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Emannuel | uma inconsciência criminosa; lamentando, apenas, que seis homensaliados a esta multidão permitissem a consumação deste ato de infâmia esuprema covardia, que a justiça divina acaba de punir perante os vossosolhos!...Todos se haviam calado, como por encanto, ao ouvirem essasenérgicas palavras.A massa popular tem dessas versatilidades misteriosas. Basta, àsvezes, um gesto para que se despenhe nos abismos do crime e dadesordem; uma palavra chicoteante para fazê-la regressar ao silêncio e aoequilíbrio necessários.Lívia compreendeu que a situação era sua, e, dirigindo-se aosprepostos de Sulpício, falou corajosamente:- Vamos, providenciemos o restabelecimento da calma, retirandoesses cadáveres.- Senhora - aventou um deles respeitosamente -, sentimo-nos naobrigação de enviar um mensageiro a Cafarnaum, de modo que o senhorgovernador seja avisado destes acontecimentos.Todavia, com a mesma expressão de serenidade, respondeu elafirmemente:- Soldado, eu não permito a retirada de nenhum de vós outros,enquanto não derdes estes corpos à sepultura. Se o vosso governadorpossui um coração de fera, sinto-me agora na obrigação de proteger a pazdas almas bem formadas. Não desejo que se repita nesta casa uma novacena de covardia e de infâmia. Se a autoridade, neste país, atingiu oterreno das crueldades mais absurdas, eu prefiro assumi-la, resgatandouma dívida do coração para com os despojos deste apóstolo venerando,assassinado com a colaboração da vossa criminosa inconsciência.- Não desejais consultar as autoridades de Sebaste, a respeito doassunto? - tornou um deles, timidamente.- De modo algum - respondeu ela, com audaciosa serenidade. -Quando o cérebro de um go- |
Emannuel | ...verno está envenenado, o coração dos governados padecem da mesmapeçonha. Esperaríamos em vão qualquer providência a favor dos maishumildes e dos mais infelizes, porque a Judeia está sob a tirania de umhomem cruel e tenebroso. Ao menos hoje, quero afrontar o poder daperversidade, invocando cm meu auxílio a misericórdia infinita de Jesus.Silenciaram os soldados romanos, em face da sua atitude serena eimperturbável. E, obedecendo-lhe às ordens, colocaram os despojosinertes de Simeão sobre a mesa enorme e rústica das preces costumeiras.Foi então que os mesmos companheiros, que haviam negado ovelho mestre do Evangelho, se acercaram piedosamente do seu cadáver,beijando-lhe as mãos mirradas, com enternecimento. arrependidos da suacovardia e fraqueza, cobrindo-lhe de flores os despojos sangrentos.Anoitecia, mas as tênues claridades do crepúsculo, na formosapaisagem da Samaria, ainda não haviam abandonado, de todo, o horizonte.Uma força indefinível parecia amparar o Espírito de Lívia, alvitrando-lhe todas as providências necessárias.Em pouco, ao esforço hercúleo de numerosos samaritanos, foramretiradas pesadas pedras do grupo de rochas que protegia a cova, onde sehaviam abrigado as três fugitivas, enquanto, às ordens de Lívia, os seissoldados abriram uma sepultura rasa, longe daquele local, para o corpo deSulpício.Brilhavam, já, as primeiras constelações do firmamento, quandoterminou a improvisação dos serviços dolorosos.No instante de transportarem os despojos do ancião, que Líviaenvolveu, pessoalmente, em alvo sudário de linho, ela fez questão de orarrogando ao Senhor recebesse, no seu Reino de Luz e Verdade, a almagenerosa do seu apóstolo valoroso. |
Emannuel | Ajoelhou-se como uma figura angélica junto àquele banco humilde etosco, onde tantas vezes se sentara o servidor de Jesus, entre as suasoliveiras frondosas e bem-amadas. Todos os presentes, inclusive ospróprios soldados que se sentiam empolgados de misterioso temor,prostraram-se genuflexos, acompanhando-lhe a reverência, enquanto, àclaridade de algumas tochas, sopravam perfumadas as brisas leves dasnoites formosas e estreladas da Samaria de há dois mil anos...- Irmãos - começou ela, emocionada, assumindo pela primeira vez adireção de uma assembléia de crentes -, elevemos a Jesus o coração e opensamento!...Uma sensação mais forte parecia embargar-lhe a voz, inundando-lheos olhos de lágrimas doloridas...Mas, como se forças invisíveis e poderosas a alentassem, continuouserenamente:- Jesus, meigo e divino Mestre, foi hoje o dia glorioso em que partiupara o céu um valoroso apóstolo do teu Reino... Foi ele, aqui na Terra,Senhor, a nossa proteção, o nosso amparo e a nossa esperança!... Na suafé, encontramos a precisa fortaleza, e foi em seu coração compassivo queconseguimos haurir o consolo necessário!... Mas julgaste oportuno queSimeão fosse descansar no teu regaço amoroso e compassivo! Como tu,sofreu ele os tormentos da cruz, revelando a mesma confiança naProvidência Divina, nos dolorosos sacrifícios do seu amargo testemunho...Recebe-o, Senhor, no teu Reino de Paz e de Misericórdia! Simeão tornou-se bem-aventurado por suas dores, por seu denodo moral, por suasangustiosas aflições suportadas com o valor e a fé que nos ensinaste...Ampara-o nas claridades do Paraíso do teu amor inesgotável, e que nós,exilados na saudade e na amargura, aprendamos a lição luminosa do teuvaloroso apóstolo da Samaria!... Se algum dia nos julgares também dignosdo mesmo sacrifício, forta- |
Emannuel | ...lece-nos a energia, para que provemos ao mundo a excelência dos teusensinamentos, ajudando-nos a morrer com valor, pela tua paz e pela tuaverdade, como o teu missionário carinhoso a quem prestamos, nesta hora,a homenagem do nosso amor e do nosso reconhecimento...Nesse ínterim, houve na sua oração um interregno. Todavia,continuou:- Jesus, a ti que vieste a este mundo, mais para os desesperados dasalvação, levantando os mais doentes e os mais infelizes, endereçamos,igualmente, nossa súplica pelo celerado que não hesitou em tripudiarsobre tuas leis de fraternidade e amor, martirizando um inocente, e que foiarrebatado pela morte para o julgamento da tua justiça. Queremosesquecer a sua infâmia, como perdoaste aos teus algozes do alto da cruzinfamante do martírio... Ajuda-nos, Senhor, para que compreendamos epratiquemos os teus ensinos!...Levantando-se, comovida, Lívia descobriu o cadáver do apóstolo ebeijou-lhe as mãos pela última vez, exclamando em lágrimas, carinhosa:- Adeus, meu mestre, meu protetor e meu amigo... Que Jesus tereceba o espírito iluminado e justo no seu Reino de luzes imortais, e que aminha pobre alma saiba aproveitar, neste mundo, a tua lição de fé evaloroso heroísmo!...Repousado numa urna improvisada, o corpo inerte de Simeão foiconduzido ao seu último jazigo. Numerosas tochas haviam sido acesaspara o ofício amargo e doloroso.E enquanto o cadáver do lictor Sulpício descia à terra úmida, semoutro auxílio além da cooperação dos seus prepostos, o nobre ancião iarepousar à frente do seu templo e do seu ninho, entre as viraçõescariciosas do vale, à sombra fresca das oliveiras que lhe eram tãoqueridas!...Lívia dispensou, em seguida, os soldados do governador e,guardada por homens valorosos e |
Emannuel | dedicados, passou o resto da noite em companhia de Ana e da filhinha, emprofundas meditações e dolorosas cismasAo raiar da aurora, retiravam-se definitivamente do vale de Siquém,acompanhadas por um vizinho de Simeão, encaminhando-se, de volta, aCafarnaum, e levando, no íntimo, numerosas lições para toda a vida.Sabedoras de que não se fariam esperar as represálias dasautoridades administrativas, regressaram por estradas diferentes, queconstituíam atalhos preciosos, sem tocar em Naim para a troca de animais.Com algumas horas sucessivas, em marcha forçada, atingiam o solartranqüilo, onde iam descansar dos golpes sofridos.Lívia remunerou largamente o seu dedicado companheiro de viagem,retirando-se para os seus aposentos, onde fixou, em base preciosa, apequena cruz de madeira que lhe dera o apóstolo, algumas horas antes docruento martírio.Alguns dias se passaram sobre os infaustos acontecimentos.Pôncio Pilatos, contudo, informado de todos os pormenores doocorrido, rugiu de ódio selvagem. Reconhecendo que defrontavapoderosos inimigos, quais Públio Lentulus e sua mulher, buscou acionarpor outro lado o mecanismo de sinistras represálias. Recolhendo-seimediatamente ao seu palácio de Samaria, fez que todos os habitantes daregião pagassem muito caro a morte do lictor, humilhando-os através demedidas aviltantes e vexatórias. Assassínios nefandos foram praticadosentre os elementos da população pacífica do vale, propagando-se porSebaste e outros núcleos mais adiantados a rede de crimes e crueldadesda sua mentalidade vingativa e tenebrosa.Estacionemos, todavia, em Cafarnaum e aguardemos aí a chegadade um homem.Ao cabo de alguns dias, com efeito, regressava o senador de suaviagem através da Palestina. |
Emannuel | ...Após o seu regresso, Lívia cientificou-o de quanto ocorrera na suaausência. Públio Lentulus ouvia-lhe o relato silenciosamente. À medidaque se lhe tornavam conhecidas as ocorrências, sentia-se intimamentetomado de indignação e de revolta contra o administrador da Judeia, nãosó pela sua incorreção política, mas também pela extrema antipatiapessoal que a sua figura lhe inspirava, resolvendo, em face do acontecido,não vacilar um segundo em processá-lo acerbamente, como quem julgavadever perseguir o mais cruel dos inimigos.O leitor poderá, talvez, supor que o orgulhoso romano teria ocoração sensibilizado e modificados os sentimentos a respeito da esposa,de quem presumia possuir as mais flagrantes provas de deslealdade eperjúrio, no santuário do lar e da família. Mas, Públio Lentulus era humano,e, nessa condição precária e miserável, tinha de ser um fruto do seutempo, da sua educação e do seu meio.Ao ouvir as últimas palavras de sua mulher, pronunciadas em tomcomovido, como o de alguém que pede apoio e reclama o direito de umcarinho, replicou austeramente:- Lívia, eu me regozijo com a tua atitude e rogo aos deuses pela tuaedificação. Teus atos simbolizam para mim a realidade da tua regeneração,depois da fragorosa queda vista com os meus olhos. Bem sabes que paramim a esposa não mais deve existir; contudo, louvo a mãe de meus filhos,sentindo-me confortado porque, se não acordaste a tempo de seres feliz,despertaste ainda com a possibilidade de viver... Tua repulsa tardia poresse homem cruel me autoriza a crer na tua maternal dedicação e issobasta!...Essas palavras, pronunciadas em tom de superioridade e secura,demonstraram a Lívia que a separação afetiva de ambos deveria continuarno ambiente doméstico, irremissivelmente.Abalada nas comoções do seu martírio moral, retirou-se para oquarto, onde se prostrou diante |
Emannuel | da cruz de Simeão, com a alma desalentada e combalida. Ali, meditouangustiosamente na sua penosa situação, mas, em dado instante, viu quea lembrança humilde do apóstolo da Samaria irradiava uma luz caridosa eresplandecente, ao mesmo tempo que uma voz suave e branda murmuravaaos seus ouvidos:- Filha, não esperes da Terra a felicidade que o mundo não te podedar! Aí, todas as venturas são como neblinas fugidias, desfeitas ao calordas paixões ou destroçadas ao sopro devastador das mais sinistrasdesilusões!... Espera, porém, o Reino da misericórdia divina, porque nasmoradas do Senhor há bastante luz para que floresçam as maissantificadas esperanças do teu coração maternal!... Não aguardes, pois, daTerra, mais que a coroa de espinhos do sacrifício...A esposa do senador não se surpreendeu com o fenômeno.Conhecendo de oitiva a ressurreição do Senhor, tinha a convicção plenade que se tratava da alma redimida de Simeão, que a seu ver voltava dasluzes do Reino de Deus para lhe confortar o coração.Por semanas a fio, recebeu Públio Lentulus a visita de samaritanosnumerosos, que lhe vinham solicitar enérgicas providências contra osdesmandos de Pôncio Pilatos, então instalado no seu palácio de Samaria,onde permanecia raramente, ordenando o assassínio ou a escravidão deelementos numerosos, em sinal de vingança pela morte daquele queconsiderava como o melhor áulico da sua casa.Daí a algum tempo, regressava Comênio de sua viagem a Roma, comum professor competente para a pequena Flávia. Além desse preceptornotável, que lhe mandava a carinhosa solicitude de Flamínio Severus,chegavam-lhe também novas noticias, que o senador consideravaconfortadoras. Em virtude da sua solicitação, as altas autoridades doImpério determinaram a volta do pretor Sálvio |
Emannuel | ...Lentulus, com a família, para a sede do governo imperial, pedindo-lhe oamigo, particularmente, a remessa de dados positivos quanto àadministração de Pilatos na Judeia, a fim de que o Senado pleiteasse a suaremoção.Em virtude dessas circunstâncias, daí a algum tempo voltavaComênio a Roma levando a Flamínio um volumoso processo, relacionandotodas as crueldades praticadas por Pilatos, entre os samaritanos. Em vistadas distâncias, por muito tempo rolou o processo nos gabinetesadministrativos, até que no ano de 35 foi o Procurador da Judeia chamadoa Roma, onde foi destituído de todas as funções que exercia no governoimperial, sendo banido para Viena, nas Gálias, onde se suicidou, daí a trêsanos, ralado de remorsos, de privações e de amarguras.Públio Lentulus permaneceu com as suas esperanças de pai, namesma vivenda da Galileia, dedicando-se quase que exclusivamente aosseus estudos, aos seus processos administrativos e à educação da filha,que manifestara, muito cedo, pendores literários ao lado de apreciáveisdotes de inteligência.Lívia conservou Ana junto de sua tutela e ambas continuaramorando junto à cruz que lhes dera Simeão no instante extremo, rogando aJesus a necessária força para as penosas lutas da vida.Debalde a família Lentulus esperava que o destino lhe trouxesse, denovo, o sorriso encantador do pequenino Marcus e, enquanto o senador efilhinha se preparavam para o mundo, junto de Lívia e Ana, que traziam assuas esperanças postas no Céu, deixemos passar mais de dez anos sobrea dolorosa serenidade da vila de Cafarnaum, mais de dez anos quepassaram lentos, silenciosos, tristes.FIM DA PRIMEIRA PARTE |
Emannuel | 216SEGUNDA PARTEIA morte de FlamínioO ano de 46 corria calmo.Em Cafarnaum, vamos encontrar, de novo, as nossas personagensmergulhadas numa serenidade relativa.As autoridades administrativas, em Roma, não eram as mesmas.Entretanto, apoiado no prestígio do seu nome e nas consideráveisinfluências políticas de Flamínio Severus, perante o Senado, PúblioLentulus continuava comissionado na Palestina, onde gozava de todos osdireitos e regalos políticos, na administração provincial.Debalde continuara ali o senador, a despeito de todo o seu imensodesejo de voltar à sede do governo imperial, esperando o ensejo de reavero filho, que o tempo continuava a reter no domínio das sombrasmisteriosas. Nos últimos anos, perdera por completo a esperança deatingir o seu desiderato, mesmo porque, considerava, a esse tempoMarcus Lentulus deveria estar no seu primeiro período de juventude,tornando-se irreconhecível aos olhos paternos. |
Emannuel | ...Outras vezes, ponderava o orgulhoso patrício que o filho não maisvivia; que, certamente, as forças perversas e criminosas que o haviamarrebatado do lar teriam exterminado, igualmente, o gracioso menino sob afoice da morte, temendo uma punição inexorável. Lá dentro, porém, no imodalma, latejava a intuição de que Marcus ainda vivia, razão por que, entreas indecisões e alternativas, de todos os dias, resolvera, antes de tudo,ouvir a voz do dever paternal. lançando mão de todos os recursos parareencontrá-lo, permanecendo ali indefinidamente, contra os seus projetosmais decididos e mais sinceros.A esse tempo, vamos encontrá-lo com os traços fisionômicosligeiramente alterados, embora treze anos houvessem dobado sobre osdolorosos acontecimentos de 33. Seus cabelos ainda guardavamintegralmente a cor natural e apenas algumas rugas, quase imperceptíveis,tinham vindo acentuar a sua facies de profunda austeridade. Serenatristeza lhe pairava no semblante, invariavelmente, levando-o a isolar-sequase da vida comum, para mergulhar tão somente no oceano dos seuspapéis e dos seus estudos, com a única preocupação de maior vulto, queera a educação da filha, buscando dotá-la das mais elevadas qualidadesintelectivas e sentimentais. Sua vida no lar continuava a mesma, embora ocoração muitas vezes lhe pedisse reatar o laço conjugal, atendendoàqueles treze anos de separação íntima, com a mais absoluta renúncia deLívia a todas e quaisquer distrações que não fossem as da vida domésticae da sua crença. fervorosa e sincera. A sós com as suas meditações,Públio Lentulus deixava divagar o pensamento pelas recordações maisdoces e mais distantes e, nessas horas de introspecção, ouvia a voz daconsciência que subia do coração ao cérebro, como um apelo à razãoinflexível, tentando destruir-lhe os preconceitos, mas o orgulho venciasempre, com a sua rigidez inquebrantável. Algo lhe dizia no íntimo |
Emannuel | que sua mulher estava isenta de toda mácula, mas o espírito de vaidadepreconceituosa lhe fazia ver, imediatamente, a cena inesquecível daesposa ao deixar o gabinete privado de Pilatos, em vestes de disfarce,ouvindo ainda, sinistramente, as palavras escarninhas de Fúlvia Prócula,nas suas calúnias estranhas e ominosas...Lívia, porém, se insulara, envolta num véu de triste resignação,como quem espera as providencias sobrenaturais, que nunca aparecem noinquieto decurso de uma existência humana. O esposo a conservava juntoda filha, atendendo simplesmente à condição de mãe, não lhe permitindo,porém, de modo algum, interferir nos seus planos e trabalhos educativos.Para Lívia, aquele golpe rude fôra o maior sofrimento da sua vida. Aprópria calúnia não lhe doera tanto; mas, o reconhecer-se comodispensável junto da filha do seu coração, constituía a seus olhos a maisdolorosa humilhação da sua existência. Era por esse motivo que mais seabroquelava na fé, procurando enriquecer a alma sofredora, com as luzesda crença fervorosa e sincera.Longe de conservar as energias orgânicas, tal como acontecera aomarido, seu rosto testemunhava as injúrias do tempo, com a sua pesadabagagem de sofrimentos e amarguras. Na sua fronte, que as dores haviamsantificado, pendiam já alguns fios prateados, enquanto os olhosprofundos se tocavam de brilho misterioso, como se houvessemintensificado o próprio fulgor, de tanto se fixarem no infinito dos céus.Seus traços fisionômicos, embora atestassem velhice prematura,revelavam ainda a antiga beleza, agora transformada em indefinível enobre expressão de martírio e de virtude. Um único pedido fizera aoesposo, quando se viu isolada dos seus afetos mais queridos, no ambientedoméstico, longe do próprio contacto espiritual com a filha, circunstânciaque ainda mais lhe afligia o coração amargurado: - foi apenas que lhepermi- |
Emannuel | ...tisse continuar nas suas práticas cristãs, em companhia de Ana, que tantose lhe afeiçoara, com aquele espírito de dedicação que lhe conhecemos, aponto de desprezar as oportunidades que se lhe ofereceram para constituirfamília. O senador deu-lhe ampla permissão em tal sentido, chegando afacultar-lhe recursos financeiros para atender aos numerosos operários dadoutrina que a procuravam, discretamente, amparando-se nas suaspossibilidades materiais para iniciativas renovadoras.Falta-nos, agora, apresentar Flávia Lentúlia aos que a viram nainfância, doente e tímida.No esplendor dos seus vinte e dois anos, ostentava o fruto daeducação que o pai lhe dera, com a forte expressão pessoal do seu carátere da sua formação espiritual.A filha do senador era Lívia, na encantadora graça dos seus dotesfísicos, e era Públio Lentulus, pelo coração. Educada por professoreseminentes, que se sucederam no curso dos anos, sob a escolha dosSeverus, que jamais se descuidaram dos seus amigos distantes, sabia oidioma pátrio a fundo, manejando o grego com a mesma facilidade emantendo-se em contacto com os autores mais célebres, em virtude doseu constante convívio com a intelectualidade paterna.A educação intelectual de uma jovem romana, nessa época, era semdúvida secundária e deficiente. Os espetáculos empolgantes dosanfiteatros, bem como a ausência de uma ocupação séria, para asmulheres do tempo, em face da incessante multiplicação e barateamentodos escravos, prejudicaram sensivelmente a cultura da mulher romana, nofastígio do Império, quando o espírito feminino rastejava no escândalo, nadepravação moral e na vida dissoluta.O senador, porém, fazia questão de ser um homem antigo. Nãoperdera de vista as virtudes heróicas e sublimadas das matronasinesquecíveis, das suas tradições familiares, e foi por isso que, |
