúncio de acordos e sem visita ao Capitólio, a agenda em Pequim deve ser cuidadosamente "coreografada", com Lula sendo recebido na Assembleia Nacional Popular e em jantar pelo líder Xi Jinping. Na mesa, há ao menos 30 acordos em negociação, cujos temas variam de desenvolvimento de satélites à preservação ambiental - embora ainda não se saiba quantos e quais serão assinados por Xi e Lula. "O mais importante não são as assinaturas, mas o enorme simbolismo político da viagem, a primeira de um líder estrangeiro após a recondução do Xi para um terceiro mandato. Não é por acaso, há um peso grande dado ao Brasil. Cada detalhe da visita de Estado tem sido preparado para que ela seja vista como uma refundação das relações Brasil-China", afirma um alto diplomata brasileiro com conhecimento das negociações. Para os americanos, dois temas são especialmente sensíveis. O primeiro é a possibilidade de que o Brasil aceite fazer parte da Iniciativa Cinturão e Rota. Embora espere o convite, é improvável que o governo Lula aceite, até porque mesmo sem o instrumento o Brasil já foi, em 2021, o maior destino de investimentos da China no exterior (com aporte de quase US$ 6 bilhões). O segundo, sobretudo pelo simbolismo, seria uma doação mais robusta do que os US$ 50 milhões que os americanos ofereceram ao Fundo Amazônia em fevereiro. Embora defenda ser prioridade para seu governo, Biden depende do Congresso americano para fazer esse tipo de aporte, em uma negociação que não tem se mostrado fácil. O valor foi considerado tão inexpressivo pelos brasileiros que foi excluído da declaração conjunta dos dois países após o encontro presidencial de fevereiro. "Acho bem possível que os chineses façam um gesto à Amazônia para fustigar os americanos em uma prioridade que é nossa", disse reservadamente à BBC News Brasil um alto representante da diplomacia americana. Por iniciativa brasileira, Brasil e China estudam a implantação de um mecanismo ambiental formal nos moldes daqueles que os brasileiros já possuem com os EUA e a Europa. Mas uma doação direta dos chineses ao Fundo Amazônia é vista como improvável pelos negociadores brasileiros até agora. Por outro lado, ao menos dois projetos com a China que possivelmente serão anunciados na viagem devem tocar o tema da sustentabilidade. Um deles é a possível compra da planta da montadora americana Ford, em Camaçari (Bahia), pela fabricante chinesa de carros elétricos BYD. "Simbolicamente, a saída de uma empresa deles para a chegada de uma chinesa é algo que pega para os americanos", diz Magnotta. Embora seja um negócio privado, o empresariado chinês se orienta fortemente com vistas às relações internacionais valorizadas por Pequim e é comum que os presidentes estejam presentes em reuniões com empresários dos dois países, para facilitar os negócios. O outro projeto é a construção do satélite sino-brasileiro Cbers-6, capaz de produzir boas imagens da Terra mesmo em dias chuvosos, o que representaria um ganho no monitoramento do desmatamento da Amazônia, além de uma possibilidade de transferência tecnológica da China ao Brasil. "O dilema dos americanos é como se fazer competitivo em termos de influência econômica e política se tudo o que oferecem é um apoio de capacitação, com recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento e do DFC (U.S. International Development Finance Corporation), mas sem aportes significativos de dinheiro e tendo do outro lado os chineses despejando dinheiro. Fica muito difícil pros EUA sustentarem a posição de competidor estratégico, tanto que os programas recentes de desenvolvimento na região, como o ‘América Cresce’, lançado pelo Trump, nunca deram em nada", explica Magnotta, citando o programa americano criado para rivalizar com a Iniciativa Cinturão e Rota. Na ausência de recursos, os americanos têm oferecido visitas e simpatia. Em fevereiro, o Enviado Climático de Biden, John Kerry, esteve em Brasília para se encontrar com a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, e o vice-presidente Geraldo Alckmin. Em março, foi a vez da Representante Comercial dos Estados Unidos, Katherine Tai, que também esteve com Alckmin, e com o chanceler Mauro Vieira. Em abril, uma delegação de senadores, comandada por Bob Menendez, irá ao país. E até o meio do ano, espera-se a inédita visita do Secretário de Estado Antony Blinken, acompanhado de Nichols. O próprio Biden cogita ir ao Brasil, possivelmente no início do próximo ano, quando as relações entre Brasil e EUA completarão 200 anos. O Brasil responde aos americanos reafirmando valores caros aos dois países (como democracia, direitos humanos e meio ambiente) e sendo o único país do bloco dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) a condenar a invasão russa à Ucrânia nas Nações Unidas, posição patrocinada pelos EUA. Enquanto isso, aprofunda os laços econômicos com a China, visto pelo governo Lula como a possível financiadora para a reindustrialização do país, operada a partir de uma lógica sustentável. "A missão do Lula é se equilibrar nessa linha tênue: mobilizar os símbolos das nossas semelhanças históricas e culturais com os EUA para garantir esse apoio ao mesmo tempo em que lança mão da 'carta China' que oferece oportunidades melhores de desenvolvimento, mas na dose certa para não ser visto como pária pelos americanos", resume Magnotta.
2023-03-21
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2qz4zlqr0zo
brasil
Brasileiros são imigrantes que mais solicitaram regularização do status migratório na Irlanda
Os brasileiros foram os imigrantes que mais solicitaram regularização de seu status na Irlanda, segundo dados do Ministério da Justiça irlandês aos quais a BBC News Brasil teve acesso. Foram ao todo 1.495 pedidos vindos de cidadãos do Brasil (18% do total), seguidos por 1.302 do Paquistão, 1.156 da China (incluindo Hong Kong), 749 das Filipinas e 445 da Nigéria. Cidadãos da Índia (311), Bangladesh (280), Egito (251), Ilhas Maurício (242) e Malásia (231) completam a lista dos que mais solicitaram regularização de sua situação. Outros países somam 1.849 pedidos. No total, 8.311 pedidos de regularização foram submetidos ao Ministério da Justiça da Irlanda por meio de um programa temporário para regularizar o status de imigrantes indocumentados, ou seja, que não têm permissão para viver na Irlanda. Isso inclui tanto os que chegaram ao país ilegalmente quanto aqueles cuja autorização de residência expirou ou foi retirada. Para se candidatar ao programa, que recebeu solicitações de 31 de janeiro a 31 de julho de 2022, os requerentes deveriam estar vivendo na Irlanda por menos quatro anos ou por três em caso de famílias com crianças menores de 18 anos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Pelo programa, os imigrantes recebem autorização para residir legalmente no país por dois anos, que podem ser renovados após o término desse prazo. A taxa de inscrição custou de 550 euros (R$ 3.040) por pessoa a 700 euros (R$ 3.865) para uma família. Segundo o Ministério da Justiça irlandês, o programa gerou 3,73 milhões de euros (R$ 20,6 milhões) em receitas para os cofres públicos. O maior número de solicitações ocorreu nas faixas etárias entre 26 e 45 anos, com pouco mais de 60% dos requerentes nessa faixa etária. Também foram feitos pedidos em nome de 905 crianças de até 12 anos e 229 para adolescentes entre 13 e 18 anos. Houve também 12 solicitações de regularização de pessoas com 76 anos ou mais. Até 22 de fevereiro deste ano (últimos dados disponíveis), o número de decisões emitidas para os requerentes do programa foi de "5.640, das quais 5.284 (94%) foram positivas, 258 (4%) foram negativas e 98 (2% ) foram retiradas pelas recorrentes por diversas razões", informou o órgão à BBC News Brasil em nota. Segundo Helen McEntee, que era ministra da Justiça da Irlanda quando o programa foi lançado, em janeiro do ano passado, ele "melhorará a vida de milhares de pessoas em todo o país que contribuem para nossa sociedade, enriquecem nossa cultura e trabalham em nossa economia, mas infelizmente ainda vivem nas sombras legais", declarou na ocasião. "As pessoas vêm para a Irlanda em busca de uma vida melhor para si e para suas famílias e podem ficar sem documentos por vários motivos". "Esse programa proporcionará uma oportunidade para aqueles que atendem a seus critérios permanecerem e residirem no Estado e se tornarem parte da sociedade irlandesa dominante, em vez de viverem à margem", completou. Na época, McEntee reconheceu que os imigrantes em situação irregular estão "sobrecarregados com muito estresse e incerteza em relação à sua posição na sociedade. Infelizmente, eles também podem ser mais vulneráveis à exploração devido à sua situação legal precária". Segundo o Ministério da Justiça irlandês, não há dados oficiais confiáveis sobre o número de pessoas indocumentadas vivendo na Irlanda, mas estudos indicam que podem ser 17 mil, incluindo até 3 mil crianças. Em 2016, eram 13,6 mil, segundo o censo local. No ano passado, conforme estimativas elaboradas pela Embaixada do Brasil em Dublin, esse número chegou a 70 mil. O país de pouco mais de 5 milhões de habitantes e 70 mil km² virou um ímã para os estrangeiros graças à facilidade que os recém-chegados têm de encontrar emprego legal e se regularizar, segundo especialistas em imigração consultados na ocasião pela BBC News Brasil. O mercado de trabalho vive um momento de prosperidade, e há vagas em áreas diversas, para profissionais com ou sem qualificação. Há ainda uma enorme oferta de cursos de inglês, que atraem centenas de brasileiros todos os meses. Essa modalidade de visto, chamado de Stamp 2, pode ser tirada diretamente na Irlanda, logo após a chegada, desde que o estrangeiro comprove sua matrícula em um curso com duração mínima de 25 semanas e uma reserva de 3 mil euros (cerca de R$ 16,5 mil) ao passar pela imigração. A partir de julho deste ano, esse valor subirá para 4,2 mil euros (R$ 23,2 mil) — para cursos de até seis meses ou 700 euros (R$ 3,8 mil) por mês, o que for menor. "Parte dos estudantes retornam ao Brasil assim que seu visto expira, mas uma outra parte permanece no país porque encontra boas oportunidades de trabalho dentro da lei", disse à BBC News Brasil César Leite, chefe do setor consular da Embaixada em Dublin, na ocasião. "A demanda por mão de obra é muito grande, porque os próprios irlandeses estão emigrando muito, e existe uma lacuna a ser suprida", acrescentou o diplomata. Além disso, a Irlanda tem um dos salários mínimos mais altos da Europa (11,30 euros — cerca de R$ 65 — por hora), mais do que países como Portugal (4,40 euros) e Espanha (7,82 euros). O inglês também atrai muitos estrangeiros que já falam o idioma oficial do país e desejam morar na Europa, mas não querem se aventurar com as outras línguas do continente. Mesmo os brasileiros de família europeia, que têm nacionalidade e passaporte europeu, escolhem a Irlanda como alternativa aos destinos mais tradicionais. Segundo a Embaixada, 25% dos portugueses e italianos que vivem hoje no país são também brasileiros.
2023-03-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3gz43983zqo
brasil
'Gosto daqui pela segurança': como vivem brasileiros no Iraque 20 anos após invasão
No dia 20 de março de 2003, uma coalizão liderada pelos Estados Unidos invadiu o Iraque. Com o apoio de tropas britânicas, italianas, espanholas, australianas e polonesas, os americanos conseguiram em pouco tempo derrubar o regime de Saddam Hussein (1937-2006) e instituir um governo provisório. Exatos 20 anos depois, o país ainda exibe as cicatrizes do conflito e está longe da estabilidade econômica e democrática que se prometia na época da invasão. Mesmo com a retirada das tropas ocidentais, a violência não desapareceu. Segundo a organização de monitoramento Action on Armed Violence (Ação para a Violência Armada, em tradução livre para o português), entre 2012 e 2022, o Iraque foi o segundo país que mais registrou vítimas civis deixadas por armas explosivas no mundo, atrás apenas da Síria. Ao todo, a entidade contabilizou 52.106 civis mortos e feridos em 4.627 episódios de uso de armas explosivas no período. Apesar disso, muitos iraquianos e iraquianas tentam deixar o passado para trás e seguir com suas vidas. Fim do Matérias recomendadas Esse mesmo sentimento está presente no dia a dia dos milhares de estrangeiros que vivem no país atualmente — entre eles, cerca de 130 brasileiros, segundo o Ministério das Relações Exteriores. De forma geral, os nacionais que vivem no país são pessoas que se mudaram para trabalhar, como jogadores de futebol e outros atletas. Há também brasileiros ou brasileiras que têm algum outro tipo de ligação familiar com o país ou que trabalham com ajuda humanitária ou organizações religiosas. A paulista Raquel Chaves, 40, é casada com um curdo e mora desde 2018 na cidade de Sulaymaniyah, que fica na região autônoma do Curdistão. O casal se conheceu pelas redes sociais quando ela ainda estava no Brasil e, depois de muitos meses conversando, iniciaram um relacionamento. Hoje, os dois têm um filho de 3 anos juntos. Natural de São Bernardo do Campo (SP), Raquel afirma não ser afetada pelos resquícios do conflito. Ela diz ter ficado surpresa ao desembarcar no Curdistão e descobrir que muitas de suas concepções sobre a região estavam equivocadas. "A cultura aqui é realmente muito diferente da brasileira. Mas algumas coisas me surpreenderam, por exemplo, o fato de que nem todas as mulheres são obrigadas a usar hijab ou burca", diz ela, em alusão aos véus islâmicos. "Eu também me sinto segura para sair na rua, pegar táxi e fazer tudo sozinha. Não achei que seria assim." A brasileira diz, inclusive, que muitas vezes se sente mais protegida em Sulaymaniyah do que no Brasil. "Quando eu falo que moro no Iraque todo mundo pensa que sou louca, mas eu gosto daqui justamente pela segurança. Andamos à noite ou ficamos do lado de fora de casa com tranquilidade, coisa que infelizmente não fazia no Brasil", diz. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A carioca Tatiane Araújo, 25, também vive no Curdistão. Ela se mudou para Sulaymaniyah em outubro do ano passado, para acompanhar o marido que é jogador de futebol do Newroz Sports Club. Ela conta que inicialmente estava um pouco receosa de se mudar para um país com histórico de tantos conflitos. Mas desde que chegou, diz que se adaptou muito bem. "Quando meu marido recebeu a proposta, ficamos com um pouco de medo, pois lá no Brasil só ouvíamos relatos de guerra sobre o Iraque. Mas decidimos vir mesmo assim, porque era importante para o nosso futuro", afirma. "Mas desde que cheguei nunca presenciei nenhuma situação de violência. Os iraquianos são muito amorosos e muito receptivos, aliás. Eles amam os brasileiros." Tatiane trabalha como influencer digital e usa suas redes sociais para compartilhar o dia a dia na vida no exterior. "Sempre que posto sobre a cidade no meu Instagram as pessoas ficam surpresas e dizem que estou mudando sua visão sobre o Iraque." Tatiane e Raquel moram em regiões mais seguras do Curdistão, próximas a comunidades de estrangeiros e de classes mais altas. Mas assim como no território iraquiano, a calma não está necessariamente presente no cotidiano de toda a população do Curdistão ou dos curdos que vivem em outras regiões do Oriente Médio. Essa etnia não tem um Estado nacional reconhecido internacionalmente e, por isso, trava uma batalha contra os governos locais para estabelecer sua independência. O principal foco de violência nos últimos anos foi a Turquia, mas a região norte do Iraque também é alvo constante de violência política. Segundo dados de organizações de monitoramento, mais de 3.500 eventos de violência política envolvendo forças militares turcas foram registrados no território iraquiano em 2022. E apesar de não se considerarem parte do Iraque, os curdos também tiveram suas vidas afetadas pela guerra que começou há 20 anos. Mas diferente dos iraquianos, que lamentam muito as perdas durante a invasão, os curdos veem esse período da história como de libertação e alguns têm inclusive grande estima pelos americanos. Esse sentimento tem relação com a brutalidade com que o regime de Saddam Hussein tratou os curdos. Foram anos de abusos de direitos humanos que culminaram na morte de pelo menos 5 mil pessoas, no massacre de Halabja, que é considerado o pior ataque com armas químicas contra civis da história. Assim como o marido de Tatiane, Jailson Araújo, 32, de João Pessoa, Paraíba, também é jogador de futebol no Iraque. Ele atua no Al-Talaba, um time da capital Bagdá, e afirma que inicialmente sua família estava um pouco receosa com a mudança de país. Mas ele logo se adaptou, fez novos amigos e estabeleceu uma rotina. "Meus amigos e familiares ficaram em choque quando contei que viria para cá, mas aos poucos fui mostrando meu dia a dia e ficaram mais tranquilos", diz. "Mas ainda recebo mensagens diariamente perguntando se estou bem." Jailson mora na capital iraquiana desde setembro de 2022 e afirma que tem tentado usar seu tempo livre para conhecer melhor a história e cultura do Iraque. "Nos meus dias de folga, gosto de sair para explorar, aprender e compartilhar com as pessoas no Brasil a verdadeira realidade do país para que elas venham visitar", diz. "Os iraquianos sentem muita falta de receber turistas, eles acham que ficaram esquecidos no mundo." "O país tem muita coisa bonita para ser explorada." Uma das coisas que ajudaram Jaílson a se sentir bem longe de casa foi a receptividade do povo iraquiano, segundo ele. "Eles adoram estrangeiros. Ter pessoas de outros países vivendo aqui é um sinal para os iraquianos de que tudo ficou para trás, que a guerra passou e as pessoas podem se sentir à vontade no país." Mas apesar do desejo de deixar a guerra para trás, esse momento da história do Iraque que começou 20 anos atrás ainda repercute no país. O conflito durou oito anos, entre a invasão em 2003 e a saída das últimas tropas de combate dos Estados Unidos, em 2011. A guerra facilitou o fortalecimento ou surgimento de grupos armados considerados como terroristas por países ocidentais, como o Estado Islâmico, e afundou a nação em um cenário de instabilidade política e econômica, segundo especialistas. Há áreas mais e menos atingidas pelos conflitos atualmente. Além do Curdistão, províncias do noroeste e centro do país continuam sob risco de ataques do Estado Islâmico e a região sul está exposta a confrontos tribais, atividades criminosas e violência política. A frustração com a corrupção, os serviços públicos precários e a falta de empregos levaram ainda a protestos generalizados nos últimos anos, principalmente em Bagdá, que muitas vezes acabaram em violência. A guerra que começou em 2003 também deixou uma mácula na política externa americana. Ainda restam muitas dúvidas sobre os motivos reais que levaram a coalizão ocidental a invadir o território iraquiano. Estados Unidos e Reino Unido diziam que seu principal objetivo era tomar e destruir armas de destruição em massa do regime de Saddam Hussein. Mas essas armas nunca foram encontradas. Há inclusive quem diga que foi uma guerra sem motivo. Mas o conflito deixou cerca de 100 mil iraquianos mortos, além de mais de 4,8 mil militares da coalizão ocidental e outras vítimas de outros países, como o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, que trabalhava na ONU e foi vítima de um atentado à sede da organização em Bagdá.
2023-03-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cj71ne5g7kpo
brasil
Por que cientistas discutem criação de fuso horário na Lua
Que horas são na Lua? No momento, ninguém tem certeza. O tempo na órbita da Terra geralmente é o mesmo que na região correspondente do planeta, mas como diferentes países planejam viajar e trabalhar na superfície lunar nos próximos anos, há um debate sobre se não seria uma boa ideia ter um horário lunar oficial. A Agência Espacial Europeia (ESA, na sigla em inglês) argumentou que combinar um fuso horário para a Lua não apenas tornará mais fácil para diferentes agências espaciais de todo o mundo trabalharem juntas, mas também pode ajudar a ter orientação e navegação mais precisas na superfície lunar. Agentes espaciais europeus dizem que uma única agência espacial teria que ser a responsável por estabelecer qual deveria ser o horário lunar. Também seria necessário tomar uma decisão sobre se deveríamos seguir o fuso horário de um país aqui na Terra ou se deveríamos ter um horário específico para a Lua. Fim do Matérias recomendadas A cronometragem do tempo na Lua pode ser complicada pois os relógios funcionam um pouco mais rápido na superfície lunar - um dia de 24h em um relógio lunar tem 56 microssegundos a menos do que na Terra. Pode parecer pouco, mas é uma diferença que vai se acumulando. Isso acontece porque a Lua tem uma gravidade mais fraca do que a Terra. Normalmente, as missões de curto prazo para a Lua usam antenas de rádio para tentar manter o equipamento sincronizado com o tempo na Terra, mas especialistas da ESA dizem que esse método pode não ser adequado a longo prazo conforme os humanos comecem a manter uma permanência maior no satélite natural da Terra. Bernhard Hufenbach, da ESA, diz que estabelecer um fuso horário na Lua significará que o mesmo pode ser feito para futuras visitas a outros locais no espaço, como Marte. Ele disse ainda que é preciso pensar na praticidade para os astronautas trabalhando na superfície lunar. Ele também listou certos desafios, como áreas da Lua onde um dia dura quase um mês terrestre e noites geladas que duram duas semanas (devido a diferença no tempo de rotação do astro). Os EUA, a Índia, a Rússia e o Japão planejam missões à Lua neste ano. A primeira visita humana à Lua em mais de 50 anos está programada para 2025, com a missão Artemis, da Nasa, que levará a primeira mulher e o próximo homem à superfície lunar. O tempo é dividido ao redor do globo em fusos horários usando linhas imaginárias chamadas meridianos. Eles vão do Pólo Norte ao Pólo Sul. Uma dessas linhas imaginárias passa por Greenwich, em Londres, que estabelece o Greenwich Mean Time, ou GMT. Países que estão à leste do Reino Unido (como o Japão) estão à frente desse horário base e países que estão à oeste (como o Brasil) estão atrasados. O Brasil tem mais de um fuso, mas o que é seguido na maior parte do país é o fuso horário de Brasília, que é equivalente a menos 3 horas do horário em Greenwich, ou seja, é -3 GMT. Isso significa que quando são 8h da manhã no Brasil, é 11h da manhã em Londres (a não ser que seja horário de verão em algum dos países).
2023-03-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0363yk190jo
brasil
'Facções nunca dormem': a guerra silenciosa por trás de ataques no Rio Grande do Norte
A onda de crimes em cidades do Rio Grande do Norte é mais um capítulo da recorrente violência empreendida pelas facções criminosas que atuam no Estado nordestino. Há pelo menos dez anos, dois desses grupos, o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Sindicato do Crime, promovem um conflito bélico e mortífero pelo controle de territórios e de atividades criminosas, uma “guerra silenciosa” que já vitimou milhares de jovens potiguares. Ônibus e caminhões foram incendiados. Em Natal, a circulação de ônibus e trens foi suspensa. O atendimento da coleta de lixo e de unidades de saúde foi interrompido e universidades, escolas e comerciantes fecharam as portas com medo de ataques. A recente onda de violência fez com que a governadora Fátima Bezerra (PT) pedisse auxílio da Força Nacional, que enviou 180 profissionais ao Estado. Segundo a Polícia Militar, 68 pessoas foram presas e um adolescente foi apreendido até a noite dessa quinta-feira, todos sob suspeita de terem participado dos atentados. Fim do Matérias recomendadas Segundo a imprensa local, os ataques teriam sido ordenados por membros do Sindicato do Crime, quadrilha local presente em bairros periféricos dos principais municípios do RN. Os crimes teriam sido motivados pelas más condições dos presídios do Estado. Em vistorias a cinco prisões do Estado, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), órgão ligado ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, encontrou evidências de torturas físicas e psicológicas, falta de alimentação, desassistência em saúde e superlotação, entre outras violações dos direitos, conforme noticiado pelo portal g1. Especula-se que as duas quadrilhas rivais, Sindicato e PCC, teriam dado uma trégua no conflito para reivindicar melhorias no sistema carcerário por meio de ataques violentos à sociedade civil e serviços públicos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Por sua vez, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (Sesed) negou que a motivação seja essa. A pasta afirma que os ataques são uma retaliação a ações policiais de combate ao tráfico e ao crime organizado. “Acreditamos que ações policiais anteriores, onde houve o enfrentamento da segurança pública a infratores e apreensão de grande quantidade de drogas e armas, inquietaram a delinquência a enfrentar o sistema de segurança pública”, disse o secretário da pasta, Francisco Araújo, na terça-feira. Por outro lado, quem estuda e trabalha em áreas relacionadas à segurança pública no RN acredita que a onda recente escancara para a sociedade civil um conflito violento e cotidiano travado dentro dos presídios e em ruas de bairros de diversas cidades. “As facções criminosas do Rio Grande do Norte nunca dormem, nunca estiveram sob controle. O que vimos nesses últimos dias é reflexo de uma guerra que acontece há anos, de maneira silenciosa. São jovens que estão matando e morrendo por causa de briga de facção”, diz Ítalo Moreira, promotor criminal que desde 2003 atua em casos de homicídios em Mossoró , a segunda maior cidade do RN. Nos últimos anos, o conflito entre os grupos está fomentando o aumento da violência no Rio Grande do Norte. Em 2000, a taxa de homicídios no Estado era de 9,57 assassinatos por 100 mil habitantes, segundo o Atlas da Violência, publicação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em 2010, esse índice subiu para 25,5 e, em 2019, chegou a 38,3 homicídios - o pico ocorreu dois anos antes, com 62,8 mortes violentas por 100 mil moradores. Esse aumento coincide com a chegada do PCC ao Estado e a outros pontos do Nordeste, no início da última década, segundo especialistas. E ocorreu durante gestões de governadores de linhas ideológicas e partidos distintos: Wilma Faria (PSB), Rosalba Ciarlini (à época no DEM), Robinson Farias (PSD) e Fátima Bezerra (PT). Para expandir seus negócios, a facção paulista se aliou a grupos locais, estimulando o comércio de armas e drogas, e motivando rivalidades e conflitos bélicos. Essa história foi narrada pelos pesquisadores Bruno Paes Manso e Camila Nunes Dias no livro A Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil (Ed. Todavia). O Sindicato do Crime surgiu como uma dissidência do PCC por volta de 2013, porque alguns criminosos se recusaram a seguir ordens de lideranças paulistas da facção. Desde então, os dois grupos entraram em conflito pelo controle de territórios e tráfico de drogas em todo o Rio Grande do Norte, embora a quadrilha local seja apontada por especialistas e jornalistas especializados em segurança pública como mais numerosa. “Eu diria que a imensa maioria dos homicídios está relacionada a esse conflito. Em Mossoró, às vezes uma pessoa é morta porque se mudou de um bairro comandado pelo PCC para outro local dominado pelo Sindicato do Crime. Isso não é aceito e a pessoa acaba sendo assassinada”, diz o promotor Ítalo Moreira. Em Mossoró, cidade com cerca de 300 mil habitantes, o PCC comanda bairros da região sul, enquanto o Sindicato do Crime controla a zona norte. No ano passado, o município registrou 167 homicídios - 9 a mais do que em 2021 -, segundo levantamento do jornalista Cezar Alves, especializado na cobertura de segurança pública na região do semi-árido do RN. Segundo o Monitor da Violência, índice compilado pelo g1, Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o RN registrou 1,1 mil assassinatos no ano passado - ligeira queda de 5% em comparação com 2021. A maior parte dessas mortes, no entanto, não é solucionada pela polícia potiguar. Ou seja, as investigações não conseguem apontar quem foram os autores dos crimes. Segundo o “Painel de Produtividade do Departamento de Homicídios”, dos 810 inquéritos policiais de assassinatos sob investigação desse setor da Polícia Civil, apenas 22,8% foram solucionados no ano passado - ou seja, apenas um em cada cinco homicídios foi esclarecido pela polícia do RN. Em 2010, o índice era maior: 62% dos casos foram solucionados naquele ano, mas esse número foi diminuindo desde então. “Eu não diria que a culpa é dos delegados e policiais, e sim da piora da estrutura para realizar as investigações. Faltam pessoal e ferramentas. Muitos casos são arquivados. Em outros, peço absolvição do réu por falta de provas, mesmo tendo certeza de que ele é culpado. Um júri não pode condenar uma pessoa se a investigação não provou que ela é culpada”, diz o promotor Ítalo Moreira. “Então, a impunidade acaba fomentando a violência, porque a pessoa mata e não é punida”, diz. Mas quem são as vítimas? Um estudo de 2018 do Observatório da Violência do Rio Grande do Norte (Obvio) tentou responder essa pergunta. Entre 2011 e 2018, cerca de 93% delas eram homens, 85% eram pretas ou pardas, 49% tinham entre 18 e 29 anos. Além disso, 31% não tinham sequer completado o ensino fundamental, 54% não exerciam atividade remunerada e 39% ganhavam até dois salários mínimos. Em 2017, o conflito entre Sindicato do Crime e PCC causou um massacre no presídio de Alcaçuz, na cidade de Nísia Floresta, região metropolitana de Natal. Em 14 de janeiro daquele ano, uma briga entre os dois grupos acabou em 27 presos assassinados - todas as vítimas estavam na ala do Sindicato. Dias depois do massacre, o governador da época, Robinson Faria, hoje deputado federal pelo PL, prometeu fechar a unidade prisional. Mas isso nunca aconteceu. No ano passado, a detenção foi alvo de uma vistoria de membros do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT). O cenário era de precariedade e de violações de direitos humanos, como torturas e isolamento forçado, segundo um relatório do órgão a ser publicado nos próximos dias. "No Rio Grande do Norte, o sistema prisional funciona a partir da prática sistemática de torturas físicas e psicológicas", afirmou Bárbara Coloniese, perita do MNPCT, em entrevista ao g1. "Trata-se de uma engrenagem de falta de alimentação, desassistência em saúde e superlotação". Em entrevista nesta quinta-feira, a governadora Fátima Bezerra afirmou que as denúncias serão apuradas “por meio de uma investigação profunda”. “Nosso governo jamais compactuará com nenhuma medida de arbítrio. Temos feito um esforço grande no sentido de avançar com projetos de ressocialização, na área de educação, na área de preparação para o trabalho, que inclusive é referência a nível nacional”, disse. Para o advogado criminalista Gabriel Bulhões, professor de Direito Penal e ex-presidente da Comissão de Advocacia Criminal da OAB-RN, a situação precária dos presídios do Estado pouco mudou desde o massacre em Alcaçuz. “O governo do Estado tomou medidas para melhorar a ressocialização, a disciplina e o atendimento, mas foram medidas paliativas que não resolveram o problema crônico de violações de direitos humanos. Se em uma cela cabem quatro pessoas mas abriga 10, não adianta você criar programas de leitura para diminuir a pena dos detentos”, diz. Segundo Bulhões, a superlotação e a precariedade dos presídios “fornecem mão de obra barata para as facções”. “Digamos que João foi preso por um crime não violento. Ele já entra na prisão devendo papel higiênico e escova de dentes para a facção do pavilhão onde foi parar. As dívidas só crescem. Quando ele sai, está preso à facção, e tem de cometer outros crimes para pagar o que deve”, afirma o advogado criminalista. Para o advogado Diego Tobias, presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-Mossoró, os crimes nas ruas “explodem” quando a situação dos presídios fica insustentável. “Nós repudiamos veementemente esses ataques, porque não é a melhor forma de reivindicar melhorias. Para isso, há corregedoria, ouvidoria e comissões de direitos humanos. Mas é inegável que o sistema carcerário é um problema crônico do Rio Grande do Norte, e que precisa de uma resposta enérgica do governo”, diz.
2023-03-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn4rjlllyjvo
brasil
Colapso de bancos nos EUA e crise no Credit Suisse podem se alastrar pelo mundo?
Três crises envolvendo grandes bancos em pouco mais de uma semana abalaram mercados e despertaram um sinal vermelho entre autoridades monetárias em todo o planeta. Apesar de as crises serem localizadas — problemas em balanços e saques em massa por correntistas — qualquer crise em um banco tem potencial para contaminar todas as outras instituições financeiras do país ou até no exterior. Isso acontece porque os bancos emprestam dinheiro entre si — portanto a quebra de uma instituição pode gerar problemas financeiros para as demais. Analistas destacam que quando um sentimento de medo se espalha entre correntistas de diversos bancos, pode haver uma corrida em massa de clientes para sacarem os seus depósitos — algo que levaria a uma quebradeira mais ampla no setor, com consequências para todas as economias. Nesta semana, diante das notícias sobre os problemas nos bancos, o presidente dos EUA, Joe Biden, anunciou medidas para tranquilizar os americanos preocupados com o sistema bancário. No anúncio, ele disse: "Seus depósitos estarão lá quando vocês precisarem deles." O primeiro problema aconteceu na semana passada, nos Estados Unidos, com o colapso do Silicon Valley Bank, o 16º maior credor do país. Dois dias depois, autoridades anunciaram uma intervenção no Signature Bank de Nova York . Esta semana foi a vez do gigante suíço Credit Suisse, cujas ações desabaram 24% na quarta-feira (15/3), depois que o Banco afirmou ter encontrado "fraquezas" em seus relatórios financeiros. Os temores de uma crise bancária mais ampla provocaram fortes quedas nas bolsas de valores de todo o mundo na quarta-feira. As autoridades monetárias de EUA e Suíça reagiram rapidamente para que o problema localizado das instituições não se tornasse uma crise geral — com corrida a diversos bancos em diversos países. O Credit Suisse tomará empréstimos de até 50 bilhões de francos suíços (US$ 54 bilhões ou R$ 285 bilhões) do banco central do país para reforçar suas finanças. O banco central da Suíça disse que o Credit Suisse tem dinheiro suficiente para não quebrar e alertou que está pronto para intervir caso seja necessário. O banco central dos EUA foi forçado a intervir para evitar uma corrida aos depósitos bancários à medida que o pânico se espalhava. Nesta quinta-feira (16/03), diante dos anúncios dos bancos centrais, os mercados mundiais mostravam recuperação. O economista Nouriel Roubini — que ficou famoso por alertar o mundo para a crise financeira em 2008, que começou com a quebra do banco americano Lehman Brothers — disse à BBC que a possível quebra de um banco como o Credit Suisse teria consequências graves para a economia global. O banco é considerado por muitos como "grande demais para quebrar" — um termo usado para instituições financeiras cujas falências poderiam ameaçar a economia global. "O Silicon Valley Bank era apenas um banco de ativos de US$ 200 bilhões e causou efeitos cascata nos mercados financeiros globais, enquanto o Credit Suisse é um banco de ativos de US$ 700 bilhões, então um colapso do Credit Suisse teria um efeito muito mais sistêmico e contagioso na economia e nos mercados financeiros", disse Roubini à BBC. "As reservas de caixa do banco podem ser fortes, mas no ano passado eles perderam cerca de 100 bilhões de francos suíços (US$ 107 bilhões) em depósitos", afirmou Robini. "Sempre que um banco perde depósitos — e isso pode acontecer da noite para o dia — ele pode entrar em colapso porque está ficando sem dinheiro, então é preciso vender ativos líquidos, o que provoca a falência. Foi o que aconteceu com o Silicon Valley Bank. Isso pode acontecer até no caso do Credit Suisse. Eu diria que seria outro 'momento Lehman' no mundo, porque esse banco é enorme, é global e isso teria efeitos sistêmicos." Larry Fink, o fundador da maior gestora de ativos do mundo, a Blackrock, disse que é possível que vejamos uma "crise lenta" que pode arrastar centenas de pequenos bancos para a falência, como a crise de poupança e empréstimos da década de 1980, quando mais de mil bancos pequenos faliram nos EUA. Os problemas financeiros do Credit Suisse não ficaram circunscritos apenas às autoridades monetárias da Suíça. Um ex vice-diretor do Banco da Inglaterra disse à BBC que os bancos centrais de Suíça e EUA estão sinalizando aos mercados em todo o mundo que esses problemas serão contidos localmente, antes que possam se alastrar pelo mundo. John Gieve disse que, no caso do Credit Suisse, isso provavelmente será suficiente para impedir que a crise do banco se espalhasse para outros setores e países. "O que vimos da noite para o dia é o banco central suíço dizendo 'não vamos deixar isso virar um colapso caótico'", disse Gieve à BBC. "Não sei o que o futuro reserva para o Credit Suisse, mas até agora eles ainda estão vivos e parece que o banco central suíço garantirá que estejam vivos por tempo suficiente para reorganizarem seus negócios para o futuro." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O Credit Suisse, fundado em 1856, enfrentou uma série de escândalos nos últimos anos, incluindo acusações de lavagem de dinheiro, alegações de espionagem e pedidos de demissão no alto escalão. O banco teve prejuízo em 2021 e 2022, e avisou seus acionistas de que não previa voltar a dar lucros até o ano que vem. A divulgação do banco na terça-feira (14/3) sobre "fraqueza material" em seus balanços financeiros renovou as preocupações dos investidores. Daniel Davies, diretor-gerente da Frontline Analysts e ex-analista bancário do Credit Suisse, disse que a "base de clientes milionários e bilionários do banco parece ter chegado ao fim de sua tolerância e eles têm retirado dinheiro do banco nos últimos seis meses em um ritmo cada vez maior". Segundo o analista, a situação no Credit Suisse é preocupante o suficiente para fazer com que o Banco da Inglaterra faça sondagens junto ao Banco Central da Suíça sobre as perspectivas da crise no banco. "Porque a natureza dessas crises é que, quando você tem uma corrida em massa por saques, isso funciona como um tsunami — não há nada que as pessoas possam fazer pode pará-la. A única coisa que você pode fazer é impedir isso antes que se transforme em uma corrida aos bancos e as únicas pessoas que podem fazer isso são as que trabalham nos bancos centrais." A tensão aumentou ainda mais depois que o maior acionista do Credit Suisse, o Saudi National Bank, disse que não compraria mais ações do banco suíço por motivos regulatórios. Os primeiros-ministros da Espanha e da França se pronunciaram em uma tentativa de aliviar os temores. O colapso do Silicon Valley Bank também alimentou preocupações sobre o valor dos títulos mantidos pelos bancos, já que o aumento das taxas de juros tornou esses títulos menos valiosos. O Silicon Valley Bank era especializado em empréstimos para empresas de tecnologia. Ele foi fechado por reguladores dos EUA que apreenderam seus ativos na sexta-feira. Essa foi a maior quebra de um banco dos EUA desde a crise financeira de 2008. O banco estava tentando levantar dinheiro para cobrir uma perda com a venda de ativos afetados por taxas de juros mais altas nos EUA. A notícia dos problemas levou uma corrida dos clientes para sacar fundos, criando uma crise de fluxo de caixa. No domingo, as autoridades americanas também assumiram o controle do Signature Bank em Nova York, que tinha muitos clientes envolvidos com criptomoedas e era vista como a instituição vulnerável a esse tipo de saques em massa. Analistas estão divididos sobre qual será o impacto dos problemas bancários desta semana em toda a economia global — mesmo que não haja uma corrida aos bancos. A economia global vive um momento de dificuldades — com grandes aumentos de preços em diversas partes do planeta (como EUA, Europa e Brasil). Desde o ano passado, as autoridades monetárias vêm respondendo a essa crise com aumento das taxas básicas de juros. Juros mais altos costumam provocar queda na inflação. Mas taxas elevadas também podem ter efeitos adversos na economia, por aumentarem os custos de investimentos e empréstimos — com potencial para gerar desemprego e recessão. Algumas economias, como a do Reino Unido, podem até mesmo entrar em recessão este ano. Economistas no mundo inteiro e também no Brasil estão debatendo quando o recente ciclo de alta de juros deve chegar ao fim — e quando começará o movimento de corte dos juros. O ciclo de alta derrubou bolsas em todo o mundo e afetou diversos setores econômicos — sobretudo de tecnologia, onde houve demissões em massa em muitas empresas. Alguns analistas acreditam que as turbulências dos bancos desta semana farão com que o Banco Central americano interrompa o ciclo de alta dos juros, para dar um certo "alívio" à economia global neste momento de estresse. "À luz do estresse no sistema bancário, não esperamos mais que o FOMC [comitê do Federal Reserve americano] decida aumentara juros em sua próxima reunião", afirmou em nota o banco Goldman Sachs. A próxima reunião das autoridades monetárias americanas sobre os juros acontece na quarta-feira da próxima semana. No mesmo dia, as autoridades brasileiras também se reunirão para decidir sobre a Selic, a taxa básica de juros da economia brasileira. - Este texto foi publicado em
2023-03-16
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd12ykk0pv5o
brasil
O que explica recorde histórico de produção de cocaína no mundo
A produção global de cocaína atingiu níveis recordes à medida que a demanda se recupera após restrições impostas devido à covid, segundo novo relatório. O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime informou que o cultivo de coca aumentou 35% entre 2020 e 2021, chegando a níveis recordes. Os resultados apontam que novos centros de tráfico surgiram na África Ocidental e Central. O relatório também diz que os traficantes estavam usando os serviços postais internacionais com mais frequência para enviar drogas aos consumidores. Fim do Matérias recomendadas O documento destaca um aumento nos países da África Ocidental no uso de "serviços postais bem estabelecidos e com operação global, bem como empresas de compras menores" usadas para contrabandear quantidades de cocaína para a Europa e outros locais. No geral, o relatório aponta que a Europa e a América do Norte são os maiores mercados de cocaína, seguidos pela América do Sul, Central e Caribe. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Embora o relatório diga que os mercados na África e na Ásia "ainda são limitados", Ghada Waly, da ONU, disse que o potencial de expansão desse mercado é uma realidade perigosa. O aumento da produção foi resultado de uma expansão no cultivo de coca, bem como de melhorias na conversão da coca em cocaína em pó, segundo o relatório. O documento aponta que o surto de covid-19 teve um efeito "perturbador" nos mercados de drogas, já que as viagens internacionais foram severamente reduzidas. A demanda por cocaína caiu quando boates e bares foram fechados durante os confinamentos. "No entanto, os dados mais recentes sugerem que essa queda teve pouco impacto nas tendências de longo prazo", diz o relatório. "A oferta global de cocaína está em níveis recordes." Sobre o Brasil, o relatório menciona que houve um aumento nas mortes relacionadas à cocaína durante a pandemia e diz que é possível que uma “mudança na dinâmica do tráfico tenha resultado em um aumento na disponibilidade de cocaína no país e intensificado os padrões de uso”. Segundo a ONU, a pandemia afetou o comércio da cocaína no Brasil, tanto do lado da oferta quanto da demanda. Diante de obstáculos logísticos, aponta o relatório, os traficantes recorreram cada vez mais a aeronaves para levar a cocaína para o Brasil, levando a um aumento geral nas quantidades que entram no país. Mas grupos criminosos parecem ter tido dificuldades para coordenar o trânsito da droga dentro do Brasil para portos no Atlântico, ainda de acordo com o relatório. E vários indicadores mostram que o nível de saída de cocaína do país caiu. Outras descobertas importantes divulgadas pela ONU incluem:
2023-03-16
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cpw9v8p6qz9o
brasil
O arcabouço fiscal de Fernando Haddad que se tornou primeira grande batalha de Lula no Congresso
Agentes do mercado e políticos aguardam ansiosos o anúncio prometido pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, sobre o chamado "novo arcabouço fiscal". A expectativa é de que ele seja anunciado até o final deste mês. O nome complicado pode ser traduzido, de forma simples, como um conjunto de regras que vai nortear a forma como o governo federal vai administrar as contas públicas, historicamente, um dos calcanhares de Aquiles dos últimos governos. O anúncio ainda em março antecipa em cinco meses o prazo que o governo tinha para apresentar a sua proposta de novo regime fiscal. Em dezembro do ano passado, o Congresso Nacional aprovou a chamada emenda constitucional da transição que determinou que o governo tinha até agosto para levar uma nova proposta para o Parlamento. Apesar de Haddad afirmar que o novo conjunto de regras é "consistente", o tema é visto com preocupação por agentes do mercado e já é considerado como a primeira grande batalha que Lula deverá enfrentar no Congresso Nacional. Um desafio que pode servir de termômetro para aferir o tamanho de sua base parlamentar e a habilidade da sua equipe de articuladores políticos. Fim do Matérias recomendadas À espera pelo anúncio das novas regras, a BBC News Brasil entrevistou três especialistas no assunto para responder quatro principais perguntas sobre o tema: O economista Gabriel Leal de Barros, sócio e economista-chefe da consultoria Ryo Asset, explica que o Brasil tem uma série de regras fiscais que determinam como o governo pode gastar os recursos públicos e como ele deve gerir a dívida pública de forma que o Estado brasileiro tenha condições de honrar seus compromissos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Entre elas está a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), aprovada em 2000, durante o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Outra regra é a que ficou conhecida como "Teto de Gastos", aprovada em 2016, durante a gestão de Michel Temer (MDB), que determinava que as despesas só poderiam crescer de acordo com a variação da inflação. Nos últimos, anos, porém, mecanismos como o teto de gastos viraram alvo de críticas. Por um lado, houve questionamentos por ela, supostamente, "engessar" os gastos públicos, limitando a quantidade de recursos injetados em uma determinada área. De outro, a regra foi criticada por sua fragilidade, uma vez que, durante a gestão de Jair Bolsonaro (PL), foram aprovadas propostas de emenda constitucional (PECs) que abriram brechas na norma, como a chamada PEC dos Precatórios, que flexibilizou o teto de gastos para acomodar gastos com o pagamento de precatórios devidos. O novo arcabouço fiscal, portanto, seria uma revisão das regras que deverão ser seguidas pelo governo federal nos próximos anos. "O novo arcabouço é uma forma de agregar várias mudanças no ordenamento fiscal brasileiro porque há regras que ou não estão mais sendo aplicadas, ou perderam importância ou que não estão de acordo com a visão do novo governo", disse o economista. Para a diretora-executiva da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal, Vilma da Conceição Pinto, o novo arcabouço fiscal é um conjunto de normas sobre a governança das contas e da dívida pública. "Quando falamos em um novo arcabouço, a gente fala de novos padrões de governança. Trata-se de tentar dar uma perspectiva sobre como o governo vai conduzir a sua política fiscal e equilibrar a qualidade do gasto público com a responsabilidade social", explica. O ministro Fernando Haddad não tem dado detalhes sobre em que consiste o novo regramento desenhado pela equipe econômica do governo. Na terça-feira (14/03), porém, o jornal O Globo publicou uma reportagem informando que um dos pontos previstos no novo arcabouço é zerar o déficit público até 2024. Neste ano, a estimativa da equipe econômica seria deixar o déficit em até R$ 100 bilhões. O déficit público é a diferença entre o que o governo arrecada e o que ele gasta. Ainda de acordo com a reportagem, a proposta elaborada pela equipe de Haddad prevê modelos para que os gastos não superem as receitas e que as receitas sejam de pelo menos 19% do Produto Interno Bruto (PIB). A estimativa é de que as regras propostas sejam apresentadas até o dia 21 deste mês, data da próxima reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central, quando o órgão deve anunciar ou não mudanças na taxa básica de juros, atualmente em 13,75% ao ano. Para os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, o principal motivo de os agentes do chamado mercado estarem "ansiosos" sobre a proposta que o governo deverá apresentar ao Congresso Nacional é a sinalização inicial de que o terceiro governo do presidente Lula seria de uma suposta pouca preocupação com o equilíbrio das contas públicas. Essa preocupação teria tido início ainda durante a campanha eleitoral a partir de declarações do então candidato petista contra o teto de gastos e o sistema financeiro. "Não preciso de teto de gastos, quando você faz uma lei de teto de gastos é porque é irresponsável, porque você não confia no seu taco e não confia no que vai fazer. Quem é que obrigou a fazer esse teto de gastos, foi a Faria Lima? Foi o sistema financeiro? Sem se importar que o povo é dono de uma parte?”, disse Lula em julho do ano passado. Depois de eleito, Lula passou a defender uma expansão dos gastos públicos para, segundo ele, incluir a população pobre no orçamento do governo federal. Lula também articulou a aprovação da emenda constitucional da transição que ampliou o déficit no orçamento de 2023 de R$ 63,7 bilhões para R$ 231,5 bilhões para comportar, em parte, a manutenção em R$ 600 do valor do benefício Auxílio Brasil, que havia sido promessa de campanha de Lula e Bolsonaro. "O mercado está ansioso porque, ainda que seja só narrativa, o governo só tem falado em expansão do gasto e não em corte de despesas. Isso eleva a preocupação dos agentes do mercado sobre a trajetória e a sustentabilidade da dívida", explicou o Gabriel Leal de Barros, da Ryo Asset. Vilma Conceição, do IFI, alerta, também, para a trajetória da relação entre a dívida pública e o PIB, um dos parâmetros para aferir a sustentabilidade das contas públicas de um país. Desde 2015, houve um aumento da dívida do país em relação ao PIB. Naquele ano, a dívida bruta do governo era o equivalente a 57,2% do PIB. Em 2020, no auge da epidemia de covid-19, esse percentual chegou a 86,9%. Em 2022, o percentual caiu para 73,5%. "Hoje, nossa dívida tem uma trajetória insustentável. O novo arcabouço tem que indicar como é que o governo vai conduzir a dívida e trazê-la para parâmetros mais equilibrados e sustentáveis", disse. E o que o mercado espera do novo arcabouço fiscal? Vilma da Conceição Pinto, do IFI, explica. "Pra que essa regra seja crível, ela precisa ser simples, flexível, transparente e aplicável. Tem que ser de simples compreensão, transparente e aplicável para que não se transforme em uma letra morta", diz a especialista. "Não adianta a regra ser complicada ou não haver mecanismos de obrigar a sua aplicação. Se o mercado não tiver clareza sobre como ela irá funcionar, os efeitos podem ser negativos", afirma Gabriel Leal de Barros. Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil também afirmam que, a depender das regras fiscais apresentadas pelo governo, elas poderão sinalizar ou não para uma redução da taxa básica de juros em vigor no país. Em resumo: se o novo arcabouço indicar que haverá mais controle sobre os gastos, a tendência seria de redução da taxa de juros. Do contrário, o mercado reagiria a uma percepção de maior risco sobre as contas públicas, pressionando os juros para cima. Os juros estabelecidos pelo Banco Central têm sido um dos pontos mais criticados por Lula na área econômica. Segundo ele, o atual patamar da taxa (13,75%) afasta investidores e diminui a atividade econômica, afetando, por exemplo, a geração de empregos. O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, por sua vez, vem afirmando que os juros estão altos, entre outros motivos, por conta do quadro das contas públicas. Em fevereiro, Campos Neto voltou a defender a disciplina fiscal durante uma sessão solene no Congresso Nacional. "Hoje, o que a gente precisa concentrar é em ter uma disciplina fiscal, entendendo que precisamos ter um olho mais especial no social. Quanto mais transparente e eficiente o público for, mais aptos seremos para captar recursos privados", disse. Para Manoel Pires, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV) e da Universidade de Brasília (UnB), a depender das regras que o governo apresentar, o mercado pode reagir positiva ou negativamente, afetando, por exemplo, a taxa de juros. "Em um ambiente de maior incerteza, os investidores cobram um maior prêmio de risco, que tem impacto nos juros. Se o arcabouço fiscal sinalizar com redução do déficit, o mercado vai ficar menos pressionado e isso abrirá caminho para reduzir a taxa de juros", disse Manoel Pires. "O governo precisa sinalizar com esse novo arcabouço que vai conduzir as contas públicas de forma sustentável. E aí isso gera impacto no curtíssimo prazo reduzindo o risco e gera condições ou a percepção de que a taxa de juros pode começar a cair", explica Vilma Conceição. Na avaliação dos especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, aprovar o novo arcabouço fiscal vai ser a primeira grande "batalha" de Lula no Congresso Nacional por alguns motivos. O primeiro deles é por motivos cronológicos. Se o novo arcabouço for apresentado ao Congresso em março, como planeja a equipe econômica do governo, sua tramitação deve começar antes da Reforma Tributária, outra proposta cara ao atual governo Lula. Neste aspecto, o relógio corre contra o governo uma vez que, se o novo arcabouço não for aprovado neste ano, o orçamento de 2024 terá que seguir as regras fiscais antigas, ou seja: o governo Lula terá que se submeter ao teto de gastos que tanto criticou. O segundo motivo é político. "A aprovação do novo arcabouço vai ser o primeiro grande teste da base política do governo Lula e vai exigir muita articulação. Eu avalio que é mais complicado do que aprovar a reforma tributária porque nada impede o governo de adiar a reforma por alguns meses. O arcabouço, não", diz o economista Manoel Pires. "O arcabouço é como se fosse o Plano Real do Lula. Algumas pessoas vão dizer que estou exagerando, mas não acho que seja o caso. Essas regras serão fundamentais para ditar o futuro do governo, como o mercado vai reagir a ele e vão demandar muita negociação com o Congresso", disse o economista Gabriel Leal de Barros. "Em alguma medida, a aprovação do arcabouço pode criar condições melhores ou piores para a aprovação da reforma tributária", completou Barros. A preocupação sobre a capacidade de negociação e o tamanho da base parlamentar do governo tem sido uma constante nos corredores do Congresso Nacional. Apesar de vencer Bolsonaro nas urnas, Lula não conseguiu eleger uma bancada no Parlamento capaz de lhe dar uma maioria folgada. O PL, partido de Bolsonaro, foi a legenda que elegeu o maior número de deputados federais, por exemplo. Para ampliar sua base, Lula distribuiu ministérios para partidos aliados e tentou se aproximar de legendas que oscilaram entre ele e Bolsonaro, como o União Brasil, que tem três ministérios, mas ainda não firmou posição oficial a favor do governo do petista. Mesmo assim, ainda não há certeza sobre se Lula conseguirá contar com uma base capaz de aprovar matérias importantes para o seu governo. No dia 6 de março, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL) disse que Lula não tinha votos suficientes para aprovar seus projetos. "Hoje, o governo ainda não tem uma base consistente nem na Câmara, nem no Senado, para enfrentar matérias de maioria simples, quanto mais matéria de quórum constitucional", disse Lira.
2023-03-16
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c884qpzj7dxo
brasil
População brasileira é a 5ª mais feliz do mundo, diz pesquisa
Os brasileiros nunca foram tão felizes, mas apenas quatro em cada dez estão satisfeitos com a economia, segundo uma pesquisa do instituto Ipsos que avaliou a felicidade da população em 32 países. No Brasil, 83% dos entrevistados consideram-se muito felizes ou felizes — uma alta de 20 pontos percentuais em relação ao último levantamento, feito em dezembro de 2021, quando o índice foi de 63%. No mundo, a percepção de felicidade também subiu, de 67% para 73%. No caso brasileiro, foi o melhor resultado desde que a pesquisa começou a ser feita, em dezembro de 2011 — até então, o pico de felicidade ocorrera em maio de 2013, quando 81% dos entrevistados se consideravam muito felizes ou felizes. O Brasil foi o quinto colocado do ranking global de felicidade, atrás apenas da China (91%), Arábia Saudita (86%), Holanda (85%) e Índia (84%). Em compensação, os cidadãos menos felizes são os húngaros (50%), sul-coreanos (57%) e poloneses (58%). Fim do Matérias recomendadas "As pessoas estão vendo este ano como o encerramento de um capítulo extremamente desafiador em nossa história: a covid-19, ainda que a pandemia não tenha sido totalmente erradicada, seu impacto é infinitamente menor do que nos últimos anos. Esse sentimento reforça a percepção de felicidade", diz Marcos Calliari, CEO da Ipsos no Brasil. A pesquisa, intitulada Global Happiness Study ou Estudo Global da Felicidade, foi feita online com 22.508 mil entrevistados com idades entre 16 e 74 anos em 32 países, entre 22 de dezembro de 2022 e 6 de janeiro de 2023. Foram 1.000 entrevistados no Brasil e a margem de erro é de 3,5 pontos para mais ou para menos. O Brasil também foi o quarto país com o maior crescimento na percepção de felicidade (20 pontos percentuais), atrás apenas de Colômbia, Chile e Argentina, que apresentaram crescimento de 26 pontos percentuais no mesmo período. E a América Latina, a região onde a percepção de felicidade mais subiu em todo o mundo. Já os britânicos, franceses e poloneses foram os que ficaram menos felizes nessa mesma base de comparação. A queda foi de 13 pontos percentuais para o Reino Unido e sete pontos percentuais para França e Polônia ante dezembro de 2021. Contudo, em relação aos últimos dez anos (maio de 2013), o índice de felicidade dos brasileiros cresceu apenas dois pontos percentuais. O ponto mais baixo da série foi em 2017, quando apenas 56% dos entrevistados afirmaram estar felizes ou muito felizes. Já entre os anos de 2019 e 2021, o índice ficou na casa dos 60%. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Segundo a pesquisa, países de renda média, como o Brasil, apresentaram um aumento na percepção da felicidade em comparação aos de renda alta, como França ou Reino Unido. Casados, com mais dinheiro e com maior nível educacional são, em média, mais felizes. Não houve diferença significativa na percepção de felicidade entre homens e mulheres. Mas a sondagem também mostrou que a satisfação com aspectos da vida varia conforme o desenvolvimento econômico de um país. Segundo o levantamento, cidadãos de países de renda mais alta tendem a ser mais satisfeitos com segurança, posses materiais, qualidade de vida e emprego. Por outro lado, aqueles que vivem em nações de renda média demonstram maior satisfação com fé/vida espiritual, bem-estar físico, aparência, senso de controle e propósito, e sentir-se valorizado. No mundo, os níveis de satisfação são mais altos com relacionamentos, filhos, cônjuge, parentes, amigos, colegas de trabalho e natureza e com educação e informação. E mais baixos com a situação do país, finanças pessoais, vida romântica/sexual e atividade física. No caso do Brasil, especificamente, de todos os aspectos analisados para medir o grau de satisfação com a vida, o maior índice foi registrado na relação com o cônjuge — 78% dos brasileiros disseram estar satisfeitos ou muito satisfeitos. Já o pior foi com a situação econômica do país — apenas 37% dos entrevistados afirmaram estar satisfeitos ou muito satisfeitos. Um índice semelhante — 43% — foi registrado diante da situação social e política do Brasil. Além disso, somente 58% dos brasileiros afirmaram que possuem amigos próximos ou parentes com quem poderiam contar em caso de necessidade. O país é o penúltimo colocado do ranking neste quesito, ficando atrás apenas do Japão (54%). Holanda (82%), Indonésia e Portugal (ambos com 79%) estão no topo da lista. A média global é de 72%. A pesquisa indicou ainda que, globalmente, as pessoas estão mais pessimistas quanto ao futuro dos relacionamentos. Aumentou em duas vezes o número de entrevistados que considera que, nos próximos dez anos, vai ficar mais difícil para solteiros encontrar um par romântico, para casais manter um relacionamento feliz e para as pessoas ter amizades com quem possam contar. O Brasil, no entanto, é um ponto fora da curva. Em todos esses três aspectos, os brasileiros demonstraram maior otimismo quanto ao futuro dos relacionamentos. Segundo a sondagem, o pessimismo é maior entre as gerações dos "baby boomers" (nascidos após a 2ª Guerra Mundial até a metade dos anos 60) e X (nascidos entre 1965 e 1980), os de menor nível educacional e mais ricos, e aqueles que não são casados. E mais pronunciado em países de renda mais alta.
2023-03-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cye4ll78l3wo
brasil
Ação na Inglaterra pede R$ 230 bi em indenizações para 700 mil vítimas do desastre de Mariana
Mais de sete anos depois do desastre de Mariana — quando o rompimento de uma barragem de mineração matou 19 pessoas e inundou um distrito inteiro no interior de Minas Gerais — as vítimas seguem buscando reparação na Justiça. A barragem pertence à empresa Samarco — que é controlada por duas gigantes da mineração: a brasileira Vale e a anglo-australiana BHP. Um escritório de advocacia em Londres anunciou nesta quarta-feira (15/03) que mais de 700 mil vítimas do desastre no Brasil estão buscando indenizações na Justiça inglesa. O valor total de indenização pedido pelas vítimas é um dos maiores do mundo para este tipo de processo: mais de US$ 44 bilhões (ou R$ 230 bilhões). O valor é quase vinte vezes maior do que o desembolsado até junho de 2022 pela Fundação Renova — entidade que foi criada para pagar compensações e lidar com as consequências dos danos. Fim do Matérias recomendadas O escritório de advocacia Pogust Goodhead vinha desde 2018 tentando processar a BHP na Justiça inglesa, já que a multinacional é listada na bolsa de Londres. Já a BHP argumentava que seria desnecessário responder a qualquer processo no Reino Unido, pois a empresa já estava sendo acionada no Brasil. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Inicialmente a Justiça inglesa decidiu em favor da mineradora. Mas em julho do ano passado, um tribunal de apelação reverteu a decisão e aceitou o processo contra a mineradora. "Nossa conclusão é simplesmente que os recursos disponíveis no Brasil não são tão obviamente adequados que se possa dizer que e inútil prosseguir com os processos [na Inglaterra]", disse a decisão unânime assinada pelos juízes na ocasião. O julgamento da BHP deve acontecer em abril de 2024. A decisão desencadeou uma briga jurídica entre as duas mineradoras: a BHP entrou na Justiça inglesa para incluir a Vale no processo por indenização. Já a mineradora brasileira argumenta que não deve ser incluída no processo, já que não estaria dentro da jurisdição britânica. Há uma audiência marcada para este mês sobre a disputa entre as duas mineradoras. A BBC News Brasil entrou em contato com a Vale e com a BHP. "A BHP refuta integralmente os pedidos formulados pelos autores da ação movida no Reino Unido e continuará a se defender no caso. O processo movido na Inglaterra é desnecessário por duplicar questões já cobertas pelo trabalho contínuo da Fundação Renova e/ou objeto de processos judiciais em andamento no Brasil", afirma nota da mineradora. "A ação no Reino Unido ainda se encontra em fase preliminar. Os detalhes completos e valores relacionados aos novos requerentes e seus pleitos ainda não foram disponibilizados ao Tribunal inglês ou à BHP. A maioria dos danos pleiteados não foi de qualquer forma quantificada, mas as contingências relacionadas ao processo inglês estão capturadas nas nossas demonstrações financeiras." "A BHP Brasil segue atuando em estreita colaboração com a Samarco e a Vale para apoiar os programas de reparação e compensação implementados pela Fundação sob a supervisão dos tribunais brasileiros. Até o final do ano de 2022, tais programas custearam cerca de R$ 28,07 bilhões em trabalhos de compensação financeira e reparação. Isso inclui R$ 13,5 bilhões pagos em indenizações e auxílio financeiro emergencial a mais de 410 mil pessoas. Além disso, cerca de 70% dos projetos de reassentamento já foram finalizados." A Vale se pronunciou afirmando que "não aceita que esteja sujeita à jurisdição do tribunal inglês e pretende contestar essa competência de foro, bem como a alegada responsabilidade em conexão com o processo no Reino Unido". "A Companhia reafirma seu compromisso com a reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão (...). Até agora, mais de 403 mil pessoas foram compensadas, com mais de R$ 24,73 bilhões destinados a ações realizadas pela Fundação Renova." A demora para o processo andar na Justiça britânica fez com que o valor da indenização e o número de vítimas aumentasse ao longo dos cinco anos. Em 2020, o escritório de advocacia representava 200 mil vítimas, que pediam US$ 6 bilhões em reparação. Agora são mais de 700 mil pessoas reivindicando US$ 44 bilhões das mineradoras como compensação pela tragédia. Além do ressarcimento por seus prejuízos, as vítimas pedem correções pelos juros dos sete anos desde o rompimento da barragem. “A compensação financeira não fará nossos clientes voltarem para tempos mais saudáveis e prósperos de antes nem jamais vai reparar integralmente os danos ao meio ambiente. No entanto, se a BHP tivesse pagado a compensação de forma justa e em um prazo razoável, eles teriam pelo menos feito a coisa certa e teriam vivido de acordo com os valores corporativos ESG (Environmental, Social and Governance) que tanto defendem", afirmou em nota Tom Goodhead, diretor do escritório de advocacia que representa a ação de grupo. "Em vez disso, como resultado de tentativas contínuas de frustrar a Justiça, a mineradora e seus investidores enfrentam agora passivos financeiros múltiplos mais altos do que deveriam e prolongam a agonia das vítimas”, acrescentou ele. Segundo o escritório de advocacia, entre os novos autores estão membros das comunidades indígenas Guarani, Tupiniquim e Pataxos, além de quilombolas. Eles se juntam aos membros da comunidade indígena Krenak, que participam da ação inglesa desde a origem e cujas terras ficam ao longo das margens do Rio Doce. As pessoas que pedem indenização moram em 46 municípios de quatro Estados — Minas Gerais, Espírito Santo, Bahia e Rio de Janeiro. O desastre do rompimento da barragem do Fundão, localizada no subdistrito de Bento Rodrigues, a 35 km do centro de Mariana (MG), foi o maior do mundo envolvendo barragens de rejeitos de mineração. O colapso da barragem provocou 19 mortes e despejou mais de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério no meio ambiente, contaminando a bacia do Rio Doce, nos Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, até alcançar o oceano Atlântico. Após a publicação desta reportagem, a BHP enviou nota à BBC News Brasil. Segue a íntegra do posicionamento da empresa: "A BHP refuta integralmente os pedidos formulados pelos autores da ação movida no Reino Unido e continuará a se defender no caso. O processo movido na Inglaterra é desnecessário por duplicar questões já cobertas pelo trabalho contínuo da Fundação Renova e/ou objeto de processos judiciais em andamento no Brasil. A ação no Reino Unido ainda se encontra em fase preliminar. Os detalhes completos e valores relacionados aos novos requerentes e seus pleitos ainda não foram disponibilizados ao Tribunal inglês ou à BHP. A maioria dos danos pleiteados não foi de qualquer forma quantificada, mas as contingências relacionadas ao processo inglês estão capturadas nas nossas demonstrações financeiras. A BHP Brasil segue atuando em estreita colaboração com a Samarco e a Vale para apoiar os programas de reparação e compensação implementados pela Fundação sob a supervisão dos tribunais brasileiros. Até o final do ano de 2022, tais programas custearam cerca de R$ 28,07 bilhões em trabalhos de compensação financeira e reparação. Isso inclui R$ 13,5 bilhões pagos em indenizações e auxílio financeiro emergencial a mais de 410.000 pessoas. Além disso, cerca de 70% dos projetos de reassentamento já foram finalizados."
2023-03-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cndr11z684ro
brasil
'Pensei que estava louca': doença impede mulher de produzir lágrimas
Foi em 2008, durante a gestação do segundo filho, que a estudante de enfermagem Rafaela Santana Oliveira Silva, hoje com 42 anos, começou a ter sintomas como queda de cabelo, coceira pelo corpo, fadiga e sentir os olhos e a boca secos. No entanto, a mulher, que mora em Salvador (BA), acabou se dedicando aos cuidados com o filho recém-nascido e deixou de lado os cuidados com a saúde. Quatro anos mais tarde, Rafaela notou que os sintomas, ao invés de melhorarem, estavam se agravando e passou a buscar um diagnóstico. Foram oito anos e dezenas de consultas com os mais variados especialistas – dentista, oftalmologista, dermatologista e até mesmo neurologista. Ninguém chegava a um consenso. "Conforme o tempo ia passando, meus sintomas só pioravam. Eu não produzia mais lágrima e nem saliva, então eu não conseguia chorar e para me alimentar precisava ingerir líquido junto. Comecei a ter dores muito fortes nas juntas e fadiga constante que impediam de fazer atividades simples do dia a dia", detalha Rafaela. Nessa época, devido às dores intensas, a estudante conta que teve a mobilidade reduzida e se locomovia com dificuldade. As dores a fizeram evitar sair de casa. "Fui diagnosticada com fibromialgia, mas eu sabia que não era só isso. Que eu tinha alguma doença a mais. Também cheguei a ser diagnosticada com lúpus, mas os médicos estavam errados", recorda. Fim do Matérias recomendadas Rafaela afirma que enquanto ia de médico em médico, em busca de um diagnóstico, chegou a pensar estar com problemas psiquiátricos, já que por muitas vezes ouviu das pessoas e dos próprios profissionais que "não era possível ela ter tantas dores" como dizia. "Eu sentia dor no meu corpo todo e de tanto falarem que não era possível, eu pensei que estava ficando louca. Que as dores não eram reais e sim psicológicas", recorda. Ela também procurou ajuda psicológica para lidar com a situação. Foi durante uma consulta com um clínico geral, no final de 2019, que foi levantada a hipótese de Rafaela ter a síndrome de Sjögren – doença rara que causa secura da pele, olhos e boca, além de afetar outros sistemas do corpo. "Fui encaminhada ao reumatologista e ele me pediu uma bateria de exames. Seis meses depois veio o diagnóstico: eu tinha síndrome de Sjögren. Eu nunca tinha ouvido falar e não fazia ideia do que era", conta a estudante. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O diagnóstico trouxe alívio, mas também medo. Além de ter que lidar com as dores diárias causadas pela doença, Rafaela afirma que precisou enfrentar o preconceito das pessoas. "Muita gente olha e por eu não ter um sinal físico da doença, por ela ser 'invisível', duvidam que ela realmente existe. As pessoas não entendem a minha fadiga e as dores no corpo. Já tive que mostrar o atestado médico para acreditarem", relata. "É diferente um médico falar e uma pessoa com a doença falar. Por isso tento mostrar um pouco da minha vida e converso muito com outras pessoas que também têm a síndrome. A gente vai se apoiando", diz. A síndrome de Sjögren não tem cura e o tratamento é feito com uma equipe multidisciplinar que inclui reumatologista, oftalmologista e dentista. Para amenizar os sintomas de secura na pele, olhos e boca, ela usa produtos específicos como: enxaguante bucal à base de xilitol para estimular a salivação, uso de colírios específicos diariamente, além de tomar corticoides, imunossupressores e seguir uma alimentação saudável evitando alimentos muito secos. "É uma nova vida, porque os medicamentos causam muitos efeitos colaterais. Um dia você está bem e no outro você está tão fatigado que não consegue levantar da cama. É uma luta diária", conta a estudante. Segundo a Sociedade Brasileira de Reumatologia, a síndrome de Sjögren, também conhecida como síndrome seca, é uma doença rara, crônica e autoimune que tem como principal característica a secura ocular e na boca associada à presença de sinais de inflamação glandular. Os linfócitos (células brancas) invadem alguns órgãos e glândulas, principalmente as lacrimais e salivares, gerando um processo inflamatório que prejudica o funcionamento normal deles. Pacientes com a doença apresentam também secura na pele, nariz e vagina, fadiga, artralgias e artrites. "A pessoa tem sensação de secura, irritação, coceira, vermelhidão, ardor e sensação de areia nos olhos. Pode ocorrer também dificuldade para abrir os olhos pela manhã, visão turva e desconforto ao ler, assistir TV ou ficar por tempo prolongado em frente ao computador. Fatores ambientais como vento, ventilador, ar-condicionado e baixa umidade agravam a situação", explica Keila Monteiro de Carvalho, professora titular de oftalmologia da FCM/Unicamp. Além disso, outros órgãos do corpo, como os rins, pulmões, fígado, pâncreas e sistema nervoso central também podem ser afetados. O surgimento da síndrome de Sjögren é mais comum em mulheres entre 40 e 50 anos e a proporção de mulheres e homens acometidos é de cerca de 9 para 1. Ainda não se sabe o que causa a síndrome de Sjögren e, porque ela só se manifesta na fase adulta. Segundo os especialistas, acredita-se que a doença se desenvolva devido a três fatores principais: genético, ambiental e hormonal (o que explicaria a maior frequência da síndrome nas mulheres). Não existe nenhum exame que, isoladamente, defina o diagnóstico da síndrome de Sjögren. Para o diagnóstico da doença, o médico considera um conjunto de características como: os sintomas, as alterações do exame clínico, os exames realizados por um oftalmologista, os resultados de exames laboratoriais e de imagem, como a ultrassonografia das glândulas salivares, e o resultado de uma biópsia das pequenas glândulas salivares localizadas na face interna do lábio inferior. Não há cura para a síndrome, e o tratamento varia conforme os sintomas apresentados por cada paciente, sendo necessário um acompanhamento multidisciplinar. "A doença tem um quadro clínico bastante variável. Alguns pacientes apresentam apenas sintomas de secura, enquanto outros apresentam graves acometimentos orgânicos, como, por exemplo, o neurológico. Algumas medidas gerais ajudam a diminuir o ressecamento das mucosas: evitar ambientes secos, usar umidificadores; proteger os olhos da luz solar e vento utilizando óculos, não usar lentes de contato, ingerir líquidos adequadamente, passar cremes hidratantes na pele e nos lábios e não fumar, são algumas delas. Já para os acometimentos sistêmicos, podem ser utilizados os glicocorticoides, os imunossupressores e alguns agentes biológicos", explica Sandra Gofinet Pasoto, médica assistente do Serviço de Reumatologia, Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HCFMUSP) e coordenadora da Comissão de Síndrome de Sjögren da Sociedade Brasileira de Reumatologia. Além disso, segundo os especialistas, é necessária uma mudança nos hábitos como evitar o consumo de doces, utilizar sabonetes sem álcool ou perfumes, evitar ficar em ambientes com ar-condicionado ou vento, não usar dispositivos com telas - como computador e celular - por tempo prolongado, por exemplo. "A síndrome de Sjögren requer atenção porque ela pode desencadear outras comorbidades como o acometimento pulmonar, manifestações renais, sistema nervoso periférico e o sistema nervoso central. Outras manifestações, como cefaleia (dor de cabeça), disfunção cognitiva e distúrbio do humor, são muito frequentes também. Manifestações hematológicas se caracterizam por anemias e baixa defesa pela queda de leucócitos. Pericardite, lesão valvar, miocardite e arritmias podem ser manifestações cardíacas. A hipertensão pulmonar ocorre", explica o reumatologista Marco Antônio Araújo da Rocha Loures, presidente da Sociedade Brasileira de Reumatologia.
