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Humberto de Campos
Mas o Senhor replicou-lhes na sua misericórdia: - “Todas as vossas ciências são respeitáveis, mas valerão muito pouco se não tivestes caridade. Toda sabedoria, sem a bondade, é como luz que não aquece, ou como flor que não perfuma... A questão da felicidade humana está claramente resolvida na prática do meu Evangelho, como a solução algébrica define os vossos problemas de matemática. O Reino do Céu ainda é a mansão prometida aos simples e pobres da Terra, que vêm a mim isentos de soberba e de vaidade!...” Aqui, Sr. Prefeito, não se mede o espírito pela posição que haja ocupado no mundo. A indumentária nada representa para as leis sábias e justas da espiritualidade. Não obstantes os seus conhecimentos teológicos, não se esqueça que os manuais dos santos são compêndios de teorias da Terra. A prática é bem outra e é desta que voltamos para lhe falar dos argumentos mais firmes. Aproveite a oportunidade que Jesus lhe colocou em mãos e reconsidere seu ato, reparando-o. sua memória será então abençoada pela infância brasileira, votada ao desamparo pelos nossos políticos, que cuidam durante a vida inteira dos seus interesses e dos seus eleitorados. E um dia, quando não for mais o Sr. Prefeito Municipal e sim o nosso irmão Olímpio, seu coração há de sentir, nos mais recônditos refolhos, a suavidade das mãos veludosas do Jardineiro Divino, plantando os lírios perfumados da paz nas profundezas do seu mundo íntimo. E, quando essas flores destilarem nos seus olhos o aroma bendito das lágrimas de gratidão e reconhecimento, uma voz branda e suave murmurará aos seus ouvidos: - “Guarda, meu filho, a minha recompensa. Regozija-te no Senhor, pois que foste meu servo e tiveste caridade!...”
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2 de janeiro de 1937 Os grandes Espíritos, que sob a tutela amorosa de Jesus dirigem os destinos da Humanidade, reuniram-se há pouco tempo, nos planos da erraticidade, para discutirem o método de se estabelecer o Gênio da Paz na face da Terra. A essa assembléia de sábios das coisas espirituais e divinas, compareceram anciãos da sociedade de Marte, estudiosos de Saturno, cientistas e apóstolos de Júpiter e outros representantes da vida do nosso sistema solar. Estudaram, reunidos, todos os séculos passados, esmerilhando a antiguidade egípcia, as eras clássicas, o império romano, o advento do Cristianismo, os tempos apostólicos, a Idade Média, a Revolução Francesa, o progresso científico e filosófico do século XIX e a última experiência dolorosa das criaturas humanas, em 1914, concluindo que, depois de tantas lições sábias e justas, a humanidade terrestre estaria preparada para receber em seu seio o Gênio da Paz, edificando-lhe um templo no coração atormentado e sofredor. E os mentores dos destinos humanos deliberaram aceitar unanimemente essa hipótese, marcando, porém, um dia para nova reunião coletiva, a fim de ouvirem o Mensageiro da Paz, que partiria com a tarefa de investigar todos os elementos ao seu alcance, para a consecução desse grandioso projeto. E o mensageiro partiu. Deixava os seus penates celestes cheios de harmonias e de carícias maravilhosas. O sistema solar era todo uma lira de luz, desferindo um cântico de glorificação a Deus no infinito dos espaços: Saturno com as suas luas e com os seus anéis rutilantes, Marte com os seus satélites graciosos, Vênus com a sua vida primária, enchendo o Céu de perfume, e as estradas aéreas formadas no éter delicioso, alcatifadas de estrelas e flores evanescentes. Após atravessar essa região de belezas indefiníveis e depois de penetrar as camadas de ozone que revestem as massas atmosféricas do orbe terrestre, colocando as criaturas vivas a salvo dos raios desconhecidos e mortíferos do espectro solar, o Mensageiro sentiu-se oprimido sob uma atmosfera de fumo sufocante, e, em breve, estudava a situação de todos os países para colher notícias necessárias aos seus superiores, dos planos espirituais. No dia aprazado, comparecia, torturado e abatido, à presença dos seus maiores. Os anciãos veneráveis, que haviam deliberado a sua vinda ao planeta terreno, esperavam-no com expectativas promissoras. Mas, o nobre expedicionário começou a expor as suas opiniões sem otimismo e sem esperança: - “Senhores – disse inicialmente -, nossas previsões não se realizaram. A Terra toda, na atualidade, é um perigoso rastilho de pólvora. Todas as nações estão prontas para a guerra.
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A luta, ali, é um produto inevitável dos labores ideológicos das criaturas humanas. Procurei um lugar onde fosse possível estabelecer as minhas atividades, sem encontrar elementos para esse fim, em parte alguma. Debalde tentei sobrepor as minhas influências nos gabinetes públicos, nas doutrinas da coletividade, ou no santuário dos corações. Os homens ainda não conseguem entender nossos alvitres e conselhos. Nenhum deles cuida da necessidade de paz, com sinceridade e desinteresse. Alguns falam em meu nome, para levantarem recompensas e honrarias nos torneios políticos, ou literários. Desgraçadamente, porém, não podem prescindir das necessidades negras da guerra!” Verificou-se, na assembléia augusta e respeitável, um movimento penoso de assombro. Ali se encontravam Espíritos diretores de povos, de raças, e de todos os ideais que nobilitam a Humanidade. E os antigos gênios, inspiradores das raças eslavas e germânicas, solicitaram notícias dos seus subordinados, mas a entidade amiga respondeu com franqueza: - “Os povos que se acham sob a vossa carinhosa tutela vivem a fase terrível do mais desenfreado armamentismo. A Alemanha já reocupou a Renânia, readquirindo, igualmente, o território do Sarre e preparando-se para reconquistar o seu império colonial. Antevendo as grandes guerras que se aproximam, os alemães estão aproveitando toda as suas capacidades inventivas na criação de novos elementos de destruição, nas indústrias bélicas. Seus zepelins atravessam todos os continentes do mundo, a pretexto de turismo, estudando a situação topográfica dos outros países, arquitetando um novo sonho de imperialismo internacional. Com a teoria do racismo, ela procura levantar o plano nefasto da sua hegemonia no Globo, criando toda a espécie de aparelhos para o domínio do mundo. A Rússia prepara-se, inventando novos engenhos para a indústria da guerra, arrancando o suor dos seus filhos para fomentar a sua ideologia política na face da Terra, incentivando revoltas e sacrificando corações. A Polônia gasta, na atualidade, um terço dos orçamentos com as forças armadas e todas as outras pequenas nacionalidades, que floresceram nas margens do Danúbio, não escondem a sua posição na corrida armamentista destes últimos tempos, fortificando-se para a luta do porvir...” E vieram os gênios inspiradores das raças latinas, obtendo a mesma resposta: - “A França e a Itália – prosseguiu o embaixador solícito -, que foram sempre as nações diretoras do pensamento da latinidade, estão entregues a todos os desregramentos das indústrias da guerra. A primeira, dominada pelas obrigações de ordem política, coloca-se em uma posição perigosa em face dos países que eram seus antigos aliados; a segunda, acaba de realizar a campanha condenável de conquista do território abissínio, com os mais abjetos espetáculos da força. As aviações francesas e italianas, seus vasos de guerra, seus milhares de homens da infantaria motorizada, causam dolorosa surpresa aos espíritos pacifistas do mundo. A Espanha afoga-se numa onda incendiária de sangue, e todas as outras nações européias, inclusive a Inglaterra, que despedaça no momento todas as lanças ao seu dispor, para a conservação do seu império colonial, se preparam para a carnificina do futuro. Não se pode esperar nenhum esforço em favor da paz, por parte das raças latinas.”