Emannuel | fugindo à época, buscou aparelhar a filha para a vida social, com a culturamais aprimorada possível, embora lhe enchesse igualmente o coração deorgulho e vaidade, com todos os preconceitos do tempo.A jovem amava a mãe com extrema ternura, mas à vista das ordensdo pai, que a conservava invariavelmente junto dele, nos seus gabinetesde estudo ou nas pequenas viagens costumeiras. não fazia mistério da suapredileção pelo espírito paterno, de quem presumia haver herdado asqualidades mais fulgurantes e mais nobres. sem conseguir entender adoce humildade e a resignação heróica da mãe, tão digna e tãodesventurada.O senador buscara desenvolver-lhe as tendências literárias,possibilitando-lhe as melhores aquisições de ordem intelectual,admirando-lhe a facilidade de expressão, principalmente na arte poética,tão exaltada naquela época.O tempo transcorria com relativa calma para todos os corações.De vez em quando, falava-se na possibilidade de regressar a Roma,plano esse cuja realização era sempre procrastinada, em vista daesperança de reencontrar o desaparecido.Num dia suave do mês de março, quando as árvores frondosas secobriam de flores, vamos encontrar na casa do senador um mensageiroque chegava de Roma a toda pressa.Tratava-se de um emissário de Flamínio Severus, que em longa cartacomunicava ao amigo o seu precário estado de saúde, acrescentando quedesejava abraçá-lo antes de morrer. Comovedores apelos constavamdesse documento privado, suscitando ao espírito de Públio as maisacurada ponderações. Todavia, a leitura de uma carta assinada porCalpúrnia, que viera em separado, era decisiva. Nesse desabafo, aveneranda senhora o informou do estado de saúde do marido, que, a seuver, era precaríssimo, acentuando os penosos dissabores e angustiosaspreocupações que ambos ex- |
Emannuel | ...perimentavam acerca dos filhos, que, em plena mocidade, se entregavamàs maiores dissipações, seguindo a corrente de desvarios sociais daépoca. Terminava a carta comovedora, pedindo ao amigo que voltasse,que os assistisse naquele transe, de modo que a sua amizade e paternalinteresse representassem uma força moderadora junto de Plínio e deAgripa, que, homens feitos, se deixavam levar no turbilhão dos prazeresmais nefastos.Públio Lentulus não hesitou um instante.Mostrou à filha os documentos recebidos e, depois de examinarem,juntos, os pormenores do seu conteúdo, comunicou a Lívia o seupropósito de voltar a Roma na primeira oportunidade.A nobre senhora lembrou-se, então, de quão diversa lhe seria a vidana grande cidade dos césares, com as idéias que agora possuía, e pediu aJesus não lhe faltasse a coragem necessária para vencer em todos osembates que houvesse de sustentar na sociedade romana, para conservaríntegra a sua fé.A volta a Roma não reclamou, desse modo, grande demora. Omesmo emissário levou as instruções do senador para os seus amigos daCapital do Império e, daí a pouco, uma galera os esperava em Cesareia,reconduzindo a família Lentulus, de regresso, depois da permanência dequinze anos na Palestina.Desnecessário dizer dos pequeninos incidentes do retorno, tal avulgaridade das viagens antigas, com a sua monotonia, aliada àsvagarosas perspectivas e ao doloroso espetáculo do martírio dosescravos.Cumpre-nos, entretanto, acrescentar que, nas vésperas da chegada,o senador chamou a filha e a mulher, dirigindo-lhes a palavra em tomdiscreto:- Antes de aportarmos, convém lhes explique a minha resolução arespeito do nosso pobre Marcus.Há muitos anos, guardo o maior silêncio em torno do assunto, paracom os meus afeiçoados de |
Emannuel | Roma e não desejo ser considerado mau pai, em nosso ambiente social.Somente uma circunstância, como a que nos impõe esta viagem, melevaria a regressar, porquanto não se justifica que um pai abandone o filhoem tais paragens, ainda mesmo torturado pela incerteza da continuidadede sua existência.Assim, resolvi comunicar, a quantos mo perguntem, que o filho estámorto há mais de dez anos, como, de fato, deverá estar para nós outros,visto a impossibilidade de o reconhecermos, na hipótese do seureaparecimento.Se soubessem de nossas mágoas, não faltariam embusteiros quedesejassem ludibriar nossa boa fé, explorando o sentimentalismo familiar.Ambas assentiram na decisão, que lhes parecia a mais acertada, e,dai a minutos, o porto de Óstia estava à vista, agora lindamente aparelhadopelo zelo do Imperador Cláudio, que ali mandara executar obrasinteressantes e monumentais.Nessa hora, não se observava o contentamento, natural em taiscircunstâncias.A partida, quinze anos antes, havia sido um cântico de esperançanas expectativas suaves do futuro, mas o regresso estava cheio dosilêncio amargo das mais penosas realidades.Além do desencanto da vida conjugal, Públio e Lívia não viam ali,entre os rostos amigos que os esperavam, as silhuetas de Flamínio eCalpúrnia, que consideravam irmãos muito amados.Contudo, dois rapazes simpáticos e fortes, de gestosdesembaraçados, nas suas togas irrepreensíveis, dirigiram-se a elesimediatamente, em escaleres confortáveis, mal a embarcação haviaancorado, rapazes esses que o senador e esposa reconheceram de pronto,num afetuoso e comovido abraço.Tratava-se de Plínio e seu irmão que, incumbidos pelos pais, vinhamreceber os queridos ausentes. |
Emannuel | ...Apresentados a Flávia, ambos fizeram um movimento instintivo deadmiração, recordando o dia da partida, quando a haviam acomodado nobeliche, entre os seus gemidos e caretas de criança doente.A jovem impressionara-se, também, com a figura de ambos, de quempossuía apagadas reminiscências, entre as recordações remotas da suainfância. Principalmente Plínio Severus, o mais moço, a haviaimpressionado profundamente, com os seus vinte seis anos completos, domesmo porte elegante e distinto com que ela havia idealizado o herói dasua imaginação feminina.Notava-se, igualmente, num relance, que o rapaz não ficaraindiferente àquelas mesmas emoções, porque, trocadas as primeirasimpressões da viagem e examinada a situação da saúde de FIamínioSeverus, considerada pelos filhos como excessivamente grave, Plínioofereceu o braço à jovem, enquanto Agripa lhe observava num leve tom deciúme:- Mas que é isso, Plínio? Flávia pode suscetibilizar-se com a tuaintimidade excessiva!...- Ora, Agripa - respondeu ele, com um franco sorriso -, estás muitoprejudicado pelos formalismos da vida pública. Flávia não pode estranharos nossos costumes, na sua condição de patrícia pelo nascimento e, aodemais, não nasci para as disciplinas do Estado, tão do teu gosto!...A essas palavras, ditas com visível bom humor, acrescentou PúblioLentulus, confortado pelo ambiente da sua predileção:- Vamos, meus filhos!E dando o braço à esposa, para desempenhar a comédia da suafelicidade conjugal na vida comum da grande cidade, seguido de Plínio,que amparava a jovem no seu braço forte e conquistador em assuntos docoração, desembarcaram junto de Agripa, a fim de descansarem umpouco, antes de seguirem diretamente para Roma, e, para o que, todas asprovidências haviam sido tomadas pelos irmãos |
Emannuel | Severus, com o máximo de carinho e espontânea dedicação.Lívia não se esqueceu de Ana, providenciando para o seu confortojunto aos demais servos da casa, em todo o percurso de caminho que osseparava da residência.Em direção à cidade, pensou então o senador que, finalmente, iarever o amigo muito amado. Há longos anos acariciava a idéia deconfessar-lhe, de viva voz, todos os seus desgostos na vida conjugal,expondo lhe com franqueza e sinceridade as suas preocupações, acercados fatos que o separavam da esposa, na intimidade do lar. Tinha sede desuas palavras afetuosas e de explicações consoladoras, porque sentia queamava a mulher acima de tudo, apesar de todos os dissaboresexperimentados. Não crendo sinceramente na sua queda, apenas seuorgulho de homem o afastava de uma reconciliação que cada dia setornava mais imperiosa e necessária.Em breve defrontavam a antiga residência, lindamente ornamentadapara recebê-los. Numerosos servos se movimentavam, enquanto osrecém-vindos faziam o reconhecimento dos lugares mais íntimos e maisfamiliares.Havia quinze anos que o palácio do Aventino aguardava os donos,sob o carinho de escravos dedicados e dignos.Logo se servia uma refeição frugal no triclínio enquanto os irmãosSeverus, que participavam desse ligeiro repasto, esperavam os seusamigos, a fim de seguirem todos juntos para a residência de Flamínio,onde o enfermo os aguardava ansiosamente.Plínio, em dado instante, como quem traz à baila uma notíciainteressante e agradável, exclamou, dirigindo-se ao senador:- Há bem tempo, ficamos conhecendo vosso tio Sálvio Lentulus esua família, que residem perto do Fórum. |
Emannuel | ...- Meu tio? - perguntou Públio, impressionado, como se aslembranças de Fúlvia lhe trouxessem ao íntimo uma aluvião de fantasmas.Mas, ao mesmo tempo, como se estivesse fazendo o possível poradormentar as próprias mágoas, acentuou com suposta serenidade:- Ah! é verdade! Faz mais de doze anos que ele regressou daPalestina...Foi neste comenos que Agripa interveio como a vingar-se da atitudedo irmão, quando ainda não havia desembarcado, exclamandointencionalmente:- E por sinal que Plínio parece inclinado a desposar-lhe a filha, denome Aurélia, com quem mantém as melhores relações afetivas, de muitotempo.Ao ouvir essas palavras, Flávia Lentulus fitou o interpelado, como seentre o seu coração e o filho mais moço de Flamínio já houvesse os maisfortes laços de compromissos sentimentais, dentro das leis misteriosasdas afinidades psíquicas.Enquanto se passava esse duelo de emoções, Plínio fitou o irmãoquase com ódio, dando a entender a impulsividade do seu espírito erespondendo com ênfase, como a defender-se de uma acusaçãoinjustificável, perante a mulher das suas preferências:- Ainda desta vez, Agripa, estás enganado. Minhas relações comAurélia não têm outro fundamento, além do da pura amizade reciproca,mesmo porque considero muito remota qualquer possibilidade decasamento, na fase atual da minha vida.Agripa esboçou um sorriso brejeiro, enquanto o senador,compreendendo a situação, acalmava os ânimos, exclamando combondade:- Está bem, filhos; mas falaremos depois sobre meu tio. Sinto-meansioso por abraçar o querido enfermo e não temos tempo a perder. |
Emannuel | Em breves minutos um grupo de liteiras encaminhava-se para anobre residência dos Severus, onde Flamínio aguardava o amigo,ansiosamente.Sua fisionomia não acusava mais aquela mobilidade antiga e aempolgante expressão de energia que a caracterizava, mas, emcompensação, grande placidez se lhe irradiava dos olhos, sensibilizando aquantos o visitavam nos seus derradeiros dias de lutas terrestres. Aexpressão do semblante era a do lutador derribado e abatido, exausto decombater as forças misteriosas da morte. Os médicos não tinham a menoresperança de cura, considerando o profundo desequilíbrio físico, aliado amui forte desorganização do sistema cardíaco. As menores emoçõesdeterminavam alterações no seu estado, ensejando as mais amplasapreensões da família.De vez em quando, os olhos serenos e tranqüilos se fixavamdetidamente na porta de entrada, como se esperassem alguém com omáximo interesse, até que rumores mais fortes, vindos do vestíbulo,anunciaram ao seu coração que ia cessar uma ausência de quinze anosconsecutivos, entre ele e os amigos sempre lembrados.Calpúrnia, igualmente muito abatida, abraçou Lívia e Públio,derramada em lágrimas e apertando Flávia nos braços, como se recebesseuma filha.Ali mesmo, no vestíbulo, trocaram impressões e falaram das suassaudades intensas e das preocupações numerosas, até que Públiodeliberou deixar as duas amigas em franca expansão afetiva e seencaminhou com Agripa a um dos compartimentos próximos do tablino,onde abraçou o grande amigo, com lágrimas de alegria.Flamínio Severus estava magríssimo e suas palavras, por vezes,eram cortadas pela dispnéia impressionante, dando a perceber que muitopouco tempo lhe restava de vida.Sabendo da satisfação do pai na companhia íntima do leal amigo,Agripa retirou-se do vasto |
Emannuel | ...aposento, onde as sombras do crepúsculo começavam a penetrarcaprichosamente, como se o fizessem no silêncio sagrado das navesreligiosas.Públio Lentulus se surpreendeu, encontrando o velho companheiroem tal estado. Não supunha revê-lo tão depauperado. Agora, certificava-sede que era a ele, sim, que competia auxiliá-lo com os seus conselhos,levantando-lhe as forças orgânicas e espirituais, com as suas exortaçõesamigas e carinhosas.Uma vez a sós, contemplou o amigo e mentor, como se estivesse amirar uma criança enferma.Flamínio, por sua vez, olhou-o face a face e, olhos rasos dágua,tomou-lhe as mãos nas suas, dando-lhe a entender que recebia ali,naquele momento, um filho muito amado.Num gesto brando e delicado, procurou sentar-se maiscomodamente e, amparando-se nos ombros de Lentulus, murmuroucomovidamente ao seu ouvido:- Públio, aqui já te não recebe o companheiro enérgico e resolutodoutros tempos. Sinto que apenas te esperava para poder entregar a almaaos deuses, tranqüilamente, supondo já cumprida a missão que mecompetia na Terra, com a minha consciência retilínea e os meus honestospensamentos.Há mais de um ano pressinto o instante irremediável e fatal, que,agora, satisfeito o meu ardente desejo, deve estar avizinhando-se com avelocidade do relâmpago. Não desejava, pois, partir sem te apertar emmeus braços, fazendo-te as últimas confidências neste leito de morte...- Mas, Flamínio - respondeu-lhe o amigo, com serenidade dolorosa -,tudo me autoriza a crer nas tuas melhoras imediatas, e todos nósaguardamos a bênção dos deuses, de maneira que possamos contar coma tua companhia indispensável, por muito tempo ainda, neste mundo.- Não, meu bom amigo, não te iludas com essas suposições epensamentos. Nossa alma ja- |
Emannuel | mais se engana quando se avizinha das sombras do sepulcro... Não medemorarei em penetrar o mistério da grande noite, mas acredito,firmemente, que os deuses me saudarão com as luzes de suas auroras!...E, deixando o olhar, profundo e sereno, divagar pelo aposento, comose as paredes marmorizadas se dilatassem ao infinito, Flamínio Severusconcentrou-se um minuto em meditações íntimas, continuando a falar,como se desejasse imprimir à conversação um novo rumo:- Lembras-te daquela noite em que me confiaste os pormenores deum sonho misterioso, no auge da tua emotividade dolorosa?- Oh! se me lembro!... - revidou Públio Lentulus recordando, de modoinexplicável, não só a palestra remota que resolvera a viagem à Palestina,mas também outro sonho, no qual testemunhara os mesmos fenômenosintraduzíveis, na noite do seu encontro com Jesus de Nazaré. Ao lembrar-se daquela personalidade maravilhosa, estremeceu-lhe o coração, mastudo fez por evitar ao amigo uma impressão mais forte e dolorosa,acrescentando com aparente serenidade: - Mas, a que vem tua pergunta,se hoje estou mais que convicto, de acordo contigo mesmo, que tudoaquilo não passava de simples impressões de uma fantasia semimportância?- Fantasia? - replicou Flamínio, como se houvesse encontrado umanova fórmula da verdade. - Já modifiquei por completo as minhas idéias. Aenfermidade tem, igualmente, os seus belos e grandiosos beneficios.Retido no leito há muitos meses, habituei-me a invocar a proteção deTêmis, de modo que não chegasse a ver nos meus padecimentos mais queo resultado penoso dos meus próprios méritos, perante a incorruptíveljustiça dos deuses, até que uma noite tive impressões iguais às tuas. |
Emannuel | ...Não me recordo de haver guardado qualquer preocupação com a tuanarrativa, mas o certo é que, há cerca de dois meses, me senti levado emsonho à mesma época da revolução de Catilina, e observei a veracidade detodos os fatos que me relataste há dezesseis anos, chegando a ver o teupróprio ascendente, Públio Lentulus Sura, que era como que o teu retrato,tal a sua profunda semelhança contigo, mormente agora que te encontrasnos teus quarenta e quatro anos, em plena fixação de traços fisionômicos.Interessante é que me encontrava a teu lado, caminhando contigo namesma estrada de clamorosas iniquidades. Lembro-me de nos vermosassinando sentenças iníquas e impiedosas, determinando o suplício demuitos dos nossos semelhantes... Todavia, o que mais me atormentava eraobservar-te a terrível atitude, determinando a cegueira de muitos dosnossos adversários políticos e assistindo, pessoalmente, ao desenrolardas flagelações do ferro em brasa, queimando numerosas pupilas paratodo o sempre, aos gritos dolorosos das vitimas indefesas!...Públio Lentulus arregalou os olhos, de espanto, participando,igualmente, daquelas recordações que dormitavam fundo na sua almaensombrada, e replicou, por fim:- Meu bom amigo, tranqüiliza o coração... Semelhantes impressõesparecem reflexos de alguma emoção mais forte que perdurasse no âmagoda tua memória, por minhas narrativas naquela noite de há tantos anos!...Flamínio Severus esboçou, porém, um leve sorriso, como quemcompreendia a intenção generosa e consoladora, redargüindo com serenabondade:- Devo dizer-te, Públio, que esses quadros não me apavoraram eapenas te falo desse complexo de emoções, porque tenho a certeza de quevou partir desta vida e ainda ficarás, talvez por muito tempo, na crostadeste mundo. É possível |
Emannuel | que as recordações do teu espírito aflorem novamente e, então, quero queaceites a verdade religiosa dos gregos e dos egípcios. Acredito, agora, quetemos vidas numerosas, através de corpos diversos. Sinto que meu pobreorganismo está prestes a desfazer-se; entretanto, meu pensamento estávivaz como nunca e só em tais circunstâncias presumo entender o grandemistério de nossas existências. Pesa-me, no íntimo, haver praticado o malno pretérito tenebroso, embora haja decorrido mais de um século sobre ostristes acontecimentos de nossas visões espirituais; todavia, aqui estoudiante dos deuses, com a consciência tranqüila.Públio ouvia-o atentamente, entre penalizado e comovido. Procuravadirigir-lhe palavras confortadoras, mas a voz parecia morrer-lhe nagarganta, embargada pelas emoções daquele doloroso momento.Flamínio, porém, apertou-o de encontro ao coração, com os olhosrasos de pranto, sussurrando-lhe ao ouvido:- Meu amigo, não tenhas dúvidas sobre as minhas palavras... Querocrer que estas horas sejam as últimas... No meu escritório estão todos osteus documentos e o memorial dos negócios de ordem material quemovimentei em teu nome, na tua ausência e no concernente aos nossosproblemas de ordem política e financeira. Não encontrarás dificuldade paracatalogar, convenientemente, todos os papéis a que me refiro...- Mas, Flamínio - replicou Públio, com enérgica serenidade -, acreditoque teremos muito tempo para cuidar disso.Nesse momento, Lívia e a filha, Calpúrnia e os rapazes, acercaram-se do nobre enfermo, trazendo-lhe sorriso amigo e palavras consoladoras.O doente deu mostras de ânimo e alegria para cada um deles,encarecendo o abatimento de Lívia e a beleza exuberante de Flávia, compalavras meigas e quentes. |
Emannuel | ...Ficando a sós, novamente, o generoso senador que a moléstiadesfigurara, entre os linhos claros do leito, exclamou com bondade:- Eis, meu amigo, as borboletas risonhas do amor e da mocidade,que o tempo faz desaparecer, célere, no seu torvelinho de impiedades.E baixando a voz, como se quisesse transmitir ao amigo umadelicada confidência dalma, continuou a falar pausadamente:- Levo comigo, para o túmulo, numerosas preocupações pelos meuspobres filhos. Dei-lhes tudo que me era possível, em matéria educativa, e,embora reconhecendo que ambos possuem sentimentos generosos esinceros, noto que os seus corações são vítimas das penosas transiçõesdos tempos que passam, nos quais temos o desgosto de observar os maisaviltantes rebaixamentos da dignidade do lar e da família.Agripa vem fazendo o possível por se adaptar aos meus conselhos,entregando-se aos labores do Estado; mas Plínio teve a pouca sorte de sedeixar seduzir por amigos pérfidos e desleais, que não desejam senão asua ruína e o arrastam aos maiores desregramentos, nos ambientessuspeitos de nossas mais altas camadas sociais, levando muito longe oseu espírito de aventuras.Ambos me proporcionam os maiores dissabores com os atos quepraticam, testemunhando reduzidas noções de responsabilidadeindividual. Esbanjando grande parte da nossa fortuna própria, não sei quefuturo será o da minha pobre Calpúrnia se os deuses não me permitirem agraça de buscá-la, em breve, no exílio de sua saudade e da sua amargura,depois da minha morte!...- Mas a mim - respondeu com interesse o interpelado - eles se meafiguram dignos do pai que os deuses lhes concederam, com a suagentileza generosa e com a fidalguia de suas atitudes.- Em todo caso, meu amigo, não podes esquecer que tua ausênciade Roma foi muito longa |