2023-03-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cpr5zn3je5no
brasil
Facções controlam tráfico e financiam crimes ambientais na Amazônia, diz pesquisador
Professor da Universidade do Estado do Pará (UEPA), Colares Couto até cunhou um termo para explicar essa conexão: narcoecologia. “Há uma relação do tráfico de drogas com crimes ambientais. O narcotráfico atua como parceiro e financiador, porque percebeu que essas redes ilegais são importantes para ampliar recursos e a lavagem de dinheiro”, explicou Couto, em entrevista à BBC News Brasil no último sábado (11/3). Ele é um dos autores do estudo Cartografias das Violências na Região Amazônica, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública no final do ano passado. Um dos dados mais preocupantes da pesquisa é o aumento exponencial das mortes violentas na região amazônica. Entre 1980 e 2019, a taxa de homicídios cresceu 260% nos Estados da região Norte, enquanto no Sudeste esse índice caiu 19%. Fim do Matérias recomendadas Segundo Couto, há várias explicações para a violência, como conflitos fundiários, crescimento de mercados ilegais e, mais recentemente, a presença de facções criminosas tanto regionais como oriundas do Sudeste. Nesse último caso, chama a atenção o crescimento do Primeiro Comando da Capital (PCC), surgido nos presídios de São Paulo, e do Comando Vermelho, do Rio de Janeiro. Segundo o pesquisador, atualmente o PCC organiza e investe nas rotas de tráfico pela Amazônia em uma lógica empresarial - o objetivo, diz, é transportar cocaína até mercados lucrativos na Europa. Já o Comando Vermelho controla territórios e a venda de drogas em grandes cidades e regiões metropolitanas. “A Amazônia é estratégica para o narcotráfico”, diz o professor. Nascido no quilombo Menino Jesus de Petimandeua, em Inhangapi, no Pará, o geógrafo Aiala Colares Couto também milita no movimento negro e coordena o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade do Estado do Pará. Leia abaixo a entrevista. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast BBC News Brasil - O que significa o termo 'narcoecologia'? Aiala Colares Couto - Narcoecologia é um conceito que eu criei como resultado de uma pesquisa realizada entre 2020 e 2021. Neste estudo, analisamos as conexões do narcotráfico com os crimes ambientais. Percebemos que há uma aproximação do tráfico com o mercado de extração ilegal de madeira, com a grilagem de terras e com o garimpo em terras indígenas, sobretudo em Roraima. Entendi que essa relação dinâmica da economia do tráfico contribui para o avanço dos crimes ambientais, como desmatamento, poluição e redução da biodiversidade . Mas essa conexão também contribui para o avanço da força política do próprio narcotráfico, que compreendeu que essas redes ilegais são importantes para ampliar seus recursos ilícitos e a lavagem de dinheiro. BBC News Brasil - Por que a Amazônia é importante para as facções como o PCC? Colares Couto - A Amazônia é estratégica para o narcotráfico, porque é uma região de passagem da cocaína e, mais recentemente, do skunk (um tipo mais forte de maconha). Essas drogas vêm de outros países que fazem fronteira com o Brasil, como Peru e Bolívia, e atravessam a Amazônia até pontos de saída com destino à Europa. Grupos que antes atuavam só no Sudeste, como PCC e Comando Vermelho, ganharam força na região Norte a partir de alianças firmadas dentro do sistema prisional. A transferência de presos de um Estado para outro acabou colocando em contato membros das facções do Sudeste com integrantes de grupos regionais. Isso levou a uma interiorização das facções para diversas regiões amazônicas, e também a uma associação desses grupos com madeireiros e garimpeiros. O tráfico é um parceiro e financiador desses mercados. Em alguns pontos, como em Roraima, as facções expulsaram os antigos garimpeiros e se apropriaram dessa atividade. BBC News Brasil - Você comentou que a Amazônia é uma região de passagem de cocaína que vem de outros países. Por onde essa droga sai do Brasil? Colares Couto - Hoje, um dos principais pontos de exportação de cocaína é o Porto Vila do Conde, em Barcarena, no Pará. Essa droga vai principalmente para a Europa. Em várias das apreensões no porto, a cocaína estava embalada junto com madeira contrabandeada. Esses grupos ganham dos dois lados, com droga e madeira. BBC News Brasil - Mas como o PCC atua nesse transporte? Colares Couto - Existe uma disputa pelo controle do transporte de drogas. Uma das principais entradas da cocaína de origem peruana é o vale do Rio Solimões, que hoje é uma área disputada entre vários grupos, pois não é fácil dominar uma região enorme como essa. É uma operação bem complexa. Antes, esse ponto era controlado pela Família do Norte, que perdeu a disputa para o Comando Vermelho. Atualmente, quem comanda parte dessa rota é um grupo chamado Os Crias, mas o PCC também se faz presente. O que a gente percebeu é que o PCC trabalha mais com a organização dessas rotas de tráfico, tanto que ele tem membros trabalhando nos países vizinhos. Ele tem uma atuação transnacional, em uma lógica empresarial e mais articulada, fazendo a cocaína chegar aos mercados mais lucrativos na Europa. Com o aumento da vigilância contra o tráfico na Europa, a cocaína ficou ainda mais cara. É uma atividade ilícita que gera muito dinheiro. BBC News Brasil - Além do PCC, há outras facções no Norte do país. Como elas se dividem no controle de atividades criminosas? Colares Couto - Como eu disse, o PCC atua de maneira mais empresarial, principalmente em Roraima e em áreas do interior. Mas eu diria que o grupo mais hegemônico na Amazônia é o Comando Vermelho, que controla muitos territórios em uma tática de guerrilha e de guerra urbana. Isso acontece principalmente nas grandes cidades e regiões metropolitanas, como Belém, Altamira e Parauapebas. Aqui, a facção age como milícia, cobrando mensalidade dos comerciantes, pagando propina, mas também controlando a venda de drogas no varejo. Em Manaus, onde a Família do Norte era mais forte, o Comando Vermelho também está se tornando hegemônico. A Família do Norte perdeu muito espaço em Manaus depois de assassinatos e prisões de várias lideranças. Está praticamente extinta. Mas surgiram outros grupos locais, como o Cartel do Norte, os Revolucionários do Amazonas e Os Crias, que são dissidências da Família do Norte, e que não entram em conflito com o Comando Vermelho. BBC News Brasil - Como as facções afetam a vida dos indígenas? Colares Couto - Já houve casos de indígenas que se envolveram com o tráfico, adquiriram dívidas e acabaram assassinados pelo Comando Vermelho. As drogas e o alcoolismo são problemas graves nas comunidades indígenas e quilombolas. Há muitas ameaças e pressões psicológicas, todo tipo de violência imposto por um grupo armado que controla um território. BBC News Brasil - Implantar um sistema de garimpo em regiões remotas, como ocorreu na Terra Indígena Yanomami, não é barato. Custa muito dinheiro levar e instalar as máquinas de extração do ouro. Como as facções participam desse sistema? Colares Couto - Em 2018, houve uma fuga do sistema prisional de Boa Vista. Os detentos se refugiaram em áreas de garimpo. Esses pontos ficam em terras federais, onde só a Polícia Federal, o Ibama e o ICMBio podem entrar. As polícias Militar e Civil, comandadas pelos governos estaduais, não podem atuar nessas áreas. O garimpo virou lugar de refúgio para membros e até lideranças do PCC. Foi então que integrantes da facção começaram a trabalhar com contrabando de ouro, e perceberam que era importante controlar essa atividade. Mas não apenas. Também passaram a controlar as casas de prostituição e a venda de drogas. BBC News Brasil - O número de homicídios nos Estados do Norte cresceu muito nas últimas décadas. O que poderia ser feito para diminuir esse índice? Colares Couto - A região Amazônica é um foco de disputas por terra, uma questão mal resolvida. Um decreto da época da ditadura militar federalizou muitas dessas terras. São áreas da União, e Estados e municípios não têm poder sobre elas. Esses territórios passaram a ser disputados por posseiros e grileiros, estabelecendo conflitos fundiários que se tornaram violentos. É um problema que precisa ser resolvido. Outro ponto é aumentar o efetivo de segurança pública em áreas controladas por facções. A cidade de Altamira (PA), por exemplo, historicamente tem problemas ambientais e de conflitos fundiários. E ela cresceu muito nos últimos anos, atraindo facções como o Comando Vermelho. Outra questão é resolver o problema histórico de demarcação de terras indígenas, e afastar a exploração de garimpeiros e madeireiros. BBC News Brasil - Parte da periferia de Belém chegou a ser controlada por milícias chefiadas por policiais e ex-agentes de segurança pública. Essa situação continua? Colares Couto - As milícias estão mais camufladas agora, não aparecem tanto como antes, mas ainda existem. No bairro do Guamá, por exemplo, temos a presença de sete milícias dividindo o território. É o único bairro na periferia de Belém onde não há pichações do Comando Vermelho proibindo roubos na comunidade. As milícias também se espalharam para cidades da região metropolitana de Belém, como Ananindeua, Santa Bárbara, Benevides e Castanhal.
2023-03-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cje53pd1337o
brasil
Quarto dia de ataques no RN: o que pode estar por trás da onda de violência
Cidades do Rio Grande do Norte registraram ataques criminosos pelo quarto dia consecutivo. De terça-feira (14/3) até sexta-feira, 44 cidades foram alvo de ações coordenadas pela facção criminosa Sindicato do Crime, apontada como responsável pela onda de violência no Estado. O governo do Rio Grande do Norte afirmou que havia sido alertado sobre a possibilidade de ataques e que tomou medidas preventivas. Mas isso não impediu tiros e incêndios em prédios públicos, comércios e veículos, que continuam mesmo depois da chegada da Força Nacional ao Estado. A polícia realizou uma operação para cumprir mandados de busca e apreensão contra integrantes do Sindicato. Fim do Matérias recomendadas Foram presas 72 pessoas até agora, de acordo com o governo estadual. Uma pessoa morreu em confronto com a polícia e duas ficaram feridas nos ataques. Um suspeito de integrar o Sindicato do Crime liderar os ataques foi morto em confronto com a polícia em João Pessoa, na Paraíba, nesta semana. Também foram apreendidas armas, munições, artefatos explosivos, veículos, dinheiro e drogas. De acordo com autoridades ligadas ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e ao governo potiguar, uma trégua temporária foi proclamada entre a facção e outra organização rival, o Primeiro Comando da Capital (PCC), que se aliaram na realização dos ataques. A Força Nacional reforça a segurança no Rio Grande do Norte desde a quarta-feira (15/3). O governo federal afirmou que enviará mais agentes além dos 220 já mobilizados após os ataques continuarem na quinta-feira (16/3). O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino (PSB), autorizou ainda uma força-tarefa de intervenção penitenciária, que atuará por 30 dias nos presídios para "a coordenação das ações das atividades dos serviços de guarda, de vigilância e de custódia de presos". A medida foi tomada em meio a uma crise na qual um dos motivos apontados pelos suspostos autores dos ataques são as más condições do sistema prisional do Estado, algo que foi reforçado por um órgão federal que fez vistorias em prisões locais. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O governo estadual afirmou, por sua vez, que as demandas não podem ser atendidas e acrescentou que os ataques seriam uma retaliação por ações de combate ao tráfico e ao crime organizado e que há indícios de que as ordens para as ações criminosas teriam partido de dentro dos presídios. De acordo com o governo federal, a transferência para fora do Estado, em janeiro, de líderes do Sindicato do Crime também foi um dos motivos dos ataques. A área de inteligência do governo já indicava que uma retaliação era possível por causa dessa transferência. A governadora Fátima Bezerra (PT) reforçou publicamente que a força-tarefa não significa o sistema prisional do Estado esteja sob intervenção federal. "Os presídios do RN encontram-se sob pleno controle da Secretaria Estadual de Administração Penitenciária", disse a governadora em suas redes sociais. Bezerra afirmou que os ataques são "inaceitáveis" e "repugnantes". "|Todo trabalho está sendo feito para que os criminosos sejam presos, julgados e punidos com todo o rigor da lei", disse. A Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (Sesed) do Rio Grande do Norte afirmou que os ataques foram uma retaliação a ações de combate ao tráfico e ao crime organizado. "Acreditamos que, com ações policiais anteriores, há 15 dias, onde houve um enfrentamento da segurança pública em relação a infratores, onde foi apreendida grande quantidade de drogas e armas, isso inquietou a delinquência a enfrentar o sistema de segurança pública", disse o secretário de Segurança Pública e Defesa Social, Francisco Araújo, na terça-feira. Araújo afirmou depois ao portal UOL que morte de lideranças de organizações criminosas em confronto com a polícia poderiam ter motivado os ataques. No entanto, uma convocação - ou “salve”, no jargão criminoso - que circula pelo WhatsApp, supostamente de autoria do Sindicato do Crime, afirma que os ataques seriam uma resposta às condições do sistema prisional do Rio Grande do Norte, descritas como "degradantes". Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil concordam que o sistema prisional do Estado é um dos fatores que podem estar por trás das ações criminosas. “Dizer que o que aconteceu é só uma retaliação é invisibilizar um problema maior", diz a antropóloga Juliana Melo, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e pesquisadora do sistema prisional e da área de segurança pública. "Quanto pior a prisão é, mais violenta é a sociedade. Tudo o que acontece dentro do sistema prisional tem consequências para o que acontece do lado de fora. Nosso sistema prisional é marcado por violação de direitos humanos enormes, e o sistema potiguar consegue ser pior do que outros lugares do Brasil.” O cientista criminal Ivenio Hermes, pesquisador do Observatório da Violência da UFRJ, destaca que foram tomadas algumas medidas tomadas ao longo dos últimos anos para que o poder público reassumisse o controle do sistema prisional do Estado. “A ordens emanadas de dentro das prisões chegavam com facilidade até o lado de fora, onde os criminosos agiam conforme essas orientações. Houve desde então um cerceamento dessas informações, com maior controle de portarias, investimentos em raio-x e segurança, contratações de policiais e investimentos em treinamento, separação das facções”, diz Hermes. No entanto, o pesquisador avalia que não houve um esforço na mesma medida para garantir melhores condições aos detentos. “Mesmo com as melhorias para hermetização do sistema prisional, as melhorias do fator humano ainda estão aquém, então, as demandas por estas melhorias podem estar entre os fatores que causaram essa situação.” A Sesed foi procurada pela BBC News Brasil para comentar o assunto, mas não respondeu até a publicação desta reportagem. Juliana Melo diz que a reforma do sistema prisional do Estado não impediu que os direitos dos presos continuem a ser violados. "Há superlotação, agressões e tortura sistemáticas, privação de alimentos e de remédios, facções rivais continuam nos mesmos pavilhões, o que gera um grande pavor nas famílias dos presos… O fato é que as prisões do Rio Grande do Norte são verdadeiros campos de concentração." Em vistorias a cinco prisões do Estado, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, órgão ligado ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, encontrou evidências de torturas físicas e psicológicas, falta de alimentação, desassistência em saúde e superlotação, entre outras violações dos direitos dos presosm, conforme noticiado pelo G1. Em declarações à imprensa na noite de terça-feira e na quarta-feira, o secretário Francisco Araújo falou pela primeira vez sobre a convocação para os ataques e apontou que as reclamações de detentos das condições do sistema prisional são uma das "hipóteses" para o motivo dos ataques. "Uma liderança de uma organização criminosa foi presa, e ele e outros dizem através de mensagens de WhatsApp que o Estado do Rio Grande do Norte é muito duro no controle do sistema prisional, que eles precisam viver em um ambiente mais confortável", afirmou ao UOL. Araújo disse que os presos revindicam "televisão, sistema de iluminação, visita íntima, coisa que o sistema prisional não está atendendo porque está cumprindo a lei de execução penal", afirmou o secretário, de acordo com o G1. Araújo afirmou ao UOL que o Estado "não tem condições" no momento de promover as melhorias reivindicadas pelos detentos e acrescentou haver indícios de que as ordens para os ataques partiram de dentro das prisões. "Nós não iremos em hipótese alguma mudar as regras e fragilizar o sistema prisional. A regra continua dura e vai ser mais dura ainda. Inclusive, agora, foram suspensas todas as visitas." Araújo afirmou que o Estado tem o dever de garantir todos os direitos dos presos. "Mas, quando há ações como essa que está acontecendo agora, todos esses direitos são cada vez mais reduzidos e privados." O Rio Grande do Norte é um dos Estados mais violentos do Brasil, segundo o Atlas da Violência, um relatório anual produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada com a colaboração do FBSP. Em 2019, de acordo com os dados mais recentes, o Rio Grande do Norte tinha a 2ª maior taxa de mortes por armas de fogo do país, a 7ª maior de homicídios e a 10ª de mortes violentas por causas indeterminadas. "O Rio Grande do Norte teve historicamente pouco investimento em segurança pública, ficou abandonado por muitos anos. Não tinha investimento em material humano, em capacitação, em estudos para combater a criminalidade de forma inteligente, e, onde não tem isso, a criminalidade se expande", diz Ivenio Hermes. "Houve um esforço das forças de segurança desde 2018, mas ainda está aquém. A retomada recente do investimento é como tentar frear um trem em alta velocidade e empurrar na outra direção." Nas últimas duas décadas, facções do crime organizado se instalaram e prosperaram no Estado, segundo os pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil. "Houve um movimento de expansão do PCC pelo Brasil, almejando o controle do cultivo e da distribuição de drogas, e o Nordeste é muito importante, porque é um ponto de escoamento, em especial o litoral do Rio Grande do Norte, que é o ponto mais próximo da Europa, então, é importante estar aqui", diz Juliana Melo. O PCC ganhou nos últimos dez anos a concorrência do Sindicato do Crime, que surgiu como uma dissidência da facção paulista e, hoje, é a principal organização criminosa do Estado. "Eles foram assumindo protagonismo lentamente, mas de forma assertiva, buscando e suprindo as fraquezas dos seus rivais, e foram muito proativos em se espalhar pelo Estado", afirma Hermes. "Hoje, eles têm uma presença grande nos maiores municípios, especialmente na região metropolitana de Natal e no oeste do Estado, que é onde ocorreram estes últimos ataques." Juliana Melo afirma que a facção divulgou outros salves mais recentemente, que não tiveram a repercussão de agora, e avalia que as autoridades do Rio Grande do Norte talvez não tenham dado a devida atenção à última convocação. "Podem ter pensado que eles não iam dar conta de fazer o que estavam prometendo, porque estariam enfraquecidos depois que várias lideranças foram presas e por causa da disputa com o PCC", diz a pesquisadora. "Mas, agora, eles conseguiram se organizar um pouco melhor. Isso mostra que eles não foram dissolvidos, estão atuantes e são uma força violenta, infelizmente." Hermes afirma os ataques recentes indicam que houve uma falha nas medidas de prevenção a ações criminosas. "Dizer que a culpa é das autoridades do Estado seria forte demais, mas, com certeza, os responsáveis pela segurança, ou seja, a secretaria e seus sistemas de inteligência, falharam", diz o pesquisador. Esta não é a primeira vez, afirma Juliana Melo. Ela dá como exemplo o massacre de Alcaçuz, como ficou conhecida a maior rebelião do sistema prisional do Estado, ocorrida em 2017. "As famílias dos presos mandaram cartas dizendo que ia acontecer e foram ignoradas. O sistema de segurança pública falha o tempo todo. Enquanto não melhorar a situação nas cadeias, não vai conseguir resolver esse problema, que é cíclico."
2023-03-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cnkwyppg55wo
brasil
Em reviravolta, STF decide julgar de novo extradição de colombiano que matou namorada e fugiu para o Brasil
O Supremo Tribunal Federal decidiu julgar novamente pedido para extraditar um colombiano que matou a namorada e se escondeu no Brasil por quase 30 anos. A Corte havia negado a extradição em 2020 e soltado da cadeia Jaime Saade, condenado a 27 anos de prisão na Colômbia pela morte e estupro de Nancy Mestre, que tinha apenas 18 anos quando foi morta em 1994. A decisão tomada pelo tribunal nesta quinta-feira (30) é uma grande reviravolta num caso que chocou a Colômbia e envolveu uma busca de 26 anos do pai da jovem pelo assassino da filha. Após o assassinato, Jaime fugiu da cidade de Barranquilla para o Brasil, onde se fixou com nome e documentos falsos. Em Belo Horizonte, passou a viver uma vida confortável sob o nome de Henrique dos Santos Abdala. Ele se casou com uma brasileira e teve dois filhos no Brasil. Mas a busca incansável de Martín Mestre, pai de Nancy, pelo assassino da filha interrompeu os planos de Jaime. Após investigar o paradeiro do ex-genro por mais de duas décadas, anos, ele o localizou no Brasil e deu as coordenadas à Interpol, que prendeu Jaime Saade em 2020. Fim do Matérias recomendadas Naquele mesmo ano, o Supremo soltou o colombiano e negou a extradição com o argumento de que o crime de homicídio havia prescrito no Brasil. O placar foi de empate- um dos ministros, Celso de Mello, estava ausente à sessão em licença médica. Em vez de aguardar o voto de Celso de Mello, os ministros decidiram aplicar uma regra do Direito Penal segundo a qual, em caso de empate, vale a decisão que beneficia o réu. Com isso, Jaime Saade pôde ficar no Brasil, sem punição pela morte de Nancy Mestre. O governo da Colômbia, que havia pedido a extradiço, não recorreu, considerando que não haveria mais chances de trazer Jaime para o país. Com isso, a decisão transitou em julgado. Mas o pai da jovem não desistiu. Entrou ele próprio com uma ação rescisória, apelando para o tribunal rever a decisão. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Havia a possibilidade de o recurso ser inadmitido sem que os ministros analisassem o pedido, porque Martín não era parte no processo de extradição, mas sim o governo da Colômbia. Mas, numa reviravolta, o relator, ministro Alexandre de Moraes, considerou que o pai da jovem tem sim o direito de entrar com a ação recisória e votou a favor de rever a decisão que impediu a extradição. Para ele, diante do empate, a Corte deveria ter aguardado o voto do ministro que estava ausente à sessão, em vez de ter optado por negar a extradição. Outros seis ministros acompanharam o voto de Moraes: André Mendonça, Edson Faquin, Luis Roberto Barroso, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Rosa Weber. Outros três ministros- Nunes Marques, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski- discordaram e votaram por manter a decisão de negar a extradição. Por maioria, o Supremo decidiu que o processo de extradição deve voltar para a 2ª Turma do STF para que o julgamento seja desempatado com o voto do ministro que substituiu Celso de Mello, que se aposentou em 2020. A reviravolta surpreedeu Fernando Gomes de Oliveira e Gabriela Benfica, advogados de Jaime Saade. "Ficamos surpresos porque, na concepção da defesa, não haveria a possibilidade de a ação sequer ser conhecida. Com todo respeito ao pai da vítima, particulares não têm competência para entrar com ação rescisória em caso de extradição. A extradição é um instrumento de colaboração entre estados soberanos, um particular não pode intervir. ", disse à BBC News Brasil Fernando Gomes de Oliveira, advogado de Jaime. Já para o pai de Nancy a decisão do Supremo foi uma primeira vitória. Mas o tempo não corre a favor deles. Em 26 de julho deste ano, a ação penal por homicídio contra Jaime vai prescrever na Colômbia. Se ele não for extraditado até esta data, não poderá mais ser preso. "Acredito que a justiça vai chegar, um pouco tarde, mas ainda há tempo", disse Martín Mestre à BBC News Brasil. Mas quais os detalhes desse crime que chocou a Colômbia e que foi parar na Justiça brasileira? E como Jaime Saade conseguiu ficar tanto tempo no Brasil sem ser descoberto? Nancy, filha mais nova de Mestre, queria ser diplomata e se mudar da Colômbia para os Estados Unidos para cursar a faculdade. "Era uma menina alegre, muito estudiosa. Vivia lendo. Queria estudar Direito Internacional e diplomacia", conta Martín. Mas todos os planos da jovem de 18 anos foram interrompidos na madrugada do dia 1° de janeiro de 1994. Nancy, o pai, a mãe e o irmão brindaram o novo ano em casa. Pouco depois da meia-noite, Martín se despediu da filha, que pediu para continuar a comemoração de Ano Novo com o namorado, Jaime Saade. O rapaz havia ido buscá-la em casa. "Volte antes das 3h da manhã", pediu Martín à filha. "Cuide bem dela", pediu ele a Jaime. Às 6h, Martín acordou sobressaltado. "Assim que acordei já pressenti algo", conta. Ele foi procurar Nancy pela casa e encontrou o quarto dela vazio. Saiu pelas ruas da cidade, entrando em discotecas para ver se o casal de jovens estava lá, mas não os encontrou. A ansiedade foi aumentando e, enquanto perguntava pela filha a quem via pela rua, rezava em silêncio para que ela aparecesse sã e salva. Por fim, decidiu ir até a casa dos pais de Jaime, onde o rapaz também morava. Lá, se deparou com a mãe dele limpando o chão. "Estava escuro e não me dei conta, naquele momento, que eu estava pisando no sangue da minha própria filha. E que a mãe do assassino estava violando a cena de um crime." "A sua filha sofreu um acidente e está na Clínica del Caribe", disse a mulher. Martín correu para o hospital e lá encontrou o pai de Jaime. "Sua filha tentou se suicidar e está na sala de cirurgia." Na sala de atendimento de emergência, médicos tentavam estabilizar o quadro de saúde de Nancy, que estava em coma. A jovem havia sido levada ao hospital por Jaime, o pai dele e uma mulher que também morava na casa da família. Eles enrolaram Nancy, que estava nua, num lençol e a colocaram na caçamba de uma caminhonete. "Foi aos poucos que eu comecei a organizar na minha cabeça o que tinha acontecido. Ela foi violentada, maltratada e foi jogada na caçamba de uma caminhonete. Eu disse: 'Meu Deus, o que fizeram com a minha filha!'", lembra Martín. Oito dias de agonia no hospital se seguiriam. A jovem nunca mais recobrou a consciência. "Os médicos me avisaram que ela iria partir. Eu, a mãe de Nancy e nosso outro filho, Martín, nos reunimos no quarto do hospital e ficamos orando e cantando músicas que ela gostava de ouvir quando criança", conta. De repente, o coração dela parou de bater. Enquanto os pais de Nancy sofriam no hospital e a polícia investigava o que havia acontecido com a jovem naquele dia 1° de janeiro, o principal suspeito do crime, Jaime Saade, fugia da Colômbia. "Jaime iniciou a fuga no mesmo dia do assassinato e nunca mais foi visto no país", diz Martín. A polícia descartou a tese de suicídio. Nancy morreu com um tiro na cabeça, que entrou pela têmpora direita. Resquícios de pólvora foram encontrados na mão esquerda dela, um indicativo, segundo as autoridades colombianas, de que ela tentou se defender. A jovem era destra e precisaria ter feito um movimento muito improvável, segundo a polícia, para acertar a têmpora direita carregando a arma com a mão esquerda. A investigação concluiu que Nancy havia sido violentada. Ela tinha ferimentos pelo corpo e, nas unhas quebradas, havia restos de pele - outro sinal de que tentou se defender. Em 1996, dois anos depois da morte da jovem, um tribunal da Colômbia condenou Jaime Saade a 27 anos de prisão por homicídio e estupro. Segundo a decisão da justiça colombiana, após violentar e atirar na cabeça de Nancy, Jaime teria se desesperado e pedido ajuda ao pai. Eles enrolaram o corpo nu da jovem num lençol e a levaram para o hospital. O pai de Jaime ficou na clínica, enquanto o filho se escondia. Daquele momento em diante, o foco da vida de Martín se tornou encontrar Jaime, uma caçada que duraria 26 anos. "Eu sabia que poderia demorar, mas sempre soube que encontraria o assassino da minha filha." Desde a condenação de Jaime Saad, Martín passou a cobrar mensalmente das autoridades respostas sobre as investigações e estabeleceu contatos com a Interpol para compartilhar informações que ele próprio encontrava. A morte de Nancy mudou para sempre o destino da família. Martín e a esposa se separaram. O único filho vivo do casal se mudou para os Estados Unidos. E Martín, que é arquiteto e professor, concentrou quase todo o seu tempo e energia na busca por Jaime. Ele ingressou em cursos de inteligência e resgatou conhecimentos que aprendera quando era oficial da Marinha para usar nos seus esforços de investigação. "Eu criei quatro personagens fictícios, dois homens e duas mulheres, e passei a estabelecer contato nas redes sociais com familiares de Jaime para ganhar confiança e obter informações que pudessem me levar a ele", contou à BBC News Brasil. Martín repassava para a polícia colombiana e a Interpol cada detalhe que conseguia obter. Ao longo dos 26 anos de busca, vários delegados diferentes assumiram o caso. "Cada vez que o responsável pela investigação mudava, eu ia até lá com todos os documentos para colocar a pessoa a par de tudo." Das conversas que estabeleceu com familiares de Jaime, usando os perfis fictícios, Martin encontrou duas pistas que o levaram a crer que Jaime poderia estar em território brasileiro. Primeiro, descobriu que um irmão de Jaime mora no Brasil. Depois, desconfiou da menção frequente da família do rapaz à localidade de Santa Marta. Santa Marta é uma cidade costeira da Colômbia, com uma praia chamada Bello Horizonte. A investigação dele chegou, por fim, à conclusão de que Jaime poderia estar na cidade brasileira de Belo Horizonte, não em Santa Marta, na Colômbia. De posse dessas informações, a Polícia Federal brasileira e a Interpol localizaram uma pessoa com perfil similar ao de Jaime Saade. Os policiais seguiram o suspeito até um café e, depois que ele saiu do estabelecimento, coletaram o copo que ele usou para beber. Queriam verificar se as digitais batiam com as do colombiano condenado pelo assassinato de Nancy. Eram idênticas. Ao abordarem Jaime, ele apresentou documentos falsos e disse se chamar Henrique dos Santos Abdala. Vivia uma vida tranquila em Belo Horizonte, com a esposa brasileira e dois filhos crescidos. Foi preso pela PF e passou a responder no Brasil por crime de falsidade ideológica. Pouco depois, o governo da Colômbia entrou com pedido de extradição para que Jaime pudesse cumprir a pena de 27 anos no país. "Quando o diretor da Interpol me ligou para contar da prisão, eu me ajoelhei no chão e comecei a agradecer a Deus. Meu Deus! Depois de quase 27 anos vai haver justiça", conta. "Telefonei ao meu outro filho, Martín, que vive nos Estados Unidos, e à mãe dele, que hoje mora na Espanha, e todos começamos a chorar." Para Martín, seria questão de meses até Jaime começar a cumprir a pena na Colômbia. Só faltava a autorização do Supremo para a extradição. Mas algo muito diferente do que ele esperava aconteceu. No dia 28 de setembro de 2020, Martín recebeu um telefonema de um advogado. O Supremo havia decidido não extraditar Jaime porque o crime que ele cometeu havia prescrito no Brasil - o prazo para prescrição da pretensão punitiva naquele caso, um assassinato, era de 20 anos. Jaime fora encontrado 26 anos depois da morte de Nancy. Mas o julgamento no STF não foi por maioria, foi um empate. Duas interpretações dividiram os ministros presentes. A lei brasileira veda a extradição se o crime tiver prescrito no Brasil. Mas a legislação também diz que, se a pessoa cometer outro crime posteriormente, o prazo de prescrição do primeiro se interrompe. Jaime havia cometido crime de falsidade ideológica e falsificação de documentos, já que para viabilizar a fuga, adotou nome e documentos falsos. Os ministros Gilmar Mendes e Cármen Lúcia entenderam que ele poderia ser extraditado, porque a suspensão da prescrição vale, na visão deles, a partir do cometimento do segundo crime. Já Edson Fachin e Ricardo Lewandowski votaram por não extraditar Jaime, com o argumento de que a suspensão da prescrição só ocorre após condenação e trânsito em julgado do segundo crime. "Meu cliente, o Jaime, não tinha nem sido denunciado pelo Ministério Público na época que o Supremo estava julgando o caso. A prescrição (da punição para o crime de homicídio) ocorreu no Brasil em 2016 e ele só foi denunciado por crime de falsidade em 2021, portanto seis anos depois da prescrição", disse à BBC News Brasil o advogado de Jaime, Fernando Gomes de Oliveira. Um dos advogados de Martín Mestre, André Luís Monteiro, critica: "Se você admite essa interpretação do Supremo, você está dando incentivo para todos os condenados, dizendo: 'arrume um documento falso, vá para o Brasil. Se você for encontrado, não se preocupe, o Supremo vai falar que não tem como mandar você de volta, porque nós só te descobrimos agora'". "É o que tem de básico no Direito, você não pode se valer da sua própria torpeza para se beneficiar." O ministro Celso de Mello, que poderia desempatar o julgamento, não estava presente no dia. O tribunal, então, decidiu aplicar uma regra do Direito Penal segundo a qual, em caso de empate, vale a decisão que beneficia o réu. Com isso, Jaime Saade pôde ficar no Brasil, sem qualquer punição pela morte de Nancy Mestre. Para Martín, após 26 anos de busca incessante por Jaime Saade, tudo se resolveu "como se fosse uma partida de futebol". "Como é que permitem que uma decisão importante como essa, onde se está discutindo justiça ou impunidade, seja decidida por empate, como se fosse um jogo de futebol?", questiona. A decisão do Supremo transitou em julgado e o governo da Colômbia não recorreu. Mas Martín Mestre encontrou um escritório internacional que se propôs a buscar uma última alternativa. Em maio de 2022, os advogados protocolaram uma ação rescisória pedindo que os ministros revejam a decisão, com base em dois argumentos. O primeiro é o de que a prescrição do crime de assassinato se interrompeu no momento em que Jaime cometeu os crimes posteriores de fraude e falsificação de documentos. "A decisão do Supremo violou o artigo do Código Penal que trata da interrupção da prescrição em caso de novo crime. A doutrina e precedentes do STF e STJ são pacíficos no sentido de que basta cometer o crime para suspender a prescrição da punibilidade do primeiro crime", diz o advogado Bruno Barreto, que elaborou a ação rescisória. O segundo argumento é o de que o empate não deveria ter beneficiado Jaime Saade, já que processo de extradição não é ação penal. "O ministro Luiz Fux decidiu recentemente que a regra do empate só se aplica a ações penais stricto sensu e a habeas corpus, não se aplica para ações que tangenciam temas penais. É o caso da extradição, que tangencia tema penal", disse. "O Supremo deveria ter convocado um ministro de outra turma para participar do julgamento e desempatar ou deveria ter aguardado o retorno do ministro Celso de Mello, que estava ausente no dia, de licença médica", defende. Ao analisar o recurso, o relator, ministro Alexandre de Moraes, concordou com esta tese. Ele argumentou que a decisão favorável ao réu em caso de empate é "excepcionalíssima", só podendo ser aplicada em casos de matéria penal, quando há pedido de habeas corpus, com réu preso. "Note-se que todas as normas dão preferência à obtenção do voto de desempate, e não à solução mais favorável ao paciente ou ao réu, decorrente do empate na votação", destacou o ministro, que foi acompanhado pela maioria do tribunal. Agora, o ministro Nunes Marques, que substituiu Celso de Mello, possivelmente será quem irá desempater o placar, já que o caso retornará para julgamento na 2ª Turma do STF. O advogado Fernando Gomes de Oliveira, que representa Saade, diz não ver embasamento jurídico para que o Supremo derrube e sua decisão anterior de negar a extradição. "Na visão da defesa por várias razões não há possibilidade de reverter a decisão de negar a extradição. Ainda que a ação rescisória seja acolhida e colham mais votos de ministros, o crime de homicídio está prescrito, a extradição vai ser indeferida", diz. Enquanto isso, Martín Mestre aguarda o desfecho final de uma busca dolorosa que durou quase 30 anos. "Estamos correndo contra o tempo. Em 6 de julho de 2023 prescreve na Colômbia a ação penal contra o assassino da minha filha, o que significaria a nulidade do pedido de extradição", diz o pai de Nancy. "Espero, do fundo do meu coração, que seja feita justiça. Se ele for extraditado, poderei dizer que não vivi em vão." - Este texto foi publicado em
2023-03-31
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c514j428nx8o
brasil
Como epidemia acabou com vilarejo no interior de São Paulo
Uma estação ferroviária abandonada e tomada pela vegetação, prédios com pinturas desbotadas e ruas desertas com placas apresentando ferrugens. Esse é cenário do distrito de Japurá, localizado em Tabapuã, no noroeste do Estado de São Paulo. O que, atualmente, parece uma 'cidade fantasma' há 90 anos era uma vila com aproximadamente três mil moradores, que viviam da agricultura e da prática do escambo. Mas que foi abandonada pela população, entre as décadas de 1930 e 1940, após uma epidemia de malária e febre amarela se alastrar pela região. A história da espécie de 'cidade' que não foi emancipada começa a ser contada, no início do século 20, a partir do prolongamento da linha férrea de Araraquara (SP) até São José do Rio Preto (SP). Assim como diversos municípios do interior de São Paulo, que nasceram a partir da expansão da Estrada de Ferro Araraquarense (EFA) — criada para escoar a produção agrícola, entre 1900 e 1950 — Japurá também surgiu após a inauguração da sua estação ferroviária, em 19 de novembro de 1911. "Como aconteceu em outros lugares do Brasil, o trem possibilitou que regiões fossem habitadas. Foi o que também aconteceu no (distrito de) Japurá. A partir da criação da estação ferroviária imigrantes e brasileiros de outras regiões do país foram chegando e povoando o local em busca de trabalho", conta Gabriella Teodoro Coelho, pesquisadora e autora do estudo Japurá, do progresso ao arruinamento, produzido em parceria com Janaina Andrea Cucato. Fim do Matérias recomendadas Às margens do rio São Domingos, no noroeste do Estado de São Paulo, Japurá foi crescendo e no seu auge, na década de 1930 chegou a ter aproximadamente três mil moradores, segundo Geraldo Bellinelo, jornalista e autor do documentário Japurá, o povo que virou açúcar. "A criação da estação de Japurá se deu também para aliviar paradas ferroviárias anteriores no trajeto, como a de Catiguá, criada em 1910. Como elas não estavam dando conta de armazenar a quantidade de café e cereais que estava sendo produzida na região, se viu necessário criar uma nova estação ferroviária e pela localização estratégica escolheram o Japurá", apontou o pesquisador histórico. Registros apontam que, na década de 1920, o distrito tinha escola, igreja, cadeia pública, açougues e farmácias. Entretanto, por estar ao redor de uma área de mata e próxima de rio, no final da década de 1920, Japurá passou a ser alvo dos mosquitos transmissores da malária e febre amarela. Com restrito acesso a serviços de saúde, falta de conhecimento científico sobre as doenças e sem saneamento básico, a epidemia em poucos meses se alastrou pela região. "Para se curar das doenças as pessoas faziam remédios caseiros ou tinham que enfrentar horas de carroça para chegar a um médico. Além disso, não havia um tratamento correto para os sintomas. Tudo contribuiu para que as doenças se disseminassem com rapidez pelo local e fizessem inúmeras vítimas", ressalta Bellinelo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para piorar a situação, em 1929, a Quebra da Bolsa de Valores de Nova York, desvalorizou também a principal fonte de renda dos moradores da região: o café. Com a falta generalizada de dinheiro, muitos produtores rurais não estavam mais conseguindo escoar a produção; e com a epidemia de malária e febre amarela, a situação do Japurá somente piorou. "No ápice da epidemia, em média, de doze a quinze pessoas eram enterradas por dia no Japurá. O medo era tão grande que muitas famílias enterravam os familiares e, em seguida, iam embora do local temendo ser contaminados", conta Bellinelo. Até mesmo quem morava nos arredores tinha receio de ir ao Japurá. "O medo era tão grande que alguns trabalhadores das estações ferroviárias da região quando não respeitavam os superiores eram ameaçados de serem mandados para o Japurá. Ninguém queria ir, pois as pessoas tinham medo de morrer ao serem contaminadas", disse Gabriella. Marcos Boulos, médico infectologista e professor sênior da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), ressalta que, na primeira metade do século 20, por conta de boa parte do Estado de São Paulo ser coberto por florestas, várias regiões enfrentaram epidemias de malária. "Até a Segunda Guerra Mundial, não havia tratamento para a malária. Sem contar, que era muito difícil o cadastramento dos casos. Por isso, assim como o Japurá, tivemos muitas regiões de São Paulo com centenas de casos da doença. Hoje, os registros que temos ficam concentrados mais na região da Amazônia", explicou. Outro fator que contribuiu para o local virar uma espécie de 'cidade fantasma' ocorreu na década de 1950, quando o trem parou de passar pela estação ferroviária de Japurá. "A mesma linha férrea que foi a grande responsável pelo surgimento do Japurá, em 1911, foi também a que praticamente 'assinou' o seu fim, em 1951, quando a companhia paulista desviou os trilhos para um quilômetro e meio de distância do Japurá", aponta Gabriella. Sem o trem e com uma população bem menor a história do Japurá foi se apagando. "Ficou um estigma muito forte sobre a região e pouca gente queria ir para lá, mesmo depois que as doenças estavam controladas", disse Geraldo. Atualmente, nenhum morador dos tempos áureos da região vive no local. A última moradora Ana Idalina Braz, popularmente conhecida como 'dona Petita', que durante mais de nove décadas viveu no Japurá — mesmo depois de ter visto muita gente morrer de malária ou ir embora com medo — morreu, em 2021. Sua casa, em frente à estação ferroviária em ruínas, deve ser transformada em um museu, de acordo com a diretora de cultura de Tabapuã, Carla Prado. "Estamos querendo decretar o distrito de Japurá como patrimônio histórico cultural. No caso da casa da 'dona Petita', temos o desejo de transformar aquilo em uma espécie de museu. Ela foi a última moradora do local. É uma história que fica e deve ser preservada", diz Prado. Ex-morador do Japurá, Benedito Alves de Lima, 78 anos, lembra bem do fim da vila. Na década de 1950, quando nem mesmo o trem passava e menos de 200 pessoas viviam no local, ele se mudou com a família para a área. "A gente se mudou porque a malária estava controlada. Mas praticamente tudo tinha acabado", disse ele. Para Alves de Lima, o que ficou foram as memórias. "Atualmente, moro em Tabapuã, município do qual o Japurá é distrito. Mas não tem como esquecer de lá. O Japurá quase foi uma cidade, mas a maleita acabou com tudo", diz o aposentado. A esposa, Iraci Ferreguti de Lima, 77 anos, que também frequentou o Japurá após a epidemia de malária, conta que, entre 1950 e 1960, os moradores que ainda viviam no local até tentaram preservar as memórias do Japurá. "Ainda tinha baile, missa, mas com o tempo tudo foi acabando. O medo falou mais alto." Quem também não se esquece do local é o produtor rural Carlos Alberto Corrêa Ornelas, 66 anos. "Apesar de não ter nascido lá, eu vivi na região e lembro bem das histórias do meu pai. Depois, com mais idade, fui procurar informação sobre o local e encontrei registros históricos mostrando que no ápice da malária, de 37 alunos em uma sala de aula, 31 foram contaminados. Para piorar, além da falta de assistência médica, tudo era muito precário, as campanhas para erradicar a maleita do local não eram contínuas, o que contribuiu para o fim." A falta de documentos históricos é um dos grandes entraves para que o Estado de São Paulo consiga mensurar quantas pessoas morreram de malária e febre amarela, entre 1930 e 1940, no Japurá (SP). Isso porque foi apenas a partir da segunda metade do século 20 que municípios brasileiros passaram a contabilizar as doenças que ocorriam no país. "Estimamos que durante a primeira metade do século 20 tivemos milhões de casos de malária no Estado de São Paulo, mas não temos um número oficial", apontou Marcos Boulos, professor sênior da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Segundo Boulos, no caso da malária — doença febril, transmitida pela picada dos mosquitos Anopheles (mosquito-prego) infectados pelo Plasmodium, um parasita —, a última grande epidemia ocorreu na década de 1990, quando o Brasil chegou a contabilizar 700 mil casos da doença durante um ano. "No Brasil, a principal forma da malária é a vivax, mais branda, que oferece pouco risco de morte, ao contrário da forma mais comum nos países africanos. Além disso, por aqui, 99% dos casos são registrados na Amazônia", ressaltou. Já a febre amarela que também fez vítimas no Japurá consiste em uma doença infecciosa febril aguda, transmitida por mosquitos vetores, com dois ciclos de transmissão: silvestre (quando há transmissão em área rural ou de floresta) e urbano.  Como a transmissão urbana da febre amarela somente é possível através da picada de mosquitos Aedes aegypti, a prevenção da doença deve ser feita evitando sua disseminação. No ciclo silvestre, em áreas florestais, o vetor da febre amarela é principalmente o mosquito Haemagogus. De acordo com a Fiocruz, a infecção ocorre quando uma pessoa que nunca tenha contraído a febre amarela ou tomado a vacina contra ela circula em áreas florestais e é picada por um mosquito infectado. Ao contrair a doença, a pessoa pode se tornar fonte de infecção para o Aedes aegypti no meio urbano. Além do homem, a infecção pelo vírus também pode acometer os macacos. "O que pode ter contribuído muito também para essa epidemia no Japurá foi a própria derrubada da mata para construção da estrada de ferro e de residências a partir do crescimento da população. Você tirou o vetor do seu habitat natural, o que possibilitou a disseminação das doenças, em uma época que não havia tratamento", defendeu Marcos Boulos.
2023-03-14
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cz906epyddpo
brasil
Sites de apostas: regulação deve alavancar mercado bilionário e setor diz não se importar com imposto
O Ministério da Fazenda trabalha para começar a taxar o setor de sites de apostas esportivas, que vivem um boom de crescimento no Brasil desde 2018, quando foram liberados a operar no país e passaram a patrocinar quase todos os principais times de futebol, masculinos e femininos. Ao contrário do que o senso comum pode imaginar, a notícia foi bem recebida no setor de jogos, que há décadas tenta legalizar e ampliar o mercado privado de apostas no país. Isso porque a taxação virá junto com a regulamentação do serviço, o que trará mais segurança jurídica e potencial de negócios, dizem representantes do setor ouvidos pela BBC News Brasil. Embora uma lei do final de 2018 tenha passado a permitir esse negócio, a regulamentação do mercado ainda não saiu do papel. Sem regras claras, as empresas têm operado esses sites de fora do Brasil, livres de impostos locais. A estimativa do portal BNL Data, especializado no mercado de jogos, é que esse segmento fature R$ 12 bilhões em 2023, um aumento de 71% ante os ganhos de 2020 (R$ 7 bilhões). Segundo o fundador do portal e presidente do Instituto Brasileiro Jogo Legal, Magno José Santos, o valor total movimentado nos sites com recebimento e pagamento das apostas esportivas é muito maior, girando na casa de R$ 100 bilhões. Fim do Matérias recomendadas "Na verdade, (o anúncio da taxação) não desagrada nem um pouco. O setor tem aguardado ansiosamente a regulamentação da atividade no Brasil já há mais de quatro anos. Foi uma frustração muito grande o fato de isso não ter sido regulamentado no ano passado, antes da Copa do Mundo", disse à BBC News Brasi o advogado Luiz Felipe Maia, especialista no setor. "As empresas que eu represento estão ansiosas para ver o mercado brasileiro regulamentado, para poderem operar localmente, pagar impostos e gerar empregos no Brasil", reforçou. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O mercado de jogos de azar foi proibido no Brasil em 1946, no governo de Eurico Gaspar Dutra, sob o argumento de que seria algo nocivo à moral e aos bons costumes. Até então, cassinos operavam no Brasil e eram locais populares de entretenimento, com oferta de shows e restaurantes. Isso não impediu, porém, a existência de práticas ilegais no país, como o Jogo do Bicho e as máquinas caça-níqueis, muitas vezes controladas por grupos criminosos violentos. Já os bingos não são permitidos hoje, mas houve momentos em que foram liberados, nos anos 90. Uma exceção à proibição criada por Dutra que perdura há décadas são os jogos lotéricos, que eram operados com exclusividade pela Caixa Econômica Federal desde 1961. A partir de 2020, porém, passaram a ser oferecidos por governos estaduais e municipais, após o Supremo Tribunal Federal acabar com o monopólio da União. Já uma lei aprovada em 2018, no governo de Michel Temer, permitiu a operação dos sites de apostas esportivas, abrindo uma fatia do mercado para empresas privadas. No entanto, a regulamentação dessa indústria emperrou no governo Jair Bolsonaro, embora a própria lei previsse que ela deveria ter sido adotada até 2022. O setor atribui o atraso na regulamentação à oposição de grupos conservadores, em especial o segmento evangélico, que era bastante ouvido pelo ex-presidente. O tema voltou a andar no novo governo, ansioso por novas fontes de arrecadação para bancar o aumento de gastos sociais e obras, prometido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O Ministério da Fazenda ainda está fechando os detalhes de como funcionaria essa arrecadação, para enviar uma proposta ao Congresso. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse ao portal UOL que a arrecadação pode ficar entre R$ 2 bilhões e R$ 6 bilhões. A ideia em discussão é criar uma taxa sobre os ganhos das empresas e um tributo sobre os ganhos do apostador. Além disso, o governo arrecadaria com a venda de licenças para as empresas poderem operar. Discute-se cobrar R$ 30 milhões pelo direito de operar por cinco anos. O setor se divide sobre esses valores. Para o advogado Felipe Maia, seria mais adequado um valor mais baixo, como R$ 5 milhões, para atrair um número maior de empresas para a legalidade. Já o empresário André Feldman, presidente da recém-criada Associação Nacional de Jogos e Loterias, prefere um valor maior, justamente para que o mercado não tenha um número muito grande de sites. Por outro lado, ele defende que a licença dure dez anos em vez de cinco, para aumentar o horizonte de planejamento do investimento. "Eu acho que quanto mais alta a régua, melhor. Mais fácil para o governo fiscalizar e arrecadar. Eu prefiro trabalhar num universo de cem, duzentas empresas, do que duas mil", ressalta. "Para o empresário correto, com o tamanho do mercado, o valor da outorga é o que menos interessa", disse ainda. O setor também espera que a regulamentação aumente a fiscalização e controle contra manipulações de apostas, algo que causa prejuízos financeiro e reputacional às empresas. Em fevereiro, o Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO) realizou a operação "Penalidade Máxima" contra uma associação criminosa que teria manipulado resultados de jogos da rodada final da Série B do Campeonato Brasileiro do ano passado, com objetivo de lucrar com apostas em sites esportivos. No esquema descoberto, jogadores de ao menos três times receberiam R$ 150 mil para cometer pênaltis no primeiro tempo da partida. Um deles, porém, não foi escalado e tentou convencer outro a cometer a penalidade, o que acabou levando a direção do clube a descobrir o caso e denunciar ao MP. A estimativa dos apostadores seria faturar R$ 2 milhões com a manipulação, segundo a investigação. A expansão vertiginosa do mercado, porém, vem acompanhada de um fenômeno preocupante, o aumento do vício nesses sites de apostas, afirma o psiquiatra Hermano Tavares, coordenador do Programa Ambulatorial do Jogo Patológico (Pro-Amjo) do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP). Segundo ele, tem ocorrido uma mudança no perfil dos atendidos pelo programa. Antes, o público do Pro-Amo era formado, principalmente, por pessoas com idade mais avançada, viciadas em máquinas caça-níqueis, jogo que é operado ilegalmente no Brasil. A partir de 2018, porém, começaram a chegar mais pessoas na faixa de 30 e 40 anos, em busca de ajuda para lidar com o vício nas apostas esportivas. Tavares estima que esse público já seja um quarto das cerca de 80 pessoas novas que o programa acolhe por ano. Na sua visão, a regulação que será adotada deveria ter regras rígidas para reduzir o problema, como destinar uma parte dos ganhos das empresas para financiar a expansão da rede de atendimento a viciados em jogos, que ainda é muito pequena no país. Ele também defende que a publicidade deveria ser proibida, como ocorre no caso de cigarros, ou ao menos restringida, como no caso de bebidas alcoólicas. A ideia, que atingiria em cheio uma das principais formas de financiamento do futebol hoje no país, parece não estar sendo cogitada no momento pelo governo federal. A BBC News Brasil enviou alguns questionamentos sobre a regulamentação do mercado ao Ministério da Fazenda, que, em sua resposta, defendeu a medida como forma de ampliar a arrecadação e a fiscalização do setor, para evitar manipulação de apostas e lavagem de dinheiro. A pasta, no entanto, não respondeu se a regulamentação trará alguma restrição ao patrocínio de clubes de futebol pelos sites de apostas, devido ao aumento de viciados. "Eu acho que deve haver uma proibição de patrocínio explícito que possa vir a afetar a população vulnerável, particularmente de menores de idade. Por que esse setor tem que ter tratamento preferencial em relação a cigarros e bebidas?", questiona Tavares. "Eu particularmente estou de saco cheio de assistir aos jogos do meu time ou da seleção e ficar o tempo inteiro sendo impactado com convites para apostar", reclama. Para se ter uma ideia da importância que esse tipo de patrocínio ganhou no Brasil, hoje 19 dos 20 clubes da série A do campeonato brasileiro recebem recursos dessas empresas. O Flamengo, por exemplo, fechou no final de 2021 um contrato de dois anos com a Pixbet, no valor total de R$ 48 milhões, que comprou, assim, o espaço do ombro da camiseta oficial do time para anunciar sua marca. A Pixbet também patrocina Corinthians, Santos, Vasco e Cruzeiro, entre outros clubes menores. Outros exemplos são a Betano (Atlético-MG e Fluminense), Esportes da Sorte (Grêmio) e Sportsbet.io (São Paulo). O advogado Felipe Maia defende a importância do patrocínio nesse momento de abertura do mercado, para que o usuário possa identificar as empresas legalizadas. Com a regulamentação, apenas sites que comprarem licenças do governo poderão atuar. "Em mercados regulados, existe uma estrutura de proteção às pessoas com comportamento compulsivo, como um cadastro de autoexclusão, em que o jogador ou a família registra o documento desse usuário, que fica impedido de apostar. Ou fixa um limite de valor que pode apostar", argumenta. "Existem coisas que causam muito mais dano, como álcool e cigarro, e nenhuma delas tem esse tipo de proteção", disse ainda. Segundo um levantamento de professores de Marketing da Universidade de Bristol, no Reino Unido, a restrição à propaganda desses sites têm crescido na Europa. Alemanha, Bélgica e Holanda também têm restrições duras, como a proibição de propaganda durante jogos. Já o Reino Unido, onde sites de apostas esportivas também financiam grandes clubes de futebol, discute no momento banir a propaganda dessas empresas na parte frontal das camisas oficiais. A Liga Inglesa da Futebol (English Football League), patrocinada pela Sky Bet, e que administra os campeonatos da segunda, terceira e quarta divisões, diz que isso significaria um prejuízo de 40 milhões de libras ao ano (cerca de R$ 256 milhões) para seus 72 clubes. Já a associação que representa o setor (Betting and Gambling Council) argumenta que a "esmagadora maioria" das 22,5 milhões de pessoas que apostam todos os meses no Reino Unidos o fazem "com segurança e responsabilidade". O setor diz ainda que o percentual de pessoas que têm problemas com apostas estaria em 0,3% da população adulta, o que seria baixo para padrões internacionais. Hermano Tavares cita números maiores para o Brasil e chama atenção para o impacto do problema também sobre os familiares das pessoas viciadas. "Ao longo da vida, 1% da população vai preencher critérios para transtorno do jogo e outro 1,3% terá uma síndrome parcial, ou o que a gente chama de jogo problemático. Somadas as duas parcelas, a gente tem 2,3% da população", diz o psiquiatra da USP. "E se você considerar a taxa de exposição, que é a pessoa que não aposta, mas convive com um apostador, e, consequentemente, sofre com todos os problemas dele, como desemprego, endividamento extremo, inadimplência, ser privado de oportunidades, isso pode chegar a 10% da população", acrescenta. No entanto, apesar de ser pessoalmente contra a legalização de jogos, o psiquiatra da USP diz que essa decisão não cabe ao setor de saúde isoladamente, já que há também argumentos econômicos favoráveis à atividade, como a geração de emprego e arrecadação de impostos. "Não cabe ao pessoal da saúde definir se uma atividade como essa vai ser legalizada ou não. O pessoal da saúde vai apontar, quantificar, quais são os riscos e benefícios, e às vezes não saberá dizer se os riscos superam os benefícios ou o contrário", ressalta.
2023-03-14
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cp415qqj178o
brasil
Quem mandou matar Marielle e outras perguntas sem resposta 5 anos após o crime
Cinco anos depois de a vereadora Marielle Franco (PSOL) e o motorista Anderson Gomes serem mortos a tiros no centro do Rio de Janeiro, a polícia ainda não identificou os mandantes do crime. Também não se sabe até hoje qual teria sido o motivo dos assassinatos. Não dá para dizer sequer se houve mandantes, porque os dois homens presos sob a suspeita de serem os executores do crime negam as acusações, e ninguém foi acusado além deles até agora. Ou mesmo afirmar que os dois acusados foram de fato os executores da emboscada contra Marielle, Anderson e a assessora parlamentar Fernanda Chaves, única sobrevivente, porque os dois não foram julgados até hoje. “A regra em casos assim tem sido a impunidade, mas estamos trabalhando para que a morte de Marielle não se transforme em mais um sem solução”, diz Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional Brasil, que lançou uma petição para marcar os cinco anos do caso e pressionar o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) por respostas. Fim do Matérias recomendadas O governo Lula enviou ao Congresso no início do mês um projeto de lei para transformar o 14 de março no Dia Nacional Marielle Franco. “Lutaremos por Marielle Franco”, disse a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, ao anunciar em 8 de março um pacote de medidas para garantia de direitos femininos. Estava ao lado dela no palco a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, irmã de Marielle, eleita recentemente pela revista Time uma das mulheres do ano. A ministra disse à rádio CNN que não quer esperar mais cinco anos para saber quem mandou matar sua irmã. “O crime precisa ser solucionado, será uma resposta à democracia”, afirmou. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Esclarecer as mortes de Marielle e Anderson são uma “questão de honra”, disse o ministro da Justiça e Segurança Pública (MJSP), Flávio Dino (PSB), ao assumir o cargo em janeiro. "Eu disse à ministra Anielle e à sua mãe que é uma questão de honra do Estado brasileiro empreender todos os esforços possíveis e cabíveis, e a Polícia Federal assim atuará, para que esse crime seja desvendado definitivamente e nós saibamos quem matou Marielle e quem mandou matar Marielle Franco naquele dia no Rio de Janeiro", afirmou. Dino mandou a Polícia Federal (PF) abrir um inquérito para investigar os assassinatos. A PF irá auxiliar na apuração dos homicídios, que estão à cargo das autoridades fluminenses, entre elas o Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ), que anunciou neste mês os novos integrantes da força-tarefa à frente do caso. Essa é a quarta troca em cinco anos dos promotores responsáveis pelo caso, que também já passou pelas mãos de cinco delegados da Polícia Civil do Rio. As investigações têm sido marcadas por pistas falsas, reviravoltas e tentativas de obstrução, sem que nunca tenha sido encontrada a arma do crime ou revelada sua origem ou das munições empregadas. “Esperamos que o governo federal cumpra o seu dever e garanta que serão respondidas as perguntas que restam, porque são muitas”, diz Jurema Werneck. Até hoje, apenas duas pessoas foram acusadas pelos homicídios da vereadora e seu motorista. O policial militar reformado Ronnie Lessa e o ex-policial militar Élcio Queiroz foram presos preventivamente em março de 2019 e aguardam julgamento. Lessa é suspeito de ter feito os disparos, e Queiroz teria dirigido o carro usado na emboscada. Ambos negam as acusações. Lessa foi expulso da Polícia Militar do Rio de Janeiro após ter sido condenado na Justiça por ocultação e comércio ilegal de armas depois de 117 peças de fuzis terem sido apreendidas na casa de um amigo seu. Lessa e Queiroz aguardam julgamento com júri popular, que ainda não tem data para ocorrer. A demora foi atribuída pelo juiz Gustavo Kalil, ao negar o pedido de liberdade dos suspeitos e renovar sua prisão preventiva, em setembro do ano passado, aos sucessivos recursos apresentados pela defesa. “Só teremos certeza que os dois indivíduos são efetivamente os executores depois que forem julgados”, diz Jurema Werneck. As investigações não apontaram ainda se Lessa e Queiroz agiram sozinhos ou por ordem de alguém. Ao longo dos inquéritos, foram levantadas suspeitas sobre o ex-vereador Cristiano Girão, ex-chefe de uma milícia que age na Zona Oeste do Rio. Ele foi preso em julho de 2021 acusado pelo MP-RJ de ser o mandante de um duplo homicídio que teria sido executado em 2014 por Ronnie Lessa, segundo o MP-RJ. Sua defesa nega o envolvimento no crime. Outro suspeito é Domingos Brazão, conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Rio. Em 2019, a Procuradoria-Geral da República (PGR) afirmou que “arquitetou o homocídio” e denunciou à Justiça por supostamente obstruir as investigações do caso. O processo corre em sigilo. Girão e Brazão negam estar envolvidos na morte da vereadora e dizem que não são alvos de ações ou inquéritos a respeito. Rafael Borges, presidente da Comissão de Segurança Pública da Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro (OAB-RJ), diz que outra dúvida nunca realmente sanada foi se o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) teria alguma ligação com o caso. Essa possibilidade começou a ser cogitada porque Ronnie Lessa era vizinho do ex-presidente em um condomínio na Barra da Tijuca. Lessa disse à revista Veja que ele e Bolsonaro não eram próximos, mas que o ex-presidente o ajudou em 2009 a conseguir prioridade em um atendimento na Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação, da qual Bolsonaro seria patrono. Também foram encontradas nas investigações uma foto de Élcio Queiroz com o ex-presidente feita em outubro de 2018 e manifestações em apoio ao ex-presidente. Bolsonaro sempre negou qualquer envolvimento com o crime ou os dois acusados. “É fundamental descobrir decisivamente se houve ou não participação da família do presidente da República depois de serem apontadas várias conexões possíveis”, diz Borges. Borges diz que outra pergunta importante e que ainda não foi respondida é o motivo do assassinato da vereadora e seu motorista. A investigação precisa responder, por exemplo, se o crime foi um ato de vingança, afirma o advogado. “O crime tem uma dimensão política inquestionável, pelo simples fato da vítima ser porta-voz de uma pauta política-eleitoral ligada a grupos minoritários”, afirma Borges. “Foi para dar uma sinalização contra a participação de mulheres pretas empoderadas na política?” Outra hipótese é que Marielle Franco teria sido morta por ter conquistado muitos votos em áreas antes dominadas por seus rivais políticos. “Ou foi pela ligação dela com o Marcelo Freixo [do qual Marielle foi assessora], porque ele andava com muitos seguranças e seria difícil de matar?”, questiona o advogado Rafael Borges. A perícia determinou que uma submetralhadora HKMP5 foi usada para matar Marielle e Anderson, mas a arma nunca foi encontrada. Em 2021, Ronnie Lessa, sua mulher, cunhado e dois amigos foram condenados pela Justiça por destruição de provas ao descartar armas de fogo no mar do Rio. A suspeita é que a submetralhadora usada na emboscada contra a vereradora e seu motorista estaria entre elas, mas nada foi recuperado pelas operações de busca. Uma hipótese é que a arma teria sido extraviada da Polícia Civil do Rio, e as munições, de lotes vendidos à PF. Jurema Werneck, da Anistia Internacional, diz que saber a origem da arma e munições usadas no crime é importante não apenas para solucionar este caso. “Isso é crucial para interromper uma cadeia de violação de direitos humanos que contribui para impunidade no Brasil”, afirma. “Não sou especialista em Direito, mas, do ponto de vista do dever, se foram extraviadas arma e munições que deveriam ser controladas, acredito que o Estado brasileiro pode ser responsabilizado por estes crimes”, acrescenta. A PF auxiliará a Polícia Civil e o MP-RJ na investigação do caso após o governo federal determinar a abertura de um inquérito. Rafael Borges, da OAB-RJ, avalia que isso pode contribuir para que as investigações voltem a avançar. “Isso não anula os esforços que já foram feitos, se soma a eles. A PF tem acesso ao banco de dados oficiais sobre armas e munições, é mais capilarizada pelo país e tem uma estrutura, aparato e expertise melhor”, afirma. No entanto, o advogado acredita que o longo tempo passado desde o crime prejudica as chances de o envolvimento da PF responder as perguntas ainda sem resposta do caso.. “Está muito longe, e o timing é decisivo. Não nutro grandes esperanças de que vai ser a solução do caso. É uma sinalização mais de ordem simbólica e política do que uma contribuição efetiva para a investigação.” O envolvimento da PF também não significa que a apuração tenha sido federalizada. Isso só ocorreria caso o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) concordasse que as autoridades estaduais não estavam fazendo um bom trabalho e aceitasse transferir a competência da investigação para a esfera federal. Mas o tribunal rejeitou um pedido da PGR em 2020 e disse que a investigação estava sendo bem conduzida e que não havia motivos para federalizar o caso. Mas essa possibilidade não está descartada, segundo Flávio Dino. “A primeira linha é trabalho em conjunto com o MP-RJ. Se não houver resultado, vamos reavaliar isso. Não estamos abandonando a tese da federalização, estamos suspendendo a tese”, disse o ministro em coletiva de imprensa em fevereiro. A família de Marielle foi contra a federalização na época em que o caso foi analisado pelo STJ por receio de que a PF sob os governos de Michel Temer (MDB) e Bolsonaro não conduziria bem as investigações. Mas a ministra Anielle Franco afirmou recentemente que a família pode mudar de posição com o início do novo governo Lula. No entanto, o governo federal precisaria apresentar justificativas inéditas ao STJ para que um pedido de federalização fosse analisado, diz Borges. “O STJ já negou, e aquela decisão transitou em julgado. O pedido pode ser refeito, mas precisa ter um elemento novo. E não vi nenhum fato noticiado que justicaria isso até o momento, então, prevalece o trânsito em julgado.”