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E vieram, em seguida, os seres tutelares dos povos da Mongólia, recebendo idêntica resposta: - “A China está cheia de fogo e de sangue... O Japão, repleto de associações secretas, de espionagem, para a realização dos projetos nipônicos na guerra futura. As ilhas orientais estão dominadas pelo imperialismo do século, fomentando-se dentro delas as lutas sociais, políticas e religiosas...” E chegaram, depois, nesse inquérito, os gênios que presidem ao destino das livres Américas, obtendo sempre a mesma resposta: - “Os vossos subordinados – exclamou o lúcido e bem informado Mensageiro -, inconscientes dos tesouros econômicos que possuem, perdem-se num labirinto de lutas políticas de todos os matizes. As nações do Norte vivem idealizando todos os poderes destrutivos para serem utilizados na sua defensiva, esperando-se, ali, mais tarde, o perigo das forças amarelas. Atormentados pelos preconceitos, entregam-se, por vezes, a linchamentos e distúrbios sociais, incompatíveis com o seu alevantado progresso. Os americanos do Sul esquecem suas possibilidades na solução do problema da concórdia humana, entregando-se, de vez em quando, aos excessos das paixões políticas, que os arrastam à sangria fratricida das guerras civis, cujo único objetivo é multiplicar o número dos infelizes e dos desafortunados do mundo...” Depois de penosas discussões, vieram os grandes gênios inspiradores das ciências físicas e morais da Humanidade terrestre; todavia, o Gênio da Paz continuou com a sua palavra inflexível e dolorosa: - “Não se pode esperar um esforço sério das correntes religiosas da Terra, a favor da tranqüilidade dos homens; com raras exceções, quase todas estão divididas em núcleos de combate recíproco, dentro de atividades e interesses anticristãos. Quanto às ciências físicas, todas as suas atenções estão voltadas para o extermínio e para a morte. Criaram-se na Terra os mais terríveis aparelhos de defesa antiaérea, que fazem explodir aviões e outras poderosas máquinas de guerra, gases mortíferos, torpedos do ar e do mar, salientando-se o torpedeiro moderno, que poderá carregar 2.800 toneladas e que destrói fatalmente o alvo objetivado e atingido; metralhadoras elétricas, cômodas e velozes, de tiros rápidos, graças ao sistema rotativo; canhões antiaéreos oferecendo capacidade para o tiro vertical de 15.000 metros... A Terra é um vasto pandemônio de armas, de maquinarias e munições... Percorri todas as cidades, todas as organizações e todos os lares, improficuamente!...” A essa altura, quando a confusão de vozes se estabelecia no recinto iluminado, onde se reuniram as falanges espirituais do Infinito, o Gênio da Verdade, que era o supremo diretor desse conclave angélico dos espaços, exclamou gravemente: - “Calai-vos, meus irmãos!... Ninguém, na Terra, poderá colocar outro fundamento a não ser o de Jesus-Cristo. A evolução moral dos homens será paga com os mais penosos tributos de sangue das suas experiências. As criaturas humanas conhecerão a fome, a miséria, a nudez, a carnificina e o cansaço, para aprenderem o amor dAquele que é o Jardineiro Divino dos seus corações. Transformarão as suas cidades em ossuários apodrecidos, para saberem
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erguer os monumentos projetados no Evangelho do Divino Mestre. Chega de mensagens, de arautos e mensageiros... No fumo negro da guerra o homem terá a visão deslumbradora da luz maravilhosa dos planos divinos!...” E depois de uma pausa, cheia de comoção e de lágrimas no espírito de todos os presentes, a lúcida entidade sintetizou: - “Nunca haverá paz no mundo, sem a Verdade!...” E enquanto as aves celestes voejavam nas atmosferas radiosas e eterizadas do infinito e a luz embriagava todas as criaturas e todas as coisas, num turbilhão de claridade e de perfumes, ouviu-se uma voz indefinível, bradando na imensidade: - “Ninguém, na Terra, pode lançar outro fundamento além daquele que foi posto por Jesus-Cristo!” E, confundida numa luz imensa e maravilhosa, a grande assembléia da Paz foi dissolvida.
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ÓCRATES 7 de janeiro de 1937 Foi no Instituto Celeste de Pitágoras (1) que vim encontrar, nestes últimos tempos, a figura veneranda de Sócrates, o ilustre filho de Sofronisco e Fenareta. A reunião, nesse castelo luminoso dos planos erráticos, era, nesse dia, dedicada a todos os estudiosos vindos da Terra longínqua. A paisagem exterior, formada na base de substâncias imponderáveis para as ciências terrestres da atualidade recordava a antiga Hélade, cheia de aromas, sonoridades e melodias. Um solo de neblinas evanescentes evocava as terras suaves e encantadoras, onde as tribos jônias e eólias localizaram a sua habitação, organizando a pátria de Orfeu, cheia de deuses e de harmonias. Árvores bizarras e floridas enfeitavam o ambiente de surpresas cariciosas, lembrando os antigos bosques da Tessália, onde Pan se fazia ouvir com as cantilenas de sua flauta, protegendo os rebanhos junto das frondes vetustas, que eram as liras dos ventos brandos, cantando as melodias da Natureza. O palácio consagrado a Pitágoras tinha aspecto de severa beleza, com suas colunas gregas à maneira das maravilhosas edificações da gloriosa Atenas do passado. Lá dentro, agasalhava-se toda uma multidão de Espíritos ávidos da palavra esclarecida do grande mestre, que os cidadãos atenienses haviam condenado à morte, 399 anos antes de Jesus-Cristo. Ali se reuniam vultos venerados pela filosofia e pela ciência de todas as épocas humanas, Terpandro, Tucídides, Lísis, Ésquines, Filolau, Timeu, Símias, Anaxágoras e muitas outras figuras respeitáveis da sabedoria dos homens. Admirei-me, porém, de não encontrar ali nem os discípulos do sublime filósofo ateniense, nem os juízes que o condenaram à morte. A ausência de Platão, a esse conclave do Infinito, impressionava-me o pensamento, quando, na tribuna de claridades divinas, se materializou aos nossos olhos o vulto venerando da filosofia de todos os séculos. Da sua figura irradiava-se uma onda de luz levemente azulada, enchendo o recinto de vibração desconhecida, de paz suave e branda. Grandes madeixas de cabelos alvos de neve molduravam-lhe o semblante jovial e tranqüilo, onde os olhos brilhavam infinitamente cheios de serenidade, alegria e doçura. As palavras de Sócrates contornaram as teses mais sublimes, porém, inacessíveis ao entendimento das criaturas atuais, tal a transcendência dos seus profundos raciocínios. À maneira das suas lições nas praças públicas de Atenas, falou-nos da mais avançada sabedoria espiritual, através de inquirições que nos conduziam ao âmago dos assuntos; discorreu sobre a liberdade dos seres nos planos divinos que constituem a sua atual morada e sobre os grandes conhecimentos que esperam a Humanidade terrestre no seu futuro espiritual.