Emannuel | e que muitas inovações se processaram nesse período.Parecemos caminhar vertiginosamente para um nível de absolutadecadência dos nossos costumes familiares, bem como os nossosprocessos educativos, a meu ver, desmantelados em dolorosa falência!...E como se desejasse trazer de novo a conversação para os assuntosde ordem imediata, da vida prática, acentuou- Agora que vejo tua filha esplendente de mocidade e de energia,renovo, intimamente, meus antigos projetos de trazê-la para o círculo danossa comunidade familiar.Era meu desejo que Plínio a desposasse, mas meu filho mais moçoparece inclinado a comprometer-se com a filha de Sálvio, não obstante aoposição de Calpúrnia a esse projeto; não por teu tio, sempre digno erespeitável aos nossos olhos, mas por sua mulher que não parecedisposta a abandonar as antigas idéias e iniciativas do passado. Devo,porém, considerar que me resta ainda Agripa, a fim de concretizarmos asminhas futurosas esperanças.Se puderes, algum dia, não te esqueças desta minha recomendaçãoin extremis !...- Está bem, Flamínio, mas não te canses. Dá tempo ao tempo, porquenão faltará ocasião para discutir o assunto - replicou Públio Lentulus,comovido.Neste comenos, Agripa entrou na alcova, dirigindo-se ao pai,afetuosamente:- Meu pai, o mensageiro enviado a Massília (1) acaba de chegar,trazendo as desejadas informações a respeito de Saul.- E ele nada nos manda dizer sobre a sua vinda? - perguntou oenfermo, com bondoso interesse.__________(1) Nota da Editora: atualmente, Marselha. |
Emannuel | ...- Não. O portador apenas comunica que Saul partiu para a Palestina,logo depois de alcançar a consolidação da sua fortuna com os últimoslucros comerciais, acrescentando haver deliberado ir à Judeia, para revero pai que reside nas cercanias de Jerusalém.- Pois sim - disse o enfermo, resignado -, a vista disso, recompensao mensageiro e não te preocupes mais com os meus anteriores desejos.Ao ouvi-los, Públio deu tratos ao cérebro para se recordar de algumacoisa que não podia definir com precisão. O nome de Saul não lhe eraestranho. Com a circunstância de se localizar a residência do pai nasproximidades de Jerusalém, lembrou-se, finalmente, das personagens desuas recordações, com fidelidade absoluta. Rememorou o incidente emque fôra obrigado a castigar um jovem judeu desse nome, nas cercaniasda cidade, remetendo-o às galeras como punição do seu ato irrefletido, erecordando, igualmente, o instante em que um agricultor israelita fôrareclamar a liberdade do prisioneiro, dando-o como seu filho.Experimentando um anseio vago no coração, exclamou intencionalmente:- Saul? Não é um nome característico da Judeia?- Sim - respondeu Flamínio com serenidade -, trata-se de um escravoliberto de minha casa. Era um cativo judeu, ainda jovem, adquirido porValério, no mercado, para as bigas dos meninos, ao ínfimo preço de quatromil sestércios. Tão bem se houve, entretanto, nos afazeres que lhe eramcomumente designados, que, após levantar vários prêmios com as suasproezas no Campo de Marte, destinados aos meus filhos, resolvi conceder-lhe a liberdade, dotando-o com os recursos necessários para viver epromover empreendimentos de sua própria conta. E parece que a mão dosdeuses o abençoou no momento preciso, porque Saul é hoje senhor deuma fortuna sólida, como resultado do seu esforço e trabalho. |
Emannuel | Públio Lentulus silenciou, intimamente aliviado, pois o seuprisioneiro, segundo notícias recebidas pelos prepostos do governoprovincial, se havia evadido para o lar paterno, fugindo, desse modo, àescravidão humilhante.As horas da noite iam já avançadas.O visitante lembrou-se, então, de que esperava avistar-se comFlamínio para uma palestra substanciosa e longa, a respeito de múltiplosassuntos, como, por exemplo, a sua penosa situação conjugal, odesaparecimento misterioso do filhinho, o seu encontro com Jesus deNazaré. Mas, observava que Flamínio estava exausto, sendo justo enecessário adiar suas confidências amargas e penosas.Foi então que se retirou do aposento para aguardar o dia seguinte,cheio de esperanças consoladoras.Os dois amigos trocaram longo e significativo olhar no instantedaquelas despedidas, que agora pareciam comuns, como as afetuosassaudações diárias doutros tempos.Confortadoras exortações e promessas amigas foram trocadas,entre expressões de fraternidade e carinho, antes que Calpúrniareconduzisse as visitas ao vestíbulo, com a sua bondade generosa eacolhedora.Todavia, nas primeiras horas da manhã seguinte, um mensageiroapressado parava à porta do palacete dos Lentulus, com a notíciaalarmante e dolorosa.Flamínio Sevérus piorava inesperadamente, sem que os médicosdessem aos seus familiares a menor esperança. Todas as melhorasfictícias haviam desaparecido. Uma força inexplicável lhe desequilibrara aharmonia orgânica, sem que remédio algum lhe paralisasse as afliçõesangustiosas.Dentro de poucas horas, Públio Lentulus e os seus se encontravamde novo na vivenda confortável dos amigos. |
Emannuel | ...Enquanto penetra ele, ansioso, no quarto do velho companheiro delutas terrestres, Lívia, na intimidade de um apartamento, dirige-se aCalpúrnia nestes termos:- Minha amiga, já ouviste falar em Jesus de Nazaré?A orgulhosa matrona, que não perdia a linha de suas vaidades emfamília, ainda nos momentos das mais angustiosas preocupações,arregalou os olhos, exclamando:- Porque mo perguntas?- Porque Jesus - respondeu Lívia, humildemente - é a misericórdiade todos os que sofrem e não posso esquecer-me da sua bondade, agoraque nos vemos em provações tão ásperas e tão dolorosas.- Suponho, querida Lívia - redargüiu Calpúrnia, gravemente -, queesqueceste todas as recomendações que te fiz antes de partires para aPalestina, porque, pelas tuas advertências, estou deduzindo que aceitastede boa fé as teorias absurdas da igualdade e da humildade, incompatíveiscom as nossas tradições mais vulgares, deixando-te levar nas águasenganosas das crenças errôneas dos escravos.- Mas, não é isso. Refiro-me à fé cristã, que nos anima nas lutas daexistência e consola o coração atormentado nas provações mais ríspidas emais amargosas...- Essa crença está chegando agora à sede do Império e por sinal temencontrado a repulsa geral dos nossos homens mais sensatos e ilustres.- Eu, porém, conheci Jesus de perto e a sua doutrina é de amor, defraternidade e de perdão... Conhecendo os teus justos receios porFlamínio, lembrei-me de apelar para o profeta de Nazaré, que, na Galileia,era a providência de todos os aflitos e de todos os sofredores!- Ora, minha filha, sabes que a fraternidade e o perdão das faltas nãose compadecem, de modo |
Emannuel | algum, com as nossas idéias de honra, de pátria e de família, e o que maisme admira é a facilidade com que Públio te permitiu tão íntimo contactocom as concepções errôneas da Judeia, a ponto de modificares tuapersonalidade moral, segundo me deixas entrever.- Todavia...Ia Lívia esclarecer, da melhor maneira, os seus pontos de vista, comrespeito ao assunto, quando Agripa entrou inopinadamente no gabinete,exclamando com a mais forte emoção:Minha mãe, venha depressa, muito depressa!... Meu pai pareceagonizante!...Num átimo, ambas penetraram no aposento do moribundo, que tinhaos olhos parados como se fôra acometido, inesperadamente, de umdelíquio irrefreável.Públio Lentulus guardava, entre as suas, as mãos do moribundo,mirando-lhe ansiosamente o fundo das pupilas.Aos poucos, porém, o tórax de Flamínio parecia mover-se de novoaos impulsos de uma respiração profunda e dolorosa. Em seguida, osolhos revelaram forte clarão de vida e consciência, como se a lâmpada docérebro se houvesse reacendido num movimento derradeiro. Contemplou,em torno, os familiares e amigos bem-amados, que se debruçavam sobreele, inquietos e ansiosos. Um médico muito amigo, que o assistiainvariavelmente, compreendendo a gravidade do momento, retirara-se parao átrio, enquanto em volta do agonizante somente se ouvia a respiraçãoopressa dos nossos conhecidos destas páginas.Flamínio passeou o olhar brilhante e indefinível por todos os rostos,como se procurasse, mais detidamente, a esposa e os filhos, exclamandoem frases entrecortadas:- Calpúrnia, estou... na hora extrema... e dou graças aos deuses...por sentir a consciência... desanuviada e tranqüila... Esperar-te-ei na |
Emannuel | ...eternidade... um dia... quando Júpiter... houver por bem... chamar-te parameu lado...A veneranda senhora ocultou o rosto nas mãos, dando expansão àslágrimas, sem conseguir articular palavra.- Não chores... - continuou ele, como a aproveitar os momentosderradeiros -, a morte... é uma solução... quando a vida... já não tem maisremédio... para as nossas dores...E olhando ambos os filhos, que o contemplavam com ansiedade, deolhos lacrimejantes, tomou a mão do mais moço, murmurando:- Desejaria... meu Plínio... ver-te feliz... muito feliz... É intenção tua...desposares a filha de Sálvio?...Plínio compreendeu as alusões paternas naquele momento grave edecisivo, fazendo um leve sinal negativo com a cabeça, ao mesmo tempoque fixava os olhos grandes e ardentes em Flávia Lentúlia, como a indicarao pai a sua preferência.O moribundo, por sua vez, com a profunda lucidez espiritual dos quese aproximam da morte, com plena consciência da situação e dos seusdeveres, entendeu a atitude silenciosa do filho estremecido e, tomando amão da jovem, que se inclinava afetuosamente sobre o seu peito, apertouas mãos de ambos de encontro ao coração, murmurando com íntimaalegria:- Isso é mais... uma razão... para que eu parta... tranqüilo... Tu,Agripa... hás-de ser também... muito feliz... e tu... meu caro... Públio... juntode Lívia... haverás de viver...Todavia, um soluço mais forte escapara-se-lhe inopinadamente e asucessão dos singultos violentos e dolorosos obrigou-o a calar-se,enquanto Calpúrnia se ajoelhava e lhe cobria as mãos de beijos...Lívia, também genuflexa, olhava para o alto como se desejassedescobrir os seus arcanos. A seus olhos, apresentava-se aquela câmaramortuária repleta de vultos luminosos e de outras sombras |
Emannuel | indefiníveis, que deslizavam tranqüilamente em torno do moribundo. Orouno imo dalma, rogando a Jesus força e paz, luz e misericórdia para ogrande amigo que partia. Nesse instante, lobrigou a radiosa figura deSimeão, rodeada de claridade azulina e resplandecente.Flamínio agonizava...À medida que transcorriam os minutos, os olhos se lhe tornavamvítreos e descoloridos. Todo o corpo transudava um suor abundante, quealagava o linho alvíssimo das cobertas.Lívia notou que todas as sombras presentes se haviam tambémajoelhado e somente o vulto imponente de Simeão ficara de pé, como sefôra uma sentinela divina, colocando as mãos radiosas na fronte abatidado moribundo. Notou, então, que seus lábios se entreabriam para a oração,ao mesmo tempo que doces palavras lhe chegavam, nítidas, aos ouvidosespirituais:- Pai Nosso que estais no céu, santificado seja o vossonome, venha a nós o vosso reino de misericórdia e seja feita avossa vontade, assim na Terra como nos céus!...Nesse instante, Flamínio Severus deixava escapar o último suspiro.Marmórea palidez lhe cobriu os traços fisionômicos, ao mesmo tempo queuma infinita serenidade se estampava na sua máscara cadavérica, como sea alma generosa houvesse partido para a mansão dos bem-aventurados edos justos.Somente Lívia, com a sua crença e a sua fé, pôde conservar-se deânimo sereno, entre quantos a rodeavam no doloroso transe. PúblioLentulus, entre lágrimas comovedoras, certificava-se de haver perdido omelhor e o maior dos amigos. Nunca mais a voz de Flamínio lhe falaria dasmais belas equações filosóficas, sobre os problemas grandiosos dodestino e da dor, nas correntes intermináveis da vida. E, enquanto seabriam as portas do palácio para as homenagens da sociedade ro- |
Emannuel | ...mana; e enquanto se celebravam solenes exéquias implorando a proteçãodos manes do morto, seu coração de amigo considerava a realidadedolorosa de se haver rasgado, para sempre, uma das mais belas páginasafetivas, no livro da sua vida, dentro da escuridão espessa e impenetráveldos segredos de um túmulo. |
Emannuel | 240IISombras e núpciasÀs exéquias de Flamínio compareceram numerosos afeiçoados doextinto, além das muitas representações sociais e políticas de todas asorganizações a que radicara o seu nome digno e ilustre.Entre tantos elementos, não podia faltar a figura do pretor SálvioLentulus que, nas homenagens póstumas, se fez acompanhar da mulher eda filha, que fizeram o possível por bem representar a comédia de suasfingidas mágoas pela morte do grande senador, junto de Calpúrnia que sedebulhava nas lágrimas dos seus mais dolorosos sentimentos.Ali mesmo, no palácio dos Severus, encontraram-se os membros dafamília Lentulus, com a evidente aversão de Públio pela presença daesposa do tio, enquanto as senhoras trocavam impressões dolorosas, naafetada etiqueta das trivialidades sociais.Fúlvia e Aurélia notaram, com profundo desagrado, a expressãocarinhosa de Plínio Severus para com Flávia Lentúlia, a quem distinguiacom especial atenção, nas solenidades fúnebres, como a demonstrar aspreferências do seu coração. |
Emannuel | ...Eis porque, daí a algum tempo, vamos encontrar mãe e filha empalestra animada sobre o assunto, na intimidade do lar, dando a entender amesquinhez de seus sentimentos, embora os cabelos brancos infundissemveneração na fronte materna, que, apesar disso, não se deixava vencerpelos argumentos da experiência e da idade.- Eu também - exclamava Fúlvia, maliciosamente, respondendo auma interpelação da filha - muito me surpreendi com as atitudes de Plínio,por julgá-lo um rapaz cioso do cumprimento de seus deveres; mas não meinteressei pelos modos de Flávia, porquanto sempre achei que os filhostêm de herdar fatalmente as qualidades dos pais e, mais particularmenteno caso presente, quando a herança é materna, com mais bases de certezairrefutável para o nosso julgamento.- Oh! mãe, queres dizer, então, que conheces a conduta de Lívia aesse ponto? - perguntou Aurélia, com bastante interesse.- Nem duvides que seja de outra forma...E a imaginação caluniosa de Fúlvia passou a satisfazer acuriosidade da filha, com os fatos mais inverossímeis e terríveis, sobre aesposa do senador, quando de sua permanência na Palestina, glosadospelas expressões de ironia e desprezo da jovem, dominada pelos maisacerbos ciúmes, terminando a narrativa nestes termos:- Somente tua tia Cláudia poderia contar-te, literalmente, o quesofremos, em face do perjúrio dessa mulher que hoje vemos tão simples etão retraída, como se não conhecesse as experiências mais fortes destemundo. Não podemos esquecer que nos encontramos diante de pessoastão poderosas na política, como na astúcia. O sobrinho de teu pai, além demarido profundamente infeliz, é um homem público orgulhoso emalvado!...Não me consta houvesse ele corrigido a esposa descriteriosa einfiel, depois de haver verificado, com os próprios olhos, a sua traiçãoconjugal; mas, |
Emannuel | bastou que ela o fizesse sofrer com as suas deslealdades para que todosnós, os romanos que nos encontrávamos na Judeia, pagássemos o fatocom os mais horríveis tributos de sofrimentos...Possuíamos um grande amigo na pessoa do lictor SulpícioTarquinius, que foi assassinado barbaramente em Samaria, em trágicascircunstâncias, sem que alguém, até hoje, pudesse identificar seusmatadores, para o merecido castigo... Nossa família, que tinha interessesvultosos em Jerusalém, foi obrigada a voltar precipitadamente para Roma,com graves prejuízos financeiros de teu pai e, por último - prosseguia apalavra venenosa da caluniadora -, o grande coração do meu cunhadoPôncio sucumbiu sob as provações mais injuriosas e mais rudes...Destituído do governo provincial e atormentado pelas mais durashumilhações, foi banido para as Gálias, suicidando-se em Viena, empenosas circunstâncias, acarretando-nos inextinguível desgosto!...Em face dos martírios suportados por Cláudia, em virtude da nefastainfluência dessa mulher, não me surpreendo, portanto, com as atitudes dafilha, procurando roubar-te o noivo futuroso!...- Urge trabalharmos para que tal não aconteça, minha mãe - replicoua moça sob a forte impressão dos seus nervos vibráteis. - Já não possoviver sem ele, sem a sua companhia... Seus beijos me ajudam a viver notorvelinho das nossas preocupações de cada dia...Fúlvia ergueu, então, os olhos, como a examinar melhor a ansiedadeque se estampara na fisionomia da filha, redargüindo com ar inteligente emalicioso:- Mas tu te vens entregando a Plínio, dessa maneira?A jovem, todavia, tremendo de cólera, recebeu a indireta dentro dosinfelizes princípios educativos a que obedecia desde o berço, exclamandoem fúria: |
Emannuel | ...- Que pensas, então, que fazemos indo às festas e aos circos?Porventura, serei eu diferente das outras moças do meu tempo?E, alteando a voz como alguém que necessitasse defender-sepronunciando um libelo contra o acusador, desatou em consideraçõesinconvenientes, através de termos asquerosos, rematando:- E tu, mãe, não tens igualmente...Fúlvia, porém, de um salto, colou-se ao corpo da filha numa atitudeacrimoniosa e severa, exclamando com fria serenidade:- Cala-te! Nem mais uma palavra, pois que não era meu propósitoacalentar uma víbora no próprio seio!...Compreendendo, porém, que a situação podia tornar-se mais penosaem virtude das suas grandes culpas, como mãe, como esposa e naqualidade de mulher, exclamou com voz quase melíflua, como a dar umatriste lição à própria filha:- Ora esta, Aurélia! Não te aborreças!... Se falei desse modo foi parate insinuar que não podemos cativar um homem, para as nossas garantiasfemininas no matrimônio, dando-lhe tudo de uma só vez. Um homemnervoso e galanteador, qual o filho de Flamínio, conquista-se por etapas,fazendo-lhe poucas concessões e muitos carinhos.Bem sabes que o primeiro problema da vida de uma mulher danossa época se resume, antes de tudo, na obtenção de um marido, porqueos tempos são maus e não podemos dispensar a sombra de uma árvoreque nos abrigue de surpresas penosas, entre as asperezas do caminho...- É verdade, mãe - respondeu a jovem totalmente modificada, mercêdaquelas astuciosas ponderações -; o que me dizes é a realidade e já quesão tão grandes as tuas experiências, que me sugeres para a realizaçãodos meus desejos?- Antes de tudo - retornou Fúlvia, perversamente - devemos recorreraos argumentos do ciúme, que são sempre mais fortes, quando existe |
Emannuel | um interesse mais ou menos sincero, de conseguir alguma coisa emassuntos de amor. E já que te entregaste tanto ao filho de Flamínio, vê seaproveitas as primeiras festas do circo, provocando-lhe impulsos de invejae despeito.Não tens sido cortejada pelo protegido do questor Britanicus?- Emiliano? - perguntou a moça, interessada.- Sim, Emiliano. Trata-se igualmente de um bom partido, pois o seufuturo nas classes militares parece de ótimas perspectivas. Procuraseduzir-lhe a atenção, diante de Plínio, de modo a fazermos todo opossível por conseguir-te o descendente dos Severus, que, afinal, é opartido mais vantajoso de quantos apareçam.- Mas se o plano falhar, para nosso desgosto?- Resta-nos recorrer às ciências de Araxes, com os seus ungüentose artes mágicas...Pesado silêncio fizera-se entre ambas, no exame daquelaperspectiva de recorrer, mais tarde, às forças tenebrosas de um dos maiscélebres feiticeiros da sociedade de então.Dias se passaram sobre dias, porém o filho mais moço de Flamínionão voltou a cortejar a filha do pretor Sálvio Lentulus, e quando, daí aalgum tempo, voltou a freqüentar os circos festivos e ruidosos, não tevegrande surpresa encontrando, na intimidade de Emiliano, aquela a quemse sentia ligado tão somente pelos laços frágeis e artificiais da lascívia edos hábitos viciosos do tempo.Aurélia, todavia, não se conformava, intimamente, com o abandono aque fôra votada, planejando a melhor maneira de exercer, oportunamente,sua vingança, porque Plínio, ante as vibrações cariciosas do amor deFlávia Lentúlia, parecia um homem inteiramente modificado. Afastara-seespontaneamente das bacanais comuns da época, fugindo, igualmente,dos companheiros antigos que o arrastavam no torvelinho de todos osvícios e levianda- |