2023-03-14
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3g7917eqp5o
brasil
Por que estabilidade no serviço público foi considerada fundamental em caso de joias para Michelle Bolsonaro
A estabilidade dos servidores públicos voltou a ser alvo de discussão nos últimos dias, após o caso das joias avaliadas em cerca de R$ 16,5 milhões que foram enviadas da Arábia Saudita ao Brasil e teriam como destinatária a então primeira-dama Michelle Bolsonaro. De acordo com reportagem da TV Globo, aliados do então presidente Jair Bolsonaro chegaram a tentar liberar as peças, mas foram impedidos por auditores da Receita Federal, que apontaram a falta de uma série de requisitos formais no pedido de liberação. Essas joias (um colar, um anel, um relógio e um par de brincos de diamantes) foram apreendidas em outubro passado, após serem confiscadas ao chegar ao país com um integrante da comitiva do Ministério de Minas e Energia que desembarcou no Aeroporto de Guarulhos. Elas foram apreendidas, conforme revelado primeiramente pelo jornal O Estado de S.Paulo, porque não foram declaradas nem como itens pessoais, sujeitos a pagamento de impostos, nem como presente oficial para o Estado brasileiro. Em rede social, Michelle Bolsonaro afirmou que não tinha conhecimento das joias. Fim do Matérias recomendadas À rede CNN Brasil, o ex-presidente disse que incorporou ao acervo privado um outro estojo presenteado pelos sauditas com caneta, anel, relógio, um par de abotoaduras e um terço, mas negou irregularidades. Ele negou conhecimento dos objetos que teriam sido destinados a Michelle. Em meio à repercussão do caso, um dos fatos que chamou a atenção foi a importância da estabilidade dos servidores da Receita Federal para impedir a liberação da entrada do material valioso no país. Essa estabilidade costuma ser alvo de discussões frequentes. Enquanto há quem a defenda como medida fundamental para a administração pública, outros afirmam que é uma forma de desmotivar esses trabalhadores ou até mesmo tornar o serviço público ineficiente. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A estabilidade no serviço público é assegurada na Constituição Federal desde 1934 e sofreu alterações pontuais ao longo das décadas. Atualmente, ela tem início após o servidor concursado passar por um período de três anos exercendo a sua função de modo adequado. Esse recurso tem o objetivo principal de defender a administração pública. Isso serve para tentar evitar que a máquina pública seja usada para fins políticos, apontam os especialistas. “É um mecanismo de proteção que permite aos servidores dizerem não e barrarem atitudes de governantes que possam ser contrários aos procedimentos e à legalidade”, diz Gabriela Lotta, professora de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas (FGV). O caso das joias barradas no aeroporto passou a ser usado como exemplo sobre a relevância dessa estabilidade. "É um exemplo muito claro de que a estabilidade protege a sociedade e não o servidor público em si. É uma proteção maior para o Estado brasileiro", diz Mauro Silva, presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco). "Justamente para que uma chefia A ou B ou um chefe do governo não fique à vontade para pressionar o servidor. É o caso das joias em que os auditores não se sentiram pressionados porque estavam fazendo o que a lei manda", acrescenta Silva. Para o presidente da Unafisco, caso não houvesse a estabilidade no serviço público, o fim da história das joias poderia ser outro. “Sem essa estabilidade o servidor poderia se sentir ameaçado de demissão por causa dessas insinuações (feitas para liberar as joias), que não foram poucas. É exatamente para evitar isso que existe a estabilidade”, diz. Pelo mundo, inúmeros países também adotam a estabilidade no funcionalismo público. “As grandes democracias asseguram a lógica de estabilidade para seus servidores, incluindo os EUA, que é um país bastante liberal. Durante as últimas décadas houve um movimento de diminuição do número de servidores públicos em vários destes países também, processo vinculado às chamadas reformas gerenciais ou neoliberais”, explica Gabriela Lotta. O que ocorreu nesses países que fizeram reforma relacionada ao funcionalismo público, diz Lotta, foi uma diminuição principalmente de estabilidade a servidores que prestavam serviços diretos aos cidadãos — como profissionais de saúde. Já os servidores de áreas sensíveis e que podem sofrer pressões políticas, como área fiscal e de regulação, continuaram com a estabilidade. No Brasil, os servidores somente perdem seus cargos em razão de infração considerada grave, após processo judicial ou administrativo, no qual há a chance de ampla defesa. Nas últimas décadas, houve diversas tentativas de reduzir ao máximo a estabilidade concedida no serviço público brasileiro. Há quem defenda o fim dessa estabilidade, sob o argumento de que essa medida é prejudicial e afeta funções importantes porque faz com que os trabalhadores se sintam desmotivados a prestar um bom serviço. Essa ideia de que servidores com estabilidade têm um desempenho inferior, pois muitos podem se sentir acomodados, é criticada por Gabriela Lotta. “Essa lógica não se comprova assim. O que os estudos mostram é que vários fatores impactam no desempenho (inclusive o acesso a recursos, a possibilidade de crescimento na carreira, o ambiente de trabalho etc). E sem considerar estes vários fatores, não dá para fazer uma associação direta entre desempenho e estabilidade”, diz. Lotta ressalta que a estabilidade no funcionalismo público brasileiro “não é irrestrita” e que há situações em que é possível haver demissões em alguns casos. “Por exemplo, quando há abandono de cargo, falta injustificada, crime de corrupção ativa e passiva, prevaricação e outros. Centenas de servidores públicos são exonerados por ano. Mas esse processo não é uma decisão hierárquica unilateral, ela pressupõe um processo e várias instâncias recursivas justamente para garantir ampla defesa para o servidor e protegê-lo de perseguições, por exemplo”, afirma. O governo Bolsonaro, crítico ferrenho da estabilidade no funcionalismo público, chegou a apresentar uma proposta por meio da reforma administrativa para alterar a estabilidade e deixá-la na forma atual somente a algumas carreiras, como aquelas que são consideradas estratégicas para a administração pública. Mas a proposta não seguiu como o governo Bolsonaro esperava no Congresso. Especialistas ouvidos pela reportagem acreditam que as chances de haver qualquer medida de retirada da estabilidade de servidores públicos, como já discutido em décadas passadas, é quase nula. “Não vejo com bons olhos o fim da estabilidade, pois a máquina pública, mais especificamente a brasileira, não está preparada para isso. A perda da estabilidade geraria uma série de demissões com caráter político e a finalidade pública estaria comprometida. A estabilidade tem previsão constitucional e o seu desmonte é uma ruptura caótica”, afirma o advogado Felipe Carvalho, especialista em Direito Público, Eleitoral e Administrativo. Carvalho acredita que a estabilidade do serviço traz “um comodismo ao servidor (não todos)”, que, segundo ele, “poderia ser enfrentado se os entes públicos tivessem sistemas de avaliações realmente bons, delimitados e amplamente divulgados”. Para o presidente da Unafisco, Mauro Silva, tentar colocar um fim na estabilidade é uma ameaça ao país por parte “daqueles políticos que querem se aproveitar do Estado brasileiro”. “Quem impede esse político que quer trazer o patrimônio público para o privado é o servidor público com estabilidade. E o mau político que quer se aproveitar tem todo o interesse de retirar a estabilidade do servidor para eliminar aquele que está na frente para impedir”, declara Silva.
2023-03-13
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cl4vy186de0o
brasil
Por que feijão está sumindo do prato dos brasileiros
Os brasileiros estão perdendo o hábito de comer feijão diariamente, em meio a mudanças culturais, avanço dos alimentos ultraprocessados e aumento de preços do produto. Seguindo a tendência dos últimos anos, o feijão deixará de ser consumido de forma regular – de 5 a 7 dias na semana – em 2025, conforme estudo do Programa de Pós-graduação em Saúde Pública da Faculdade de Medicina da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). A partir daquele ano, a maior parte dos brasileiros passará a comer o alimento símbolo nacional com frequência considerada irregular (1 a 4 dias), de acordo com a pesquisa. A perda de espaço do feijão no prato nacional, e sua substituição por alternativas menos saudáveis, tem consequências para a segurança alimentar e para a saúde da população. Segundo o levantamento da UFMG, não consumir feijão está associado a uma chance 10% maior de desenvolver excesso de peso e 20% maior de obesidade, em relação à parcela da população que consome o produto com alguma frequência. Fim do Matérias recomendadas Entenda nesta reportagem: "O feijão surgiu de uma miscigenação das nossas heranças culinárias", observa a nutricionista Fernanda Serra Granado, que pesquisou o tema em seu doutorado na UFMG. Segundo ela, a leguminosa já era um alimento nativo na América, conhecido pelos indígenas, que consumiam os grãos sem caldo, mesmo antes da colonização portuguesa. Os portugueses acrescentaram o caldo, uma solução encontrada pelas senhoras europeias para umedecer a comida nativa, que elas consideravam muito seca. Trazidos ao Brasil escravizados, os africanos também consumiam o alimento, adicionando seus saberes ao preparo. Mas a construção do feijão como um símbolo nacional só vai acontecer bem mais para frente, durante o Modernismo Brasileiro dos anos 1920. "Aí ele é expresso em poesia, em músicas e é reconhecido como esse símbolo identitário da nossa tradição culinária", diz Granado. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em termos nutricionais, o feijão é rico em proteínas e minerais, incluindo o ferro, além das vitaminas C e do complexo B (à exceção da B12, de origem animal) e fibras solúveis e insolúveis, importantes para o bom funcionamento da digestão. "Além de ter um excelente perfil nutritivo e ser importante para manutenção da saúde da população, o feijão é um marcador de qualidade da dieta", afirma a pesquisadora. "Isso porque o indivíduo, quando consome feijão, acaba complementando o prato com outros alimentos saudáveis, como arroz, vegetais, salada e uma proteína animal. Então, em geral, o feijão é um dos componentes de uma refeição nutricionalmente equilibrada." Além da tradição histórica e do valor nutricional, a pesquisadora destaca a importância social do feijão na dieta brasileira. "O feijão é um elemento de segurança alimentar e nutricional, porque a alimentação saudável é um direito da população, previsto na Constituição", observa a nutricionista. O cumprimento desse direito implica no acesso a alimentos saudáveis, de forma permanente, regular, em quantidade suficiente, sem que isso comprometa outras necessidades essenciais da vida, como moradia, vestuário, entre outras. "Por ser um alimento saudável e acessível, o feijão é um elemento importante em termos sociais para garantia da segurança alimentar e nutricional", conclui Granado. Para analisar a evolução do consumo de feijão nos últimos anos no Brasil, a pesquisadora usou dados do Vigitel (Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico), pesquisa feita anualmente por telefone pelo Ministério da Saúde. "A POF [Pesquisa de Orçamentos Familiares] do IBGE de 2017 já mostrava uma redução de 7% na participação dos alimentos in natura no consumo dos brasileiros. Ao mesmo tempo, mostrava um aumento de 46% nos ultraprocessados, em relação a 2002", observa Granado. "Foi isso que me instigou a investigar a tendência no consumo do feijão", explica. Analisando dados do Vigitel de mais de 500 mil adultos entre 2007 e 2017, a pesquisadora observou uma tendência de queda do consumo da leguminosa entre 2012 e 2017. A redução aconteceu entre homens e mulheres, de todas as faixas etárias. A partir da observação do passado, ela então utilizou métodos estatísticos para projetar o que deve acontecer à frente, até 2030. "Para nossa surpresa, vimos essa inversão em 2025, quando o consumo regular, de 5 a 7 dias por semana, vai perder prevalência para o consumo não regular, de 1 a 4 dias", diz Granado. "Entre as mulheres, a estimativa é de que essa mudança já tenha acontecido no ano passado [em 2022], e para os homens, vai acontecer em 2029", detalha a especialista. Mudanças culturais e o avanço dos ultraprocessados – alimentos calóricos e de baixo valor nutricional – estão no centro da redução do consumo de feijão, segundo a pesquisadora. "Na década de 1980, há a entrada das grandes transnacionais de alimentos no Brasil e o avanço da participação das mulheres no mercado de trabalho, o que causa uma modificação no perfil de consumo da população, com os ultraprocessados sendo percebidos como uma solução prática para o dia a dia", observa a nutricionista. "Com o passar do tempo, há também uma perda de práticas culinárias, da habilidade em si de preparar os alimentos, com a tradição de receitas que passavam entre gerações que começa a se perder." Um terceiro fator que pesa na redução de consumo do feijão é o aumento de preços do produto, observa a especialista. Em 11 anos, entre janeiro de 2012 e janeiro de 2023, o feijão carioca acumula alta de preços de 122% e o feijão preto, de 186%, comparado a uma inflação geral de 89% no período, segundo o IPC (Índice de Preços ao Consumidor) da FGV (Fundação Getulio Vargas). Ou seja, em pouco mais de uma década, o feijão carioca dobrou de preço e o feijão preto, quase triplicou. Um dos fatores que explica esse encarecimento é a perda de espaço da produção agrícola de feijão para commodities como a soja e o milho, explica Granado. Segundo dados da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), a área plantada de feijão no Brasil na safra 2022-2023 deverá ser de apenas 859 mil hectares, a menor da série histórica com início em 1976. O número representa uma redução de 65% em relação ao momento de auge, na safra 1981/1982. "O produtor acaba abandonando a produção de feijão e outros alimentos que possuem valor agregado menor em comparação a commodities como soja e milho, que têm safras muito mais lucrativas, com demanda internacional", observa Granado. Por fim, com relação à queda maior do consumo entre as mulheres, a especialista avalia que isso pode ser fruto da dupla jornada, que pode estar fazendo com que elas optem com mais frequência pela conveniência dos ultraprocessados. O estudo da UFMG investigou ainda a relação entre o consumo ou não de feijão e a obesidade. Segundo o levantamento, os indivíduos que consomem feijão de forma regular, de 5 a 7 vezes por semana, têm chance 14% menor de desenvolver sobrepeso e 15% menor de serem obesos. Já o não consumo é um fator de risco, com 10% de chance maior de excesso de peso e 20% de possibilidade maior de obesidade. "Concluímos com isso a importância das nossas escolhas alimentares sobre o nosso perfil de saúde", diz Granado. "O indivíduo que não consome feijão, ou consome uma ou duas vezes por semana – o que não é suficiente – tem um fator de risco porque, muito provavelmente, nos dias em que ele tira o feijão de sua alimentação durante a semana, ele está fazendo opções não saudáveis. São essas opções que contribuem para o maior ganho de peso." Para Granado, para mudar esse quadro é preciso uma revalorização do feijão como um elemento da nossa cultura, um alimento símbolo e parte da identidade nacional do país. Para isso, ela sugere que seria desejável uma maior tributação dos alimentos ultraprocessados e pouco saudáveis. Países como França e México já adotam taxação mais alta para bebidas açucaradas, por exemplo, com bons resultados, cita a especialista. Outro passo importante é a rotulagem nutricional. Granado avalia que o Brasil avançou nesse sentido com o novo padrão de rotulagem, em vigor desde outubro de 2022, que indica a presença de alto teor de sódio, gordura e açúcar nos alimentos. "Isso contribui para o consumidor ter uma consciência melhor dos alimentos que ele está adquirindo e para que possa fazer escolhas melhores", afirma. Por fim, a nutricionista defende que, além da taxação dos alimentos não saudáveis, seria desejável subsidiar os saudáveis, por exemplo, por meio do incentivo à agricultura familiar, para que o produto chegue a um preço mais baixo às prateleiras, estimulando o consumo.
2023-03-11
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c90935j2k8go
brasil
Joias para família Bolsonaro: como episódio pode colocar imagem dos militares em xeque
A revelação de que o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) tentou reverter a apreensão de um conjunto de joias dado de presente pela família real da Arábia Saudita colocou, novamente, militares no centro de um caso rumoroso. As reportagens publicadas primeiramente pelo jornal O Estado de S.Paulo mostram como pelo menos quatro militares tentaram, de diferentes formas, obter a liberação das joias destinadas à família Bolsonaro. O caso virou alvo de investigações conduzidas pela Polícia Federal, Receita Federal e Ministério Público Federal (MPF). Na cena política, o episódio vem sendo explorado por políticos aliados ao governo para desgastar a imagem do ex-presidente. Os apoiadores de Bolsonaro, por sua vez, minimizam o caso e defendem que ele não tomou nenhuma atitude irregular. Em meio a esse "tiroteio" político, a imagem dos militares volta a ficar em evidência em um caso relacionado à proximidade deles com o antigo governo. Ao longo dos quatro anos da gestão de Bolsonaro, pesquisas apontaram que houve um aumento significativo na presença militar em cargos civis. Fim do Matérias recomendadas Essa proximidade nem sempre foi acompanhada de uma percepção positiva, como no caso da gestão do general Eduardo Pazuello, que comandou o Ministério da Saúde entre setembro de 2020 e março de 2021. No período, o Brasil vivenciou picos nos casos de covid-19 e se transformou em um dos países com o maior número absoluto de mortes pela doença. Mas como os militares viraram peças-chave no episódio das joias de Bolsonaro? E qual o impacto do caso na reputação deles? A BBC News Brasil entrevistou duas especialistas em assuntos de Defesa que avaliaram que a presença dos militares no caso é resultado, em parte, do aumento de integrantes da caserna na gestão do governo passado. Elas avaliam ainda que o episódio tem um efeito significativo na imagem que boa parte da sociedade brasileira tem sobre os militares. Segundo elas, afeta a ideia de que as Forças Armadas seriam compostas por uma espécie de "casta superior". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Segundo reportagens publicadas até agora, o caso começou em outubro de 2021, quando a Receita Federal apreendeu um conjunto de joias contendo um colar de diamantes, brincos, anel e relógio avaliado em R$ 16 milhões no Aeroporto de Guarulhos. As joias fariam parte de um presente dado pela família real da Arábia Saudita ao então presidente Jair Bolsonaro e à ex-primeira-dama, Michelle Bolsonaro. A participação de militares no episódio começa desde o seu início, uma vez que as joias estavam sendo transportadas pelo tenente do Exército Marcos Soeiro, então assessor do ex-ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque (e, por sua vez, um almirante da Marinha). Segundo as reportagens, os bens não foram declarados à Receita Federal quando entraram no país. De acordo com a legislação, bens acima de US$ 1.000 que entrem no Brasil por via aérea precisam ser declarados à Receita Federal e, para serem liberados, é necessário pagar uma multa equivalente a 50% do valor do produto, além de outra de 25%. Ou seja, seria preciso pagar uma multa de R$ 12 milhões. Após a publicação das reportagens, o ex-presidente disse, em entrevista nos Estados Unidos, que não cometeu nenhuma irregularidade e que as tentativas de reaver as joias tinham como objetivo incorporá-las ao "acervo". Ele não especificou se era uma referência ao seu acervo pessoal ou ao da Presidência da República. "Eu não fiquei sabendo. Dois, três dias depois a Presidência notificou a alfândega que era para ir para o acervo. Até aí tudo bem, nada demais. Poderia, no meu entender, a alfândega ter entregue. Iria para o acervo, e seria entregue à primeira-dama. O que diz a legislação? Ela poderia usar, não poderia se desfazer", disse o ex-presidente. A ex-primeira-dama declarou em uma rede social que não tinha conhecimento das joias. Em nota divulgada no dia 4 de março, a Receita Federal afirmou que os procedimentos para destinação das joias ao acervo da Presidência não foram tomados pelo antigo governo. "A incorporação ao patrimônio da União exige pedido de autoridade competente, com justificativa da necessidade e adequação da medida, como por exemplo a destinação de joias de valor cultural e histórico relevante a ser destinadas a museu. Isso não aconteceu neste caso", disse a nota. Bento Albuquerque, em comunicado enviado à BBC News Brasil, declarou que o governo brasileiro "tomou as medidas cabíveis e de praxe, como sempre ocorreu, em relação aos presentes institucionais ofertados à Representação Brasileira" e que "em função dos valores histórico, cultural e artístico dos itens, o ministério encaminhou solicitação para que o acervo recebido tivesse o seu adequado destino legal". Um vídeo divulgado pela Rede Globo mostra o momento em que Albuquerque e seu assessor conversam com fiscais da Receita Federal no Aeroporto de Guarulhos logo após as joias serem apreendidas. No vídeo, Albuquerque afirma que os bens teriam como destino a então primeira-dama Michelle Bolsonaro. Apesar da intervenção de Albuquerque, os fiscais da Receita mantiveram os bens retidos. Depois disso, ainda segundo as reportagens, o governo começou uma série de tentativas para liberar as joias apreendidas. Entre essas investidas, houve um pedido feito pelo Ministério de Minas e Energia ao Ministério das Relações Exteriores (MRE) para que a pasta intercedesse na Receita pela autorizar os bens. A dois dias do fim do mandato de Bolsonaro, uma última tentativa de reaver as peças foi feita e ela também envolveu militares. O sargento da Marinha Jairo Moreira da Silva foi enviado em missão "urgente" ao aeroporto de Guarulhos para fazer a retirada das joias que estavam apreendidas. O militar foi enviado pelo então chefe da Ajudância de Ordens de Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid. Apesar da tentativa, os servidores da Receita, que têm estabilidade funcional, não cederam e mantiveram a joias retidas. Para a professora da Escola Superior de Guerra (ESG) Mariana Kalil, o fato de os militares terem sido tragados para o "olho do furacão" do caso das joias é uma consequência de um fenômeno que se acentuou durante o governo Bolsonaro: o aumento da presença de militares em cargos civis. Uma pesquisa Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas (Ipea) divulgada no ano passado apontou que entre 2013 e 2022, houve um crescimento de 193% no número de militares ocupando cargos civis no governo federal. Kalil explica que isso aconteceu porque houve uma conjunção de dois fatores simultâneos. "De um lado, você tinha um governo que precisava de quadros. E, de outro, você tinha as Forças Armadas que concordaram em ceder essas pessoas para compor o governo e ampliar sua presença no governo", disse Kalil. A professora avalia que essa demanda mais acentuada por militares em cargos civis é resultante de uma espécie de "mística" criada em torno da formação militar no país. "É uma herança dos tempos da ditadura. Foi criada uma ideia de que militares teriam uma formação para tratar de questões como segurança e desenvolvimento. Isso explica, em parte, porque um almirante foi nomeado ministro de Minas e Energia. A realidade é que militares não são normalmente treinados para isso. São treinados para atuar em questões de defesa", afirmou. A pesquisadora da PUC do Rio de Janeiro Maria Celina Soares D'Araújo é doutora em Ciência Política e estuda, há décadas, os militares e questões de defesa no Brasil. Ela concorda com Mariana Kalil sobre a "janela de oportunidade" que se criou durante o governo Bolsonaro para o aumento da presença de militares no governo. "A ocasião faz o ladrão. Abriram espaço e os militares aproveitaram esse vácuo para ocupar postos de relevo. Os militares no Brasil são uma elite e se comportaram como elite ao assegurar posições e recursos. Mas, ao fazer isso, eles foram tragados para o olho do furacão", explica a professora. Tanto Mariana Kalil quanto Maria Celina Soares D'Araújo avaliam que a participação direta de militares nas tentativas de liberar as joias dadas à família Bolsonaro mancham a reputação da instituição. "No Brasil, criou-se o mito de que os militares fossem uma casta superior, incorruptíveis e muito técnicos. Esse episódio colocou esse mito em xeque. Há uma exposição muito negativa", afirma Kalil. Para Maria Celina, o dano à imagem dos militares neste caso é grave. "O envolvimento das Forças Armadas com esse episódio das joias é muito sério porque, no Brasil, elas nunca foram rotuladas como parte de uma chamada 'cleptocracia' como vimos em alguns países vizinhos. Essa imagem se manteve intacta até recentemente. Agora, estamos vendo casos de militares em transações escusas e isso tem um impacto grande nessa mística", afirmou. Mariana Kalil afirma que, entre os militares, o caso é tratado com certo distanciamento porque, na visão deles, as pessoas envolvidas não estavam atuando como militares. "Os envolvidos estavam atuando como civis porque estavam cedidos por suas forças. O problema é que uma vez militar, sempre militar. As pessoas, em geral, não vão fazer essa distinção", afirma. Em nota, o Exército disse que como o militar envolvido no episódio não estava a serviço da Força, os processos investigatórios devem ser feitos pelo órgão ao qual ele estava subordinado. "O Exército segue à disposição dos Órgãos que apuram os fatos, a fim de contribuir com as investigações, sendo que quaisquer esclarecimentos solicitados serão prestados exclusivamente a esses órgãos. Nesse contexto, a Instituição tem proporcionado total apoio para o esclarecimento de todos os fatos", disse outro trecho da nota. A Marinha enviou nota informando que o caso está sendo apurado fora do âmbito militar. A reportagem também entrou em contato com Mauro Cid, mas ele não respondeu às chamadas e às mensagens enviadas. O sargento Jairo Moreira da Silva desligou o telefone quando a reportagem se identificou. Marcos Soeiro e seus representantes não foi localizado pela reportagem.
2023-03-10
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn05845dx73o
brasil
Como escândalos sexuais no Vaticano ameaçam obras na Basílica de Aparecida, mais importante igreja católica do Brasil
Foi com alarde e entusiasmo que o Santuário Nacional de Aparecida, mais importante centro de peregrinação católica do Brasil, inaugurou em março de 2022 a fachada norte do templo, com um mosaico gigante retratando cenas bíblicas. Era a primeira fase de uma obra que prevê trabalhos semelhantes em todos os quatro lados da igreja dedicada à santa padroeira do Brasil. Um ano depois, silêncio e constrangimento são a tônica da administração da basílica. E a própria continuidade do trabalho está comprometida. Isto porque o idealizador da obra artística e coordenador geral da execução está formalmente sob investigação no Vaticano. Marko Ivan Rupnik, padre esloveno de 68 anos, considerado um dos maiores expoentes — para muitos, o maior e mais importante — da arte sacra contemporânea, é acusado de abusos sexuais, psicológicos e espirituais. E a ordem religiosa à qual ele pertence, a Companhia de Jesus, impôs a ele a proibição de diversas atividades, inclusive trabalhos artísticos. Até o momento, segundo fontes ouvidas pela reportagem, há denúncias de pelo menos 20 mulheres adultas — dentre elas, nove freiras — e pelo menos um homem, também adulto. Fim do Matérias recomendadas Conforme cronologia divulgada pela Companhia de Jesus, todos os casos teriam ocorrido entre 1980 e 2018. Até o momento, há relatos de delitos que teriam sido praticados tanto em seu país natal, Eslovênia, como na Itália, onde Rupnik vive desde 1991. Nos últimos dias, a reportagem ouviu cinco pessoas próximas à Cúria Romana em busca de informações a respeito — todas elas pediram para ter suas identidades preservadas na reportagem. A BBC News Brasil procurou o Centro Aletti, ateliê de arte espiritual fundado por Rupnik em 1995 e com o qual ele produz suas obras, solicitando uma entrevista com o religioso ou, pelo menos, um posicionamento por escrito da instituição. Não houve resposta. Também questionada pela reportagem, a Companhia de Jesus ressaltou que "todas as informações podem ser encontradas [em notas] no site" oficial da ordem. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Quanto às obras em Aparecida, há uma grande equipe de artistas envolvidos, não somente o padre Rupnik, e imagino que possam continuar sem a presença do padre Rupnik", escreveu à BBC News Brasil, por e-mail, o padre belga Johan Verschueren, delegado para as Casas e Obras Interprovinciais da Companhia de Jesus em Roma. Ele é o responsável, dentro da ordem, por coordenar as investigações internas a respeito do caso. Existe uma série de problemas com relação a isso, na realidade. Primeiramente porque embora as obras monumentais de Rupnik em Aparecida sejam executadas por uma vasta equipe de artistas — na última fase que contou com o sacerdote no Brasil, no segundo semestre do ano passado, foram três meses de trabalho em que ele capitaneou um grupo de 39 mosaicistas —, tanto a concepção artística quanto a coordenação são do famoso padre-artista. E ele está proibido pelos seus superiores de executar qualquer trabalho artístico. Por isso, nos bastidores, especula-se com mais dúvidas do que certezas sobre como seria a continuidade dos trabalhos nas demais fachadas do templo. O outro problema é de ordem moral. Com 4 mil metros de mosaicos, a fachada já inaugurada de Aparecida é a maior obra realizada por Rupnik em todo o planeta, dentre as cerca de 200 de sua lavra. Na totalidade, somando as quatro fachadas, o projeto seria ainda mais monumental. Caso ele realmente seja considerado culpado, como ficaria ter a entrada do principal cartão-postal da fé no Brasil marcada com a arte de alguém formalmente condenado pela Igreja? Oficialmente, ninguém sabe, ninguém diz. A reportagem solicitou entrevistas tanto com o arcebispo de Aparecida, Orlando Brande, quanto com o administrador do Santuário Nacional, padre Heliomarcos Ferraz. Duas negativas. O único posicionamento, por escrito, foi uma nota lacônica da administração, ressaltando que a instituição "acompanha com atenção o caso e aguarda as orientações da Igreja para suas definições". Depois da inauguração da fachada norte, no ano passado, o Santuário concentrou os esforços na etapa seguinte, a fachada sul. "Após a fachada norte, as outras três fachadas da Basílica também serão revestidas com cenas bíblicas. Atualmente, a fachada sul do templo está sendo preparada para receber os mosaicos, que estão sendo produzidos em Roma pelos artistas do Centro Aletti", informou o Santuário, em nota divulgada em março do ano passado. Andaimes e tapumes de obra indicam que o trabalho começou a ser feito logo em seguida. Entre agosto e outubro, Rupnik e um grupo de artistas estiveram em Aparecida executando essa segunda etapa. Em reportagem publicada em agosto pelo A12, portal oficial de notícias do Santuário Nacional, a informação era de que a previsão de conclusão dessa segunda etapa que inclui a aplicação dos mosaicos e também as obras estruturais, seria no fim deste ano, 2023. Questionada pela BBC News Brasil na última terça, a assessoria de imprensa da igreja de Aparecida agora informa que não há previsão de término da atual fase. No momento, a fachada sul permanece toda cercada, com obras de infraestrutura ocorrendo no entorno. A reportagem apurou que a parte artística está praticamente concluída, com toda a fachada já coberta pelo mosaico desde outubro, quando a equipe do Centro Aletti retornou para a Itália, restando apenas o arremate do acambamento. O caso Rupnik veio à público no fim do ano, quando notícias a respeito começaram a ser publicadas pela mídia católica italiana. De início, houve estranheza quanto à organização do caso dentro da complexidade dos escaninhos da estrutura do Vaticano. Isto porque o sacerdote esloveno vem sendo investigado pelo Dicastério para a Doutrina da Fé, nome atual do organismo da Igreja antigamente conhecido como Inquisição. Dentro da lógica eclesial, embasada pelo direito canônico, isto é uma peculiaridade. Porque casos disciplinares de religiosos, ou seja, descumprimento de votos como pobreza, obediência e castidade — como seria o caso de Rupnik —, costumam ser analisados e julgados por um órgão próprio para questões de batina, o Dicastério para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica. À primeira vista, soou como uma tentativa de trazer a questão de Rupnik para uma ingerência mais próxima do papa, num entendimento de Francisco — o também jesuíta Jorge Bergoglio — poderia querer tentar suavizar ou mesmo proteger Rupnik. Logo veio o esclarecimento: pelo menos uma das denúncias envolvia uma questão ligada à Doutrina da Fé, daí a atribuição à tal congregação. A própria Companhia de Jesus esclarece, na cronologia que tornou pública, que em 2018 recebeu "acusações de absolvição de um cúmplice do padre Rupnik em um pecado contra o sexto mandamento". No caso, é a regra de "não pecar contra a castidade". O religioso teria, em confissão, absolvido uma mulher que teve relações sexuais com ele -- ou seja, "de um pecado praticado com ele próprio". Como isso fere o preceito católico, pelo direito canônico ele teria incorrido em infração punida com pena de excomunhão automática — justamente por envolver um sacramento, o da confissão. Como é praxe em denúncias dentro da religião, o caso tramitou internamente dentro da ordem do denunciado, a Companhia de Jesus. Que preparou um dossiê e remeteu ao Vaticano em maio de 2019. Em junho daquele ano, com anuência da cúpula da Igreja, o padre Johan Verschueren impôs restrições a Rupnik. A ordem religiosa não informa quais foram, mas conforme a reportagem apurou, teria sido um enquadramento, perdoando-o mas solicitando que ele adotasse um estilo de vida mais reservado, evitando holofotes. Em paralelo, o Dicastério para a Doutrina da Fé determinou que a Companhia de Jesus instaurasse um processo administrativo. Em janeiro de 2020, houve o veredicto: por unanimidade, todos entenderam que a ação de Rupnik realmente havia sido errônea, por ter absolvido, durante o sacramento da confissão, uma pessoa cúmplice de um ato pecaminoso. Em maio do mesmo ano, a Doutrina da Fé emitiu um decreto de excomunhão de Rupnik, revogado no mesmo mês pelo mesmo órgão. É o que costuma se chamar, nos corredores da Igreja, de "pena medicinal". Um corretivo. O Padre Rupnik poderia seguir sua vida, mas recebera o alerta para que não cometesse mais outros desvios de conduta. Em junho de 2021, contudo, o Vaticano procurou novamente a Companhia de Jesus com novas denúncias quanto ao comportamento de Rupnik — todas envolvendo casos antigos. A investigação foi reaberta. O teor das denúncias era de que o padre Rupnik teria abusado sexualmente de pelo menos nove freiras da Comunidade Loyola, um convento fundado por ele no início dos anos 1990 em Ljubljana, na capital da Eslovênia, e onde ele atuou como capelão. De acordo com a imprensa eslovena, uma das religiosas chegou a tentar se suicidar depois dos abusos. Jornais da Itália publicaram ainda um depoimento de uma freira italiana que relatou ter sido coagida a participar de sexo a três com o padre, "em alusão à Santíssima Trindade". Em 14 de dezembro do ano passado, uma semana depois de os escândalos se tornarem públicos, o padre venezuelano Arturo Sosa Abascal, superior-geral dos jesuítas, fez um pronunciamento em Roma. "Manter em vigor as medidas restritivas do ministério do padre Rupnik é um dos elementos de um processo complexo que, sabemos, leva tempo e para o qual não existem receitas pré-determinadas", afirmou ele. "Faz parte do aprendizado que a gente vai fazendo, tentando não errar." As restrições até então impostas a Rupnik foram a proibição de exercer o sacramento da confissão, a direção espiritual e o acompanhamento de atividades espirituais. O religioso também ficou proibido de se envolver em atividades públicas sem a permissão de seu superior. Uma das fontes ligadas ao Vaticano ouvidas pela reportagem disse que o fato de o caso de Rupnik ter se tornado público pode ter feito com que a Doutrina da Fé cobrasse mais empenho dos jesuítas na investigação. A Companhia de Jesus passou a divulgar um e-mail para o recebimento de denúncias de abusos: teamreferente.dir@gmail.com. Com o surgimento de novas denúncias, os jesuítas publicaram uma declaração no dia 21 de fevereiro. No documento, as restrições ao padre foram enfatizadas e, a elas, somaram-se a proibição de manifestações por meio de obras de arte - o que, em tese, inviabiliza a continuidade de trabalhos como o de Aparecida. "Perante este processo interno, e a título cautelar, ficam reforçadas as regras restritivas contra ele, proibindo-o obedientemente de qualquer exercício artístico público, especialmente em estruturas religiosas (como igrejas, instituições, oratórios e capelas, casas de retiro ou de espiritualidade)", pontuou. "Portanto, essas restrições se somam às já existentes (proibição de qualquer atividade ministerial e sacramental pública, proibição de comunicação pública, proibição de sair da Região de Lazio)", o texto acrescenta. O comunicado salientou ainda que o sacerdote foi convidado a prestar esclarecimentos "mas não o fez". Sobre as supostas vítimas, o documento avaliou que como "muitas dessas pessoas não se conhecem e os fatos narrados dizem respeito a diferentes períodos", pode-se entender que "o grau de credibilidade do que é relatado parece ser muito alto". O relatório diz que há fatos oriundos da Comunidade Loyola, na Eslovênia, "pessoas solteiras que se declaram abusadas na consciência, assediadas espiritual, psicológica ou sexualmente durante experiências de relacionamento pessoal com o padre Rupnik" e ainda integrantes do Centro Aletti. Todos os casos teriam ocorrido entre o início dos anos 1980 e 2018. Segundo o documento, a equipe analisou as implicações tanto quanto ao direito civil quanto ao direito canônico. E o entendimento atual é de que "a natureza das denúncias tende a excluir a relevância criminal do comportamento do padre Rupnik perante as autoridades judiciais italianas". "No entanto, a relevância destes do ponto de vista canônico e sobre sua vida e sua responsabilidade religiosa e sacerdotal é bem diferente", ressaltou. Não há nada tramitando juridicamente contra ele nem na Eslovênia nem na Itália. Pelo direito italiano, casos de abuso sexual envolvendo adultos prescrevem em 12 meses - como as denúncias são todas anteriores a 2018, estão tecnicamente prescritas, e este foi o entendimento dos que elaboraram o dossiê na Companhia de Jesus. Se em Aparecida ainda não foi oficialmente definido o futuro da obra de Rupnik, pelo mundo as repercussões já são grandes. A diocese de Versalhes, na França, cancelou o contrato que havia firmado com o Centro Aletti para uma obra a ser executada lá. Na Eslovênia, a ministra da Cultura, Asta Vrečko, solicitou publicamente que Rupnik devolva o prêmio Prešeren, maior honraria do campo das artes no país, que o governo concedeu a ele no ano 2000. Disse que ele deveria fazê-lo "por decência". Como o assunto está na mídia local, os escândalos envolvendo Rupnik causaram constrangimento na entrega deste ano do prêmio, que existe desde 1947 — a cerimônia sempre ocorre em 8 de fevereiro, data em que se celebra a morte de France Prešeren (1800-1849), considerado o maior poeta da literatura eslovena. No Brasil, a última aparição pública de Rupnik foi no dia 30 de novembro, quando ele deu palestra na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), em Curitiba. Na mesma data, a instituição concedeu a ele o título de doutor honoris causa. Em 13 de fevereiro, a reitoria da universidade publicou uma nota comunicando que "diante dos fatos amplamente relatados", o conselho universitário "aprovou a revogação" do título, por considerar o outrora laureado "indigno de tal homenagem". Na Igreja, os futuro de Rupnik não deve ser fácil. Se ele for considerado culpado de todos os delitos canônicos, pode ser expulso da ordem dos jesuítas e, no pior dos cenários, também ter revogado seu direito ao sacerdócio — "rebaixado ao laicato", como costuma se dizer no Vaticano.
2023-03-10
https://www.bbc.com/portuguese/articles/clj6dyx0jr0o
brasil
Em 2022, Brasil importou US$ 5,3 bilhões da Arábia Saudita, um recorde na relação bilateral
As importações vindas da Arábia Saudita para o Brasil atingiram um recorde em 2022 desde que há registros: foram US$ 5,3 bilhões. Antes, o valor mais alto havia sido registrado em 2014: US$ 3,3 bilhões. Os dados disponibilizados pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) vão até 1997. Analistas consultados pela BBC News Brasil listam como explicações para o recorde a alta mundial nos preços do petróleo e de outros produtos devido aos efeitos da pandemia de covid-19 e da guerra da Ucrânia, mas também a aproximação entre Brasil e a Arábia Saudita durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), de 2019 a 2022. Após uma queda brusca no primeiro ano da pandemia (2020), as importações vindas da Arábia Saudita voltaram a crescer em 2021, ficando em US$ 2,9 bilhões. De 2021 para 2022, o valor importado subiu 84%. Os valores são nominais, ou seja, não consideram a variação da inflação. Fim do Matérias recomendadas Nada menos que 60% do valor das importações de 2022 foram de óleos brutos de petróleo e de minerais betuminosos; 16% de adubos e fertilizantes químicos; e 14% de óleos combustíveis de petróleo e de minerais betuminosos. O restante dos percentuais é composto por produtos intermediários da indústria. De 2021 a 2022, o valor importado apenas de óleos brutos e minerais betuminosos dos sauditas subiu 132%, de US$ 1,38 bi para US$ 3,2 bi. Na verdade, embora não na mesma dimensão, o mercado internacional de petróleo bruto passou em 2022 por uma alta no preço do barril do tipo brent, que é uma referência mundial. "Historicamente, o Brasil sempre foi dependente do petróleo da Arábia Saudita. Como a Arábia Saudita é um dos principais produtores do mundo e tem um tipo de petróleo diferente do nosso, costumamos importar o petróleo leve para misturar com o petróleo pesado que o Brasil produz, gerando gasolina para o mercado interno", explica o presidente executivo da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Castro resume que a balança comercial entre Brasil e Arábia Saudita é simples: o primeiro exporta commodities e importa produtos relacionados ao petróleo. Circunstâncias específicas no Brasil nos anos recentes aumentaram a demanda por combustíveis, como a maior necessidade por óleo diesel pelas termelétricas por conta de secas. "Quando a balança comercial é assim, com poucos produtos, você não tem muita flexibilidade: se o produto principal tem queda ou aumento, automaticamente tem um impacto na balança", diz Castro. "Mas a tendência é que o déficit na balança comercial diminua porque o preço do petróleo está diminuindo", acrescenta. Outro possível reflexo da guerra da Ucrânia foi o aumento de 86% do valor de fertilizantes sauditas importados pelo Brasil de 2021 a 2022. Já as exportações brasileiras para os sauditas alcançaram US$ 2,1 bilhões em 2021 e US$ 2,9 bilhões em 2022 — valor um pouco abaixo do recorde de exportações registrado em 2011, de US$ 3,5 bilhões. No ano passado, destacaram-se no valor exportado as carnes de aves e miúdos (29%); e os açúcares e melaços (14%). Em um texto publicado pela agência de notícias da Câmara de Comércio Árabe-Brasileira, o secretário-geral da instituição, Tamer Mansour, afirmou que a guerra teve efeitos nas exportações brasileiras. “O conflito também teve como efeito a restrição da oferta global de grãos, sobretudo milho e trigo. A consequência foi que os árabes buscaram esses e outros produtos entre fornecedores com mercadoria disponível, o que levou à alta nos preços acima da inflação [5,79%, para o IBGE], com lucros ainda favorecidos pela baixa do real”, explicou Mansour. Para Maiko Gomes, graduado e mestre em relações internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), "definitivamente" houve um outro fator que contribuiu para o aumento das importações e exportações entre os países nos últimos dois anos: a aproximação do governo Bolsonaro dos sauditas. "Apesar de o Brasil ter se beneficiado de outros contextos a nível internacional, como a guerra da Ucrânia e a alta no preço do petróleo, esses diálogos estreitaram as relações entre o Brasil e segmentos internos da Arábia Saudita, principalmente da zona industrial", explica Gomes, que pesquisa temas relacionados ao Oriente Médio. José Augusto de Castro, por sua vez, avalia não haver elementos suficientes para garantir que o governo teve tamanha influência e brinca que "o petróleo não tem nada a ver com o colar [de brilhantes]", referindo-se às joias apreendidas. Em 2019, Bolsonaro fez uma visita oficial ao país árabe e afirmou que estava "apaixonado pela Arábia Saudita" e que tinha uma "certa afinidade" com o príncipe Mohammed bin Salman. Uma declaração conjunta na ocasião anunciou a intenção de se negociar formas de evitar a dupla tributação e de expandir os investimentos entre ambos países. Também foi manifestado o interesse do Fundo Soberano saudita em investir US$ 10 bilhões no Brasil, principalmente em projetos de infraestrutura. O governo brasileiro apresentou posteriormente alguns projetos ao fundo, como o projeto de ferrovia Ferrogrão e o de irrigação no Baixo do Irecê. Entretanto, a promessa de investimento do fundo nunca foi concretizada. Mas outros diálogos, encontros e negócios entre ambas as partes vingaram. Os dois países continuaram mantendo relações com fins comerciais. Em outubro de 2021, por exemplo, o ex-ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, voltava de um evento na Arábia Saudita sobre empreendimentos sustentáveis quando ele e o assessor Marcos André Soeiro foram parados em Guarulhos carregando as joias. Maiko Gomes dá um exemplo bem sucedido. "Um dos elementos cruciais para que nós possamos entender esse crescimento diz respeito aos diálogos iniciados ainda em 2019 entre o Brasil, naquele contexto representado pela Casa Civil e sete outros ministérios, e a zona industrial de Abu Dhabi, o Kezad", aponta o mestre em relações internacionais. O Kezad é uma área industrial e portuária que, apesar de pertencer aos Emirados Árabes, tem incentivos e parcerias com a Arábia Saudita. "Os diálogos tinham o intuito principal de elaborar mecanismos para atrair a atenção de empresas brasileiras para o Kezad. Ao final de 2019, a única empresa brasileira na Kezad era a BRF, responsável pela exportação de proteína animal. Atualmente, já são mais de 20 empresas brasileiras naquela área", explica o especialista. Sobre as joias, a embaixada da Arábia Saudita no Brasil ainda não se pronunciou e tampouco respondeu a um pedido de posicionamento enviado pela BBC News Brasil. Em nota divulgada na terça-feira (07/03), o advogado Frederick Wassef, que defende Bolsonaro, afirmou que o ex-presidente agiu "em conformidade com a lei", registrando devidamente os presentes — que, segundo Wassef, eram de caráter "personalíssimo". Apesar da intensificação no governo Bolsonaro, os dois primeiros mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) são considerados uma virada na relação entre Brasil e Arábia Saudita — não à toa, Lula foi o primeiro chefe de Estado brasileiro a visitar oficialmente o país árabe, em 2009. Segundo Maiko Gomes, após uma queda nas relações com o Oriente Médio entre 1995 e 2003, o primeiro governo Lula conduziu uma "aproximação nunca vista entre as partes". Depois, a dedicação à região foi reduzida nos governos de Dilma Rousseff e Michel Temer e retomada por Bolsonaro. Na análise de Gomes, Lula conduziu a aproximação no passado pautado pela ideia de multilateralismo e pela integração Sul-Sul (orientação na política externa que defende a integração de países em desenvolvimento). Já Bolsonaro, em sua avaliação, aproximou-se da Arábia Saudita motivado, entre outros motivos, por um alinhamento aos Estados Unidos. "A Arábia Saudita é considerada uma importante aliada dos Estados Unidos no Oriente Médio, o que faz desse processo todo muito benéfico para o governo Bolsonaro." O conservadorismo também aproximou o Brasil bolsonarista e a Arábia Saudita. No Conselho de Direitos Humanos da ONU, os dois países fizeram parte do mesmo grupo que, em 2020, pediu a retirada do trecho de uma resolução que defendia a educação sexual; no mesmo ano, ambos ficaram de fora de uma declaração pela proteção de pessoas intersexo. Em 2021, nem Brasil nem Arábia Saudita assinaram uma declaração no Dia Internacional da Mulher mencionando "direitos sexuais". Em nota enviada ao colunista do UOL Jamil Chade, o Itamaraty argumentou na época que não apoiava "referências a termos e expressões ambíguas, tais como direitos sexuais e reprodutivos". Bolsonaro, em sua visita oficial em 2019 se declarou apaixonado pela Arábia Saudita em um momento em que ocorriam as investigações sobre o assassinato do jornalista Jamal Khashoggi no ano anterior, em um consulado saudita na Turquia. Um relatório da inteligência americana apontou Mohammed bin Salman como tendo aprovado o assassinato — o que o príncipe sempre negou. Agora, com o terceiro mandato de Lula, ainda há de se ver como o petista vai conduzir a relação com a Arábia Saudita iniciada por ele e seguida por Bolsonaro. A reportagem pediu um posicionamento do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços sobre as perspectivas na relação com o país árabe mas, após o prazo decorrido, foi informada que deveria buscar o Itamaraty. Maiko Gomes acredita que pode haver mudanças. "Acredito que o atual governo tenha de fato interesse em retomar com uma política externa pautada no multilateralismo e, consequentemente, no desenvolvimento de relações mais profundas com o Oriente Médio." "Mas esse processo pode ser um pouco conturbado daqui para frente, visto que observamos uma quebra muito clara na política externa brasileira. Em 3 de janeiro, o Itamaraty sinalizou oficialmente que voltará a defender a solução de dois Estados no contexto palestino-israelense, o que é bem diferente da conduta adotada durante os quatro anos do governo Bolsonaro, de apoio explícito e pleno ao Estado de Israel." "Todas essas questões envolvendo os territórios palestinos e o Estado de Israel podem trazer problemáticas envolvendo as outras nações árabes." Entretanto, Gomes lembra que há interesses de ambas as partes para que as relações continuem frutíferas e dá um exemplo. "O Brasil é atualmente o maior exportador de produtos hallal do mundo, que são produtos adequados para consumo por muçulmanos. Então, há interesse tanto do Brasil quanto dos países muçulmanos em manterem essas fortes relações comerciais."
2023-03-10
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv2n2pnryypo
brasil
O que aconteceu com presentes dados a Lula e Dilma por líderes estrangeiros?
Presentes dados por governos estrangeiros já foram motivo de dor de cabeça para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a ex-presidente Dilma Rousseff, embora em escala muito menor que a crise provocada pelas joias de R$ 16,5 milhões dadas pelo governo da Arábia Saudita à ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro. Tanto Lula quanto Dilma levaram consigo 551 presentes dados por autoridades estrangeiras entre 2003 e 2016, mas devolveram os bens para o acervo público da União em 2019, após determinação do TCU e uma série de auditorias realizadas para localizar os itens. Até 2016, as únicas regras sobre o tema constavam de um decreto de 2002 que dava margem para interpretar que só presentes "entregues em cerimônia oficial de entrega de presentes" seriam patrimônio da União. Com isso, presidentes costumavam incorporar a seus acervos privados bens que não tivessem sido entregues por governos estrangeiros em cerimônias oficiais. Mas o Tribunal de Contas da União estabeleceu, em 2016, que essa interpretação é equivocada e viola preceitos da Constituição Federal, como o princípio da moralidade. Fim do Matérias recomendadas Para o tribunal, todos os presentes, independentemente de serem entregues em evento oficial, devem ficar em acervo da União em vez de virarem patrimônio particular do presidente após o fim do mandato. “Em que pese o decreto não detalhar que também os presentes trocados protocolarmente, portanto sem cerimônia específica para troca de presentes, devam igualmente integrar o patrimônio da União, sob o prisma dos princípios da moralidade, legitimidade e razoabilidade, a melhor aplicação ao tema é a de que quaisquer itens recebidos por trocas oficiais sejam bens públicos, uma vez que o cidadão, na qualidade de presidente da República, somente está recebendo tal bem em função da natureza pública e representativa do cargo que está temporariamente ocupando”, definiu o TCU. Com esse entendimento, o TCU determinou que fosse realizada uma auditoria para localizar presentes dados por autoridades estrangeiras a governantes a partir de 2002, quando o decreto foi editado. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Conforme essa auditoria, Lula levou consigo 434 presentes após seus dois mandatos, enquanto Dilma ficou com 117 bens. Por decisão do TCU, os dois devolveram esses bens, num processo que envolveu buscas por 80 itens que pareciam ter sido “extraviados”- a maioria obras de arte, conforme documentos dos autos acessados pela BBC News Brasil. O tribunal chegou a cogitar abrir um novo processo contra Dilma e Lula pedindo o ressarcimento de cerca de R$ 204 mil em presentes “desaparecidos”. Dos 80 itens “sumidos”, 74 foram entregues a Lula nos seus primeiros dois mandatos e custariam R$ 199 mil, segundo avaliação feita pela Diretoria de Documentação Histórica (DDH)/PR) da Presidência a pedido do TCU. Outros seis estariam com Dilma e custariam cerca de R$ 4,7 mil. “Faz-se necessária a expedição de determinação à SA/PR (Secretaria de Administração da Presidência da República) para que instaure um único processo de TCE em desfavor dos ex-presidentes da República Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Vana Rousseff em razão dos valores calculados pelo DDH/PR, referentes aos bens recebidos no exercício do cargo de Presidente da República que não foram incorporados ao acervo público”, diz acórdão de 2019 do TCU, sob relatoria do ministro Walton Alencar Rodrigues. Mas a Secretaria de Administração da Presidência acabou localizando quase a totalidade desses bens, após prazo de 180 dias dado pelo TCU para esclarecimentos. A maioria dos presentes levados por Lula após deixar a Presidência estava em um galpão do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo. Continuaram desaparecidos apenas 11 que haviam sido entregues a ele, num valor total de R$ 11.748,40. Lula ressarciu esse valor integralmente, segundo informou o TCU à BBC News Brasil. Também continuaram sumidos seis presentes entregues a Dilma, no valor de R$ 4,7 mil. “Em relação à ex-Presidente Dilma Rousseff, em que pesem as tentativas de cobrança, não consta do processo o recolhimento do montante indicado”, informou o TCU à BBC News Brasil. A BBC News Brasil encaminhou e-mail para a Secretaria de Comunicação da Presidência pedindo manifestação sobre o caso, mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem. Além da devolução de bens recebidos nos governos Dilma e Lula, o processo aberto pelo TCU em 2016 resultou na fixação de regras mais claras para o registro de bens dali em diante. O tribunal sugeriu critérios para cadastro dos presentes e determinou que houvesse transparência, com a divulgação na internet desses bens e seus valores após recebimento por presidente brasileiro. Conforme o entendimento, só podem ser considerado patrimônio pessoal presentes “de cunho pessoal”, como medalhas personalizadas ou bens de “consumo direto”, como bonés, camisas e perfumes. Apesar de a decisão do TCU ter deixado clara a obrigatoriedade de presentes irem a acervo público, o ex-presidente Jair Bolsonaro está sendo investigado por supostamente ter tentado incorporar ao seu patrimônio particular presentes que ultrapassam a casa dos milhões e que deveriam ter sido registrados como patrimônio público. Na terça (6), a Polícia Federal abriu inquérito para apurar possível tentativa ilegal de trazer para o Brasil, sem declarar como patrimônio da União, um conjunto de colar, brincos e relógio cravejados de brilhantes.
2023-03-10
https://www.bbc.com/portuguese/articles/crgzg5gkdy0o
brasil
Como mudanças climáticas estão alterando comportamento, reprodução e tamanho de animais
Asas desproporcionais, aumento de tamanho, reprodução de mais fêmeas do que machos e dificuldade para reconhecer alimentos devido a modificações cognitivas estão na lista de alterações sofridas por animais devido às mudanças do clima. Pesquisas mostram que para conseguir sobreviver ao aumento da temperatura, à poluição de rios e aos eventos climáticos extremos, como longos períodos de seca e de chuvas intensas, espécies estão alterando o seu modo de vida, sua maneira de se reproduzir e até o seu tamanho. Na lista de animais mais atingidos pelas alterações do clima, as abelhas aparecem como um dos mais impactados. Não é à toa que cada vez mais é difícil encontrá-las em diversos pontos do mundo em que eram frequentes. "Com o aumento das secas, o período de floração das plantas diminui. Com isso, muitas abelhas não estão conseguindo néctar e pólen, que coletam nas flores. Consequentemente estão desaparecendo", diz Michael Hrncir, professor do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (SP). Contudo, os impactos negativos sobre as abelhas não ocorrem apenas por falta de alimento. Pesquisas mostram que o aumento de temperatura também está provocando deformações nas asas de algumas espécies. "Em decorrência do estresse causado pelas mudanças climáticas temos comprovação que algumas abelhas nascem com uma asa maior que a outra." Fim do Matérias recomendadas Diferentemente dos seres humanos, que conseguem controlar a temperatura do corpo, por serem seres endotérmicos, a temperatura das abelhas equivale à do ambiente em que estão inseridas mais a que produzem ao bater as asas. "Para se ter uma ideia, uma abelha bate, em média, 250 vezes as asas por segundo", apontou Michael. Assim, se uma abelha está em um ambiente a 30 graus, ao bater as asas, o seu músculo ativo faz sua temperatura corporal chegar a até 42 graus. O problema é que a elevação da temperatura além de provocar um superaquecimento também ocasiona impactos cognitivos. "Estudos revelam que algumas espécies de abelhas estão perdendo a capacidade de cognição, como reconhecer uma flor ou o caminho de volta para colônia, por exemplo, por conta da elevação da temperatura", ressaltou o pesquisador da USP. O desaparecimento de abelhas pode provocar um efeito em cascata. Isso porque é através do seu trabalho de polinização que muitas sementes surgem e flores sobrevivem. Sua capacidade de aumentar em cerca de 25% o rendimento das colheitas -, consequentemente, dos alimentos que comemos – corre risco à medida que mudanças drásticas no clima ocorrem. Quem também é impactado diretamente pelas mudanças do clima são os quelônios - tartarugas marinhas e de água doce. Diferentemente de outros animais, elas dependem de um fator externo para que o sexo do filhote seja determinado. É a temperatura da areia onde os ovos são colocados que vai estabelecer se nascerá uma fêmea ou um macho. Em regra, temperaturas altas (acima de 30 graus) produzem mais fêmeas; temperaturas mais baixas (abaixo de 29 graus) produzem mais machos. "Entretanto, quando temos aumento da temperatura passamos a ter uma tendência de geração apenas de filhotes do sexo feminino. Isso provoca um desequilíbrio demográfico da espécie", afirmou Fernanda Werneck, especialista em anfíbios e répteis do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa). Além disso, pela reprodução dos quelônios ser sexuada - macho transfere os espermatozoides para dentro do corpo da fêmea. A diminuição de indivíduos do sexo masculino provoca uma queda abrupta no número de exemplares da espécie, antes mesmo do processo de confecção dos ninhos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Outros animais impactados pelas mudanças do clima são os anfíbios, como sapos, rãs e pererecas. Com o aumento da temperatura, espécies estão mais suscetíveis às infeções do fungo quitrídio - Batrachochytrium dendrobatidis -, responsável por declínios de diversas espécies de anuros, no passado. O coordenador do Laboratório de Herpetologia e Comportamento Animal da Universidade Federal de Goiás (UFG), Rogério Pereira Bastos, aponta que a diminuição de locais apropriados para reprodução (corpos d’água), que estão ficando secos ou escassos, está fazendo com que algumas espécies diminuam de tamanho. "Como o período seco tende a ficar maior, os anfíbios terão menor disponibilidade de presas para se alimentarem. Assim, eles chegarão à fase adulta com tamanho menor." O problema é que o tamanho dos anfíbios influencia na vocalização do macho – mecanismo utilizado para atrair as fêmeas. Assim, as mudanças climáticas também estão alterando a reprodução de algumas espécies de anfíbios. "Machos menores têm vocalizações mais agudas (frequências maiores) e machos maiores têm vocalização mais grave (frequências menores). Como a mudança climática está ocorrendo em período de tempo pequeno, será que o sistema auditivo das fêmeas ainda conseguirá reconhecer as vocalizações dos machos de suas espécies?", questionou o pesquisador. Um estudo sobre a perereca Boana goiana, encontrada na Floresta Nacional da Silvânia (GO), mostrou que, em quase duas décadas, características do canto da espécie diminuíram à medida que a quantidade de recursos naturais reduziu na floresta. "Já temos modelos que preveem como será a destruição geográfica dos anfíbios daqui a 50 anos. Nesta nova distribuição, teremos unidades de conservação? O que se vê é que não teremos. Então, seria interessante criar unidades de conservação nas áreas que serão mais adequadas para os anfíbios. Assim, poderemos conservar mais espécies, criando uma rede de proteção", defendeu Rogério. Ao mesmo tempo que existem espécies que estão diminuindo de tamanho, por conta das mudanças do clima, outras estão aumentando. É o que revela um estudo publicado no periódico científico Biological Journal of the Linnean Society, que comparou amostras do lagarto sul-americano Tropidurus torquatus, da década de 1960 com as de 2012. Segundo a pesquisa, o aumento de aproximadamente dois graus na temperatura nas últimas décadas, fez com que essa espécie de lagarto atinja o tamanho adulto mínimo dois anos antes. "Com as técnicas usadas, soubemos que, emm 1960, lagartos se tornavam sexualmente maduros por volta dos 5 anos em locais mais urbanos, e por volta dos 6 ou 7 anos em locais de floresta. No presente, a maturidade acontece ao menos dois anos antes. Se assumimos expectativas de vida similares, uma possibilidade é que o período de reprodução tenha sido acelerado", apontou Carlos Navas, professor do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP). Para chegar à conclusão, que o aumento de temperatura pode ter influenciado no tamanho do lagarto sul-americano Tropidurus torquatus, os cientistas tomaram por base um estudo similar feito com uma espécie de geco - Homonota darwinii - da Patagônia argentina. "Nele, encontramos que animais coletados em locais mais frios atingiam a maturidade sexual um ano mais tarde", apontou Navas. Carla Piantoni, cientista da Universidade do Havaí, em Manoa (EUA), que também participou da pesquisa, ressalta que o fato dos lagartos serem animais ectotérmicos, ou seja, sua temperatura não é regulada diretamente pelo metabolismo, como acontece nos mamíferos, os deixa ainda mais vulneráveis ao aumento da temperatura provocado pelas mudanças climáticas. "Muitos lagartos são bons mantendo temperaturas corporais relativamente estáveis, mas sempre que as condições de temperatura do ambiente permitem. Contudo, como nem sempre é o caso, terminam sendo expostos à variação termal. Essa variação pode ter impacto no desenvolvimento deles, na primeira reprodução e no número de ovos", apontou. A especialista em anfíbios e répteis, Fernanda Werneck, do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa), que há anos tenta entender como a seleção natural atua sobre os animais da Amazônia, cita como exemplo o lagarto Tropidurus torquatus, popularmente conhecido como calango. Encontrado em regiões do Cerrado e nas bordas de floresta, a espécie não tem conseguido se adaptar ao novo clima e tem desaparecido na última década. Em contrapartida, o lagarto Cnemidophorus lemniscatus parece estar se ‘beneficiando’ das mudanças do clima e expandindo sua presença. Contudo, o que parece ser benéfico a longo prazo pode ser ruim. "Temos que entender que quando uma espécie migra para outra região para sobreviver, em busca de alimento ou de um ambiente parecido com o que ela vivia, essa nova espécie, normalmente, compete com espécies nativas. Isso causa prejuízos a longo prazo", explicou Werneck. A perda de áreas de Mata Atlântica, seja para a pecuária ou agricultura também altera o comportamento dos macacos. Em busca de sobreviver, o macaco-prego passou a tomar água de coco para evitar a desidratação. A constatação foi feita pelo pesquisador Hilton Japyassú da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em parceria com Danilo Sabino e Esaú Marlon. "Eles foram expulsos de áreas mais favoráveis à sua sobrevivência, e uma simulação computacional mostra que em cinquenta anos eles estarão restritos à Mata Atlântica do Sul da Bahia", ressaltou Hilton. Segundo o pesquisador, atualmente, ao norte da Bahia, resiste uma população que passou a utilizar o mangue regularmente, ao aprender a abrir coco e beber sua água. "Para não se expor demais, os macacos usam do coqueiral abandonado. Além disso, constatamos que para não gastar muita energia, preferem os coqueiros mais baixos, e escolhem o coco pelo seu tamanho, dando preferência aos intermediários." No litoral do Sudeste brasileiro, outro animal sofre processo semelhante para se adaptar ao oceano quase um grau mais quente do que há quarenta anos. Tânia Márcia Costa, bióloga e professora do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), conta que o caranguejo chama-maré - Leptuca cumulanta – que até 2010, historicamente, tinha como limite sul o Estado do Rio de Janeiro, passou a habitar o litoral de São Paulo, onde as temperaturas são mais frias. "O que vem acontecendo é um processo de tropicalização, com os animais procurando regiões mais frias. O problema é que quando eles chegam em regiões a que não estavam habituados podem comprometer todo o ecossistema. Levando à redução ou extinção de espécies nativas da nova área que ele passou a habitar", disse. Diretamente relacionado com as mudanças climáticas, o aumento da temperatura dos oceanos é causado pela emissão de gases do efeito estufa. Em regra, o aquecimento atmosférico transmite energia térmica para as águas, que consequentemente aumentam de temperatura. Dessa forma, como um efeito dominó, o aquecimento provocado pelo homem, culmina no aquecimento do oceano, que interfere diretamente na vida aquática. "Temos três efeitos das mudanças climáticas que estão impactando diretamente os animais: aumento da temperatura; acidificação de oceanos e ambientes de água doce; e os recorrentes eventos extremos, como tempestades e secas", apontou Tânia. Segundo a bióloga, os três efeitos interferem diretamente no organismo das espécies marinhas. Isso porque, ao aumentar a temperatura da água, a primeira resposta do animal com o metabolismo acelerado, normalmente, é elevar sua alimentação. "Ou seja, ele vai precisar comer mais. Com isso, também vai ficar mais exposto a predação”, ressaltou a bióloga. “Sem contar que nem todos vão aguentar uma temperatura tão alta. Muitas espécies já estão no limite da temperatura", completou. As inúmeras mudanças em pouco tempo são a grande preocupação dos pesquisadores que estudam como as alterações climáticas estão impactando os animais. No caso dos peixes, que não são capazes de regular a temperatura do corpo e são dependentes interinamente da temperatura da água para sobreviver, um aumento de 1,5 grau já é suficiente para provocar a extinção de muitos desses seres, que são vitais na dieta da população. "Embora várias dessas espécies aquáticas tenham aprendido a se adaptar a ambientes extremos ao longo de centenas de milhares de anos, elas nunca foram submetidas a uma situação tão complicada como as que estão sendo provocadas pelo homem", afirma Adalberto Val Luis, biólogo e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). O biólogo cita o aumento da acidez da água, como um dos problemas que mais estão comprometendo a vida de peixes nos rios da Amazônia. "Essa poluição da água não acontece apenas pelo desmatamento e pelas queimadas, mas também de como usamos o ambiente e descartamos medicamentos. Um anticoncepcional, por exemplo, descartado em um rio de maneira irregular pode impactar na reprodução de peixes e comprometer todo um ecossistema", alertou. Para se ter uma ideia, 90% da proteína consumida pelas 25 milhões de pessoas que vivem na Amazônia brasileira advém dos peixes. Ou seja, as mesmas ações humanas que comprometem os animais hoje, podem ser responsáveis por provocar fome no futuro. Fernanda Werneck, do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa), alerta que antes de uma espécie ser extinta, normalmente, ela concede sinais: muda de habitat, tenta adaptar-se a nova temperatura ou sofre mutações. "Uma espécie não é extinta do dia para a noite, esse processo acontece em capítulos. O problema é que já estamos vendo esses processos acontecendo. Por isso, da importância de medidas como combate ao desmatamento, preservação de áreas de conservação e incentivo à pesquisa. Toda espécie é importante para o ecossistema e para a vida no planeta", afirmou a pesquisadora.
2023-03-09
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0jlkj2ydn0o
brasil
'Ou paga a luz ou come, qual você escolhe?': os brasileiros na fila para limpar nome
A diarista Ivonete Costa da Silva Oliveira, casada e mãe de quatro filhos, foi dispensada de todas as cinco casas em que trabalhava durante a pandemia. Contando apenas com um salário mínimo da aposentadoria do marido, a família viu as contas em atraso se acumularem. “Atrasei cinco contas de luz, atrasei Sabesp e outras coisas também”, conta Ivonete, sobre o período difícil em que esteve desempregada. Já de volta ao trabalho agora em quatro casas, ela conseguiu pagar algumas de suas dívidas. Mas, mesmo depois de renegociar as contas em atraso com a Enel, concessionária de energia paulistana, não conseguiu pagar as parcelas do acordo e voltou à inadimplência. “Eu quero fazer outro acordo para pagar e ficar em dia. Uma dívida como essa de energia, a gente vive com medo de ter o serviço cortado. Eu vou trabalhar e todo dia chego pensando ‘Meu Deus, será que já cortaram minha luz?’. Então eu quero ficar livre desse pesadelo”, afirma. O pesadelo de Ivonete é o mesmo de milhares de brasileiros, num momento em que o país soma 70,1 milhões de inadimplentes, um recorde histórico, segundo dados da Serasa. Fim do Matérias recomendadas Somente no Estado de São Paulo, região que concentra o maior volume de pessoas com dívidas em atraso do país, os inadimplentes chegaram a 16,3 milhões em janeiro de 2023, alta de 8,6% em cinco anos. O volume recorde já representa 45% da população do Estado, conforme o birô de crédito. No Brasil como um todo, a dívida média dos inadimplentes é de R$ 4.612,30, valor 19% maior do que há cinco anos. Em São Paulo, a dívida média é ainda mais alta, chegando a R$ 5.324,66 em janeiro deste ano. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em meio a esse cenário de crise, agravado pelos juros elevados, a Serasa realiza esta semana uma edição presencial extraordinária de seu Feirão Limpa Nome em São Paulo. O evento, voltado à renegociação de dívidas, acontece até 11 de março, das 8h às 18h, no Largo da Batata, na zona oeste da capital paulista – infelizmente, a Enel não participa do feirão dessa vez, para decepção de Ivonete, mas outras 400 empresas oferecem descontos de até 99% aos devedores nas negociações. A BBC News Brasil conversou com pessoas que aguardavam na fila do feirão para entender como chegamos ao ponto de ter quatro em cada dez brasileiros adultos com nome sujo. Em comum, esses paulistanos contam histórias de desemprego e negócios fechados durante a pandemia, que levaram a uma “bola de neve” de dívidas em atraso. O governo federal planeja lançar em breve o programa Desenrola, com foco na renegociação de dívidas de até R$ 5 mil para pessoas com renda até dois salários mínimos (R$ 2.604). Na segunda-feira (6/3), o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que a iniciativa deve garantir a renegociação de até R$ 50 bilhões em dívidas de 37 milhões de CPFs atualmente negativados. Procurada, a Enel Distribuição São Paulo informou que tem participado com frequência de edições de feirões em parceria com o Serasa e que não participou desta edição em específica do Feirão Limpa Nome. A empresa disse ainda que estuda a possibilidade de participação em outras edições do evento ao longo do ano e que a negociação de contas em atraso pode ser realizada em todos os seus canais de atendimento (lojas, postos de atendimento, call center, site e app). No Feirão Limpa Nome, consumidores também podem renegociar suas dívidas através do canais digitais da Serasa até o dia 31 de março. O barbeiro Paulo Barbosa do Nascimento, de 44 anos, conta que a renda apertou quando foi mandado embora do salão em que trabalhava, ainda em 2019. “Devo para o banco e umas compras que fiz em algumas lojas no cartão de crédito. Eu não consegui pagar a fatura quando fiquei desempregado”, diz Paulo. “Fui usando o cartão para suprir as coisas que eu estava precisando, aí meu nome ficou sujo, fiquei devendo.” O trabalhador conta que, por conta das dívidas, já passou por situações constrangedoras, como tentar fazer uma compra em loja e ter o pedido negado, devido ao nome sujo. Agora trabalhando por conta própria, o barbeiro estima que suas dívidas chegam a cerca de R$ 3 mil. “Não é muito, então se Deus abençoar, eu consigo pagar”, afirma, esperançoso. Segundo a Serasa, mesmo em tendência de queda, o desemprego ainda é apontado como principal causa para o endividamento. Em 2022, 29% citavam esse motivo como a razão de suas dívidas em atraso. A redução de renda (12%) é o segundo fator mais mencionado. Entre as principais formas de endividamento em 2022 estavam o cartão de crédito (53%) e o crediário, carnê e cartão de lojas (31%), justamente as dívidas que afligem o barbeiro Paulo. Marleide Barbosa de Azevedo, de 51 anos, tenta recomeçar a vida com um salão de cabeleireiro, após ver a lanchonete que tocava com o marido fechar as portas durante a pandemia. “A gente tinha uma lanchonete no Brás, bem na frente do Templo de Salomão [sede da Igreja Universal do Reino de Deus] e, na pandemia, ficamos devendo bastante”, conta a pequena empresária, casada e mãe de um menino. Marleide conta que, antes da pandemia, a lanchonete chegava a fazer R$ 2.500 numa segunda-feira, só com a venda de churrasquinho grego. Depois da covid-19, as vendas caíram a uma faixa de R$ 200 a R$ 250 e a lanchonete acabava perdendo carne e pães não vendidos, além de ter que arcar com um aluguel de R$ 5 mil. “Ficamos um ano fechados e acumulamos muita dívida nos cartões e com fornecedores. Conseguimos pagar algumas, mas outras a gente não consegue e eles mandam nosso nome para protesto.” Segundo Marleide, uma dívida de R$ 9 mil com o Carrefour já passa de R$ 30 mil devido aos juros, após o casal não conseguir pagar as faturas. No total, entre cartões e fornecedores, ela estima que as obrigações em atraso do casal chegam a R$ 45 mil. “Nunca fiquei devendo, nem eu, nem meu esposo. A gente nunca teve o nome sujo. Só que, na pandemia, os brasileiros ficaram todos endividados”, afirma. “Agora, faz oito meses, eu consegui abrir um salãozinho, mas também estou lá pela fé, porque está bem parado. E as coisas estão muito difíceis, porque está tudo muito caro”, acrescenta. Marleide relata a tristeza que foi ver seu pequeno negócio fechar as portas na pandemia. “Só não entrei numa depressão porque a gente tem que ter muita fé em Deus. Fiquei um ano e meio em casa e só faltava enlouquecer. Agora deu uma melhorada, mas continua sendo uma luta.” O marceneiro Hélio Correia do Santos, de 59 anos, conta que seus problemas financeiros começaram quando ele ficou afastado do trabalho recebendo auxílio do INSS por um problema de saúde nas pernas. “Fiquei sem trabalhar um bocado de tempo e não tive condição de pagar essas dívidas”, afirma. “Foi atropelando, a gente foi parcelando e não conseguia pagar as parcelas, aí quebrava o acordo e a dívida se multiplicava. Aí deu nessa bola de neve que eu estou tentando resolver.” Hélio conta ter dívidas com a Enel, Bradesco, Sabesp e cartão de crédito. “Faz uns três anos que estou nessa situação. Eu passei um pouco por dificuldade, mas agora tenho certeza de que vai melhorar”, acredita. “Ter dívida é bem ruim, você não consegue dormir direito, fica no estresse, o serviço não rende. É muito complicado ficar em dívida, não desejo a ninguém passar por isso, porque é muito difícil.” Em meio a um tratamento contra um câncer, Adriana Nogueira Moreira, de 50 anos, atravessou quase 30 km entre o Jardim Rodolfo Pirani, em São Mateus na zona leste de São Paulo, até o Largo da Batata na zona oeste, com o objetivo de renegociar suas contas de luz em atraso. Saiu decepcionada pela ausência da Enel no feirão de renegociação. “Nós moramos num conjunto habitacional e lá a conta de energia vem um absurdo, você pode economizar do jeito que for. Então eu fui deixando, deixando, e agora acho que tenho uns R$ 20 mil para pagar”, conta a aposentada por invalidez, que tem ainda outras diversas dívidas. Com a renda de sua aposentadoria e o salário de ajudante de obras do marido, ela conta que não sobra para botar em dia as contas em atraso. “Tenho que comprar meus remédios. Eu tomo morfina, e às vezes tem na farmácia de alto custo [do SUS], às vezes não tem, então tem que comprar. É difícil”, conta Adriana. O esposo da aposentada, que até então ouvia a conversa em silêncio intervém: “Ou paga a luz ou come, qual você escolhe?”, questiona à reportagem da BBC News Brasil, voltando em seguida ao silêncio. Adriana preferiu não tirar foto após contar sua história.