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É verdade que não posso transmitir aos meus companheiros terrenos a expressão exata dos seus ensinamentos, estribados na mais elevada das justiças, levando-se em conta a grandeza dos seus conceitos, incompreensíveis para as ideologias das pátrias no mundo atual, mas, ansioso de oferecer uma palavra do grande mestre do passado aos meus irmãos, não mais pelas vísceras do corpo e sim pelos laços afetivos da alma, atrevi-me a abordá-lo: - Mestre - disse eu -, venho recentemente da Terra distante, para onde encontro possibilidade de mandar o vosso pensamento. Desejaríeis enviar para o mundo as vossas mensagens benevolentes e sábias? - Seria inútil - respondeu-me bondosamente -, os homens da Terra ainda não se reconheceram a si mesmos. Ainda são cidadãos da pátria, sem serem irmãos entre si. Marcham uns contra os outros, ao som de músicas guerreiras e sob a proteção de estandartes que os desunem, aniquilando-lhes os mais nobres sentimentos de humanidade. - Mas. . . - retorqui - lá no mundo há uma elite de filósofos que se sentiriam orgulhosos de vos ouvir! ... - Mesmo entre eles as nossas verdades não seriam reconhecidas. Quase todos estão com o pensamento cristalizado no ataúde das escolas. Para todos os espíritos, o progresso reside na experiência. A História não vos fala do suicídio orgulhoso de Empédocles de Agrigento, nas lavas do Etna, para proporcionar aos seus contemporâneos a falsa impressão de sua ascensão para os céus? Quase todos os estudiosos da Terra são assim; o mal de todos é o enfatuado convencimento de sabedoria. Nossas lições valem somente como roteiro de coragem para cada um, nos grandes momentos da experiência individual, quase sempre difícil e dolorosa. Não crucificaram, por lá, o Filho de Deus, que lhes oferecia a própria vida para que conhecessem e praticassem a Verdade? O pórtico da pitonisa de Delfos está cheio de atualidade para o mundo. Nosso projeto de difundir a felicidade na Terra só terá realização quando os Espíritos aí encarnados deixarem de ser cidadãos para serem homens conscientes de si mesmos. Os Estados e as Leis são invenções puramente humanas, justificáveis, em virtude da heterogeneidade com respeito à posição evolutiva das criaturas; mas, enquanto existirem, sobrará a certeza de que o homem não se descobriu a si mesmo, para viver a existência espontânea e feliz, em comunhão com as disposições divinas da natureza espiritual. A Humanidade está muito longe de compreender essa fraternidade no campo sociológico. Impressionado com essas respostas, continuei a interrogá-lo: - Apesar dos milênios decorridos, tendes a exprimir alguma reflexão aos homens, quanto à reparação do erro que cometeram, condenando-vos à morte? - De modo algum. Méletos e outros acusadores estavam no papel que lhes competia, e a ação que provocaram contra mim nos tribunais atenienses só podia valorizar os princípios da filosofia do bem e da liberdade que as vozes do Alto me inspiravam, para que eu fosse um dos colaboradores na obra de quantos precederam, no Planeta, o pensamento e o exemplo
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vivo de Jesus-Cristo. Se me condenaram à morte, os meus juízes estavam igualmente condenados pela Natureza; e, até hoje, enquanto a criatura humana não se descobrir a si mesma, os seus destinos e obras serão patrimônios da dor e da morte. . - Poderíeis dizer algo sobre a obra dos vossos discípulos? . - .Perfeitamente - respondeu-me o sábio ilustre -, é de lamentar as observações mal-avisadas de Xenofonte, lamentando eu, igualmente, que Platão, não obstante a sua coragem e o seu heroísmo, não haja representado fielmente a minha palavra junto dos nossos contemporâneos e dos nossos pósteros. A História admirou na sua Apologia os discursos sábios e bem feitos, mas a minha palavra não entoaria ladainhas laudatórias aos políticos da época e nem se desviaria- para as afirmações dogmáticas no terreno metafísico. Vivi com a minha verdade para morrer com ela. Louvo, todavia, a Antístenes, que falou com mais imparcialidade a meu respeito, de minha personalidade que sempre se reconheceu insuficiente. Julgáveis então que me abalançasse, nos últimos instantes da vida, a recomendações no sentido de que se pagasse um galo a Esculápio? Semelhante expressão, a mim atribuída, constitui a mais incompreensível das ironias. - Mestre, e o mundo? - indaguei. - O mundo atual é a semente do mundo paradisíaco do futuro. Não tenhais pressa. Mergulhando-me no labirinto da História, parece-me que as lutas de Atenas e Esparta, as glórias do Pártenon, os esplendores do século de Péricles, são acontecimentos de há poucos dias; entretanto, soldados espartanos e atenienses, censores, juízes, tribunais, monumentos políticos da cidade que foi minha pátria, estão hoje reduzidos a um punhado de cinzas!. . . A nossa única realidade é a vida do Espírito. - Não vos tentaria alguma missão de amor na face do orbe terrestre, dentro dos grandes objetivos da regeneração humana? - Nossa tarefa, para que os homens se persuadam com respeito à verdade, deve ser toda indireta. O homem terá de realizar-se interiormente pelo trabalho perseverante, sem o que todo o esforço dos mestres não Passará do terreno do puro verbalismo. E, como se estivesse concentrado em si mesmo, o,grande filósofo sentenciou: - As criaturas humanas ainda não estão preparadas para o amor e para a liberdade... Durante muitos anos, ainda, todos os discípulos da Verdade terão de morrer muitas vezes!. . . E enquanto o ilustre sábio ateniense se retirava do recinto, junto de Anaxágoras, dei por terminada a preciosa e rara entrevista. (1) Nome convencional para figurar os centros de grandes reuniões espirituais no plano Invisível. - O Autor Espiritual.
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8 de março de 1937 Meu Senhor Jesus: Dirijo-vos esta carta quase como nos últimos tempos em que o fazia na Terra, fechado nas perplexidades da incompreensão. Muitas vezes imaginei que estivésseis acessível à visão de todos aqueles que se evadem do mundo pela porta escura da Morte, a fim de premiar os bons e punir pessoalmente os culpados, como os modernos chefes de Estado, que distribuem medalhas de honra nas datas festivas e exaram sentenças condenatórias em seus gabinetes. . Mas, não é assim, Senhor! Todas as ingênua e doces concepções do Catolicismo se esfumaram minha imaginação. A morte não faz de um homem um anjo; amontoa-nos, aos magotes, onde possa caber toda a imensidade das nossas fraquezas e aí, na contemplação das nossas realidades e das nossas misérias, descerra um fragmento dos véus do seu grande mistério. Então, sentimo-nos reconfortados pela esperança, e basta esse raio de luz para que sejamos deslumbrados na vossa glória. Se é verdade que não vos buscávamos nos caminhos da Terra, não era justo que nos viésseis esperar à porta do Céu. Todavia, Senhor, não é para exprobrar o meu passado, no mundo, que vos dirijo esta carta. É para vos contar que os homens vão reviver novamente a tragédia da vossa morte. Muitos judeus influentes promovem, na atualidade, uma ação tendente a esclarecer o processo que motivou a vossa condenação. É verdade que esses movimentos tardios, para apurar os erros do passado, não são novos. Joana d'Arc foi canonizada após a calúnia, o martírio e o vilipêndio e, ainda agora, - no Brasil, foi revivido o processo que fizera de Pontes Visgueiro um monstro nefando, movimento esse que lhe atenuou a falta, humanizando-se a sua figura através da análise minuciosa dos fatos recapitulados pelo Sr. Evaristo de Morais. Os descendentes dos vossos algozes querem reparar a violência dos seus avós. Objetivam a reconstrução do mesmo cenário de antanho. A corte provincial romana, o tribunal famoso dos israelitas, copiando a situação com a possível fidelidade. Eu queria, porém, acrescentar, entre parêntesis, que o mesmo Caifás ainda estará no Sinédrio para punir e julgar. Foi pensando tudo isso, Senhor, que fui a Jerusalém observar detidamente os lugares santos. Se ultimamente contemplei a cidade arruinada dos profetas, no momento em que se comemorava a vossa paixão e a vossa morte, tendo fixado no espírito os quadros dolorosos do vosso martírio, não pude observar detalhadamente as suas ruínas, desde o momento em que a minha atenção foi solicitada pela magnânima figura de Iscariotes. É verdade que os séculos guardarão aí, para sempre, os traços indeléveis da vossa ligeira passagem pelo Planeta. Jerusalém prosseguirá contando aos peregrinos do mundo inteiro a sua história de lamentações e dores. Reconheci, contudo, a dificuldade para copiarem o passado com .as suas coisas e com as suas circunstâncias.