Emannuel | ...des. Parecia, mesmo, que uma força nova o guiava agora para a vida,talhando-lhe de novo o coração para os ambientes caridosos e lúcidos dafamília.No palácio dos Lentulus, a vida transcorria com relativatranqüilidade.Calpúrnia passava ali os primeiros meses, depois do falecimento domarido, em companhia dos filhos, enquanto Plínio e Flávia teciam o seuromance de esperança e de amor, nas luzes da mocidade, sob a bênçãodos deuses, de quem não se esqueciam, na culminância radiosa da suadoce afeição.Alheando-se das inquietações da época, Plínio recolhia-se, sempreque possível, aos seus aposentos no palácio do Aventino, entregando-se àpintura, ou à escultura, em que era exímio, modelando em preciososmármores belos exemplares de Vênus e de Apolo, que eram dados a Fláviacomo recordação do seu intenso amor. Ela, por sua vez, compunhadelicadas jóias poéticas. musicadas na lira por suas próprias mãos,oferecendo as flores dalma ao noivo idolatrado, em cujo espírito generosocolocara os mais belos sonhos do coração.Apenas uma pessoa não tolerava aquele formoso encontro de duasalmas gêmeas. Essa pessoa era Agripa. Desde o instante em que vira afilha do senador, no porto de Óstia, pensou haver encontrado a futuraesposa. Supunha-se o único candidato ao coração daquela jovem romana,enigmática e inteligente, em cujas faces coradas brincava sempre umsorriso de bondade superior, como se a Palestina lhe houvesse impostouma beleza nova, cheia de misteriosos e singulares atrativos.Mas, à vista dos projetos de casamento do irmão com Flávia, seusplanos haviam fracassado totalmente. Debalde, presumira haverencontrado a mulher dos seus sonhos, porque a ternura, os caprichos delapertenciam ao irmão, unicamente. Foi por esse motivo que, de par com oretraimento de Plínio |
Emannuel | Severus, dentro do lar, para a organização de seus projetos futuros, Agripase desviara para uma longa série de atos impensados, acentuando, cadavez mais, a feição extravagante da sua personalidade, preferindo ascompanhias mais nocivas e os ambientes mais viciosos.No curso dos seus desvios numerosos, adoecera gravemente,inspirando cuidados à sua mãe, que se desvelava pelos filhos com omesmo carinho de sempre.Vamos encontrá-lo, desse modo, por uma bela tarde romana, nomesmo terraço onde vimos Públio Lentulus em amargas meditações, nasprimeiras páginas deste livro.Virações caridosas refrescavam o crepúsculo, ainda saturado dosclarões de sol formoso e quente.A seu lado, Calpúrnia examina algumas peças de lã, deitando-lheolhares afetuosos. Em dado momento, a veneranda senhora dirige-lhe apalavra neste termos:- Então, meu filho, rendamos graças aos deuses, porque agora tevejo muito melhor e a caminho do mais franco restabelecimento.- Sim, mãe - murmurou o moço convalescente -, estou bem melhor emais forte; todavia, espero que nos transfiramos para nossa casa dentrode dois dias, a fim de poder consolidar minha cura, procurando esquecer...- Esquecer o quê? - perguntou Calpúrnia, surpreendida.- Minha mãe - respondeu o jovem, enigmaticamente -, a saúde nãopode voltar ao corpo quando o espírito contínua enfermo!...- Ora, filho, deves abrir-me o coração com mais sinceridade e maisfranqueza. Confia-me as tuas mágoas mais íntimas, pois é possível que tepossa dar algum consolo!...- Não, mãe, não devo fazê-lo! |
Emannuel | ...E, assim falando, Agripa Severus, fosse pelo estado de abatimentoem que ainda se encontrava, fosse pela necessidade de um desabafo maisintenso, desatou em pranto, surpreendendo amargamente o coraçãomaterno com a sua inesperada atitude.- Mas que é isso, filho? Que se passa em teu íntimo, para sofreresdessa forma? - perguntou-lhe Calpúrnia, extremamente penalizada,enlaçando-o nos braços carinhosos. - Dize-me tudo!... - prosseguiu aflita. -Não me ocultes tuas mágoas, Agripa, porque eu saberei remediar asituação de qualquer modo!- Mãe, minha mãe!... - disse ele, então, num longo desabafo - eusofro desde o dia em que Plínio me arrebatou a mulher desejada... Sintonalma uma atração misteriosa por Flávia e não posso conformar-me com adolorosa realidade desse casamento que se aproxima.Acredito que, se meu pai ainda vivesse, procuraria salvar minhasituação, conquistando para mim esse matrimônio, com as resoluçõesprovidenciais que lhe conhecíamos...Esperei sempre, através de todas as venturas da mocidade, que mesurgisse no caminho a criatura idealizada em meus sonhos, para organizarum lar e constituir uma família e, quando aparece a mulher de minhasaspirações, eis que ma arrebatam, e quem?!... Porque a verdade é que, sePlínio não fôra meu irmão, não vacilaria em usar e abusar dos maisviolentos processos para atingir a consecução dos meus desejos!...Calpúrnia ouvia-o em silêncio, compartilhando das suas angústias edas suas lágrimas. Ignorava aquele duelo silencioso de sentimentos esomente agora podia compreender a moléstia indefinida que lhe devoravao filho mais velho, avassaladoramente.Seu coração possuía, porém, bastante experiência da vida e doscostumes do tempo, para ajuizar com o máximo acerto a situação e,transformando |
Emannuel | a sensibilidade feminina e os receios maternais em rígida fortaleza,respondeu-lhe comovida, acariciando-lhe os cabelos numa doce atitude:- Meu Agripa, eu te compreendo o coração e sei avaliar a intensidadedos teus padecimentos morais; precisas, porém, compreender que há navida fatalidades dolorosas, cujos problemas angustiantes devemosresolver com o máximo de coragem e paciência... Nem foi para outra coisaque os deuses nos colocaram nas culminâncias sociais, de modo aensinarmos aos mais ignorantes e mais fracos as tradições da nossasuperioridade espiritual, em face de todas as penosas eventualidades davida e do destino.Sufoca no teu íntimo essa paixão injustificável, mesmo porque, sintoque Flávia e teu irmão nasceram neste mundo com os seus destinosentrelaçados... Plínio ainda era uma criança de colo, quando teu pai jáprojetava esse matrimônio, agora prestes a consumar-se.Sê forte - continuava a nobre matrona enxugando-lhe as lágrimassilenciosas e tristes -, porque a existência exige de nós, algumas vezes,esses gestos de renúncia ilimitada!...Ergamos, todavia, nossas súplicas aos deuses! De Júpiter há-dechegar, para a tua alma ulcerada, o necessário conforto.Agripa, depois de ouvir a voz materna, sentia-se mais ou menosaliviado, como se o seu íntimo houvesse serenado após uma tempestadedos mais antagônicos sentimentos.Considerou que as ponderações maternas representavam a verdadee preparava-se, intimamente, ainda com a penosa impressão psíquica queo atormentava, para se resignar, infinitamente, com a situação dolorosa eirremediável.Calpúrnia deixou passar alguns minutos, antes de lhe dirigir apalavra novamente, como se aguar |
Emannuel | ...dasse o efeito salutar das suas primeiras ponderações, continuando:- Não te interessaria, agora, uma viagem à nossa propriedade doAvênio? Bem sei que, pela força da tua vocação e pelo imperativo dascircunstâncias, teu lugar é aqui, como sucessor de teu pai; mas, essaviagem representaria a solução de vários problemas urgentes, inclusive oteu caso íntimo.Agripa ouviu a sugestão com o máximo interesse, replicando afinal:- Minha mãe, tuas palavras carinhosas me confortaram e aceito asugestão, a ver se consigo encontrar o maravilhoso elixir doesquecimento; contudo, desejava partir com atribuições de Estado,porque, desse modo, poderia demorar-me em Massília, lá permanecendocom a autoridade que me será necessária em tais circunstâncias...- E não poderias conseguir facilmente esse propósito?- Acredito que não. Para demandar essa viagem com atribuiçõesoficiais, apenas conseguiria os meus intentos, em caráter militar.- E porque não movimentarmos nossas prestigiosas relações deamizade para obter o que desejas? Bem sabes que, com o auxílio dePúblio e do senador Cornélio Docus, Plínio aguarda promoção a oficial embreves dias, com amplas perspectivas de progresso e novas realizaçõesfuturas, no quadro das nossas classes armadas. Dizem mesmo que oImperador Cláudio, consolidando a centralização de poderes com a novaadministração, se mostra satisfeito quando transforma as regaliaspolíticas em regalias militares.A mim só me causaria orgulho e satisfação oferecer meus dois filhosao Império, para a consolidação de suas conquistas soberanas.- Assim o farei - replicou Agripa, já de olhos enxutos, como se assugestões maternas cons- |
Emannuel | tituíssem brando remédio para as suas penosas preocupações.Aos poucos, escoavam-se no horizonte os derradeiros clarõesrubros da tarde, que davam lugar a uma formosa noite cheia de estrelas.Amparado pelos braços maternos, o moço patrício recolheu-se maisconfortado aos aposentos, esperando o ensejo de providenciar quanto aosseus novos planos.Após acomodá-lo convenientemente, voltou Calpúrnia ao terraço,onde procurou repousar das intensas fadigas morais. Suplicando apiedade dos deuses, fixou nos céus constelados os olhos lacrimosos.Parecia que o coração lhe havia parado no peito para assistir aodesfile das recordações mais cariciosas e mais doces, embora com amente torturada por pensamentos amargos e dolorosos.Mais de seis meses haviam decorrido após a morte do esposo e anobre matrona sentia-se já completamente estranha na sociedade e nomundo. Fazia prodígios mentais para enfrentar dignamente a sua situaçãosocial, porquanto sentia, na sua velhice resignada, que o curso do tempovai insulando determinadas criaturas à margem do rio infinito da vida.Sentia, no ambiente e nos corações que a rodeavam, uma diferençasingular, como se faltasse uma peça do mecanismo do seu raciocínio, paracompletar um preciso julgamento das coisas e dos acontecimentos. Essapeça era a presença do esposo, que a morte arrebatara; era a sua palavraponderada e amorosa, meiga e sábia.Desde os primeiros dias de permanência na casa dos amigos,recebera de Lívia e Públio, em separado, as mais dolorosas confidênciassobre os fatos da Palestina, que lhes comprometeram para sempre aventura e tranqüilidade conjugal. Mobilizando, porém, todas as suasfaculdades de observação e análise, não conseguira pronunciar-se em |
Emannuel | ...definitivo quanto aos acontecimentos em favor da inocência da suabondosa e leal amiga. Se, aos seus olhos, Públio Lentulus era o mesmohomem integrado no conhecimento de seus nobilíssimos deveres junto doEstado e das mais caras tradições da família patrícia, Lívia pareceu-lheexcessivamente modificada nos seus modos de crer e de sentir.Na sua concepção de orgulho e vaidade raciais, não podia admitiraqueles princípios de humildade, aquela fraternidade e aquela fé ativa deque Lívia dava pleno testemunho junto dos próprios escravos, dentro dospostulados da nova doutrina que invadia todos os departamentos dasociedade.Quanto desejava ela ter ainda o esposo a seu lado, de modo a podersubmeter-lhe aqueles assuntos íntimos, a fim de lhe adotar a opiniãosempre cheia de ponderações e sabedoria... Mas, agora, estava sozinhapara raciocinar e agir, com plena emancipação de consciência, e por maisque buscasse no íntimo uma solução para o doloroso problema conjugaldos amigos, nada podia dizer, nas suas observações e no exame dastradições familiares, cultivadas, pelo seu espírito, com o máximo deorgulho e de cuidado.No céu brilhavam miríades de constelações, dentro da noite,acentuando o mistério de suas penosas divagações, quando a seusouvidos chegaram alguns rumores de passos que se aproximavam.Era Públio que, terminada a refeição, vinha igualmente ao terraço,descansar o pensamento.- Por aqui? - perguntou a matrona com bondade.- Sim, minha amiga, apraz-me voltar, em espírito, aos dias que já seforam... Por vezes, aprecio o repouso neste terraço, a fim de contemplar océu. Para mim, é de lá, dessa cúpula imensa e estrelada, que recebemosluz e vida; é lá que deve estar o nosso inesquecível Flamínio, embaladopelo carinho dos deuses generosos!... |
Emannuel | E, de fato, nobre Calpúrnia - prosseguiu o senador, atencioso -, eraeste um dos lugares prediletos de nossas palestras e divagações, quandoo sempre lembrado amigo me dava a honra de suas visitas a esta casa. Foiainda aqui que, muitas vezes, trocamos idéias e impressões sobre a minhapartida para a Judeia, nas vésperas de minha prolongada ausência deRoma, há mais de dezesseis anos!...Longa pausa sobreveio, parecendo que os dois aproveitavam asclaridades suaves da noite, com idêntica vibração espiritual, paradescerem ao túmulo do coração, exumando as lembranças mais queridas,em resignado e doloroso silêncio.Após alguns minutos, como se desejasse modificar o curso de suasrecordações, exclamou a veneranda matrona:- Lembrando-nos de tua viagem, no passado, preciso avisar-te deque Agripa deve partir para Avênio, tão logo se sinta restabelecido.Mas, que motiva essa novidade? perguntou Públio, com grandeinteresse.- Há muitos dias venho refletindo na necessidade de examinarmos,ali, os numerosos interesses de nossas propriedades, mesmo porque,antes de morrer, era intenção do meu morto cuidar pessoalmente desteassunto.- A solução do problema, porém, é tão urgente assim? E ocasamento de Plínio? Agripa não estará presente, porventura?- Acredito que não; todavia, na hipótese de sua ausência, ele serárepresentado por Saul, antigo liberto de nossa casa, que já nos mandouum mensageiro de Massília, comunicando sua presença às cerimônias.- É pena!... - murmurou o senador, sensibilizado.- Devo dizer-te, ainda mais - continuou a matrona, com serenidade -,que espero o prestigio- |
Emannuel | ...so favor da tua amizade, junto de Cornélio Docus, a fim de que consigasdo Imperador Cláudio uma boa situação para o nosso viajante, que desejapartir com atribuições oficiais, necessitando para tanto que sejamtransformados em regalias militares os direitos políticos que lhecompetem pelo nascimento.- Não será difícil consegui-lo. A atual administração interessa-semuito mais pela valorização das classes armadas.Novo silêncio verificou-se na conversação, voltando o senador aexclamar, depois de longa pausa, como se desejasse aproveitar aoportunidade para a solução decisiva do seu amargo problema:- Calpúrnia - disse ansiosamente -, ao falar de minha excursão nopassado, informaste-me da viagem forçada do nosso Agripa, no presente.E eu continuo a relembrar minha ventura desfeita, a felicidade perdida, quenunca mais voltou!...O senador observava todas as atitudes psicológicas da suavenerável amiga, ansioso por surpreender-lhe um gesto de confortosupremo. Desejava que ela, como conselheira de Lívia, quase como aprópria mãe desta, pelos laços eternos e sacrossantos do espírito, lhedissipasse todas as dúvidas, falasse da inocência da esposa,proporcionando-lhe uma certeza de que o seu coração caprichoso eegoísta de homem estava enganado; mas, em vão aguardou essa defesaespontânea, que não apareceu no instante necessário e decisivo. Arespeitável viúva de Flamínio deixara no ar o mesmo ponto de dolorosainterrogação, murmurando com voz triste, enquanto uma réstia de luar lhecoroava os cabelos brancos:- Sim, meu amigo, os deuses podem dar-nos a felicidade e podemretomá-la... Somos duas almas chorando sobre o sepulcro dos sonhosmais gratos do coração!...Aquelas palavras desalentadoras penetravam no peito sensível eorgulhoso do senador, como sabre afiado que o rasgasse vagarosamente. |
Emannuel | - Mas, afinal, minha nobre amiga - exclamou ele quase enérgico,como se esperasse resposta decisiva para a angustiosa indecisão da suaalma -, que pensas atualmente de Lívia?- Públio - respondeu Calpúrnia com serenidade -, não sei se afranqueza seria um mal em certas circunstâncias, mas prefiro ser sincera.Desde as penosas confidências que me fizeste, sobre os fatos quese desenrolaram na Palestina, venho observando nossa amiga de modo apoder advogar a causa da sua inocência perante o teu coração, mas,infelizmente, noto em Lívia as mais singulares e imprevistas diferenças deordem espiritual. E humilde, meiga, inteligente e generosa, como sempre,mas parece menosprezar todas as nossas tradições familiares e as nossascrenças mais caras.Em nossas discussões e palestras íntimas, não me revela maisaquela timidez encantadora que lhe conheci noutros tempos,demonstrando, pelo contrário, demasiada desenvoltura de opinião arespeito dos problemas sociais, que ela julga haver resolvido ao contactoduma nova fé. Suas idéias me escandalizam com as mais injustificáveisconcepções de igualdade; não hesita em classificar nossos deuses comoilusões nocivas da sociedade, para a qual tem, em todas as palavras, asmais severas recriminações, revelando singulares modificações empensamento, indo ao extremo de confraternizar com as próprias servas desua casa, como se fôra uma simples plebéia...Seria uma perturbação mental, depois de alguma queda em que asua dignidade individual fosse chamada a uma rígida reação? Seriam,talvez, influências do meio ou mesmo das escravas com quem se habituoua conviver nessa prolongada ausência de Roma? Não sei... A realidade éque, em consciência, não posso manifestar-me, por enquanto, emdefinitivo, sobre as tuas amarguras conjugais, acon- |
Emannuel | ...selhando-te a esperar melhor as demonstrações do tempo.Depois de ligeira pausa, terminou a velha matrona as suasobservações, inquirindo, com interesse:- Porque permitiste o ingresso de Lívia nessas idéias novas,deixando-a à mercê desse reformador judeu, conhecido como Jesus deNazaré?- Tens razão - murmurou Públio Lentulus, extremamente desalentado-, mas, o motivo baseou-se em circunstâncias imperiosas, porque Líviaacreditou que o profeta Nazareno nos havia curado a filhinha!...- Foste ingênuo, porque não podias admitir essa hipótese, em faceda evolução dos nossos conhecimentos, salvando, dessas perigosasinfluências espirituais, o espírito maleável de tua mulher. Está comprovadoque esse novo credo preconiza atitudes mentais humilhantes, subvertendoas mais íntimas disposições das criaturas que o aceitam. Homens ricos ede ciência, que se submetem a esses odiosos princípios dentro doImpério, em favor de um reino imaginário, parecem tresvariados porterrível narcótico, que os faz esquecer e desprezar a fortuna, o nome, astradições e a própria família!...Colaborarei contigo, afastando Flávia desses prejuízos morais,levando-a para a minha companhia, tão logo se realize o casamento denossos queridos filhos, porque a verdade é que, quanto a Lívia, tudo já fizpara convencê-la, inutilmente.- Entretanto, minha boa amiga - murmurou o senador, sensibilizado,como a defender-se perante a nobre patrícia -, observo que Lívia continuaa ser uma criatura simples e modesta, sem exigir de mim coisa alguma queatinja o terreno do exorbitante ou do supérfluo. Nestes quase dezesseteanos de íntima separação dentro do lar, somente me solicitou a licençaprecisa para prosseguir em suas práticas cristãs junto de uma antiga servade nossa casa, permissão essa que fui obrigado a conceder, |
Emannuel | considerando a continuidade de sua renúncia silenciosa e triste, noambiente familiar.- Também considero que é pedir muito pouco, mormente agora quetodas as mulheres da cidade, segundo o costume, exigem dos maridos asmaiores extravagâncias em luxo do Oriente; contudo, cumpre-meaconselhar-te, a ti que conservas intactas as nossas tradições maisqueridas, esperares mais algum tempo antes de esqueceres aseventualidades dolorosas do passado, de modo a observarmos se Líviavirá a beneficiar-se com a continuidade de nossas atitudes, voltando,finalmente, ao seio de nossas tradições e de nossas crenças!...Doloroso silêncio se fez então sentir, entre ambos, após essaspalavras.Calpúrnia supôs haver cumprido o seu dever e Públio recolheu-se,naquela noite, desalentado como nunca.Em breves dias, conseguidos seus intentos, partia Agripa emdemanda do Avênio, não obstante as rogativas do irmão e de Flávia paraque esperasse as solenidades do matrimônio. Sua resolução era, porém,inabalável e o filho mais velho de FIamínio, enfraquecido sob o peso dassuas desilusões, ia ausentar-se de Roma, por espaço de alguns anos,prolongados e dolorosos.Passavam-se os dias celeremente e, como somos obrigados acaminhar em nossa história na companhia de todas as personagens,devemos registrar que, em se vendo completamente abandonada pelohomem de suas preferências, Aurélia, ralada de venenoso despeito,resolvera aceitar a mão abnegada e afetuosa que o jovem Emiliano Lúcioslhe oferecia.Fúlvia, que acompanhara a luta silenciosa, intoxicada pelos seussentimentos inferiores, deliberou aguardar o tempo, para exercer as suassinistras represálias.E, em tempo breve, o casamento de Plínio e Flávia realizava-se comsuntuosidade discreta, no |
Emannuel | ...palácio do Aventino. O noivo, cheio de galardões militares e títuloshonoríficos, bem como a futura companheira, tocada de formosuraindefinível e de adorável simplicidade, sentiam-se venturosos como se afelicidade perfeita se resumisse tão somente na eterna fusão de seuscorações e de suas almas. Aquele dia, indubitavelmente, assinalava a horamais sagrada e mais formosa dos seus destinos.Na assistência reduzidíssima, que se compunha de relações damaior intimidade, notava-se a presença de um homem ainda jovem, querepresentava uma figura saliente naquele quadro, caracterizado,essencialmente, de acordo com a época.Seus olhos impetuosos e ardentes haviam pousado sobre a noivacom misterioso e estranho interesse.Esse homem era Saul de Gioras, que, abandonando o sobrenomepaterno, exibia agora uma nova denominação romana, segundo antigaautorização de Flamínio, de modo a valorizar, cada vez mais, a expressãosocial da sua fortuna.Debalde, o senador fez o possível para identificar aquele judeu, quese lhe figurava um velho conhecido pessoal. Saul, porém, reconhecera oseu verdugo de outrora; reconheceu e guardou silêncio, serenando asgrandes emoções do seu foro íntimo, porque, qual o pai, tinha o coraçãomergulhado nos propósitos tenebrosos de uma vindita cruel. |