2023-03-09
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1j3z5kggeo
brasil
Como ministros do União Brasil viraram 'pedra no sapato' para Lula
Era o começo da noite da segunda-feira (05/03) quando a reunião entre o ministro das Comunicações, Juscelino Filho, e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) chegou ao fim e, com ela, um capítulo de uma das primeiras crises políticas do terceiro mandato do petista. Ao fim da reunião, Lula decidiu manter Juscelino no cargo mesmo após reportagens publicadas pelo jornal O Estado de S. Paulo revelarem que ele teria recebido diárias de viagem de forma irregular e usado um jato do governo para ir a eventos não relacionados ao cargo. O ministro negou irregularidades e disse ter devolvido diárias que teriam sido recebidas por erro no sistema de controle. A expectativa em torno da reunião havia sido criada por Lula em entrevista na semana anterior, quando disse que demitiria Juscelino caso ele não provasse sua inocência. O presidente não se pronunciou publicamente sobre o caso desde a reunião, mas o ministro acabou sendo mantido. Fim do Matérias recomendadas Esta, porém, não foi a primeira vez que ministros do União Brasil são alvo de escândalos desde o início do governo. Em janeiro deste ano, reportagens do jornal Folha de S.Paulo mostraram que a ministra do Turismo, Daniela Carneiro, teria sido apoiada por pessoas ligadas a milícias do Rio de Janeiro. Ela negou envolvimento com milicianos. O caso acabou ofuscado pelos ataques de 8 de janeiro, quando militantes bolsonaristas invadiram as sedes dos Três Poderes, em Brasília. Na época, assim como no caso de Juscelino, Lula optou por manter a ministra. Mas o que faz com que o presidente Lula prefira correr o risco de desgaste político mantendo dois ministros alvos de suspeitas a simplesmente afastá-los? Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que Lula pesou, de um lado, o desgaste político em manter os ministros, e de outro, a necessidade de consolidar uma base parlamentar no Congresso capaz de permitir a aprovação de medidas e, também, de blindar o governo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Juscelino Filho e Daniela Carneiro são deputados federais eleitos pelo União Brasil. Eles foram indicados ao governo Lula com o aval de um dos principais líderes da legenda, o senador e ex-presidente do Senado Davi Alcolumbre (UB-AP). O União Brasil é o partido que nasceu da fusão entre os antigos PSL e DEM. Em 2022, a sigla se transformou em uma das principais potências do Congresso Nacional. Na Câmara, tem a terceira maior bancada, atrás apenas do PL e do PT. No Senado, está ao lado do PT com a quarta maior bancada, atrás apenas de PSD, PL e MDB. O partido compõe o que ficou chamado de Centrão, grupo de legendas geralmente alinhadas ao centro e à centro-direita e que, em geral, oferecem apoio aos presidentes eleitos em troca de participação no governo. No total, a sigla tem três ministros no governo Lula. Além de Juscelino e Daniela, o União Brasil emplacou o ministro da Integração Nacional e Desenvolvimento Regional, Waldez Góes. E é justamente por seu tamanho que o União Brasil se transformou em motivo de cobiça e preocupação dentro do governo. Seus 59 deputados e nove senadores podem ajudar o governo a aprovar algumas de suas pautas como a reforma tributária, uma das principais promessas da equipe do presidente. O problema para o governo, no entanto, é que o União Brasil é um partido heterogêneo - muitos dos parlamentares da legenda não apoiaram a candidatura de Lula em 2022 e a adesão ao governo do petista não foi unanimidade. Desde que o governo começou, alguns parlamentares da sigla já deram mostra de que podem não seguir o alinhamento que a cúpula da legenda determinou. No final de fevereiro, por exemplo, 28 dos 59 deputados do partido assinaram um requerimento para instalação de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para apurar as responsabilidades pelos atentados de 8 de janeiro. Eles assinaram o documento apesar de o governo ter apontado ser contra a comissão. E é em meio a esse contexto que Lula teve que decidir se mantinha ou demitia Juscelino Filho na segunda-feira. Para os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, a situação fez com que Lula pesasse os seguintes aspectos: o desgaste político de manter os ministros, os supostos benefícios políticos trazidos pela aliança com o União Brasil e o risco de perder o frágil apoio da legenda e vê-la indo para a oposição. "O que entrou na conta de Lula é o fato de que a base do governo está completamente indefinida. Alguns cálculos indicam que o governo não teria, por exemplo, maioria para aprovar uma proposta de emenda constitucional", diz Beatriz Rey, pesquisadora visitante da Universidade Johns Hopkins, em Washington, estudiosa do funcionamento do Poder Legislativo no Brasil e nos Estados Unidos. "O governo está tentando compor uma base legislativa sólida para aprovar projetos, de um lado, mas também para protegê-lo em casos como a instalação de uma comissão parlamentar de inquérito e até mesmo impeachment", explica a professora. O alerta de que Lula ainda não teria uma maioria foi dado pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), durante um evento na Associação Comercial de São Paulo, na segunda-feira (06/03). "Hoje, o governo ainda não tem uma base consistente nem na Câmara, nem no Senado, para enfrentar matérias de maioria simples, quanto mais matéria de quórum constitucional", disse Lira. Para o professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Claudio Couto, a situação de Lula não seria fácil. "Se ele demitisse os ministros, isso poderia acabar de vez com o apoio do União Brasil. Ele não quer um partido do tamanho do União Brasil na oposição. Por outro lado, ao manter esses ministros, ele assume um desgaste político considerável", afirma o professor. O desgaste político em torno dessa crise envolveu até mesmo manifestações públicas de lideranças políticas como a presidente do PT, a deputada federal Gleisi Hoffmann (PR), e um dos líderes do União Brasil, Elmar Nascimento (BA). Em suas redes sociais, Hoffmann defendeu que Juscelino Filho pedisse demissão do cargo. Nascimento e outras lideranças do União Brasil, por sua vez, saíram em defesa do ministro e rebateram a presidente do PT. "Lamentamos que Gleisi utilize dois pesos e duas medidas para tratar de assuntos inerentes à vida pública. Quando atitudes dos seus aliados são contestadas – e não faltaram acusações a membros do PT na história recente do país – a parlamentar prega o direito de defesa. Quando a situação se inverte, prefere fazer pré-julgamentos”, diz um trecho de uma nota divulgada pelo partido. Em meio ao tiroteio entre supostos aliados, Lula decidiu contrariar seu próprio partido e ter o União Brasil mais próximo. "O desgaste de manter um ministro sobre quem recaem essas suspeitas é grande, mas Lula pareceu estar mais preocupado com a possibilidade de ter sua agenda bloqueada do que com esse desgaste", explicou Claudio Couto. Para os especialistas, a situação na qual Lula se encontra é resultado de características do presidencialismo brasileiro que praticamente obrigariam o mandatário a formar coalizões para governar, além de mudanças mais recentes na distribuição de emendas parlamentares e que diminuíram a possibilidade de o Executivo influenciar o Legislativo e a composição atual do Congresso em que Lula não tem uma maioria expressiva. "Essa pressão está vindo de dentro do Legislativo e o governo não tem um número de parlamentares que lhe dê tranquilidade para aprovar suas medidas. Diante dessa situação, o presidente tem preferido dar um voto de confiança no União Brasil a pagar o preço de romper essa aliança", disse a professora da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) Luciana Santana, que é doutora em Ciência Política. Para Beatriz Rey, Lula é, ao mesmo tempo, "refém" e "conivente" com essa situação. Segundo ela, a criação das emendas impositivas, entre 2015 e 2019, diminuiu a margem de manobra do governo para formar sua base. As emendas impositivas são emendas parlamentares que não precisam de aprovação do Executivo para serem pagas. "O governo é refém e conivente. É refém porque hoje há menos ferramentas para o Executivo formar uma base legislativa e ele precisa desse apoio. Por outro lado, é conivente ou partícipe porque ele poderia ter feito um pente-fino melhor quando o União Brasil enviou seus indicados para assumir o ministério", disse a professora. Já a professora Luciana Santana avalia que o governo é mais "refém" do que "conivente". "Acho que ele é mais refém do que conivente porque o governo vem de uma eleição de 2022 que foi muito ruim do ponto de vista parlamentar. As eleições fortaleceram partidos de um grupo opositor e isso tornou a formação de uma base uma tarefa bem mais difícil", disse. Luciana Santana avalia que se Lula estivesse em outro contexto político, talvez sua postura em relação aos ministros do União Brasil teria sido outra. "Claro que Lula poderia ter optado por outro formato ou outro posicionamento, mas talvez, se ele estivesse em outra situação, menos vulnerável, ele poderia assumir escolhas diferentes das que fez agora", avaliou a professora. Para Beatriz Rey, o fato de Lula ter decidido "segurar" os ministros no cargo não significa que o cenário não possa mudar. "Aí podem entrar outros fatores. Tudo vai depender de como o governo vai montar sua base e, também, de novas denúncias que possam surgir contra eles. A depender do que vier, a manutenção deles no cargo pode ficar insustentável", disse a professora. - Este texto foi publicado em
2023-03-08
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cyxqedxzd0po
brasil
Ministro de Lula quer debate sobre descriminalização de drogas para reduzir população carcerária
Nos últimos 10 anos, o professor, advogado, filósofo, mestre e doutor em Direito Silvio Almeida se tornou um dos intelectuais mais conhecidos do Brasil. Sua escolha como ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, portanto, não chegou a surpreender quem acompanhava as discussões sobre o tema mais recentemente. Pouco mais de dois meses depois de sair da condição de "pedra" para a de "vidraça", o agora ministro ainda mantém a fala pausada e didática e a paciência para explicar seus posicionamentos por mais que possam parecer controversos. Foi assim que ele recebeu a reportagem da BBC News Brasil na segunda-feira (7/03) na sede da pasta, em Brasília. Ao longo de quase 50 minutos de entrevista, Almeida defendeu a criação de uma comissão para avaliar se o Estado brasileiro seguiu as recomendações da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que apurou violações de direitos humanos durante a ditadura militar. A comissão já é vista como uma espécie de "vespeiro" político com potencial para desagradar integrantes das Forças Armadas. Almeida também defendeu que o Supremo Tribunal Federal (STF) julgue uma ação que está parada desde 2015 que analisa a descriminalização das drogas. À BBC News Brasil, Almeida disse ser favorável à descriminalização das drogas e afirmou acreditar que ela poderia diminuir a pressão sobre o sistema carcerário brasileiro. Dados de junho de 2022 (os mais recentes) mostram que a população carcerária do Brasil é de aproximadamente 837 mil pessoas, segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), feito pelo Ministério da Justiça. "Temos que tratar isso como uma questão de saúde pública, como uma questão que não se resolve por meio do encarceramento, com prisão e com punição", disse. Fim do Matérias recomendadas Apesar de se mostrar favorável à descriminalização das drogas, Almeida afirmou que o governo não estaria se movimentando para que o Supremo julgue o caso. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O ministro também afirmou que o governo trabalha para criar um estatuto para vítimas de violência que incluiria policiais, numa resposta à crítica de que a chamada "turma dos direitos humanos" defenderia apenas criminosos. O ministro também negou que o atual governo esteja politizando a crise humanitária que afeta o povo indígena Yanomami ao atribuir a responsabilidade pela situação à gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Um dos pontos controversos da entrevista foi a defesa que o ministro fez da posição do governo brasileiro de se abster e não assinar uma declaração de mais de 50 países condenado violações de direitos humanos ocorridas na Nicarágua, país comandado por Daniel Ortega. Segundo Almeida, ao não assinar a declaração, o Brasil não estaria se omitindo ou sendo leniente com o regime nicaraguense, mas mantendo canais de diálogo abertos para tentar encontrar alternativas. "O Brasil nunca teve e não tem leniência em relação a isso", disse o ministro. Ao final da entrevista, Almeida deu a entender que é favorável à descriminalização do aborto, outro tema pendente de julgamento no STF. "Chega de homens dando opinião sobre a vida, sobre o corpo e sobre a saúde das mulheres [...] sou a favor de que elas (mulheres) decidam", disse. Confira os principais trechos da entrevista: BBC News Brasil - O senhor anunciou há alguns dias que criaria uma comissão para avaliar como o governo brasileiro seguiu as recomendações feitas pela Comissão Nacional da Verdade, que apurou violações de direitos humanos durante a época da ditadura militar. Por que isso é necessário? Silvio Almeida - Quando se fala de justiça e de direitos humanos, temos que falar daquela trinca: memória, justiça e verdade. A verdade é um elemento fundamental, porque o esclarecimento de todos os fatos, principalmente os que foram praticados em períodos sombrios como o que o Brasil atravessou entre 1964 e 1985, têm que vir à luz até para que nós não repitamos os mesmos erros. BBC News Brasil - Uma das recomendações feitas pela CNV era de que as Forças Armadas devessem assumir a culpa por violações de direitos humanos praticadas por militares durante a ditadura. O senhor não teme que isso, de alguma forma, crie mais tensão nas relações já tensas entre o governo e as Forças Armadas? Silvio Almeida - Há todo um trabalho que é feito pelo Ministério da Defesa e por outros ministérios, sob condução do presidente Lula [...] eu não tenho esse temor porque se eu tivesse o temor de que discussões como essa pudessem causar qualquer abalo à democracia, não faria sentido apostar na democracia [...] essa recomendação não vem apenas de um trabalho do ministério, mas é um reclamo da sociedade e também do próprio governo e da comunidade internacional. A gente está num momento muito propício para estabelecer uma forma democrática de discutir o futuro presente, passado e o futuro do país. BBC News Brasil - O presidente Lula deu aval ao senhor para que seja criada essa comissão e para que se reveja as recomendações, em especial no que se refere às Forças Armadas assumirem alguma culpa? Silvio Almeida - Essa comissão não vai impor ou determinar aquilo que vai ser feito. É uma comissão que vai olhar para as possibilidades de a gente estabelecer um diálogo. Todas as decisões passam pelo presidente Lula, passam pelo Ministério da Defesa, passam por todos os outros ministérios. Não há possibilidade de a gente pensar que qualquer decisão seja tomada sem pensar em todas as consequências políticas, sem pensar nas tensões e nos conflitos [...] Nada do que for decidido nesse âmbito (da comissão) deixará de ser objeto de uma avaliação criteriosa do Presidente da República. BBC News Brasil - Esse reclamo que o senhor diz existir, não seria de uma parte da população, de uma bolha mais à esquerda? O senhor acredita que essa é uma pauta da sociedade brasileira como um todo? Silvio Almeida - Essa discussão não atende a uma bolha da sociedade brasileira porque estamos falando de democracia. E nem se trata só de falar de culpa das Forças Armadas. Não é disso que se trata. O grande pensamento é: como fazemos para consolidar a democracia, para impedir que atos como esse ato de 8 de janeiro se repitam? [...] não há interesse nenhum de que os saudosos de períodos ditatoriais se apresentem como alternativa. BBC News Brasil - A Comissão também prevê que o Estado devia perseguir a punição dos envolvidos nas graves violações cometidas durante a ditadura. O governo vai entrar com alguma ação questionando a Lei da Anistia? Silvio Almeida - Não. Isso não foi discutido. Essa é uma discussão que exige um processo muito mais apurado. Muito mais concertado. Mas isso não foi discutido. BBC News Brasil - Na sua opinião, a Lei da Anistia foi um erro? Silvio Almeida - Eu acho que a Lei da Anistia, de alguma maneira, permitiu que graves crimes contra a humanidade não tivessem a punição devida no tempo devido. BBC News Brasil - Mas só para ficar claro na sua avaliação, a Lei da Anistia foi um erro ou não? Silvio Almeida - Acho que a maneira como ela foi conduzida não foi a mais apropriada. O Judiciário brasileiro teve a chance de limitar os efeitos da Lei da Anistia. Após isso, a Lei de Anistia não foi um erro, mas a maneira com que a lei inicial foi aplicada, permitindo que torturadores assassinos pudessem se recolocar no espaço público brasileiro, isso, sem dúvida nenhuma, foi um equívoco. BBC News Brasil - Parte significativa da população que apoiou o agora ex-presidente Jair Bolsonaro comumente argumenta que se for para revisitar a Lei de Anistia para punir agentes do Estado que cometeram crimes naquela época, também deveria se punir guerrilheiros e militantes que cometeram crimes na mesma época. Como é que o senhor responde esse tipo de argumento? Silvio Almeida - Essa ideia de de colocar aqueles que lutaram contra a ditadura e aqueles que perpetraram e apoiaram a ditadura é uma falsa equivalência que tem o condão (intenção) de simplesmente tentar colocar do mesmo lado aqueles que de alguma maneira resistiram à violência, aqueles de alguma maneira que perderam sua vida, que foram torturados, que tiveram a sua existência totalmente comprometida, com aqueles que se refestelaram no sangue, no ódio e também na destruição da situação democrática no Brasil. BBC News Brasil - O senhor acredita que nesse governo as Forças Armadas reconhecerão sua culpa em relação às violações cometidas durante a ditadura? Silvio Almeida - Não sei se isso vai acontecer ou se isso vai ser resultado de um longo processo histórico. Mas a questão toda é que a palavra "culpa" tem que ser substituída por uma outra palavra: responsabilidade. Quando falo de responsabilidade, se trata não apenas do reconhecimento. E aí é mais do que simplesmente dizer o que foi feito, mas também orientar e estruturar no sentido de garantir que isso não mais aconteça. BBC News Brasil - O senhor acaba de voltar de Genebra, na Suíça e, recentemente, o Brasil se absteve de assinar uma uma declaração que condenava as violações de direitos humanos que estão acontecendo neste momento na Nicarágua. O atual governo diz defender os direitos humanos. Qual é a sua opinião sobre o cenário vivido hoje na Nicarágua? Silvio Almeida - O cenário é preocupante. É um cenário no qual os relatórios demonstram que há violação de direitos humanos. Mas qual é a posição do Brasil? [...] É que o Brasil quer sempre manter uma posição de diálogo e não caminhar no sentido de condenar violações de um lado e não condenar de outro lado, no sentido de que não queremos apontar o dedo para determinados países e não a outros que também cometem violações. BBC News Brasil - Mas isso não dá a impressão de que o governo tem uma certa leniência com esse regime? Silvio Almeida - O Brasil nunca teve e não tem leniência em relação a isso [...] O Brasil não deixa e não deixará de reconhecer quando se está diante de violação de direitos humanos. Mas leniência, e eu acho que até uma irresponsabilidade, seria fechar as possibilidades de que a gente possa dar um tratamento necessário para isso. BBC News Brasil - Entendo que o senhor coloca a questão da manutenção do diálogo como o motivo pelo qual o Brasil evita condenar frontalmente as violações que estão acontecendo na Nicarágua. Mas ao não fazê-lo, o governo não abre mão de liderar? Silvio Almeida - Não, pelo contrário. O Brasil, diante de uma posição que privilegia o diálogo, ganha a possibilidade, inclusive, de liderar. Por que? Justamente porque fomenta o diálogo [...] O Brasil não irá se calar diante de violação de direitos humanos. BBC News Brasil - Mas ao não assinar (a declaração), o Brasil não se cala? Silvio Almeida - Não, não se cala. O Brasil diz : "Vamos conversar. Vamos entender o que está acontecendo, vamos chamar aqui as pessoas para falarem a respeito do que está acontecendo e vamos tentar dar uma solução do problema que preserva, inclusive os direitos do povo nicaraguense". BBC News Brasil - Nos governos do PT, a população carcerária saiu de aproximadamente 300.000 pessoas para algo em torno de 622.000, segundo os dados oficiais. E essa maioria dessa população, o senhor sabe, é composta, em sua maioria, por jovens negros. Os governos do PT erraram em sua política carcerária? Silvio Almeida - Eu acho que não são apenas os governos do PT. A dinâmica do Estado brasileiro se desenvolveu a partir de uma falsa ideia de que a punição seria, de alguma forma, o elemento fundamental do combate à criminalidade. Eu acho que isso é uma tônica de praticamente todos os governos do Brasil e que certamente se dá, também, até mesmo por inércia [...] O presidente Lula falou especificamente comigo sobre isso e me pediu que nós pudéssemos pensar no âmbito em formas de se fazer com que as pessoas que estão presas e que não deveriam mais estar possam sair do sistema carcerário. BBC News Brasil - O presidente pediu um plano para diminuir o encarceramento? Silvio Almeida - Isso. Ele tem uma preocupação especial porque ele sabe os efeitos que isso provoca na sociedade. BBC News Brasil - Como comunicar uma política pública nesse sentido para uma população que sente um problema grave de segurança pública? Silvio Almeida - Acho que isso é fundamental [...] A gente entende que não é uma discussão fácil, mas ao mesmo tempo a gente entende também que o cárcere não é uma solução e que os níveis de encarceramento que o Brasil tem hoje não são uma solução para a segurança pública. BBC News Brasil - Há uma ação que tramita no STF parada há alguns anos em que se discute a descriminalização das drogas. O governo, de alguma forma, pretende conversar com o STF para que essa ação seja julgada logo? Silvio Almeida- Eu, particularmente, sou favorável a que essa ação seja julgada e que essa questão seja resolvida no Brasil. BBC News Brasil - O senhor é a favor da descriminalização das drogas? Silvio Almeida - Sou a favor. A guerra às drogas é um prejuízo mortal. Ela (a guerra) é muito pior do que qualquer outro efeito que se possa pensar. Nós temos que pensar seriamente nisso, com responsabilidade, com cuidado. Mas eu acho que a guerra às drogas, a forma com que se combate às drogas, causa um prejuízo irreparável na sociedade brasileira. BBC News Brasil - O governo está se mobilizando para conversar com o STF para que essa ação seja pautada? Silvio Almeida - Não existe nenhuma questão relativa a isso, até porque isso é parte do Ministério da Justiça e Segurança Pública [...] o que o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania faz, de fato, é pensar nos efeitos disso e pensar em como pode ser feita uma política nacional que envolva um debate sério a respeito dos efeitos perversos do encarceramento. BBC News Brasil - Na sua opinião, a descriminalização das drogas contribuiria positivamente para o problema do encarceramento? Silvio Almeida - Sim. Pautado na experiência, na experiência de outros países, temos que tratar isso como uma questão de saúde pública, como uma questão que não se resolve por meio do encarceramento, com prisão e com punição. Eu acho que as pesquisas mostram isso. Mas como eu falei, é um debate que tem que se fazer. É um debate muito sério e muito complexo que tem que ser feito com o Estado brasileiro em termos educacionais e pedagógicos. BBC News Brasil - A sociedade brasileira, hoje, está preparada para isso? Silvio Almeida - Não está preparada, mas é tarefa do Estado brasileiro, do governo brasileiro, preparar a sociedade para isso, uma vez que estamos falando de ciência. Não é uma questão de achismo. Não é uma opinião. BBC News Brasil - Para fazer um contraponto, também há estudos que mostram que a utilização indiscriminada de drogas causa prejuízos à saúde das pessoas… Silvio Almeida - Descriminalização de drogas não significa que não possa haver um controle sobre isso. A gente não pode confundir controle e regulação com a questão criminal. BBC News Brasil - Uma parte significativa da população brasileira critica defensores de direitos humanos utilizando uma frase que já ficou conhecida que diz: direitos humanos para humanos direitos. Como o senhor reage a esse tipo de alegação? Silvio Almeida - Falar de direitos humanos é falar, por exemplo, de como é possível cuidar das crianças, adolescentes, das mulheres, das pessoas idosas, das pessoas que estão encarceradas e impedir que elas sejam submetidas a situação de tortura e de sevícias. Esse é o ponto. BBC News Brasil - Por que, então, parte da população brasileira não tem esse entendimento? Boa parte da população brasileira reclama que só ouve falar de direitos humanos quando o que eles chamam de a "turma dos direitos humanos" vai defender criminosos… Silvio Almeida - Em primeiro lugar, há um processo profundo de desinformação por parte de certos setores da vida política que se alimentam justamente dessa violência. Em segundo lugar, eu acho que há também todo um histórico de um país como o nosso que foi forjado no autoritarismo. Um país em que a democracia e o respeito à vida tem uma densidade muito baixa [...] Em terceiro lugar, nós somos um país profundamente desigual. BBC News Brasil - Um dos argumentos de quem critica a chamada "turma dos direitos humanos" é que o governo e a esquerda não se pronunciam quando há violações de direitos humanos praticadas contra agentes de segurança. Minha pergunta objetiva para o senhor é: este ministério pensa em políticas para defesa de agentes de segurança? Silvio Almeida - Eu gosto muito de lembrar da Marielle Franco (vereadora pelo Rio de Janeiro que foi assassinada a tiros em 2018 junto com o motorista Anderson Gomes) porque quando ela foi assassinada, falou-se muito que ela não se preocupava com os policiais. É curioso que na dissertação de mestrado dela, ela fala justamente de duas mulheres negras que tiveram sua vida ceifada e que eram policiais. Ou seja, o pessoal dos direitos humanos também se preocupa com a vida dos policiais [...] Quando nós assumimos, tivemos a ideia de criar o estatuto das vítimas de violência, que é justamente um regramento que nós esperamos que se converta num plano nacional e também em um anteprojeto de lei, a ser avaliado também pelo Presidente da República. Ele visa, justamente, dar acolhimento e proteção para as pessoas que são vítimas de violência, sejam elas cidadãos comuns, civis ou sejam policiais. É fundamental que se pense nos policiais. BBC News Brasil - O senhor afirmou recentemente que o ex-presidente Bolsonaro "normalizou" a morte. Entretanto, no mandato dele, houve uma queda significativa no número de homicídios no país. Não é uma contradição dizer que o presidente Bolsonaro normaliza a morte, quando, na realidade, a gente percebe uma redução na taxa de homicídios no país? Silvio Almeida - É só a gente pensar, por exemplo, no que foi a pandemia (de Covid-19). Eu acho que é só a gente pensar no que foi o discurso de ódio. Veja só: a queda na taxa de homicídios não quer dizer que haja também uma redução na violência [...] Acho que há outros elementos que levaram a essa redução das taxas de homicídio. Mas nem toda violência se resume às taxas de homicídio. Nem toda morte se reduz a esse número. E quero lembrar também dos 700 mil mortos na pandemia. BBC News Brasil - O governo e o senhor afirmam que encontraram indícios de genocídio contra o povo Yanomami. Mas a crise humanitária que afeta os yanomami é anterior a esse governo. Atribuir o atual cenário apenas ao governo Bolsonaro não é politizar essa crise? Silvio Almeida - Não, não é politizar essa crise. Por certo se trata de um problema de caráter histórico. É histórico essa ausência de políticas estatais de proteção às populações indígenas, só que nunca se viu, em tempos recentes, esse tipo de ação deliberada para permitir que isso aconteça. BBC News Brasil - Isso o que? Genocídio? Silvio Almeida - A Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2022, proferiu uma decisão que reconhecia que havia gravidade, urgência e perigo de dano irreparável em relação à situação dos direitos humanos (dos yanomami). O que fez o governo? Primeiro, negou que houvesse esses três requisitos e nada fez [...] então eu não vejo no período recente nem nada parecido com esse tipo de omissão. E outra: tivemos o incentivo à atividade do garimpo. BBC News Brasil - No Congresso, está se formando uma comissão para investigar e avaliar o que aconteceu na terra indígena Yanomami. Uma das senadoras que já demonstrou interesse em participar é a ex-ministra dos Direitos Humanos Damares Alves. O senhor disse ver com preocupação essa possibilidade. Por que? Silvio Almeida - Porque a Damares foi minha antecessora na antiga configuração do ministério. E me parece que alguns dos pareceres, e o relatório vai mostrar(o ministério prepara um relatório final sobre a situação do povo yanomami), foram feitos durante a gestão dela. Vejo com preocupação diante do fato de que era uma ministra dos Direitos Humanos e que nada fez mesmo sabendo a situação. Acho que é natural que eu veja com preocupação o fato de que alguém que pode ter se omitido gravemente em relação aos fatos que aconteceram esteja agora em uma comissão justamente para olhar para esse problema. BBC News Brasil - O senhor acha, então, que Damares é suspeita e, por isso, não deveria participar da comissão? Silvio Almeida - A ministra Damares foi uma das principais responsáveis por conduzir o ministério justamente no período em que o ministério tinha o dever de se pronunciar e de agir diante de fatos de altíssima gravidade. Então, uma vez estando implicada nesses fatos, seria interessante (que ela não participasse da comissão). Mas, isso é o Senado que vai ter que resolver se esses fatos vão ser olhados por quem não participou diretamente ou indiretamente das questões envolvidas. BBC News Brasil - Conservadores e militantes contra o aborto afirmam que eles defendem os direitos humanos do nascituro. Há uma discussão sobre o Estatuto do Nascituro no Congresso. Queria saber se o senhor concorda com essa alegação. Os direitos dos direitos humanos do nascituro devem prevalecer sobre os direitos da mulher? Silvio Almeida - Eu vou responder de uma maneira bastante específica, porque acho que essa é uma discussão que deve ser feita primordialmente pelas mulheres, que são as mais afetadas pelas políticas de saúde pública. Ou melhor: pela falta de políticas de saúde. BBC News Brasil - Significa que, na sua avaliação, o aborto no Brasil deveria ser legalizado? Silvio Almeida - Significa que, na minha avaliação, são as mulheres que devem decidir sobre isso. Elas devem ser livres para decidir sobre isso. Chega de homens dando opinião sobre a vida, sobre o corpo e sobre a saúde das mulheres. BBC News Brasil - O senhor é favor da legalização do aborto? Silvio Almeida - Sou a favor de que as mulheres decidam.
2023-03-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c036d04n6ezo
brasil
O filho de nordestino e abolicionista que patrocinou a indústria vinícola gaúcha
A indústria vitivinícola da Serra gaúcha não existiria sem o entusiasmo e o incentivo de um filho de pernambucano que estudou em Recife e acolheu, no Rio Grande do Sul, vários nordestinos que moldaram a história do Estado. Antônio Augusto Borges de Medeiros (1863-1961) é mais conhecido do público brasileiro como o elegante cidadão de casaca, colarinho duro e chapéu coco na capa da coleção Nosso Século, da Editora Abril, muito popular nos anos 1980. Ele foi, entretanto, muito mais do que um ícone da moda da Belle Époque. Nenhum indivíduo na história do Brasil permaneceu por mais tempo em um comando do Executivo do que Borges de Medeiros. Foram 26 anos como presidente (equivalente ao atual governador) do Estado do Rio Grande do Sul: de 1898 a 1908 e de 1913 a 1928. No intervalo de 1908 a 1913, quando o cargo foi ocupado por seu condiscípulo Carlos Barbosa Gonçalves (1851-1933), Borges assumiu o papel de poder por trás do trono. Nas três décadas em que mandou e desmandou no Estado mais meridional da federação, Borges teve papel de primeira linha na política nacional, aprovando e vetando aspirantes à Presidência da República. Como líder incontestável do Partido Republicano Rio-grandense (PRR), foi o mentor de Getúlio Vargas, Oswaldo Aranha, José Antônio Flores da Cunha, João Neves da Fontoura, Maurício Cardoso e muitos outros. No início deste mês de março, a indústria vinícola gaúcha esteve sob os holofotes da mídia após o resgate de mais de 200 trabalhadores — a grande maioria deles vinda da Bahia — de condições análogas à escravidão no município de Bento Gonçalves. Fim do Matérias recomendadas Eles trabalhavam para uma empresa terceirizada, contratada pelas vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton, importantes produtoras da região. O pai de Borges de Medeiros era o advogado pernambucano Augusto César de Medeiros, nomeado promotor público de Caçapava do Sul, na Metade Sul do Rio Grande do Sul. No município, Medeiros casou-se com Miquelina de Lima Borges, de família de proprietários de terras. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Uma das iniciativas de Borges de Medeiros no governo do Rio Grande do Sul foi justasmente o incentivo à indústria de uva e vinho. A região em que essa atividade prosperou, a Encosta da Serra do Nordeste (hoje conhecida como Serra gaúcha e compreendendo 75 dos 496 municípios gaúchos, incluindo Caxias do Sul, Bento Gonçalves, Garibaldi e Flores da Cunha), foi uma das últimas a ser povoadas no Estado. A ocupação tardia teve causas sobretudo econômicas: situada 300 metros acima do nível do mar e coberta de florestas de araucária e pinus, não se prestava à criação de gado que havia sustentado por séculos a economia rio-grandense. A presença de índios da etnia kaingang, os chamados "bugres", tornava a área mais ameaçadora. Mesmo os primeiros migrantes na segunda metade do século 19 — alemães, franceses, holandeses, poloneses, suecos e suíços — não se aventuraram encosta acima, preferindo terras menos inóspitas e próximas de cursos d'água, como os vales dos rios Caí e dos Sinos. A Encosta da Serra foi destinada aos que chegaram mais tarde, a partir de 1870: os italianos oriundos das províncias do Vêneto e do Trentino (então parte do Império Austro-húngaro). Em vez de ser alojados em aldeias, como na antiga tradição europeia que remonta à Antiguidade, os migrantes foram distribuídos em lotes independentes organizados em travessões (linhas). O sistema previa a criação de vilas que serviriam como centro comercial e comunitário, mas as linhas acabaram sendo a unidade adotada pelos colonos para a tessitura de seus laços de sociabilidade na nova terra. Mal servidos pela geografia, os recém-chegados foram favorecidos pela história. Em 1893, pouco mais de três anos após a proclamação da República, o Rio Grande do Sul foi sacudido por uma guerra civil de três anos entre os republicanos, no poder em Porto Alegre, e os estancieiros da Metade Sul que haviam dominado a região desde os tempos coloniais. O conflito, que durou três anos e deixou 10 mil mortos, terminou com a vitória dos primeiros. Derrotados e humilhados, os fazendeiros da Metade Sul assistiram à remoção de entraves políticos à atividade manufatureira e comercial nas regiões de migração, embora a pecuária continuasse sendo o principal ramo da economia do Estado. Além disso, a guerra quase não chegou à Serra. Diferentemente do que ocorreria mais ao sul, a população cresceu e, com ela, o peso econômico de migrantes e descendentes. O governo do Estado, sob Julio de Castilhos (1892-1898) e, depois, Borges de Medeiros, intuía o potencial agrícola e industrial das regiões de migração. O principal propósito era suprir os grandes centros urbanos, como Porto Alegre e Pelotas, com produtos de subsistência. As próprias colônias foram organizadas em moldes supostamente científicos, de acordo com a ideologia positivista. As primeiras tentativas de plantar uvas, com mudas vindas da Europa, não vingaram. Entusiasta do progresso da região, Borges de Medeiros criou uma estação agronômica para prestar assistência aos colonos e patrocinou a importação de mudas de uva da variedade Isabel ou Isabella, que mais tarde se provou inadequada. Em mensagem à Assembleia Legislativa, em 20 de setembro de 1902, comemorou os sucessos alcançados: "A viticultura tem melhorado visivelmente, devido aos trabalhos que a Estação Agronômica há empreendido com eficácia. A distribuição anual de bacilos das melhores castas de videiras trará dentro em pouco a substituição completa da uva Isabella, que não é a mais própria para a fabricação do vinho, atenta a sua fraqueza alcoólica". E completou: "Mais do que o aumento da produção, que aliás é animadora, importa aperfeiçoar os processos de vinificação e combater as fraudes e falsificações de todo gênero, sobretudo quando consistem na adição aos vinhos de substâncias tóxicas". A Serra especializou-se na produção de itens essenciais para as cidades em crescimento, mas que pouca atenção recebiam nas regiões de predomínio da pecuária: banha, uva e madeira. Esse tripé impulsionou um desenvolvimento econômico que não seria igualado em nenhuma outra região. Inicialmente destinada ao abastecimento do mercado rio-grandense, a banha tornou-se item de exportação a partir de 1889. Entre 1907 e 1927, o valor exportado cresceu 1000%. O vinho teve ascensão ainda mais meteórica: de 2,1 milhões de litros anuais em 1905 para 20,8 milhões entre 1927 e 1930. Finalmente, a madeira ganhou importância crescente a partir da 1ª Guerra Mundial, respondendo por 2% da receita total de exportações do Estado em 1926-1930. Às 15h40min do dia 10 de junho de 1910, os sinos das igrejas da vila de Santa Teresa, na Serra, repicaram em júbilo. Era a chegada do primeiro trem à localidade, que passava, naquele dia, por ato assinado pelo presidente do Estado, Carlos Barbosa, um dos passageiros da composição, à categoria de cidade sob o nome de Caxias do Sul. O jornal O Brazil descreveu a cena: "Houve um alvoroço indescritível em todos os corações. Ouvem-se as notas vibrantes do Hino Nacional e da marcha real italiana; vivas e aclamações reboam nos ares; ao longe, ao sinal de um disparo de canhão, uma salva de 21 tiros de morteiros saúda a chegada do trem inaugural". O domínio de Borges de Medeiros foi inspirado no ideário positivista do filósofo francês Auguste Comte, que preconizava um governo dito científico. O objetivo de uma administração positivista seria promover o progresso por meio da correta aplicação do conhecimento humano em detrimento de valores democráticos como liberdade e representação. O positivismo havia inspirado intelectuais e militares desde os tempos do Império, e uma versão sintética de seu lema "O Amor por princípio, a Ordem por base e o Progresso por fim" foi incorporada à bandeira da República. Na prática, o regime do borgista Partido Republicano Rio-grandense (PRR) era uma ditadura na qual a Assembleia de Representantes (hoje Assembleia Legislativa), com esmagadora maioria governista, reunia-se duas vezes por ano. "Tirano positivista", definiu-o o poeta e diplomata francês Paul Claudel, enviado ao final da 1ª Guerra Mundial a Porto Alegre para negociar dívidas francesas e belgas no setor ferroviário. "Magro como lobisomem, mesquinho como o demônio", vituperou Ramiro Barcelos, médico e aliado tornado inimigo, no poema Antônio Chimango, obra-prima de sátira política. Há cem anos, oposicionistas promoveram um levante contra Borges que passou à história com o nome de Revolução de 1923. O objetivo do movimento armado era impedir a reeleição do chefe do PRR para um novo mandato. No acordo que pôs fim ao levante, o presidente do Estado comprometeu-se a deixar o governo definitivamente em 1928, quando foi eleito seu pupilo Getúlio Vargas. Do ponto de vista econômico e social, o Rio Grande do Sul experimentou um boom sob o governo de Borges. Cidades foram criadas, expandidas e melhoradas com avenidas, parques e iluminação pública. Floresceram indústrias, linhas e ramais ferroviários, cais e armazéns para transporte fluvial e marítimo. Fundaram-se bancos, firmas de exportações, escolas, faculdades, tipografias, editoras, teatros. Essas e outras mudanças influenciaram de forma decisiva o Rio Grande atual e tiveram consequências para o restante do país. A condição de filho de "baiano" — como eram conhecidos no Rio Grande do Sul os naturais da atual região Nordeste — rendeu dissabores a Borges de Medeiros. O historiador Sergio da Costa Franco (1928-2022) assinalou que seus muitos inimigos costumavam acusá-lo de não ter nascido no Rio Grande do Sul, contrariando um preceito da Constituição de 1891 para a ocupação do cargo de presidente do Estado. "A afirmação, de pura hostilidade partidária, não era verdadeira", notou o autor de Julio de Castilhos e sua época. Borges nasceu em 19 de novembro de 1863 em Caçapava do Sul. O adolescente Borges de Medeiros ingressou em 1881 na Faculdade de Direito de São Paulo, no Largo de São Francisco. Na instituição, tornou-se ardente republicano e abolicionista, além de positivista. O curso seria concluído na Faculdade de Recife, em 1885. Segundo Costa Franco, o motivo da transferência teria sido financeiro: na capital pernambucana, o estudante poderia contar com moradia e alimentação fornecidas por familiares do pai. As relações tecidas na esfera familiar e acadêmica levaram Borges a manter importantes laços com nordestinos, alguns dos quais acolheu no serviço público e no setor privado no Rio Grande do Sul. Um deles foi o jurista potiguar Manuel André da Rocha (1860-1942), de Natal. Ele assumiu em 1890 a comarca de Lagoa Vermelha, no interior do Rio Grande do Sul. Posteriormente, foi chefe de polícia, procurador-geral do Estado e presidente do Superior Tribunal do Estado do Rio Grande do Sul. Sua função mais notória, porém, foi a de diretor da Faculdade de Direito de Porto Alegre, hoje Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. André da Rocha permaneceu à frente da instituição durante 40 anos.
2023-03-06
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c805kwg1vwjo
brasil
O veterinário 'nômade' que já castrou 80 mil animais em ônibus itinerante
Assim como muitos protetores e amantes de bichos, o médico veterinário Rodrigo Mendes se envolveu com diferentes ONGs ao longo de seus 37 anos de idade. "É uma ocupação que sempre me deu muita satisfação e que comecei ainda criança, com 12 anos", lembra. Há sete anos, um telefonema que recebeu de Roswitha, uma protetora com quem havia trabalhado, foi o que bastou para o início de um projeto que moldaria sua vida nos anos seguintes. "Ela se mudou de São Paulo para Belmonte, um município muito pequeno na Bahia, e adotou duas gatas no caminho. Como a cidade não tinha estrutura para a castração, as gatas foram fecundadas por outros animais da cidade, e com o passar do tempo, entre eles, já eram 80 crias." O fenômeno observado por Roswitha é bastante comum. As fêmeas de gatos podem ter o primeiro cio a partir dos seis meses de idade, e a partir daí, uma única gata têm a possibilidade de gestar 36 filhotes no período de um ano. Se estes não forem castrados, a reprodução desenfreada é um destino certo. Para cães, o contingente é menor, mas ainda preocupante. Levando em conta a possibilidade das fêmeas engravidarem duas vezes por ano e a mesma média de quatro filhotes por gestação, oito novos cães podem surgir por ano a partir de uma cadela. Fim do Matérias recomendadas "Essa amiga já tinha 70 anos e não tinha condição de levar todos os bichos à cidade de Porto Seguro, que fica a duas horas de distância. Ela sugeriu que eu fosse à Belmonte fazer um mutirão de castração e eu achei uma boa ideia. Pedi que comentasse com os vizinhos para saber se mais gente precisava do serviço", lembra Rodrigo. A expedição foi a primeira versão do castramóvel, um ônibus adaptado e equipado com materiais e aparelhos cirúrgicos que tem como objetivo visitar áreas remotas onde não há clínicas veterinárias ou onde a população não pode arcar com a média de preço cobrada nas clínicas. "O projeto surge da necessidade de comunidades lotadas de animais e sem serviços especializados. Eu não tinha contato com essa realidade ainda, porque em São Paulo nós temos, às vezes, duas clínicas em uma mesma rua, prefeituras fazendo atendimentos, ONGs de diferentes tamanhos. Então, para mim, uma cidade que não tem veterinário ainda era uma coisa que eu nunca havia tido contato. A princípio, peguei para mim a missão de fazer esse trabalho social uma ou duas vezes por ano, mas acabou que nunca consegui parar." O ‘Castramóvel’ visita principalmente cidades no interior da Bahia, mas já passou por municípios em outros estados, como Pernambuco, Distrito Federal e Espírito Santo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O Vet Nômade, como Rodrigo é conhecido, faz parcerias prévias com ONGs ou protetores independentes nas cidades onde vai visitar. O veterinário então realiza um cálculo de quantos animais em média serão atendidos, os custos de materiais e do serviço da sua equipe de oito pessoas e os gastos com o ônibus – tanto para possíveis manutenções quanto o combustível necessário para chegar até o local. "Tentamos sempre diluir esses custos atendendo várias cidades próximas umas das outras. Passamos dias na estrada. Às vezes o trajeto demora até mais tempo do que o período que passamos na cidade. O apoio que eu e meus companheiros de trabalho recebemos das nossas famílias é essencial para que consigamos continuar fazendo esse trabalho." Rodrigo explica que a margem de lucro costuma ser pequena e que, quando possível, a equipe também realiza outros procedimentos de urgência. "Parece que tudo acontece quando nós chegamos: um animal precisando da retirada de um tumor com urgência, outro que foi atropelado… Nem sempre é possível fazer todos os procedimentos, mas ajudamos como podemos." A protetora Thais Peral, hoje residente de Corumbau, na Bahia, conheceu Rodrigo quando organizou, junto com ele, um mutirão na cidade de Caraíva, onde morava na época. "Ali tem uma população nativa indígena que não tem condição de pagar um preço alto ou de viajar para levar animais em clínicas. Esses vilarejos acabam ficando cheios de animais, o que aumenta riscos de zoonose e proliferação de vermes, por exemplo." Hoje, Thais já realizou três mutirões em diferentes cidades com o Vet Nômade. "Eu acompanhei de perto e vi a seriedade do trabalho de toda a equipe, que é muito bem preparada para auxiliar animais e tutores no pré e pós-operatório. A unidade móvel é impecável, tem respiradores e todo tipo de material e medicações para caso o animal tenha alguma intercorrência." A OMS (Organização Mundial da Saúde) estima que existam hoje no Brasil cerca de 20 milhões de cães e 10 milhões de gatos, equivalentes a mais da metade do total de animais de estimação. E esse número vem crescendo de forma acelerada, podendo chegar a 100 milhões (entre cães e gatos) em 2030. Em machos, a castração consiste na retirada cirúrgica dos testículos e em fêmeas, a retirada do útero e dos ovários. A medida é importante para controlar a população de animais de estimação, especialmente em regiões onde há superpopulação de animais abandonados – tanto para o bem estar dos bichos quanto para a saúde do meio ambiente. A castração pode ajudar a prevenir certas condições médicas em cães e gatos, incluindo câncer de mama, câncer de próstata, hiperplasia prostática e tumores perianais. A castração também previne a piometra, que é uma infecção bacteriana que ocorre no útero. Quando a cadela ou gata entra no cio, ocorre a descamação do útero e a cérvix se abre para que o útero possa receber os espermatozóides – e bactérias podem se aproveitar da abertura, se alojando no útero e causando a infecção. Há também um fator comportamental: cães e gatos machos que não são castrados podem ser mais agressivos e territorialistas do que animais castrados. "No caso dos felinos, como a gata tem seu cio induzido, para tentar acelerar o processo, o macho vai ficar em cima do telhado, miando alto, urinando na casa inteira e até batendo na gata para aumentar os estímulos." Rodrigo explica que o equilíbrio ambiental também se beneficia do controle populacional. "Eu fiz parte de um grupo de conscientização e planejamento no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (GO), por exemplo, no qual mostramos que a reprodução desenfreada de cães e gatos estavam levando doenças como cinomose e sarnas para espécies nativas, como lobo guará. Além disso, os bichos passam a disputar as caças. Felinos, por exemplo, caçam aves por instinto, não é nem para comer." A lei federal 13.426/2017, sancionada pelo então presidente Michel Temer, tornou o controle de natalidade de cães e gatos de rua uma responsabilidade também do poder público. Pela descrição da lei, o tratamento prioritário deveria ser dado aos animais pertencentes ou localizados nas comunidades de baixa renda. Mas, na prática, não são todos os municípios que contam com atendimento público para os animais e não há fiscalização federal do cumprimento da lei. "É justamente nos locais onde o poder público não chega que o projeto é mais importante", diz o criador. Rodrigo já recebeu críticas e inclusive notificação por parte de alguns Conselhos Estaduais de Veterinária, que alegam, de acordo com ele, a ilegalidade da castração itinerante. Os números do castramóvel também parecem chamar atenção – às vezes, a equipe castra mais de 50 animais em um único dia e em sete anos, mais de 80 mil gatos e cachorros já passaram pela cirurgia. O veterinário rebate as críticas. "Há, sim, leis estaduais e municipais que permitem programas itinerantes como o nosso. Além disso, os Conselhos servem para fiscalizar a profissão, e não para criar leis. Da parte da fiscalização, já recebi visitas de representantes no castramóvel que constatam que tudo está 100%. Nós garantimos que temos todos os materiais e equipamentos necessários para para cirurgias seguras e óbitos não são nada comuns entre os animais que atendemos." A protetora Thais, que já acompanhou alguns mutirões com o grupo, também defende a possibilidade de atender grandes grupos. "Em Itaúnas foram 95 animais em três dias, e todos os procedimentos foram muito bem feitos. Vale lembrar que para os machos a cirurgia é muito simples. Para as fêmeas demora um pouco mais, mas a equipe tem muita experiência."
2023-03-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72lq46yzylo
brasil
'Michelle podia usar, só não podia se desfazer', diz Bolsonaro sobre joias que teriam sido trazidas ilegalmente pro Brasil
O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) negou que integrantes de seu governo tenham tentado entrar com um conjunto de jóias em ouro e diamantes ilegalmente no Brasil. No ano passado, um funcionário da Receita Federal confiscou um colar, um anel, um relógio e um par de brincos de diamantes avaliados em 3 milhões de euros (R$ 16,6 milhões) que seriam destinados à ex-primeira-dama, Michelle Bolsonaro. O caso foi revelado nesta sexta (3/3), pelo jornal O Estado de São Paulo. As joias teriam sido um presente de representantes do governo da Arábia Saudita. Segundo Bolsonaro, Michelle até poderia usar as joias, mas elas seriam incorporadas ao acervo da Presidência da República. “(As joias) iriam para o acervo e seriam entregues à primeira-dama. E o que diz a legislação? Ela poderia usar, não poderia desfazer-se daquilo”, disse Bolsonaro a jornalistas após participar do CPAC (Conferência conservadora da direita americana), que está sendo realizada em um hotel na região metropolitana de Washington D.C. Fim do Matérias recomendadas A Secretaria de Comunicação Social (Secom) do governo federal confirmou a existência das joias e publicou imagens delas nas redes sociais. A ex-primeira-dama negou ser dona das joias. "Quer dizer que eu tenho tudo isso e não estava sabendo? Meu Deus! Vocês vão longe mesmo hein? Estou rindo da falta e cabimento dessa imprensa vexatória", publicou Michelle no Instagram. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Albuquerque viajou, sem a companhia do presidente, para eventos oficiais na Arábia Saudita em outubro de 2021 e representou o governo durante quatro dias de reuniões bilaterais, conferências e reuniões, como consta na sua agenda pública. Segundo a reportagem do Estadão, as joias foram encontrados por agentes da Receita Federal em outubro de 2021 na mochila do militar Marcos André dos Santos Soeiro, então assessor do ex-ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, em seu retorno ao país após a visita à Arábia Saudita. Um dia antes das joias chegarem ao Brasil, Bolsonaro se encontrou com o embaixador saudita Ali Abdullah Bahittam em Brasília, segundo o jornal O Globo. Os dois participaram de um almoço na embaixada junto com o filho do ex-presidente, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), e o ex-ministro das Relações Exteriores, Carlos França na residência do embaixador, além de outros diplomatas de países do Oriente Médio. O encontro não constou na agenda pública de Bolsonaro ou de França na época, segundo o jornal O Globo, e o Planalto também não teria divulgado o que foi tratado no almoço. Albuquerque negou qualquer irregularidade e disse que as jóias seriam "devidamente incorporadas ao acervo oficial brasileiro". No entanto, as peças foram retidas pela Receita Federal, que negou que o governo federal tenha pedido na época para incorporá-las ao acervo, e seriam vendidas em um leilão. Falando a jornalistas brasileiros em Washington, Bolsonaro negou irregularidades. "Eu agora estou sendo crucificado no Brasil por um presente que não recebi", defendeu-se. “Eu estava no Brasil quando esse presente foi oferecido lá nos Emirados Árabes (sic) para o ministro das Minas e Energia. O assessor dele trouxe em um avião de carreira e ficou na alfândega, eu não fiquei sabendo”, disse Bolsonaro. “Dois, três dias depois a presidência notificou a Alfândega que era para ir para um acervo. Até aí tudo bem, nada demais, poderia, no meu entender, a alfândega ter entregue. Iria para o acervo, seria entregue à primeira dama”, afirmou o ex-presidente. Segundo Bolsonaro, ele desconhecia o valor das joias e ficou surpreso ao saber das estimativas. "A imprensa fala uma coisa absurda. Eu teria que pagar 50% ou teria que pagar 8 milhões. Da onde eu teria que arranjar R$ 8 milhões, meu deus do céu? Eu sou uma pessoa que não tenho bens para bancar tudo isso aí. Ponto final", afirmou, referindo-se ao valor que teria que assinar para liberar os itens retidos na alfândega. Durante a viagem à Arábia Saudita, Bento Albuquerque se encontrou com com Mohammed bin Salman, príncipe herdeiro e primeiro-ministro do país, segundo informou o Globo. Na volta ao Brasil, seu assessor teria trazido as joias em uma mochila, além de um certificado de autenticidade da marca Chopard. Em uma checagem de rotina no aeroporto internacional de Guarulhos, em São Paulo, agentes da Receita teriam constatado que os itens não haviam sido declarados e os teriam apreendido. A lei obriga que sejam informados às autoridades bens vindos do exterior com valor superior de US$ 1 mil (R$ 5,2 mil). De acordo com o Estadão, ao saber da apreensão, Bento Albuquerque teria retornado à área da alfândega e tentado retirar os itens, informando que seria um presente dos sauditas para Michelle. A cena teria sido registrada por câmeras de segurança do aeroporto, segundo o jornal. Na sexta-feira, o ex-ministro confirmou ao Estadão que trouxe as joias, mas alegou não saber que se tratavam de peças valiosas, porque o pacote estaria fechado. "Nenhum de nós sabia o que eram aquelas caixas", disse ao jornal. Ao jornal Folha de S. Paulo, o ex-ministro enfatizou que sua equipe não teria tentado trazer ilegalmente do exterior presentes destinados a Bolsonaro e Michelle. Bento Albuquerque afirmou ao Globo que, por causa do alto valor das peças, elas "foram devidamente incorporadas ao acervo oficial brasileiro" e acrescentou que isso teria sido informado ao príncipe saudita em uma carta. Em nota, Albuquerque afirmou que "encaminhou solicitação para que o acervo recebido tivesse o seu adequado destino legal". Declarou ainda que a Receita foi informada sobre o "desembarque da comitiva no Aeroporto Internacional de Guarulhos (SP), ocasião que o Ministério esclareceu a procedência dos itens, sem nenhuma tentativa de induzir, influenciar ou interferir nas ações adotadas por representantes do fisco". Em entrevista à GloboNews, o ex-ministro disse que o presente era para o Estado brasileiro e que Bolsonaro e Michelle não sabiam das joias. Ainda segundo o Estadão, Bolsonaro teria recorrido a ministérios para tentar reaver as peças, sem sucesso, e enviado um ofício às vésperas do fim do mandato para que as joias fossem devolvidas, o que teria sido novamente negado pela Receita. Fabio Wajngarten, que chefiou a Secom no governo Bolsonaro, divulgou no Twitter documentos nos quais o governo teria solicitado a devolução dos itens para sua avaliação e possível incorporação "ao acervo privado do Presidente da República ou ao acervo público da Presidência da República". Wajngarten publicou também um documento em inglês, no qual Bento Albuquerque comunicaria ao governo saudita que os itens seriam "incorporados ao acervo oficial brasileiro". O governo brasileiro poderia ter recebido as joias como um presente oficial, mas, neste caso, elas ficariam para o Estado, e não com a família Bolsonaro. Para reaver as joias, segundo a reportagem, Bolsonaro teria que pagar o imposto de importação, que equivale a 50% do valor estimado do item, além de uma multa de 25% por tentar trazer os objetos para o país de forma ilegal. No caso das joias que teriam sido presenteadas a Michelle, o valor chegaria a aproximadamente R$ 12,3 milhões, de acordo com cálculo do Globo. A Receita negou, no entanto, que o governo Bolsonaro tenha tentado regularizar a situação das joias após receber orientações sobre como poderia fazer isso ou tenha pedido para incorporá-las ao patrimônio público. "A incorporação ao patrimônio da União exige pedido de autoridade competente, com justificativa da necessidade e adequação da medida, como por exemplo a destinação de joias de valor cultural e histórico relevante a ser destinadas a museu. Isso não aconteceu neste caso", disse o órgão em nota divulgada no sábado (4/3). "Na hipótese de agente público que deixe de declarar o bem como pertencente ao Estado Brasileiro, é possível a regularização da situação, mediante comprovação da propriedade pública, e regularização da situação aduaneira. Isso não aconteceu no caso em análise, mesmo após orientações e esclarecimentos prestados pela Receita Federal a órgãos do governo", disse na nota. A Receita afirmou também que o prazo para recursos nesse caso terminou em julho de 2022. "Todo cidadão brasileiro sujeita-se às mesmas leis e normas aduaneiras, independentemente de ocupar cargo ou função pública", disse o órgão. De acordo com reportagem da Folha de S. Paulo, um recibo oficial aponta que um segundo pacote com joias dadas de presente pelo governo saudita teria sido entregue para compor o acervo pessoal de Bolsonaro. Entre as peças, estariam um relógio, uma caneta, abotoaduras, um anel e um tipo de rosário, todos da Chopard, mesma marca das joias que teriam sido presenteadas a Michelle. Os itens estariam na bagagem de um integrante da comitiva brasileira e não teriam sido interceptados pela Receita no aeroporto. Não há uma estimativa pública do valor destes objetos, segundo o jornal. O assessor do ministério de Minas e Energia Antônio Carlos Ramos de Barros Mello teria entregue as peças, que estariam sob os cuidados da pasta, ao Palácio do Planalto em 29 de novembro. "Encaminho ao Gabinete Adjunto de Documentação Histórica — GADH caixa contendo os seguintes itens destinados ao Presidente da República Jair Messias Bolsonaro", diz um trecho do recibo. Mello afirmou à Folha que o ministério informou a Receita e a Presidência e pediu orientações sobre como proceder com o material quando a pasta os recebeu. Ele disse que houve uma série de tratativas sobre o destino das peças e que por isso a entrega ocorreu mais de um ano depois do recebimento. "Demorou-se muito neste processo para dizer quem vai receber quem não vai receber, onde vai ficar onde não vai ficar. Só não podia ficar no ministério nem ninguém utilizar", afirmou Mello ao jornal. Sobre os itens que foram retidos pela Receita, ele declarou: "O que foi apreendido foi apreendido, mesmo dizendo que se tratava de presentes institucionais. Uma parte a Receita resolveu apreender. Não vou discutir. É um problema que não cabe à gente. E o restante que veio [para o ministério] foi entregue e recebido pela Presidência".
2023-03-04
https://www.bbc.com/portuguese/articles/crge95ylzylo
brasil
Do cafezinho ao etanol: como El Niño pode afetar Brasil em 2023
A Organização Meteorológica Mundial (OMM), agência especializada das Nações Unidas (ONU) para a meteorologia, alertou em 1º de março para um possível retorno este ano do fenômeno atmosférico El Niño. Segundo a agência, há uma probabilidade de 15% de o El Niño voltar entre abril e junho. As chances sobem para 35% entre maio e julho, e são de 55% de junho a agosto. O El Niño provoca um aquecimento fora do normal das águas do Oceano Pacífico na parte equatorial, elevando as temperaturas globais. Nos últimos três anos, o mundo esteve sob influência do La Niña, que esfria as águas do Pacífico na mesma região e contribuiu para frear temporariamente o aumento das temperaturas no planeta, segundo o secretário-geral da OMM, Petteri Taalas – ainda que os últimos oito anos tenham sido alguns dos mais quentes já registrados. A última vez em que o mundo enfrentou um forte El Niño foi entre 2015 e 2016. Fim do Matérias recomendadas Aquele foi o segundo El Niño mais poderoso desde 1950, atrás apenas do ocorrido em 1997 e 1998. Sob influência do fenômeno e das mudanças climáticas, o ano de 2016 foi o mais quente já registrado na história, segundo a OMM. No Brasil, o El Niño naquele biênio intensificou a seca no Nordeste e provocou estiagem prolongada no Norte, centro-norte de Minas e de Goiás e no Distrito Federal. Além disso, houve fortes inundações no Sul, e impactos sobre o setor elétrico e a produção de alimentos. E agora? O que pode vir pela frente no Brasil com a volta do El Niño? Entenda como o fenômeno pode influenciar do cafezinho ao etanol que abastece o carro. O "Niño" que dá nome ao fenômeno é ninguém menos do que o menino Jesus (el niño Jesús, em espanhol). O evento climático recebeu esse nome por ser primeiro identificado por pescadores do Peru e Equador na época do Natal. "O El Niño e a La Niña são duas fases opostas do mesmo fenômeno, que chamamos de El Niño Oscilação Sul [ou ENSO, na sigla em inglês]", explica Vinícius Lucyrio, meteorologista da Climatempo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "É um fenômeno que acopla condições oceânicas e atmosféricas. Ou seja: é o oceano influenciando diretamente na condições atmosféricas." O El Niño é a fase quente deste fenômeno, que traz águas de temperatura mais elevada para a faixa equatorial do Pacífico Sul, na costa norte do Peru e do Equador, se estendendo ao sul da linha imaginária até quase a Oceania. Isso ocorre por um enfraquecimento dos ventos alísios, um sistema de ventos que sopram de leste para oeste na região equatorial, explica Lucyrio. Já a La Niña é a fase fria do fenômeno, com temperaturas abaixo da média nas água do Pacífico Sul, sob efeito de ventos alísios fortalecidos que favorecem a ressurgência de águas profundas mais frias na costa do Peru e do Equador. "É uma ótima fase para pesca, porque traz águas mais ricas em nutrientes das profundezas do oceano para as áreas mais superficiais", observa. No Brasil, a La Niña afeta as chuvas nos dois extremos do país. No Sul, ficam mais irregulares, favorecendo períodos de estiagem e seca. Já no Norte e Nordeste, há um aumento das precipitações, principalmente entre agosto e fevereiro. A La Niña também traz temperaturas abaixo da média ao país, ao favorecer a passagem de frentes frias. Isso ajuda a explicar, por exemplo, o verão mais ameno esse ano no Sudeste, observa o especialista da Climatempo. Já o El Niño traz tempo mais quente em todo o Brasil, principalmente entre o final do inverno e o verão. E, nas chuvas, o sinal se inverte. No Norte e Nordeste, a chuva tende a ficar abaixo da média, enquanto no Sul, fica acima. "Pode haver inundações severas e solo encharcado no Sul, trazendo prejuízos à produção agrícola", diz Lucyrio, ponderando porém que a produtividade na região também pode ser beneficiada pela maior quantidade de chuvas. Segundo o meteorologista, os modelos apontam uma probabilidade acima de 60% de ocorrência de El Niño no período de junho, julho e agosto. E a transição entre o La Niña e o El Niño deve acontecer de forma mais acelerada do que o padrão histórico. Os analistas são cautelosos em apontar possíveis impactos do El Niño na produção agrícola brasileira, já que ainda não é possível saber qual será a intensidade do fenômeno que pode ter início esse ano. Mas, com base na ocorrência do evento climático no passado, é possível obter algumas pistas. Um dos cultivos que podem ser afetados é o do café, segundo Natália Gandolphi, analista da consultoria HedgePoint Global Markets. Essa é uma possível má notícia para os apreciadores da bebida, já que o café moído chegou a acumular alta de preços de mais de 60% em 12 meses em meados de 2022, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sob efeito de secas e geadas que afetaram a safra. Desde então, a inflação do café perdeu força, mas o produto nunca retomou o patamar anterior de preços, com o pacote de 500g vendido a um preço médio de R$ 15,48 ao fim de 2022, de acordo com a Fundação Procon-SP. "No geral, quando observamos os eventos de El Niño, há uma redução média de 5% na produção de [café do tipo] Arábica", diz Gandolphi, analista da HedgePoint especialista neste produto. Isso acontece, segundo ela, porque o El Niño provoca um inverno mais quente, prejudicando o desenvolvimento vegetativo do pé de café. A época de florada, após setembro, e de crescimento, desenvolvimento e maturação dos frutos também pode ser prejudicada pelas temperaturas mais elevadas, diz a especialista. "O El Niño historicamente afetou negativamente a produção de café no Brasil e isso é um fator altista [para os preços do produto]. Mas, hoje, a perspectiva para a safra 2024-2025, que seria a afetada pelo El Niño, é muito boa", pondera. Na cultura de cana-de-açúcar, o pico da safra no Brasil ocorre entre abril e agosto. "Se vier um El Niño forte, ele pode levar a um inverno mais úmido. Isso é ruim para o ritmo da safra de açúcar, porque, se chove demais, as usinas não conseguem moer", explica Lívea Coda, analista de açúcar e etanol da HedgePoint. "Também é ruim para a concentração de sacarose, porque, nessa etapa do desenvolvimento da cana, se chove muito, ela fica mais 'aguada', com menor concentração de açúcar. Então, poderia ser ruim para a safra 2023-2024 do Brasil", diz Coda. Segundo ela, se o fenômeno se estender de dezembro a fevereiro, a precipitação no Centro-Sul pode diminuir, principalmente no norte de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, comprometendo a próxima safra. "Havendo um evento climático que afete a moagem, afeta tanto para o açúcar, como para o etanol. Se tiver um El Niño muito forte, que atrapalhe o ritmo da safra, pode ter um impacto na disponibilidade total de produto, e isso é uma pressão inflacionária para preços", explica. "Mas precisaria ter um evento muito forte, muito relevante, para isso acontecer e termos de fato um problema na safra brasileira de cana." Pedro Schicchi, analista de grãos e proteína animal da consultoria, explica que um inverno mais úmido pode ser benéfico para a safra de milho de inverno no Mato Grosso e Goiás. O evento também pode favorecer a safra de soja no Sul do país, com maior volume de chuvas, embora possa prejudicar o grão no Centro-Oeste, devido ao tempo mais seco. "Se a chuva realmente vier e tivermos maior produção de milho, isso pode reduzir o custo da ração para os produtores de frango e suínos", diz Schicchi. "Para o gado bovino, a chuva amplia a área de pastagem, então, o efeito também pode ser positivo." Mas isso pode não necessariamente impactar o consumidor final, afirma o analista. "Pode ser que essa redução de custos não seja repassada por diversos motivos, como o alto volume de exportação, real desvalorizado. Então, isso interage com outros fatores de mercado." No Brasil, os principais reservatórios hidrelétricos ficam nas regiões Sudeste e central do país. "Para o setor elétrico, geralmente a La Niña é melhor, porque favorece a formação de zona de convergência do Atlântico Sul e frentes estacionárias nessas regiões", explica o meteorologista Filipe Pungirum, mestre em Clima pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). "O El Niño favorece um tempo mais quente e seco na porção centro-norte do país e, por isso, não costuma ser positivo para a manutenção dos reservatórios de energia." Por regiões, os reservatórios de Norte, Nordeste e Minas Gerais costumam ser prejudicados por um El Niño forte, enquanto o Sul é beneficiado – mas a região tem poucos reservatórios. O fenômeno também costuma elevar as temperaturas nas capitais, pressionando a demanda, já que o ar condicionado se tornou o principal fator de pico do consumo elétrico nacional. O meteorologista pondera, porém, que os reservatórios do país se encontram em excelente momento. Segundo o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), os reservatórios do Sudeste e Centro-Oeste encerraram fevereiro em patamares superiores a 70%, maior nível desde 2012. Enquanto no Sul e Nordeste, os níveis estão acima de 80%, e no Norte, em quase 100%. "Mesmo se esse próximo El Niño for bem rigoroso e tivermos poucas chuvas, não vai ser tão grave quanto nas últimas crises", acredita o especialista.