Humberto de Campos
Conta-se que, anos depois da vossa crucificação, o Rabi Aguiba foi, com alguns companheiros, visitar as ruínas do templo onde haviam ecoado as vossas divinas palavras. Mas, o local sagrado onde se venerava o Santo dos Santos era refúgio dos chacais, que fugiram espantados com a presença dos homens. Hoje, igualmente, Senhor, Jerusalém não possui a fisionomia de outrora. Nos lugares onde se derramava o perfume do incenso e da mirra, há cheiro pronunciado de gasolina e vapores. Os burricos graciosos foram substituídos pelos automóveis confortáveis. Os ingleses vivem ocidentalizando as ruínas abandonadas. Sobre o mar da Galiléia, em Tiberíades, foi construído um balneário elegante; cheio de banhistas com seus trajes multicores, sentindo-se ali como em Copacabana, ou Biarritz. A Judéia está cortada de linhas férreas, de estradas macadamizadas, de cinematógrafos, de iluminações elétricas, de serviços modernos. Há, até, Senhor, um poderoso judeu russo chamado Rutemburgo, que captou energia elétrica nas águas mansas do Jordão à forca de mecanismos e represas. Aquelas águas sagradas e claras, que batizaram os cristãos, movem hoje poderosas turbinas. As usinas estão em toda parte. Todas essas instalações têm alterado a fisionomia da região. Certamente, Senhor, conhecestes Haifa, que era um ninho tranqüilo e doce, à sombra do monte Carmelo, sobre o qual Elias encontrou os profetas de Baal, confundindo-os com a sabedoria das suas palavras. Pois, hoje, palpita ali enorme cidade, guardando uma grande estação de depósito de petróleo, onde a marinha inglesa costuma abastecer-se. O campo suave de Mizpeh, onde a voz de Samuel se fez ouvir durante trinta dias consecutivos, exortando Israel, transformou-se num imenso aeródromo onde pousam as aves metálicas do progresso, cheias de notícias e de ruídos. Torna-se difícil reconstituir o ambiente da vossa injusta condenação. Mas os homens, Senhor, nunca dispensaram a teatralidade e as máscaras de suas vidas. É possível que engendrem um dramalhão, no qual, a pretexto de vos reabilitar perante a História, subvertam, ainda mais, no abismo da sua materialidade, à profunda significação espiritual da vossa doutrina. As multidões não serão inquiridas agora a respeito da sua preferência por Barrabás. Os pontífices do Sinedrim não conseguirão colocar nos vossos braços misericordiosos uma cana à guisa de cetro, nem ferir vossa fronte com a coroa de espinhos. Certamente mandarão erigir ironicamente um colosso de pedra, à vossa semelhança, injuriando a vossa memória. Os chamados crentes ajoelhar-se-ão aos pés dessa estátua impassível, suplicando, no seu cepticismo elegante, a vossa bênção, antes de se levantarem para devorar-se uns aos outros, como Cains desvairados. Ah! Senhor! Nós sabemos que do vosso trono estrelado vindes velando por esse orbe tão pequenino e tão infeliz! A manjedoura e a cruz ainda constituem o maior tesouro dos humildes e dos infortunados. Mas, vede, Senhor, como as ervas más se alastram pela Terra. Cortai-as, Jesus, para que o trigo louro da paz e da verdade resplandeça na vossa seara bendita. E que os homens, reunidos no mesmo jugo suave da fraternidade que nos ensinastes, descansem embalados no cântico sublime da vossa misericórdia e do vosso amor.
Humberto de Campos
17 de abril de 1937 Muita gente boa poderá supor na Terra que o homem, atravessando as águas escuras do Aqueronte, encontrará na outra margem o poço maravilhoso da Sabedoria. Um homem de bons costumes, que andasse aí na Terra vendendo pastéis, depois dos banhos prodigiosos da Morte voltaria aos cenários da vida sentenciando em todos os problemas que ensandecem o cérebro da Humanidade. Mas, não é assim. Cada indivíduo conserva, no Além, a posição evolutiva que o caracterizava na Terra. Cada entidade comunicante é, portanto, o homem desencarnado, ressalvando-se, todavia, a posição elevada dos Espíritos missionários que, de vez em quando pousam no mundo abnegadamente, sem lhe reparar a miséria e a estreita relatividade. Arrebatados, assim, para o império das sombras, não estamos vagueando em paisagens lunares, ou no céu dos teólogos. O nosso mundo é de perfeita transição. Já Raymond, na Inglaterra, com o apoio da autoridade científica de Sir Oliver Lodge, falou ao mundo terrestre das nossas paisagens bizarras, repletas de coisas semelhantes às coisas da nossa vida e das nossas atividades no Planeta. Seus arroubos descritivos não comoveram o espírito cristalizado da ciência oficial, e provocaram exclamações pejorativas de muitos filósofos espiritualistas. De minha parte, porém, já não quero fazer passar os olhos curiosos dos meus leitores sob o Arco de Esopo, movimentando as minhas criações do Tonel de Diógenes. Agora, mais que nunca, reconheço que cada qual compreende como pode, aí no mundo, e não me animo a provocar o riso despreocupado dos meus semelhantes, desejando somente levar-lhes o coração para as questões nobres e úteis da Vida. Para contar-lhes, assim, o que fiquei conhecendo daqui como a Maior Mensagem existente da Terra, devo dizer-lhes que, no casarão dos espaços onde nos encontramos. agasalhados, existe o Grande Salão dos Invisíveis. É aí que nos reunimos, muitas vezes, em amável "tête-à-tête", reconfortando-nos após as lutas terrestres, e recebendo freqüente. mente as opiniões esclarecidas dos mestres da espiritualidade. Aparelhos delicadíssimos, de uma radiotelefonia mais avançada, nos colocam em contato com entidades angélicas, tal como os políticos do Rio de Janeiro podem ouvir o governo de Tóquio trocando entre si as impressões de um movimento, sem se afastarem de suas cidades respectivas. No dia a que me reporto, encontrávamos-nos ali, em animada palestra. Escritores franceses, ingleses, asiáticos e americanos, discutíamos os progressos da Terra. Não há mais aqui a
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barreira dos idiomas. Cada qual pode falar à vontade, porque o pensamento já é por si mesmo uma espécie de Volapuque universal. - "O que mais me admira na atualidade do mundo - exclamava um dos companheiros - é a obra perfeita da Engenharia moderna. Na América do Norte cuida-se da captação da energia elétrica existente na força das ondas marítimas, dentro do mecanismo de poderosas turbinas e, talvez, antes que o homem penetre o segredo do aproveitamento das forças atômicas, para repousar as suas atividades na eletricidade atmosférica, já terá construído formidáveis usinas captadoras da energia dos ventos, à mais de duzentos metros de altura. A mecânica da aviação progride a cada minuto e o homem está prestes a adotar os mais avançados sistemas de locomoção aérea, com os futuros aparelhos de vôo individual." - “Todavia - atalhou outro -, temos de considerar igualmente o elevado plano evolutivo das criaturas, nos laboratórios”. O alemão Todtenhaupt demonstrou a maneira de se transformar a caseína do leite em lã artificial. Os tecnologistas descobriram todos os meios de se copiar perfeitamente a Natureza, e os produtos sintéticos fazem, por toda parte, as comodidades da civilização. Os raios X devassaram a organização de todos os corpos, provando que todas as matérias, na crosta terrestre, são cristalinas._facilitando o exame de suas disposições atômicas e moleculares. Essas revoluções, no campo imenso das indústrias modernas, hão de fatalmente determinar profundas modificações na vida atormentada dos homens. Eu ouvia, interessado, esses argumentos, sem poder participar com veemência dos problemas debatidos, em virtude de trazer muito pouca bagagem do nosso pobre Brasil, com exceção das idéias políticas, quando outro amigo interveio: - "Muito me têm preocupado as questões de Medicina e é com assombro que vejo a evolução dos processos terapêuticos no orbe terráqueo.Os hormônios, as vitaminas e as glândulas, tão desconhecidos ali, antigamente, são objeto de toda uma revolução científica. Ainda agora os hospitais de Moscou realizam, com êxito, as mais extraordinárias transfusões de sangue cadavérico. Os médicos moscovitas descobriram os recursos de conservar o sangue retirado de um cadáver, no instante imediato à morte, por mais de 20 ou 30 dias, aplicando-o com felicidade a outros organismos enfermos. Os processos de saneamento e de higiene não ficam aquém dessas conquistas. Há tempos saneou-se, na Itália, a região das Lagoas Pontinas e, onde havia pântanos e focos microbianos, florescem hoje cidades prestigiosas e progressistas." E, nesse diapasão, todos os escritores desencarnados manifestaram seus pensamentos otimistas. Falou-se da física, da bacteriologia, dos processos pedagógicos, da industrialização, do nacional-socialismo de Hitler e dos princípios democráticos de Roosevelt. Mas, quando a palestra atingia o fim de seu curso, uma voz, cuja origem não poderíamos determinar, exclamou em nosso meio com melancólica imponência: - “Todas as conquistas e todas as comodidades da civilização terrestre da atualidade são questões secundárias nos ciclos eternos da Vida”... A mão invisível e poderosa que destruiu o orgulho impenitente de Babilônia e de Persépolis, que aniquilou os poderes de Roma e de Cartago, pode reduzir o mundo ocidental a um punhado de cinzas!. . .