Emannuel | 258IIIPlanos da trevaDepois das solenidades do casamento de Plínio, contrariamente aoque se podia esperar, o liberto judeu não regressou a Massília, pretextandonumerosos negócios que o retinham na Capital do Império.Instalado no palacete dos Severus, para onde se haviam transferidoos jovens nubentes, junto de Calpúrnia, Saul teve oportunidadesnumerosas de se avistar com o senador Públio Lentulus, mantendo ambosvárias palestras sobre a Judeia e as suas regiões importantes.Intrigado com aquele olhar ardente e aqueles traços fisionômicos,que lhe não eram totalmente estranhos, e lembrando-se perfeitamentedaquele pai que o procurara ansioso e aflito, em Jerusalém,acompanhemos o senador em uma de suas palestras íntimas com ointeressante desconhecido, na qual o abordou com esta perguntainesperada:- Senhor Saul, já que sois filho das cercanias de Jerusalém, vossopai, porventura, não se chamaria André de Gioras? |
Emannuel | ...O liberto mordeu os lábios, diante daquele ataque direto ao assuntomais delicado da sua existência, respondendo dissimuladamente:Não, senador. Meu pai não tem esse nome. Ao tempo em que fuiescravizado por mãos impiedosas e cruéis, porquanto eu não era senãouma criança mal educada e irresponsável - acentuou com profunda ironia -, meu pai era um agricultor miserável que não possuía outra coisa alémdos seus braços para o trabalho de cada dia... Tive, contudo, a felicidadede encontrar as mãos generosas de Flamínio Severus, que me guiarampara a liberdade e para a fortuna e, hoje, o meu genitor, com o pouco quelhe forneci, aumentou as suas possibilidades de trabalho, desfrutando nãosomente certa importância social em Jerusalém, como também funçõessuperiores no Templo.Mas, porque mo perguntais?O senador franziu o sobrolho, em face de tanta desenvoltura naresposta, mas, sentindo-se aliviado, por lhe parecer que não se tratava, defato, do Saul de suas penosas lembranças, respondeu com mais desafogode consciência:- É que eu conheci, ligeiramente, um agricultor israelita, por nomeAndré de Gioras, cujos traços fisionômicos não eram muito diversos dosvossos...E a conversação seguia o ritmo normal das conversações semimportância nos ambientes de convencionalismo da vida social.Saul, entretanto, deixava transparecer fulgor estranho no olhar,como quem se encontrava extremamente satisfeito com o destino, àespera de um ensejo para executar seus tenebrosos planos de vingança.Um móvel oculto e inconfessável o retinha em Roma, quandonumerosas operações comerciais requeriam sua presença em Massília,onde seu nome se radicara a grandes interesses de ordem financeira ematerial. Esse móvel era o intenso desejo |
Emannuel | de se fazer notado pela jovem esposa de Plínio, cujo olhar parecia atrai-lopara um abismo de amor violento e irreprimível.Desde o instante em que a vira com os adornos do noivado, no diaventuroso de seu enlace, parecia haver lobrigado a criatura ideal dos seussonhos mais íntimos e remotos.Na realidade, os filhos de seus antigos senhores mereciam o seurespeito e o maior acatamento; todavia, uma força maior que todos osseus sentimentos de gratidão o levava a desejar a posse de Flávia Lentúlia,a qualquer preço, ainda que fosse o da própria vida.Aqueles olhos formosos e cismadores, a graça amorosa eespontânea, a inteligência lúcida e delicada, todos os seus predicadosfísicos e espirituais, que observara agudamente, nos poucos dias depermanência na cidade, o autorizavam a crer que aquela mulher era bem otipo das suas idealizações.E foi engolfado nesse turbilhão de pensamentos sombrios que doismeses se passaram, de expectativas inconfessáveis e angustiosas, semque perdesse a mais ligeira oportunidade para demonstrar a Flávia o graudo seu afeto, da sua admiração e estima, sob as vistas amigas e confiantesde Plínio.Na soledade de suas preocupações íntimas, considerava Saul que,se ela o amasse, se correspondesse à afeição violenta do seu espíritoimpetuoso e egoísta, jamais se lembraria de exercer a planejada vingançasobre o coração de seu pai, indo buscar o jovem Marcus Lentulus para olar paterno e liquidando o pretérito de visões tenebrosas; contudo, seacontecesse o contrário, executaria os seus diabólicos projetos, deixando-se embriagar pelo vinho odiento da morte.Nessa época, corria já o ano de 47, e sem nos esquecermos deFúlvia e sua filha, vamos encontrá-las, de novo, sob o domínio dosmesmos sentimentos cruéis e tenebrosos. |
Emannuel | ...Em vão desposara Aurélia a Emiliano Lúcios, que, para ela, nãorepresentava de modo algum o tipo do homem que o seu temperamentosupunha haver encontrado no filho mais moço de Flamínio.E foi assim que, depois dos primeiros desencantos e atritos noambiente doméstico, a conselho da mãe e na sua própria companhia,procurou recorrer às ciências estranhas de Araxes, célebre feiticeiroegípcio, que tinha uma loja de mercadorias exóticas nas proximidades doEsquilino.Araxes, cujo comércio criminoso todos conheciam como fonteinesgotável de filtros milagrosos do amor, da enfermidade e da morte, eraum iniciado do antigo Egito, desviado, porém, da missão sacrossanta dacaridade e da paz, na sua violenta paixão pelo dinheiro da numerosaclientela romana, então em pletora de vícios clamorosos e na dissoluçãodos mais belos costumes do sagrado instituto da família.Explorando-lhe as paixões inferiores e os hábitos viciosos, o magoegípcio empregava quase toda a sua ciência espiritual na execução detodos os malefícios e crimes, motivando enormes danos com as suasdrogas venenosas e seus estranhos conselhos.Procurado, discretamente, por Fúlvia e a filha, inteirou-se dos fins davisita e ali mesmo, entre grandes retortas e pacotes de plantas esubstâncias diversas. mergulhou a cabeça nas mãos, como se o seuespírito estivesse devassando os menores segredos do mundo invisível,ante uma trípode e outros petrechos de ciências ocultas, com que ele,psicólogo profundo, buscava impressionar a mente sugestionável dosconsulentes numerosos que lhe solicitavam a solução dos problemas davida.Ao cabo de longos minutos de concentração, com os olhos a brilharestranhamente, o mago egípcio dirigiu-se a Aurélia, afirmando-lhe empalavras impressionantes: |
Emannuel | - Senhora, vejo à minha frente dolorosos quadros da sua vidaespiritual, no passado longínquo!... Vejo Delfos, nos dias gloriosos do seuoráculo e contemplo a sua personalidade buscando seduzir um homemque lhe não pertencia... Esse homem é o mesmo da atualidade... Asmesmas almas perambulam agora em outros corpos e a senhora devepensar na realidade dos dias que se passam, conformando-se com a nítidaseparação das linhas do destino!...Aurélia ouvia, entre surpresa e assombrada, enquanto a alma argutade sua mãe acompanhava a palestra, tocada de impressão indefinível.- Que me dizeis? - replicou a jovem senhora, no auge da suasensibilidade ferida. - Outras vidas? Um homem que não me pertencia?...Que vem a ser tudo isso?- Sim, nosso espírito, neste mundo - redargüiu o feiticeiro, comimperturbável serenidade -, tem longa série de existências, queenriquecem o nosso íntimo com o máximo de conhecimento sobre osdeveres que nos competem na vida!A senhora já viveu em Atenas e em Delfos, numa grande fase deprofundas irreflexões em matéria de amor, e, sentindo-se hoje próxima doobjeto de suas ardentes e pecaminosas paixões de outrora, julga-se comas mesmas possibilidades de satisfazer seus desejos violentos eindignos!...Por aqui, hão passado inúmeras criaturas. A muitas aconselheiperseverança nos propósitos, por vezes injustificáveis e inferiores; mas,para o seu caso, há uma voz que fala mais alto à minha consciência. Se asua irreflexão for ao ponto de provocar esse homem, em consciênciahonesto até agora, é possível que o seu coração também inquieto venha acorresponder aos seus caprichos; contudo, busque não se entregar aodesvario dessa provocação, porque o destino o reuniu, agora, à almagêmea da sua e um caminho áspero de provações amargas os espera nofuturo, para a consolidação da sua con- |
Emannuel | ...fiança mútua, da sua afeição e da sua grandeza espiritual!... Não seinterponha no caminho dessa mulher considerada pelo seu espírito comopoderosa rival!... Interpor-se entre ela e o esposo seria agravar a senhoraas suas próprias penas, porque a verdade é que o seu coração não seencontra preparado para as grandes renúncias santificantes, e aquilo quesupõe ser profundo e sublimado amor, nada mais é que caprichoprejudicial do seu coração de mulher voluntariosa e pouco disposta asacrificar-se pelo carinho de companheiro amoroso e leal, mas, sim, amultiplicar os amantes pelo número de suas vontades artificiais...Aurélia estava lívida, ouvindo essas palavras, que consideravaatrevidas e injuriosas.Desejava defender-se, mas uma força poderosa parecia comprimir-lhe a garganta, anulando-lhe o esforço das cordas vocais.Fúlvia, porém, tomada de rancor pelas expressões insultuosasdaquele homem, tomou a defesa da filha, argüindo-o com energia:- Araxes, feiticeiro impudico, que queres dizer com estas palavras?Insultas-nos? Poderemos fazer cair sobre tua cabeça o peso da justiça doImpério, conduzindo-te ao cárcere e revelando à sociedade os teussinistros segredos!.- E porventura não os tereis também, nobre senhora? - revidou eleimperturbavelmente -; estaríeis, assim, tão sem culpa, para não vacilar emcondenar-me?Fúlvia mordeu os lábios, tremendo de ódio e exclamando com fúria:- Cala-te, infame! Não sabes que tens diante dos olhos a esposa deum pretor?- Não me parece - murmurou o feiticeiro, com serena ironia -, pois asnobres matronas dessa estirpe não viriam a esta casa solicitar minhacooperação para um crime... E, ao demais, que diriam em Roma de umapatrícia, que descesse ao |
Emannuel | extremo de procurar, na intimidade, um velho feiticeiro do Esquilino?É verdade que muitos males tenho praticado na minha vida, mas,sabem-no todos que assim procedo e não busco a sombra das boassituações sociais para acobertar a hediondez da minha miserávelexistência!... Ainda assim, quero salvar a mocidade de tua filha do lôbregocaminho de tuas perversidades, porque na hipótese de seguir-te ela oscoleios de víbora, na senda de esposa criminosa e infiel, seu único fimserá a prostituição e o infortúnio, rematados com a morte ignominiosa naponta de uma espada...Fúlvia desejou revidar energicamente aos insultos de Araxes,repelindo aquelas expressões injuriosas, recebidas como atrevimentosupremo, mas Aurélia, receosa de novas complicações e compreendendoa culpabilidade de sua mãe, tomou-lhe do braço, retirando-se ambassilenciosamente, sob o olhar zombeteiro do velho egípcio, que voltara aempilhar pacotes de plantas entre numerosos vasos de substânciasestranhas.Pouco tempo, contudo, pôde ele empregar na sua faina solitária esilenciosa.Dentro de duas horas, nova personagem lhe batia à porta.Araxes surpreendeu-se à vista daquele judeu insinuante que oprocurava. O brilho dos olhos, o nariz característico, a harmonia dostraços israelitas, faziam daquele homem, ainda jovem, uma figura singulare sugestiva.Era Saul, que recorria aos mesmos processos misteriosos, na ânsiade possuir, a qualquer preço, a esposa de Plínio, buscando o talismã ou oelixir miraculoso do feiticeiro, a serviço de suas pretensões descabidas.Recebido nas mesmas circunstâncias em que o foram as duaspersonagens do nosso penoso drama, Saul expunha ao adivinho as suastorturas amorosas, junto daquela mulher honesta e digna. |
Emannuel | ...Após a habitual concentração, já do nosso conhecimento, junto datrípode em que fazia as orações costumeiras, Araxes esboçou leve ediscreto sorriso, como quem havia encontrado mais uma estranhacoincidência nos seus amplos estudos da psicologia humana. Suahesitação, todavia, durou poucos instantes, porque, em breve, se faziaouvir com voz pausada e soturna:- Judeu! - disse ele austeramente - louva o Deus de tuas crenças,porque tua face foi erguida do pó pelas mãos do homem que hoje teempenhas em trair... Mandam as leis severas da tua pátria que não venhasa desejar, nem mesmo por pensamentos, a mulher do teu próximo e muitomenos a companheira devotada e fiel de um dos teus maiores benfeitores.Dá um passo atrás no teu triste e mal-aventurado caminho! Houve tempoem que teu Espírito viveu no corpo de um sacerdote de Apolo, no temploglorioso de Delfos... Perseguiste uma jovem mulher dos misteressagrados, conduzindo-a à miséria e à morte, com os teus desvariosnefandos e dolorosos. Não ouses, agora, arrancá-la dos braços destinadosao seu amparo e proteção, à face deste mundo!... Não te intrometas nodestino de duas criaturas que as forças do céu talharam uma para aoutra!...O moço judeu, todavia, apesar de impressionado com aquelaexortação incisiva, não seguia a orientação violenta das duas mulheresque o precederam na misteriosa visita.Arrancando uma bolsa de moedas, acariciou-a nas mãos como aexcitar a concupiscência do adivinho, exclamando com voz quase súplice:- Araxes, eu tenho ouro... muito ouro, e dar-te-ei o que quiseres, pelovalioso auxílio da tua ciência... Pelo amor de teus deuses, consegue-me asimpatia dessa mulher e recompensar-te-ei generosamente a preciosidadedos esforços despendidos... |
Emannuel | Os olhos do mago egípcio faiscaram ao clarão de sentimentoestranho, contemplando a bolsa em forma de cornucópia, reluzente deouro, como se a desejasse intensamente, murmurando com maisdelicadeza:- Meu amigo, essa mulher não é cobiçada tão somente por ti esuponho que deverias contribuir para que ela não se afastasse dacompanhia do esposo!...- Mas, existe, então, ainda outro homem?- Sim, revelam-me os signos do destino que essa criatura é tambémdesejada pelo irmão do marido.Saul fez um gesto de enfado, como quem se sentia amargamenteatormentado pelos mais acerbos ciúmes, murmurando entre dentes:- Ah! sim... agora entendo melhor a viagem precipitada de Agripa, embusca de Avênio!...E, elevando a voz como quem estivesse jogando a derradeiracartada da sua ambição, falou com ansiedade:- Araxes, peço-te ainda uma vez!... Faze tudo!... pagar-te-eiregiamente!...A fronte do mago curvou-se de novo, em atitude de profundameditação, como se o espírito buscasse, no invisível, alguma forçatenebrosa, propícia aos seus sinistros desígnios.Ao cabo de alguns minutos, tornou a dizer em tom benevolente eamigo:- Parece que haverá uma oportunidade para a sua afeição, daqui aalgum tempo!...O moço judeu ouvia-o com angustiosa expectativa, enquanto asafirmações continuavam:- Dizem os signos do destino que os dois cônjuges, paraconsolidação de sua profunda afeição, de sua confiança recíproca eprogresso espiritual, estão destinados a dolorosas provas daqui a algunsanos! Dar-se-á alguma coisa que os separará dentro do próprio lar, semque eu possa precisar o que seja. Sei, tão somente, que cumpre a ambosum |
Emannuel | ...grande período de ascetismo e dolorosa abnegação, no instituto sagradoda família... Nessa ocasião, talvez, quem sabe? poderá o meu amigo tentaressa afeição ardentemente cobiçada!...- Dar-se-á, então, alguma coisa? - perguntou Saul, curioso e aflito,nas suas perquirições do assunto transcendente - mas que poderáacontecer que os separe no ambiente doméstico?- Eu mesmo não saberia dizê-lo...- E cada qual será obrigado a um ascetismo fiel e a uma dedicaçãoinquebrantável?- Manda o determinismo do destino que assim seja, mas não só oesposo, como a companheira, podem interferir nessas provas, contraindonovo débito moral, ou resgatando o passado doloroso com o preciso valormoral nos sofrimentos, empregando, no determinismo das provaçõespurificadoras, sua boa ou má vontade... Saiba que as tendências humanassão mais fortes para o mal, tornando-se possível que as suas pretensõessejam satisfeitas nessa época.- E quanto tempo deverei esperar para que isso aconteça? -perguntou o liberto, fundamente preocupado.- Alguns anos.- E será inútil tentar qualquer esforço antes disso?- Perfeitamente inútil. Sei que o nobre cliente tem numerososinteresses numa cidade distante e é justo que, neste intervalo, cuide dosseus negócios materiais.Saul fixou detidamente aquele homem que parecia conhecer os maisrecônditos segredos da sua vida, passando as suas observações pelocrivo da consciência.Deu-lhe a bolsa recheada, agradecendo a atenção e prometendovoltar em tempo oportuno.Daí a alguns dias, o moço judeu, nas vésperas da despedida,aproveitando alguns minutos de pura |
Emannuel | e simples intimidade com a jovem Flávia, dirigia-lhe a palavra nestestermos:- Nobre senhora - começou em voz quase tímida, mas com o mesmoclarão estranho de sentimentos inferiores a lhe irradiar dos olhos -, ignoroa razão do fato íntimo que vos vou revelar, mas a realidade é que vou partirpara Massília, guardando a vossa imagem no mais recôndito escaninho domeu pensamento!...- Senhor - disse-lhe Flávia Lentúlia, corando, acabrunhada -, devoviver tão só no pensamento daquele com quem os deuses iluminaram omeu destino!...- Nobre Flávia - revidou o judeu arguto, percebendo que o golpe eraprematuro e inoportuno -, minha admiração não se prende a qualquersentimento menos digno. Para mim, sois duplamente respeitável, nãosomente pela vossa alta condição de patrícia, como também pelacircunstância de serdes a companheira de um dos maiores benfeitores deminha vida.Ficai tranqüila quanto às minhas palavras, porque em meu coraçãosó existe o mais leal interesse pela vossa felicidade pessoal, junto dodigno esposo que escolhestes.Sinto por vós o que um escravo deve sentir por uma benfeitora desua existência, já que, na minha triste condição de liberto, não possoapresentar-me à vossa generosidade com as credenciais de irmão quemuito vos venera e estima.- Está bem, senhor Saul - disse a jovem, mais aliviada -, meu maridovos considera como irmão muito caro e eu me honro de associar-me aosseus sentimentos.- Muito vos agradeço - exclamou Saul, fingidamente -, e já que meentendeis tão bem o pensamento fraterno, é com o interesse de irmão queme dirijo à vossa alma generosa para prevenir-vos de um perigo...- Um perigo?... - perguntou Flávia, aflita. |
Emannuel | ...- Sim. Falo-vos confidencialmente, solicitando que guardeis omáximo segredo desta confidência fraternal.E, enquanto a jovem o escutava com a maior atenção, Saulcontinuou com as suas pérfidas insinuações.- Sabeis que Plínio foi quase noivo da filha do pretor Sálvio Lentulus,vosso tio, hoje casada com Emiliano Lúcios?- Sim... - replicou a pobre senhora, de alma oprimida.- Pois devo avisar, como irmão, que vossa prima Aurélia, a despeitodos seus austeros compromissos matrimoniais, não renunciou ao homemde suas antigas preferências; hoje fui cientificado, por um amigo, de queela tem recorrido a diversos feiticeiros de Roma, com o fim de reaver o seuafeto de outrora, a qualquer preço!...Ouvindo essas pérfidas palavras, Flávia Lentúlia experimentou oprimeiro espinho da sua vida conjugal, sentindo-se intimamente torturadapelo mais acerbo ciúme.Plínio resumia todo o seu idealismo e toda a sua felicidade demulher jovem. Depositara no seu coração todos os sonhos femininos,todas as suas melhores e mais florentes esperanças. Assaltada pelaprimeira contrariedade da sua vida social, na grande cidade de seus pais,sentia, naquele instante, a sede devoradora de um esclarecimento amigo,de uma palavra carinhosa que viesse restabelecer o equilíbrio do coração,agora turbado pelos primeiros dissabores. Faltava-lhe alguma coisa quepudesse completar as nobres qualidades do seu coração de mulher,alguma coisa que devia ser a atuação materna na sua educação, porquePúblio Lentulus, na sua cegueira espiritual, lhe moldara o caráter noorgulho da estirpe, nas tradições vaidosas dos antepassados, semdesenvolver as suas qualidades de ponderação, que a influência de Líviacriaria, certo, para notáveis florações do sentimento. |