2023-03-04
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c14n1d7dlexo
brasil
Como coaches da 'redpill' atraem adeptos na esteira da crise da masculinidade
Ao entrar no Instagram de Thiago Schutz, o "coach de masculinidade" acusado de ameaçar com violência uma humorista, há três posts afixados e destacados. Um deles tem a seguinte fala: "Mulher de valor, valor mesmo, ela se adapta ao estilo de vida do homem. Ela se adapta à caminhada do homem. Então ela faz parte disso. Não é o contrário." Em pouco mais de dois anos do perfil Manual Red Pill, criado por Schutz na rede social, foram centenas de postagens que estimulam o controle masculino ou giram em torno de uma desconfiança hostil e obsessiva em relação às mulheres. Há frases como "seja firme, fale com tom de voz grave, trate-a como uma menina, exerça uma autoridade protetora e comande" ou "toda vez que você abre informações que não deveria para uma mulher, ela poderá identificar suas fraquezas e jogar sujo contra você". Schutz (cujo sobrenome, na verdade, é Schoba), de 34 anos, entrou no conhecimento do grande público depois de reagir com intimidações via internet a uma paródia feita pela atriz e roteirista Livia La Gatto. Ela satirizou um vídeo em que o coach defende não ceder a uma mulher que sugere cerveja durante um encontro. Na história narrada por Schutz em um podcast, o homem preferia beber Campari e deveria ser inflexível sobre seus gostos. Fim do Matérias recomendadas Irritado, o coach mandou uma mensagem à humorista dizendo que, se a paródia não fosse retirada do ar, seria "processo ou bala". Ainda tentou fazer dez ligações pelo Instagram a La Gatto — mais tarde ela registraria um boletim de ocorrência na polícia. A repercussão tornou-o conhecido como "o coach do Campari" (em nota, a empresa do aperitivo italiano expressou repúdio e declarou que se solidariza com as mulheres envolvidas nesse caso de "misoginia e ameaças"). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Schutz não respondeu aos contatos da BBC News Brasil. Em um vídeo de justificativas, afirmou que "não é bala no sentido literal" e que "seria incapaz de dar um tiro ou de ferir alguém". O caso evidenciou um aumento da visibilidade de movimentos masculinistas —que alegam serem prejudicados pelo "tratamento privilegiado para a população feminina" no mundo atual — e que, não raro, invocam desprezo, uma postura adversarial ou distanciamento de mulheres. São pensamentos de linhas como redpill (a propagada pelo coach), MGTOW (Men Going Their Own Way, ou homens tomando seu próprio caminho, em inglês) e incels, que floresceram a partir da década passada em cantos obscuros e anônimos da internet (fóruns conhecidos como "chans"). Já ganham novas ramificações, como os "homens sigma". Agora se popularizam em nova roupagem por meio dos conselhos de coaches e influencers nas redes sociais mais conhecidas, parte de uma indústria que fatura com livros, cursos, palestras e monetização de conteúdo. Eles se oferecem como "guias de masculinidade" em tempos de mudanças sísmicas — sociais, econômicas, tecnológicas, nos relacionamentos e de fluidez sexual — e muitos fazem um apelo a uma atitude masculina reativa e à retomada de uma sociedade centrada no homem. O termo redpill (pílula vermelha, em inglês) faz referência ao filme Matrix (1999). Na ficção científica, o protagonista Neo tem que escolher entre tomar a pílula azul, que permite seguir em um mundo de ilusões, e a vermelha, para encarar a realidade. Como resume a pesquisadora Michele Prado, autora do livro Red Pill – Radicalização e Extremismo, o movimento promete que o seguidor será "escolhido para supostamente enxergar aquilo que ninguém mais vê; ser despertado de um sono profundo com uma pílula que traz a verdadeira compreensão da realidade; sair da Matrix". É uma metáfora largamente usada pela extrema-direita, não só por grupos de exaltação à masculinidade — e, ironicamente, concebida por duas cineastas transsexuais, Lilly e Lana Wachowski. Mesmo antes da repercussão do caso, Schutz já possuía cerca de 300 mil seguidores no Instagram — hoje, aproxima-se dos 340 mil. Ele tem uma operação eficiente em mídias sociais, com cartelas em estilo "clean" de seus ensinamentos e uma curadoria dos momentos de mais impacto das participações em podcasts e programas (os "cortes"). André Villela de Souza Lima Santos, do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde da USP Ribeirão Preto e pesquisador de um grupo de estudos em masculinidades, diz que ideias misóginas e de discurso de ódio antes restritas a "chans" obscuros agora têm uma circulação mais ampla. "Para minha surpresa, recentemente vi no Facebook comentários piores do que os encontrados em fóruns anônimos e com as identidades abertas associadas ao posts. Ou seja, isso está se escancarando." "Imagino que haja um aumento do número de indivíduos que propagam essas ideias, mas, mesmo que não houvesse, esses discursos estão tendo mais visibilidade. O resultado acaba sendo o mesmo. Conforme mais pessoas têm acesso a esse tipo de conteúdo, vão surgindo mais adeptos e se produz mais conteúdo do tipo", diz. Uma das figuras mais conhecidas hoje no mundo por propagar ideias misóginas é Andrew Tate, um ex-participante do Big Brother britânico. No TikTok, vídeos com a hashtag de seu nome já superam 13 bilhões de visualizações. Os seguidores são incentivados a compartilhar ao máximo seu conteúdo. Uma de suas plataformas é que "mulheres são propriedades de homens". Tate está atualmente preso na Romênia acusado de exploração e escravização sexual de mulheres. Ele nega as acusações. Os pensamentos de Tate já foram divulgados na página de Thiago Schutz. O advogado Alex Ciqueira, de 43 anos, do Rio de Janeiro, se define como seguidor da filosofia red pill e criminalista "atuante na defesa de homens em casos da Lei Maria da Penha". Ciqueira afirma repudiar os extremistas do movimento (diversos ataques violentos contra mulheres foram levados a cabo por simpatizantes pelo mundo) e "não concordar 100%" com os preceitos do grupo. Ele nega que esteja propagando ódio contra as mulheres ao endossar a filosofia red pill. "Discordo. A red pill real não é isso que os extremistas fazem". Para o advogado, "ser red pill é enxergar a realidade como ela é. Uma questão biológica. Por que a mulher escolhe um homem e não um outro? Para mim, o mais importante é que existe hoje um sistema de leis misândricas [contra os homens]. Nada contra a Lei Maria da Penha, mas ela fere o princípio de igualdade". Ciqueira reconhece que há um histórico de milhares de anos de opressão contra as mulheres, mas "essa compensação histórica está passando do ponto". O advogado considera que o coach errou no episódio ao fazer ameaças, "só que figuras como ele atraem muita gente porque existe essa misandria do poder estatal para que os homens sejam oprimidos". "O que o Thiago [Schutz] fala é sobre liderança masculina. Não adianta, a mulher quer um homem para liderar. Pode ter exceções, mas isso é para o homem. Acho que, quando a mulher pega a liderança do relacionamento, fica até pesado para ela." Ele admite que muitos seguidores dos "coaches de masculinidade" são "homens frustrados com a mulher moderna dos relacionamentos de hoje em dia. São homens que tentam uma relação séria e não conseguem, que fracassam na questão amorosa. Não podemos fechar os olhos para isso". De acordo com Michele Prado, apesar de algumas diferenças e contradições entre as subculturas da manosfera (o ecossistema digital que reúne movimentos masculinistas), "é ponto pacífico em todas elas" a ideia de que a ordem social a partir da segunda metade do século 20 é de crescente oposição aos homens e que está se instaurando uma "ditadura ginocêntrica", ou seja, que as leis e visões de mundo dão preferência a visões e queixas femininas. A psicanalista Vera Iaconelli, diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, diz que, até o último século, "o homem se definia como aquele que tinha uma esposa em quem ele mandava, os filhos nos quais ele mandava, uma família em que ele mandava. No espaço público, as disputas de poder eram entre homens, mulheres não entravam nessa seara". "Na medida em que as mulheres exigem uma relação horizontal, a masculinidade tem que ser revista. E, para algumas pessoas, isso não é compatível com o que elas entendem. Não é conveniente aceitar que outro tem o mesmo ponto." Iaconelli observa que "há 100 anos as mulheres vêm se perguntando o que é ser mulher. A gente já enfrentava uma crise de identidade, e os homens foram empurrados para essa crise e estão tentando fazer a lição de casa atrasada". Para o psicanalista e professor da USP Christian Dunker, "a masculinidade também se fragmentou" com "as flutuações de orientação sexual, com novos tipos de relacionamento, como as relações abertas, e com a ideia de que uma mulher pode ganhar mais do que um homem". Dunker afirma que a filosofia redpill vende a ideia de que o mundo real é "uma espécie de luta permanente, uma batalha de todos contra todos" e legitima uma "narrativa de competição" em que "homens são predadores e, se você quiser a pílula vermelha, você tem que ter dinheiro, cacife e meios para exercer a sua autoridade e assim usar o seu poder para conquistar as mulheres". Mas existe também a questão de rejeição social e frustração que levam alguns homens a buscar movimentos como a redpill. Há nesses grupos que florescem virtualmente um lugar de reconhecimento social, observa Iaconelli. "Acho que a palavra 'reconhecimento' é importante. Amizades se estabelecem ali, laços sociais, afetivos e também o culto ao ódio, que é um afeto muito poderoso. Dá muito prazer se juntar para odiar um terceiro externo, uma sensação de pertencimento a um grupo." Dunker aponta que existe também "o cara bem intencionado que quer estar em dia com as pautas e muitas vezes não consegue ser escutado e é criticado e muitas vezes desqualificado". "Eu compreendo a posição dessa pessoa, mas a gente tem que acolher com muito limite e precisa ver se ela quer se acolher também. Mas eu concordo que a demonstração de violência de uma pessoa é a exposição da fragilidade absoluta dela", diz Iaconelli. Para Dunker, "são pessoas que, no fundo, têm uma masculinidade frágil e que vão procurar uma redução de mundo como uma espécie de defesa". O pesquisador André Villela de Souza Lima Santos diz que a frustração vem muito de "uma promessa de meritocracia. De que você vai trabalhar, vai ganhar dinheiro, vai ter uma vida boa, vai se casar, vai ter filhos, aquela coisa bem script mesmo de filme e, quando não se materializa no mundo neoliberal, vira ressentimento". "Antes de a gente pensar o que fazer com incels e outros grupos, a gente tem que pensar 'bom, o que a gente faz em relação às vítimas deles?'. Temos que conversar sobre raça, gênero, classe, desde criança, para justamente desnaturalizar e perceber que não tem nada de natural nos privilégios de antes."
2023-03-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2v1y49yp6vo
brasil
O polêmico fundo para controlar preço de combustíveis defendido pelo presidente da Petrobras
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) adotou na última semana uma solução temporária para suavizar a alta dos preços dos combustíveis, com redução do valor cobrado pela Petrobras de distribuidoras, retorno temporário de impostos sobre gasolina e etanol e um novo tributo sobre exportação de petróleo. Mas o governo federal continua em busca de medidas de longo prazo para amenizar a variação de preços, que hoje sofrem forte impacto da oscilação internacional da cotação do petróleo. A expectativa é que, a partir de abril, quando assumirá o novo conselho de administração da Petrobras, com nomes indicados pela gestão Lula, a empresa reveja a atual política de preços, para deixar de seguir integralmente o mercado global. A mudança é, porém, alvo de fortes críticas, porque, durante o governo de Dilma Rousseff (PT), não seguir os preços internacionais provocou prejuízos bilionários à estatal. Isso porque a Petrobras importa parte dos combustíveis comercializados — com custos atrelados ao mercado global, portanto — e, por causa das medidas de controle de preços praticadas na época, era obrigada a vender mais barato, o que gerou um desequilíbrio entre suas receitas e gastos. Fim do Matérias recomendadas Outra possibilidade na mesa — também alvo de controvérsias — é a adoção de um fundo de estabilização de preços para evitar altas muito fortes no mercado interno. Esse mecanismo funcionaria com um sistema de bandas de preços, em que os combustíveis seriam subsidiados quando o valor do petróleo ultrapassasse determinado patamar (a banda superior). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ou seja, o consumidor pagaria um valor menor pelo combustível, e o fundo compensaria as distribuidoras pela diferença. Os recursos para esses subsídios viriam de uma cobrança extra sobre os combustíveis quando seus preços recuassem abaixo da banda inferior. Assim, em momentos de queda da cotação internacional do petróleo, o consumidor arcaria com um valor maior, que seria destinado ao fundo. Esse mecanismo foi proposto no relatório do grupo de transição que analisou o setor de Minas e Energia e é defendido pelo novo presidente da Petrobras, o senador licenciado Jean Paul Prates (PT-RN). Ele foi relator de um projeto de lei aprovado em maio do ano passado no Senado para criar um fundo desse tipo, que teria o nome de Conta de Estabilização de Preços (CEP). A proposta ainda precisa ser apreciada pela Câmara dos Deputados, onde não avançou por enquanto. "A volatilidade das cotações do petróleo, associada à variação cambial, praticamente elimina qualquer previsibilidade no preço dos combustíveis, gerando efeitos deletérios ao bom andamento da economia", argumentou Prates, ao defender a criação do fundo em seu relatório. "O mecanismo básico proposto é neutro: os recursos recolhidos em momento de baixa no valor do barril são alocados na CEP para posterior utilização em favor da estabilização, em momentos em que o preço de referência é maior do que o limite superior da banda." Como todas as propostas que envolvem política de preços de combustíveis, essa também enfrenta críticas. Embora a ideia seja o mecanismo ser autossustentável, experiências de outros países, como Colômbia e Chile, mostram que fundos desse tipo costumam ficar no negativo, levando o governo a fazer aportes altos. Na prática, os valores arrecadados quando o petróleo está mais barato não têm sido suficientes para cobrir os períodos de alta, e o governo acaba bancando o subsídio com parte da sua arrecadação ou com aumento da dívida pública. Uma estimativa do banco de investimento UBS BB indicou que um fundo de estabilização brasileiro similar ao que funciona na Colômbia teria registrado um déficit de US$ 42 bilhões (R$ 218,5 bilhões, em valore atuais) entre 2015 e 2021. Apenas no ano de 2022, quando houve forte alta do petróleo devido à guerra entre Rússia e Ucrânia, o rombo seria de US$ 44 bilhões (R$ 229 bilhões). Na Colômbia, onde o consumo de combustíveis é menor do que no Brasil, o déficit do fundo ficou em US$ 9,1 bilhões (R$ 47,3 bilhões) no ano passado, aponta o relatório do UBS BB. O país tem uma das gasolinas mais baratas do mundo devido a elevados subsídios, mas o governo do presidente Gustavo Petro tem promovido aumentos de preços desde setembro. "Vale a pena subsidiar a gasolina por 40 trilhões de pesos [cerca de R$ 43 bilhões] quando a taxa de mortalidade infantil por desnutrição está dobrando?", escreveu Petro em sua conta no Twitter ao anunciar o primeiro reajuste. "O outro lado de não subir a gasolina e aumentar o déficit do fundo é permitir que a fome e a pobreza aumentem na Colômbia", postou também. No caso do fundo brasileiro, o projeto de lei prevê que o governo faça aportes, se necessário, usando principalmente fontes de recursos ligadas ao setor, como parte dos dividendos pagos pela Petrobras ao governo federal ou da arrecadação com a concessão de campos de exploração de petróleo. Para David Zylbersztajn, ex-diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), não faz sentido usar esses recursos para subsidiar combustíveis altamente poluentes, como gasolina e diesel. "Acho que esse fundo de estabilização morre na própria discussão. De onde vai vir o dinheiro? Os dividendos que vão para o Tesouro é dinheiro para políticas públicas, não para subsidiar combustíveis fósseis", critica. "Segundo ponto: por que criar um fundo para subsidiar combustíveis e não para outros setores da economia como, por exemplo, alimentação, aluguéis?" Não é apenas na Colômbia que esses fundos enfrentam dificuldades. No caso do Chile, o fundo criado em 1991 foi aplicado inicialmente para gasolina, óleo diesel, querosene, gás liquefeito de petróleo (GLP), nafta e óleo combustível. No entanto, devido aos sucessivos déficits, teve seu alcance restringido e, desde 2011, é aplicado apenas para o querosene usado no aquecimento doméstico. "Com a alta dos preços do petróleo no início da década de 2000, os recursos se esgotaram, e o fundo não foi capaz de promover a estabilização desejada", diz o relatório. No caso do Peru, o fundo criado em 2004 também tem sofrido modificações, com a retirada e reinclusão de combustíveis, como o GLP envasado e o diesel. Já a gasolina está excluída do fundo desde 2012, aponta o relatório da EPE. Os preços dos combustíveis têm sido um tema sensível para diferentes presidentes. No governo de Dilma Rousseff, a decisão de segurar os preços praticados pela Petrobras para evitar o aumento da inflação causou um prejuízo à estatal de cerca de US$ 40 bilhões (R$ 208 bilhões, em valores atuais) entre 2010 e 2014. No governo de Michel Temer (MDB), quando a paridade com preços internacionais foi adotada, o encarecimento dos combustíveis foi o gatilho de uma greve de caminhoneiros em 2018 que paralisou rodovias e provocou retração econômica. O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) manteve a paridade estabelecida por Temer, mas adotou fortes desonerações para baratear os combustíveis no ano passado, medida que levou à perda de receitas da União e foi criticada como eleitoreira. Os cortes de impostos adotado por Bolsonaro foram agora parcialmente revertidos por Lula. O anúncio representou uma vitória para o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), enquanto lideranças petistas, receosas do impacto do encarecimento dos combustíveis sobre a popularidade do governo, fizeram pressão contra a reoneração. Haddad defendeu a volta dos impostos para reforçar o caixa da União para cobrir a ampliação dos gastos sociais e reduzir o rombo nas contas públicas, estimado em R$ 200 bilhões neste ano. Com a volta parcial dos tributos na quarta-feira (1/3), a reoneração da gasolina ficou em R$ 0,47 por litro e a do etanol, em R$ 0,02 por litro. O diesel permanecerá livre de tributação até o fim de 2023. No mesmo dia, a Petrobras divulgou que o preço da gasolina vendido às distribuidoras cairia R$ 0,13 por litro, passando de R$ 3,31 para R$ 3,18. Já o diesel teria uma redução de R$ 0,08 por litro, de R$ 4,10 para R$ 4,02. Para compensar a reoneração parcial, o governo decidiu taxar por quatro meses as exportações de petróleo cru em 9,2% por meio de uma medida provisória, com o objetivo de arrecadar R$ 6,7 bilhões. Críticos da medida afirmam que o novo imposto reduzirá a rentabilidade do setor, desestimulando investimentos.
2023-03-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv2vln9n203o
brasil
Por que PIB deve perder força este ano após crescer 2,9% em 2022
A economia brasileira cresceu 2,9% em 2022, após alta de 5% em 2021, informou o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia Estatística) nesta quinta-feira (2/3). Apesar do bom desempenho, acima do que era esperado pelos economistas no início do ano passado, a atividade perdeu ritmo ao longo dos trimestres. O PIB (Produto Interno Bruto) recuou 0,2% no quarto trimestre de 2022, após altas no primeiro (1,3%), segundo (0,9%) e terceiro (0,3%) trimestres, sempre em relação ao trimestre imediatamente anterior. O mercado de trabalho, que gerou 3,6 milhões de vagas em 2022, segundo o IBGE, também já dava sinais de enfraquecimento nos últimos meses do ano. Segundo economistas, a perda de ritmo da economia ao longo do ano passado é um prenúncio do que vem pela frente. Fim do Matérias recomendadas Para 2023, os analistas projetam avanço de apenas 0,8% para o PIB brasileiro, segundo o boletim Focus do Banco Central. Se confirmado, será o resultado mais fraco para o indicador desde 2020, quando a economia recuou 3,3% sob impacto da pandemia de covid-19. O baixo crescimento esperado desafia o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em seu primeiro ano de governo, em meio a restrições fiscais e à inflação ainda pressionada. Entenda nessa reportagem: No início do ano passado, os economistas projetavam um crescimento de apenas 0,3% para a economia brasileira em 2022, após o forte resultado do ano anterior – um repique da recessão causada pela pandemia em 2020. Algumas instituições financeiras, como o Itaú, chegaram a prever até uma pequena recessão para o último ano do governo de Jair Bolsonaro (PL). Os cenários mais pessimistas, no entanto, não se confirmaram e o PIB registrou um segundo ano seguido de bom desempenho em 2022. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Segundo Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), cinco fatores explicam o desempenho melhor do que esperado da economia no ano passado. O primeiro deles foi o efeito da reabertura total da economia, após a onda da variante ômicron no início do ano. “Isso gerou uma super expansão do setor de serviços, porque havia uma demanda muito reprimida, que impulsionou atividades como turismo, alojamento e alimentação fora de casa”, afirma. O setor de serviços cresceu 4,2% em 2022, após avanço de 5,2% em 2021, conforme o IBGE. Um segundo fator foram os estímulos feitos pelo governo Bolsonaro, em meio à fracassada tentativa de reeleição do ex-presidente. Economistas estimam que essas medidas tenham injetado mais de R$ 70 bilhões na economia brasileira em pleno ano eleitoral. Os estímulos incluíram saques extraordinários de recursos do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço); antecipação do 13º salário para os aposentados; aumento do Auxílio Brasil para R$ 600 e do Vale Gás; criação de benefícios para taxistas e caminhoneiros; criação do empréstimo consignado do Auxílio Brasil; e a redução dos impostos sobre combustíveis. Um terceiro elemento foi a guerra na Ucrânia, que elevou globalmente o preço das commodities, com impacto positivo sobre as exportações brasileiras. “Não foi só o Brasil, a América Latina como um todo surpreendeu [em 2022] porque tivemos uma ajuda de fora”, diz Matos. “A despeito de uma guerra terrível, que gerou uma crise humanitária e muita instabilidade do ponto de vista da inflação e das perspectivas de crescimento, países produtores de commodities foram muito beneficiados”, acrescenta. Segundo a economista, um quarto fator foi o efeito defasado da política monetária. Como a taxa básica de juros chegou a 2% em 2021, e a política monetária tem uma defasagem de alguns trimestres para fazer efeito sobre a economia (quatro ou cinco trimestres, segundo o diretor de política monetária do Banco Central, Bruno Serra, em declaração em maio do ano passado), mesmo com a Selic em alta desde maio de 2021, o mercado de crédito ainda respondia no início de 2022 ao efeito retardado dos juros baixos do ano anterior. Por fim, Matos cita as revisões altistas feitas pelo IBGE nos números do PIB de 2020 e 2021, o que ajudou o PIB de 2022 devido ao chamado carregamento estatístico, uma espécie de impulso deixado pelo resultado de um ano para o seguinte. Carlos Lopes, economista do banco BV (antigo Banco Votorantim), cita ainda o bom desempenho do mercado de trabalho em 2022 como uma surpresa positiva do ano. A taxa de desemprego fechou dezembro em 7,9%, com 8,6 milhões de desempregados, 3,4 milhões a menos do que no fim de 2021, quando a taxa de desemprego era de 11,1%. “O mercado de trabalho tem surpreendido nos últimos anos, tem sido algo bem difícil de antecipar, um comportamento bem distinto do pré-pandemia”, diz Lopes. Segundo o economista, isso talvez seja efeito das reformas dos últimos anos – como a trabalhista – sobre a produtividade, mas ele reconhece que esse impacto é difícil de mensurar. Mesmo com todos esses fatores de impulso, o desempenho da economia em 2022 foi gradativamente perdendo ritmo ao longo do ano, até registrar a pequena retração de 0,2% no quarto trimestre. “Basicamente o que puxa a desaceleração [no quarto trimestre] é a parte de serviços”, diz Natalia Cotarelli, economista do Itaú Unibanco. “Tivemos um PIB de serviços bem mais forte na primeira metade do ano. Ao longo do segundo semestre, conforme os efeitos da reabertura foram passando, esses serviços foram desacelerando.” O PIB de serviços teve alta de 0,2% no quarto trimestre, ante 1%, 1,2% e 0,9% do primeiro ao terceiro trimestres, sempre em relação ao trimestre anterior. Segundo Carlos Lopes, do banco BV, outro fator que pesou foi o efeito da alta de juros, com a Selic indo de 2% a 13,75% entre março de 2021 e agosto de 2022, no aperto monetário mais agudo e rápido da história recente. “Com a elevação da taxa de juros já há bastante tempo e a estabilização dessa taxa em patamar alto, o impacto sobre a demanda doméstica começa a aparecer de forma mais clara”, diz Lopes. O principal efeito da alta de juros é encarecer e reduzir a oferta de crédito, o que desestimula investimentos pelas empresas e o consumo de bens duráveis como carros e imóveis pelas famílias. Essa piora do cenário econômico se refletiu no mercado de trabalho. Apesar da queda na taxa de desemprego, a população ocupada cresceu apenas 0,1% no último trimestre do ano e a taxa de participação no mercado de trabalho recuou de 62,7% para 62,1% entre o terceiro e o quarto trimestres, conforme dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua do IBGE divulgados na terça-feira (28/2). Segundo o economista do banco BV, o resultado da economia no quarto trimestre só não foi pior devido ao desempenho do setor agropecuário, com alta de 0,3% em relação ao trimestre anterior, comparado à queda de 0,3% da indústria e alta de 0,2% do setor de serviços. “Do ponto de vista da demanda, o desempenho foi sustentado pelas exportações, enquanto consumo, investimento e gastos do governo sofreram”, observa. “É um trimestre que evidencia a fraqueza da demanda e que deve ser um pouco a cara de 2023.” Depois do crescimento de 2,9% em 2022, a expectativa dos economistas é de que a atividade tenha alta de apenas 0,8% este ano, segundo o boletim Focus. Conforme os analistas, os mesmos fatores que tiraram ímpeto da atividade no fim do ano passado devem pesar sobre o desempenho da economia este ano. Mas, a esse cenário, se soma a incerteza fiscal e monetária do início de governo. “Primeiro, os efeitos temporários da reabertura da economia estão se esgotando”, observa Silvia Matos, do Ibre-FGV. “Além disso, a política monetária está em terreno contracionista e todos os efeitos negativos que já se iniciaram ao longo de 2022 estarão em pleno vapor em 2023”, acrescenta a economista. Na política fiscal, o mercado avalia que o governo vai gastar além da conta e não está claro se o país voltará a ter superávit primário nos próximos anos, diz Matos. Além disso, a postura de confronto do presidente Lula com o Banco Central, criticando o atual nível de juros e a meta de inflação, adiciona ao cenário de incerteza. “Tudo isso aumenta o risco de inflação, desancora as expectativas. Isso vai fazer com que os juros fiquem elevados por mais tempo e os investimentos, que dependem de previsibilidade, ficam mais retraídos”, observa a economista. Segundo Matos, assim como no quarto trimestre, o desempenho da atividade em 2023 deve ter efeito positivo do setor agropecuário. Isso porque, no ano passado, o setor foi afetado por questões climáticas que impactaram negativamente safras importantes, como a soja. Esse ano, com clima mais favorável, a projeção do IBGE é de que a safra de grãos seja recorde, totalizando 302 milhões de toneladas, 38,8 milhões de toneladas a mais que no ano anterior. Em 2022, o PIB teve alta de 2,9%, ante uma expectativa de 0,3%. A discrepância entre as projeções e o resultado real naturalmente incitam a dúvida se os economistas podem estar exagerando novamente no pessimismo. Por um lado, o ano começa com um cenário externo ligeiramente melhor do que aquele que se desenhava no fim do ano passado. Os principais fatores para essa melhora são a reabertura da China com o fim da política de “covid zero”; um inverno menos rigoroso na Europa, que reduziu a demanda do continente por gás natural e enfraqueceu as apostas de uma possível recessão na região este ano; e alguns sinais de que o pior momento para a inflação no mundo pode ter ficado para trás, reduzindo a pressão nos bancos centrais por altas adicionais das taxas de juros. No cenário interno, o governo adota medidas que impactam a renda da população, como o aumento do salário mínimo (de R$ 1.302 para R$ 1.320 a partir de maio) e a mudança do programa Bolsa Família, que deve passar a pagar um adicional de R$ 150 por criança até 6 anos e R$ 50 por jovens até 18, para além dos R$ 600 de valor mínimo para todas as famílias. Por outro lado, a incerteza fiscal e monetária em meio aos ruídos de início de governo pressionam o cenário de inflação e de juros. E o caso Americanas secou ainda mais a oferta de crédito, que já vinha apertada pelos juros elevados. Nesse embate de forças, há mais chance de o PIB ser menor ou maior do que o esperado? O banco BV projeta uma alta de 1% para o PIB em 2023, mas o economista Carlos Lopes avalia que o viés para esse número é positivo e o crescimento pode ser mais próximo de 1,5%. “O mundo pode contribuir mais, com o crescimento da China. De novo deve ser um ano em que temos uma contribuição muito positiva das exportações e do setor externo. Então essa pode sim ser uma fonte de surpresa, assim como o próprio desempenho da economia local, com um mercado de trabalho que pode continuar surpreendendo”, afirma. Já Silvia Matos, da FGV, está na ponta pessimista, e projeta uma alta de apenas 0,2% para o PIB em 2023, abaixo da mediana do mercado. “Não está claro ainda se a inflação nos EUA poderá ser controlada sem uma pequena recessão, porque a inflação dá sinais de melhora, mas os dados de atividade mostram a economia americana ainda muito aquecida”, diz a economista, sobre o risco de altas adicionais nos juros nos EUA. “No Brasil, a inflação está ficando mais salgada e parte da recuperação da credibilidade fiscal que [o ministro da Fazenda, Fernando] Haddad está tentando é através da volta de impostos. Isso retira renda disponível, e tem também o crédito mais caro. Então há sinais positivos e negativos, mas, enquanto a inflação de fato não ceder aqui e lá fora, não temos certeza de que os cenários mais otimistas se concretizem.”
2023-03-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjrwgvp0rg4o
brasil
'Indivíduo negro na via pública': STF julga abordagem policial 'motivada por cor da pele'
O Supremo Tribunal Federal decide nesta quinta (02/03) se são legais ou não as provas processuais em que a “suspeita” que levou à abordagem policial foi o fato da pessoa ser negra. A decisão é para um caso individual, mas tem repercussão para todo o sistema criminal. O processo envolve Francisco dos Santos, um homem negro de São Paulo que foi abordado e revistado pela polícia na rua. A motivação é descrita pela própria polícia no boletim de ocorrência. Como consta no processo, o PM que fez a abordagem declarou à delegacia que, ao passar por uma rua em seu caminho, “avistou ao longe um indivíduo de cor negra” que “estava em pé junto ao meio fio da via pública” ao lado de um veículo, que, segundo o PM, constituía uma “cena típica de tráfico de drogas”. O termo “indivíduo negro” foi usado pelo outro policial envolvido na revista ao descrever a situação no boletim de ocorrência. Nenhum dos PMs viu uma transação acontecendo. Francisco admitiu à Justiça ser usuário de drogas - o que não é mais considerado crime e não é punido no Brasil. Mas ele foi processado e condenado a 7 anos de prisão em instâncias inferiores como traficante por estar com menos de 1,5 grama de cocaína. Fim do Matérias recomendadas A Defensoria Pública de São Paulo, que faz a defesa de Francisco, e entidades jurídicas que participam do processo como amicus curiae (colaborador da Justiça que detém algum interesse social no caso mas não está vinculado diretamente ao resultado) afirmam que a abordagem policial foi um caso de perfilamento racial. “Perfilamento racial é quando forças policiais fazem uso de generalizações baseadas em cor ou raça, sem prestar a atenção em comportamentos que de fato geram suspeição de que há um crime acontecendo”, diz à BBC News Brasil o criminalista Gabriel Sampaio, diretor de litigância e incidência da Conectas Direitos Humanos, entidade que é amicus curiae no processo Tanto a Conectas quanto outros amici curiae do caso afirmam que a questão central é mais do que uma discussão sobre tráfico ou sobre a política de drogas, mas sim de racismo. “Esse caso não é um caso que trata de posse de droga, princípios da insignificância, mas de racismo”, afirmou a criminalista Priscila Pamela Cesário dos Santos, diretora do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), em sustentação oral durante o julgamento - que começou na quarta (01/03) e continua nesta quinta. Uma pesquisa do IDDD em conjunto com o data_labe mostra que negros têm quatro vezes mais chances de serem abordados pela polícia do que brancos. Sampaio explica que o caso de Francisco é importante pois nem sempre essa motivação racial fica expressa nos autos, como no caso em questão. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A vice-procuradora da república Lindora Araújo, que representou o Ministério Público durante o início do julgamento, negou que a motivação da polícia tenha sido racial e afirmou que os policiais estavam “apenas descrevendo o tipo físico” da pessoa. O STF deve decidir se a justificativa dada pelos policiais no caso é suficiente para motivar a abordagem - criando um entedimento que pode se tornar parâmetro para outros casos. A legislação penal e a jurisprudência brasileiras determinam que a abordagem policial para revista pessoal precisa ser motivada por “fundada suspeita”. “A suspeita precisa ser baseada em fatos concretos, em atitudes. Não se pode legitimar a abordagem com base em características pessoais como cor de pele”, defende Gabriel Sampaio. O caso é importante pois é uma oportunidade para a Justiça determinar regras para o que é considerado “fundada suspeita”, afirma o criminalista Cristiano Maronna, do centro de pesquisas Justa, que estuda economia política da Justiça. “Fundada suspeita sempre foi considerado um termo genérico demais”, afirma Maronna. “Não podemos continuar permitindo que a motivação para atuação da polícia seja baseada em elementos subjetivos do que o policial considera suspeito.” “A oportunidade que existe hoje é criar um parâmetro que coloque ordem e exige uma motivação mais concreta, que realmente apresente regras e parâmetros para orientar a atuação da polícia”, afirma o criminalista.
2023-03-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn0e94g9glwo
brasil
'É bem traumático': entregadores relatam sequência de assaltos e pensam em abandonar profissão
Em janeiro deste ano, dois homens se aproximaram do entregador Renan de Lira Rodrigues e anunciaram um assalto. Rodrigues, de 41 anos, discutiu com os criminosos. Com a chegada de outros carros e motoristas, os assaltantes fugiram levando apenas a chave da moto que a vítima usava para fazer uma entrega em Itaquaquecetuba, na Grande São Paulo. "Dia 16 de janeiro, eu estava na minha casa e recebi uma ligação da polícia falando que tinha prendido esses ladrões. Fui na delegacia reconhecer os infratores, mas, infelizmente, o que reconheci era menor de idade, e sabe como são as coisas… Ele assinou um termo na delegacia e saiu pela porta da frente", conta ele. Dessa vez, o prejuízo de Renan foi apenas a chave, mas ele já teve a moto, carteiras, objetos pessoais e documentos roubados em ao menos outros cinco assaltos e diversas tentativas de furto que sofreu nos últimos anos na Grande São Paulo. A BBC News Brasil conversou com motociclistas que se dizem amedrontados e até pensam em mudar de profissão por conta do alto número de roubos. Em 2022, a Secretaria da Segurança Pública (SSP) registrou 143.936 ocorrências de roubo, um aumento de 11,93% em relação ao ano anterior. Quando comparado ao ano de 2019, no período pré-pandemia quando não havia nenhuma restrição à circulação de pessoas, o aumento é de 2%. Há 15 anos trabalhando como motofretista, Renan conta que em 2020 foi assaltado e os criminosos levaram a moto e toda a mercadoria que estava no baú quando ele trabalhava para uma empresa de produtos odontológicos. No entanto, a moto parou e ele recuperou o veículo e os objetos. Fim do Matérias recomendadas O assalto mais traumático ocorreu antes da pandemia, quando ele fazia uma entrega no Itaim Paulista, no extremo leste da capital. "Consegui recuperar a moto, porém perdi todos os pertences, inclusive a mercadoria do aplicativo. Dessa vez, foi bem assustador porque os ladrões eram bem jovens e disseram que me matariam se eu não entregasse a moto. Mas nada disso aconteceu", conta ele. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Renan disse que não pensa em mudar de profissão, mas diz que tem medo de trabalhar e sempre recorda das vezes que foi assaltado. "É bem traumático. Você se sente um lixo, um nada. Sua vida não vale nada na mão dessas pessoas. Você sai de casa e não tem certeza se vai voltar", afirma ele à reportagem. Ele disse que, além dos assaltos, sofreu uma série de tentativas de furto e que demoraria "o dia todo falando", caso tentasse relatar todos os casos. Ele conta que apenas enquanto a moto estava estacionada em um bolsão no centro de São Paulo foram três tentativas. Felizmente, ele conta que o prejuízo foi pequeno e ele precisou apenas trocar o miolo da chave. Procurada, a SSP informou por meio de nota que "tem conhecimento da situação e ressalta que o combate à criminalidade em São Paulo é uma das prioridades da atual gestão, que determinou o reforço no policiamento em todo o Estado por meio da Operação Impacto, com o objetivo de ampliar a ação ostensiva, potencializar a percepção de segurança e reduzir os indicadores criminais, por meio de reforço operacional direcionado e do planejamento estratégico baseado no uso de inteligência policial e geoprocessamento de dados". A pasta informa ainda que, desde o dia 11 de janeiro, a "Operação Impacto" deteve 934 pessoas, apreendeu 49 armas de fogo e uma tonelada de droga até o dia 26, apenas em São Paulo. Cientista político e ex-subsecretário nacional de Segurança Pública, Guaracy Mingardi afirma que esse aumento de roubos ocorre de forma generalizada em todas as regiões do país e se ampliou após a pandemia da covid-19. "Aumentou muito o número de entregadores. Hoje, você vê muito mais motoboys na rua. O criminoso ataca sempre onde é mais fácil. Roubar um motoboy na periferia não é difícil porque ele dificilmente vai reagir. E furtar uma moto estacionada nas áreas mais centrais é mais rápido e fácil do que um carro. Os crimes acontecem em todos os locais. O ladrão só se adapta", afirma o especialista. Para Mingardi, que também é membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o mais importante para evitar novos crimes é que a polícia invista mais em investigação, principalmente para identificar os receptadores desses veículos roubados. "Não adianta ficar atrás de ladrão de moto. Tem que prender o receptador, principalmente o que compra para revender. E, para isso, precisa de investigação porque eles não serão pegos em batidas da PM. Elas são importantes e deveriam ter muito mais porque só funcionam nos primeiros 15 minutos. Depois disso, avisam pelo rádio e não passam mais por ali", diz Guaracy Mingardi. O especialista em segurança pública ainda ressalta que os policiais que participam dessas blitze também devem ser mais treinados para identificar motos que tenham peças roubadas. "Tem que treinar o policial para ver se o chassis não tem número frio, se a numeração das peças bate com a do motor etc. Essas ações fizeram diminuir o roubo de carros. Tem que ter estratégia e tática, inclusive para negociar com pessoas presas para identificar os mandantes e receptadores", diz Mingardi. No dia 20 de janeiro, Pablo Lyncoln publicou em sua conta no Instagram um vídeo no qual ele aparece chorando após ter a moto roubada por dois homens armados. Desesperado após ver os bandidos levarem o veículo que ele usava para trabalhar, ele faz um apelo. "Acabaram de roubar minha moto aqui trampando (trabalhando). Eu vou deixar nos próximos stories (a placa e informações da moto). Quem puder compartilhar ou souber de alguma fita, dá um salve aqui por favor", afirma. Na manhã de quarta-feira (1º/ 3), o rapaz ainda não tinha localizado o veículo que usa para trabalhar. Após ter sido assaltado três vezes em menos de um ano, Gabriel (nome fictício), de 38 anos, diz que pretende mudar de profissão. Ele disse que os constantes traumas o fizeram começar um curso de elétrica para trabalhar em uma área que considera mais segura. "Eu penso muito nos meus dois filhos pequenos. Eu não posso ficar em algo que coloque em risco não só a minha vida, mas também a renda da minha família, que depende do meu trabalho para comer", afirmou. Ele diz que o que o deixa ainda mais triste é que dois desses três roubos que sofreu no último ano ocorreram no mesmo bairro onde ele mora, na Zona Sul de São Paulo. "A última vez foi a dois quarteirões da minha casa, quando eu chegava do trabalho de madrugada. Levaram minha moto, meu celular e minha carteira. Cheguei em casa só com a mochila de entrega e completamente desolado. Por sorte, minha moto tinha seguro. Mas não quero mais passar por isso. Vou tentar tomar um novo caminho na minha vida o quanto antes".
2023-03-01
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64351572
brasil
Como pimenta levou jovem de Goiás a ser internada em estado grave
Durante um almoço, a conversa chega a um tema trivial, justamente sobre comida: pimenta. Uma pessoa da casa leva ao nariz uma pequena porção do tempero e, pouco tempo depois, entra numa sequência improvável. Sofre uma parada cardiorrespiratória, tem um edema cerebral e fica internada em estado grave. É um caso bastante raro na medicina e ocorreu com a trancista Thais de Medeiros Oliveira, de 25 anos, na cidade de Anápolis, em Goiás. Ela deu entrada em um hospital local no último dia 17 de fevereiro. De acordo com Rubens Dias, médico da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) da Santa Casa de Anápolis, em entrevista ao site G1, Thais teve uma lesão irreversível no cérebro. “O que ela teve foi um período que o cérebro não tem oxigenação devida, porque o coração não estava bombeando sangue para o corpo. E isso gera uma lesão que é irreversível e tem um potencial de gravidade muito grande." A família disse que ela não havia manifestado sensibilidade específica a pimenta anteriormente. Mas, segundo o jornal O Estado de S.Paulo, há sete anos ela descobriu que era asmática e enfrentava crises periódicas. Fim do Matérias recomendadas Thais trabalha fazendo tranças em um salão na cidade goiana e, por se dedicar aos filhos, havia protelado o tratamento da doença, relatou a mãe. "Infelizmente ela foi vítima de uma combinação de vários fatores que levaram a um quadro de crise asmática grave", diz Helton Santiago, professor de Imunologia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ele diz que a reação a um alérgeno (a substância que desencadeia o processo alérgico) muitas vezes se manifesta de forma intensa logo na primeira reação. "Nesse caso, há a possibilidade de ela ter desenvolvido alergia à pimenta sem saber, o que é raro de acontecer, ou de possuir alergia a outra substância que tenha reatividade cruzada contra algum componente da pimenta". Reatividade cruzada ocorre quando o sistema imunológico do corpo interpreta as proteínas de duas substâncias diferentes como semelhantes e desencadeia a reação que aparece na forma dos sintomas alérgicos. Ou seja, existe até a possibilidade de que Thais não seja especificamente alérgica a pimenta. Um estudo publicado no ano passado por cientistas de instituições da França e do Japão analisou o caso de uma paciente japonesa de 16 anos alérgica a pólen e frutas e que sofreu uma reação anafilática — estado de choque no corpo que causa sintomas severos e potencialmente mortais — após consumir pimenta. O que desencadeou o quadro grave de Thais foi uma conserva de pimenta bode (Capsicum chinense), popular no Centro-Oeste do país e bastante presente em pratos goianos. Claudia Silva, técnica do Embrapa, diz que essa variedade tem ardência considerável e estima um patamar entre 120 mil e 190 mil na escala Scoville (que varia de 2 mil a 2 milhões). A sensação de ardor nas pimentas, que pode evoluir para tosse, espirro e lágrimas, é provocado pela capsaicina, o principal componente da planta. "A capsaicina pode sensibilizar receptores no epitélio nasal e gerar irritação", afirma Danielle de Lima Ávila, nutricionista e doutora em Bioquímica pela UFMG. Helton Santiago diz que a substância tem a capacidade de se ligar em determinados receptores dos mastócitos, células imunológicas responsáveis por estimular as manifestações clínicas da alergia. "Dessa forma, se uma pessoa inalar pimenta, mesmo que não seja alérgica, pode apresentar sintomas parecidos com asma. Se a exposição for intensa, mesmo o consumo oral ou inalação podem desencadear uma reação tão forte que parece ser o de um quadro anafilático", explica o professor de imunologia. Mas ele chama atenção especial para os perigos da asma. "Vale lembrar que asma é uma doença séria e que apresenta uma mortalidade significativa no mundo. Portanto, uma pessoa asmática deve fazer um acompanhamento adequado do seu quadro com um pneumologista ou um alergista", diz Santiago. A doença acomete as vias respiratórias fazendo com que brônquios (tubos que levam o ar para o interior dos pulmões) fiquem inflamados, inchados e com muco ou secreção. Por consequência, impede a entrega de oxigênio necessária durante crises. Ele afirma que testes para descobrir os alérgenos que afetam uma pessoa são também muito úteis, pois podem auxiliar no controle ambiental para prevenção e evitar exposição desnecessária. "Em todo caso, a reação que a Thais teve foi muito dramática e exames adequados devem ser feitos para se determinar um mecanismo [que desencadeou a reação]. O mais importante agora é manter a vida dela e torcer para que não tenha sequelas das paradas cardíacas que sofreu."
2023-03-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c84pvwrgmyno
brasil
É preciso investir no combate à crise climática como fazemos na guerra da Ucrânia, diz John Kerry
"Precisamos colocar maiores somas de dinheiro na crise climática, assim como colocamos dinheiro na crise da Ucrânia". A afirmação é do enviado especial dos Estados Unidos para o clima, John Kerry, em entrevista exclusiva à BBC News Brasil, na terça-feira (28/2). Ele reconheceu que tem sido mais fácil convencer o Congresso americano a liberar recursos para a guerra na Ucrânia do que para enfrentar a crise climática, que ele próprio classifica como uma "ameaça existencial" à humanidade. A admissão de dificuldades para obter mais recursos para o combate às mudanças climáticas resume, de certa maneira, a tônica de sua passagem por Brasília, nesta semana. Kerry chegou ao Brasil no domingo (26), reuniu-se com o vice-presidente, Geraldo Alckmin, e com a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Fim do Matérias recomendadas Sua passagem pelo Brasil foi marcada pela expectativa de um possível anúncio de mais recursos para o Fundo Amazônia, que financia medidas para o combate ao desmatamento. No início do mês, os americanos se comprometeram a fazer uma doação ao Fundo Amazônia. Oficialmente, o valor da doação ainda não foi divulgado, mas fontes do governo americano disseram à BBC News Brasil que o montante chegaria a US$ 50 milhões. Apesar de ser a primeira contribuição dos Estados Unidos ao fundo, o valor é considerado baixo por ambientalistas que levam em conta o tamanho da economia americana e o fato de o país ser o segundo maior emissor de gases do efeito estufa, atrás da China. A expectativa por mais dinheiro, porém, não se concretizou e um segundo anúncio de recursos não veio. Kerry disse que a liberação de mais dinheiro depende da aprovação pelo Congresso americano. O cenário é ainda mais difícil agora, uma vez que os democratas perderam a maioria na Câmara dos Representantes, casa legislativa que define o orçamento do governo. A frustração em torno de uma viagem sem anúncios concretos reflete, em alguma medida, o tamanho do desafio dado pelo presidente Joe Biden a Kerry, dono de um dos currículos mais profícuos da política americana. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Kerry costuma comparar sua vida à do personagem Forrest Gump, interpretado no cinema por Tom Hanks e famoso por suas passagens por momentos críticos da histórica recente dos EUA e do mundo. Ele lutou na Guerra do Vietnã e depois virou um ativista contra o conflito. Depois, abraçou a vida política e foi senador por 28 anos pelo Estado de Massachusetts. Em 2004, disputou a Presidência dos Estados Unidos pelo Partido Democrata, mas perdeu para o republicano George W. Bush. Em 2013, voltou à cena ao assumir o Departamento de Estado, durante o segundo mandato de Barack Obama. Ficou no cargo até 2017. Em 2021, a convite de Joe Biden, assumiu o cargo de enviado especial para o clima, tema que está entre as prioridades do democrata. Sua missão tem sido convencer a comunidade internacional e o público interno sobre a urgência para a adoção de medidas para combater os efeitos do aquecimento global. Até agora, porém, sua atuação divide opiniões. Apesar de tentar convencer países e empresas a aplicarem dinheiro em projetos que diminuam as emissões de gases do efeito estufa, Kerry tem precisado lidar com as dificuldades domésticas em conseguir os recursos prometidos por seu chefe, o presidente Biden. Leia, a seguir, a entrevista de Kerry à BBC News Brasil. BBC News Brasil - Em 2020, durante a corrida presidencial, o então candidato Joe Biden prometeu US$ 20 bilhões para países em desenvolvimento como o Brasil para reduzir a velocidade de destruição da região amazônica. Alguns analistas, no entanto, têm dito que este governo tem prometido muito e entregado pouco. Por que o seu governo se comprometeu a doar apenas US$ 50 milhões para o Fundo Amazônia até agora? John Kerry - Os US$ 50 milhões que o presidente (Biden) anunciou quando a visita ocorreu em Washington foram simplesmente um adiantamento dos fundos disponíveis. O presidente queria dizer: "Estou falando sério sobre estar envolvido no Fundo Amazônia". Mas, obviamente, entendemos muito bem que o presidente Biden entende que são necessários bilhões de dólares para poder fazer esse trabalho. Quando ele concorreu à Presidência, deixou claro que esperava poder conseguir US$ 20 bilhões ou algo assim para fazer isso. Em nosso sistema de governo, como aqui no Brasil, é preciso ser capaz de obter a aprovação do Congresso. E agora há projetos (sobre o assunto) no Congresso. Dois senadores, um republicano e outro democrata, propuseram US$ 4 bilhões. Na Câmara, houve uma proposta de US$ 9 bilhões. E isso terá que passar pelo processo legislativo. É uma luta e não há certeza de aprovação. Então, o presidente (Biden) também está empenhado em reformar os bancos de desenvolvimento multilaterais para que possamos obter mais dinheiro dessa fonte. Ele também me pediu para ajudar a organizar com entidades filantrópicas, o setor privado e o mercado voluntário de carbono para que tenhamos a capacidade de conseguir mais dinheiro. Entendemos muito bem que é crucial ser capaz de levantar fundos, obter o dinheiro. É assim que ajudaremos o Brasil. É uma das formas. Não é o único caminho. Faremos transferência de tecnologia. Trabalharemos na assistência. Também vamos procurar maneiras pelas quais possamos cooperar na aplicação da lei, nos esforços para reduzir a atividade criminosa que vem impactando a Amazônia. Ninguém deveria olhar para isso e dizer: "Oh! Os Estados Unidos estão limitados a uma contribuição de US$ 50 milhões de dólares". Nosso presidente pretende lutar totalmente pelo dinheiro necessário para poder realizar essa tarefa. BBC News Brasil - Mas existe um plano para os Estados Unidos doarem mais dinheiro para o Brasil ou para o Fundo Amazônia em um futuro próximo? Kerry - Sim. Vamos juntar o dinheiro que achamos necessário e acertamos com o Brasil. Não estamos fazendo isso unilateralmente. Esse é o conjunto de escolhas do Brasil. Esta é a floresta do Brasil. Essa é uma decisão do Brasil. Mas vamos trabalhar o mais próximo possível do Brasil e vamos brigar pelo dinheiro que acharmos necessário para tentar fazer isso. E, obviamente, isso requer contribuições muito maiores para o Fundo Amazônia e, além do Fundo Amazônia, estamos trabalhando para trazer entidades filantrópicas e outros países e empresas para a mesa e usar o mercado para ajudar a fornecer parte do financiamento de que precisamos. BBC News Brasil - O senhor acabou de descrever a dificuldade política para que alguns projetos sejam aprovados nos Estados Unidos. Essa é uma dificuldade doméstica. Como os Estados Unidos querem convencer a comunidade internacional a se envolver na luta contra as mudanças climáticas se, internamente, vocês não conseguem convencer o Congresso americano a liberar esse recurso para países em desenvolvimento? Kerry - Acabei de explicar que esta não é a única fonte de dinheiro. Os Estados Unidos e a comunidade internacional frequentemente mobilizam dinheiro e você pode mobilizar dinheiro de outras fontes. Se você não conseguir que o Congresso aprove (a liberação de recursos), você ainda tem maneiras de levantar fundos no mercado, no setor privado, na filantropia e nos bancos multilaterais de desenvolvimento. O que é importante é que o presidente dos Estados Unidos é comprometido com essa questão que é vital não apenas para os Estados Unidos, mas para o mundo inteiro, e principalmente para o povo do Brasil. Esta é a floresta do Brasil. Este é o patrimônio do Brasil. E se o Brasil for tomar a decisão de não deixar seu pessoal cortar toras ou cultivar em uma área específica ou ser capaz de minerar ouro ilegalmente ou qualquer outra coisa… se o Brasil se posicionar e disser "estamos preparados para proteger esta floresta, mas precisamos da sua ajuda", teremos a obrigação de entrar em ação e fazer a nossa parte. Eu garanto a você que há muitos membros do Congresso dos Estados Unidos e muitas pessoas nos Estados Unidos totalmente preparadas para encontrar maneiras de tentar ajudar. BBC News Brasil - Há uma grande quantidade de pessoas no Brasil que é contra a a atuação internacional para preservar a Amazônia. Eles temem algum tipo de "internacionalização da Amazônia". Como o senhor responderia a essa crítica? Kerry - Precisamos fazer o que o povo do Brasil quer que façamos e não o que queremos fazer. Este é um importante reconhecimento da soberania do Brasil. Cabe ao Brasil decidir como eles acham que a cooperação pode ocorrer da melhor maneira. Eu vim aqui para ouvir. Não vim para dizer às pessoas o que elas têm que fazer, mas para ouvir pessoas como Marina Silva (ministra do Meio Ambiente), que trabalhou nisso por anos, que entende perfeitamente como é complicado. E tivemos reuniões muito construtivas montando um grupo de trabalho com uma série de áreas-alvo, inclusive o desmatamento. Mas existem outros biomas que também precisam de proteção no Brasil e pretendemos trabalhar com os órgãos competentes do Brasil para ser uma das entidades cooperativas, juntamente com outros países do mundo que queiram ser apoiados. Por que isso é importante? Porque não há como o mundo manter a elevação da temperatura da Terra em 1,5º C, que é o que precisamos fazer para evitar as piores consequências da crise climática, sem trabalharmos juntos para proteger vários ativos ao redor do mundo e da floresta tropical. A Amazônia é um desses ativos. Mas é o Brasil que está decidindo que quer protegê-lo. Eles precisam de ajuda para fazer isso. Temos que tomar a decisão de que estamos preparados para ajudar e vamos ajudar. E é por isso que estou lutando. É por isso que o presidente Biden está lutando. E, obviamente, temos que cumprir nossa palavra. BBC News Brasil - O senhor frequentemente diz que a mudança climática é uma ameaça existencial para a humanidade. Mas os números mostram que o governo dos Estados Unidos liberou aproximadamente US$ 46 bilhões para a guerra na Ucrânia, recentemente. Por outro lado, não vimos o mesmo ritmo em termos de liberação de dinheiro para o combate à mudança climática. Por que é tão aparentemente mais fácil convencer o Congresso dos Estados Unidos a liberar dinheiro para uma guerra e não para o combate às mudanças climáticas? Kerry - Esta é uma pergunta muito boa e muito justa. Em primeiro lugar, o presidente colocou mais dinheiro nisso. Ele colocou US$ 12 bilhões na mesa para um programa de adaptação de emergência chamado Prepare. Ele colocou vários bilhões de dólares na mesa para ajudar na adaptação (às mudanças climáticas). Então, estamos fazendo mais do que apenas lidar com a Floresta Amazônica, mas é (uma ameaça) existencial. Mas a luta na Ucrânia também. A (guerra na) Ucrânia é uma luta hoje para manter o acordo global que as pessoas fizeram após a Segunda Guerra Mundial, de que respeitaremos as fronteiras uns dos outros, de que viveremos de acordo com o direito internacional, respeitaremos o estado de direito. E o desafio com a perda de vidas na Ucrânia é muito agudo. E assim o presidente está defendendo a democracia, defendendo o estado de direito, defendendo a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), defendendo as Nações Unidas, defendendo o direito internacional. E isso é fundamental. A crise climática, que é uma crise, vem crescendo significativamente no último ano. E muito mais pessoas agora estão entendendo que é uma crise imediata. E também existencial para muitas pessoas. Vocês acabaram de ter enchentes em São Paulo e, por favor, aceitem nossas condolências. Mas precisamos responder muito mais rápido. Precisamos colocar maiores somas de dinheiro na crise climática, assim como colocamos dinheiro na crise da Ucrânia. Nós podemos fazer isso. É que algumas pessoas estão optando por não fazê-lo. E o presidente está ocupado, fazendo hora extra, tentando persuadir mais pessoas no Congresso e no mundo sobre a urgência de podermos lidar com duas ou três crises ao mesmo tempo. Digo três porque também ainda temos uma pandemia e temos o potencial de outra pandemia chegar. BBC News Brasil - O senhor reconhece que tem sido mais fácil para essa administração convencer o Congresso a liberar dinheiro para a guerra em vez de liberar dinheiro para combater as mudanças climáticas? Kerry - Tem sido mais fácil. E eu me perguntava sobre o motivo disso. Eu e o presidente Biden, em particular, vemos a crise climática como imediata, mas nem todo mundo vê. E então eu fui ao Congresso e conversei com alguns de meus ex-colegas no Senado e na Câmara. Eu disse: "Por que vocês não veem isso? O que está acontecendo é algo imediato". E a resposta é que muitos dos nossos colegas veem isso como algo que vai acontecer no futuro: "A gente lida com isso". E, obviamente, nossa tarefa e a do presidente Biden, em particular, é persuadir as pessoas de que isso (o combate às mudanças climáticas) não é algo que você possa adiar. Não é algo que ainda está para acontecer. Está acontecendo agora em todo o mundo. E algumas das ameaças da crise climática são irreversíveis. Já ouvi cientistas me dizerem que podemos ter atingido cinco pontos críticos onde passamos do ponto de não-retorno. Eles dizem que, possivelmente, o ponto de não-retorno já passou para o Mar de Bering, para os recifes de coral, para o permafrost (terrenos que se mantiveram congelados nos últimos milhares de anos), para o Ártico e a Antártida. E se isso for verdade, isso é realmente ameaçador para todos nós. Portanto, esperamos poder persuadir as pessoas da urgência de lidar com o que agora é uma crise real e presente. [NOTA DA REDAÇÃO: o ponto de não-retorno é um conceito usado por cientistas que estudam os efeitos das mudanças climáticas. Ele significa que, em razão do aumento da temperatura do planeta já registrado, algumas regiões já sofreram danos que não poderiam ser mais revertidos e que, por isso, não teriam mais capacidade de regeneração].
2023-03-01
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxe31p3e3v4o
brasil
Robinho pode ser preso no Brasil? Entenda o que acontece agora
Condenado a nove anos de prisão na Itália por participação em um estupro coletivo, o ex-jogador de futebol Robinho aguarda decisão da Justiça brasileira sobre se a pena será ou não cumprida no país. Nesta semana, o Ministério Público Federal (MPF) emitiu um parecer a favor da transferência da execução da pena, ou seja, a favor de Robinho cumprir a sentença italiana no Brasil. O MPF entregou o endereço do ex-atacante à Justiça, mas isso não significa que o ele será preso em breve. Entenda o que acontece agora no caso de Robinho. Robinho foi condenado na Itália em 2017 por ter estuprado uma jovem albanesa em um clube noturno em Milão em conjunto com outros homens em 2013, quando jogava pelo Milan. A sentença foi confirmada em outras instâncias e deixou de ter possibilidade de recurso em janeiro de 2022. Imediatamente a Itália pediu a extradição do jogador para a Europa, mas o Brasil não extradita brasileiros para países estrangeiros - a regra é uma cláusula pétrea na Constituição. Fim do Matérias recomendadas Com a negativa da extradição do ex-jogador, a Itália enviou ao Ministério da Justiça brasileiro o pedido de que haja a transferência da execução da pena, ou seja, que Robinho cumpra os nove anos de prisão aqui. Para que isso aconteça, são necessários alguns requisitos e é preciso que haja aprovação do Superior Tribunal de Justiça. Entre os requisitos - que o caso de Robinho cumpre, segundo o MPF - estão que a atitude pela qual a pessoa foi condenada seja também considerada crime no Brasil, que a pena seja compatível com a legislação brasileira e que a pessoa não seja penalizada duas vezes pelo crime. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em parecer do subprocurador-geral da República Carlos Frederico Santos, o MPF diz que não há nenhum impedimento legal para que o ex-futebolista cumpra a pena em território brasileiro e que o jogador pode ser citado (chamado) pela Justiça a apresentar sua defesa no caso. Robinho foi condenado na Itália em 2017 por ter estuprado uma jovem albanesa em um clube noturno em Milão em conjunto com outros homens em 2013, quando jogava pelo Milan. A sentença foi confirmada em outras instâncias e deixou de ter possibilidade de recurso em janeiro de 2022. Imediatamente a Itália pediu a extradição do jogador para a Europa, mas o Brasil não extradita brasileiros para países estrangeiros - a regra é uma cláusula pétrea na Constituição. Com a negativa da extradição do ex-jogador, a Itália enviou ao Ministério da Justiça brasileiro o pedido de que haja a transição da execução da pena, ou seja, que Robinho cumpra os nove anos de prisão aqui. Para que isso aconteça, são necessários alguns requisitos e é preciso que haja aprovação do Superior Tribunal de Justiça. Entre os requisitos - que o caso de Robinho cumpre, segundo o MPF - estão que a atitude pela qual a pessoa foi condenada seja também considerada crime no Brasil, que a pena seja compatível com a legislação brasileira e que a pessoa não seja penalizada duas vezes pelo crime. Em parecer do subprocurador-geral da República Carlos Frederico Santos, o MPF diz que não há nenhum impedimento legal para que o ex-futebolista cumpra a pena em território brasileiro e que o jogador pode ser citado (chamado) pela Justiça a apresentar sua defesa no caso. Agora Robinho tem 15 dias para apresentar uma contestação ao Supremo Tribunal Federal. Ele não pode recorrer da condenação ou da pena - que foram dadas pela Justiça italiana - apenas da possibilidade de que ela seja transferida para o Brasil, explica o jurista Alamiro Velludo Salvador, professor de direito penal da USP. “O STJ vai decidir se a impossibilidade de extradição de brasileiro significa que não podemos submeter o brasileiro a essa autoridade criminal estrangeira e não podemos fazer a transferência de pena, algo que não está expresso na lei”, afirma Salvador, “ou se segue o entendimento da doutrina (jurídica) de que é possível essa transferência da execução da pena”. Em seu parecer, o MPF cita o entendimento do jurista Davi Tangerino, que entende que a Lei de Imigração não impede que o brasileiro seja submetido à execução de pena privativa de liberdade estrangeira. Após o prazo para contestação, o STJ vai julgar o caso em colegiado, ou seja, os diversos ministros da corte especial vão tomar uma decisão em conjunto. Se entrar na “fila” normal de processos, esse tipo de decisão costuma demorar de um a dois anos, afirma o criminalista Raul Abramo Ariano, advogado no escritório Vilela, Miranda e Aguiar Fernandes. No entanto, por ser um caso de destaque e uma decisão sobre um assunto no qual ainda não há um entendimento na Justiça brasileira, pode ser que o processo envolvendo Robinho seja julgado antes, em cerca de seis meses. “Tecnicamente existe um prazo no regimento da Corte para isso, mas ele não costuma ser cumprido e o não cumprimento não causa nulidade no caso”, explica Abramo, que é especialista em direito penal Econômico pela Universidade de Coimbra e pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Só existe a possibilidade do jogador ser preso após a decisão do STJ, caso a corte decida que a pena dada pela Justiça italiana será executada no Brasil. No entanto, a defesa ainda poderá recorrer ao STF (Supremo Tribunal Federal) questionando a constitucionalidade da decisão, levando a discussão jurídica para outra instância. Segundo Salvador e Abramo, não está claro se Robinho seria preso assim que o STJ decidisse pela execução da pena ou se ele, caso sua defesa recorresse, poderia aguardar a decisão do STF em liberdade. Os criminalistas lembram que ninguém pode ser preso no Brasil se não houver transição de julgado (fim da possibilidade de recurso) de sentença penal condenatória. No caso, a condenação que transitou em julgado foi na Itália, então mesmo que o STJ decida em favor do cumprimento por aqui, haveria uma discussão jurídica sobre a possibilidade ou não de aguardar em liberdade por uma confirmação do STF. O tempo de decisão do STF é conhecido por ser imprevisível, pois depende da escolha dos ministros em colocar o assunto em pauta e também de pedidos de vista - quando algum dos ministros pede mais tempo para analisar a questão. “Algo que pode apressar as decisões é o fato de envolver uma personalidade conhecida, em um crime sexual, e também pela pressão diplomática das autoridades italianas”, diz Abramo. Como o cumprimento de pena de prisão em território nacional de algum brasileiro condenado no exterior é algo inédito - também poderia ser discutido como seria a execução da pena, afirma Salvador. Por exemplo, o tempo de progressão de regime fechado para regime aberto, etc. O mais provável é que sejam seguidas as regras brasileiras, não italianas - nesse caso o STJ teria que decidir sobre os ajustes necessários.