Humberto de Campos
"As plataformas políticas, os laboratórios científicos, os diplomas de novos conhecimentos, são segundos valores em todos os caminhos evolutivos, porque, sem o amor, que é a fraternidade universal, todas as portas da evolução estarão fechadas. . . Pode Einstein devassar novos segredos na teoria das relatividades; Segismund Freud poderá descobrir novas causas dos padecimentos humanos com a perseverança e a paciência de suas análises; a tecnologia pode modificar visceralmente a estrutura das indústrias do Planeta; Hitler, Mussolini, Roosevelt e Trotsky podem aventar novas sistematizações da política, renovando as concepções do Estado; mas a Maior Mensagem no mundo ainda é o Evangelho. Sem o amor de Jesus-Cristo, todos os povos estão condenados a morrer, com todo o peso de suas conquistas e de suas glórias, porque somente o Amor pode salvar o mundo que se aniquila.” Podereis todos vós descer à face escura - e triste da Terra, proclamando a vossa imortalidade, porém, nada fareis de útil se não entregardes ao espírito humano essa chave maravilhosa, para que se abram as portas imensas da Paz, no coração amargurado dos homens!...”“ Diante dessa voz suave e terrível, todos nós silenciáramos. Ao longe, muito ao longe, por um esforço pronunciado de nossa ação, divisávamos a Terra longínqua... Furacões destruidores pareciam envolver atmosferas -estavam enegrecidas, pejadas de nuvens de fumo e de poeira sangrenta. Um secreto pavor dominou nossas almas e guardamos, íntimo, aquela voz profética e ameaçadora “‘A mão invisível e poderosa que destruiu impenitente de Babilônia e de Persépolis, que aniquilou os poderes de Roma e de Cartago, pode reduzir o mundo ocidental a um punhado de cinzas”!...
Humberto de Campos
20 de abril de 1937. Minha senhora. Eu sempre julguei que, terminadas, as lutas da Vida, jamais poderia voltar o meu espírito das correntes tenebrosas do Estige, que os homens colocaram no Peloponeso escuro da Morte. Mas, eis que volto dos palacetes aéreos onde se reconforta minha alma esquecida do jazigo subrterraneo em que repousam meus alquebrados ossos e recebo o angustioso apelo do seu coração.A Senhora envia-me uma cartinha breve, escrita com as próprias lágrimas da sua dor, fazendo-me confidente de sua imensa amargura, como se eu ainda estivesse aí no mundo, escravizado a todas as suas algemas e a todas as suas conveniências, por mal dos meus pecados. Agora porém, graças a Deus, estou sento de todas as pesadas contribuições terrestres, inclusive a do imposto do selo, para enviar-lhe o meu pensamento. Falo-lhe do mundo de vida nova e de maravilhosa ressurreição, onde a esperam aquele esposo dedicado e amigo e aquele filho valoroso e leal que a senhora viu partirem para as fronteiras tristes e nubladas da Morte, como Níobe petrificada no Seu desespero inconsolável. . Os movimentos revolucionários do Brasil destroçaram-lhe o coração amoroso e sensibilíssimo. Em 30, quando os políticos novos se rejubilavam sobre os destroços da República Velha, enquanto se enfunavam bandeiras e vibravam mocidades, a sua alma de mulher, sozinha e triste, chorava sobre o túmulo do companheiro que Deus lhe havia dado e com quem edificara, através da luta e dos anos, o ninho quente e doce em cujos delicados contornos o seu espírito se havia dilatado, prolongando-se nos filhos, satélites abençoados do seu amor e do seu coração. Esse golpe foi a grande espada de dor, estraçalhando para sempre a tranqüilidade da sua vida. Em 35, eis que perde seu filho, digno sucessor da patente do pai, num outro movimento de forças homicidas. Sua alma de viúva e de mãe cobriu-se então de luto e de lágrimas, para sempre. Uma saudade oceânica absorve-lhe todas as atividades e todos os momentos, e no silêncio da noite, quando todos se entregam ao amolecimento e ao repouso, seu Espírito está vigilante como os soldados de Pompéia, apesar dos decretos irrevogáveis do Destino, esperando que surjam as visões consoladoras do companheiro bem-amado e do filho inesquecido até que as primeiras claridades do dia venham desfazer o magnetismo suave das suas esperanças. No mundo das suas recordações fulguram relâmpagos e, assombrada, sua alma vê passar todos os dias, nas estradas imensas da sua amargura, os fantasmas de todos os sonhos mortos, mergulhados no ataúde de suas desilusões. Para uma alma de mãe que chora, nunca há consolação bastante no mundo. Um coração materno, pranteando sobre as lutas fratricidas, é sempre um símbolo dos sofrimentos da Humanidade crucificada no madeiro das hostilidades patrióticas, que separaram os povos do amor fraterna, destilando o veneno do ódio nos seus corações.
Humberto de Campos
Já se disse que a guerra é o fator de todos os progressos do orbe, mas temos de convir em que toda a civilização é um produto detestável do martirológio das mães desveladas e sofredoras. É por isso, talvez, que a civilização dos homens cai sempre, na esteira infinita do tempo, como fruto amargo e apodrecido. Todos os calendários, surgidos nos milênios, assinalam épocas de opulência e de grandeza, para se desfazerem nos abismos da miséria e da morte. No declínio de cada período evolutivo do Planeta reúnem-se, em vão, os políticos e os guerreiros para salvá-lo, como agora acontece no mundo, ocidental, no desfiladeiro da destruição. Criam-se conciliábulos de paz impossível, porque, através de todos os edifícios suntuosos e de todas as doutrinas políticas, faz-se ouvir a mesma voz compassiva e lamentosa: - "Caim, que fizeste do teu irmão?" É que nunca se reuniram os homens para salvar a civilização, com a ternura das mães, com os seus devotamentos e com os seus sacrifícios; nunca se recordaram de uma estatística dos corações maternos antes de prepararem uma batalha, embora se deva à mulher todos os monumentos de fé realizadora que os homens têm construído na face do mundo. E, no seu caso, a dor que à martiriza fere mais fundo o seu coração, porque o esposo e o filho não pereceram num campo inimigo, onde batalhassem com o título de "bravos", título esse ainda justificável em virtude da ignorância das leis divinas, mas, assassinados por seus próprios irmãos, com estúpida crueldade. Os fatos, em verdade, não pertencem à História Pátria, mas, sim, à legislação do Código Penal. Todavia, minha senhora, não busque a proteção das leis judiciárias, estruturadas pelos homens. Subordine os julgamentos dos atos perversos, de que foi objeto, ao Tribunal Divino, que legisla acima de todas as forças políticas da Terra. Sofra o seu martírio com amargurada resignação. O sofrimento é como um absinto maravilhoso. Se a sua taça está hoje cheia de fel inevitável, esse líquido amargo nunca se escoa. Aqueles que lho deram vêm atrás dos seus passos. O mesmo fel os aguarda nos caminhos tortuosos da Vida. Eu não tenho argumentos para consolá-la, senão os de minha própria sobrevivência, fornecendo-lhe a certeza de que um dia encontrará, numa vida . melhor, os bem-amados do seu coração. Sua mágoa é daquelas que a esponja insaciável do Tempo não apaga na Terra; mas, viva a sua existência com as esperanças colocadas no Céu. Lembre-se da Mãe de Jesus: ela sintetiza as angústias de todos os corações maternos, perdidos como flores divinas entre as urzes e os espinhos do mundo, e sentir-se- tocada de uma luz suave e misericordiosa. Uma sagrada e terna esperança balsamizará, como um luar perene, a noite das suas desventuras, adquirindo a força necessária para vencer nas estradas ríspidas e espinhosas. Amparada na fé, espere no altar da oração o dia da sua liberdade espiritual. Nessa hora de claridades doces e alegres para o seu coração, a senhora verá que, no turbilhão das lutas da Terra, todos os que contemplam o Céu são também por ele contemplados.