Emannuel | A jovem patrícia sentiu o coração despedaçado por um ciúme quaseferoz; mas, compreendendo os deveres que lhe competiam em taisconjunturas, recobrou a precisa energia moral para reagir naquele primeiroembate de provas, respondendo ao moço judeu e fazendo o possível porafetar o máximo de severa e tranqüila nobreza:- Agradeço, penhorada, o interesse de vossa comunicação; todavia,nada me autoriza a suspeitar da consciência retilínea de meu esposo,mesmo porque Plínio resume todos os meus ideais de esposa e de mulher!- Senhora - revidou o judeu, mordendo os lábios -, o espíritofeminino, na sua fertilidade de imaginação, alheio à vida prática, podeenganar-se muitas vezes, pelas aparências...Folgo de ouvir-vos e louvo a vossa ilimitada confiança; porém, querofiqueis convencida de que, a qualquer tempo, encontrareis em mim umsincero defensor da vossa felicidade e das vossas virtudes!...Isso dizendo, Saul de Gioras apresentou atenciosas despedidas,deixando a pobre moça com as suas impressões de surpresa e amargura.Os primeiros infortúnios haviam atingido a vida conjugal de FláviaLentúlia, sem que ela soubesse conjurar o perigo que ameaçava a suaventura para sempreNessa noite, Plínio Severus não encontrou em casa a criaturamimosa e adorável da sua dedicação e do seu amor profundo. Naintimidade da alcova, encontrou a companheira cheia de recriminaçõesdescabidas e importunas, tocada de tristezas amarguradas eincompreensíveis, verificando-se entre ambos os primeiros atritos quepodem arruinar para sempre, no curso de uma vida, a felicidade de umcasal, quando seus corações não se encontram suficientementepreparados para a compreensão espiritual, no instituto das provasremissoras, embora |
Emannuel | ...a estrada divina de suas almas gêmeas seja um caminho glorioso para osmais elevados destinos.Em breves dias, Saul regressava a Massília, esperançoso deconcretizar algumas realizações de ordem material, de modo a regressar aRoma no menor espaço de tempo.E a vida das nossas personagens continuava, na Capital do Império,quase com a mesma fisionomia de sempre.O senador Lentulus prosseguia engolfado nas suas cogitações deordem política, procurando, sempre que possível, a residência da filha,onde mantinha as mais longas palestras com Calpúrnia, sobre o passado eas necessidades do presente.Quanto a Lívia, afastada compulsoriamente da filha, pela força dascircunstâncias; longe de sua melhor amiga de outros tempos, pelaincompreensão, e prosseguindo distante do esposo no ambiente dos seusafetos mais íntimos, refugiara-se na dedicada amizade de Ana, nas precesmais fervorosas e sinceras.Diariamente, ambas procuravam orar, em dolorosa soledade, ao pédaquela mesma cruz grosseira que lhes dera Simeão no instante extremo.Muitas vezes, ambas, em êxtase, notavam que o pequenino madeirose toucava de luz tenuíssima, ao mesmo tempo que lhes parecia ouvirlonge, no santuário do coração e dos pensamentos, exortações singularese maravilhosas.Afigurava-se-lhes que a voz branda e amiga do apóstolo da Samariavoltava do Reino de Jesus para ensinar-lhes a fé, o cumprimento do deverde caridade fraterna, a resignação e a piedade. Ambas choravam, então,como se nas suas almas sensíveis e carinhosas vibrassem as harmoniasde um divino prelúdio da vida celeste.Nessa época, instruída por alguns cristãos mais humildes, Anacientificou a senhora das reuniões nas catacumbas. |
Emannuel | Somente ali podiam reunir-se os adeptos do Cristianismo nascente,porquanto, desde os seus primeiros eventos na sociedade romana, foramas suas idéias consideradas subversivas e perversoras.O Império fundado com Augusto, que significou a maior expressãode um Estado forte em todas as épocas do mundo, depois das conquistasdemocráticas da República, não tolerava nenhum agrupamento partidário,em matéria de doutrinas sociais e políticas.Verificava-se em Roma o mesmo que hoje com as nações modernas,a oscilarem entre as mais variadas formas governamentais, ao longo doeixo dos extremismos e dentro da ignorância do homem, que teima em nãocompreender que a reforma das instituições tem que começar no íntimodas criaturas.As únicas associações admitidas eram, então, as cooperativasfunerárias, em vista de seus programas de piedade e proteção aos que jánão podiam perturbar os poderes temporais do César.Perseguidos pelas leis, que lhes não toleravam as idéiasrenovadoras; encarados com aversão pelas forças poderosas dastradições antigas, os adeptos de Jesus não ignoravam a sua futuraposição de angústia e sofrimento. Alguns editos mais rigorosos oscompeliam a ocultar a manifestação de crença, embora o governo deCláudio procurasse, sempre, o máximo de ordem e equilíbrio, sem grandesexcessos na execução dos seus desígnios.Alguns companheiros mais esclarecidos na fé advogavampublicamente as suas teses, em epístolas ao sabor da época; mas, muitoantes dos crimes tenebrosos de Domício Nero, a atmosfera dos cristãosprimitivos era já de aflição, angústia e trabalhos penosos. Desse modo, asreuniões das catacumbas efetuavam-se periodicamente, nada obstante oseu caráter absolutamente secreto. |
Emannuel | ...Grande número de apóstolos da Palestina passavam em Roma,trazendo aos irmãos da metrópole as prédicas mais edificantes econsoladoras.Ali, no silêncio dos grandes maciços de pedra, em cavernasdesprezadas pelo tempo, ouviam-se vozes profundas e moralizantes, quecomentavam o Evangelho do Senhor ou encareciam as sublimidades doseu Reino, acima de todos os precários poderes da perversidade humana.Tochas brilhantes iluminavam esses desvãos subterrâneos, que as herasprotegiam, enquanto suas portas empedradas davam a impressão deangústia, tristeza e supremo abandono.Sempre que um peregrino mais dedicado aportava à cidade, haviaum aviso comum a todos os conversos.O sinal da cruz, feito de qualquer forma, era a senha silenciosa entreos irmãos de crença, e, feito desse ou daquele modo especial, significavaum aviso, cujo sentido era imediatamente compreendido.Através dessas comunicações incessantes, Ana conhecia todo omovimento das catacumbas, colocando sua senhora a par de todos osfatos que se desenrolavam em Roma, sobre a redentora doutrina doCrucificado.Assim é que, quando se anunciava a chegada de algum apóstolo daGalileia ou das regiões que lhe são fronteiriças, Lívia fazia questão decomparecer, fazendo-se acompanhar pela serva desvelada e fiel,atravessando os caminhos a pé, embora trajasse agora a sua indumentáriapatrícia, de conformidade com a autorização do marido, para professarlivremente as suas crenças. Ela estava ciente de que, perante a sociedade,sua atitude representava grave perigo, mas o sacrifício de Simeão fôra ummarco de luz assinalando os seus destinos na Terra. Adquirira coragem,serenidade, resignação e conhecimento de si mesma, para nuncatergiversar em detrimento da sua fé ardente e pura. Se as suas |
Emannuel | antigas relações de amizade, em Roma, atribuíam suas modificaçõesinteriores à demência; se o marido não a compreendia e Calpúrnia e Plíniocavavam, ainda mais, o grande abismo que Públio havia aberto entre ela ea filha, possuía o seu espírito, na crença, um caminho divino para fugir detodas as terrenas amarguras, sentindo que o Divino Mestre de Nazaré lhedulcificava as úlceras da alma, compadecendo-se do seu coraçãoretalhado de angústias. Era-lhe a fé como um archote luminoso clareandoa estrada dolorosa, e do qual se irradiavam os clarões da confiançahumana na Providência Divina, que transforma as provações penosas daTerra em antegozo das eternas alegrias do Infinito. |
Emannuel | 275IVTragédias e esperançasA vida real sempre é prosaica, sem fantasia nem sonhos.Assim decorre a existência das personagens deste livro, na tela vivadas realidades nuas e dolorosas do ambiente terrestre.Os que atingem determinadas posições sociais, bem como os quese aproximam do crepúsculo da vida fragmentária da Terra, poucasnovidades têm a contar, com respeito ao curso de cada dia.Há um período na existência do homem, em que lhe parece não maishaver a precisa pressão psíquica do coração, a fim de que se lhe renovemos sonhos e as aspirações primeiras, figurando-se a sua situaçãoespiritual cristalizada ou estacionaria. No íntimo, não há mais espaço paranovas ilusões ou reflorescimento de velhas esperanças, e a alma, comoque em doloroso período de expectação e forçado silêncio, queda-se nocaminho, contemplando os que passam, presa aos cordéis da rotina, dassemanas uniformes e indiferentes.Estamos vivendo, agora, o ano 57, e a vida dos atores deste dramadoloroso apresenta-se quase |
Emannuel | invariável no desdobramento infindo dos seus episódios comuns eangustiosos.Apenas uma grande modificação se fizera na residência deCalpúrnia.Plínio Severus, nas suas radiosas expressões de vitalidade física, jáhavia recebido as maiores distinções por parte das organizações militaresque garantiam a estabilidade do Império. Longas e periódicaspermanências nas Gálias e na Espanha lhe haviam angariadohonrosíssimas condecorações, mas, no seu íntimo, a vaidade e o orgulhohaviam proliferado intensamente, não obstante a generosidade do seucoração.Os primeiros ciúmes ásperos da esposa fizeram-se acompanhar deconseqüências nefastas e dolorosas.Aos criminosos propósitos de Saul juntaram-se as pérfidasconfidências das amigas mentirosas, e Flávia Lentúlia, longe de gozar aventura conjugal a que tinha direito pelos seus elevados dotes de coração,descera, sem sentir, dados os seus ciúmes desmesurados, aos tenebrososabismos do sofrimento e da provação.Para um homem da condição de Plínio, era muito fácil a substituiçãodo ambiente doméstico pelas festividades ruidosas do circo, nacompanhia de mulheres alegres, que não faltavam em todos os lugares dametrópole do pecado.Em breve, o carinho da esposa foi substituído pelo falso amor denumerosas amantes.Debalde procurou Calpúrnia interpor seus bons ofícios e carinhososconselhos, e, em vão, prosseguia a jovem esposa do oficial romano no seumartírio imperturbável e silencioso.As raras queixas de Flávia eram guardadas pelo coração generosoda mãe do seu marido, ou, então, confiadas ao espírito do pai, emconfidências amarguradas e penosas.Públio Lentulus, compreendendo a importância da cooperaçãofeminina na regeneração dos costu- |
Emannuel | ...mes e no reerguimento do lar e da família, incitava a filha ao máximo deresignação e tolerância, fazendo-lhe sentir que a esposa de um homem é ahonra do seu nome e o alimento da sua vida e que, enquanto um marido seperverte no torvelinho das paixões desenfreadas, escarnecendo de todosos bens da vida, basta, às vezes, uma lágrima da mulher para que a pazconjugal volte a brilhar no céu sem nuvens do afeto puro e recíproco.Para o espírito de Flávia, a palavra paterna tinha foros de realidadeinsofismável e ela buscava amparar-se nas suas promessas e nos seusconselhos, julgados preciosos, esperando que o esposo voltasse, um dia,ao seu amor, entre as bênçãos do caminho.Enquanto isso, Plínio Severus dissipava no jogo e nas folgançasuma verdadeira fortuna. Sua prodigalidade com as mulheres tornara-seproverbial nos centros mais elegantes da cidade, e poucas vezes buscavao ambiente familiar, onde, aliás, todos os afetos se conjugavam paraesclarecer-lhe docemente o espírito desviado do bom caminho.A morte do velho pretor Sálvio Lentulus, antes do ano 50, obrigara afamília de Públio e os remanescentes de Flamínio aos protocolos sociaisjunto de Fúlvia e da filha, por ocasião das homenagens prestadas àscinzas do morto que, envolto no mistério da sua passividade resignada eincompreensível, havia passado pelo mundo.Bastou esse ensejo para que Aurélia retomasse a oportunidadeperdida. Um olhar, um encontro, uma palavra e o filho mais moço deFlamínio, enamorado das belezas pecaminosas, restabeleceu o laçoafetivo que um amor santificado e puro havia destruído anteriormente.Em breve, ambos eram vistos com olhares significativos pelosteatros, pelos circos ou pelas grandes reuniões esportivas da época.De todas essas dores, fizera Flávia Lentúlia o seu calvário deagonias silenciosas, dentro do lar |
Emannuel | que a sua fidelidade dignificava. Nas suas meditações silenciosas, muitasvezes deplorou os antigos desabafos de ciúme injustificável, queconstituíram a primeira porta para que o marido se desviasse dossagrados deveres em família; mas, no seu orgulho de patrícia, ponderavaque era muito tarde para qualquer arrependimento dela, considerando,intimamente, que o único recurso era aguardar a volta do esposo ao seucoração fiel e dedicado, com o máximo de humildade e paciência. Nosseus instantes de contristação, escrevia páginas amarguradas eluminosas, pelos elevados conceitos que traduziam, ora implorando apiedade dos deuses, em súplicas fervorosas, ora estereotipando asíntimas angústias em versos comovedores, lidos tão somente pelos olhosde seu genitor que, a chorar de emoção, considerava, muitas vezes, se adesventura conjugal da pobre filha não era igualmente uma herançasingular e dolorosa.Por volta do ano 53, desaparecia em trágicas circunstâncias, nosescuros braços da morte, uma das figuras mais fortes desta história.Referimo-nos a Fúlvia que, dois anos após o falecimento docompanheiro, acusava as mais sérias perturbações mentais, além deinquietantes fenômenos orgânicos, provenientes de passados desvarios.Feridas cancerosas devoravam-lhe os centros vitais e, por dois anosa fio, o corpo emagrecido era forçado às mais penosas e incômodasposições de repouso, enquanto os olhos inquietos e arregaladosdançavam nas órbitas, como se nas suas alucinações fosse compelida àvidência dos quadros mais sinistros e tenebrosos.Nessas ocasiões, não encontrava a dedicação da filha, que nãosoubera educar, sempre atarefada nos seus constantes compromissos defestas, encontros e representações sociais numerosas. |
Emannuel | ...Mas a misericórdia divina, que não abandona os seres maisdesditosos, dera-lhe um filho carinhoso e compassivo para as doresexpiatórias.Emiliano Lúcios, o marido de Aurélia, era desses homens dignos evalorosos, raros na paciência e nas mais elevadas virtudes domésticas.Noites e noites sucessivas, velava pela velhinha infeliz, que as doresfísicas castigavam impiedosamente com o azorrague de suplícios atrozes.Nos seus últimos dias, vamos ouvir-lhe as palavras desconexas edolorosas. Noite alta, quando as próprias escravas descansavam,subjugadas pela fadiga e pelo sono, parecia que seus ouvidos de louca seaguçavam, espantosamente, para ouvir os ruídos do invisível, dirigindoimpropérios às suas antigas vitimas, que voltavam das mais baixas esferasespirituais para rodear-lhe o leito de sofrimento e morte. Olhosdesmesuradamente abertos, como se fixassem visões fatídicas ehorrorosas, exclamava a pobre velhinha abraçando-se ao genro, no augedas suas freqüentes crises de medo e desesperação inconsciente:- Emiliano!... - exclamava em atitudes de pavor supremo. - Estequarto está cheio de seres tenebrosos!... Não percebes? Ouve bem...Ouço-lhes os impropérios rijos e as sinistras gargalhadas!... ConhecesteSulpício Tarquinius, o grande lictor de Pilatos?... Ei-lo que chega com osseus legionários mascarados de treva!... Falam-me da morte, falam-me damorte!... Socorre-me, filho meu!... Sulpício Tarquinius tem um corpo dedragão que me apavora!...Crises de soluço e lágrimas sucediam-se a essas observaçõesangustiosas.- Acalma-te, mãe! - exclamava o militar, consternado até às lágrimas.- Tenhamos confiança na bondade infinita dos deuses!...- Ah!... os deuses! - gritava agora a infeliz, em histéricas gargalhadas- os deuses... - onde |
Emannuel | estariam os deuses desta casa infame? Emiliano, Emiliano, nós é quecriamos os deuses para justificar os desvarios de nossa vida! O Olimpo deJúpiter é uma mentira necessária ao Estado... Somos uma caveiraenfeitada na Terra com um punhado de pó!... O único lugar que deveexistir, de fato, é o inferno, onde se conservam os demônios com os seustridentes no braseiro!... Ei-los que chegam em falanges escuras!...E, apegando-se fortemente ao peito do oficial, gritavadisparatadamente, como se buscasse ocultar o rosto, de sombrasameaçadoras:- Nunca me levareis, malditos!... Para trás, canalhas!... Tenho umfilho que me defende de vossas investidas tenebrosas!...Emiliano Lúcios acariciava bondosamente os cabelos brancos dadesventurada senhora, incitando-a a implorar a misericórdia dos deuses,de modo a balsamizarem-se-lhe os rudes padecimentos.De outras vezes, Fúlvia Prócula, como se tivesse a consciênciadespertada por um raio divino, dizia, mais calma, ao filho que o destino lhehavia dado:- Emiliano, estou aproximando-me da morte e preciso confessar-teas minhas faltas e grandes deslizes! Perdoa-me, filho, se tamanhostrabalhos te hei proporcionado! Minha existência misérrima foi uma longaesteira de crimes, cujas manchas horrorosas não poderão ser lavadaspelas próprias lágrimas da enfermidade que ora me conduz aosimpenetráveis segredos da outra vida! Nunca, porém, consegui ponderaras amarguras terríveis que me esperavam. Hoje, nas pesadas sombrasdalma, sinto que minha consciência se tisna do carvão apagado do fogodas paixões nefastas que me devoraram o penoso destino!... Fui esposadesleal, impiedosa, e mãe desnaturada...Quem se apiedará de mim, se houver uma claridade espiritual apósas cinzas do túmulo? Deste leito de loucura e agonia desesperada, vejo odes- |
Emannuel | ...file incessante de fantasmas hediondos, que parecem esperar-me nopórtico do sepulcro!... Todos profligam meus crimes passados e mostram-se jubilosos com os padecimentos que me arrastam à sepultura!Sem uma crença sincera, sinto-me entregue a esses dragões doimponderável, que me fazem evocar o passado criminoso e sombrio!...Uma torrente de lágrimas de compunção e arrependimento seguia-sea esses instantes vertiginosos, de raciocínio e lucidez.Emiliano Lúcios afagava-lhe, com carinho, a face rugosa, imergindo-se ele mesmo em cismas dolorosas.Aquele quadro lancinante era bem o fim tempestuoso de umaexistência de deslizes clamorosos.Sim... ele tudo compreendia agora. A rebeldia da esposa, a suaincompreensão, os atritos domésticos, aquela sede insaciável de festasruidosas em companhia de afetos que não eram os dele, deviam ser osfrutos amargos de educação viciada e deficiente. Mas, seu coração estavacheio de generosidade sem limites. Espírito valoroso, compreendia asituação, e quem compreende perdoa sempre.Uma noite em que a doente manifestava crises acentuadas eprofundas, o bondoso oficial ordenou que as servas se recolhessem.A pobre louca falava sempre, como se fôra tocada de energiainesgotável e incompreensível.Copioso suor inundava-lhe a fronte, tomada de febre alta econstante.- Emiliano - gritava ela desesperadamente -, onde está Aurélia, quenão busca velar à minha cabeceira nas vésperas da morte? Como as falsasamizades de minha vida, terá ela também horror do meu corpo?- Aurélia - explicou generosamente o oficial - precisava desobrigar-se hoje de um compromisso com as amigas, na organização de algunsserviços sociais! |
Emannuel | - Ah! - exclamou a demente, em sinistras gargalhadas - os serviçossociais... os serviços sociais!... Como pudeste crer nisso, filho meu? Tuamulher, a estas horas, deve estar ao lado de Plínio Severus, seu antigoamante, em algum lugar suspeito desta cidade miserável!...Emiliano Lúcios fez o possível para que a infeliz dementada nãoprosseguisse em suas revelações terríveis e impressionantes; mas Fúlviacontinuava o libelo tremendo e doloroso:- Não, não me prives de continuar... - prosseguia desesperadamente.- Ouve-me ainda! Todas as minhas acusações representam a criminosarealidade... Muitas vezes, a verdade está com aqueles queenlouqueceram!... Fui eu própria que induzi minha infeliz filha aos desviosconjugais... Plínio Severus era o inimigo que ela precisava vencer, naqualidade de mulher... Facilitei-lhe o adultério, que se consumou sob esteteto!... Certifica-te, filho meu, da enormidade das minhas faltas!...Horroriza-te, mas perdoa!... E vigia tua mulher para que não continue atrair-te com as suas perfídias torpes, e não venha um dia a apodrecer,lamentavelmente, como eu, num leito de sedas perfumosas!...O generoso militar acompanhava, boquiaberto e aflito, aquelasrevelações assombrosas.Então a esposa, além de não o compreender no seu idealismo, aindao traia vergonhosamente, no próprio ambiente sacrossanto do lar?Emoções dolorosas represavam-se-lhe no coração, mas, possivelmente,todas aquelas palavras não passavam de simples delírio febril, nademência incurável. Uma dúvida horrível e impiedosa aninhara-se-lhe nocoração angustiado. Algumas lágrimas umedeceram-lhe os grandes olhostristes, enquanto a enferma dava uma trégua às penosas revelações.Dai a minutos, porém, com voz estentórica, continuava:- E Aurélia? Que é feito de Aurélia que não vem? Por onde andaráminha pobre filha crimi- |