2023-02-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72zq1d7l82o
brasil
A praia brasileira apontada como a melhor do mundo em 2023 em ranking de site de turismo
A praia brasileira de Baía do Sancho, em Fernando de Noronha, foi escolhida como a melhor praia do mundo em uma avaliação divulgada nesta terça-feira (28/2) pelo site de turismo Tripadvisor. A praia de Ipanema, no Rio de Janeiro, também entrou na lista das 25 melhores praias do mundo divulgada este ano, na posição 19 (veja o ranking completo no fim desta reportagem). O ranking anual do Tripadvisor leva em consideração a quantidade e a qualidade de resenhas e notas dadas por turistas de 1º de janeiro a 31 de dezembro. O Tripadvisor descreve a praia de Fernando de Noronha: "Uma bela praia remota que só pode ser alcançada descendo escadas e degraus de pedra. Os majestosos penhascos vão tirar o seu fôlego". O guia de turismo Lonely Planet diz que a Baía do Sancho é "o trecho de areia mais deslumbrante em uma ilha de praias magníficas". Fim do Matérias recomendadas "A Baía do Sancho é uma enseada protegida de águas azul-turquesa brilhantes apoiadas por falésias cobertas de floresta. O difícil acesso – os visitantes devem descer as falésias em uma série de escadas ou chegar de barco – só aumenta o fator surpresa quando você finalmente pisa em suas areias macias e sedosas." A Baía do Sancho é uma praia reservada em Fernando de Noronha — um arquipélago que ainda é considerado um destino de turismo restrito a relativamente poucas pessoas, dadas as dificuldades de acesso. No entanto, o número de turistas que visitam Fernando de Noronha vem crescendo a cada ano. Em 2022, houve recorde no número de turistas que visitaram as ilhas: 149 mil — um aumento de 30% em relação ao ano anterior. No Tripadvisor, há mais de 8,7 mil avaliações de internautas sobre a Baía do Sancho, que vem atraindo mais turistas a cada ano — em parte graças às eleições do próprio site. "Esta praia é de tirar o fôlego. A vista, a água e a vida marinha quando você chega lá é incrível", escreve um dos usuários do site. Mas há quem discorde. "Sancho foi decepcionante, já que todo mundo diz que é a melhor praia do mundo. E lotada", escreve outro turista no Tripadvisor. "Se pode ver os mesmos animais marinhos melhor — e de graça — na praia do Porto (também em Fernando de Noronha)." O Tripadvisor lista seis hotéis e 189 pousadas disponíveis em Noronha. A outra praia brasileira citada na lista é Ipanema, no Rio de Janeiro, avaliada por mais de 19 mil pessoas. "Todos nós conhecemos a música! Que viagem ao Rio é completa sem esta praia? Uma praia linda com uma vibe mais descontraída", diz o Tripadvisor. As melhores praias do mundo, segundo a mais recente lista divulgada pelo Tripadvisor, são:
2023-02-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3gz2n3gj34o
brasil
Esquerda gere melhor economia e Lula está certo sobre juros, diz Nobel
Os governos de centro-esquerda se tornaram melhores gestores da economia do que a direita no século 21, defende Joseph Stiglitz, vencedor do Nobel de economia, professor da Universidade de Columbia (EUA) e antes economista-chefe do Banco Mundial (1997-2000). Para Stiglitz, que completou 80 anos neste mês de fevereiro, a centro-esquerda volta ao poder na América Latina em momento “que não poderia ser pior”, com pandemia, inflação, restrições fiscais e a economia mundial em desaceleração. Mas ele avalia que os governos da região poderão ser bem sucedidos se conseguirem manter o foco no fato de que foram eleitos para criação de uma “prosperidade compartilhada”, isto é, um crescimento inclusivo, que garanta a melhora de vida da parcela mais pobre da população. Em entrevista exclusiva à BBC News Brasil, Stiglitz afirma que os bancos centrais do mundo erram ao combater a inflação atual com elevação de juros. Isso porque, na avaliação do economista, a alta no custo de vida que aflige o mundo hoje é provocada principalmente por restrições na ponta da oferta causadas pela pandemia e pela guerra na Ucrânia, além de mudanças no padrão de consumo também derivadas da crise sanitária. Fim do Matérias recomendadas Assim, no contexto atual, elevar juros – uma medida de política monetária que tem por objetivo aumentar o custo e restringir a oferta de crédito, esfriando a economia para reduzir a inflação – pode fazer mais mal do que bem, defende o Nobel. No Brasil, na disputa entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, sobre o nível da taxa básica de juros e da meta de inflação do país, Stiglitz avalia que o petista está correto em suas preocupações. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast “Há um custo enorme em ter taxas de juros altas. Isso coloca o Brasil em desvantagem competitiva, estrangula as empresas brasileiras, enfraquece a economia do país. Então o presidente Lula está absolutamente correto em estar preocupado com essas questões”, diz Stiglitz à BBC News Brasil. “A pesquisa teórica mais recente, realizada em um período longo de tempo, mostra que, em momentos de rápido ajuste da economia e mudança estrutural – o tipo de coisa que estamos vivendo no mundo pós-covid e à medida que rumamos para a transição verde –, uma taxa de inflação mais alta na verdade facilita o ajuste”, afirma. Conselheiro durante o governo do democrata Bill Clinton (1995-1997) e atualmente copresidente da ICRICT (sigla em inglês para Comissão Independente de Reforma Tributária Internacional de Empresas), Stiglitz defende que o combate à desigualdade deve estar no topo das prioridades da reforma tributária brasileira – cuja proposta o governo Lula pretende apresentar ainda neste primeiro semestre. “Obviamente é importante ter um sistema tributário eficiente e isso exige simplificação. Mas o que é ainda mais ou igualmente importante para o Brasil é reformular o sistema tributário para combater a desigualdade”, afirma o economista, um dos defensores de um imposto global sobre multinacionais e do aumento da tributação sobre os mais ricos. “Eu não posso opinar sobre a política brasileira, mas acredito que aumentar a progressividade do sistema tributário do Brasil deve ser uma prioridade. Diante do elevado nível de desigualdade do país, isso deve estar no topo da agenda.” Confira abaixo os principais trechos da entrevista. Joseph Stiglitz – Primeiro, deixe-me dizer que as taxas de juros estavam anormalmente baixas, próximas de zero desde a grande recessão de 2008. Então fazia sentido para os bancos centrais aproveitarem a situação atual para normalizar as taxas de juros. Mas agora estamos passando deste ponto, para além da normalização. E acredito que isso seja um erro. BBC News Brasil – Por que o senhor acredita nisso? Stiglitz – Quando escrevi aquele artigo, a evidência para mim era clara de que a principal fonte da inflação eram interrupções do lado da oferta causadas pela pandemia e, em alguma medida, pela invasão russa à Ucrânia. Havia ainda alguns choques do lado da demanda relacionados à pandemia que também eram inflacionários. Desde que eu escrevi aquilo, a evidência tem reforçado minha conclusão, com a inflação [nos EUA] recuando ainda mais, à medida que os gargalos do lado da oferta foram sendo resolvidos, os preços do petróleo baixaram e outros preços se normalizaram. Outra coisa que preocupa os bancos centrais, e com razão, são espirais de preços e salários [quando a inflação impulsiona aumentos de salários, o que alimenta ainda mais a inflação]. E não há evidências disso, os salários [nos EUA] não estão acompanhando os preços, o rendimento real está em queda e as expectativas de inflação seguem fracas, mostrando que os participantes do mercado parecem ter visões consistentes com o que eu apresentei. Tudo isso significa que a política de elevar taxas de juros, que é a resposta normal para um excesso de demanda agregada, é inapropriada no contexto atual. E uma das coisas que eu argumento é que isso pode, na verdade, exacerbar as pressões inflacionárias. Porque, por exemplo, uma das coisas necessárias para aliviar pressões no lado da oferta é investimento. E taxas de juros elevadas tornam esse investimento mais difícil. BBC News Brasil – E o senhor acredita que isso é válido somente para os EUA ou o mesmo argumento pode ser usado para outros países que enfrentam inflação neste momento? Stiglitz – Esse argumento serve para quase todos os países que enfrentam inflação atualmente. Na maioria deles, o argumento é até mais forte, porque, na maioria, muito da inflação é importada. Ou seja, vem de produtos trazidos ou precificados no exterior. BBC News Brasil – No Brasil, o presidente Lula está travando há semanas um embate com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, sobre o nível da taxa básica de juros do país, que está atualmente acima dos 13%. Lula argumenta que os juros estão estrangulando a economia, enquanto Campos Neto defende o mandato do Banco Central de perseguir a meta de inflação do país, de cerca de 3%. Como o senhor vê essa disputa no Brasil? Stiglitz – Primeiro, é preciso dizer que metas de inflação – que na Europa [e nos EUA] é de 2%, e você falou em 3% [no Brasil] – são tiradas do nada. Elas não têm base alguma na teoria econômica ou na experiência econômica. Há preocupação com uma espiral inflacionária, mas neste momento não há evidências disso. Eu não sei todos os detalhes para o Brasil, mas posso dizer enfaticamente que não há evidência de uma espiral inflacionária nos EUA e, de maneira geral, globalmente. Então não é um número mágico, 2% ou 3%, mas se há uma espiral inflacionária que está se tornando descontrolada. Há um custo enorme em ter taxas de juros altas. Isso coloca o Brasil em desvantagem competitiva, estrangula as empresas brasileiras, enfraquece a economia do país. Então o presidente Lula está absolutamente correto em estar preocupado com essas questões. Voltando à questão da meta de inflação, a pesquisa teórica mais recente, realizada em um período longo de tempo, mostra que, em momentos de rápido ajuste da economia e mudança estrutural – o tipo de coisa que estamos vivendo no mundo pós-covid e à medida que rumamos para a transição verde –, uma taxa de inflação mais alta na verdade facilita o ajuste. Então a performance econômica em geral será melhor se a taxa de inflação for ligeiramente mais alta. Eu acredito enfaticamente nisso no caso dos EUA, que não devemos nos limitar a [uma meta de inflação de] 2%. Por fim, mesmo que você acredite que deve haver uma meta de 2% ou 3%, não há nenhuma teoria ou evidência empírica de que voltar [de uma inflação mais elevada] para esses 2% ou 3% num período curto de tempo seja a melhor prática. Assim como o número é tirado do nada, a velocidade para voltar a esse número é tirada do nada. BBC News Brasil – Enquanto esse debate acontece no Brasil, muitos economistas têm lembrado de intervenções mal sucedidas na política monetária feitas por governos em anos recentes. Eles citam casos como o da Turquia e da Argentina, que acabaram resultando em mais inflação e forte desvalorização das moedas locais. Como o senhor vê essas preocupações? Acredita que esse pode ser um risco para o Brasil, caso Lula seja bem sucedido em mudar a lei que atualmente garante a independência do Banco Central? Stiglitz – Acredito que há questões distintas. Obviamente, alguns governos têm instituições fracas e herdaram problemas institucionais que vão além de apenas um aspecto, como o Banco Central. Então seria errado dizer que porque o Zimbábue ou a Venezuela têm um problema, devemos ficar de mãos atadas. Falando na perspectiva dos EUA, nós temos uma democracia forte – ou pelo menos tínhamos antes de Trump – e nossos líderes políticos sabem que podem ser responsabilizados e que, se houver uma espiral inflacionária, eles vão pagar o preço. Então é do interesse deles manter a inflação controlada, reduzi-la e, ao mesmo, proteger os trabalhadores e aqueles que são negativamente afetados pela inflação. Então é preciso fazer as duas coisas [controlar a inflação e garantir a geração de empregos]. De maneira mais ampla, quando enfrentamos mudanças sociais e econômicas complexas, é necessário coordenação entre as políticas fiscal e monetária [a política fiscal diz respeito ao controle dos gastos e da arrecadação do governo, já a política monetária trata do controle da quantidade de dinheiro em circulação na economia, o que é feito através da taxa de juros]. Nos EUA, nós temos um banco central independente. Mas Paul Volcker, um destacado presidente do conselho do Federal Reserve [Fed, o banco central americano], uma vez disse: “O Congresso nos criou, e o Congresso pode nos ‘descriar’.” Então ele tinha muita ciência de que sua independência não era absoluta e de que precisava agir de determinadas maneiras que respondessem às necessidades da sociedade. Isso significa que ele precisava em certo sentido coordenar sua ação com o que estava acontecendo. Então a questão da independência do Banco Central é às vezes tomada como algo sagrado. Na minha visão, é bom estrutural institucionalmente, mas precisa reconhecer a necessidade de coordenação, e também de conhecimento especializado e profissionalismo. BBC News Brasil – Mudando de assunto para outra área de sua especialidade, a equipe econômica de Lula espera aprovar uma reforma tributária esse ano. Essa reforma deve ter uma primeira etapa focada em simplificar impostos sobre o consumo em um imposto sobre valor adicionado, e uma segunda etapa focada no Imposto de Renda. Como alguém que vem discutindo há anos o uso da tributação como uma forma de combater a desigualdade, qual o conselho do senhor para o Brasil, às vésperas de uma reforma? Stiglitz – Obviamente é importante ter um sistema tributário eficiente e isso exige simplificação. Mas o que é ainda mais ou igualmente importante para o Brasil é reformular o sistema tributário para combater a desigualdade, tornando esse sistema mais progressivo [que arrecada mais de quem tem mais renda e patrimônio]. Eu não posso opinar sobre a política brasileira, mas acredito que aumentar a progressividade do sistema tributário do Brasil deve ser uma prioridade. Diante do elevado nível de desigualdade do país, isso deve estar no topo da agenda. BBC News Brasil – E quais seriam as formas de fazer isso? Mudar a tributação sobre a renda ou taxar os mais ricos, essas poderiam ser algumas das maneiras de conseguir isso? Stiglitz – O imposto de renda, a taxação de fortunas, a taxação de heranças e a elevação do imposto de renda corporativo são instrumentos efetivos para enfrentar a desigualdade, mas não são os únicos. Diversos países da América Latina estão discutindo como aumentar o grau de progressividade de seus sistemas tributários, Chile e Colômbia em particular. E, diante do alto nível de desigualdade no Brasil, acredito que isso deve ser uma prioridade. BBC News Brasil – Passando à relação entre Brasil e Estados Unidos. Os EUA indicaram que devem doar ao Fundo Amazônia brasileiro, após o encontro entre Biden e Lula no início de fevereiro. O valor da doação ainda não está definido, mas o número inicial de US$ 50 milhões teria desapontado as autoridades brasileiras. O senhor acredita que a gestão Biden está fazendo o suficiente para ajudar os países em desenvolvimento a combater as mudanças climáticas? Stiglitz – Em resumo, não. Mas o espaço para manobra é limitado, porque os democratas não têm controle suficiente sobre o Congresso para garantir o orçamento necessário. Tivemos uma batalha dura para conseguir recursos para investimentos verdes nos EUA, que devem não somente acelerar nossa transição verde, mas também aumentar a produtividade no país. Então acredito que deveríamos estar fazendo mais, que a mudança climática é uma questão global e, como somos o país mais rico do mundo, deveríamos fazer um esforço proporcional. Mas tenho esperanças de que, com a escolha do novo presidente do Banco Mundial, que deverá ser anunciado em breve, o banco possa fazer um esforço maior, com o apoio dos EUA, para endereçar a questão da mudança climática em mercados emergentes. [Nota da redação: O atual presidente do Banco Mundial, David Malpass, anunciou em 15 de fevereiro que deixará o cargo em junho, um ano antes do término de seu mandato. A renúncia inesperada do indicado por Donald Trump acontece em meio a críticas à atuação tímida do banco em temas como combate à pandemia, à pobreza e ao aquecimento global. Na semana passada, Biden indicou o empresário indiano-americano Ajay Banga, ex-CEO da Mastercard, ao cargo. A nomeação ainda terá de ser confirmada pelo conselho de administração do banco.] BBC News Brasil – Num momento em que o Brasil tenta reafirmar seu lugar no mundo como uma liderança em sustentabilidade e o governo busca recuperar a economia após anos de baixo crescimento, qual pode ser o papel dos investimentos verdes nesse processo? O senhor acredita que o Brasil deve buscar seu próprio “Green New Deal” [proposta da esquerda do Partido Democrata americano que associa agenda ecológica e geração de empregos]? Stiglitz – Sim. Acredito que todos os países precisam reconhecer que estamos caminhando rapidamente dos combustíveis fósseis para a energia verde. Os países que se moverem mais cedo e mais rapidamente terão uma vantagem competitiva. Eles vão aprender a dominar as novas tecnologias. Em economia falamos em “percorrer a curva de conhecimento”. Diante do alto nível de competência técnica do Brasil, da qualidade de seus engenheiros e da diversidade da sua economia, acredito que o Brasil está em posição para ter um papel de liderança entre os países emergentes nessa transição para uma economia verde. Stiglitz – Sim, mas vai ser difícil. Eles chegaram ao poder num momento muito, muito complicado. Tem a pandemia, a inflação. No caso do Brasil, Lula herdou uma absoluta bagunça do governo Bolsonaro. Em certa medida, dá para dizer que não poderia ser pior, por que ele começa em um ambiente em que é preciso consertar o caos criado pela administração anterior. Nos Estados Unidos, por exemplo, os republicanos vivem falando em responsabilidade fiscal, mas toda vez que chegam ao governo, eles criam déficits imensos. Trump fez isso, [Ronald] Reagan fez isso. Então toda vez os democratas precisam consertar a bagunça herdada. Foi necessário [Bill] Clinton para reequilibrar o Orçamento [após a gestão de George H. W. Bush]. Então há sempre uma desvantagem para os governos de centro-esquerda responsáveis, como Lula, de corrigir a desordem herdada. E o caos é ainda maior porque Bolsonaro, como Trump, dividiu a sociedade. E, obviamente, quando você tem uma sociedade polarizada é muito mais difícil conseguir a solidariedade e coerência que ajudariam a endereçar os problemas sociais. Acredito que a resposta tem que ser, como dizemos nos EUA, que esses governos de centro-esquerda não podem tirar o olho da bola. Eles foram eleitos para criar um senso melhor de prosperidade compartilhada [uma outra forma de dizer crescimento inclusivo, que abrange a melhora de vida da parcela mais pobre da população]. É interessante que, em muitos sentidos, eles [os governos de centro-esquerda] se tornaram melhores gestores da economia. Digo isso porque a economia do século 21 é baseada em inovação, competição, alto nível de capital humano e boa infraestrutura pública. E os governos de direita que eles substituíram eram centrados em monopólios, grandes empresas, competição limitada e investimentos insuficientes nas pessoas e em infraestrutura. A agenda econômica da direita levou a um baixo crescimento e fraca performance econômica. Então, embora os governos de centro-esquerda tenham herdado uma bagunça, se eles mantiverem o olho na bola e o foco no objetivo de atacar esses problemas e criar uma prosperidade compartilhada, acredito que serão bem-sucedidos.
2023-02-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0dlj3nl1xwo
brasil
Com Kerry em Brasília, deputados democratas dos EUA pedem punição de Bolsonaro por crise dos Yanomami
Há quase dois meses nos EUA e às vésperas de visitar a capital americana Washington, onde deve participar de uma conferência conservadora na qual também estará o ex-presidente americano Donald Trump, o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro é alvo, nesta segunda (27/2), de uma declaração pública de deputados democratas que pedem que ele seja responsabilizado pela crise humanitária e sanitária na reserva indígena Yanomami, em Roraima. Os deputados Susan Wild, Raúl Grijalva e Chuy Garcia, que compõem a base do presidente Joe Biden, afirmam que as condições de desnutrição severa e a epidemia de malária e verminoses entre os Yanomami, que vitimaram centenas de crianças indígenas nos últimos quatro anos, são de responsabilidade direta do antigo governo que, ainda segundo eles, não atuou para coibir a ocupação ilegal do território por garimpeiros. Por isso, pedem a punição judicial de Bolsonaro. Em entrevista à BBC News Brasil, o deputado Grijalva disse que o que se viu com os Yanomami, cujas fotografias de extrema magreza correram o mundo, "formam um quadro de genocídio". "Os EUA precisam fazer mais do que ficar assistindo e comentando", defendeu Grijalva. "Ao retirar fundos e desmantelar as principais agências ambientais e de direitos humanos, apoiar projetos de lei para abrir terras indígenas à mineração e atacar constantemente os povos indígenas durante sua presidência, Bolsonaro permitiu que garimpeiros ilegais invadissem o território Yanomami e conduzissem suas atividades com impunidade", diz a declaração. "Os crimes cometidos pelo governo Bolsonaro devem agora ser enfrentados com justiça e responsabilização", escrevem os congressistas na declaração, referindo-se à retirada de orçamento de órgãos como Ibama e Funai e ao apoio legislativo da base bolsonarista a projetos de mineração em áreas indígenas. Fim do Matérias recomendadas No Brasil, integrantes da gestão Bolsonaro, incluindo o próprio presidente, são alvos de inquérito que apura omissão e negligência em relação aos Yanomami. Todos negaram repetidas vezes ter cometido qualquer irregularidade. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) também denunciou o então presidente Bolsonaro por genocídio no Tribunal Penal Internacional, em Haia. A alguns interlocutores, Bolsonaro já demonstrou preocupação em relação ao andamento deste processo no Brasil - embora negue ter qualquer responsabilidade sobre a situação precária dos indígenas Yanomami, que acusou ser uma "farsa" da esquerda. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O posicionamento dos congressistas se torna público durante a visita a Brasília do Enviado Climático de Biden, John Kerry, que, nesta segunda, se encontrou com o vice-presidente do Brasil, Geraldo Alckmin, e com a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, entre outras autoridades brasileiras. De acordo com Alckmin, na reunião, Kerry e as autoridades brasileiras trataram especificamente "de projetos na área humanitária, de apoio à saúde aos povos indígenas, como os Yanomami". Alckmin afirmou ainda que Kerry não falou em valores sobre o aporte financeiro que os EUA já anunciaram que farão no Fundo Amazônia, um projeto bilionário bancado por Noruega e Alemanha para remunerar o Brasil pela preservação da Floresta Amazônia. O Fundo foi congelado durante o governo Bolsonaro e reativado agora sob Lula. Durante a visita bilateral de Lula a Biden em Washington, em 10/2, os americanos disseram aos brasileiros que remeteriam US$ 50 milhões ao Fundo Amazônia. O valor foi considerado baixo para o tamanho da economia do país e pela suposta importância que a gestão Biden dá à questão das mudanças climáticas. Até o fim do ano passado, o Fundo já dispunha de mais de R$ 3 bilhões acumulados. O problema para os americanos, no entanto, está no processo político doméstico. Nas eleições de meio de mandato, no fim do ano passado, os democratas perderam o controle da Câmara, responsável pela aprovação do orçamento federal. Cabe ao Congresso dar o sinal verde à gestão Biden para a remessa de fundos a países estrangeiros, o que não aconteceu ainda no caso da política ambiental para o Brasil. Isso explicaria, de acordo com diplomatas americanos ouvidos pela BBC News Brasil, o valor oferecido pelos EUA. Grijalva admite que "não é muito dinheiro". E defende que os EUA façam mais, não só em termos de envios de recursos ao Brasil, mas em cumprir suas promessas ambientais firmadas nas Conferências Climáticas da ONU. "O governo Biden precisa apoiar a gestão Lula na reversão das políticas indigenistas e ambientais do antigo governo Bolsonaro. É fundamental para o mundo em termos do papel que a Amazônia desempenha no clima. E a proteção dos povos indígenas é um imperativo moral que todas as nações devem apoiar, incluindo os EUA", afirma. "Temos que ser mais ação do que palavras. Os 50 milhões, que não é muito dinheiro, são um apoio inicial ao governo brasileiro pela reversão dessas políticas, que é isso que precisamos fazer. E isso requer recursos, devemos fornecer esses recursos ao Brasil", afirma o deputado. A nova manifestação de congressistas democratas sobre Bolsonaro se soma a uma série de outras feitas pela base de Biden para demonstrar insatisfação com a presença do ex-presidente brasileiro no país, especialmente após os ataques às sedes dos Três Poderes em Brasília, em 8 de janeiro. Em meados de janeiro, dezenas de congressistas pediram em carta a Biden que o governo americano não permitisse o uso do território americano como "refúgio" por Bolsonaro, que ingressou em território americano com visto diplomático, ainda na condição de presidente. No fim do mês passado, quando Bolsonaro pediu o ajuste de seus status migratório no país para a condição de turista, o deputado democrata americano Joaquín Castro, do Texas, disse à BBC News Brasil que o pedido de visto deveria ser negado. Ele afirmou que Bolsonaro "é perigoso e não deveria ser autorizado a permanecer nos EUA". O governo americano afirma que o processo de visto não é político, apenas burocrático, e que a gestão Biden não tem qualquer ingerência sobre o resultado. Baseado em Orlando, na Flórida, nos últimos dias o ex-presidente fez algumas viagens pelo país: esteve no departamento policial de Oklahoma e visitou a cidade de Nashville, no Tennessee. Esta semana, ele chegará a Washington, onde deve participar, junto com o filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, da Conservative Political Action Conference. Trump também discursará no evento no próximo sábado (04/03). Segundo Eduardo Bolsonaro, Trump e o pai devem se encontrar pela primeira vez desde que ele deixou a Presidência por ocasião do evento, o que a assessoria do ex-presidente americano não confirma. Embora se dissessem próximos e amigos e estejam residindo no mesmo Estado nos últimos dois meses, ambos ainda não se encontraram. Trump está em pré-campanha e pretende ser o candidato presidencial republicano em 2024. "A presença dele (Bolsonaro) aqui nos EUA é uma afronta e ele está se aconchegando aos extremistas do nosso país. E enquanto ele desfila por aqui com Donald Trump, não paga pelos danos que causou no Brasil", afirmou Grijalva. A BBC News Brasil tentou contato com a assessoria do deputado Eduardo Bolsonaro, que está com o pai nos EUA, mas não obteve resposta. - Este texto foi publicado em
2023-02-27
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cl7jx72rd9do
brasil
Por que o Brasil tem a população mais ansiosa do mundo
Coração acelerado antes de uma prova, nervosismo em uma reunião importante ou mãos suando no primeiro dia de trabalho. Provavelmente, você já sentiu algum desses sintomas. Agora, se você está com dificuldades recorrentes para dormir, fica sem ar em uma reunião importante e não consegue se concentrar no trabalho por somente pensar no pior deve ficar atento. O que acredita ser normal pode ser um distúrbio psiquiátrico e exige avaliação médica. Quando não tratada corretamente, a ansiedade pode virar uma adversidade e desencadear outros transtornos mentais, como a depressão, que acomete aproximadamente 300 milhões de pessoas no mundo, segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). Aos 19 anos, a estudante Julia de Mello Precioso representa um dos 18,6 milhões de brasileiros que possuem transtorno de ansiedade. "No começo, me sentia desmotivada, meu coração ficava extremamente acelerado, tinha falta de ar, mudanças drásticas de humor. Mas ao passar do tempo esses sintomas foram aumentando e chegou no ponto deu somente chorar e não ter vontade de socializar." Fim do Matérias recomendadas Histórias como a dela estão sendo cada vez mais comuns no mundo, principalmente, após a pandemia do coronavírus. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que no primeiro ano da pandemia de Covid-19, a prevalência global de ansiedade e depressão aumentou em 25%. "Uma das principais explicações para esse aumento é o estresse sem precedentes causado pelo isolamento social decorrente da pandemia, além das restrições à capacidade das pessoas de trabalhar, busca de apoio de familiares e vida social ativa. A solidão, medo de se infectar, sofrimento e morte de pessoas próximas foram fatores estressores que levaram à ansiedade e depressão", disse Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). De acordo com o último grande mapeamento global de transtornos mentais, realizado pela OMS, o Brasil possui a população com a maior prevalência de transtornos de ansiedade do mundo. Para se ter uma ideia, aproximadamente 9,3% dos brasileiros sofrem de ansiedade patológica. Em seguida, aparece o Paraguai (7,6%), Noruega (7,4%), Nova Zelândia (7,3%) e Austrália (7%). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Índice elevado de desemprego, recorrentes mudanças no rumo da economia e falta de segurança pública são apontados por especialistas ouvidos pela BBC Brasil como principais fatores para a alta prevalência de transtornos de ansiedade na população. "O Brasil tem uma alta taxa de violência, que faz muitas pessoas saírem de casa com o receio de serem assaltadas. Receio que gera ansiedade", apontou Rafael Boechat, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília (UnB). Especializada em acolher pacientes com transtornos mentais, a psicóloga Adriana Botarelli conta que as próprias dificuldades econômicas contribuem para o alto número de pessoas ansiosas. "A maior parte da população do Brasil tem pouco acesso a serviços de saúde mental, muitas horas de trabalho por dia, inseguranças quanto ao futuro e pouca qualidade de vida. Todos esses fatores trazem sentimentos de medo, preocupação e angústia." Já Gerardo Maria de Araújo Filho, professor do departamento de ciências neurológicas, psiquiatria e psicologia médica da Faculdade de Medicina de Rio Preto (Famerp), acredita que o uso excessivo de computadores e smartphones também explica a alta prevalência de ansiedade no Brasil. "A rede social gera uma série de cobranças nas pessoas. Você praticamente começa a querer ser magro e esportista como o influenciador." Um estudo realizado pela Canadian Journal of Psychiatry comprovou que, quanto maior o uso de telas, maior o nível de ansiedade. Ao mesmo tempo, um relatório lançado pela empresa de análise de mercado digital App Annie apontou que o Brasil lidera o pódio dos países com pessoas que mais passam tempo conectadas. Para se ter uma ideia, o brasileiro passa, em média, quase cinco horas e meia por dia diante de seus aparelhos. Trata-se, ao lado da Indonésia, do maior volume de uso de celulares entre os 17 países analisados no relatório (que também engloba Coreia do Sul, México, Índia, Japão, Turquia, Singapura, Canadá, EUA, Rússia, Reino Unido, Austrália, Argentina, França, Alemanha e China), com base em dados coletados das lojas online iOS App Store, Google Play e outras. Entre as faixas etárias mais vulneráveis a ter o diagnóstico de transtorno de ansiedade, crianças e adolescentes aparecem na liderança. Contudo, especialistas ouvidos pela BBC News Brasil ressaltam que todas as pessoas ao decorrer da vida são suscetíveis a ter o diagnóstico de algum transtorno de ansiedade. João*, por exemplo, adorava brincar com os amigos, ir para a escola e passear com a família. Com a pandemia, tudo mudou e o menino de 13 anos precisou ficar mais tempo recluso em casa. Foi quando a mãe percebeu o adolescente mais irritado, medroso e com preocupações excessivas. Era os primeiros sintomas da ansiedade patológica. "Minha mãe percebeu que realmente precisava de ajuda quando comecei a me isolar e não sentir mais vontade de fazer atividades que gostava. Passei a ter um receio enorme que algo ruim iria acontecer, como alguém da minha família adoecer", relata o adolescente. Assim como João* diversos outros jovens foram diagnosticados, em 2022, com ansiedade no Brasil. Um mapeamento feito pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, em parceria com o Instituto Ayrton Senna, mostrou que 69% dos estudantes da rede estadual paulista relataram ter sintomas de ansiedade ou depressão durante as atividades remotas impostas pela pandemia. "A ansiedade é mais comum na infância e adolescência, porque a pessoa ainda não conhece o mundo. É uma fase que o ser humano ainda está em desenvolvimento e a criança está extremamente vulnerável ao que acontece. Assim, uma briga dos pais em casa, por exemplo, pode despertar um quadro de ansiedade no filho", afirma Gerardo Maria de Araújo Filho, professor da Famerp. Ênio Roberto de Andrade, diretor do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência do Hospital das Clínicas de São Paulo diz que, geralmente, o sinal de alerta indicando não ser uma ansiedade normal, mas um transtorno de ansiedade é a influência dos sintomas na vida da pessoa. "O tratamento mais indicado para a ansiedade na infância e adolescência é a terapia cognitiva comportamental (TCC), caso ela não funcione associa-se tratamento farmacológico. Em adulto, também vale iniciar com TCC, entretanto, geralmente o início com farmacoterapia é muito frequente", pontuou. Pesquisas apontam que a ansiedade patológica está diretamente relacionada ao processo de aprendizado, ambiente que o indivíduo está inserido ou fatores genéticos do paciente. Em alguns casos, como no processo de aprendizado, ela pode ser evitada a partir da orientação de pais e educadores. "Um exemplo são mães que não deixam o filho fazer inúmeras coisas por medo de que ele se machuque", explicou Ênio. Na parte ambiental, a recomendação para diminuir as chances de crianças terem ansiedade patológica é o de preparar um ambiente menos ansiogênico, ou seja, sem "gatilhos". Em contrapartida, quando a ansiedade é oriunda de fatores genéticos não há o que fazer para evitar, mas apenas procurar orientação médica. "Sempre que os sintomas começam a atrapalhar a vida da pessoa, é a hora de buscar um psiquiatra para uma avaliação do quadro. Ansiedade e tristeza são características normais do ser humano, mas a partir do momento em que nos impedem de sair de casa, trabalhar, levar uma vida social ativa, nos relacionar com outras pessoas, devemos procurar auxílio", afirmou Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Um dos grandes desafios no combate as altas taxas de ansiedade é o forte estereótipo existente sobre os transtornos mentais. No Brasil, o preconceito em relação a pessoas que sofrem com distúrbios psiquiátricos é conhecido como psicofobia. Jorge* lembra bem de quando teve sintomas do transtorno de ansiedade na adolescência e encontrou resistência dentro de casa para procurar ajuda especializada. "De início, minha mãe me levou em um centro espírita. Meio que relutou em me levar no médico, mas como os sintomas persistiram marcamos uma consulta com um psiquiatra. Foi quando descobri que estava com transtorno de ansiedade." A psicóloga Adriana Botarelli acredita que desmitificar a saúde mental e popularizar a ideia de procurar ajuda especializada é o caminho para o Brasil conseguir superar a alta incidência de ansiedade. "Muitas pessoas ainda consideram tabu falar sobre transtornos mentais e acabam não cuidando de transtornos, seja por medo de serem chamados de 'loucos' por fazer tratamento psicológico e psiquiátrico, ou ainda por medo de medicação, acreditando que ficarão viciados ou sedados." Já Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), afirma que o ideal é que desde cedo crianças e adolescentes possam falar abertamente sobre saúde mental nas escolas e em casa, para que cresçam sem o estigma recorrente entre pessoas idosas. "Precisamos de políticas públicas que estimulem os cuidados e a quebra desse estigma. Somente desta forma o portador de doença mental poderá viver de forma independente e autônoma, tendo oportunidades de trabalho, perseguindo suas metas e usufruindo de oportunidades com dignidade e plena inserção social", falou Silva. Para quem convive com a ansiedade, atualmente, de forma harmônica, o segredo é não negar os seus sentimentos. "Hoje, voltei a praticar exercícios físicos, consigo controlar mais meus pensamentos e identificar quando estou ansiosa. A ajuda de um profissional e força de vontade são cruciais", afirmou Julia. Já Gerardo afirma que mais importante do que frequentar a terapia é o paciente reconhecer como usar a ansiedade ao seu favor. "A grande questão não é ter ou não a ansiedade, mas a intensidade dela. Eu sempre falo que de 0 a 10, uma ansiedade 3 a 3,5 é uma ansiedade 'do bem'. Que é aquela dose de ansiedade que precisamos para realizar nossas atividades. Quando passa disso já é um sinal de alerta." Transtorno de ansiedade generalizada: tem como principal característica a preocupação excessiva e generalizada sem motivos óbvios em situações do dia a dia. Ou seja, o paciente fica sempre antecipando que algo de ruim vai acontecer, permanecendo em um estado de constante preocupação. Transtorno de pânico: tem como principal característica uma sensação de medo intensa e repentina seguida por sintomas físicos (aceleração dos batimentos cardíacos e da respiração, suor frio, falta de ar, tontura, tremores, entre outros). Esses episódios podem acontecer a partir de qualquer momento, durando até 30 minutos. Transtorno de ansiedade social: quem tem transtorno de ansiedade social, ou fobia social, tem intensa dificuldade em interagir com outras pessoas. Isso pode se referir desde a uma conversa com um grupo ou até mesmo a apresentação de um trabalho para a turma em ambiente de ensino. Dessa forma, o gatilho para o surgimento dos sintomas típicos da ansiedade costuma transitar na área da socialização. Dessa forma, a fobia social contribui pra que o paciente busque se isolar cada vez mais, evitando as suas fontes de angústia. Agorafobia: é o transtorno de ansiedade relacionado a estar em situações ou locais sem uma maneira fácil de escapar. Em geral, trata-se de casos sem um perigo iminente óbvio, mas, mesmo assim, a pessoa se sente angustiada em busca de uma saída. Um dos casos mais comuns de agorafobia costuma ser o de não suportar ficar em locais lotados ou muito fechados, como dentro de um ônibus ou avião. Quem sofre com esse transtorno também costuma não se sentir bem em elevadores e demais espaços pequenos. Transtorno de estresse pós-traumático (TEPT): tem como principal característica as lembranças recorrentes e intrusivas de um acontecimento que foi altamente angustiante para o paciente. Esse episódio traumático pode ser desde um acidente até a morte de um ente querido. O que diferencia o TEPT de um quadro de choque ou tristeza convencional é a prevalência dos seus sintomas, que vão de dificuldades para dormir até hipervigilância. Transtorno de estresse agudo: a principal diferença do transtorno de estresse agudo para os demais tipos de ansiedade é que ele geralmente ocorre a partir da vivência ou testemunho de um evento traumático específico. Assim, o paciente fica revivendo aquele acontecimento e se angustiando com ele de maneira constante. Por ser um quadro agudo, ele não costuma durar muito tempo. Em até um mês, os sintomas geralmente se amenizam. No entanto, ainda assim é válido obter o diagnóstico de um especialista para avaliar o caso e contar com o tratamento adequado. Mutismo seletivo: se caracteriza principalmente pela incapacidade de se comunicar verbalmente em situações sociais. O caso é diferente da fobia social, ou transtorno de ansiedade social, porque geralmente costuma cessar antes da adolescência ou vida adulta. Transtorno de ansiedade de separação: aquela sensação de ter saudades de casa pode se manifestar de maneira muito mais grave na forma do transtorno de ansiedade de separação. Nesse caso, o paciente passa por sensações de angústia e desespero ao se separar de um ambiente que considera familiar e agradável. Transtorno de ansiedade induzido por substância: o uso de substâncias específicas também pode ocasionar quadros de transtorno de ansiedade. Isso vale desde o caso de medicamentos convencionais até drogas perigosas, como é o caso de cocaína, heroína, maconha, entre outras. *A reportagem resguardou os nomes verdadeiros de João e Jorge. - Este texto foi publicado em
2023-02-27
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4ne681q64lo
brasil
Vídeo, O Brasil do olhar estrangeiro: parte 4, Brasil chega a HollywoodDuration, 30,35
Como o mundo enxerga o Brasil? De onde vem o clichê do país do futebol, do samba e Carnaval? Nessa série especial, dividida em seis episódios, a reportagem da BBC News Brasil mergulha em 5 séculos de história para entender como a imagem do país foi construída lá fora – e como mudou com o tempo. Do período colonial a este século 21, passando pela construção da imagem no pós-independência, as expedições internacionais de D. Pedro 2º, a questão do sanitarismo no início da República e o Brasil como “túmulo de estrangeiros”, o luso-tropicalismo e o mito da democracia racial, a aproximação dos EUA via Política de Boa Vizinhança dos anos 1930 (com seus desdobramentos no cinema), o fenômeno da Bossa Nova, o período da ditadura e a redemocratização. Este quarto episódio aborda o período entre os anos 1930 e 1960, começando com a chegada do Brasil em Hollywood, com Carmen Miranda de um lado, Zé Carioca de outro e o cineasta Orson Welles descobrindo a pobreza e a desigualdade brasileira. Passamos pelo fiasco da primeira apresentação da Bossa Nova em Nova York, pela explosão do “futebol arte” e pela estreia de Brasília, a capital de linhas modernistas erguida no meio do deserto. As particularidades do racismo brasileiro também aparecem na maneira como o mundo enxerga o país – um exemplo particularmente interessante vem da imprensa negra americana, de um jornal chamado Chicago Defender, que também faz parte deste material. Acompanhe nossa repórter Camilla Veras Mota nesse mergulho na nossa história.
2023-02-27
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64791217
brasil
Como fotos e vídeos roubados de brasileira enganaram homens em todo mundo
Por mais de uma década, imagens roubadas de uma ex-estrela do entretenimento adulto foram usadas para enganar vítimas e faturar milhares de dólares. Qual é a sensação de ser o rosto involuntário de tantos golpes amorosos? Este texto contém spoilers do podcast 'Love Janessa', da BBC e CBC Podcasts. Quase todos os dias, Vanessa recebe mensagens de homens que acreditam estar em um relacionamento com ela - alguns até acham que ela é sua esposa. Eles estão irritados, confusos e alguns querem de volta o dinheiro que dizem ter enviado a ela para pagar despesas diárias, contas hospitalares ou para ajudar parentes. Mas é tudo mentira. Vanessa não conhece esses homens. Na verdade, suas fotos e vídeos - retirados de sua vida passada no entretenimento adulto - foram usados como isca em golpes amorosos online que datam de meados dos anos 2000. As vítimas tiveram dinheiro extorquido por meio de perfis online falsos usando o nome ou imagem de Vanessa, em um tipo de golpe chamado em inglês de catfishing. A enxurrada de mensagens contendo histórias de dinheiro perdido e vidas arruinadas teve um impacto na vida da brasileira. Fim do Matérias recomendadas "Comecei a ficar deprimida e a me culpar - talvez se minhas fotos não estivessem por aí, esses homens não estariam sendo enganados", diz Vanessa - não usamos seu sobrenome para proteger sua identidade. Por cerca de oito anos, Vanessa trabalhou como "camgirl" - transmitindo material explícito ao vivo na internet via webcam. Por ser um pouco tímida quando começou, decidiu criar um alter ego chamado Janessa Brazil. "Na verdade não sou eu, é a Janessa, então não vou ter vergonha", pensou ela. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ela escolheu o sobrenome Brazil não só porque é onde ela nasceu, mas também porque é um dos termos de busca mais populares na internet. Foi uma decisão inteligente. "Eu odeio esse nome", diz ela agora. "Mas isso me ajudou a ficar popular rapidamente." Por um tempo, tudo funcionou muito bem. Vanessa gostou do relacionamento com seus fãs, que pagavam até US$ 20 (cerca de R$ 100) por minuto para assistir e interagir com ela. "Queria agradá-los. Queria me divertir com eles. E eles ficavam viciados", lembra. No auge de sua carreira, ela diz que ganhava cerca de US$ 1 milhão por ano. Janessa tinha seu próprio site, uma marca de sucesso e uma forte presença online. Mas em 2016 seu perfil online sumiu. Levamos nove meses para encontrá-la para a produção do podcast Love, Janessa. Quando finalmente conversamos com Vanessa em seu modesto apartamento na costa leste dos Estados Unidos, ela nos disse que parte do motivo pelo qual parou de produzir conteúdo online foi para tentar impedir golpes. "Não quero mais dar a eles o poder de usar nada meu nunca mais", diz ela. Vanessa percebeu que os golpistas estavam fingindo ser ela quando um homem comentou no chat, durante um show ao vivo, que ele era seu marido e ela havia prometido a ele que pararia de filmar. Ela pensou que era uma pegadinha, mas pediu que ele enviasse um e-mail para ela. Mais vítimas apresentaram histórias semelhantes, postando comentários durante seus shows e pedindo que ela provasse sua identidade. Os golpistas também apareceram com pedidos estranhos- como colocar um chapéu vermelho - imagens que eles usaram para enganar vítimas. Os constantes comentários, e-mails e clima tenso começaram a afetar seus negócios. "Foi um pesadelo", diz Vanessa. "Mas eu me senti mal por esses caras. O que devo fazer?" No começo, ela tentava responder a todos os e-mails, o que levava horas todos os dias. Ela conta que o então marido, que era seu empresário, também começou a monitorar as mensagens. Ele disse às vítimas do golpe que ele e Vanessa não eram responsáveis pelo dinheiro que os homens haviam perdido. "Se eu ganhasse todo o dinheiro que esses caras enviaram para os golpistas, eu seria uma bilionária hoje, não estaria sentada aqui no meu pequeno apartamento", diz ela. Vanessa acha que é da natureza de muitos homens querer cuidar de mulheres, o que explicaria por que eles enviavam dinheiro para alguém que não conheciam pessoalmente. "Mesmo que não tenham dinheiro, eles ainda estão dispostos a doá-lo, apenas para se sentirem amados", diz ela. Roberto Marini, um italiano de 30 e poucos anos, foi fisgado por uma falsa Janessa. Tudo começou com uma mensagem no Facebook de uma jovem atraente chamada Hannah, que o elogiou por seu negócio inicial - uma fazenda sustentável na ilha da Sardenha. Depois de três meses trocando fotos e mensagens carinhosas, ela começou a pedir dinheiro. No começo era para pequenas coisas, como um telefone quebrado, mas logo ela precisava de mais. Ela disse a ele que teve uma vida difícil - quando não estava cuidando de parentes doentes, ela tinha que ganhar a vida com entretenimento adulto. Roberto queria salvá-la, sentindo uma "energia paterna" em relação a ela. Mas ele estava frustrado por eles nunca conseguirem se falar pessoalmente - toda vez que marcavam uma ligação, o telefone dela quebrava ou outra coisa acontecia. Ele acabou descobrindo milhares de fotos e vídeos de Hannah online. As imagens eram, no entanto, da estrela do entretenimento adulto Janessa Brazil - e muitos eram mais explícitos do que os que Hannah já havia enviado a ele. Para ele, o amor entre os dois parecia real. Ele então se perguntou se ela teria decidido não revelar sua verdadeira identidade para preservar o relacionamento. Confuso, Roberto entrou em um dos shows online ao vivo de Janessa Brazil. "É realmente você?" ele digitou no chat. Ele conta que não obteve as respostas que queria, que estava pagando por minuto, então, não permaneceu por muito tempo. Em sua busca para descobrir a verdade, Roberto também enviou um e-mail para Vanessa. "Oi. Preciso falar com a verdadeira Janessa Brazil", escreveu ele em 2016. Ela respondeu uma hora depois: "Sou a verdadeira Janessa Brazil". Ele fez mais algumas perguntas tentando descobrir se eles já haviam se falado antes. Essa troca de e-mail foi o primeiro e único contato que eles já tiveram. Mas, para Roberto, a história não acabou aí. Ele diz que enviou aos golpistas um total de US$ 250.000 (R$ 1,2 milhão) ao longo de quatro anos, drenando suas economias e pedindo dinheiro emprestado a amigos e parentes, além de contrair empréstimos. Encontramos Roberto por meio de suas postagens online alertando outras pessoas de que contas falsas estavam usando as imagens roubadas de Janessa. Mas, mesmo depois de tudo o que aconteceu com ele, parte dele ainda acreditava ter uma ligação profunda com a verdadeira Janessa. Esse é o sinal de um golpe bem-sucedido, diz Aunshul Rege, especialista em justiça criminal da Filadélfia que estudou golpes amorosos online. Ela diz que as mensagens costumam ser enviadas por redes criminosas que trabalham em equipe para aliciar as vítimas, compartilhando imagens e informações. Ela até encontrou um exemplo dos manuais que eles usam - guias práticos de como agir que também listam desculpas para evitar um telefonema que possa expô-los. Os golpes seguem um padrão - muito amor, ameaças de separação e, em seguida, pedidos de ajuda financeira, supostamente para permitir que o casal finalmente fique junto. As táticas são tão estereotipadas que são terrivelmente familiares para qualquer um que já tenha recebido, mas funcionam. "Como seres humanos, estamos programados para ajudar uns aos outros. É assim que fomos construídos", diz a especialista. Vanessa afirma odiar essas táticas cruéis. "Eles demonstram amor e, depois, dão um passo atrás. Os caras ficam desesperados e dispostos a fazer de tudo para recuperá-lo", diz ela. Aunshul Rege acha que é provável que o golpe de Roberto tenha sido executado por um grupo organizado. Ela diz que existem grandes redes que operam em todo o mundo, com números expressivos originários da Turquia, China, Emirados Árabes Unidos, Reino Unido, Nigéria e Gana. Um dos lugares para onde Roberto foi solicitado a enviar dinheiro foi Gana, lar de um grupo de golpistas online chamado Sakawa Boys. Rastreamos alguns deles em Accra. "Ofa", um jovem de fala mansa, nos disse que se passar por pessoas online é demorado e envolve muita administração - nem que seja para manter o controle das mentiras. Ele admitiu que o trabalho o fez "se sentir mal", mas que ganhou mais de R$ 50.000 (R$ 260.000). Ao ver as imagens de Janessa, Ofa disse que nunca as usou, mas entendia por que elas seriam as favoritas entre os golpistas. Ele também disse que, para um golpe funcionar, ele precisaria de uma variedade de fotos mostrando as mulheres em situações cotidianas - como cozinhando ou na academia. Vanessa acha que suas fotos foram usadas em parte porque ela compartilhou tantos momentos sinceros de sua vida diária. "Eu me dediquei completamente, então eles tinham muito com o que trabalhar", diz ela. Mas ela traça uma linha clara entre seu alter ego profissional e seu verdadeiro eu. "Vanessa tem ataques de pânico. Janessa não", diz ela. Com o tempo, a maré de vítimas de golpes se transformou em "um monstro" que traumatizou Vanessa. Ter que se apresentar todos os dias diante das câmeras começou a afetar sua saúde mental e seu casamento. Exausta, ela contou que começou a beber antes dos shows. Ela diz que odeia assistir aos vídeos daquela época porque consegue enxergar sua própria infelicidade. Em 2016, Vanessa diz que não aguentou mais e decidiu desistir. Ela diz que arrumou o carro, deixou a casa e o marido e partiu para uma nova vida. Agora, ela está estudando para ser terapeuta e escrevendo um livro de memórias - retomando o controle de sua própria história. Vanessa nunca foi às autoridades para denunciar os golpistas que usam sua imagem. Ela não acha que eles levariam suas reclamações a sério. "Eles vão olhar para mim como, 'Você é uma estrela pornô', e rir da minha cara", diz ela. Com o passar dos anos, ela se tornou mais forte emocionalmente. Ela sabe que os golpistas podem nunca parar de fingir ser ela e entende por que algumas vítimas caem na armadilha. "Quando se trata de amor, podemos ser muito burros", diz. "Eu sei, já passei por isso. É como, 'Droga! Como eu caí nisso!' É o que pode acontecer com todos nós." Reportagem de Hannah Ajala, Laura Regehr, Katrina Onstad e Simona Rata Artes por Jenny Law
2023-02-27
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64772071
brasil
Regulação de mídias sociais: Dino diz que big techs foram irresponsáveis com ataques de 8 de janeiro
Nos 54 dias em que Flávio Dino atuou como ministro da Justiça até a última sexta-feira (25/02), ele se tornou em uma figura praticamente onipresente no noticiário nacional e internacional. Em pouco mais de dois meses, ele foi um dos principais responsáveis por lidar com as duas primeiras crises do terceiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT): os ataques às sedes dos Três Poderes no dia 8 de janeiro, em Brasília; e a crise humanitária do povo indígena yanomami, em Roraima. E foi com a crise dos atos de 8 de janeiro no retrovisor que Dino aproveitou para defender uma das pautas mais polêmicas levantadas pelo governo Lula - a regulação das mídias sociais. Nos últimos dias, o governo voltou a defender que as empresas de tecnologia que atuam no setor de redes sociais devem ser responsabilizadas pela propagação de conteúdos que violem ou encorajem a violação da lei. Questionado, ele disse que as chamadas big techs das redes sociais foram irresponsáveis ao permitirem a propagação de convocações para os atos que resultaram nos ataques do início do ano, em Brasília, mesmo depois dos atos violentos que ocorreram em dezembro, durante a diplomação do presidente Lula. Fim do Matérias recomendadas "Infelizmente, sim (foram irresponsáveis). Essas empresas, todas elas de um modo geral, podem se auto-regular e elas fazem isso. Existem filtros na internet? Sim ou não? Claro que existem. Existem mecanismos pelos quais as big techs sabem o que está circulando e induzem, inclusive, a circulação de certos conteúdos. Ou seja, os meios tecnológicos existem. Não quiseram fazer", disse o ministro. Dino também afirmou que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) não será alvo de perseguição política e comentou o temor que o ex-mandatário disse ter de ser preso ao retornar ao Brasil. Bolsonaro viajou para a Flórida, nos Estados Unidos, no final de dezembro do ano passado. "Acho que isso é mais um temor dele mesmo. Um temor, quem sabe, psicológico. Ou ele sabe de alguma coisa que a polícia não sabe ainda", afirmou Dino. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na entrevista, o ministro também falou sobre a crise no território yanomami e afirmou que atuação policial não será suficiente para conter o problema e que projetos para o desenvolvimento econômico da Amazônia devem ser postos em prática. Dino também comentou o caso do jogador de futebol Robinho, condenado na Itália por estupro. O atleta nega ter cometido o crime. Nos últimos dias, o governo brasileiro deu um parecer atendendo a um pedido do governo italiano que pediu que o jogador, que não poderia ser extraditado, cumprisse sua pena no Brasil. O parecer do Ministério da Justiça indicou que essa possibilidade é legal e o caso, agora, depende de uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Para Dino, a posição do ministério deverá ter um caráter "pedagógico" contra a impunidade. "Tem um caráter pedagógico em relação à expectativa de impunidade e tem um caráter de convite a outros países para que também colaborem com o Brasil", disse o ministro. Confira os principais trechos da entrevista: BBC News Brasil - Na década de 90, o governo brasileiro também fez uma grande retirada de garimpeiros da Terra Indígena Yanomami, mas eles voltaram causando bastante dano. Como garantir que isso não vai acontecer agora de novo? Flávio Dino - Houve, em verdade, um incentivo ao garimpo ilegal, seja por questões legislativas, seja pela ausência de fiscalização. A principal garantia de evitar essa reincidência, não só nas terras yanomami como em outras é termos um duplo movimento. Em primeiro lugar, a continuidade da ação fiscalizadora repressiva. Por outro lado, é preciso haver projetos que, de fato, possibilitem que haja alternativas econômicas para os filhos e filhas da Amazônia. A polícia não resolverá sozinha a questão da sustentabilidade ambiental e da segurança climática. BBC News Brasil - Já se fala em migração desses garimpeiros para outras áreas da Amazônia. É plausível imaginar que o Brasil consiga, nesta administração, acabar com o garimpo ilegal em terras indígenas? Dino - É plausível e necessário. Todos os esforços estão sendo feitos. Lembremos que nós temos só dois meses de governo. Ações inéditas foram executadas, por exemplo, contra a lavagem do ouro ilegal. Não basta apenas enfrentar o garimpo no solo desta ou daquela terra indígena. É preciso enfrentar quem financia, como nós estamos fazendo. É preciso enfrentar quem faz a lavagem do ouro ilegal [...] e com isso você consegue de fato, destroçar essa cadeia criminosa que se formou em torno dos garimpos ilegais no Brasil. Além dessa desintrusão na terra indígena, a yanomami, nós teremos mais seis intrusões neste ano. BBC News Brasil - Investigações da Polícia Federal têm mostrado que grande parte desse ouro ilegal é exportado para outros países na Europa, na Ásia, e em outras regiões do mundo. Qual é a responsabilidade desses países em relação à crise humanitária que a gente está vendo hoje na Terra Indígena Yanomami? Dino - Nós temos um elo anterior nessa cadeia criminosa que deriva de um problema legislativo que é a presunção de boa-fé. Na primeira aquisição desse ouro, que é ilegal, o vendedor chega e auto-declara a origem como sendo, por exemplo, de um outro lugar onde há permissão da lavra. Há, portanto, legalidade. E com isso, aquilo que é ilegítimo se transforma em legítimo e entra no mercado. Hoje, nós não temos elementos jurídicos para afirmar que esses adquirentes fora do Brasil sabem disso. O certo é que é preciso cortar exatamente o primeiro elo. BBC News Brasil - O senhor acha que esses países que importam esse ouro do Brasil poderiam ter sido mais cuidadosos na escolha dos seus fornecedores? Os países que importam esse ouro na sua avaliação, neste momento, não têm responsabilidade pelo que está acontecendo? Dino - Não posso presumir que essas empresas e outros países tivessem condições de saber disto. Eu prefiro trabalhar naquilo que nos cabe que é aquilo que ocorre no Brasil. Evidentemente, em outro momento, podemos discutir com a comunidade internacional. BBC News Brasil - O senhor disse recentemente que os donos dos garimpos ilegais em algum momento seriam presos, mas até agora foram feitas poucas prisões. Por que esses supostos donos dessas minas ainda estão livres? Dino - Nós temos uma ação emergencial que está sendo executada, que é chamada desintrusão. É preciso entender uma operação complexa dessas em que é preciso ter prudência e bom senso para não gerar mais danos. Estamos falando de dezenas de milhares de pessoas. Imaginemos uma ação mal planejada? Isso poderia resultar em dezenas ou centenas de pessoas mortas, por exemplo. Então, é preciso ter seriedade e compreender um planejamento que é feito em fases. Fase um - desintrusão. Está quase toda finalizada [...] Nós já tivemos prisões em relação a outros elos da cadeia. Já tivemos bens bloqueados e apreendidos. O inquérito policial seguirá independentemente da desintrusão, tendo como alvos aqueles que financiam ou donos que fazem a lavagem. E tendo como alvo, também, paralelamente, aqueles que desviaram o dinheiro da saúde indígena. BBC News Brasil - Mudando de tema, o senhor afirmou recentemente que foi o próprio ex-presidente Jair Bolsonaro que se meteu na investigação sobre os ataques de 8 de janeiro ao postar um vídeo na internet sobre o assunto. Isto é realmente suficiente para afirmar que Bolsonaro tem algum tipo de envolvimento com o que aconteceu? Dino - A responsabilidade política é definida a partir da emulação de ideias, de valores, cultura do ódio, ataques ao Supremo, ataques às instituições democráticas. Isto está, a meu ver, cabalmente configurado. Em relação à responsabilidade jurídica formalmente, ele é investigado porque publicou um vídeo que chancela os atos antidemocráticos. Depois retirou, é verdade. E, mais recentemente, dois aliados políticos dele revelaram que participaram de uma reunião em um palácio presidencial para discutir uma ação ilegal. Então, por isso que eu disse que, hoje, o ex-presidente da República Bolsonaro, comparece como investigado nos inquéritos por atos dele mesmo. Não há uma orientação política do Ministério da Justiça ou do governo de um modo geral para que ele seja investigado. Ele que se colocou na condição de investigado. BBC News Brasil - Muita gente diz que o ex-presidente Bolsonaro pode ser preso se voltar ao Brasil. Ele mesmo já mencionou isso. Quais são as reais chances de isso acontecer? Dino - Eu não posso afirmar o que o Poder Judiciário fará. Hoje, há elementos conducentes à prisão do ex -presidente Bolsonaro? Que eu saiba, não. Há uma investigação e essa investigação vai continuar porque não há perseguição, mas também não há leniência. Acho que isso é mais um temor dele mesmo. Um temor, quem sabe, psicológico. Ou ele sabe de alguma coisa que a polícia não sabe ainda. Mas creio que hoje ele não tem contra si nenhum pedido de prisão. Poderá ter em algum momento? Eu não sei, você não sabe, ninguém sabe. Agora, ele próprio revela um medo, um pânico e ele deve ter os motivos dele. BBC News Brasil - O senhor teme que uma eventual prisão do ex -presidente Bolsonaro possa desencadear uma nova onda de violência de ataques como vimos em janeiro? Dino - A aferição do cabimento da prisão de uma pessoa não obedece a esse tipo de critério porque isso (o critério) é eminentemente político. (A aferição) é um critério mais legal. A prisão é necessária para a investigação? Sim ou não? Essa é a resposta (pergunta) que talvez seja feita. BBC News Brasil - Mas o senhor teme que isso possa vir a acontecer? Dino - Não me cabe avaliar isso porque seria uma ingerência no Poder Judiciário. Eu tenho que respeitar a independência do Poder Judiciário. Não vejo hoje, de um modo geral, condições sociais para que esse golpismo emerja novamente. Eu creio que ele foi vencido. Ainda que de modo não definitivo. BBC News Brasil - Bolsonaro é, talvez, o principal adversário político do presidente Lula. Como garantir a ele e à sociedade que ele não será alvo de uma perseguição política desse governo? Dino - Quem decide medidas de força no Brasil não é o governo, é a Justiça, que é um poder independente [...] Ele não pode ter privilégio. Ele não pode ter imunidade nenhuma. Nenhum presidente da República, por ter sido presidente da República, está imune a prestar contas à Justiça. BBC News Brasil - Mas as decisões que também levaram à prisão do presidente Lula também foram proferidas por um Judiciário independente. O senhor e aliados dizem que isso foi resultado de uma perseguição política. Por que foi perseguição política lá e não pode ser agora? Dino - Porque no caso do presidente Lula, quem disse que foi errado? Foi perseguição política. Não fui eu, foi o Judiciário. Lembremos que o Supremo Tribunal Federal, ou seja, o órgão de cúpula do Poder Judiciário, anulou tudo, desfez tudo, e disse que estava tudo errado. BBC News Brasil - Na sua opinião, houve conivência dos militares com o que aconteceu no dia 8 de janeiro, em Brasília? Dino - Eu não diria dos militares, genericamente, porque a imensa maioria dos militares se comportou e tem se comportado como guardiã da legalidade democrática. As Forças Armadas têm tido um comportamento profissional. Agora, membros das Forças Armadas, obviamente, por ação ou omissão, participaram daqueles crimes. E isto deve ser investigado porque todas as pessoas devem ser investigadas de acordo com as provas. A farda e o uniforme não dão imunidade a ninguém. Nós temos hoje, infelizmente, indícios graves de que alguns militares, inclusive da ativa, participaram (dos atos de 8 de janeiro) por ação ou omissão. BBC News Brasil - No Brasil, por conta da Lei da Anistia, o país não puniu os militares que eventualmente cometeram crimes. O Brasil tem estrutura institucional para punir os militares que supostamente participaram dos atos de 8 de janeiro? Dino - Nós temos uma estrutura institucional que está se movendo. No caso da Polícia Militar do Distrito Federal, há seis ou sete inquéritos policiais militares. Nas Forças Armadas, também há inquéritos que tramitam junto ao Ministério Público Militar. E há também um pedido da Polícia Federal ao ministro Alexandre de Moraes para realização de atos de investigação, inclusive em relação a militares da ativa. Estamos aguardando a decisão do Supremo. É imprescindível identificar todos aqueles que participaram de crimes civis ou militares. BBC News Brasil - O governo defende que as mídias sociais sejam regulamentadas e processadas se elas não conseguirem impedir a disseminação de desinformação. Isso não pode configurar algum tipo de censura, como afirmam alguns críticos? Dino - Esse é um debate internacional, o que mostra que não é um tema específico deste governo [...] É uma questão da sociedade. Não existe nenhuma instituição humana que seja desregulada [...] Por que a internet deve ser governada pela lei da selva? Pelo vale-tudo? [...] No caso da proposta do Ministério da Justiça, nós não estamos tratando de desinformação abstratamente. Nós estamos tratando de seis crimes tipificados em lei [...] Por que a internet pode permitir que pessoas ensinem a matar pessoas, a fabricar bombas para destruir prédios? Um shopping center pode fazer isso? [...] Por que a internet pode? Para maximizar lucros com uma cultura da violência, do ódio, do antagonismo? BBC News Brasil - Em outros países, o lobby das grandes empresas de tecnologia, as chamadas big techs, tem se provado razoavelmente forte para combater iniciativas como esta que o governo brasileiro defende. Como esta administração vai enfrentar as big techs nesse debate? Dino - Iluminando o tema. Quando você adota uma postura séria e uma postura nítida de defesa de uma posição, como nós fizemos, nós estamos ajudando a que toda a sociedade reflita sobre o assunto. Então nós estamos dando a nossa contribuição. O Ministério da Justiça fez uma proposta, entregou ao presidente da República [...] Na verdade, nós queremos proteger a liberdade de expressão porque só existe uma forma de proteger a liberdade de expressão que é enfrentar os abusos. BBC News Brasil - Há uma série de relatos, relatórios e reportagens mostrando que, mesmo após os ataques que ocorreram durante a diplomação do presidente Lula, em dezembro de 2022, empresas de tecnologia e mídias sociais continuaram permitindo a veiculação de convocações para atos que se provaram violentos, em Brasília. Na sua avaliação, as big techs foram irresponsáveis ao não coibir a propagação desse tipo de conteúdo? Dino - Infelizmente, sim. Essas empresas, todas elas de um modo geral, podem se auto-regular e elas fazem isso. Existem filtros na internet? Sim ou não? Claro que existem. Existem mecanismos pelos quais as big techs sabem o que está circulando e induzem, inclusive, a circulação de certos conteúdos. Ou seja, os meios tecnológicos existem. Não quiseram fazer. Se a auto-regulação falha, é óbvio que a regulação é externa e ainda mais necessária. BBC News Brasil - Uma das principais críticas tanto a esse projeto quanto à criação de uma Procuradoria de Defesa da Democracia lá na Advocacia-Geral da União (AGU), é de que não caberia a uma instituição governamental dizer ou determinar o que é verdade ou não. Como é que isso reage a essa crítica? Dino - O projeto do Ministério da Justiça não adota como critério o que é verdade ou o que não é. O nosso projeto adota como critério o que é crime e o que não é. Nós temos crimes. Crimes que são definidos não por mim, mas pelo Congresso. Se você chega e diz assim, "eu não gosto da pessoa chamada Pedro", isto é uma opinião. Se eu digo assim, "eu não gosto de uma pessoa chamada Pedro e por isso eu vou pegar uma bomba e vou jogar na escola onde ele ensina", isto não é uma opinião. BBC News Brasil - Nos últimos anos, centenas de milhares de novas armas foram adquiridas no Brasil. Esse governo emitiu um decreto dando 60 dias para que fosse feito um recadastramento dessas armas. O que vai acontecer com os donos que não cumprirem esse cadastro? O governo tem condições de confiscar as armas que não forem recadastradas? Dino - Quem não cumpriu o recadastramento (no prazo)? No dia seguinte, estas armas existentes passarão a ser ilegais e suscetíveis de apreensão. Também ficarão suscetíveis de identificação os proprietários para que eles sejam apresentados ao Ministério Público. Para as pessoas que, hoje, têm estoques de armas que estão além dos novos parâmetros que nós vamos estabelecer, nós vamos oferecer, caso a pessoa declare (as armas), a opção de recompra. O meu pedido sincero a todos esses armamentistas é que façam o cadastro, porque não haverá ato arbitrário contra ninguém. BBC News Brasil - O governo tem condição técnica de localizar, identificar e confiscar estas armas? Dino - De uma vez só? Claro que não. BBC News Brasil - O Primeiro Comando da Capital (PCC) é hoje uma das maiores fações criminosas do país. É possível acabar com o PCC ou ele é uma força com a qual o Brasil vai ter que lidar nos próximos anos? Dino - O crime organizado é um fenômeno global. As máfias, as organizações mafiosas sempre desafiaram as nações. Temos casos na Colômbia, nos Estados Unidos e na Itália. Nós tivemos esse crescimento, infelizmente, nos últimos anos. Nós estamos atuando agora na coordenação das polícias [...] Esse combate vai produzir resultados amanhã ou depois de amanhã? Claro que não, porque essas organizações estão se formando ao longo de décadas. Mas é preciso enfrentá -las. BBC News Brasil - Não ficou claro se o senhor acredita que é possível acabar com o PCC ou não… Dino - É claro que é possível acabar com o PCC. A questão é o prazo. E volto a dizer, não é instantâneo, mas o enfrentamento competente, com inteligência, com descapitalização, combatendo a lavagem, algumas mudanças e lavagem de dinheiro, algumas mudanças legais, o debate no Supremo sobre lei de drogas e assim sucessivamente, podem resultar numa diminuição do poder dos cartéis. BBC News Brasil - A Colômbia tem adotado uma estratégia de se afastar da erradicação das plantações de coca. Uma consequência lógica disso seria um aumento do estoque dessa matéria-prima para a produção de cocaína e o Brasil é um dos principais corredores de exportação deste produto. Em que medida o Brasil é afetado por essa política? Dino - Assim como nós podemos refletir sobre isso, outros países vizinhos ao nosso refletem sobre a atuação de organizações brasileiras nos seus territórios. Por isso que o caminho não é propriamente a imposição de acusações entre países e sim o trabalho conjunto. E é isso que nós vamos buscar. BBC News Brasil - O senhor hesitou em criticar a política adotada pelo governo colombiano e a gente sabe que o governo colombiano é de uma linha ideológica próxima à do presidente Lula. Como é que o senhor reage à crítica de que esse governo pode estar sendo, de alguma forma, leniente com com uma política que pode ter impactos no Brasil? Dino - Nós temos feito todos os dias apreensão de drogas. Fizemos hoje, fizemos semana passada e vamos fazer amanhã. Onde está essa leniência? A não ser na ficção daqueles que acham que a Terra é plana? [...] Eu sou um defensor da soberania brasileira e eu respeito a soberania dos outros países e esse é um parâmetro constitucional. Então, eu não opino sobre assuntos domésticos dos Estados Unidos, da China ou da Argentina, ou do Paraguai, ou da Angola, ou da África do Sul. BBC News Brasil - O governo brasileiro se manifestou em relação a um pedido da Itália no sentido de que o jogador Robinho possa cumprir sua pena no Brasil. Qual o impacto que o senhor acredita que uma medida pode ter para outros brasileiros? Dino - O que nós precisamos entender é que essa cooperação jurídica internacional é bem-vinda [...] ela é positiva no sentido de reduzir a impunidade. Assim como nós queremos que brasileiros que estão em outros países, porque fugiram do cumprimento da lei ao cometerem crimes no Brasil [...] então, por reciprocidade, creio que o Brasil deve colaborar para que a lei seja cumprida. BBC News Brasil - O senhor acha que o posicionamento do governo brasileiro em relação a esse caso concreto do jogador Robinho tem um caráter pedagógico em relação à expectativa de impunidade? Dino -Tem um caráter pedagógico em relação à expectativa de impunidade e tem um caráter de convite a outros países para que também colaborem com o Brasil.
2023-02-27
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy78gp32p7lo
brasil
Por que planos de paz como o de Lula podem acabar favorecendo Rússia, na visão de analistas internacionais
Planos de paz como o proposto pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para pôr fim à guerra entre Rússia e Ucrânia podem acabar favorecendo Moscou, dizem analistas internacionais ouvidos pela BBC News Brasil. "As tentativas de mediação provavelmente favorecerão a Rússia. A Ucrânia precisa lutar para libertar seus cidadãos que vivem sob a bárbara ocupação militar russa. Moscou pode aceitar um cessar-fogo, a fim de 'congelar' a linha de frente e manter o controle dos territórios ocupados, enquanto espera para ganhar força e confiança suficientes e avançar novamente", diz Keir Giles, consultor sênior do Programa Rússia e Eurásia da Chatam House, o mais importante instituto de relações internacionais do Reino Unido. "Portanto, faz sentido o alvoroço da Rússia com qualquer 'plano de paz' que surja, se puder tirar proveito dele no futuro", acrescenta o especialista, que viveu na Rússia no início da década de 90 e também é diretor de pesquisa do Conflict Studies Research Center (CSRC), um centro de estudos anteriormente ligado ao Ministério de Defesa britânico. Por enquanto, nenhuma proposta formal foi enviada pelo governo brasileiro à Rússia. Fim do Matérias recomendadas Também nesta quinta-feira, com trecho proposto pelo Brasil, a ONU aprovou uma resolução que pede a retirada das tropas russas da Ucrânia. Foram 141 votos a favor, 7 contra e 33 abstenções. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O texto traz recomendação dos brasileiros pelo "fim das hostilidades” entre Rússia e Ucrânia. O Brasil, que em outras votações sobre o conflito chegou a se abster, votou a favor da resolução, o único do grupo dos BRICS — China, Índia e África do Sul se abstiveram. A resolução não é vinculativa, mas, apesar de o valor meramente simbólico, tem peso político. Lula vem tentando promover o Brasil como um potencial mediador para o fim da guerra, numa tentativa de reinserir o país no cenário político mundial após o isolamento amargado durante o governo de seu antecessor, Jair Bolsonaro (PL). A ideia do presidente brasileiro é criar um grupo de países, possivelmente incluindo Índia, China e Indonésia, para mediar as negociações, uma espécie de "clube da paz". Giles ressalva, contudo, que "se um grupo de mediadores de paz para a Ucrânia inclui Índia e China, eles também se abstiveram de condenar a guerra da Rússia contra a Ucrânia", em alusão à resolução recentemente aprovada pela ONU. O Brasil não é o único país a propor soluções para o conflito; China, Turquia e muitos outros também se voluntariaram a mediar as negociações. "Esse cara (Zelensky) é tão responsável quanto o Putin. Porque numa guerra não tem apenas um culpado”, disse Lula. “(...) O comportamento dele é um comportamento um pouco esquisito, porque parece que ele faz parte de um espetáculo", acrescentou na ocasião. Para Giles, "Lula não é o único a sugerir que a Rússia não tem culpa de ter iniciado a invasão da Ucrânia há um ano". "Por mais bizarro que possa parecer para qualquer um que tenha ouvido o presidente Putin expondo sua ambição de restaurar o Império Russo, é uma visão que influenciou vários países fora da área euro-atlântica". "Isso inclui os estados da África que se abstiveram na votação da Assembleia Geral da ONU sobre uma resolução para condenar o ataque da Rússia e, assim, deram aprovação tácita a uma guerra de reconquista colonial." "A Rússia naturalmente vê o benefício dessa ambivalência e, portanto, a encorajará sempre que possível — como expressar gratidão ao Brasil por não condenar sua agressão", conclui. Lula tem evitado um alinhamento automático com os Estados Unidos e a União Europeia e busca se apresentar como defensor da tradicional posição de neutralidade da diplomacia brasileira. Mas essa neutralidade também tem motivos econômicos: a Rússia é, há anos, líder no mercado de fertilizantes, vitais para o agronegócio brasileiro e majoritariamente importados. Lula negou, por exemplo, um pedido do governo da Alemanha para o Brasil fornecer munição de tanques que seria repassado por Berlim à Ucrânia. Apesar do não-alinhamento, o presidente vem discutindo o conflito com grandes líderes ocidentais, incluindo o presidente francês Emmanuel Macron, o presidente dos EUA, Joe Biden, e o chanceler alemão, Olaf Scholz. Para o pesquisador Mathieu Boulègue, contudo, "não deve haver nenhum incentivo da comunidade internacional para negociar ou barganhar com um criminoso de guerra", diz ele, em alusão à Rússia. "Nenhum compromisso deve ser feito, e a Ucrânia deve ser apoiada ao máximo. Ponto final", acrescenta Boulègue, que é especialista em questões de segurança e defesa da Eurásia, com foco na política externa russa e assuntos militares. Assim como Giles, Boulègue levanta suspeitas sobre a real intenção da Rússia de alcançar uma solução pacífica para o conflito. "Nada que o Kremlin faça ou diga sobre 'acordos negociados' ou soluções de paz pode ser confiável ou levado a sério. Moscou não negociaria de boa fé ou seria digno de confiança para implementar o que quer que assine." Ele também permanece pessimista sobre um fim próximo da guerra. "A Ucrânia não negociará com um invasor que nem mesmo reconhece o direito dos ucranianos de existirem como nação". O governo do Brasil e o da Ucrânia trabalham para viabilizar uma ligação telefônica entre Lula e Zelensky já na semana que vem.