Humberto de Campos
21 de abril de 1937, Dos infelizes protagonistas da Inconfidência Mineira, no dia 21 de abril de todos os anos, aqueles que podem excursionar pela Terra volvem às ruínas de Ouro Preto, a fim' de se reunirem entre as velhas paredes da casa humilde do sítio da Cachoeira, trazendo a sua homenagem de amor à personalidade do Tiradentes. Nessas assembléias espirituais, que os encarnados poderiam considerar como reuniões de sombras, os preitos de amor são mais expressivos e mais sinceros, livres de todos os enganos da História e das hipocrisias convencionais. Ainda agora, compareci a essa festividade de corações, integrando a caravana de alguns brasileiros desencarnados, que para lá se dirigiu associando-se às comemorações do proto mártir da emancipação do País. Nunca tive muito contato com as coisas de Minas Gerais, mas a antiga Vila Rica, atualmente elevada à condição de Monumento Nacional, pelas suas relíquias prestigiosas, sempre me impressionou pela sua beleza sugestiva e legendária. Nas suas ruas tortuosas, percebe-se a mesma fisionomia do Brasil dos Vice-Reis. Uma coroa de lendas suaves paira sobre. as suas ladeiras e sobre os seus edifícios seculares, embriagando o espírito do forasteiro com melodias longínquas e perfumes distantes. Na terra empedrada, ainda existem sinais de passos dos antigos conquistadores do ouro dos seus rios e das suas minas e, nas suas igrejas, ainda se ouvem soluços de escravos, misturados com gritos de sonhos mortos, do seu valoroso heroísmo. A velha Vila Rica, com a névoa fria dos seus horizontes, parece viver agora com as suas saudades de cada dia e com as suas recordações de cada noite. Sem me alongar nos lances descritivos, acerca dos seus tesouros do passado, objeto da observação de jornalistas e escritores de todos os tempos, devo dizer que, na noite de hoje, a casa antiga dos Inconfidentes tem estado cheia das sombras dos mortos. Aí fui encontrar, não segundo o corpo, mas segundo o espírito, as personalidades de Domingos Vidal Barbosa, Freire de Andrada, Mariano Leal, José Joaquim da Maia, Cláudio Manuel, Inácio Alvarenga, Dorotéia de Seixas, Beatriz Francisca Brandão, Toledo Pisa, Luís de Vasconcelos e muitos outros nomes, que participaram dos acontecimentos relativos à malograda conspiração. Mas, de todas as figuras veneráveis ao alcance dos meus olhos, a que me sugeria as grandes afirmações da pátria era, sem dúvida, a do antigo alferes Joaquim José da Silva Xavier, pela sua nobre e serena beleza. Do seu olhar claro e doce, irradiava-se toda uma onda de estranhas revelações, e não foi sem timidez que me acerquei da sua personalidade, provocando a sua palavra. Falando-lhe a respeito do movimento de emancipação política, do qual havia sido o herói extraordinário, declinei minha qualidade de seu ex-compatriota, filho do Maranhão, que também combatera, no passado, contra o domínio dos estrangeiros. .
Humberto de Campos
- "Meu amigo - declarou com bondade -, antes de tudo, devo afirmar que não fui um herói e sim um Espírito em prova, servindo simultaneamente à causa da liberdade da minha terra. Quanto à Inconfidência de Minas, não foi propriamente um movimento nativista, apesar de ter aí ficado como roteiro luminoso para a independência da pátria.. Hoje, posso perceber que o nosso movimento era um projeto por demais elevado para as forças com que podia contar o Brasil daquela época, reconhecendo como o idealismo eliminou em nosso espírito todas as noções da realidade prática; mas, estávamos embriagados pelas idéias generosas que nos chegavam da Europa, através da educação universitária. E, sobretudo, o exemplo dos Estados Americanos do Norte, que afirmaram os princípios imortais do direito do homem, muito antes do verbo inflamado de Mirabeau, era uma luz incendiando a nossa imaginação. O Congresso de Filadélfia, que reconheceu todas as doutrinas democráticas, em 1776, afigurou-se-nos uma garantia da concretização dos nossos sonhos. Por intermédio de José Joaquim da Maia procuramos sondar o pensamento de Jefferson, em Paris, a nosso respeito; mas, infelizmente, não percebíamos que a luta, como ainda hoje se verifica no mundo, era de princípios. O fenômeno que se operava no terreno político e social era o desprezo do absolutismo e da tradição, para que o racionalismo dirigisse a Vida dos homens. Fomos os títeres de alguns portugueses liberais, que, na colônia, desejavam adaptar-se ao novo período histórico do Planeta, aproveitando-se dos nossos primeiros surtos de nacionalismo. Não possuíamos um índice forte de brasilidade que nos assegurasse a vitória, e a verdade só me foi intuitivamente revelada quando as autoridades do Rio mandaram prender-me na rua dos Latoeiros." - E nada tendes a dizer sobre a defecção de alguns dos vossos companheiros? - perguntei. - "Hoje, de modo algum desejaria avivar minhas amargas lembranças. . . Aliás, não foi apenas Silvério quem nos denunciou perante o Visconde de Barbacena; muitos outros fizeram o mesmo, chegando um deles a se disfarçar como um fantasma, dentro das noites de Vila Rica, avisando quanto à resolução do governo da província, antes que ela fosse tomada publicamente, com o fim de salvaguardar as posições sociais de amigos do Visconde, que haviam simpatizado com a nossa causa. Graças a Deus, todavia, até hoje, sinto-me ditoso por ter subido sozinho os vinte degraus do patíbulo." - E sobre esses fatos dolorosos, não tendes alguma impressão nova a nos transmitir? E os lábios do Herói da Inconfidência, como se receassem dizer toda a verdade, murmuraram estas frases soltas: - "Sim. . . a Sala do Oratório e o vozerio dos companheiros desesperados com a sentença de morte... a Praça da Lampadosa, minha veneração pelo Crucifixo do Redentor e o remorso do carrasco. . . a procissão da Irmandade da Misericórdia, os cavaleiros, até o derradeiro impulso da corda fatal, arrastando-me para o abismo da Morte..." E concluiu: - "Não tenho coisa alguma a acrescentar às descrições históricas, senão minha profunda repugnância pela hipocrisia das convenções sociais de todos os tempos."
Humberto de Campos
- É verdade - acrescentei -, reza a História que, no instante da vossa morte, um religioso, falou. sobre o tema do Eclesiastes - "Não atraiçoes o teu rei, nem mesmo por pensamentos." E terminando a minha observação com uma pergunta, arrisquei: - Quanto ao Brasil atual, qual a vossa opinião a respeito? - "Apenas a de que ainda não foi atingido o alvo dos nossos sonhos. A nação ainda não foi realizada para criar-se uma linha histórica, mantenedora da sua perfeita independência. Todavia, a vitalidade de um povo reside na organização da sua economia e a economia do Brasil está muito longe de ser realizada. A ausência de um interesse comum, em "favor do País, dá causa não mais à derrama dos impostos, mas ao derrame das ambições, onde todos querem mandar, sem saberem dirigir a si próprios." Antes que se fizesse silêncio entre nós, tornei ainda: - Com relação aos ossos dos inconfidentes, vindos agora da África para o antigo teatro da luta, hoje transformado em Panteão Nacional, são de fato autênticos esqueletos dos apóstolos da liberdade? . - "Nesse particular - respondeu Tiradentes com uma ponta de ironia -; não devo manifestar os meus pensamentos. Os ossos encontrados tanto podem ser de Gonzaga, como podem pertencer, igualmente, ao mais miserável dos negros de Angola. O orgulho humano e as vaidades patrióticas têm também os seus limites... Aliás, o que se faz necessário é a compreensão dos sentimentos que nos moveram a personalidade, impelindo-nos para o sacrifício e para a morte. ..” Mas, não pôde terminar. Arrebatado numa' aluvião de abraços amigos e carinhosos, retirou-se o grande patriota que o Brasil hoje festeja, glorificando o seu heroísmo e a sua doce humildade. Aos meus ouvidos emocionados ecoavam as notas derradeiras da música evocativa e dos fragmentos de orações que rodeavam o monumento do Herói, afigurando-se-me que Vila Rica ressurgira, com os seus coches dourados e os seus fidalgos, num dos dias gloriosos do Triunfo Eucarístico; mas, aos poucos, suas luzes se amorteceram no silêncio da noite, e a velha cidade dos conspiradores entrou a dormir, no tapete glorioso de suas recordações, o sono tranqüilo -dos seus sonhos mortos.