Emannuel | ...nosa e infiel? Amanhã, meu filho, hei-de confiar-te os infames segredos danossa existência desventurada.Alguém, todavia, penetrara no aposento contíguo, cautelosa esilenciosamente. Era Aurélia, que voltava de uma festividade ruidosa, ondeo vinho e os prazeres haviam jorrado em abundância.Depois de atravessar a porta próxima, ainda ouviu as últimaspalavras da mãe, no auge da febre e da desesperação doentia. Ela, queouvira as tristes revelações de pouco antes, considerou que a doente, nodia imediato, haveria de cumprir a terrível promessa e, num relance,examinou todas as probabilidades de execução da idéia tenebrosa que lhepassara pela mente criminosa e infeliz. Seus olhos pareciam vidrados decólera, sob o azorrague de um pensamento mórbido, que lhe aflorararepentinamente no coração frio e impiedoso.Despiu os trajes da festa, reintegrando-se nos aspectos interiores dolar, e abriu uma nova porta, dirigindo-se ao leito materno, onde acariciou amãe fingidamente, enquanto o esposo incompreendido a contemplava, decérebro fervilhante e dolorido, sob o domínio das dúvidas mais acerbas.- Mãe, que é isso? - perguntou, afetando uma preocupaçãoimaginária. - Estás cansada... precisas repousar um pouco.Fúlvia fitou-a profundamente, como se um clarão de lucidez lhehouvesse clareado repentinamente o espírito abatido. A presença da filhatranqüilizava de algum modo o seu coração dorido e a consciênciadilacerada. Sentou-se com esforço, no leito, afagou os cabelos da filha,como sempre costumava fazer na intimidade, deitando-se em seguida eparecendo com boa disposição de repousar.Emiliano Lúcios retirou-se da cena, considerando que sua presença já nãoera necessária.Mas Aurélia continuava a falar com o seu fingido carinho: |
Emannuel | - Queres, mãe, uma dose do calmante para o repouso preciso?A pobre louca, na sua inconsciência espiritual, fez um sinalafirmativo com a cabeça.A jovem encaminhou-se ao seu aposento privado e, retirandominúsculo tubo de um dos móveis prediletos, deixou pingar algumas gotasnuma pequena taça de sedativo, monologando: - "Sim!... um segredo ésempre um segredo... e só a morte pode guardá-lo convenientemente!..."Caminhou, sem hesitação, para o leito materno, onde, por mais dedois anos, jazia a infeliz, devorada pelo câncer e atormentada pelas visõesmais sinistras e tenebrosas.Num relance, o horrível envenenamento estava consumado.Ministrada a poção corrosiva e violenta, Aurélia determinou, então, queduas escravas velassem o sono da enferma, como de costume, aoregressar das noitadas ruidosas, esperando o resultado da ação criminosae injustificável.Em duas horas, a enferma apresentava os mais evidentes sinais desufocação sob a ação do corrosivo, que constituía mais um daquelesfiltros misteriosos e homicidas da época.Ao chamamento aflito das servas, todas as pessoas da casa secolocaram a postos, dado o penoso estado da enferma.Emiliano Lúcios contemplou-lhe os olhos, que se iam apagando novéu da morte, e debalde procurou fazer que a agonizante lhe dissesseainda uma palavra. Seus membros frios foram-se enrijando devagarinho eda boca começou a escapar-lhe espuma rósea.Em vão foram chamados os entendidos da medicina, naquelesderradeiros instantes. Naquela época, nem os esculápios conheciam ossegredos anatômicos do organismo, nem havia polícia técnica paraaveriguar as causas profundas das mortes misteriosas. O envenenamentode Fúlvia correu por conta das moléstias incompreensíveis que, durante |
Emannuel | ...muitos meses, lhe haviam minado todos os centros de vitalidade.Contudo, aquela agonia rápida não passou despercebida a Emiliano,que juntou mais uma dúvida penosa aos amargos pensamentos que lhenegrejavam o foro íntimo.Aurélia buscou representar, do melhor modo, a comédia dasentimentalidade em tais circunstâncias, e depois das cerimôniassimplificadas e rápidas, em vista da imediata decomposição cadavérica,que forçou a incineração em breves horas, o antigo lar do pretor SálvioLentulus tornou-se o abrigo de dois corações que se odiavammutuamente.Se a esposa infiel, logo após os primeiros dias de luto, retornava àsua existência de regalados prazeres, Emiliano Lúcios nunca pôdeesquecer as revelações de Fúlvia, nas vésperas do seu desprendimento,envolvendo-se, então, num véu de tristeza que lhe cobriu o coração pormais de dois anos.Em 54, subia Domício Nero ao poder, fazendo-se acompanhar deuma depravada corte de áulicos perversos e de concubinas tão numerosasquão desalmadas.Muito tarde, reconheceu Agripina a inconveniência de sua atitudematernal obrigando o imperador Cláudio a anuir ao casamento de sua filhaOtávia com aquele que, mais tarde, iria eliminar-lhe a própria vida com osmaiores requintes de perversidade.O Fórum e o Senado receberam, tremendo, a sombria notícia daproclamação do novo César pelas legiões pretorianas, não tanto por ele,mas porque sabiam, de antemão, que aquele príncipe ignorante e cruel iatornar-se um fácil joguete dos espíritos mais ambiciosos e mais perversosda corte romana.Ninguém, todavia, ousou protestar, tal a série de crimes tenebrosos,perpetrados impunentemente, para que Domício Nero atingisse osbastidores do supremo poder. |
Emannuel | No ano 56, o envenenamento do jovem Britanicus punha arrepios deterror em todos os patrícios.Medidas ignominiosas foram postas em prática para humilhar ossenadores do Império, que não conseguiram efetivar os seus protestosformais. Todas as famílias mais importantes da cidade conheciam que,diante de si, tinham os filtros venenosos de uma Locusta, a tirania e aperversidade de um Tigelinus, ou o punhal de um Aniceto.A morte inesperada de Britanicus, porém, provocara certodescontentamento, dando azo a que se manifestassem alguns espíritosmais valorosos.Entre esses, encontrava-se Emíliano Lúcios, que se viu logo emsérias perspectivas de banimento, tornando-se vigiado pelos inúmerosesbirros do Imperador.O generoso oficial buscou recolher-se o mais que lhe era possível,evitando a possibilidade de conflitos. Recrudesceram as suas angústiasíntimas e as suas meditações tornaram-se mais profundas e dolorosas...E, assim, certa vez, às primeiras horas de uma noite tranqüila,quando se recolhia ao lar, contrariamente aos seus hábitos mais antigos,notou que o aposento da esposa estava cheio de vozes animadas ealegres. Observou que Aurélia e Plínio se embriagavam no vinho de seusvenenosos prazeres e, olhos traduzindo incoercível espanto, viu que aesposa o traía no próprio tálamo conjugal.Emiliano Lúcios sentiu que espinho mais agudo lhe penetrava ocoração sensível e generoso, ao verificar, por si mesmo, aquela realidadecruel. Teve ímpetos de chamar o amante ao campo da honra para morrerou eliminar-lhe a vida, mas considerou, simultaneamente, que Aurélia nãomerecia tal sacrifício.Enojado de tudo que se referia à sua época e sentindo-se vencidonas desventuras do seu penoso destino, o nobre oficial retirou-se para oan- |
Emannuel | ...tigo gabinete do pretor Sálvio, onde estabelecera a sede de seus trabalhosdiurnos e, tomado de sinistra e dolorosa resolução, abriu velho armárioonde se alinhavam pequenos frascos, retirando um deles, de configuraçãoespecial, a fim de satisfazer os amargos propósitos do seu espíritoexausto.Diante da taça de cicuta, o cérebro dorido perdeu-se, por minutos,em pungentes conjeturas, mas, estudando intimamente todas as suasprobabilidades de ventura, ponderou, no auge do desespero, que, à traiçãoda mulher, às ameaças de proscrição e de banimento ou à possibilidade deum ataque nas sombras, era preferível o que ele considerava o consoloderradeiro da morte.Num instante, sem que os amigos espirituais pudessem demovê-lodo intento terrível, tal a subitaneidade do gesto desesperado e irrefletido,sorveu o conteúdo de pequena taça, descansando depois a jovem cabeçasobre os braços, estirado num leito próprio do triclínio, mas adaptado aoseu gabinete antigo, abarrotado de mármores e pergaminhos preciosos.A morte horrível não se fez esperar muito, e, no círculo numeroso desuas relações de amizade, enquanto Aurélia representava nova farsa depesares imaginários, comentava-se o suicídio de Emiliano, não comoconsequência direta de suas profundas desilusões domésticas, mas comofruto da tirania política do novo imperador, sob cujo reinado tantos crimesforam cometidos, diariamente, nas sombras.Sozinha, agora, no seu campo de ação, Aurélia entregou-selivremente aos seus desvarios, amplificando as suas inclinações nocivas eprocurando reter, cada vez mais, junto de si o homem de suaspreferências, objeto de suas desenfreadas ambições.Em casa dos Lentulus e dos Severus, a vida continuava a desfiar orosário das desventuras.Havia mais de cinco anos, em 57, que Saul de Gioras se encontravadefinitivamente instalado |
Emannuel | em Roma, sem haver desistido dos seus desejos e propósitos a respeitoda esposa do amigo e benfeitor. Consolidada a sua fortuna no comércio depeles do Oriente, não perdia ele as mínimas oportunidades para evidenciara excelência de sua situação material à mulher cobiçada de longos anos;Flávia Lentúlia, porém, fizera da existência um calvário de resignação,comovedora e silenciosa.A vida pública do marido era, para o seu espírito, um prolongado edoloroso suplício moral. Sobre o assunto, fazia Saul, de vez em quando,referências indiretas, no intuito de chamar-lhe a atenção para o seu afeto,mas a pobre senhora nele não via outra individualidade, além de umamigo, ou irmão. Debalde, o moço judeu testemunhava-lhe sua admiraçãopessoal, em gestos de extrema gentileza, buscando oferecer-lhe a suacompanhia; mas, a verdade é que os apelos de sua alma impetuosa eapaixonada não encontravam. ressonância no coração daquela mulher,que enfeitava com a dor a dignidade do matrimônio.Tocado pelas expressões do seu dinheiro, Araxes animava-lhe asesperanças sem o deixar esmorecer nos seus perigosos instintos.Plínio Severus só vinha ao lar de vez em quando, alegando serviçosou viagens numerosas para justificar a continuidade de sua ausência. Malse precatava ele de que as despesas astronômicas lhe arruinavam, poucoa pouco, as possibilidades financeiras, conduzindo igualmente os seusfamiliares ao esgotamento de todos os recursos.Algumas vezes, mantinha colóquios afetuosos com a esposa, aquem se sentia preso pelos laços de afeição eterna e profunda, mas asseduções do mundo eram já muito fortes no seu coração, para seremextirpadas. No íntimo, desejava voltar à calma do lar, à vida carinhosa etranqüila; mas, o vinho, as mulheres e os ambientes ostentosos eram apermanente obsessão do seu espírito combalido; outras vezes, emboraamando a esposa ternamente, |
Emannuel | ...não lhe perdoava a circunstância da sua superioridade moral, irritando-secontra a própria humildade que ela testemunhava em face dos seusdesatinos, e regressava novamente aos braços de Aurélia, como vítimaindecisa entre as forças do bem e do mal.No ano 57, a saúde de Calpúrnia, abalada em extremo, obrigara afamília a reunir-se em torno do leito da matrona generosa. Pela primeiravez, após o casamento do irmão, voltou Agripa Severus de suas longasaventuras em Massília e em Avênio, para junto de sua mãe enferma eabatida, atendendo-lhe os sentidos apelos. Reencontrar Flávia Lentúlia eparticipar com ela das claridades do ambiente doméstico, foi o mesmo quereavivar velho vulcão adormecido.A um golpe de vista, compreendeu a situação conjugal de Plínio,procurando substituir-lhe o afeto junto da esposa desvelada e meiga.Desejava confessar-lhe todo o seu amor ardente e infeliz, mas guardava nocoração sublime respeito fraternal por aquela mulher, que confiava nelecomo irmão muito amado.Foi assim que, nas alternativas de melhora da velha enferma, Flávialhe aceitou a companhia para distrair-se nalguns espetáculos da rumorosacidade da época.Tanto bastou para que Saul envenenasse os acontecimentos,supondo nessas expansões inocentes uma ligação menos digna, que lheenchia de pavorosos ciúmes o coração violento e irascível.Na primeira oportunidade, insinuou a Plínio Severus todas as suascavilosas suspeitas, arquitetando, com a sua imaginação doentia,situações e acontecimentos que jamais se verificaram. O esposo de Fláviaera desses homens caprichosos, que, organizando um circulo de liberdadeilimitada para si próprio, nada concedem à mulher, nem mesmo no terrenodas afeições desinteressadas e puras. Dessa forma, Plínio Severuscomeçou a acatar a palavra |
Emannuel | de Saul, concedendo-lhe aos conceitos insensatos o mais largo crédito, noseu foro íntimo. Ele, que deixara a companheira afetuosa ao abandono eque, por largos anos, dera azo às mais penosas amarguras domésticas,sentiu-se, então, ralado de ciúmes acerbos e inconcebíveis, passando aespionar os menores gestos do irmão e a desconfiar dos mais secretospensamentos da esposa, esperando que a moléstia irremediável de suamãe tivesse uma solução na morte, que se presumia para breve, a fim dese pronunciar com mais força na reivindicação dos seus direitosconjugais.Entrava o ano de 58, com amarguradas perspectivas para as nossaspersonagens.Um fato, porém, começava ferir a atenção de todas as personagensdesta história real e dolorosa.A dedicação de Lívia à sua velha amiga doente era um exemplo rarode amor fraterno, de carinho e bondade indefiníveis. Oito meses a fio, suafigura franzina e silenciosa esteve a postos dia e noite, sem descanso,junto ao leito de Calpúrnia, provando-lhe com exemplos a excelência dosseus princípios religiososMuitas vezes, a nobre matrona considerou, intimamente, asuperioridade moral daquela doutrina generosa, que estava no mundo paralevantar os caídos, confortar os enfermos e os tristes, disseminando asmais formosas esperanças com os desiludidos da sorte, em confronto comos seus velhos deuses que amavam os mais ricos e os que oferecessemos melhores sacrifícios nos templos, e aquele Jesus humilde e pobre,descalço e crucificado, de que lhe falava Lívia em suas palestras íntimas ecarinhosas.Calpúrnia estava plenamente modificada, às vésperas da morte. Aconvivência contínua da velha amiga renovara-lhe todos os pensamentos ecrenças mais radicadas. Tratava melhor as escravas que lhe beiravam oleito e pedira a Lívia lhe |
Emannuel | ...ensinasse as preces do profeta crucificado em Jerusalém, o que ambasfaziam de mãos postas, quando os aposentos da enferma ficavamsilenciosos e desertos. Nesses instantes, a viúva de Flamínio Severussentia que as dores abrandavam, como se bálsamo suave lhe refrescasseos centros íntimos de força; cessavam as dispneias dolorosas e arespiração quase se normalizava, como se profundas energias do planoinvisível lhe reanimassem o coração escleroso e fatigado.Ao espírito de Públio não passavam despercebidos esses sintomasde modificação moral da velha matrona, nem tampouco o nobreprocedimento da esposa, que nunca mais repousou, desde o instante emque a vira inerme e exausta. Os sofrimentos da vida haviam igualmentemodificado muito a estrutura da sua organização espiritual e, como nunca,sentia o senador a necessidade de se reconciliar com a esposa, paraenfrentar os invernos penosos da velhice que se aproximava.Não só ele, como Lívia, já haviam ultrapassado meio século deexistência, e agora, que tão bem conhecia a vida e os seus dolorososmecanismos de aperfeiçoamento, se sentia apto a perdoar todas as faltasda esposa, no pretérito, considerando que os seus vinte e cinco anos demartírio moral, no sacrossanto ambiente doméstico, bastavam para redimi-la das faltas que, porventura, houvesse cometido, nas ilusões damocidade, em terra estranha, conforme supunha em suas falsasobservações, filhas ainda da calúnia que lhe destruíra a ventura e a paz deuma existência inteira.Nos primeiros dias do ano 58, os padecimentos de Calpúrnia foramsubitamente agravados, esperando-se a cada momento o penosodesenlace.Os filhos e os mais íntimos lhe rodeavam o leito, grandementecomovidos, embora reconhecessem a necessidade de repouso paraaquele corpo doente e esgotado. |
Emannuel | Na antevéspera da morte, a veneranda senhora pediu que adeixassem sozinha com o senador, por algumas horas, alegando anecessidade de confiar a Públio Lentulus algumas disposições "inextremis".Atendida, imediatamente, vamos encontrá-los em íntimo colóquio,como se estivessem juntos pela última vez, para decisão de assuntosimportantes e supremos.Públio, ainda em pleno vigor de sua compleição física, tinha osolhos rasos dágua, enquanto a velha matrona o contemplava, deixandotransparecer um clarão de viva lucidez nos olhos calmos e profundos.- Públio - começou ela, gravemente, como se aquelas palavrasfossem as suas últimas recomendações -, para os espíritos de nossaformação não pode existir o receio da morte, e é por esse motivo quedeliberei falar-te nas minhas horas derradeiras...- Mas, minha boa amiga - respondeu o senador, franzindo a testa eesforçando-se por dissimular a comoção que lhe ia nalma, lembrando-sede que, nas mesmas circunstâncias, lhe falara FIamínio pela última vez,entre as paredes daquele quarto -, somente os deuses podem decidir denossos destinos e só eles conhecem os nossos últimos instantes!...- Não duvido dessas verdades - acudiu a valorosa patrícia -, mas,tenho a certeza de que as minhas horas na Terra chegam a termo e nãoquero levar para o túmulo o remorso de uma falta que reconheço havercometido há mais de dez anos...- Uma falta? Nunca... Vossa vida, Calpúrnia, foi sempre um dos maisraros exemplos de virtude nesta época de transição e degenerescênciados nossos mais belos costumes...- Agradeço-te, meu grande amigo, mas tua gentileza não me eximeda penitência perante o teu espírito, afirmando que há mais de dez anoserrei |
Emannuel | ...num julgamento, pedindo-te hoje recebas a minha retificação, talvez tardia,mas ainda a tempo de santificarmos, com o mais justo respeito, uma vidade sacrifícios e de abnegações!...Públio Lentulus adivinhou que se tratava de sua mulher e, com vozembargada pela comoção e pelas lágrimas, deixou que a velha amigacontinuasse, de olhos enxutos, manifestando o mais subido valor moralem face da morte que se aproximava.- Refiro-me a Lívia - continuou Calpúrnia, em tom comovido -, arespeito de quem tive a infelicidade de te transmitir uma suposição errôneae injusta, cortando-lhe a última possibilidade de ventura na Terra; mas, amorte renova as nossas concepções da vida e os que estão prestes aabandonar este mundo possuem uma visão mais clara de todos osproblemas da existência.Hoje, meu amigo, digo-te, de alma serena, que tua esposa éimaculada e inocente...O senador sentia que o pranto lhe brotava espontaneamente dosolhos, mas estava intimamente confortado por saber que a venerávelamiga confirmava, agora, as convicções que o tempo lhe aumentaraquanto à nobilíssima companheira de sua existência.- Não to digo simplesmente por uma questão de egoísmo pessoal,em penhor de agradecimento pelas supremas dedicações de Lívia paracomigo no decurso desta dolorosa enfermidade - continuou ela,valorosamente. - Um espírito do nosso estofo deve estar com a verdadeacima de tudo, e esta minha confissão não se verifica tão somente pelasobservações da minha fraqueza toda humana.A realidade, todavia, meu amigo, é que, desde aquela noite em queme pediste opinasse sobre tua esposa e minha desvelada amiga, sinto oespinho de uma dúvida cruel no meu coração dilacerado. Lívia foi semprea minha melhor companheira, e contribuir para a sua desventura,injustificada- |
Emannuel | mente, era aos meus olhos a suprema falta de toda a vida...Por onze anos, orei constantemente e ofereci numerosos sacrifíciosnos templos, para que os deuses me inspirassem a verdade sobre oassunto e, por todo esse tempo, tenho esperado pacientemente arevelação do céu... Só hoje, porém, me foi dado obtê-la, já nos pórticos dosepulcro!...É possível que minha pobre alma, já semiliberta, esteja participandodos incompreendidos mistérios da vida do além-túmulo e talvez seja porisso que, hoje pela manhã, vi a figura de Flamínio neste quarto!... Era muitocedo e eu estava só, com as minhas meditações e as minhas preces!...Nesse ínterim, a palavra da enferma tornara-se entrecortada deprofundas emoções que a dominavam, enquanto Públio Lentulus chorava,em doloroso silêncio.- Sim... - prosseguiu Calpúrnia, depois de longa pausa -, no meio deuma luz difusa e azulada, vi Flamínio a estender-me os braços carinhosose compassivos... No olhar, observei-lhe a mesma expressão habitual deternura e, na voz, o timbre familiar, inesquecível... Avisou-me que dentro dedois dias penetrarei os mistérios indevassáveis da morte, mas essarevelação do meu fim próximo não me podia surpreender... porque, parimim... que há tantos anos vivo no meu exílio de saudades e sombras...acrescido das continuadas angústias da enfermidade longa e dolorosa... acerteza da morte constitui supremo consolo... Confortada pelas docespromessas da visão, as quais me auguravam esse brando alívio parabreves horas...perguntei ao espírito de Flamínio sobre a dúvida cruel que me dilaceravahá tantos anos... Bastou que a argüísse mentalmente, para que a radiosaentidade me dissesse em alta voz... meneando a cabeça num gestodelicado... como a exprimir infinita e dolorosa tristeza: "Calpúrnia, em máhora duvidaste daquela a quem deverias amar... e pro- |