2023-02-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c801gk58e5po
brasil
EUA veem com ceticismo sinalização de Putin de interesse na proposta de paz do Brasil
O governo dos EUA recebeu com ceticismo a declaração feita pelo governo russo de que está examinando a proposta do Brasil para, em conjunto com outros países não envolvidos direta ou indiretamente no conflito, mediar conversas entre russos e ucranianos em busca do fim do conflito. A declaração do Kremlin foi feita na véspera do primeiro aniversário da invasão russa na Ucrânia, ocorrido nesta sexta, 24/2, e em meio a uma escalada retórica tanto do líder russo, Vladimir Putin, como do presidente americano, Joe Biden, que qualificam a guerra como uma batalha pela sobrevivência tanto da identidade russa como da ordem democrática representada pelos americanos. "Registramos as declarações do presidente do Brasil sobre o tema de uma possível mediação para encontrar caminhos políticos para evitar a escalada na Ucrânia e corrigir erros de cálculo no campo da segurança internacional com base no multilateralismo e considerando os interesses de todos os atores. Estamos examinando as iniciativas, principalmente do ponto de vista da política equilibrada do Brasil e, claro, levando em consideração a situação 'no terreno'", afirmou o vice-ministro de Relações Exteriores da Rússia, Mikhail Galuzin, à agência de notícias russa Tass. Consultado pela BBC News Brasil a respeito da declaração de Galuzin, o Departamento de Estado dos EUA respondeu, por meio de um porta-voz, que "a Rússia continua sendo o único obstáculo à paz na Ucrânia, e não vemos nenhuma indicação de que o presidente Putin tenha interesse em uma diplomacia significativa no momento. Só ele pode acabar com esta guerra hoje". "Considerando o modo como Putin tem buscado aumentar suas posições na guerra agora, acredito que o governo Biden não vê Putin pronto para negociar nada. Há um grau de ceticismo com o que a Rússia está dizendo em relação à sugestão do Brasil de criar um grupo de mediadores mais neutros", disse à BBC News Brasil o ex-embaixador americano no Brasil e ex-sub secretário de Estado Thomas Shannon. Fim do Matérias recomendadas Lula tem tentado um equilíbrio entre a condenação à invasão russa e o não envolvimento, nem mesmo indireto, no conflito para tentar lançar o que tem chamado de "clube da paz". O Brasil assume a presidência do G-20 no ano que vem e tenta fazer do fim do conflito uma de suas principais missões internacionais. A ideia seria contar com países como a China e a Índia no clube. Em janeiro, a gestão Lula recusou um pedido da Alemanha para ceder ou vender munições para tanques que seriam repassados para a Ucrânia. A Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), da qual a Alemanha faz parte, têm enviado ajuda multibilionária em armamentos para que Kiev possa fazer frente ao Exército russo. Em visita à capital americana, no começo de fevereiro, Lula reafirmou ao presidente americano Joe Biden que defende a integralidade territorial ucraniana, mas que pretende manter posição de neutralidade para tentar liderar o "clube da paz", para inaugurar diálogo entre os dois lados. "Lógico que ela (a Ucrânia) tem o direito de se defender. Lógico que ela tem o direito de se defender, até porque a invasão foi um equívoco da Rússia. Ela não poderia ter feito isso. (...) Eu não quis mandar (munição para Ucrânia), porque se eu mandar, eu entrei na guerra. E eu não quero entrar na guerra, eu quero acabar com a guerra", afirmou o presidente em entrevista à CNN, em Washington, horas antes de se encontrar com Biden. À ocasião, a proposta brasileira foi recebida com respeito e o presidente americano assegurou a Lula que todos querem o fim da guerra. Os americanos também apreciam o fato de que o Brasil tem condenado a invasão russa em ambientes multilaterais - o que se repetiu ontem, quando o país votou a favor da condenação da ação militar da Rússia na Assembleia Geral da ONU mais uma vez, enquanto os demais integrantes dos BRICS (Índia, China e África do Sul) se abstiveram. "A chegada do Brasil como uma liderança global é bem-vinda. Nós respeitamos e apoiamos os esforços do presidente Lula para realmente promover o diálogo e a paz, e reconhecemos a capacidade dele de falar com qualquer pessoa. Nem sempre vamos concordar em tudo com o Brasil, mas acho que temos um interesse comum em garantir a paz", afirmou na ocasião um alto funcionário do governo Biden. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Segundo Shannon, o Brasil teria sim condições diplomáticas para desenvolver um papel de protagonista na mediação, o problema está no fato de que os dois lados do conflito precisam concordar com condições para o fim da guerra. E aí está o problema: os ucranianos não concordam em ceder porções de seu território e Putin nem mesmo reconhece a identidade ucraniana e seu direito como Estado soberano. Por isso. a diplomacia americana vê a posição do Brasil como pouco realista. Agora, diplomatas americanos ouvidos reservadamente pela BBC News Brasil sobre o novo posicionamento russo citando a proposta brasileira repetiram os termos usados por Biden para demonstrar certo desdém pela declaração do Kremlin: "Se Putin quisesse acabar com a guerra, bastava parar de atacar". Esta semana, em um discurso em Varsóvia, capital da Polônia, depois de uma visita surpresa ao líder ucraniano Volodymyr Zelenski em Kiev, Biden reagiu à uma acusação de Putin de que a guerra seguiria enquanto a OTAN mantivesse remessas de armas à Ucrânia. "Se a Rússia parar de atacar a Ucrânia, a guerra acaba. Se a Ucrânia parar de se defender da invasão russa, quem acaba é a Ucrânia", disse Biden. "O governo Biden claramente não acredita que Putin tenha qualquer interesse sincero na paz neste momento. Putin fez seus comentários enquanto prepara outra grande ofensiva na Ucrânia. Isso é apenas conversa fiada de Putin em relação (à proposta de) um parceiro do BRICS e líder do Sul Global", afirmou à BBC News Brasil Nick Zimmerman, analista sênior na consultoria política WestExec e associado ao Brazil Institute do think tank Wilson Center. Zimmerman, que foi Diretor do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca para Assuntos do Brasil e do Cone Sul durante a gestão de Barack Obama, diz que comentários anteriores sobre a guerra na Ucrânia feitos por Lula, como o de que "quando um não quer, dois não brigam", "cheiram a falsa equivalência - um erro que Lula cometeu repetidamente, seja por uma estratégia de negociação equivocada ou por convicção real". Nesta sexta-feira, o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, rechaçou uma proposta chinesa para um cessar-fogo apresentada na ONU. Blinken afirmou que se apenas o primeiro ponto dos 12 propostos pela China, que versa sobre o respeito à soberania dos países, fosse respeitado, a Rússia já teria se retirado de território ucraniano e a guerra teria acabado. Blinken argumentou ainda que um congelamento da situação no front serviria apenas para que a Rússia possa consolidar suas posições em áreas invadidas e para treinar russos recentemente conscriptos para a batalha no front. Analistas internacionais apontam que Putin pretendia ganhar a guerra em poucas semanas ou meses e que falhas na estratégia militar dos russos levou a um grande número de baixas em seu exército e à necessidade de tempo para que as forças armadas de Putin possam se reorganizar para vencer a guerra. Os EUA veem a China como sua principal antagonista global e aliada da Rússia no conflito - embora oficialmente os chineses não tenham se envolvido na batalha nem enviado armamentos a Putin. A desconfiança, porém, parte do fato de a China jamais ter condenado a invasão e ter estreitado laços com Putin ao longo desse último ano. "Não acredito que seja uma coincidência que os russos venham citar essa sugestão do Brasil ao mesmo em que a China traz essa proposta dos 12 pontos para a paz. Parece uma estratégia para colar nos americanos e na Europa a imagem de pró-guerra, algo que é completamente falso", argumenta Shannon. O Brasil reconhece que o cenário de paz é ainda distante. Embaixadores brasileiros ouvidos pela BBC News Brasil reservadamente dizem desconhecer qualquer iniciativa dos russos de contato com o Itamaraty para pedir detalhes sobre a sugestão brasileira do clube da paz. Mas veem no gesto público de Moscou um reconhecimento do Brasil como um "negociador honesto" em campo. O mesmo reconhecimento, aliás, teria sido dado ao Brasil pelo lado ucraniano: no último dia 18, o chanceler Mauro Vieira se encontrou com o Ministro de Negócios Estrangeiros da Ucrânia, Dmytro Kuleba, às margens da Conferência de Segurança de Munique, na Alemanha, para expor a posição brasileira sobre a guerra. Nesta sexta, Zelensky se disse aberto a negociações com outros países além dos aliados da OTAN. O governo do Brasil e o da Ucrânia trabalham para viabilizar uma ligação telefônica entre Lula e Zelensky já na semana que vem. Em artigo no Estado de S. Paulo publicado por ocasião no primeiro aniversário da Guerra nesta sexta, Vieira afirmou que "as perspectivas de solução imediata do conflito são escassas". Apesar disso, defendeu a perspectiva brasileira, em oposição ao entendimento americano, embora sem citá-lo diretamente. "Em meio ao coro mais estridente, e de vozes poderosas, focadas na guerra e na sua forte dimensão geopolítica, chegou a hora de também dar voz aos que querem falar em caminhos para a construção da paz", escreveu o chanceler brasileiro.
2023-02-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn05zg0xdxjo
brasil
'Meu cisto de ovário era maior do que um bebê'
Nos primeiros meses de 2020, quando começou a engordar, a vendedora Mariana Alves de Oliveira Silva, hoje com 18 anos, logo associou a situação a má alimentação que vinha tendo devido à rotina corrida. Em dois meses, a jovem, moradora de Ferraz de Vasconcelos (SP), conta que foram quase 8 quilos a mais na balança, mas ela não desconfiava que poderia haver algo de errado com sua saúde. Apesar de ter tido um aumento no abdômen, ela acreditava que havia ganhado medidas em todo o corpo. Somente em junho, quando começou a sentir muitas dores no abdômen e nas costas, que passaram a impossibilitar de realizar pequenas atividades do dia a dia, ela percebeu que havia algo de errado. “Qualquer coisa que eu fosse fazer em casa para ajudar minha mãe, doía muito meu abdômen e eu precisava deitar. Foi quando nós marcamos um médico para ver o que estava acontecendo”, recorda. A vendedora conta que ao entrar no consultório médico a primeira pergunta que ouviu do profissional foi se ela estava grávida, já que seu abdômen estava distendido. Diante da negativa da jovem, o profissional a encaminhou para fazer um ultrassom. Fim do Matérias recomendadas Durante o exame veio o susto. Mariana tinha um cisto que devido ao tamanho estava tomando toda a sua região abdominal e não era sequer possível ver onde era a sua origem – se era no ovário direito ou esquerdo. “Quando a médica viu, ela levou um susto. Na mesma hora ela já me encaminhou para fazer uma tomografia de urgência, para que eles pudessem ver o cisto com mais detalhes”, conta a vendedora. O exame foi feito no mesmo dia e os médicos informaram que a jovem precisaria passar por uma cirurgia de emergência para remover o cisto que estava em seu ovário direito. Havia o risco de ele estourar e gerar uma infecção grave. Sem ter plano de saúde e acreditando que o procedimento cirúrgico pelo SUS (Sistema Único de Saúde) pudesse demorar meses, a família de Mariana se organizou financeiramente para pagar os custos da cirurgia em um hospital particular da cidade, o que fez com que a jovem precisasse esperar algumas semanas para retirar o cisto. “Eu fiquei muito assustada, eu sabia que era um cisto muito grande e aquilo era perigoso. Enquanto a minha mãe se organizava para pagar a minha cirurgia, eu fiquei em repouso em casa. Não saía da cama para quase nada com medo de agravar a minha situação”, conta. Ainda segundo Mariana, na época em que teve o diagnóstico, ela ainda vivia o luto de ter perdido a avó, que morreu devido a um câncer no útero, e acompanhava a luta de uma tia que fazia tratamento contra um tumor na mama. “O nosso maior medo é que eu também pudesse estar com câncer, já que o cisto cresceu muito rápido e em poucos meses. Foram momentos desesperadores”, recorda a jovem. Em julho de 2020, Mariana passou pela cirurgia de retirada do cisto. Para surpresa até dos médicos, o cisto era mais pesado do que um recém-nascido, tinha cerca de 7 kg e continha aproximadamente 8 litros de líquidos. Após a cirurgia, que não comprometeu os ovários, o material foi enviado para biópsia. “A cirurgia demorou seis horas devido ao tamanho do cisto e por ele conter muito líquido. Graças a Deus a biópsia constatou que não era câncer e isso nos deixou bastante aliviados”, conta. Devido ao risco de desenvolver novos cistos, Mariana faz acompanhamento ginecológico e a cada seis meses realiza diversos exames preventivos. Os cistos nos ovários geralmente são pequenos e não apresentam riscos à saúde da mulher. Eles podem ocorrer em qualquer momento da vida, sendo mais comum durante a idade reprodutiva (entre 15 e 45 anos), e em muitos casos a paciente não tem nenhum sintoma e eles desaparecem sozinho em algumas semanas. Eles surgem por fatores como: histórico genético, desregulação hormonal e infecções pélvicas graves. “Os cistos benignos podem ser causados simplesmente por problemas de ovulação. Folículos ovarianos que contêm os óvulos que não rompem no momento da ovulação e formam os cistos ou estruturas com conteúdo líquido que crescem no ovário, mas não são malignos”, explica Silvana Chedid, ginecologista do Hospital Sírio-Libanês. Nesse caso, o cisto possui de 3 a 8 cm, havendo, normalmente, uma diminuição de seu diâmetro e desaparecendo entre 4 e 8 semanas. No entanto, há cistos considerados malignos e estão diretamente relacionados ao câncer de ovário. “Essa é outra modalidade de cisto. O câncer de ovário tem uma herança hereditária, ou seja, possuem um risco maior em mulheres cujas mães tiveram também o câncer, mas também podem aparecer em mulheres sem casos na família” acrescenta Chedid. A mulher com cisto no ovário pode sentir ou não sintomas. Os mais comuns são: - Aumento do volume abdominal; - Dor pélvica; - Atrasos ou mudanças no ciclo menstrual; - Sangramento fora do período menstrual; - Enjoo; - Ganho de peso; - Dor durante as relações sexuais; - Dor durante a ovulação; - Dificuldade para engravidar. “Os cistos maiores normalmente acontecem em mulheres que não fazem os exames ginecológicos anual e consequentemente não os identificam no começo. Nesse caso, ele pode comprimir a bexiga, a alça intestinal, gerando um desconforto abdominal muito grande. Ele tem um líquido dentro, gerando a dor abdominal intensa”, explica o ginecologista Carlos Alberto Politano, diretor da Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo (SOGESP). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Segundo os especialistas, há sete tipos de cistos de ovário benignos, chamados também de cistos funcionais, e cada um possui suas particularidades. Como eles estão relacionados à ovulação, podem regredir naturalmente. Cisto de corpo lúteo: O corpo lúteo é o tecido dentro do ovário desenvolvido após a liberação do óvulo. Normalmente esse tecido desaparece até que um novo ciclo de ovulação se inicie, mas em alguns casos ele pode acumular líquido, criando um cisto. Esse tipo de cisto é assintomático. Cisto folicular: É formado quando há crescimento anormal de um folículo ovariano durante a menstruação e a ruptura que causa a liberação do óvulo não ocorre. Cisto dermóide: É um tumor benigno que afeta mulheres mais jovens. Ele pode apresentar ossos, gordura, cartilagem e pelos em sua composição. Normalmente, é preciso tratamento médico para que ele desapareça. Cisto endometrioma: Ocorre quando o endométrio (tecido que reveste o útero), se aloja e cresce nos ovários. São mais comuns em mulheres em idade fértil (15 a 45 anos), gera dor pélvica durante os ciclos menstruais e pode causar infertilidade. Cisto hemorrágico: Esse tipo de cisto apresenta sangramento interno resultantes de lesões em seus pequenos vasos sanguíneos. Pode causar dores abdominais intensas. Cistoadenoma: É um cisto que pode crescer bastante a ponto de a mulher precisar passar por intervenção cirúrgica para removê-lo. Ovários policístico: É quando os dois ovários apresentam aumento considerável de volume devido à presença de pequenos cistos decorrentes de alterações hormonais. A presença de um cisto no ovário, geralmente, não causa infertilidade, no entanto, a mulher pode ter dificuldades para engravidar devido às alterações hormonais que originou esse cisto. “Apenas grandes cistos ovarianos ou os tumores malignos trazem algum risco para a gravidez. Paciente com cistos grandes, superiores a 10 cm, podem apresentar dor, risco de aborto ou trabalho de parto prematuro. Para estes cistos, assim como os tumores malignos, pode ser necessário a realização da cirurgia durante a gestação”, explica Guilherme Accorsi, ginecologista e oncologista do Hospital de Base de São José do Rio Preto.
2023-02-24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c84p31y43dmo
brasil
'Me descobri negra ao ser chamada para ser modelo em um curso de maquiagem'
Quando a musicista Lua Bernardo, de 35 anos, foi chamada para participar como modelo em um curso de maquiagem em 2014, descobriu algo que desconhecia até então: o fato de que é uma mulher negra. “A companheira de um amigo estava fazendo um curso de maquiagem e queria fazer um estilo afro em uma noiva negra e me convidou para ser modelo. Foi quando a minha ficha começou a cair (sobre ser uma mulher negra)”, comenta Lua à BBC News Brasil. Filha de mãe branca e pai negro, que não acompanhou o crescimento dela, Lua afirma que passou mais de duas décadas sem entender que é negra. “Só descobri com quase 27 anos”, diz à BBC News Brasil. Descobertas como a de Lua não são incomuns entre os brasileiros. Em locais como as redes sociais há diversos relatos de pessoas que contam sobre o momento em que se descobriram negras. Em um livro intitulado Quando me descobri negra, a escritora Bianca Santana narra a sua descoberta. "Tenho 30 anos, mas sou negra há dez. Antes era morena", inicia ela, ao contar experiências que viveu ou ouviu de outras mulheres e homens sobre a forma como se descobriram negros. Fim do Matérias recomendadas Mais recentemente, o assunto se tornou notícia após uma participante do reality show Big Brother Brasil se descobrir negra durante a atração exibida pela Rede Globo. Na competição, a participante Paula Freitas disse que soube disso durante o confinamento. "Juro, descobri que era preta aqui. Foi naquela hora que ele disse 'vem os pretos tirar foto'", disse. Durante o diálogo no programa, o médico Fred Nicácio, o responsável por chamar Paula para a foto, comentou que "vários pretos descobrem que são pretos na faculdade". Essas diferentes maneiras de descobrir sobre o tema, aponta a pesquisadora Daniela Gomes, fazem parte da história de muitas pessoas negras. “Uma pessoa branca não tem dúvidas do que ela é, ela se olha no espelho e se reconhece. Agora uma pessoa negra, que teve a sua negritude negada ou questionada, se olha no espelho e não se vê como negra, porque o negro é outro”, afirma Daniela, que é professora em estudos da Diáspora Áfricana na Universidade Estadual da Califórnia em San Diego (SDSU). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast É a partir dessa descoberta que muitas coisas vividas no passado começam a fazer sentido para essas pessoas, aponta Daniela. “Não é algo como acordei de manhã e sou preta. É que você passa a entender que agressões que sofreu, pequenas ou grandes, ocorreram por causa do racismo, entende oportunidades que perdeu e até então isso não tinha nome (até se reconhecer como uma pessoa negra). A partir dessa tomada de consciência, isso passa a ter nome: racismo”, diz a pesquisadora. No caso de Lua, essa descoberta a levou a recordar situações do passado que hoje avalia como episódios de racismo. “Entendi que alguns comentários, como o de que o meu cabelo estava muito crespo e precisava de chapinha, já apontavam para isso, mas nunca relacionei isso com questão de raça por estar nesse contexto familiar bem branco”, diz a musicista. “Mesmo com meu cabelo e alguns traços negróides, eu nunca havia parado pra pensar nisso. O contexto familiar (composto por pessoas brancas) nunca me fez pensar sobre isso”, acrescenta. A descoberta de que é uma mulher negra foi fundamental para a vida, avalia Lua. “Essa descoberta me impactou num lugar de pertencimento, de entender esse lugar de estar em uma família branca.” “Passei a me sentir pertencente a uma comunidade negra, com pessoas negras. Tanto que hoje naturalmente a maioria dos meus amigos são pessoas pretas, porque fui buscando essa ligação”, diz Lua, que considera que o ingresso na universidade também a ajudou a entender melhor a importância da luta contra o racismo. Segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), de 2021, a população negra soma 56,1% no Brasil. Isso inclui aquelas pessoas que se “autodeclaram pretas e pardas", segundo definição do Estatuto da Igualdade Racial em 2010. De acordo com essa pesquisa de 2021, os pardos somam cerca de 100 milhões de brasileiros. Eles respondem por 47% da população brasileira, à frente de brancos (43%), pretos (9,1%) e da soma entre indígenas e amarelos (0,9%). A professora Daniela Gomes afirma que o Brasil tem uma mentalidade racial construída para clarear as pessoas, “um processo de embranquecimento da população construído para negar negritude e racismo”. “Lá atrás, esse embranquecimento da população, construía uma mentalidade de nação onde por um lado quanto mais escuro mais é afetado pelo racismo e por outro lado o racismo não existe na cabeça da grande maioria da população”, pontua. “No país há um inconsciente coletivo onde a mentalidade racial aponta para fazer com que as pessoas entendam que ser negro não é legal. Por isso, podem tentar de alguma forma não ser negro. Isso vai desde não se entender com pessoas negras até ao ponto de não se envolver com elas”, declara Daniela. A estudiosa afirma que o processo de tomada de consciência racial é fundamental. “Isso envolve muitas coisas, a partir de um espaço social. É parte de uma retomada de consciência que pode envolver situações como acessar outros espaços, fazer parte de grupos ativistas ou se ver isolado em um ambiente predominantemente branco no qual você é o único negro”, diz. Ela frisa que essa descoberta pode ser um processo doloroso, que demanda apoio emocional e que pode precisar de acolhimento por parte da família e até de movimentos ativistas. “Isso demanda estudar sobre si e o povo. Ninguém quer ficar do lado da história que perdeu. No caso, a população negra foi vitimizada pela escravidão e sofre racismo desde que esse país existe. Então quem quer se identificar com a negritude? Ninguém quer estar do lado que está sendo destruído e massacrado. Por isso, é um processo doloroso, mas necessário”, afirma.
2023-02-24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cek3yplkkk8o
brasil
'Viver assim não é normal': brasileiros que permanecem na Ucrânia um ano após início da guerra
Até o início de fevereiro, a embaixada do Brasil em Kiev registrava a presença de cerca de 20 brasileiros em território ucraniano. Um ano atrás, antes do início do conflito que pode ter vitimado até 7 mil civis e 200 mil militares, a conta era de mais de 500 nacionais vivendo no país do Leste Europeu. A grande maioria dos brasileiros, assim como muitos outros estrangeiros que moravam na Ucrânia antes da invasão russa em 24 de fevereiro de 2022, deixaram o país às pressas assim que a operação militar ordenada por Vladimir Putin foi lançada. Milhares de ucranianos também fugiram do conflito. Mas alguns poucos brasileiros decidiram permanecer no país, apesar dos riscos e dos alertas feitos pelo próprio governo brasileiro. "O Itamaraty continua a desaconselhar o ingresso e a permanência de brasileiros na Ucrânia enquanto durar o contexto de conflito", afirmou o Ministério de Relações Exteriores em nota enviada à BBC News Brasil. Para o padre paulista Lucas Perozzi Jorge, 37, a definição por ficar foi motivada pela vocação. "Quando começou a guerra eu estava em uma cidade chamada Uzhhorod, que faz fronteira com a Eslováquia. Mas desde então estou em Kiev e assim que cheguei aqui tive a convicção de que esse é o lugar certo para mim", diz. Fim do Matérias recomendadas O religioso mora na Ucrânia há 19 anos e se formou no seminário Redemptoris Mater de Kiev, como parte de um itinerário de iniciação cristã da igreja Católica. Ele afirma ter recebido várias ligações do Itamaraty sobre sua decisão de ficar. "Eles me perguntavam se eu estava aqui de livre vontade e ofereciam ajuda para voltar ao Brasil, caso quisesse. Mas sempre recusei." Perozzi vive atualmente nas dependências da Paróquia Assunção da Santíssima Virgem Maria, de onde já presenciou vários ataques aéreos nos últimos meses. "O período inicial foi o mais difícil. Kiev era bombardeada duas ou três vezes ao dia e o Exército russo estava ao redor da cidade", relata. "Mas desde a Páscoa, quando as tropas russas recuaram, está um pouco mais tranquilo". "Um dos dias mais assustadores foi quando um míssil atingiu um edifício a cerca de 1 quilômetro da igreja. O impacto foi muito forte e sentimos os vidros e o chão tremer." Mesmo com os sustos, o padre afirma que as sirenes de alerta para ataques aéreos não causam mais pânico como no início. E, apesar das orientações das autoridades locais para buscar refúgio sempre que o sinal soar, muitos seguem com suas vidas. "As sirenes de alerta tocam no mínimo uma ou duas vezes por dia, quando é identificado algum tipo de movimentação aérea do lado russo, mas nem sempre os ataques se concretizam", disse à BBC Brasil o brasileiro natural de Presidente Prudente, no interior de São Paulo. "Escutamos tantas sirenes que eu, por exemplo, só me abrigo em locais no subsolo quando o alerta é seguido de explosões." O religioso afirma que, nas ruas da capital ucraniana, a vida parece transcorrer com normalidade até o momento em que escuta os sinais de alerta ou um batalhão de soldados cruza seu caminho. "Podemos ir ao cinema, mas não há garantia de que vamos conseguir assistir ao filme até o final", conta. "Há pouco tempo estava no cinema quando as sirenes soaram. Fomos para o subsolo e assim que o alerta acabou retornamos ao filme. Mas bem perto do final a sirene tocou novamente – e dessa vez não pudemos continuar porque já era tarde e há um toque de recolher em vigor." "Para nós já é normal. Mas no fundo sei que viver assim não é normal de verdade – e me causa muito estresse", admite. A aparente sensação de normalidade também está presente no discurso de outros brasileiros que vivem na Ucrânia após um ano de guerra. A paranaense Aline Vittorazzo, 37, que mora em Lviv, afirma que o soar das sirenes e a movimentação em direção aos abrigos "já virou hábito". "Nos acostumamos com o barulho das sirenes. E o próprio povo ucraniano já não se assusta como no começo", afirmou à BBC Brasil. "Antes assim que a sirene tocava todos saíam correndo. Hoje muitas pessoas nem param o que estão fazendo." A pedagoga de formação morava em Lviv com o marido argentino, que é jogador do time de futebol FC Rukh Lviv, e a filha Manuela, que hoje tem 2 anos. Após o anúncio da invasão, ela e a família fugiram às pressas da Ucrânia pela fronteira com a Polônia. O caminho até lá foi difícil – tiveram que atravessar uma grande parte a pé, ao lado de uma multidão que também tentava deixar o país. Foram 16 quilômetros levando malas, carrinho de bebê e um cachorro. O marido Fabrício estava lesionado, caminhando com muletas, e Vittorazzo teve que carregar grande parte das coisas sozinha. Mas eles conseguiram chegar até o território polonês e, após algumas semanas, retornaram ao Brasil. Em agosto, porém, o clube para qual Fabrício trabalha convocou seus jogadores a se apresentarem em Lviv e a família tomou a decisão de retornar à Ucrânia. "Somos uma família e não nos separamos – sempre foi assim, sempre seguimos o meu marido e o trabalho dele", diz. "Tenho família no Brasil e eles se preocupam, questionam um pouco porque decidimos voltar, mas no fim das contas respeitam nossa decisão." "Seguro sabemos que não é. Existe um risco e temos consciência. Mas em comparação com outras partes do país, Lviv não é alvo tão constante", afirma. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Atualmente, segundo a paranaense natural de Curitiba, a maior dificuldade enfrentada na cidade são os apagões. Há alguns meses as forças russas têm atacado pontos críticos para a infraestrutura ucraniana, provocando cortes de água e energia elétrica em todo o país. "A cerca de dez quadras da nossa casa, uma central de energia foi atingida por dois mísseis há alguns meses. Sentimos como se o ar estivesse fazendo uma pressão - as janelas abriram e fecharam", conta. "Na hora fiquei com muito medo", diz a brasileira, que deve se refugiar na garagem de seu prédio quando o sinal de alerta para ataques aéreos é disparado. "Mas tenho tentado afastar os pensamentos negativos para não ficar em pânico. Tem gente que morre escorregando no banheiro, né? Então nunca se sabe." A falta de energia, porém, significa dificuldades para cozinhar, manter alimentos refrigerados e principalmente aquecer a casa. "Tivemos fases em que tínhamos só quatro horas de luz por dia", relata. "Quando tem energia elétrica ligamos a calefação no máximo e fechamos portas e janelas para manter o apartamento quente em caso de apagão e não passar frio." O baiano Rodrigo Mota, 35, se mudou para a Ucrânia em junho para trabalhar na resposta humanitária à guerra. Especializado em Relações Internacionais e Gestão de Desenvolvimento, ele trabalha há sete anos para o Programa Mundial de Alimentos (PMA) das Nações Unidas. "Qualquer pessoa que muda de país tem como preocupações questões como barreiras linguísticas ou culturais. Mas em um contexto como esse isso deixa de ter importância, porque na verdade o que conta é a segurança", relata o brasileiro, que hoje atua como assessor especial do diretor do escritóirio do PMA na Ucrânia. "Mas me senti convidado a apoiar os meus colegas aqui e principalmente socorrer as vítimas dessa guerra, porque não é uma guerra apenas política, ela também é humanitária." Mota mora em Kiev, mas por conta do trabalho viaja com frequência para outras zonas da Ucrânia, inclusive próximas às fronteiras. "São nesses lugares que encontramos as pessoas que mais estão sofrendo com a catástrofe da guerra do ponto de vista humanitário, que não têm acesso a outros meios que não sejam os que a gente está provendo", diz. Algumas das cenas mais difíceis, segundo ele, foram presenciadas na cidade de Kherson, retomada pela Ucrânia após oito meses sob ocupação russa. "Chegamos na cidade dois dias depois que ela foi retomada e encontramos um cenário de muita destruição. Tudo isso afeta o pscicólogico de qualquer um -quem está passando por ali temporariamente e dos próprios residentes." Por seu trabalho, Mota está também sempre sujeito a riscos. Mas sua equipe toma todas as precauções possíveis para evitar visitar as áreas em momentos de violência. "Mas eu não posso achar que sofro menos riscos por estar na capital ou por ter acesso a esse tipo de informação, porque a ameaça da violência é constante para qualquer pessoa." O baiano natural de Ilhéus também rejeita a ideia de que alguém possa se acostumar com a vida sob ameaça. "Não existe vida normal quando se está em situação de guerra e todo mundo deve saber que isso aqui não é normal e não deve ser", diz. "Ainda que as pessoas estejam passando por essa situação há um ano, ninguém se acostuma." "Não dá para levar um vida normal, por exemplo, quando as atividades são encerradas às 9 horas da noite, quando é preciso se programar para fazer o jantar porque algumas partes da cidade ficam sem luz ou água", relata. "Eu passo todos os dias me lembrando de que isso que não é normal e que não dá para ter uma vida normal quando 18 milhões de pessoas estão passando necessidade e precisam de ajuda humanitária." Justamente por isso, o brasileiro não pensa em deixar o país até pelo menos 2024, quando acaba sua missão na Ucrânia. "O trabalho humanitário é de vocação", resume. Jefferson Vinicius da Silva, 22, também se mudou em meio à guerra. Ele chegou em Lviv em janeiro de 2023 para atuar no FC Rukh Lviv, o mesmo time de futebol do marido de Aline, apesar do conflito. "Desde criança tenho o sonho de jogar fora do Brasil e esse desejo falou mais alto na hora de decidir se iria aceitar a proposta do clube ou não", contou Jefferson à BBC Brasil. "Cheguei muito tranquilo, mas no momento em que ouvi a sirene de alerta pela primeira vez caiu a ficha de que estou em uma zona de guerra", diz. "Mas o clube me dá toda infraestrutura e proteção que preciso. Além disso, sei que posso voltar a qualquer momento caso não esteja confortável." Todas as vezes que a sirene toca, Jefferson e os demais integrantes do time se refugiam em um bunker nas dependências da área de treinamento. "Parece uma casa”, descreve o jogador de futebol natural de Natal, no Rio Grande do Norte. “Tem televisão, wi-fi e tudo - é bem suave". Jefferson afirma que pretende se manter na Ucrânia por enquanto e, em breve, se mudará para sua própria casa com a esposa. "Ela estava bem receosa de vir para cá, mas no final decidiu me acompanhar."
2023-02-23
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ce73gejykk2o
brasil
Cargo vitalício e salário de R$ 35 mil: as esposas de ministros de Lula nos tribunais de contas
Com o apoio poderoso do marido, o ministro da Casa Civil, Rui Costa (PT), Aline Peixoto foi eleita pela Assembleia Legislativa baiana (Alba) nesta quarta-feira (08/03) para assumir o cargo de conselheira do Tribunal de Contas dos Municípios da Bahia (TCM-BA). Rui Costa, que foi governador da Bahia por dois mandatos até 2022 e elegeu como sucessor seu aliado Jerônimo Rodrigues (PT), tem importante influência na política local. Com a eleição da ex-primeira-dama baiana, Costa ser tornou o quarto ministro do governo de Luiz Inácio Lula da Silva a ter sua esposa como conselheira de um tribunal de contas, instituições que têm como função fiscalizar se o dinheiro público está sendo bem empregado Esses cargos vitalícios dão estabilidade até os 75 anos (idade limite para aposentadoria no serviço público) e remuneração a partir de R$ 35.462,22. Além disso, trazem poder, já que os tribunais de contas podem, inclusive, deixar políticos inelegíveis, caso as contas de seu governo sejam rejeitadas. Em janeiro, a Assembleia Legislativa do Piauí elegeu a ex-primeira dama, Rejane Dias, para conselheira do Tribunal de Contas do Estado (TCE-PI). Seu marido, Wellington Dias (PT), atual ministro do Desenvolvimento Social, governou o Piauí até março de 2022. Fim do Matérias recomendadas Outros dois ex-governadores, hoje ministros de Lula, já chegaram ao governo federal com as esposas eleitas para tribunais de contas dos seus Estados. No caso do ministro dos Transportes, Renan Filho (MDB), Renata Calheiros foi eleita pelos deputados estaduais de Alagoas para o TCE em dezembro. O ministro governou Alagoas até abril do ano passado. Já Marília Góes, esposa do ministro do Desenvolvimento Regional, Waldez Góes (licenciado do PDT), se tornou conselheira do Tribunal de Contas do Amapá em fevereiro de 2022, quando seu marido ainda governava o Estado. Sua indicação chegou a ser suspensa pela Justiça sob acusação de nepotismo (favorecimento profissional devido ao vínculo familiar), mas a decisão foi revertida. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As três já nomeadas, por integrarem tribunais responsáveis pelas contas dos governos estaduais, ficam impedidas de executar uma das principais funções dos conselheiros — sendo esposas dos ex-governadores, não podem participar do julgamento de suas contas. A BBC News Brasil entrou em contato com a assessoria dos quatro ministros e com os gabinetes das três conselheiras já nomeadas, mas nenhum deles se pronunciou. Na Bahia, a eleição de Aline Peixoto virou munição política. O líder da oposição na assembleia baiana, deputado estadual Alan Sanches (União Brasil), classificou de "imoral" a candidatura da esposa de Rui Costa para o TCM-BA. Seu partido lançou o deputado estadual Tom Araújo para disputar a vaga com Aline Peixoto. "Não tenho absolutamente nada contra a ex-primeira-dama, mas pessoalmente eu acho imoral indicar a esposa para um cargo vitalício, até os 75 anos de idade, com salário de R$ 41 mil, cuja maior prerrogativa é ser esposa do ex-governador e ministro da Casa Civil. Não faço juízo de valor sobre a pessoa da ex-primeira-dama, mas faço, sim, sobre os princípios que o atual ministro da Casa Civil esquece de usar", criticou Sanches em fevereiro, por meio do seu perfil do Instagram. Até mesmo o senador Jaques Wagner (PT-BA), ex-governador baiano e padrinho político de Rui Costa, disse ao jornal local Metro1 que não concordava com a indicação da ex-primeira dama. Com formação de enfermeira, Aline Peixoto presidiu a organização Voluntárias Sociais da Bahia enquanto era primeira-dama. Antes disso, foi assessora especial da Secretaria de Saúde da Bahia e diretora do Hospital Geral de Ipiaú. Para além do embate político, indicações de parentes para tribunais de contas têm gerado disputas jurídicas. Um caso antigo com desdobramentos recentes ocorreu no Paraná. Em 2008, Maurício Requião foi eleito como conselheiro do TCE pelos deputados estaduais durante o governo de seu irmão, Roberto Requião, que hoje está no PT, mas na época era do PMDB. Sua posse, no entanto, foi suspensa por decisão liminar do Supremo Tribunal Federal (STF), em uma ação que questionava a nomeação de Maurício Requião apontando que haveria nepotismo em sua escolha e que a eleição na assembleia estadual não teria seguido os prazos e ritos legais. Após essa decisão, a assembleia revogou a eleição do irmão do governador e escolheu outro conselheiro, Ivan Bonilha. Em 2022, porém, após longa batalha jurídica, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que essa revogação não respeitou o devido processo legal e decidiu pela recondução de Maurício Requião ao cargo. Ele passou a integrar o TCE do Paraná em dezembro, quando uma nova vaga abriu com a aposentadoria de outro conselheiro. No caso de Marília Góes, após sua eleição pela assembleia estadual, sua posse foi suspensa em março do ano passado por uma decisão judicial que considerou sua escolha como nepotismo, atendendo a uma ação popular. Essa decisão, porém, foi revertida na segunda instância judicial uma semana depois. A segunda decisão considerou que Marília Góes foi escolhida pela assembleia estadual e que eventual prática de nepotismo poderia ser comprovada ao longo do processo. O nepotismo foi proibido no serviço público por decisão do Supremo Tribunal Federal, por meio da Súmula Vinculante 13, mas a própria Corte estabeleceu exceções e há controvérsia se a proibição se aplica às vagas em tribunais de contas. Essa súmula vedou a nomeação de cônjuge, companheiro ou parente até o terceiro grau. No entanto, o Supremo estabeleceu também que funções públicas de caráter político, como cargos de ministros e de secretários estaduais e municipais, são funções em que pode haver a nomeação de parentes. Segundo o professor de Direito Administrativo da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), André Cyrino, há juristas que defendem uma interpretação ampla do que seriam cargos políticos, para englobar até membros do Ministério Público. Na sua visão, mais restrita, os cargos políticos — que permitem, portanto, nomeação de parentes — são aqueles cuja nomeação está ligada à lógica eleitoral. Por isso, Cyrino avalia que cargos de conselheiros e ministros de tribunal de contas podem ser considerados políticos, assim como a nomeação de ministros do STF, por exemplo, que são apontados pelo presidente da República e depois aprovados pelo Senado. No entanto, embora não veja um enquadramento legal como nepotismo, o professor considera "lamentável" a nomeação de familiares para essas funções. "Eu acho que as esposas dos governadores que estão sendo nomeadas podem ser as pessoas mais honestas do mundo, mas acho que aí vale a regra da mulher de César, com o perdão do trocadilho ao falar das esposas: não basta ser honesta, tem que parecer honesta", disse, em referência à famosa frase atribuída ao imperador romano Júlio César. "Então ainda que você escape da incidência da Súmula vinculante 13 a partir dessa lógica de que se trata de uma decisão política, você, por outro lado, não escapa do escrutínio público, que é próprio da democracia", reforçou. Apesar do nome, os tribunais de contas não integram o Poder Judiciário. Na verdade, são instituições que auxiliam o Poder Legislativo na fiscalização dos gastos do Poder Executivo. Enquanto o Tribunal de Contas da União fiscaliza o governo federal, os tribunais de contas dos Estados costumam fiscalizar despesas dos governos estaduais e das prefeituras. No entanto, Bahia, Goiás e Pará criaram tribunais de contas dos Municípios, específicos para avaliar as contas das prefeituras, enquanto as cidades de Rio de Janeiro e São Paulo tem cada uma um Tribunal de Contas Municipal. Parte das vagas desses tribunais é eleita pelo Poder Legislativo e parte é escolhida pelo Poder Executivo. Com isso, essas indicações acabam tendo forte caráter político. Um levantamento realizado pela Transparência Brasil em 2016 mostrou que 80% dos titulares desses cargos ocuparam, antes de sua nomeação, cargos eletivos ou de destaque na alta administração pública (como dirigente de autarquia ou secretário estadual). A presença de parentes de autoridades também não é novidade. O mesmo levantamento indicou que cerca de um terço (32%) dos conselheiros e ministros do país eram familiares de políticos ou de integrantes de relevo do Poder Judiciário. No TCE de Alagoas, por exemplo, onde Renata Calheiros chegou há pouco, o atual vice-presidente, Otávio Lessa, é conselheiro desde 2002, quando foi indicado por seu irmão, o então governador Ronaldo Lessa (PDT). Já no TCE da Paraíba, Fernando Rodrigues Catão foi nomeado conselheiro em 2004 por seu sobrinho, o então governador Cássio Cunha Lima (PSDB). Reeleito em 2006, Cunha Lima foi cassado por decisão judicial em 2009. No ano seguinte, seu primo, Arthur Cunha Lima, também se tornou conselheiro do TCE, após ser escolhido pela Assembleia Legislativa paraibana. Para a diretora executiva da Transparência Brasil, Juliana Sakai, a indicação de parentes e aliados de políticos cria uma “benefício de mão dupla” e acaba enfraquecendo a fiscalização dos tribunais de contas. "De um lado, você coloca alguém que tenha afinidade política, num cargo para receber muito bem vitaliciamente, e, ao mesmo tempo, essa pessoa deixa de ter um controle muito restritivo, para favorecer os que estão no poder. Então, existe aí o aparelhamento de uma estrutura", crítica. Maria Alice Gomes, que estuda a composição de tribunais de contas em seu doutorado pela Fundação Getúlio Vargas, explica que é natural que os cargos nos tribunais de contas sejam ocupados por pessoas "da seara política" devido ao processo de escolha. Outro fator que possibilita isso, diz, são os critérios "vagos" que a Constituição estabelece para a escolha de ministros e conselheiros. Segundo o texto constitucional, a pessoa deve ter deve ter idoneidade moral e reputação ilibada; notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros ou de administração pública; e mais de dez anos de exercício de função ou de efetiva atividade profissional que exija os conhecimentos mencionados. "Então, não existem critérios tão específicos que exijam a qualificação técnica de quem vai exercer um cargo vitalício. É comum que os cargos sejam preenchidos por deputados estaduais, pessoas que estão ligadas ao meio político naquele Estado", ressalta. Nesse sentido, Gomes não considera necessariamente algo negativo a indicação das esposas de ex-governadores. Na sua avaliação, essas indicações têm o impacto positivo de aumentar a representatividade de mulheres nos tribunais de contas. Levantamento realizado por ela e outros pesquisadores nos 33 tribunais de contas constatou que mulheres são apenas 11,2% das vagas de conselheiros e ministros (26 num universo de 231). A cientista política Débora Thomé, doutora pela Universidade Federal Fluminense (UFF), ressalta que política é algo tradicionalmente familiar não só no Brasil, citando exemplos da política americana, como as famílias Bush e Clinton. Ela nota que familiares de políticos já crescem nesse meio e acabam tendo mais facilmente conexões e apoios para ocupar espaços de poder. Por outro lado, para quem não tem esses vínculos prévios, o processo para conquistar esse espaço é custoso e longo, já que normalmente exige enfrentar eleições disputadas. "É algo ruim porque, de alguma maneira, você cristaliza o poder no entorno de poucas famílias", ressalta. Ela acredita que o aumento da pressão por mais mulheres em espaços de poder pode ter influenciado a decisão de indicar esposas de governadores e ex-governadores para tribunais de contas, em vez de outros familiares desses políticos. Para Thomé, é preciso fazer uma distinção entre mulheres indicadas para esses cargos que conquistaram antes mandatos eletivos e trilharam uma trajetória própria na política, ainda que com apoio do marido, e aquelas que não disputaram eleições. Ela cita por exemplo o caso da Rejane Dias, que exerceu mandatos de deputada estadual e federal. Formada em direito e administração de empresas, ela também ocupou vários cargos nos governos do marido, como secretária estadual de Assistência Social e Cidadania (2005 a 2006) e secretária estadual de Educação (2015 a 2018). Marilia Góes, por sua vez, é delegada aposentada da Polícia Civil do Amapá e estava em seu terceiro mandato como deputada Estadual pelo PDT quando se tornou conselheira do TCE. Assim como Aline Peixoto, Renata Calheiros não teve mandato eletivo antes de ser nomeada. Formada em administração, ela foi técnica concursada da Caixa Econômica Federal e atuou entre 2015 e 2022 como coordenadora de dois programas do governo do marido: o Criança Alagoana e o Alagoas Feito à Mão.
2023-02-22
https://www.bbc.com/portuguese/articles/czd31g4zkzpo
brasil
'Só deu tempo de pegar meus bebês gêmeos e sair', diz moradora afetada pela chuva no litoral de SP
Em meio ao temporal que caiu no fim de semana no litoral norte de São Paulo, a estudante Nicole Mandinga, de 17 anos, moradora do bairro de Topolândia, em São Sebastião, só teve tempo de pegar seus dois gêmeos recém-nascidos, Akin e Kevin, e deixar a casa onde mora "com a roupa do corpo" e "pelos fundos, pulando para o terreno do vizinho". A família perdeu quase tudo que tinha está agora abrigada na casa de uma parente. "Começou a chuva e eu e minha mãe já estávamos dormindo. Um vizinho bateu na (porta) da nossa casa e falou para ficarmos atentas, pois havia muita lama caindo da barreira, e ninguém estava conseguindo subir ou descer (a rua)", relembra ela à BBC News Brasil por telefone. "Mas, então, ouvimos gritos, pessoas pedindo por socorro. Entramos em desespero, vimos a casa do vizinho da frente sendo levada. Só pegamos os gêmeos e saímos de casa pelos fundos pulando o muro para poder nos salvar." "Saímos com a roupa do corpo. Perdemos tudo, inclusive todo o enxoval que havíamos ganhado para os bebês", acrescenta. Fim do Matérias recomendadas A casa de Nicole fica em uma encosta e está inacessível devido ao excesso de lama e pedras trazidas pelas chuvas fortes que atingiram a região no último fim de semana. "Caiu um poste na cozinha da nossa casa e quebrou o teto. Mas não alagou. Tivemos que sair por uma porta do meu quarto que dá acesso aos fundos e pulamos para a casa do vizinho. E esperamos pelo socorro da Defesa Civil", conta. "Perdemos tudo. Não temos como voltar para casa", completa. Nicole diz que parte da família está agora alojada na casa de sua tia, próxima ao imóvel onde morava, que era alugado. Ela acredita que se chover novamente, muito provavelmente "a água vai levar a nossa casa". A família criou uma vaquinha virtual para arrecadar recursos e poder refazer a vida. Além de Nicole, sua mãe e os gêmeos, moravam na casa seus outros quatro irmãos e o padrasto. Como é muito grande, a família se dividiu em casas de parentes e amigos e está sem lugar fixo para morar. São Sebastião foi a cidade mais afetada pelas chuvas históricas que atingiram o litoral norte de São Paulo no último fim de semana. Alagamentos e deslizamentos de terra que se seguiram à tempestade mataram ali pelo menos 40 pessoas. Há relatos de centenas de desabrigados. Faltam água e comida em algumas localidades. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na manhã desta terça-feira, o repórter da TV Globo Walace Lara chorou ao vivo ao relatar que viu comerciantes vendendo um litro de água por R$ 93 na região. Lara relatou, durante entrada no Bom Dia SP, que, quando esteve em uma comunidade em Topolândia, bairro onde fica a casa de Nicole e sua família, viu "pelo menos cem pessoas tirando lama" de dentro dos imóveis. "Desculpa, gente, vou respirar aqui e vou falar (…) É uma situação muito difícil de se ver e acompanhar. As cidades não têm estrutura". "É difícil ouvir o depoimento que a gente ouviu agora e não se emocionar. Cobrar R$ 93 em um litro de água na situação que nós estamos aqui é inacreditável", lamentou com voz embargada. Pelo menos 44 pessoas morreram em consequência do temporal, sendo 43 em São Sebastião e uma em Ubatuba. O total de pessoas fora de casa, desabrigadas ou desalojadas, chega a 2,5 mil. Já os desaparecidos somam 40, mas esse número pode aumentar, pois há relatos de que pessoas ainda possam estar soterradas. - Este texto foi publicado em
2023-02-21
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brasil
'Tem gente que precisa da nossa ajuda': os afetados pelas chuvas que viraram voluntários no litoral de SP
Igor Murilo, Maria Eduarda Carvalho e Camilla Lopes são alguns dos afetados pelo temporal que atingiu o litoral norte de São Paulo no último fim de semana. Cada um à sua maneira, eles tentam agora superar a tragédia que vivenciaram e agir em prol do bem coletivo, seja participando de mutirões de limpeza, buscando desaparecidos ou arrecadando doações. Em comum, todos estavam em São Sebastião, a cidade mais atingida pelas chuvas históricas. Eles conversaram com a BBC News Brasil por telefone e explicaram como foram de vítimas a voluntários nessa tragédia. Igor Murilo, de 22 anos, professor de CrossFit e morador de Camburi, conta que perdeu tudo, "com exceção da TV e da geladeira". Fim do Matérias recomendadas Ele diz que estava em casa com o filho e a mulher "tirando um cochilo" após a família ter curtido o Carnaval na tarde de sábado (18/2) quando recebeu um telefonema de sua mãe: era um alerta sobre os alagamentos causados pelas chuvas. "Minha mãe, que mora no bairro vizinho, me ligou por volta de 1h e nos perguntou sobre como estava a situação no entorno da nossa casa. Ela mora em uma casa mais alta do que a minha e disse que por lá já estava tudo alagado", diz, lembrando que sua casa nunca havia alagado antes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Fiquei preocupado e quando me dei conta faltavam quatro dedos para a água entrar na nossa casa. Falei para a minha esposa que era preciso levantar os objetos, mas só conseguimos salvar a TV e a geladeira. Quando saí para o quintal, a água já batia na altura do meu peito". "Conseguimos chegar ao carro que estava numa parte mais alta e tivemos que dormir dentro dele. A situação ainda está muito ruim aqui, com pessoas ainda soterradas", acrescenta. Desde o domingo (19/2), Murilo tem coordenado ações de mobilização em Camburi. "Tem muita gente precisando (de ajuda). Estamos recebendo dinheiro das vaquinhas que fizemos. Conseguimos unir mais de 20 motoboys para fazer entrega de marmitex. Cada localidade tem uma pessoa que está liderando. Só ontem (segunda-feira) consegui lavar minha casa", assinala. Ele diz que os esforços vêm se concentrando na Vila Sahy, uma das áreas mais afetadas, onde alagamentos e deslizamentos de terra deixaram mortos, feridos, desaparecidos e desabrigados. A casa de Maria Eduarda Carvalho, de 18 anos, fica nessa localidade. Ali ela morava com os sogros e o noivo. "Quando a chuva começou, eu e meu namorado estávamos em casa e havíamos pedido uma pizza. Mas o motoboy disse que não conseguia entregá-la e achamos estranho. Meu namorado desceu para a praça principal para buscá-la e viu que já estava alagado, donos de supermercados metendo a mão em bueiros para tentar fazer escoar a água, sem sucesso." "Como alagamentos são comuns por aqui, não nos preocupamos muito. Comemos a pizza e dormimos por 20 minutos. Acordamos quando a água começou a entrar no nosso quarto", relembra. "A nossa casa era a única da rua que não enchia. Começamos a nos desesperar e tentamos criar barreiras para a água não passar". "Quando saímos de casa para buscar nosso material de trabalho na praia, a água já estava na altura da nossa cintura", acrescenta Carvalho, que trabalhava com uma barraca de praia. Ela e o namorado se abrigaram na casa de um cliente que fica num condomínio luxuoso na Barra do Sahy — ali não houve danos extensivos, embora, segundo Maria Eduarda, alguns imóveis de alto padrão localizados na encosta tenham sido completamente destruídos. Os sogros dela estão alojados em uma escola convertida em abrigo e, em breve, vão se juntar ao casal no mesmo imóvel. "Ajudei na limpeza da escola e estamos agora nos mobilizando para recolher doações. Felizmente, não há ninguém passando fome ou sede. As doações estão chegando de barco e de helicóptero." Em um condomínio da mesma localidade, estavam Camilla Lopes e suas amigas. Naturais da capital paulista, as jovens estudam no interior juntas e haviam viajado ao litoral norte para passar o Carnaval em uma casa de praia da família de uma delas. Desde domingo, vêm atuando como voluntárias. "No sábado à noite, fomos a uma casa de shows em Camburi e, no caminho de volta, já chovia bastante. Percebemos que não conseguiríamos passar de carro devido ao volume de água, que já estava na altura da cintura. Decidimos nos arriscar e atravessar a pé. Felizmente, nada aconteceu com a casa onde estávamos." "No dia seguinte, ao acordarmos, percebemos uma movimentação estranha no condomínio, e foi só então que conseguimos a entender a dimensão da tragédia." "Quando soubemos que havia muitos feridos, mortos e desaparecidos, decidimos nos mobilizar para ajudar. Fizemos de tudo, de limpeza até a organização da cozinha. Separamos roupas e itens de higiene pessoal." "Agora estamos nos focando nas doações; entre nossos amigos, conseguimos arrecadar um grande valor de doação e agora estamos organizando como fazer a distribuição desse recurso." Camilla também diz que vem ajudando a localizar desaparecidos — como há áreas sem acesso à internet, multiplicam-se pedidos de familiares para encontrar parentes com os quais não conseguiram contato até agora. "Passamos por todos os abrigos e tentamos entender a necessidade de cada um deles. Também usamos as redes sociais para encontrar essas pessoas". Sem poder voltar ao interior onde estudam, devido ao bloqueio da maior parte das rodovias que dão acesso ao litoral norte de São Paulo, Camilla e as amigas concordaram que vão permanecer na região até o fim da semana ajudando nos esforços de mobilização. - Este texto foi publicado em
2023-02-21
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn34e1plr9xo
brasil
Litoral de SP foi atingido por 'evento extremo', com recorde de chuvas e elevação do mar
Uma combinação de fatores relacionados à chuva, ao vento e ao mar fizeram do litoral norte de São Paulo o alvo de um "evento absolutamente extremo e histórico" no último fim de semana, nas palavras do meteorologista Marcelo Seluchi, do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Inundações e deslizamentos na região deixaram ao menos 40 mortos, 1.730 desalojados e 766 desabrigados, segundo o governo estadual — que, no domingo (19), decretou estado de calamidade pública nas cidades de São Sebastião, Caraguatatuba, Ubatuba, Ilhabela e Bertioga. "Foi uma frente fria, só que com características muito particulares", resume Seluchi, doutor em ciências meteorológicas. "Primeiro, foi uma frente fria muito intensa, a ponto de levar a temperaturas muito baixas na região sul do Brasil e em países vizinhos. Quando passou essa frente pela Argentina, se falou na frente fria mais intensa dos últimos 54 anos. Não era qualquer frente fria." "Mas houve um outro elemento muito importante, porque formou-se uma pequena área de baixa pressão, que teve papel também muito importante para piorar a situação." Fim do Matérias recomendadas De acordo com o meteorologista, a formação de áreas de baixa pressão atmosférica — que, em linhas gerais, costumam propiciar a formação de nuvens — em uma região relativamente pequena, entre os municípios de Santos e Ubatuba, fez aumentar as chuvas. Mas não foi só isso. "Essa baixa pressão também provocou o aumento do vento vindo do mar. Então, esse evento arrastou umidade e aumentou o nível do mar. Subindo o nível do mar, houve muito mais dificuldade de escoar a água de chuva." Todos esses fatores acarretaram um volume de chuvas recorde registrado em um dia no Brasil: municípios como São Sebastião e Bertioga ultrapassaram os 600 mm de chuva em 24 horas. Segundo levantamento do portal G1, o recorde de chuvas em um dia registrado pelo Cemaden tinha sido em Petrópolis, no ano passado: 534,4 mm. Já o recorde diário registrado pelo Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) havia sido de 404,8 mm, em 1991, em Florianópolis. Entrevistado pela reportagem, Fabrício Araújo Mirandola, do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), afirmou que a média de chuvas para o mês de fevereiro inteiro na região é de 225 mm — ou seja, em um dia choveu três vezes mais do que o esperado para 28 dias. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Destaque e atenção para o Litoral Norte que pode registrar acumulado de até 250mm", diz o texto. Não foi apenas esse o aviso de que algo atípico — embora subestimado diante do que realmente ocorreu — poderia acontecer no fim de semana carnavalesco no turístico litoral norte. O Cemaden emitiu boletins falando do alto risco de "eventos hidrológicos" na região pelo menos desde o dia 13. Em nota, o instituto afirmou que também fez alertas sobre o risco de "chuvas muito intensas com potencial para provocar desastres na porção leste do Estado de SP" em reuniões no dia 16 com o Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres (Cenad) e no dia 17 com a Defesa Civil de São Paulo. "Somente no dia 18/02 mais de 60 alertas foram emitidos, entre eles para Ubatuba, Ilhabela, Caraguatatuba e São Sebastião; portanto, desde o dia 16/02 a região litorânea de SP estava sob atenção", disse o Cemaden. Marcelo Seluchi, que é meteorologista da instituição, afirma que o episódio foi "bem previsto e avisado" aos órgãos competentes e aos governos locais, mas reconhece que a dimensão do desastre não era tão previsível. "Quando fazemos uma previsão meteorológica, sabemos que o mais difícil é prever exatamente quanto vai chover. Mas nós sabíamos que se tratava de uma chuva muito intensa com potencial de desastres extremos." Sobre o papel das autoridades no desastre, Seluchi diz que ainda é cedo para avaliar. "Sabemos que é uma região muito muito difícil, muito vulnerável. Uma grande proporção da população da região mora em áreas de risco — seja nas encostas ou nas pequenas planícies nas partes baixas, que estão sujeitas a receber os sedimentos que descem da serra", diz o especialista. "Vamos precisar avaliar depois, com mais calma, quais foram as medidas de preparação da Defesa Civil, considerando que o Cemaden avisou com antecedência." A BBC News Brasil pediu mas não recebeu posicionamentos da prefeitura de São Sebastião e do governo estadual de São Paulo. O Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional afirmou que o governo federal tem o papel de comunicar alertas aos governos locais e à população e de coordenar ações de preparação. "No entanto, quem possui a capacidade e competência de avaliar as ações necessárias e que serão mais eficientes em cada localidade, são as autoridades locais. Estas ações, sejam de preparação, sejam de resposta, devem estar previstas no Plano de Contingência local", escreveu a assessoria de imprensa do ministério. "Não nos cabe, nem por competência, nem por capacidade de conhecimento da realidade local, esse tipo de determinação." Além do papel das autoridades, ainda é preciso tempo — e estudos científicos — para saber o papel das mudanças climáticas no desastre do fim de semana. Marcelo Seluchi explica que é difícil determinar a causalidade entre eventos extremos e as mudanças climáticas, mas afirma acreditar que possa haver alguma relação. "Primeiro, porque a frente fria que provocou toda essa chuva foi muito intensa. A Argentina teve recordes de baixa temperatura e neve em lugares muito pouco frequentes — e em fevereiro (também verão no país vizinho), o que é muito estranho", diz o meteorologista. "Segundo, tem uma lei da termodinâmica que diz que o vapor mantido no ar depende da temperatura. Um aumento da temperatura traz um aumento de vapor. Ou seja, para países tropicais como o Brasil, uma mudança de 1ºC significa muito mais vapor do que aumentar 1ºC na Antártica ou na Patagônia." "Então, você torna o clima tropical mais úmido, mais quente e mais instável. Uma mesma frente fria consegue provocar hoje mais chuva do que há 100, 200 anos. E para piorar, as frentes frias estão ficando mais intensas em algumas circunstâncias." "Não é uma situação normal, e justamente as mudanças climáticas determinam um novo normal, né?", conclui Seluchi. *Colaboraram Leandro Prazeres, da BBC News Brasil em Brasília, e Camilla Veras Mota, da BBC News Brasil em São Paulo
2023-02-21
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3gj49n6jwno
brasil
Chuva em São Sebastião foi 3 vezes maior que temporal de 2014, evento 'mais extremo' da história recente na região
A região de São Sebastião, uma das mais afetadas pelas inundações e deslizamentos no litoral norte de São Paulo, recebeu 640 mm de chuva em 24 horas. O volume é mais de três vezes maior que o registrado em 2014, quando choveu 179 mm em dez horas - o evento climático mais extremo da história recente do município, conforme relatório do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). Além do diagnóstico, ele traz recomendações de ações para mitigação das ameaças, que, conforme Fabrício Araújo Mirandola, diretor técnico da Unidade de Negócios em Cidades, Infraestrutura e Meio Ambiente do IPT, vinham sendo observadas em São Sebastião nos últimos anos. "Temos conhecimento de que o município vinha atuando no planejamento e na gestão dos riscos, com implementação de medidas estruturais e não estruturais e na regularização fundiária de alguns bairros", disse, por e-mail, à reportagem da BBC News Brasil. Fim do Matérias recomendadas Para ele, eventos climáticos como os que afetaram a região nos últimos dias "são esporádicos e difíceis de prever, como no caso dos terremotos". "As prefeituras dos municípios atingidos estavam com equipes em alerta e prontidão, e estas fizeram diversos atendimentos emergenciais desde o início das chuvas. Esse fato, sem dúvida, salvou diversas vidas", afirmou, acrescentando que a média de chuvas para o mês de fevereiro inteiro na região é de 225 mm. "Ou seja, em 24 horas tivemos três vezes o volume de chuvas esperado para 28 dias." O IPT tem no momento duas equipes em campo nas áreas afetadas, em São Sebastião e em Ubatuba. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na manhã de segunda (20/2), técnicos do instituto, junto com a Defesa Civil, sobrevoaram parte da rodovia SP-055 (trecho da BR-101 conhecido como Rio-Santos) para elaborar um diagnóstico geológico-geotécnico das situações mais críticas e identificar os bairros e núcleos que acabaram ficando isolados devido às dezenas de deslizamentos ocorridos ao longo da estrada. O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), afirmou na noite de segunda que a rodovia tem dez pontos de bloqueio e que alguns de seus trechos podem ter sido arrastados pelas enxurradas. Até o momento, há 40 mortos - 36 em São Sebastião -, mais de 40 desaparecidos e centenas de desalojados e desabrigados. A reportagem tentou contato com a Prefeitura de São Sebastião para conversar sobre os eventos climáticos extremos dos últimos anos, sobre a implementação do plano de redução de riscos e sobre os alertas de temporais na região nos últimos dias, mas não obteve retorno. A forte chuva registrada no município em 2014, que ocorreu na madrugada de 23 de dezembro, bloqueou trechos da Rio-Santos e também provocou deslizamentos, alagamentos e isolou praias em São Sebastião. O relatório do IPT traz a análise de que o episódio atingiu "excepcional gravidade provavelmente porque combinou a ação de diversos fenômenos: maré alta, alagamento por insuficiência da rede de microdrenagem e, considerando a topografia acidentada da região, enxurradas produzidas por precipitações em regiões montanhosas". O documento mostra ainda o cálculo do chamado "período de retorno", que é o "o intervalo de tempo médio em anos que um determinado evento é igualado ou superado ao menos uma vez", e conclui que eventos como esse podem frequentes e que "medidas devem ser tomadas no sentido de prover sistemas de alerta e de contingência, de modo a evitar consequências danosas, sobretudo à população mais vulnerável". À BBC News Brasil, Mirandola afirmou que um novo estudo deve ser realizado após o evento climático do fim de semana, já que dados novos de entrada - especialmente quando estão fora da média pluviométrica - são relevantes para se definir o período de retorno. - Este texto foi publicado em
2023-02-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/czrmpxdk443o
brasil
A história do marcante Carnaval de 1919, o primeiro após a pandemia da gripe espanhola
*Este texto foi publicado originalmente em abril de 2022 e republicado com atualizações em fevereiro de 2023 Com o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), navios vindos da Europa trouxeram, junto aos passageiros, a gripe espanhola, causada por um subtipo do vírus influenza e que marcaria a história moderna como a pior pandemia antes da chegada da covid-19. "No mundo, a gripe espanhola pode ter matado 50 milhões de pessoas, muito mais do que a Primeira Guerra Mundial", diz Maria Cecília Barreto Amorim Pilla, professora do curso de História da PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná). Já no Brasil, estima-se que as mortes causadas pela pandemia possam ter chegado a 35 mil. O Estado que mais sofreu foi o Rio de Janeiro, capital do Brasil na época, onde morreram cerca de 15 mil pessoas. Assim como vimos desde 2020, hospitais ficaram lotados e grandes eventos como campeonatos de futebol foram cancelados. Carnaval, então, nem pensar. Fim do Matérias recomendadas Mas quando o ano de 1918 terminou, aqueles que sobreviveram já haviam criado imunidade contra a doença, e aos poucos, os casos foram diminuindo. Foi chegada a hora de "tirar o atraso" e celebrar tudo que não havia sido possível nos anos anteriores - pelas chuvas que marcaram o Carnaval de 1916 e 1917, pela crise econômica e clima de guerra em 1918, e principalmente pela doença que tirou tantas vidas. Neste 2023, estamos diante de uma transição parecida: embora a Organização Mundial da Saúde (OMS) ainda classifique que estamos em uma pandemia, com a queda brusca no número de mortes e casos da doença após a vacinação contra a covid-19, diversas cidades brasileiras estão tendo o primeiro carnaval oficial desde que o coronavírus apareceu. Se tomarmos 1919 como exemplo, é bom lembrar de como o escritor Ruy Castro definiu a festa que começou no primeiro dia de março: foi "a grande desforra contra a peste que dizimara a cidade". Uma estimativa feita pelo jornal A Noite à época apontava que o Carnaval de 1919 levou cerca de 400 mil pessoas ao Centro do Rio de Janeiro. "Hoje sabemos que a 'Espanhola' foi embora em fins de novembro daquele ano e não voltou. Mas eles, que a viveram, não sabiam se ela voltaria ou não - o Carnaval de 1919 podia ser o seu último. Era uma atmosfera de fim do mundo. O negócio então era aproveitar ao máximo", disse Ruy Castro em entrevista à BBC em julho de 2020. Em 1919, os blocos carnavalescos de rua como conhecemos hoje ainda não existiam. Mas grandes grupos chamados de sociedades, — que eram estabelecidos geralmente pela elite, mas com grande acompanhamento popular— levavam milhares de pessoas às ruas, principalmente na capital, o Rio de Janeiro. Diferentes também das grandes escolas de samba atuais, as sociedades não adotavam um tema único para as apresentações, mas desfilavam diferentes histórias, não necessariamente conectadas umas as outras. Entre os temas dos desfiles, alguns dos grupos adotaram a memória dolorosa da peste como sátira. "A maior sociedade da época, chamada de Democráticos, fez um carro alegórico com uma grande xícara, e nela estava escrito 'chá da meia-noite'", diz Pilla. A professora explica que o "chá da meia-noite" fazia referência a um boato popular que corria na época. Dizia-se que na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, que estava lotada por tantos pacientes infectados com o vírus, aqueles que estavam em estado grave, mas sem sinais de que morreriam em breve, recebiam o tal chá com veneno, em uma espécie de eutanásia forçada. "Outras referências apareceram, como um carro alegórico com um tônico capilar, por causa da perda de cabelo causada pela gripe espanhola, alguns com alusões a supostos medicamentos milagrosos, à venda de galinhas para fazer canja, considerada também como um remédio. Uma sociedade de tamanho médio, a 'Zuavos', chegou a desfilar pela Avenida Rio Branco, uma carroça similar a que levava os corpos de mortos pelo vírus", diz o jornalista David Butter, que escreveu o livro De Sonho e de Desgraça: o Carnaval Carioca de 1919. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Há, ainda, certa memória popular construída por cronistas sobre o Carnaval de 1919. A imagem passada por autores como Nelson Rodrigues e Mário Filho é da festa menos conservadora que já havia ocorrido até então, inclusive em termos de liberação sexual. Para Butter, a visão é mais mítica do que factual. "No início do século, em 1910 muitas das práticas que são citadas sobre o Carnaval de 19, como assédios de grupos de homens direcionados a mulheres e funcionamento de prostíbulos já aconteciam. Uma mudança no código de vestimenta das mulheres também era algo que já estava em curso." Mas isso não quer dizer que a festa não tenha deixado marcas. "Ele pode ter sido uma preview de toda a sensacional década de 20 no Rio. Na cidade, o Carnaval, que começou em 1603, quando saíram à rua os primeiros fantasiados, já era uma maravilha no século XIX --- há muita literatura a respeito. O que aconteceu é que o Carnaval de 1919 foi especial, assim como tinha sido em 1912, quando, por causa da morte do Barão do Rio Branco, o Rio teve dois Carnavais", diz Ruy Castro. Uma diferença, aponta David com base na sua pesquisa para o livro, é que o Carnaval desse ano teve a presença de muitos mais grupos do que os anteriores. "Grupos femininos, novas sociedades de diferentes tamanhos e inclusive o Cordão do Bola Preta, bloco mais antigo do Rio de Janeiro, começou ali." "Também teve um lado sombrio que pouco se fala, com a ocorrência de estupros, muitas crianças desaparecidas e crimes violentos em consequência dessa loucura, do êxtase", diz Pilla. Apesar de mais de 100 anos terem se passado, é possível traçar alguns paralelos entre a pandemia do século passado e a atual. As escolas de samba perderam importantes integrantes devido à covid-19, como Laíla, diretor de Carnaval da Beija-Flor, Maurina Feitosa de Carvalho, presidente da escola de samba 28 de Setembro, Marco Diniz, diretor de harmonia da Grande Rio, e os sambistas Carlinhos Sebá e Nelson Sargento. Pela memória recente da covid-19, assim como foi feito com a gripe espanhola, em 2022 diversas escolas de samba desfilaram temáticas relacionadas à pandemia. "Outro ponto é que para quem ficou em casa nos últimos dois anos e gosta do Carnaval, a mesma saudade da festa que estava presente em 1919 aparece agora", diz Butter. *Com colaboração de Ligia Guimarães
2023-02-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cje15888x4go
brasil
Como Maduro saiu do isolamento e reata relações com outros países
Esta reportagem foi atualizada em 30 de maio de 2023. Nicolás Maduro já conheceu tempos mais difíceis. Há pouco mais de quatro anos, quando assumiu um novo mandato em janeiro de 2019, após eleições que grande parte da comunidade internacional considerou fraudulentas, o governante venezuelano recebeu como resposta uma dura onda de rejeição internacional. Com a rejeição política, que em alguns países significou a expulsão dos embaixadores de Maduro, vieram as sanções petrolíferas impostas pelo então governo de Donald Trump, a perda do controle de ativos venezuelanos nos Estados Unidos e em alguns países europeus, bem como uma denúncia de narcotráfico do departamento de combate às drogas dos Estados Unidos (DEA, em inglês), que ofereceu recompensa de US$ 15 milhões para quem fornecesse informações que permitissem a captura do presidente venezuelano. Fim do Matérias recomendadas Enquanto ocorria essa crise diplomática, a Venezuela sofreu com uma hiperinflação, viu a sua capacidade de produção de petróleo despencar e causou a maior crise migratória que o continente americano conheceu em décadas. Nos últimos tempos, no entanto, as coisas parecem ter começado a mudar. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Quatro anos depois, algumas portas que haviam sido fechadas para Maduro começaram a ser abertas. Paulatinamente, aumenta o número de governos que o reconhecem e que passam a convidá-lo para eventos internacionais. Em setembro de 2021, o governante venezuelano participou da reunião da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) no México, a convite do presidente Andrés Manuel López Obrador. Ao longo de 2022, o governo dos Estados Unidos enviou delegações de alto nível a Caracas que negociaram a libertação de executivos americanos da empresa Citgo que estavam presos na Venezuela por acusações de corrupção. Em contrapartida, o presidente Joe Biden libertou os venezuelanos Franqui Flores e seu primo Efraín Castro Flores — sobrinhos da primeira-dama venezuelana, Cilia Flores —, que cumpriam pena de 18 anos de prisão nos Estados Unidos por narcotráfico. Em troca do governo Maduro sentar-se novamente para negociar no México com a oposição venezuelana, Biden também relaxou as sanções ao petróleo em novembro de 2022 para permitir que a empresa americana Chevron expandisse suas operações na Venezuela. Além disso, naquele mês, Gustavo Petro se tornou o primeiro presidente da Colômbia a visitar Maduro desde 2016. Poucas semanas depois, Maduro participou da Cúpula do Clima no Egito, onde teve um encontro em um corredor com o presidente francês, Emmanuel Macron, que apertou sua mão, o chamou de presidente e levantou a possibilidade de iniciar um trabalho bilateral em benefício da Venezuela. Ainda nessa mesma conferência, Maduro também apertou a mão do enviado especial de Biden para o clima, John Kerry, embora logo Washington tenha esclarecido que se tratou de um encontro casual. No fim de dezembro passado, o governo da Espanha — um dos que haviam reconhecido Guaidó — nomeou um novo embaixador em Caracas, cargo que estava vago desde 2020 devido às tensões com Maduro. E o ano de 2023 começou com um convite do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para que Maduro acompanhasse a posse do petista em Brasília, no início de janeiro. Para isso, o governo de Lula negociou com a equipe de transição do ex-presidente Jair Bolsonaro para derrubar as restrições que haviam sido impostas pelo governo anterior sobre a entrada de Maduro no país. O venezuelano não compareceu a Brasília naquela ocasião, mas viajou a Brasília para uma reunião dos chefes de Estado e de governo de 11 países latinoamericanos nesta terça-feira (30/5). O venezuelano estava acompanhado da primeira-dama, Cilia Flores, quando subiu a rampa do Palácio do Planalto para uma reunião bilateral com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Maduro não vinha ao Brasil desde janeiro de 2015, quando esteve na posse da ex-presidente Dilma Rousseff, também do PT. "Temos pressa de retomar as relações com a Venezuela e toda a América do Sul. Nossos ministros têm que conversar mais, empresários dos dois países devem conversar mais, universidades devem falar mais de ciência e tecnologia. É preciso que os empresários brasileiros voltem a investir na Venezuela e na América do Sul e restabelecer mecanismos auspiciosos de cooperação como já tivemos”, disse Lula ao receber o venezuelano. Mas, afinal, o que tornou possível essa nova inserção, ainda tímida, de Maduro no cenário internacional? Geoff Ramsey, diretor do programa da Venezuela no Washington Office for Latin America (WOLA), uma ONG americana focada em cuidados relacionados à América Latina), acredita que essa mudança é uma mostra de pragmatismo. A comunidade internacional, diz, está assumindo que a estratégia de "pressão máxima" aplicada por Trump sobre Maduro — por meio do reconhecimento de Guaidó e de ameaças e sanções — não foi capaz de gerar uma transição na Venezuela. "Estamos entrando em uma nova fase, na qual mais países da região reconhecem a realidade de que, embora Maduro não tenha um mandato democrático, ele é o poder de fato no país, por isso é necessário estabelecer ao menos níveis mínimos de comunicação com as autoridades de seu governo", diz Ramsey. Essas posturas pragmáticas foram reforçadas pelas transformações no ambiente regional e internacional. A internacionalista venezuelana Elsa Cardoso destaca que a América Latina enfrentou uma recente mudança na tendência política com as eleições de governos de esquerda em Honduras, Chile, Colômbia, Brasil, México, Argentina e Bolívia. “Isso define um quadro em que, particularmente na América Latina, há uma tendência crescente de deixar de lado questões de direitos humanos, questões sobre as características do regime político e um retorno à velha agenda mais do princípio da não intervenção nos assuntos de outros países", comenta. Isso pode favorecer Maduro ao reduzir o peso dado às denúncias de práticas antidemocráticas e violações de direitos humanos atribuídas a ele — que Caracas nega — e que foram fundamentadas, entre outros, pelo Gabinete do Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU. Benedicte Bull, professora de Ciência Política do Centro de Desenvolvimento Ambiental da Universidade de Oslo e diretora da Rede Norueguesa de Pesquisa sobre a América Latina, ressalta que Biden mantém contra Venezuela uma linha política diferente da de Trump, mas não vai dar uma guinada muito radical a esse respeito. "Devido à situação geopolítica do mundo, com a guerra na Ucrânia, os Estados Unidos já têm batalhas suficientes para assumir. Portanto, não faz muito sentido seguir uma linha tão dura em relação à Venezuela", disse Bull à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC). A especialista em relações internacionais Elsa Cardozo explica que o conflito ucraniano modificou as prioridades os Estados Unidos e da Europa e resultou em uma reavaliação estratégica do petróleo. Isso favorece Maduro, apesar de a Venezuela não ser mais um grande produtor e não ter condições — nem mesmo com o levantamento das sanções — de preencher no curto prazo o vácuo criado no mercado de energia pelas sanções contra Moscou. William Neuman, ex-correspondente do New York Times no país e autor de um livro recente sobre a Venezuela intitulado Things Are Never So Bad That They Can't Get Worse ("As coisas nunca estão tão ruins que não possam piorar") destaca especialmente a importância das mudanças ocorridas na Colômbia e no Brasil. “Esses países foram dois dos aliados mais importantes dos EUA que apoiavam a política de Trump de reconhecer Juan Guaidó e isolar Maduro. Faz sentido que eles mudem de posição agora que os presidentes aliados de Trump se foram. Isso, além da orientação à esquerda de Petro e Lula.” “Também faz sentido que, sendo vizinhos da Venezuela, tenham relações diplomáticas com o governo venezuelano, que é de Maduro”, ressalta. A BBC News Mundo enviou solicitações tanto ao Ministério das Relações Exteriores da Venezuela quanto ao Ministério de Comunicação e Informação do país para consultar o governo Maduro sobre o assunto, mas até o momento da publicação desta reportagem, em fevereiro de 2023, nenhuma resposta havia sido recebida. No entanto, o governante venezuelano já deixou claro em diversas ocasiões seu interesse em normalizar as relações com os Estados Unidos e tem defendido que Washington assuma políticas mais pragmáticas. "A Venezuela está preparada, totalmente preparada, para dar lugar a um processo de normalização das relações diplomáticas, consulares, políticas, com este governo dos Estados Unidos e com os governos que possam vir", disse no início de janeiro em entrevista transmitida pela rede Telesur. Embora Maduro tenha conseguido sobreviver à política de "pressão máxima" e a economia venezuela tenha conseguido sair recentemente da hiperinflação e iniciou um crescimento tímido, Geoff Ramsey adverte que o presidente venezuelano está em uma posição mais fraca do que pode parecer. “Maduro continua sendo visto como um presidente autocrático, sem mandato democrático e continua muito estigmatizado na região e no mundo, então não é tão fácil para ele”, diz. "É muito fácil superestimar a força do seu governo neste momento, mas Maduro ainda está em uma situação precária, com uma economia em crise e precisa de legitimidade internacional e de encontrar saídas para as sanções", acrescenta. Ele ressalta que o presidente chavista depende do apoio que recebe de militares e facções políticas de seu próprio partido, portanto, poder se reintegrar à comunidade internacional o ajudaria a demonstrar para suas próprias elites militares e políticas que está resolvendo a crise na Venezuela. Benedicte Bull concorda que as melhoras registradas pela economia venezuelana são temporárias e que as bases dessa recuperação são muito frágeis. “Agora dá para perceber que os números do crescimento estão voltando a cair e a inflação não está sob controle, embora tenha caído bastante”, diz a especialista. "O que temos visto é o resultado de uma liberalização muito aleatória para lidar com a crise, mas os fundamentos não melhoraram. Então, Maduro precisa desesperadamente de investimentos porque todos os serviços públicos ainda estão em péssimas condições e ele precisa de investimentos no setor de petróleo, obviamente", complementa. Legitimar-se e ganhar aceitação internacional permitiria a Maduro ter maior autonomia. "Isso significaria poder se movimentar internacionalmente sem medo [de ser preso e processado] e poder recuperar a capacidade de gestão econômica. Por isso ele insiste tanto na questão das sanções", diz Elsa Cardozo, que considera que o governante venezuelano busca um novo equilíbrio em que diminua a pressão penal e econômica sobre o seu governo. Mas quais são os limites desse processo? William Neuman adverte que o fato de haver países que restabelecem relações diplomáticas com a Venezuela ou que reconheçam Maduro como presidente não significa que o apoiem. "Uma coisa é conversar, ter relações, manter um comércio e outra coisa é apoiar. Ter relações diplomáticas não significa apoiar um governo. Relações são entre os países. Então, Maduro e sua política antidemocrática são os maiores obstáculos [para sua reinserção internacional]. Ele continua sendo um chefe de Estado autoritário que viola diariamente as normas democráticas de seu país", declara. Geoff Ramsey acredita que, enquanto ocorrerem violações massivas dos direitos humanos na Venezuela, será muito difícil para os países da região normalizar totalmente as relações com o governo de Maduro. Ele ressalta, porém, que às vezes a diplomacia privada pode ser muito eficaz para promover mudanças de comportamento. "Acredito que essa seja a aposta de vários governos da região, incluindo a administração de Petro. Vemos sinais de interesse de vários países latino-americanos em desempenhar um papel ativo na busca de uma solução pacífica e democrática para a crise venezuelana", aponta. Em todo caso, a reintegração completa da Venezuela na comunidade internacional está vinculada ao levantamento das sanções por parte dos Estados Unidos, o que – ao mesmo tempo – depende de um acordo entre o governo de Maduro e a oposição venezuelana para a realização de eleições livres e competitivas em 2024. “Se o mundo não vir sinais claros de que realmente há uma chance de uma eleição competitiva em 2024, não acho que Maduro conseguirá normalizar totalmente as relações”, diz Ramsey. “Este governo continua sendo um pária na América Latina, na Europa e para muitos outros governos no mundo e não há maior interesse em restabelecer relações diplomáticas com a Venezuela se não houver avanços concretos no processo de negociação no México”, acrescenta. Mas as eleições livres exigem o cumprimento de uma série de condições importantes, entre as quais a liberação dos chamados presos políticos, a plena autorização dos dirigentes da oposição legalmente impedidos de concorrer ou que vivam no exílio, a garantia de um corpo eleitoral imparcial e o acesso da oposição à mídia e observação internacional, entre outras medidas. Ao mesmo tempo, além do levantamento das sanções, para Maduro há outras questões a serem resolvidas, como o controle de ativos venezuelanos no exterior e as acusações feitas contra ele por narcotráfico e por crimes contra a humanidade perante o Tribunal Penal Internacional. "Difícil" e "complexo" são as palavras que Benedicte Bull usa quando questionada sobre a possibilidade de chegar a acordos sobre todos esses pontos. “Quem acompanhou a situação na Venezuela nos últimos 20 anos acha difícil acreditar que o governo vai permitir eleições livres, nas quais corre o risco de perder”, diz Bull. "Mas, ao mesmo tempo, vimos alguns elementos que pelo menos dão um pouco de esperança e acho que agora há fortes incentivos para isso", acrescenta. Ramsey indica que, embora nos últimos oito anos tenham ocorrido cinco processos de diálogo fracassados ​​na Venezuela, as coisas podem ser diferentes agora, já que Maduro enfrenta incentivos diferentes. "Maduro tem um grande problema de fluxo de caixa e sabe que não pode melhorar a economia venezuelana sem aliviar as sanções, então precisa voltar à mesa de negociações com a oposição." “Além disso, ele não governa sozinho, pois depende de algumas elites políticas e militares, muitas das quais estão interessadas em uma mudança no país e fazem pressão silenciosa dentro do chavismo para promover também esse processo de diálogo”, aponta. William Neuman, por sua vez, é cético. “Não acho que veremos eleições totalmente livres na Venezuela em 2024”, diz ele. Mas se não houver acordo sobre a possibilidade de que isso ocorra, também não haverá suspensão das sanções, de modo que a posição de Maduro pode voltar a ser tão comprometida internacionalmente quanto há quatro anos.