Humberto de Campos
30 de abril de 1937 Os cientistas de todos os continentes se interessam, no mundo, pela solução do problema da longevidade humana. À maneira do doutor Fausto, ensandecem as suas faculdades intelectivas, buscando o ambicionado xarope miraculoso. Corações de cães e de galinhas são objeto de experimentos fisiológicos e não faz muitos anos o Dr. Voronoff andava pelo mundo com a sua gaiola de símios, vendendo o elixir prodigioso da juventude aos velhos gozadores da vida. Agora, um dos seus continuadores, o Dr. Aléxis Carrel, em cooperação com Lindberg, inventou um aparelho para investigar a vida das células e a produção de hormônios, onde se encontra vivo o coração de um gato, pulsando indefinidamente, esquecido de morrer, certamente enganado com a temperatura do recipiente de vidro que o encerra. Nos últimos tempos é o professor Woodruff o iniciador de experiências novas. Cultivando carinhosamente um micróbio e sua progênie, no laboratório de suas pesquisas científicas, todos os dias transforma o ambiente do micróbio estudado, mudando a gota de água e o tubo que constituem o seu grande mundo liliputiano, tendo repetido essa experiência mais de mil vezes, constatando a imortalidade do seu paciente e guardando a esperança de poder aplicar seus estudos às criaturas humanas, criando uma nova teoria da longevidade, com a eliminação dos resíduos celulares do organismo, olvidado, porém, de que as células cerebrais do homem, elementos constitutivos do aparelho mais delicado de manifestação do espírito dos seres racionais, não são suscetíveis de nenhuma alteração no decurso da vida. Os corpúsculos do cérebro nunca se reproduzem. Podem os cientistas imitar todos os fenômenos da natureza. Um coração humano pode saltar numa retorta de laboratório. Os rins e o fígado podem segregar os seus produtos específicos, separados do corpo, mas os estudiosos do mundo inteiro jamais poderão fazer pensar o cérebro de um cadáver. Todas essas atividades da ciência moderna, através de movimentos mecânicos, poderão organizar novos sistemas terapêuticos, mas nunca afastar do coração inquieto dos homens o gládio afiado da morte. A par dos professores, cujas teses objetivam a prolongação da existência das criaturas, temos os políticos nacionalistas incentivando a natalidade, como Mussolini, instituindo prêmios para as mães italianas e conquistando, a ferro e fogo, o território abissínio, a fim de localizar os súditos do novo império. É verdade que o “crescei e multiplicai-vos” representa um imperativo das leis divinas, mas é necessário saber-se o “como” dessa conciliação do espírito com a natureza. Os homens tentam organizar, em todos os tempos, um código de moral, para que os imperativos evangélicos da multiplicação se cumprissem com decência e pureza. As igrejas criaram o casamento religioso, e os legisladores o matrimonio civil. Houve, também, os que tentaram organizar, nesse sentido, uma diretriz de ordem econômica, como os ingleses, que instituíram o “birth control”. Mas, eu não voltaria do mundo das sombras ignoradas para fazer a apologia de Roberto Malthus e sim para perguntar se valeria a pena conservar-se indefinidamente a vida do homem, sobre o vale de lágrimas do Salmista.
Humberto de Campos
Quando ainda não se resolveu o problema do pão de cada dia, quando há multidões de famintos e desesperados, quando a sociologia não passa de palavra a ser interpretada, é lícito cogitar-se da longevidade das criaturas? Se vingassem as teorias modernas, teríamos igualmente a eternização do egoísmo, da ambição e do orgulho, porque cada um não cogitaria senão da sua própria imortalidade. As atividades inoportunas de semelhantes cogitações, no objeto de se fazer de cada homem um Matusalém sobre a terra, são a criação incessante dos institutos da morte. A política, que incentiva a natalidade, não quer a criança senão para fazer dela, mais tarde, um soldado ou uma vivandeira, de acordo com a determinação do sexo. O monstro da guerra aí está ainda, como a Hidra de Lerna envolvendo todos os povos do Planeta nos seus tentáculos destruidores. Todos os progressos da Civilização se canalizam para esse gosto homicida. O animal político de Aristóteles não vive senão para destruir seus semelhantes, e nos departamentos de guerra de todos os paises existem os técnicos de novos aparelhos de destruição. Nestes últimos tempos, um ilustre médico europeu inventou piedosamente uma espécie de máscara protetora contra todos os gases mortíferos conhecidos. Apresentando o invento humanitário ao seu diretor de laboratório, obteve uma resposta curiosa: - “Muito bem, meu amigo. A tua criação merece o apoio do Governo e a admiração dos teus colegas; todavia, é preciso agora que utilizes as tuas faculdades inventivas na criação de um gás mais poderoso do que essa máscara, e que a possa inutilizar no momento oportuno.” É dentro dessa mentalidade que se desdobram as atividades humanas. Os cientistas que desejarem prestar o concurso dos seus conhecimentos à Humanidade devem ocupar-se de problemas menos complexos do que o da inconveniente longevidade das criaturas. Antes de tudo, é necessário educar o espírito para o saneamento moral da vida das coletividades. Quando o homem conhecer a sua condição de usufrutuário do patrimônio divino, as armas da ambição, do egoísmo e do orgulho estarão ensarilhadas para sempre. A morte, nesse plano ideal de conhecimento superior, deixará de ser a espada de Dâmocles, no banquete da vida, porquanto não mais existirá na imaginação das criaturas integradas no conhecimento de sua imortalidade espiritual. Os cientistas que estudam a longevidade do corpo são os que tateiam, voluntariamente, nas sombras da noite, despercebidos de que as claridades do dia virão fatalmente iluminar-lhes o caminho da ascensão para Deus. Que se desviem de semelhantes excentricidades, empregando os seus esforços na solução de problemas mais úteis e mais urgentes. Em vez de criarem novas teorias para que o mundo fique repleto de corpos imortais, seria melhor que cultivassem batatas, a fim de que os pobres da Terra tenham um pão pela hora da vida.
Humberto de Campos
ÁRIO 1º. de maio de 1937 Às portas do Céu bateram, um dia, um Político, um Soldado e um Operário. Mas, Gabriel, o anjo que na ocasião velava pela tranqüilidade do Paraíso, não quis atender-lhes às rogativas, sem previamente consultar o Senhor sobre aquelas três criaturas recém-chegadas da Terra. Depois de inquiri-las quanto às suas atividades na superfície do mundo, procurou o Mestre, a quem falou humildemente: - Senhor, um Político, um Soldado e um Operário, vindos da Terra longínqua, desejam receber vossas divinas graças, ansiosos de gozar das felicidades terrestres. -Gabriel – disse o Salvador – que habilitações trazem do mundo essas almas, para viverem na paz da Casa de Deus? Bem sabes que cada homem edifica, com a sua vida, o seu inferno, ou o seu paraíso... Mas, vamos ao que nos interessa: que fez o Político lá na Terra? O anjo, bem impressionado com a figura do diplomata, que impetrara os seus bons ofícios, exclamou com algum entusiasmo: Trata-se de um homem de elevado nível cultural. Suas informações revelaram-me um espírito de gosto refinado no trato da Civilização e das leis. Foi um preclaro estadista, cuja existência decorreu nos bastidores da administração pública e nos torneios eleitorais, onde consumiu todas as suas energias. Em troca de seus labores, os homens lhe tributaram as mais subidas honras nas suas exéquias. Seu cadáver embalsamado, num ataúde de vidro, percorreu duzentas léguas para ficar guardado nos mármores preciosos do Panteão Nacional. - Mas... – objetou entristecido o Mestre – esse homem teria cumprido as leis que ditava para os outros? Teria observado a prática do bem, a única condição para entrar no Paraíso, absorvido, como se achava, na enganosa volúpia das grandezas terrenas? - A luta política, Senhor, tomava-lhe todo o tempo – respondeu solícito o anjo -; os tratados jurídicos, as tabelas orçamentárias, as fontes históricas, as questões diplomáticas, os compêndios de ciências sociais, não davam lugar a que ele se integrasse no conhecimento da vossa palavra... - Entretanto, o meu Evangelho deveria ser a bússola de quantos se colocam na direção da humanidade... E, como se intimamente lastimasse a situação do infeliz, o Mestre rematou: - Aqui não há lugar para ele. Não se conquistam as venturas celestes com a riqueza de teorias da Terra. Dir-lhe-ás que retorne ao mundo, a fim de voltar mais tarde ao Paraíso, pela porta do Bem, da Caridade e do Amor. E o Soldado, que serviços apresenta em favor de sua pretensão?