Emannuel | ...teger como a filha querida e carinhosa... porque Lívia... e uma criaturaimaculada e inocente..."Nesse instante... - continuou a enferma, com alguma dificuldade -, talfoi a impressão dolorosa de minhalma... com a surpresa da resposta... quenão mais lobriguei a visão carinhosa e consoladora... como se fosserepentinamente chamada às tristes realidades da vida prática.A velha matrona tinha os olhos marejados de lágrimas, enquanto osenador se entregava silenciosamente ao pranto de suas comoçõespenosas.Longos minutos estiveram ambos assim, na atitude de quem davacurso ao remorso e ao sofrimento...Afinal, foi ainda a valorosa patrícia quem rompeu o pesado silêncio,tomando as mãos do amigo entre as suas mãos descarnadas e brancas,exclamando:- Públio, fala-te o coração de uma velha amiga, com as verdadesserenas e tristes da morte... Acreditas piamente nas minhas dolorosasrevelações?...O senador fez um esforço para enxugar as lágrimas que lhe caiamcopiosamente dos olhos, e, movimentando o máximo de energias, replicoufirmemente:- Sim, acredito.- E que faremos agora... para reparar nossas faltas... ante o coraçãogeneroso e justo de tua mulher?...Ele deixou transparecer um clarão de ternura nos olhos, e, passandoas mãos inquietas pela fronte, como se houvera encontrado solução quasefeliz, dirigiu-se à doente, com uma irradição de alegria e de tranqüilidadeno semblante, dizendo confortado:- Sabeis da grande festa do Estado, que se realizará de hoje apoucos dias, na qual os senadores, com mais de vinte anos de serviço aoImpério, serão coroados de mirto e rosas, como os triunfadores? |
Emannuel | - Sim - respondeu a matrona -, tanto que já pedi a meus filhos que...não obstante a minha morte próxima... te acompanhem nessa justaalegria... porque serás um dos agraciados pelas nossas autoridadessupremas...- Ó, minha grande amiga, ninguém pode esperar vossa morte,mesmo porque, não poderemos prescindir da preciosa contribuição davossa vida; mas, já que cuidamos de reparar o meu erro grave no passadodoloroso, esperarei mais uma semana para levar ao espírito de Lívia aexpressão do meu reconhecimento, da minha gratidão e do meu profundoamor. Irei a essa festa, a realizar-se sob os auspícios de Sêneca, que tudotem feito por dissimular a penosa impressão causada pela conduta crueldo Imperador, seu antigo discípulo. Depois de receber a coroa da supremavitória de minha vida pública, trarei todas as condecorações aos pés deLívia, como preito justo à sua angustiada existência de penosos sacrifíciosdomésticos... Ajoelhar-me-ei ante a sua figura santificada e, retirando dafronte a auréola do Império, deporei as flores simbólicas a seus pés, quebeijarei humildemente com o meu arrependimento e as minhas lágrimas,traduzindo-lhe gratidão e amor infindos!...- Generosa idéia, meu filho - exclamou a enferma, sensibilizada -, epeço-te que a executes... no momento oportuno. E, no instante... em quetestemunhares a Lívia o teu amor supremo... dize-lhe que me perdoe...porque eu chorarei de alegria... vendo ambos felizes... lá das sombrastranqüilas do meu sepulcro.Ambos choravam, comovidos, silenciosamente.Em dado instante, a velha doente apertou as mãos do amigo, como adizer-lhe um supremo adeus. Calpúrnia fixou nele os grandes olhos claros- a desprenderem irradiações misteriosas, e, com lágrimas de emoçãoinexprimível, exclamou comovidamente: |
Emannuel | ...- Públio... peço... não te esqueças... do prometido... Ajoelha-te aospés de Lívia... como aos de uma deusa... de renúncia e de bondade... Nãote importe... a minha partida deste mundo... Vai à festa do Senado...reparemos... nossa falta grave... e agora, meu amigo... um último pedido...Vela por meus filhos... como se fossem teus... Ensina-lhes ainda ahonradez... a fortaleza... a sinceridade e o bem... Um dia... todos nos... nosreuniremos... na eternidade...Públio Lentulus apertou-lhe as mãos, sensibilizado, ajeitando-lhe,nas sedosas almofadas, a cabeça encanecida, enquanto lágrimas decomoção lhe embargavam a voz.Havia muito que a enferma era atacada, subitamente, de periódicas eprolongadas dispneias.O senador abriu as portas do largo aposento aonde Lívia acorreu,pressurosa, como enfermeira de todos os instantes, enquanto Flávia ealgumas servas acudiam com ungüentos e outras panacéias da medicinado tempo.Calpúrnia, porém, parecia atacada pelas últimas aflições que alevariam ao túmulo. Por vinte e quatro horas consecutivas, o peito arfousibilante, como se a caixa toráxica estivesse prestes a rebentar sob oimpulso de uma força indomável e misteriosa.Ao fim de um dia e uma noite de azáfama e angústias, a doenteparecia haver experimentado ligeira melhora. A respiração fazia-se menospenosa e os olhos revelavam grande serenidade, embora todo o corpoestivesse salteado de manchas azuladas e violáceas, prenunciando amorte. Apenas a afonia continuava, mas, em dado instante, fez um gestocom a mão, chamando Lívia à cabeceira com a terna familiaridade dosantigos tempos. A esposa do senador atendeu ao apelo silencioso,ajoelhando-se, com os olhos cheios de lágrimas e compreendendo, pelaintuição espiritual, que era chegado o instante doloroso da despedida. Via-se |
Emannuel | que Calpúrnia desejava falar, inutilmente. Foi então que cingiu Lívia,amorosamente, contra o peito, osculando-lhe os cabelos e a fronte numesforço supremo e, colando os lábios ao seu ouvido, balbuciou cominfinita ternura: - "Lívia, perdoa-me!" Somente a interpelada escutara obrando cicio da agonizante. Foram essas as derradeiras palavras deCalpúrnia. Dir-se-ia que sua alma valorosa necessitava, tão somente,daquele último apelo para conseguir desvencilhar-se da Terra, elevando-seao Paraíso.Abraçada à incansável amiga, a agonizante depôs novamente acabeça nas almofadas, para sempre. Suor abundante transbordava de todoo seu corpo, que se aquietou de leve para a suprema rigidez cadavérica e,dai a minutos, seus olhos se fecharam, como se se preparassem para umgrande sono. A respiração foi-se extinguindo brandamente, enquanto umalágrima pesada e branca lhe rolava nas faces enrugadas, como um raiodivino da luz que lhe clarificava a noite do túmulo.As portas do palácio abriram-se, então, para os tributos afetuososda sociedade romana. As exéquias da valorosa matrona compareceu o quea cidade possuía de mais nobre e mais fino, em sua aristocracia espiritual,dado o elevado conceito em que eram tidas as peregrinas virtudes damorta.Terminadas as cerimônias da incineração e guardadas as cinzasilustres da nobre patrícia nas sombras do jazigo familiar, Flávia Lentúliaassumiu a direção da casa, enquanto seus pais voltavam à residência doAventino, para o necessário descanso.Faltavam somente quatro dias para a realização das grandes festas,em que mais de uma centena de senadores receberia a auréola dosupremo triunfo na vida pública. Públio Lentulus, que seria doshomenageados na festa memorável, não obstante o luto da família,aguardava o grande momento, com ansiedade. É que, recebida aexpressão supre- |
Emannuel | ...ma da vitória de um homem de Estado, levá-la-ia aos pés da esposa, comosímbolo perene do seu afeto e do seu reconhecimento da vida inteira. Noseu íntimo, arquitetava a maneira mais doce de se dirigir novamente àcompanheira, no timbre caricioso e suave que a sua voz havia perdido hávinte e cinco anos, e, verificando a continuidade do seu amor, cada vezmais profundo, pela esposa, esperava ansiosamente o instante da suareintegração na felicidade doméstica.De noite, naquelas horas longas que se passavam, enquanto o velhocoração se preparava para as bênçãos da ventura conjugal, em brevesdias, ia ele até às proximidades dos apartamentos da esposa, situadosbem distantes do seus, naqueles prolongados anos de amarguras infindas.Na antevéspera das grandes festividades a que nos referimos,seriam vinte e três horas, quando a sua figura se postara em frente aosaposentos da companheira, antegozando o ditoso momento da penitência,que significava para ele uma alegria suprema.Enquanto o pensamento se afundava nos abismos do passadolongínquo, sua atenção espiritual foi repentinamente despertada pelamelodia suave de uma voz de mulher, que cantava baixinho no silêncio danoite. O senador aproximou-se, vagarosamente, da porta, colando o ouvidoà escuta... Sim! Lívia cantava em voz apagada e mansa, qual cotoviaabandonada, fazendo soar levemente as cordas harmoniosas de uma lirade suas lembranças mais queridas. Públio chorava comovido, ouvindo-lheas notas argentinas que se abafavam no ambiente restrito do quarto, comose Lívia estivesse cantando para si própria, adormentando o coraçãohumilde e desprezado, para encher de consolo as horas tristes e desertasda noite. Era a mesma composição das musas do esposo, que lheescapava dos lábios naquele instante em que a voz tinha tonalidadesestranhas e maravilhosas, de indefiní- |
Emannuel | vel melancolia, como se todo o seu canto fosse o lamento doloroso derouxinol apunhalado:Alma gêmea da minhalma,Flor de luz da minha vida,Sublime estrela caídaDas belezas da amplidão!...Quando eu errava no mundo,Triste e só, no meu caminho,Chegaste, devagarinho,E encheste-me o coração.Vinhas na bênção dos deuses,Na divina claridade,Tecer-me a felicidadeEm sorrisos de esplendor!...És meu tesouro infinito,Juro-te eterna aliança,Porque sou tua esperança,Como és todo o meu amor!Alma gêmea da minhalma,Se eu te perder, algum dia,Serei a escura agoniaDa saudade nos seus véus...Se um dia me abandonares,Luz terna dos meus amores,Hei-de esperar-te, entre as floresDa claridade dos céus...Daí a minutos, a voz harmoniosa calava, como se fôra obrigada a umdivino estacato. O senador retirou-se, então, com os olhos marejados delágrimas, refletindo consigo mesmo: - "Sim, Lívia, de hoje a dois dias hei-de provar-te que foste sempre a luz da minha vida inteira... Beijarei teuspés com a minha humildade agradecida e saberei entornar no teu coraçãoo perfume do meu arrependimento..."Penetrando no aposento de Lívia, vamos encontrá-la genuflexa,depois de haver deposto, sobre um |
Emannuel | ...móvel predileto, a lira das suas recordações. Ajoelha-se, como sempre,diante da cruz de Simeão que, nesse dia, mostrava a seus olhos espirituaisuma claridade mais intensa.No curso de suas preces, ouviu a palavra do amigo invisível, cujatonalidade profunda parecia gravar-se, para sempre, no imo da suaconsciência: "Filha - exclamava a voz amiga, do plano espiritual -, regozija-te no Senhor, porque são chegadas as vésperas da tua ventura eterna eimorredoura! Eleva o pensamento humilde a Jesus, porque não está longeo instante ditoso da tua gloriosa entrada no seu Reino!..."Lívia deixou transparecer no olhar uma atitude de alegria e surpresa,mas, cheia de confiança e fé na providência divina, guardou, nos refolhosmais íntimos do coração, o conforto daquelas palavras sacrossantas. |
Emannuel | 302VNas catacumbas da fé e no circo do martírioNo dia imediato à cena que acabamos de descrever, vamosencontrar, juntas, as duas grandes amigas que, longe de serem a senhorae a serva, eram duas almas unidas pelos mesmos ideais, ligadas peloselos mais santos do coração.Ana acabava de chegar a casa, depois de cumprir algumasobrigações no Fórum Olitorium, (1) quando, encontrando Lívia mais a sós,lhe disse confidencialmente:- Senhora, hoje à noite uma nova voz se levantará no santuário dascatacumbas, para as pregações da nossa fé. Amigos nossos me avisaram,esta manhã, que, já há alguns dias, se encontra na cidade um emissário daigreja de Antioquia, chamado João de Cleofas, portador de significativasrevelações para nós outros, os cristãos desta cidade...Lívia deixou transparecer um clarão de íntimo contentamento nosolhos, exclamando:__________(1) Mercado de legumes. - Nota de Emmanuel. |
Emannuel | ...- Ah! sim... havemos de ir hoje às catacumbas. Tenho necessidadede comungar com os nossos irmãos de crença, nas mesmas vibrações danossa fé! Além disso, preciso agradecer ao Senhor a misericórdia dassuas graças imensas...E elevando um pouco a voz, como se desejasse comunicar à amigao santo júbilo de suas esperanças mais íntimas, exclamou com ternosorriso a lhe irradiar no semblante calmo:- Ana, desde a morte de Calpúrnia, noto que Públio está mais serenoe mais esclarecido... Nestes últimos dias, tem-me dirigido a palavra com aternura de outros tempos, havendo-me afirmado, ainda ontem, que seucoração me reserva doce surpresa para amanhã, depois da sua vitóriasuprema na vida pública. Sinto que é muito tarde para que seja novamentefeliz neste mundo, mas, em suma, estou intimamente satisfeita, porquenunca desejei morrer em desarmonia com o companheiro que Deus meconcedeu para as lutas e alegrias da vida. Acredito que nunca me perdoaráo crime de infidelidade que julga haver eu praticado há vinte e cinco anos,mas choro de contentamento ao reconhecer que Públio me sente redimida,ante a severidade de seus olhos!...E chorava, comovida, enquanto a velha criada lhe afiançava comternura:- Sim, minha senhora, talvez tenha ele reconhecido as suasabnegações santificantes no lar, nestes longos anos de sacrifíciosabençoados.- Agradeço a Jesus tamanha misericórdia - revidou Lívia,sensibilizada. - Suponho mesmo que não estou longe de partir para omundo das realidades celestes, onde todos os sofredores hão-de serconsolados...E depois de ligeira pausa, continuou:- Ainda ontem, quando orava junto à cruz singela, lá no quarto, ouviuma voz que me anunciava o Reino de Jesus para muito breve. |
Emannuel | Ouvindo-a, Ana lembrou-se subitamente de Simeão e das horas queantecederam os seus sacrifícios, mergulhando-se em dolorosas cismas.Suas recordações remontavam ao passado longínquo, quando a voz deLívia novamente a despertou nestes termos:- Ana - dizia com as heróicas decisões da sua fé -, não sei comoserei chamada pelo Messias, mas, na hipótese da minha breve partida,peço-te continuares nesta casa, no teu apostolado de trabalho esacrifícios, porque Jesus há-de abençoar-te os labores santificantes.A antiga serva dos Lentulus queria dar novo rumo à conversaçãopungente e exclamou com a serenidade criteriosa que lhe conhecemos:- Senhora, sabe Deus qual de nós partirá primeiro. Esqueçamos,hoje, este assunto para pensar tão somente nas suas santificadas alegrias.E, como para encerrar a angustiada impressão daquela palestraíntima, rematou perguntando, confidencialmente:- Então, iremos hoje, de fato, às catacumbas?- Sim. Fica combinado. À noitinha, partiremos para as nossasorações e carinhosas lembranças do Messias Nazareno. Tenhonecessidade desse desafogo espiritual, após os longos meses que estiveretida junto da minha nobre Calpúrnia; além disso, desejo pedir aosnossos irmãos que orem comigo por ela, testemunhando ao mesmotempo, ao Senhor, meu sincero agradecimento pelas suas graças divinas...Ao partirmos, peço-te me atives a memória, pois quero levar ao novoapóstolo uma espórtula destinada à igreja de Antioquia.Se, amanhã, Públio vai receber o supremo galardão do homem domundo, quero rogar a Jesus não lhe abandone o coração intrépido egeneroso, para que as vaidades da Terra não o inibam de buscar, algumdia, o reino maravilhoso do céu! |
Emannuel | ...Assim entendidas, separaram-se na azáfama dos misteresdomésticos. E enquanto o senador, durante todo o dia, tomavaprovidências numerosas para que nada faltasse ao brilho pessoal do seugrande triunfo no dia imediato, Lívia passava as horas, de alma voltadapara o Cristo, em preces fervorosas.À noitinha, consoante combinaram, lá se foram à secreta reuniãodas práticas primitivas do CristianismoTodos os servos graduados do palácio viram-nas sair, sempreocupação nem surpresa. Em todo o longo período da moléstia deCalpúrnia, Lívia e Ana nunca mais haviam fixado a sua presença no interiordo lar e não seria de estranhar que ambas houvessem deliberado buscar aresidência dos Severus, naquela noite, de onde, possivelmente, nãovoltariam senão no dia seguinte, depois de confortarem o espírito abatidode Flávia, no desdobramento de seus fadigosos encargos domésticos.Foi assim que as horas passaram, tranqüilas e descuidadas; equando o senador se aproximou dos aposentos da esposa, antegozandoas profundas alegrias esperadas para o dia seguinte, presumiu, no pesadosilêncio ali reinante, a significação do seu calmo repouso, nas asas leves ecariciosas do sono. Imaginando que Lívia descansava na paz soberana danoite, Públio Lentulus recolheu-se ao seu gabinete particular, com océrebro referto de radiosas esperanças, no propósito de se penitenciar detodos os seus erros do passado.Lívia, porém, em companhia de Ana, aproveitara-se das primeirassombras da noite para atingir as catacumbas.Passava das dezenove horas, quando ambas se ocultavam entre aspedras abandonadas que davam acesso aos subterrâneos, onde seamontoava a velha poeira dos mortos.Num vasto espaço abobadado, que servira outrora às assembléiasdas cooperativas funerárias, |
Emannuel | reunia-se grande número de pessoas em torno da figura simpática egenerosa do culto pregador, que chegara da Síria distante. A um canto,erguia-se improvisada tribuna, para onde, dai a minutos, subia João deCleofas, dentro do halo de doçura que lhe aureolava a singularindividualidade.O apóstolo de Antioquia trazia à cabeça os primeiros cabelosbrancos e toda a sua figura estava saturada de forte magnetismo pessoal,que ligava intimamente a sua personalidade a quantos se lheaproximavam, levados pela doce afinidade da crença e dos sentimentosprofundos.Todos os presentes pareciam empolgados por sua palavra sedutorae impressionante, que se fez ouvir por quase duas horas sucessivas,caindo no coração do auditório como orvalho sublime da eloquênciaceleste. Conceitos elevados e proféticas observações ressoavam pelasarcadas silenciosas e sombrias, fracamente iluminadas pela claridade dealgumas tochas.De fato, a assembléia tinha razão de se eletrizar com aqueledoloroso e sublime profetismo, porque João de Cleofas pronunciavaprofunda alocução, mais ou menos nestes termos:- Irmãos, seja convosco a paz do Cordeiro de Deus, Nosso SenhorJesus-Cristo, na intimidade da vossa consciência e no santuário do vossocoração!...O santo patriarca de Antioquia, nas suas preces e meditações decada dia, recebeu numerosas revelações do Messias, ordenando a vindade um mensageiro ao ambiente de vossos trabalhos na capital do mundo,a fim de anunciar-vos grandes coisas...Pelas revelações do Espírito Santo, os cristãos desta cidadeimpiedosa foram escolhidos pelo Cordeiro para o grande sacrifício. E euvos venho anunciar nossa breve entrada no Reino de Jesus, em nome dosseus apóstolos bem-amados!... |
Emannuel | ... 307Sim, porque aqui, onde todas as glórias divinas foram escarnecidase humilhadas pela impenitência das criaturas, se hão-de travar osprimeiros grandes embates das forças do bem e do mal, preludiando oestabelecimento definitivo, no mundo, da divina e eterna mensagem doEvangelho do Senhor!Na última reunião geral dos crentes de Antioquia, manifestaram-seas vozes do céu, em línguas de fogo, como aconteceu nos dias gloriososdo cenáculo dos apóstolos, depois da divina ressurreição do nossoSalvador; e o vosso servo, aqui presente, foi escolhido para emissáriodessas noticias confortadoras, porque as vozes celestes nos prometem oReino do Senhor, em breves dias...Amados, acredito que estamos em vésperas dos mais atrozestestemunhos da nossa fé, pelos sofrimentos remissores, mas a cruz doCalvário deverá iluminar a penosa noite dos nossos padecimentos...Eu também tive a felicidade de ouvir a palavra do Senhor, nas horasderradeiras da sua dolorosa agonia, à face deste mundo. E que pedia ele,meus queridos, senão o perdão infinito do Pai para os algozes implacáveisque o atormentavam? Sim, não duvidemos das revelações do céu...Verdugos inflexíveis rondam nossos passos e eu vos trago a mensagemdo amor e da fortaleza em Nosso Senhor Jesus-Cristo!Roma batizará sua nova fé com o sangue dos justos e dosinocentes; mas, também importa considerar que o Cordeiro imáculo deDeus Todo-Poderoso se imolou no madeiro infamante, para resgatar ospecados e aviltamentos do mundo!...Andaremos, talvez, nestas vias suntuosas, como em novas ruas deuma Jerusalém apodrecida, cheia de desolação e de amargura... Clamamas vozes celestes que, aqui, seremos desprezados, humilhados,vilipendiados e vencidos; mas, a vitória suprema do Senhor nos esperaalém das palmas espinhosas do martírio, nas claridades doces do seureino, inacessível ao sofrimento e à morte!... |