2023-05-30
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cj5yy00n5j8o
brasil
Como o maior peixe da Amazônia foi parar nos rios do interior de São Paulo
Dizer que pescou um pirarucu nos rios do interior de São Paulo não é história exagerada de pescador. Com comprimento maior que uma pessoa adulta, a espécie típica da Bacia Amazônica é capturada com frequência no trecho do rio Grande, entre a Usina Hidrelétrica de Marimbondo e a Usina Hidrelétrica de Água Vermelha, na divisa entre São Paulo e Minas Gerais. Conhecido por ser um dos maiores peixes de água doce do mundo, o pirarucu -Arapaima gigas -, popularmente conhecido como "bacalhau do Norte", pode ultrapassar os 3 metros de comprimento e pesar até 220 quilos. No interior de São Paulo, exemplares de até 150 quilos já foram pescados. Acostumada a pescar peixes de até 30 quilos, Maria José Melo da Conceição, 59 anos, se assustou quando pegou pela primeira vez o maior peixe de água doce com escamas da Amazônia no rio Grande. "Lembro que no começo achava que era sucuri pelo tamanho e força. Somente fui saber que tinha pirarucu no rio Grande quando peguei um filhote pesando 33 quilos." O tamanho do onívoro também chamou a atenção de Izael Gonçalves de Moraes, 41 anos, que pescou um exemplar da espécie com 2,2 metros de comprimento, pesando 113 quilos, justamente no dia do seu aniversário. "Foi a primeira vez que pesquei um peixe desse tamanho. Fiquei até emocionado, pois levei quase uma hora para conseguir tirar da água." Fim do Matérias recomendadas Natural da região da Amazônia, o pirarucu pescado por Izael em outubro de 2022 foi encontrado no trecho do rio Grande, próximo do distrito de São João do Marinheiro, em Cardoso (SP). "Depois desse de 113 quilos, peguei um de 90 quilos e outro de 50 quilos. É um peixe que está se reproduzindo de maneira extremamente rápida pelo rio." Segundo Rogerio Machado, ecólogo e analista ambiental do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Peixes Continentais (CEPTA), órgão ligado ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o rompimento de tanques de piscicultura de criadouros particulares, às margens do rio Grande, possibilitou que os primeiros peixes da espécie pirarucu tivessem acesso ao rio Grande. "Foi quando a espécie encontrou ambiente favorável para se reproduzir, pois não tem predadores naturais", explicou Machado. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Lilian Casatti, pesquisadora do Laboratório de Ictiologia da Unesp (Universidade Estadual Paulista) de São José do Rio Preto, é uma das cientistas brasileiras que estuda os impactos do pirarucu nos rios do interior de São Paulo. Ela aponta que a espécie encontrou no trecho do rio Grande, entre a Usina Hidrelétrica de Água Vermelha e a Usina Hidrelétrica de Marimbondo, um ecossistema muito parecido com seu habitat natural na Amazônia, principalmente por conta das águas sem correnteza. "Os rios dessa região estão muito modificados e para pior. Assim, enquanto as espécies nativas demonstram ser mais sensíveis a essas alterações e por isso estão em declínio; as espécies não nativas, como o pirarucu, são mais resistentes, não demonstram muitas exigências e conseguem aproveitar os poucos recursos que ainda existem", elencou Casatti. Os primeiros pirarucus foram avistados no trecho do rio Grande, entre a Usina Hidrelétrica de Marimbondo e a Usina Hidrelétrica de Água Vermelha, na divisa entre São Paulo e Minas Gerais, em 2010. Porém, foi apenas em 2015 que pesquisadores conseguiram fazer o primeiro registro científico da introdução da espécie no local. "Mesmo sendo um peixe da Bacia Amazônica, o pirarucu se adaptou bem a Bacia Paraná, consequentemente a cada ano que passa estão sendo mais comuns de serem pescados. Inclusive, temos relatos de pescadores que já estão encontrando exemplares pesando até 150 quilos", disse Emerson Mioransi, capitão da Polícia Ambiental da região de São José do Rio Preto. A introdução de uma espécie não nativa que se alimenta de outros animais aquáticos é a grande preocupação dos pesquisadores que estudam os impactos da reprodução do pirarucu no rio Grande. "Estamos falando de uma espécie predadora de topo de cadeia alimentar, e um animal de grande porte, que consome outras espécies de peixes de menor porte", apontou Igor Paiva Ramos, pesquisador da Unesp de Ilha Solteira. Para Lidiane Franceschini, pesquisadora da Unesp, a reprodução rápida da espécie pode desestruturar as comunidades aquáticas. "O pirarucu no rio Grande pode causar a diminuição de espécies nativas importantes da pesca regional." Estudos apontam que, até o momento, o pirarucu apenas habita o trecho entre a Usina Hidrelétrica de Marimbondo e da Usina Hidrelétrica de Água Vermelha – duas barragens construídas na década de 1970 para a produção de eletricidade - que corresponde a uma distância de aproximadamente 120 quilômetros em que o rio Grande divide os territórios de São Paulo e Minas Gerais. Contudo, o receio é que nos próximos anos a espécie ganhe os afluentes do rio Grande e comprometa as relações ecológicas de outros rios do interior de São Paulo. "A introdução do pirarucu, além de poder causar a extinção local de espécies de peixes e invertebrados que são utilizados como alimento por meio da predação, também pode ajudar na introdução de parasitas que podem parasitar as próprias espécies de peixes nativas", apontou Lidiane. Ao mesmo tempo que o pirarucu representa um perigo para o ecossistema aquático do rio Grande, também impulsiona o turismo de pesca de cidades do interior de São Paulo. Desde que pescou o primeiro pirarucu, em 2018, o guia de pesca Odair Camargo viu crescer a procura de pescadores interessados em pescar no trecho do rio Grande entre Cardoso (SP) e Mira Estrela (SP). "Muita gente vê os vídeos na internet e vem tentar pescar. Além disso, quando você consegue pegar um pirarucu, consegue garantir o sustento da família. Recentemente, peguei um de 107 quilos que me rendeu R$ 2,5 mil. Mas é difícil tirar ele da água." Dificuldade que não impediu o pescador Lucio Omar Pereira, 49 anos, de pescar três exemplares nos últimos meses. "O primeiro que pesquei pesou 110 quilos. Estava em um barranco, ele puxava o anzol tão forte que digo que foi Deus me ajudou a tirar ele do rio." O termo pirarucu advém da sua coloração, sendo "pira" de peixe e "urucu" em referência a sua coloração vermelha. O gigante da Amazônia também é conhecido por suas grossas escamas que são capazes de impedir a penetração de mordidas de piranha. Segundo Levi Francisco dos Santos, diretor do departamento do meio ambiente de Cardoso (SP), o município projeta nos próximos meses realizar um campeonato para incentivar a pesca da espécie. "É uma forma de conseguirmos diminuir a incidência de pirarucu no rio e incentivar o turismo local." Em Mira Estrela, município do interior de São Paulo que também é banhado pelo rio Grande, o diretor do departamento de meio ambiente, Antônio Cesar Zanzarin, diz que pescadores já relatam o desaparecimento de algumas espécies de peixes a partir da reprodução massiva do pirarucu. "É um peixe carnívoro que está causando a diminuição do número de peixes nativos e consequentemente o ganho de pescadores." Estímulo à pesca, manejo da espécie e novas pesquisas científicas são apontados por especialistas como possíveis soluções para remediar os problemas que o pirarucu pode gerar no rio Grande nos próximos anos. Para o ecólogo Rogerio Machado, dificilmente será possível acabar com a espécie na região. "O que pode ser feito é o manejo da espécie e estimular a pesca esportiva para tentar diminuir o número de peixes. É uma forma de ter controle do pirarucu no rio Grande e evitar mais impactos ambientais." Já Igor Paiva Ramos, pesquisador da Unesp de Ilha Solteira, defende uma maior mobilização sobre a importância da educação ambiental no Brasil. "Depende de educarmos ambientalmente e sensibilizarmos a sociedade e políticos, sobre os riscos e prejuízos ambientais e econômicos que a introdução de espécies não-nativas pode causar." A pesquisadora Lidiane Franceschini ressalta a importância da fiscalização e do monitoramento das comunidades aquáticas, para rápida detecção de espécies não-nativas, como forma de evitar novas invasões nos rios brasileiros. "Contudo, o que temos atualmente são leis que protegem essas espécies, como por exemplo a limitação da quantidade de animais não-nativos que podem ser capturados e limitação do tamanho. Do ponto de vista de controle dessas espécies não-nativas, essas medidas são equivocadas." Por ser uma espécie não-nativa, mesmo durante o período da piracema o pirarucu pode ser pescador no rio Grande. "Por ser um peixe invasor, a pesca dele é liberada, mas o pescador precisa ficar atento se não está descumprindo outras normas", afirmou Emerson Mioransi, capitão da Polícia Ambiental da região de São José do Rio Preto. Além do pirarucu, outros peixes como a tilápia também foram introduzidos nos rios do interior de São Paulo por meio do escape de tanques de psicultura. A tilápia - Oreochromis niloticus -, por exemplo, chegou ao Brasil para ser criada em cativeiro, mas atualmente é frequentemente encontrada em rios brasileiros. "Mas com o pirarucu o problema é maior, pois é um peixe que consome a maioria dos peixes. Talvez daqui 15 anos, as próprias espécies nativas mostrem os primeiros sinais de adaptação de vivência com o pirarucu no rio Grande, mas até lá é necessário um manejo e controle do número de exemplares", afirmou Rogerio. Os impactos da presença do pirarucu no rio Grande estão sendo pesquisados por cientistas da Universidade Estadual Paulista (Laboratório de Ictiologia da Unesp de São José do Rio Preto; Laboratório de Ecologia de Peixes de Ilha Solteira e Laboratório de Genética de Peixes de Bauru); Universidade Federal do Paraná (Laboratório de Ecologia e Conservação do Setor de Tecnologia da UFPR); Universidade Estadual de Londrina (Laboratório de Ecologia de Peixes e Invasões Biológicas, Laboratório de Genética e Ecologia Animal da UEL); e do Instituto Cavanilles de Biodiversidade e Biologia Evolutiva da Universidade de Valência (Espanha). Este texto foi originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/articles/ckmd4pd4d6ko
2023-02-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ckmd4pd4d6ko
brasil
'Há um renascimento de grupos neonazistas no Brasil', diz diretor de fundação judaica
A prisão de um jovem de 17 anos, detido por atirar bombas caseiras do tipo coquetel molotov em duas escolas enquanto usava uma braçadeira com uma suástica, acendeu mais uma vez o alerta para o crescimento do antissemitismo no Brasil. Para Ariel Gelblung, diretor para a América Latina do Centro Simon Wiesenthal, o incidente é reflexo do fortalecimento da ideologia neonazista no país durante o governo de Jair Bolsonaro. "Há um renascimento de grupos neonazistas no Brasil. Vimos algo semelhante acontecer nos Estados Unidos durante o governo de Donald Trump, quando membros da extrema direita se achavam no direito de expressar e dizer qualquer coisa", afirmou o advogado à BBC News Brasil. "O mesmo aconteceu no Brasil durante o governo Bolsonaro." Segundo o argentino, o tema precisa ser discutido e trazido à tona para "desarmar a disseminação" do antissemitismo violento. Fim do Matérias recomendadas "Embora estejamos tranquilos com a forma como as autoridades agiram para deter o agressor e por não haver vítimas ou danos significativos, estamos preocupados com o episódio em si", diz o representante da organização judaica que afirma ter como objetivo promover os direitos humanos e pesquisar o Holocausto. O ataque aconteceu no prédio em Monte Mor, interior de São Paulo, que abriga a Escola Estadual Professor Antonio Sproesser e a Escola Municipal Vista Alegre, onde o agressor havia estudado até o 5º ano do ensino fundamental. Ele é menor de idade e não teve a identidade divulgada. Dois artefatos explodiram depois de atingir a grade de entrada do prédio, mas ninguém ficou ferido. Segundo a Guarda Municipal, além da braçadeira, foram encontrados um caderno e livros com referências nazistas e uma réplica de fuzil em um carro utilizado pelo agresssor e na casa dele. "É a primeira vez que vemos algo assim recentemente no Brasil. Trata-se de um adolescente e sinceramente não sabemos se a motivação foi pessoal ou ideológica. Mas isso é um sinal de que temos que ficar em alerta", afirmou Ariel Gelblung. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para o argentino, não há necessariamente uma ligação direta entre Jair Bolsonaro e o antissemitismo, mas as visões e alianças feitas pelo ex-presidente durante seu mandato deram espaço para o crescimento de uma extrema direita perigosa. "Bolsonaro recebeu e se aproximou de uma representante da AfD da Alemanha", diz o advogado, em referência à recepção à deputada alemã Beatrix von Storch, vice-líder do partido de ultradireita Alternativa para a Alemanha (AfD). Von Storch é neta de Johann Ludwig Schwerin von Krosigk, que serviu como ministro das Finanças da ditadura de Adolf Hitler por mais de 12 anos. Muitos membros da legenda também são acusados regularmente de nutrir simpatias pelo nazismo e de minimizar os crimes cometidos pelo Terceiro Reich. "Ideologicamente, esses membros da extrema direita se sentiram como se tivessem o direito real de expressar suas crenças", diz Gelblung. Questionado sobre a proximidade do ex-presidente e de muitos de seus seguidores com Israel – não é incomum que bolsonaristas exibam bandeiras do país em demonstrações públicas – o especialista afirmou que a política nem sempre segue uma lógica exata. "Me parece que Bolsonaro fala sério quando expressa sua admiração por Israel, porque ele apoia muito a igreja evangélica e eles amam Israel", diz. "Mas nem todo mundo pensa igual. Muitos de seus apoiadores não são evangélicos - eles o apoiam como político, não como fiel. A política não é como matemática." Bolsonaro sempre negou ter qualquer relação com extremistas da direita ou neonazistas. O diretor da organização judaica para a América Latina também compara esse contexto brasileiro com o americano. "Ninguém fez tanto por Israel [na Presidência americana] como Donald Trump. Mas a extrema direita se sentiu confortável demais com sua liderança", afirma. A BBC News Brasil tentou contato com Bolsonaro e seus assessores para que pudessem dar um posicionamento a respeito das alegações. Não foram enviadas respostas até a publicação deste material. Apesar da preocupação, Ariel Gelblung afirma que o Brasil fez alguns progressos nos últimos anos, com a entrada na Aliança Internacional de Memória do Holocausto (IHRA) como membro observador e decisões importantes do Supremo Tribunal Federal (STF) contra discursos de negação do Holocausto. Mas o advogado não vê a mudança de governo como necessariamente uma boa notícia para o combate aos grupos neonazistas. Segundo ele, a proximidade do atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva com o Irã pode ser problemática para o avanço da luta contra o antissemitismo. Gelblung viu a decisão da Presidência de, inicialmente, permitir o atracamento de duas embarcações militares iranianas no porto do Rio de Janeiro em janeiro como sinal dessa aproximação. A autorização foi vetada posteriormente, após o pedido do governo do Irã ser visto como uma tentativa de Teerã de usar o Brasil para provocar os EUA — os navios chegariam à costa na mesma semana em que o presidente brasileiro estaria em Washington para uma visita à Casa Branca. "Com a mudança de governo podemos ver surgir outro tipo de problema com o antissemitismo", diz o representante do Centro Simon Wiesenthal. "Quando o Irã ampliou sua influência na América Latina no passado, tivemos três ataques terroristas no país. Dois em Buenos Aires e um no Panamá." Buenos Aires foi alvo de dois ataques, em 1992 e 1994. O primeiro deles, contra a embaixada de Israel, deixou 29 mortos. O segundo atentado teve como alvo o prédio da Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA) e deixou 85 mortos. Um dia depois do ataque de 1994 em Buenos Aires, a explosão de um avião no Panamá matou todas as 21 pessoas a bordo. Entre os passageiros, 12 eram judeus. O incidente foi oficialmente classificado como ato terrorista por Israel e EUA. A BBC procurou a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República sobre um posicionamento em relação às declarações, mas não obteve resposta. Entre junho de 2020 e julho de 2022, o Brasil registrou uma denúncia de antissemitismo por semana, segundo levantamento feito pelo relatório O Antissemitismo durante o governo Bolsonaro. O documento, assinado por quatro ativistas e acadêmicos brasileiros de longa trajetória no estudo e monitoramento do antissemitismo no país, fala em 104 "acontecimentos antissemitas" no Brasil ao longo de mais de 700 dias. Os pesquisadores apontaram para uma exacerbação do antissemitismo em paralelo a manifestações de caráter nazifascista no Brasil, inclusive por parte de integrantes de postos governamentais. Diversos episódios são listados no relatório como indicativos desse comportamento por membros do governo. Um dos casos apontados aconteceu em 2020, quando Jair Bolsonaro e assessores beberam um copo de leite durante uma live. "Beber leite em público é um símbolo dos neonazistas. Eles defendem uma 'teoria' (obviamente parte da pseudociência), que afirma que somente indivíduos da raça ariana seriam capazes de tolerar lactose enquanto adultos. Portanto, em manifestações, eles tomam galões de leite e 'se orgulham' disto", diz o relatório. Em outro episódio mais recente, apoiadores de Bolsonaro fizeram uma saudação nazista durante execução do Hino Nacional em uma manifestação a favor da intervenção militar em Santa Catarina. O caso é investigado pelo Ministério Público. - Este texto foi publicado em
2023-02-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c9wdd7kx1n8o
brasil
Reajuste do salário mínimo: confira os valores em outros 40 países
Em maio, o salário mínimo no Brasil vai passar de R$ 1.302 para R$ 1.320. É um valor insuficiente para comprar duas cestas básicas em 11 capitais brasileiras em janeiro de 2023, segundo levantamento do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos). Em setembro do ano passado, o mesmo Dieese calculou também que o valor base para sustentar uma família de quatro pessoas no país seria de R$ 6.298,91 — é uma conta que considera itens como alimentação, educação, higiene, lazer, moradia, saúde, vestuário, transporte e até previdência. E como é o salário mínimo em outros países? Primeiro, é importante ressaltar que é difícil fazer uma comparação entre diferentes locais em valores nominais. É um quadro mais complexo, com diversos fatores a serem levados em consideração — como o poder de compra em cada país. Fim do Matérias recomendadas "O primeiro item para comparação é a paridade do poder de compra. Depois poderia-se checar o mínimo em relação ao salário médio ou mediano do país. Na Carta Social Europeia o mínimo é entre 50%-60% do salário do país", diz Carlos Alberto Ramos, professor do Departamento de Economia na Universidade de Brasília (UnB). Naercio Menezes Filho, economista e professor no Insper, diz que "o ideal é comparar salário mínimo com salário médio [que está em R$ 2.700 no Brasil]. Por esta métrica, o Brasil não está mal. Dá para aumentar mais um pouco, mas com cuidado para não causar inflação e aumentar muito o gasto público". O salário mínimo brasileiro, na conversão em dólar, fica em US$ 250. Na América Latina, o maior valor pago na região está na Costa Rica (US$ 603). Veja um levantamento dos mínimos latino-americanos em 2023 feito pelo site Bloomberg Línea: Segundo o Bloomberg Línea, em média o reajuste na região foi de 8% entre os países que já definiram seus aumentos. Esse é um ponto importante porque a inflação, no mundo todo, tem sido uma preocupação com a corrosão que provoca sobre salários de uma forma geral. Já na África do Sul, parceiro do Brasil nos Brics, a projeção para 2023 é de que o mínimo fique aproximadamente em US$ 210. Na Europa, o maior valor do mínimo está na pequena Luxemburgo, com o equivalente a US$ 2.545. Veja a seguir a compilação da Eurofound, agência da União Europeia, com os valores de 2023: Áustria, Dinamarca, Finlândia, Itália e Suécia não aparecem na lista porque não têm um salário mínimo definido por lei. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Nos Estados Unidos, o valor federal está em US$ 7,25 por hora ou US$ 1.160 mensais. É o mesmo piso desde 2009. Protestos ocorrem periodicamente reivindicando que esse valor passe para US$ 15/hora. Muitos Estados norte-americanos (e cidades também) adotam seu próprio mínimo. O Estado de Washington, por exemplo, oferece o maior valor, US$ 15,74 por hora. Já na capital do país, a municipalidade de Washington fixará o salário no ano de 2023 em US$ 16,10 a hora. A China também tem um sistema que varia conforme a região. O Ministério de Recursos Humanos e Segurança Social do governo chinês divulgou no começo do ano os valores para cada uma das 31 províncias. Xangai tem o maior valor, com US$ 400 ao mês e, no final da tabela, está a província de Lianongue, com US$ 224 mensais. Os governos locais definem esses valores levando em consideração pontos como custo de vida, desenvolvimento econômico da região, gastos com moradia, entre outros.
2023-02-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cqv880yvedzo
brasil
Sob Bolsonaro, mortes de yanomami por desnutrição cresceram 331%
O número de mortes por desnutrição de indígenas da etnia yanomami aumentou 331% nos quatro anos do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em comparação com os quatro anos anteriores. O aumento está registrado em dados obtidos com exclusividade pela BBC News Brasil por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). Entre 2019 e 2022, 177 indígenas do povo yanomami morreram por algum tipo de desnutrição, segundo dados do Ministério da Saúde. Nos quatro anos anteriores, foram 41 mortes. O crescimento pode ser ainda maior, porque os dados referentes a 2022 ainda estão sendo contabilizados. Nas últimas semanas, o governo federal decretou estado de emergência por conta do agravamento das condições de saúde dos yanomami. Fim do Matérias recomendadas A decisão foi tomada em meio à forte repercussão nacional e internacional gerada por imagens de indígenas da etnia visivelmente desnutridos. Os dados liberados pelo Ministério da Saúde mostram a quantidade e as causas das mortes registradas nos Distrito Sanitários Especiais Indígenas (DSEI), órgãos responsáveis pela saúde dos povos originários. As informações vão de 2013 a 2022. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em 2013 e 2014, as mortes de yanomami por desnutrição totalizaram oito e seis, respectivamente. Na somatória dos quatro anos seguintes (2015 a 2018), nos governos de Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB), o total foi de 41. Nos quatro anos seguintes, já sob Bolsonaro, o número foi de 177. Os dados indicam um salto no número de mortes por desnutrição entre os yanomami já no primeiro ano do governo Bolsonaro, 2019. Em 2018, foram sete mortes registradas por alguma forma de desnutrição. No ano seguinte, esse número aumentou para 36. Em 2020, o número saiu de 36 para 40 e atingiu um pico em 2021, quando 60 indígenas yanomami morreram por algum tipo de desnutrição. Em 2022, ano cujos dados ainda estão sendo totalizados, o número de mortes por desnutrição chegou a 40. Ainda de acordo com os dados, em 2022, a desnutrição foi a segunda maior causa de mortes entre os yanomami, perdendo apenas para as pneumonias, que somaram 70 óbitos e que também estão ligadas a condições precárias de saúde. Membros do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) classificaram a situação dos yanomami como um "genocídio" e acusaram a gestão anterior de não agir para evitar a crise humanitária. Nas suas redes sociais, o ex-presidente Bolsonaro negou descaso em relação aos yanomami e se referiu ao caso como uma "farsa da esquerda". No final de janeiro, o governo federal deu início a uma operação que envolve a transferência de indígenas em piores situações de saúde para hospitais de Boa Vista, capital de Roraima, Estado onde fica a maior parte da Terra Indígena Yanomami. Além disso, o governo também deu início a uma operação para retirar aproximadamente 20 mil garimpeiros da área. A ação conta com tropas das Forças Armadas, Força Nacional de Segurança Pública, agentes do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e Polícia Federal. O aumento no número de mortes por desnutrição entre os yanomami vem sendo relacionado ao aumento da atividade garimpeira na terra onde eles vivem. A Terra Indígena Yanomami tem 9,6 milhões de hectares e abriga pouco mais de 28 mil indígenas. A área é conhecida por suas grandes reservas de metais preciosos como ouro e outros minerais de interesse industrial como a cassiterita, matéria-prima do estanho. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que o aumento no número de mortes por desnutrição entre os yanomami aconteceu ao mesmo tempo em que foi registrado um crescimento no desmatamento da terra indígena. Entre 2019 e 2022, durante o governo Bolsonaro, foram desmatados 47 quilômetros quadrados de floresta na área. A taxa é 222% maior do que a registrada nos quatro anos anteriores, quando o desmatamento foi de 14,6 quilômetros quadrados. Segundo pesquisadores, a principal fonte de desmatamento na Terra Indígena Yanomami é o garimpo ilegal. Para Fernanda Simões, coordenadora de nutrição do Instituto Fernando Figueira (IFF), entidade vinculada à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a desnutrição observada entre os yanomami tem relação direta com o avanço do garimpo. "Os yanomami vivem, basicamente, da caça e da pesca. Os garimpos causam desmatamento e destroem os cursos d'água. Dessa forma, a caça fica mais escassa porque os animais fogem e os rios ficam poluídos, especialmente pelo uso do mercúrio durante o processo de extração de ouro", afirmou Simões. "A desnutrição que a gente observa entre eles é pela escassez de alimento. Os indígenas precisam passar muito mais tempo na mata atrás da caça e ela não vem na mesma quantidade que vinha antes. Isso afeta toda a comunidade", explicou a nutricionista. Os dados também mostram que os grupos mais afetados pelas mortes por desnutrição foram crianças e idosos. Em 2022, por exemplo, das 41 mortes por desnutrição, 25 foram entre pessoas acima de 60 anos e 11 entre crianças de zero a nove anos de idade. Fernanda Simões explica que esses dois grupos são os mais vulneráveis à escassez de alimentos. "Crianças e idosos são mais afetados porque têm poucas condições de buscar os alimentos por si mesmos e porque, na maioria dos casos, eles já estão com seus corpos fragilizados", disse a especialista. Fernanda Simões explicou que a desnutrição leva à morte porque a ausência de nutrientes faz com que o corpo humano use suas reservas de gordura e, depois, de músculo, para manter as funções básicas do organismo. À medida que nutrientes e sais minerais não chegam às células, o corpo humano começa a "falhar". "A gente observa falhas renais, hepáticas e uma dificuldade grande do corpo dar respostas imunológicas a infecções. Isso acaba abrindo as portas para diversos tipos de agravamentos que levam ao óbito", disse a especialista. Para Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), o aumento nas mortes por desnutrição no território yanomami reflete “um desmonte nas políticas indigenistas no governo Bolsonaro”. Tuxá afirma que, no último governo, os yanomami tiveram mais dificuldades para acessar serviços de saúde e viram as condições ambientais de seu território se deteriorarem por conta da presença dos garimpeiros. “O governo tinha ciência das coisas que estavam acontecendo lá, não dar assistência e apoio ao povo yanomami foi uma decisão política”, afirma. Para ele, as ações do governo Bolsonaro frente à situação dos yanomami configuram “crime de genocídio”. A BBC tentou contato com Marcelo Xavier, que presidiu a Funai entre julho de 2019 e o fim do governo Bolsonaro, para ouvi-lo sobre o aumento nas mortes por desnutrição e as críticas à sua gestão na fundação. Xavier não respondeu a duas tentativas de contato pelo Twitter. Em 29 de janeiro, Bolsonaro usou o Twitter para se defender de críticas às suas políticas para os indígenas. Ele escreveu que “nunca um governo dispensou tanta atenção e meios aos indígenas” como no dele. No mesmo tuíte, o ex-presidente sugeriu que a desnutrição entre indígenas é um problema antigo ao publicar a foto de uma criança desnutrida que constou do relatório de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou o tema em 2008.
2023-02-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw011x9rpldo
brasil
As fascinantes histórias de 7 dinossauros encontrados no Brasil
Foi a partir de uma exposição organizada em 2006 na Oca, no Parque Ibirapuera, em São Paulo, que o paleontólogo Luiz Eduardo Anelli identificou um incômodo. "Poxa, porque a Argentina já descreveu 150 espécies de dinossauros e o Brasil só tem 23?", perguntou à época. Com esse questionamento, nasceu a ideia de escrever um livro sobre os grandes répteis do passado que viveram onde identificamos hoje o território brasileiro. Porém, passados alguns anos da primeira edição do texto, a obra já estava obsoleta. Fim do Matérias recomendadas "Nesses últimos 15 anos, o número de dinossauros identificados no Brasil se multiplicou e eu precisava fazer uma atualização", conta o pesquisador, que também é diretor da Estação Ciência da Universidade de São Paulo (USP). Surgiu, assim, o livro Novo Guia Completo dos Dinossauros do Brasil, lançado recentemente pela Editora da USP (Edusp) e pela Editora Peirópolis. A obra traz detalhes sobre 54 espécies catalogadas de dinos "brasileiros" e explica todas as evidências sobre o surgimento do planeta e da vida ao longo de milhões de anos. As ilustrações que acompanham o texto foram feitas pelo paleoartista Julio Lacerda. Vale lembrar, como mostra a escala abaixo, que os dinossauros foram os seres dominantes durante a Era Mesozoica, que compreende um período que vai de 252 milhões a 65,5 milhões de anos atrás. Em entrevista à BBC News Brasil, Anelli destacou sete espécies descritas no Brasil com características interessantes e curiosas, como você confere ao longo da reportagem. Há um motivo para o Staurikosaurus pricei ser a estrela da capa do livro: ele é considerado o dinossauro mais antigo já encontrado no mundo. As datações de rochas próximas revelam que esse animal viveu há 233 milhões de anos. Com isso, ele é cerca de 1,8 milhão de anos mais antigo que alguns outros dinos descobertos na Argentina, como o Eoraptor e o Herrerasaurus. "No que hoje conhecemos como Rio Grande do Sul possivelmente nasceram as primeiras linhagens de dinossauros que iriam colonizar e dominar o mundo ao longo dos próximos 170 milhões de anos", estima Anelli. Atualmente, o único fóssil conhecido do Staurikosaurus está no Museu de Anatomia Comparada da Universidade Harvard, nos Estados Unidos. Anelli destacou o Buriolestes schultzi por causa de uma aparente contradição. "A comunidade científica ficou um tanto chocada ao saber que o Buriolestes era um bípede carnívoro/faunívoro que deu origem às linhagens posteriores dos dinossauros quadrúpedes herbívoros", resume. Os especialistas tiveram a sorte de encontrar dois esqueletos praticamente completos dessa espécie. Elas estavam com o crânio preservado, inclusive com as massas do que foram os cérebros desses animais no passado. "Com isso, foi possível obter imagens de tomografia para conhecer todas as formas, protuberâncias e características do cérebro dessa espécie", diz. "“Descobrimos assim o 'tataravô' dos dinossauros pescoçudos, então esse é um patrimônio da biologia e da história natural", classifica o paleontólogo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Catalogado em 2020, o Ubirajara jubatus também é considerado uma peça rara. "Ele é o primeiro dinossauro não voador encontrado na região do Crato, no Ceará, e possui uma penugem, ou penas", descreve Anelli. "Além disso, o Ubirajara tinha dois pares de penas longas no dorso, muito parecidas com aquelas que são observadas hoje nas aves-do-paraíso [típicas da Oceania]", complementa. De acordo com o cientista, uma possibilidade é que essas estruturas servissem para vibrar e chacoalhar durante os ritos de acasalamento — característica que, diga-se, algumas aves mantêm até os dias atuais. E esse não é o único comportamento que aproxima aves e dinossauros: ambos dormem (ou dormiam) com o pescoço enrolado no corpo, constroem (ou construíam) ninhos e botam (ou botavam) ovos com características similares. Infelizmente, o Ubirajara está envolvido numa polêmica. "Ele foi levado para a Alemanha de modo suspeito e os pesquisadores, bem como o museu que hoje o hospeda, se recusam a devolvê-lo", informa o livro. "Mas há rumores de que o Ubirajara está voltando para casa em breve", completa. Esse gigante foi caracterizado a partir de dois fragmentos: a extremidade superior do focinho e um pedaço da maxila esquerda. Isso porque as rochas onde estavam esses fósseis, numa ilha no Estado do Maranhão, sofrem com os efeitos das ondas e das marés — daí boa parte do material se degradou. Anelli chama a atenção para o fato de que, à época em que o Oxalaia quilombensis existiu, a América do Sul e a África tinham acabado de se separar (antes, elas integravam um supercontinente conhecido como Gondwana). Por isso, há muitas similaridades entre esse dino brasileiro e alguns outros que foram descobertos na costa africana. "Ao que tudo indica, o Oxalaia era um dinossauro pescador", complementa o antropólogo. O nome científico da espécie faz uma referência à divindade afro-brasileira Oxalá e aos assentamentos quilombolas maranhenses. Há 85 milhões de anos, a região que hoje conhecemos como o interior de São Paulo não era um dos lugares mais fáceis para se viver. Recursos como água e comida eram escassos — e os poucos animais que se aventuravam por essas terras precisaram se adaptar. Um exemplo desse processo é o Ibirania parva, um dinossauro pescoçudo nanico. "Ele muito provavelmente reflete um momento do cretáceo que tinha um clima muito seco, com pouca disponibilidade de alimentos", avalia Anelli. Por uma estratégia evolutiva em um tempo de vacas magras, o Ibirania era pequenino, ainda mais quando comparado a outros dinossauros que surgiram em épocas posteriores. O nome Berthasaura leopoldinae faz uma homenagem tripla. Primeiro, à cientista e ativista brasileira Bertha Lutz. Segundo, à imperatriz Leopoldina, esposa de D. Pedro 1º. Terceiro, à escola de samba carioca Imperatriz Leopoldinense, que fez uma homenagem ao Museu Nacional no carnaval de 2018. Anelli descreve a Berthasaura no livro como uma "gema preciosa". "Ela era um dinossauro caçador, mas sem dentes", resume. "Ainda temos muito a descobrir sobre essa espécie, que tinha hábitos de vida e de caça muito diferentes dos dinossauros tradicionais, cheios de dentes duros", complementa. É provável que a boca da Berthasaura fosse revestida de um "bico córneo de bordas afiadas semelhante ao das tartarugas". Eis o maior dinossauro já encontrado em território brasileiro. "O Uberabatitan ribeiroi era enorme, chegava a 26 metros de comprimento", estima Anelli. "Isso dá quase o tamanho de dois ônibus grandes enfileirados." Ele é um dos titanossauros mais completos conhecidos de todo o Brasil e superou em um metro o Austroposeidon magnificus, que antes era considerado o maior do país. Como mencionado no início da reportagem, Anelli ficou intrigado com a disparidade no número de espécies de dinossauros descritas no Brasil e na Argentina. O paleontólogo destaca três razões principais para essa diferença. "A primeira delas é que, durante o Mesozoico [a era dos dinossauros], o território da atual Argentina sempre esteve colado ao oceano, com acesso à umidade e aos recursos básicos para a sobrevivência", contextualiza. "O Brasil, por sua vez, ficava na parte interna do supercontinente Gondwana. Normalmente, essas regiões centrais são tomadas por desertos, com déficit de água e pouca biodiversidade", completa. Segundo ponto: com o passar dos milhões de anos e a separação de América do Sul e África, a situação se inverteu. O território brasileiro passou a receber toda a umidade que vinha do novíssimo Oceano Atlântico e virou uma espécie de oásis super tropical. Na contramão, o surgimento da Cordilheira dos Andes bloqueou a entrada de umidade para a Argentina a partir do oceano. Com isso, a região se transformou em um deserto. E essa troca de papéis também facilitou a preservação de fósseis do lado argentino. "Se você viajar pela Patagônia, poderá ver diversas rochas expostas. O deserto preserva esse material", explica Anelli. "Agora, ao pegar um carro e cruzar o interior de São Paulo, é possível se deparar com quilômetros de canavial e matagal. Isso porque a camada de solo com material orgânico é muito espessa, o que dificulta a preservação e a descoberta dos fósseis." "Para completar, o interesse pela paleontologia começou muito antes entre os argentinos. Temos dinossauros descritos por lá desde o final do século 19", diz o pesquisador. No Brasil, por sua vez, essa área da ciência começou a ganhar mais fôlego a partir dos anos 1970, e muitas das espécies descritas no novo livro de Anelli foram descobertas apenas na última década. Outro aspecto que levanta a curiosidade dos cientistas é a baixa quantidade de representantes "brasileiros" no Período Jurássico (que vai de 201 milhões a 145 milhões de anos atrás). "O Jurássico é um intervalo de mais de 50 milhões de anos em que os dinossauros explodiram de diversidade no mundo inteiro. E em nosso país, só conhecemos duas ou três espécies", conta Anelli. A primeira delas é um nodossaurídeo, do qual se encontrou uma trilha de pegadas no Rio Grande do Sul. Os outros dois, que ainda são objeto de debates entre os paleontólogos e têm evidências muito escassas, são o carcarodontossauro e um dilofossaurídeo, detectados na divisa entre Pernambuco e Bahia. As mudanças geológicas estão mais uma vez por trás desse "sumiço". "Os fósseis só ficam 'registrados' nas rochas quando as regiões dos continentes estão afundando. Isso abre espaço para o acúmulo de sedimentos por cima do terreno", explica o paleontólogo. "Mas esses movimentos geológicos também acontecem no modo contrário: as rochas podem emergir. Quando isso acontece, as camadas mais antigas são expostas às intempéries, à chuva, ao calor, ao frio e à erosão. Com isso, o registro fóssil é apagado." E era justamente isso o que estava acontecendo no jurássico "brasileiro": as rochas estavam em movimento de subida. "Ou seja, os dinossauros viveram no Brasil durante esse período, mas a geologia não 'escreveu' essa história nas rochas", completa. Já no momento posterior, durante o Cretáceo (de 145 a 65,5 milhões de anos atrás), a plataforma do território brasileiro começou a ceder — por causa da separação do supercontinente Gondwana e uma série de outros fenômenos. Com isso, os sedimentos se acumularam, ficaram "registrados" nas rochas e podem ser encontrados pelos seres humanos em anos mais recentes. Por fim, Anelli lamenta a pouca atenção dada aos dinossauros brasileiros. "Deveríamos ter à venda bonecos de todas essas espécies", acredita. "Os dinossauros são um dos temas da ciência que mais atrai a atenção das pessoas. Conseguimos montar exposições e levar centenas de milhares aos museus e espaços públicos", relata. Anelli lembra que todas as grandes cidades da América do Norte e da Europa possuem "um grande museu lotado de dinossauros". O pesquisador, que tem planos de criar a "rota dos dinossauros do Estado de São Paulo", entende que é possível explorar e popularizar todos esses conhecimentos paleontológicos para a população. "Nós precisamos aprender a tirar proveito da nossa pré-história, que é fascinante. Temos descobertas super legais, mas não ensinamos nada disso nas escolas", conclui.
2023-02-16
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4nz8dlzmppo
brasil
Brasil bate recorde de endividados: 'Com nome sujo, a gente não é nada'
Adriana da Silva Lins, de 47 anos e moradora da Vila Ema, na zona leste de São Paulo, trabalhava como ajudante geral na cozinha de uma escola. Ela perdeu o emprego e, sem renda em meio à pandemia, viu as dívidas se acumularem. “É dívida de cartão, dívida de banco. Eu vendia cosméticos e também fiquei em dívida com isso, porque não conseguia receber das minhas clientes e não consegui pagar pelos produtos da Boticário, Natura, Avon. Foi virando uma bola de neve”, conta a mãe de três filhos. Atualmente fazendo bicos como diarista e recebendo o Auxílio Brasil há dois meses, ela estima suas dívidas em cerca de R$ 20 mil – o que inclui também contas de luz em atraso. Com a mãe doente, a prioridade é comprar remédios e, assim, as dívidas vão ficando para depois. “Isso faz eu me sentir péssima. Eu sempre gostei de ter minhas contas em dia, de ter meu nome limpo. E, de repente, você se vê um nada. Porque, quando a gente não tem o nome limpo, a gente não é nada”, afirma. A família de Adriana é uma de milhões de famílias brasileiras endividadas e inadimplentes – isto é, com dívidas em atraso. Fim do Matérias recomendadas Os dois indicadores bateram recordes em 2022, segundo a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). E, com juros elevados e os mais pobres recorrendo ao crédito para fazer frente a despesas do dia a dia, o recorde poderá ser quebrado novamente este ano, prevê a entidade empresarial. Para endereçar o problema, o governo federal espera lançar ainda em fevereiro o programa Desenrola, de renegociação de dívidas. Os detalhes do programa – uma das promessas de campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) – ainda não foram divulgados, mas a expectativa é de que a iniciativa priorize cerca de 40 milhões de brasileiros endividados com renda até dois salários mínimos (R$ 2.604, em valores atuais). O governo também pretende lançar ainda este mês o novo Bolsa Família, que deve substituir o programa Auxílio Brasil, criado pelo governo Jair Bolsonaro (PL). A mudança preocupa famílias de baixa renda que se endividaram com o empréstimo consignado do Auxílio Brasil – cujas parcelas são descontadas diretamente do benefício pago pelo governo federal. Elas temem mudanças no Cadastro Único e a possibilidade de serem excluídas do programa, ficando com a dívida do consignado para pagar. Em 2022, a cada 100 famílias brasileiras, 78 estavam endividadas. O patamar é o mais elevado da série histórica da Peic, com início em 2010. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Entre 2020 e 2022, a proporção de famílias endividadas passou de 66,5% para 77,9%, uma alta de 11,4 pontos percentuais. No período, a taxa básica de juros da economia brasileira (Selic) foi elevada de 2% para os atuais 13,75% – nível que tem sido motivo de embates entre o governo e o Banco Central. Izis Ferreira, economista da CNC, afirma que três fatores contribuíram para esse recorde de endividamento em 2022: a alta da inflação até a metade do ano, que corroeu o poder de compra das famílias; o incentivo crescente ao uso do cartão de crédito, através da oferta de novos produtos e serviços por bancos e fintechs; e, para os mais ricos, a demanda represada por serviços, como viagens e compra de passagens aéreas, geralmente pagos no cartão. “A face negativa desse maior endividamento é a inadimplência, que também chegou a proporções recordes”, observa a analista. Em 2022, a proporção de famílias brasileiras com contas em atraso chegou a 28,9%, também maior patamar da série histórica da Peic. “Quando você tem mais dívidas no seu orçamento, num momento em que ainda tem uma inflação que incomoda, é mais difícil gerir esse orçamento e pagar tudo em dia”, diz Ferreira. “O desafio para o consumidor hoje é pagar tudo isso num cenário de juros altos, porque os juros elevados aumentam o valor da dívida. Eles dificultam a renegociação e o pagamento de dívidas atrasadas. E esse contexto deve permanecer no ano de 2023”, prevê. Segundo a economista, os juros de mercado – que chegaram a uma média de 52,1% ao ano para pessoas físicas em 2022, segundo dados do Banco Central – vão continuar elevados, devido à alta da inadimplência, do risco de não pagamento e da perspectiva de desaceleração da atividade econômica e do emprego neste ano. “Nesse contexto de juros altos, teremos em 2023 mais famílias com dificuldades para pagar dívidas em dia e aquelas que já estão atrasadas vão enfrentar muita dificuldade de renegociar.” Segundo a pesquisa da CNC, o endividamento tem rosto no Brasil: de mulher, com menos de 35 anos, ensino médio incompleto e moradora das regiões Sul ou Sudeste. Em 2022, do total de mulheres, 79,5% se endividaram, comparado a 76,7% dos homens. Entre as famílias lideradas por pessoas sem ensino médio completo, 31,2% tinham dívidas em atraso, comparado a 25,8% das famílias de pessoas com segundo grau completo. “As mulheres trabalham mais na informalidade e em tempo parcial, e muitas são chefes de famílias, então elas têm uma condição de vulnerabilidade no mercado de trabalho maior do que os homens”, observa Izis Ferreira, da CNC. “Com renda instável, o risco de atrasar dívidas é maior. E, como as mulheres usam modalidades de crédito de pior qualidade, quando essas dívidas atrasam, elas vão ficando muito caras.” Para as mulheres, a principal forma de endividamento é o cartão de crédito e o carnê de loja, observa a economista. E o perfil das dívidas no cartão revela como essa modalidade de crédito tem sido usada como uma extensão do orçamento das famílias: das dívidas com cartão de crédito, 65% são referentes a compras no supermercado, e 41% a compra de remédios ou tratamento médico, segundo o Perfil e Comportamento do Endividamento Brasileiro 2022, da Serasa. “O cartão é um crédito de acesso muito fácil, oferecido inclusive pelo varejo e com limites baixos, que facilitam esse acesso”, observa Patrícia Camillo, gerente da Serasa. “Ele ainda é visto como um valor adicional ao orçamento mensal. As pessoas adquirem o cartão para fazer compras básicas, já considerando que, sem o cartão, o orçamento não é suficiente. Esse comportamento é o perigo do cartão e o que leva ele a ser o Top 1 das dívidas.” Em 2022, o juro médio cobrado pelos bancos no rotativo do cartão chegou a 409,3% ao ano, uma alta de 61,9 pontos percentuais em relação a 2021, quando o juro foi de 395,4%. Assim, essa modalidade de crédito é uma das mais caras do mercado, junto ao cheque especial. Ainda segundo os dados da Serasa, o país tinha 69,4 milhões de inadimplentes em dezembro de 2022 e o valor médio das dívidas por pessoa era de R$ 4,5 mil, somando um total de R$ 312 bilhões em dívidas em atraso. Em 2022, um outro fator contribuiu para o aumento do endividamento entre os mais pobres no Brasil: a criação, às vésperas da eleição, do empréstimo consignado do Auxílio Brasil. O empréstimo foi liberado em 10 de outubro, entre o primeiro e o segundo turno das eleições presidenciais em que o então presidente Jair Bolsonaro (PL) tentava a reeleição. Somente naquele mês, a modalidade movimentou mais de R$ 5 bilhões, segundo o Banco Central. Quem tomou o empréstimo consignado em outubro, desde novembro está tendo seu Auxílio Brasil descontado. Quem recebia R$ 600, agora recebe R$ 440 após o pagamento da parcela mensal. “Está sendo difícil, mas eu tinha ciência que ia estar sendo descontado”, diz Elisângela Cruz César, de 43 anos e moradora de uma área invadida na zona norte de São Paulo. Dona de casa e mãe de seis filhos, Elisângela conta que tomou o empréstimo por conta do desemprego do marido, que é açougueiro, mas perdeu o trabalho durante a pandemia. Ainda desempregado, os dois têm no auxílio descontado agora sua única fonte de renda. “A gente só não está passando necessidade mesmo porque tem ajuda, tem cesta básica”, afirma. Elisângela conta que nunca tinha pegado um empréstimo na vida, o consignado do Auxílio foi sua primeira vez no mercado de crédito, já que nem cartão de crédito ela usa. “Todo mundo que tinha o benefício e estava passando necessidade foi [fazer o empréstimo], nem pensou, porque quem tem criança não vai querer passar dificuldade. Era minha única opção, então eu fui e fiz”, lembra. “Mas agora é bem preocupante, porque mudou o presidente e a regularização do CadÚnico [Cadastro Único] vai mudar muita coisa. Vai que de repente cancela, faz alguma coisa no benefício? Aí ou a gente paga [a dívida do consignado] por fora, ou então acaba sujando o nome da gente, que vai ficar com uma dívida nas costas”, diz a mãe de família. No início deste mês, o novo governo mudou as regras do consignado para beneficiários do Auxílio Brasil. Com a mudança, o desconto mensal máximo do benefício para pagamento das parcelas passa a ser de 5%. Antes, chegava a 40%. A taxa de juros agora não vai poder passar de 2,5% ao mês e o número de parcelas não pode ser superior a seis. Anteriormente, o limite de juros era de 3,5% ao mês e o número máximo de parcelas chegava a 24. As novas regras, no entanto, valem apenas para novos empréstimos. Para além do nome sujo – que dificulta a obtenção de novos créditos e financiamentos –, o aumento da inadimplência no país também tem efeito sobre a saúde e os relacionamentos familiares dos brasileiros. Segundo a pesquisa da Serasa: Tatiane*, de 35 anos, está enfrentando essa realidade. Antes empregada com carteira assinada, ela deixou o emprego em meio a uma gravidez de risco e agora trabalha por conta própria, vendendo roupas e produtos naturais. De um ano para cá, suas vendas diminuíram e ela acabou se endividando em três cartões e com o fornecedor dos produtos que vende. “Com tudo isso, eu comecei a ter uma ansiedade muito forte, que eu não tinha. A ponto de não conseguir dormir, sentir dor no peito, ficar chorando o tempo todo”, conta a trabalhadora autônoma. “Eu tenho duas crianças pequenas, as contas vão chegando. Nada espera e é muito complicado a gente ver as contas vencendo, as crianças precisando das coisas. Você começa a entrar em desespero, de ver que você não está conseguindo arcar com as obrigações.” Para Izis Ferreira, economista da CNC, Adriana, Elisângela e Tatiane são exemplos das pessoas que deveriam ser priorizadas no novo programa de renegociação de dívidas do governo federal. “Quando falamos do perfil dos mais endividados e dos que mais atrasam dívidas é justamente para entendermos quem é preciso priorizar. Porque não adianta fazer um programa que tente trazer todo mundo de uma vez, será preciso dar preferência aos públicos mais vulneráveis, que têm dívidas atrasadas há mais tempo e estão sujeitas aos juros maiores”, diz a economista. “São as famílias com dívidas atrasadas no cartão de crédito, as mulheres, as pessoas de menor renda, de menor escolaridade”, enumera. “Para garantir o consumo futuro das famílias, que é um dos motores do crescimento, temos que resolver o problema da inadimplência e do endividamento.” Na segunda-feira (14/2), o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que o desenho do programa Desenrola já está pronto para ser analisado por Lula. Caso seja aprovado pelo presidente, a expectativa é de que possa ser lançado ainda em fevereiro, depois do Carnaval. Questionado pela BBC News Brasil sobre a provável data de lançamento e detalhes do novo programa, o Ministério da Fazenda afirmou apenas que “ainda não há uma previsão e nem detalhes, faremos uma ampla divulgação quando a data for definida”. Segundo informações do jornal O Estado de S. Paulo, o programa deve focar quem ganha até dois salários mínimos e tem dívidas de até R$ 5 mil, atrasadas há mais de 180 dias em 31 de dezembro de 2022. O Tesouro Nacional deve aportar R$ 20 bilhões em um fundo garantidor para as renegociações. A ideia é que o banco escolhido pague a dívida ao credor e então faça um novo empréstimo para o cliente, com desconto. A taxa de juros deverá ser de até 1,99% ao mês (equivalente a 26,7% ao ano). Caso o cliente não pague, terá o nome sujo de novo e o banco pode apresentar o contrato ao Tesouro, que honra a garantia de 100% do valor. Ainda segundo o jornal, o programa deverá ter duas fases, a primeira voltada aos credores (bancos, varejistas, empresas de telefonia e de serviços públicos), que deverão manifestar o interesse em participar do programa e informar quanto de desconto estão dispostos a conceder sobre a dívida que têm a receber. A partir dessa manifestação de interesse, será feita a seleção das empresas participantes do programa através de um modelo de leilão. Na segunda fase do programa, os devedores poderão acessar um site a ser criado pelo governo para verificar quais dívidas podem ser quitadas sob as regras do Desenrola. O devedor poderá escolher o que pagar e a instituição com quem vai fazer a renegociação. Adriana, a mãe de três filhos da zona leste de São Paulo com dívidas no cartão de crédito e contas de luz atrasadas, vê o programa com bons olhos e espera poder participar da renegociação. “Se eu puder participar, vou com certeza. Tudo que eu mais quero é ter meu nome limpo. A coisa mais importante que a gente pode ter é nossa dignidade”, diz a diarista. *O sobrenome da entrevistada foi omitido a pedido para preservar sua identidade.
2023-02-16
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c257e50r9rlo
brasil
As falhas em rede de proteção à infância no caso da menina de 12 anos grávida pela 2ª vez
No início deste mês, um exame de DNA trouxe novas provas no caso da menina de 12 anos do Piauí grávida pela segunda vez após sucessivos estupros, segundo entidades de direitos humanos que acompanham o caso. Feito a pedido da Polícia Civil, o exame mostrou indícios de que o abuso sexual foi cometido por um tio. Moradora de uma área rural no Piauí, a menina já havia engravidado uma vez após sofrer um estupro. A polícia chegou a investigar o caso, mas, como divulgou na época, a investigação foi arquivada após o homicídio de um suspeito - um primo maior de idade da criança. O homicídio também não foi solucionado. Já na primeira gravidez, a menina teria direito ao aborto - previsto por lei em casos de estupro. Ela chegou a procurar o serviço de saúde bem no início da gravidez, mas, segundo relato da mãe na época, foi desencorajada a realizar o procedimento. Em 2022, o Conselho Tutelar denunciou que, fora da escola, com 11 anos e um filho de colo, a menina engravidou novamente como decorrência de outra violência sexual. Fim do Matérias recomendadas Diante do novo crime, a Polícia Civil desarquivou o caso e fez o pedido de testagem do DNA, que indicou o tio como autor do crime, segundo entidades de direitos humanos - os órgãos oficiais não têm divulgado informações com a justificativa de que o caso está em sigilo de Justiça. Nesta gravidez, a menina também não teve garantido o direito ao aborto legal - o procedimento havia sido autorizado em outubro de 2022 pela 2ª Vara da Infância e da Juventude de Teresina, mas a decisão foi suspensa em dezembro pelo Tribunal de Justiça do Piauí a pedido da Defensoria Pública do Estado e da mãe da menina. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A situação tem sido trazida a público por entidades de direitos humanos que acompanham o caso. "O sigilo de Justiça é necessário para proteger a identidade da criança, mas não impede as autoridades de prestar contas pela forma como têm agido no caso", afirma a advogada e ativista Juliana Cesareo Alvim, da Center for Reproductive Rights, entidade internacional voltada para a defesa de direitos reprodutivos. Hoje, aos 12 anos, a menina tem um filho de um ano e está grávida novamente de 29 semanas. A Defensoria Pública divulgou que ela está afastada da família e morando em um abrigo municipal junto com o bebê. O tio está em prisão cautelar e os pais respondem na Justiça por negligência, segundo as últimas informações obtidas pela Comissão de Direitos Humanos da OAB-Piauí. Mas como a situação chegou a esse ponto? O que deveria ter sido feito pelas instâncias de proteção à infância? Veja a seguir, o papel de cinco instituições nesse caso. Embora o conceito de família possa passar a ideia de um ambiente em que, em tese, a criança estaria protegida, na prática, casos como o da menina do Piauí estão longe de ser exceção, explica a ativista de direitos humanos Luciana Temer, professora de direito constitucional da PUC-SP e diretora do instituto Liberta de enfrentamento à violência sexual contra crianças. "Este é um dos casos que vieram à tona, mas situações como essa são muito comuns", afirma a professora. "Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam que mais de 80% dos estupros de vulneráveis são praticados por parentes próximos." O caso da criança do Piauí é agravado pela extrema vulnerabilidade social da família, que é extremamente pobre, segundo o conselho tutelar. Mas o problema do abuso sexual por parentes ocorre mesmo famílias de maior poder aquisitivo. "A gente sabe que a casa não é o lugar mais seguro em todas as classes sociais", diz Temer. Os pais da menina se separaram entre um abuso e outro, segundo o que foi divulgado pelo conselho tutelar. A menina, junto com o bebê, foi morar com o pai e com a avó. A segunda gravidez foi descoberta quando o pai pediu ajuda do Conselho Tutelar para cuidar das crianças pois estava com dificuldades financeiras, de acordo com o que foi divulgado pela entidade. Atualmente, os pais respondem criminalmente por negligência, segundo informações obtidas pela OAB do Piauí. Apesar disso, eles ainda fizeram parte do processo de decisão sobre o aborto, já que a menina é muito nova e judicialmente não pode tomar a decisão. A decisão acabou ficando com a Justiça pois houve discordância entre os pais: o pai desejava o aborto e falou até com a imprensa sobre isso, mas a mãe da menina se posicionou contra. O atendimento recebido pela menina nas unidades do SUS (Sistema Único de Saúde) no Estado do Piauí é apontado por entidades de direitos humanos como um dos principais problemas. Como menor de idade e vítima de um estupro, a criança tinha direito ao aborto legal nos dois casos, sem necessidade de decisão judicial. Mas, ao procurar atendimento no SUS, a criança e a mãe não só não foram informadas dos seus direitos como não tiveram orientação adequada quanto aos enormes riscos de saúde de prosseguir com uma gravidez nessa idade, dizem as entidades. Segundo o relato da própria mãe, elas foram dissuadidas de fazer o procedimento. "O atendimento não foi adequado e não indicou nem o direito dela nem os riscos de prosseguir com a gravidez", afirma Juliana Cesareo Alvim, advogada do Center for Reproductive Rights e professora de direitos humanos na UFMG. Embora médicos individualmente possam alegar objeção de consciência para não fazer um aborto, o SUS tem o dever de fornecer o atendimento e a orientação adequada. "A legislação é muito clara e específica sobre o direito ao aborto legal. Não é dado a nenhum servidor de saúde desrespeitar (essa determinação)", explica Temer. Duas outras entidades que acompanham o caso apontaram que uma médica da coordenação do Samvis, o atendimento à vítimas, é pessoalmente contra o aborto - previsto em lei em casos de estupro. A BBC News Brasil questionou a Secretaria de Saúde do Piauí sobre a questão, mas não teve retorno até a publicação desta reportagem. A Polícia Civil chegou a abrir investigação sobre o primeiro caso de estupro, mas ela foi arquivada quando um suspeito - um primo maior de idade da vítima - foi vítima de homicídio. Após o segundo abuso, no entanto, o caso foi desarquivado e a polícia pediu teste de DNA, que apontou o tio como autor do crime. A BBC News Brasil questionou a Polícia Civil por que o exame não foi pedido na primeira investigação, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem. A Defensoria Pública é a entidade responsável por defender na Justiça os direitos de quem não tem condições de pagar por advogado. A menina teve uma defensora apontada pela Justiça para representá-la e o pai também recebe atendimento de um defensor. Mas o caso chamou a atenção por causa do envolvimento altamente incomum - e apontado como ilegal por advogados - de uma defensora que pediu para ser apontada como defensora do feto (nesta segunda gravidez da menina). Pela legislação brasileira, explica Cesareo, o direito à personalidade e à representação jurídica começa com o nascimento com vida. Não existe nenhuma previsão legal para que um feto tenha apontado um representante legal. No entanto, o pedido da defensora para ser representante do feto foi atendido pela 2ª Vara da Infância e da Juventude de Teresina. Após a nomeação, a defensora do feto recorreu da autorização inicialmente dada pela Justiça para o aborto. A situação é apontada como "aberrante" por entidades que acompanham o caso. "É totalmente inconstitucional", diz Cesareo, do Center for Reproductive Rights. "Existe uma grande falha no Sistema de Justiça quando, por convicções pessoais, as pessoas se sentem no direito de desrespeitar a lei", afirma Luciana Temer, da Libertas. A BBC News questionou a Defensoria Pública do Piauí sobre o caso, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem. O aborto legal é um direito garantido pela legislação brasileira em qualquer caso de estupro sem necessidade de autorização judicial - todos os documentos necessários são preenchidos no próprio hospital, bastando o relato da vítima à equipe médica. Qualquer menina de até 14 que esteja grávida tem o direito ao procedimento, já que a legislação brasileira considera que até essa idade a criança não tem capacidade de consentir e o estupro é presumido. Na prática, no entanto, nem sempre esse direito é garantido devido a dificuldades de acesso no sistema de saúde e a uma série de barreiras encontradas pelas mulheres e meninas que já sofreram a violência sexual. "É uma série de barreiras práticas, desde poucos hospitais que fazem o procedimento até informações erradas sobre os direitos vindas de profissionais de saúde que deveriam garanti-lo", afirma Cesareo. "Além disso, muitos locais criam barreiras extras, como criar a exigência de ultrassom, que não é previsto em lei nem é necessário para o procedimento." No caso da menina do Piauí, como houve discordância dos pais sobre autorização para o procedimento na segunda gravidez - e como a criança foi afastada do convívio familiar - a questão foi decidida pela Justiça. Inicialmente havia autorização para a realização do aborto dada pela 2ª Vara da Infância e da Juventude de Teresina. No entanto, a defensora do feto e a mãe da menina recorreram da decisão e a autorização foi suspensa em dezembro pela 2ª Câmara Especializada Civil do Tribunal de Justiça do Piauí. Segundo instituições de defesa de direitos humanos que acompanham o caso, a justificativa dada pelo desembargador foi de que "o procedimento não seria desejo da criança" - a BBC News Brasil não teve acesso aos autos, já que o caso está em segredo. No entanto, a conselheira tutelar que levou o caso à Justiça e tentou ajudar a criança a obter o direito relatou no ano passado que a menina inicialmente demonstrou o desejo de fazer o procedimento e voltar à escola. Além disso, aponta Luciana Temer, o bem estar e a saúde da criança precisam ser garantidos pelos responsáveis e pela Justiça. "Não é uma justificativa válida (a do desembargador). Não há o que se falar em jogar essa decisão em uma criança em extremo sofrimento físico e mental", afirma a professora de direito. O Tribunal de Justiça do Piauí diz que não comenta o caso por causa do segredo de Justiça. Cesareo afirma que a situação da menina do Piauí é um exemplo de como diversas instâncias falharam sucessivamente em seu dever de proteger a criança. Mas o caso não é raro - muitas crianças engravidam após abusos sexuais sucessivos e desamparo de diversas instâncias que deveriam protegê-las. "O Brasil tem um número altíssimo de gravidez na infância. Em 2021 houve 17 mil crianças de até 14 anos grávidas segundo dados do datasus compilados pela UNfpa (Fundo de População das Nações Unidas)", diz. Segundo o mais recente Anuário Brasileiro de Segurança Pública (publicado em junho de 2022), houve 66 mil vítimas de estupro no Brasil em 2021 - e 61% delas eram crianças com menos de 13 anos. - Este texto foi publicado em
2023-02-14
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ce57yx0p70mo