Humberto de Campos
- Esse – replicou Gabriel – foi um herói na terra em que nasceu. Seus atos de valor e de bravura deram causa a que fosse promovido pelos superiores hierárquicos à posição de chefe das forças militares em operações, na última guerra. Tem o peito coberto de medalhas e de insígnias valiosas, das ordens patrióticas e das legiões de honra; seu nome é lembrado no mundo com carinhoso respeito. Aos seus funerais compareceram representações de vários paises do mundo e inúmeras coletividades acompanharam-lhe as cinzas ilustres, que, envolvidas na bandeira da sua pátria, foram guardadas num majestoso monumento de soberbo carrara. - Infelizmente – exclamou amargurado o Senhor – o Céu está fechado para os homens dessa natureza. É inacreditável que sejam glorificados no orbe terrestre aqueles que matam a pretexto de patriotismo. Nunca pus no verbo dos meus enviados, no Planeta, outra lei que não fosse aquela do – “amai a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a vós mesmos”. Nunca houve uma determinação divina para que os homens se separassem entre pátrias e bandeiras. De sul a norte, do oriente ao ocidente, todos os Espíritos encarnados são filhos de Deus, e qualquer deles pode ser meu discípulo. Os homens que semeiam a ruína e a destruição não podem participar da tranqüilidade do Paraíso. E o Operário, que fatos lhe justificam a presença nas portas do Céu? - Esse – elucidou Gabriel – quase nada tem a contar dos seus amargurados dias terrestres. Os sopros frios da adversidade, em toda a existência, perseguiram-no através das estradas do destino, e a fé em vossa complacência e misericórdia lhe foi sempre a única âncora de salvação, no oceano de lágrimas por onde passava o barco miserável da sua vida. Trabalhou com o esforço poderoso das máquinas e foi colaborador desconhecido do bem-estar dos afortunados da Terra. Nunca recebeu compensação digna do seu trabalho, e consumiu-se no holocausto à coletividade e à família... Entretanto, Senhor, ninguém conheceu as tempestades de lágrimas de seu coração afetuoso e sensível, nem as dificuldades dolorosas dos seus dias atormentados, no mundo. Viveu com a fé, morreu com a esperança e o seu corpo foi recolhido pela caridade de mãos piedosas e compassivas que o abrigaram na sepultura anônima dos desgraçados... - O Céu pertence a esse herói. Gabriel – disse o Mestre alegremente. – Suas esperanças colocadas no meu amor são sementes benditas que frutificarão na percentagem de mil por um. Se os homens o ignoram, o Céu deve conhecer os seus heroísmos obscuros e os seus sacrifícios nobilitantes. Enquanto o Político organizava leis que não cumpria, ele se imolava no desempenho dos deveres santificadores. Enquanto o Soldado destruía irmãos, seus braços faziam o milagre do progresso e do bem-estar da Humanidade. Enquanto os despojos dos primeiros foram encerrados nos mármores frios e imponentes das falsas homenagens da Terra, seu corpo de lutador se dissolveu no solo, acentuando os perfumes da Natureza e enriquecendo o grão que alimenta as aves alegres, na mesma harmonia eterna e doce que regeu os sentimentos do seu coração e os atos de seu Espírito. Esse, Gabriel, faz parte dos heróis do Céu, que a Terra nunca quis conhecer. E, enquanto o Político e o soldado voltavam ao caminho das reencarnações dolorosas da Terra, o Operário de Deus se cobria com as claridades do Infinito, buscando outras possibilidades de trabalho para o seu amor e para o se devotamento.
Humberto de Campos
ÁRIO DO BRASIL 7 de maio de 1937 Vem o Brasil de comemorar o 437º ano do seu descobrimento. Em todos os centros culturais do País foi lembrada a célebre expedição de Pedro Álvares Cabral, que, em março de 1500, deixou Lisboa com as mais severas recomendações para os régulos da Ásia e que aportou primeiramente na ilha de Vera Cruz, cheia de árvores fartas e de rolas morenas cantando a inocência das terras inexploradas e virgens, cujo domínio Portugal havia pleiteado em Tordesilhas. Os naturais ainda pareciam permanecer com a benção divina no paraíso terrestre, pois não conheciam o sentimento que fizera Adão e Eva buscarem a folha de parra, envergonhados dos seus pormenores anatômicos; mas, frei Henrique de Coimbra, na primeira missa celebrada naquele deserto maravilhoso, tentou pregar para as gentes de Porto Seguro, que não lhe compreenderam as palavras, tomando, logo após aquele ato católico, os seus arcos e os seus tacapes, prosseguindo nas danças exóticas, sobre as ervas rasteiras da praia. Sobre as grandes comemorações brasileiras destes últimos dias, não podemos mencionar as da política administrativa, que, no momento, estava preocupada com a eleição do Presidente da Câmara Federal, sendo de destacar-se, somente, a Congregação Mariana no Rio de Janeiro. A Igreja, conhecendo profundamente a psicologia das massas, reuniu mais de dez mil católicos na capital do País, realizando os seus movimentos com o apoio governamental. Mas, não nos surpreendemos. Não se tratou de um congresso para a generalização do livro ou de novas facilidades da vida. Como Frei Henrique de Coimbra, no dia 3 de maio de 1500, entre as madeiras toscas da Bahia, Monsenhor Leovigildo Franca, na Feira de Amostras do Rio de Janeiro, dava explicações da missa ao povo do Brasil, com a diferença de que falava pelo radio e com pouca esperança de ser entendido pelos seus patrícios, que, como outrora, se levantariam dali, com as suas cuícas e os seus pandeiros, procurando a Favela ou a Mangueira, para um samba de quintal. Aliás, semelhante fato não será estranhável, considerando-se que o governo que apoiou a ultima concentração católica é o mesmo que subvenciona as festas carnavalescas, incentivando, por essa forma, o turismo no Brasil. Todavia, longe das apreciações superficiais, que teria feito a nação em mais de quatrocentos anos de vida histórica e mais de um século de independência política? Com um território imenso, onde caberá possivelmente toda a população da Europa moderna, ela apenas conhece pouco mais de um décimo de suas possibilidades econômicas. Do vale soberbo do Amazonas às planícies do Prata, há um perfume de matas virgens na terra misteriosa e o mesmo livro infinito de sua Natureza extraordinária espera ainda a raça ciclópica que escreverá nas suas páginas, ainda em branco, a mais bela talvez de todas as epopéias da Humanidade, nos triunfos do Espírito. É lastimável que as paixões políticas aí permaneçam, intoxicando inteligências e corações. A esses sentimentos nefastos deve-se a sensação de angustiosa expectativa que o País vem experimentando, nestes anos derradeiros, perturbando os seus surtos de trabalho e
Humberto de Campos
empobrecendo as suas fontes de produção. Os espíritos, que aí se entregam ao vinho sinistro do interesse e da ambição, andam esquecidos de que são criminosos todos aqueles que destroem um abrigo diante da tempestade furiosa, sem apresentar um refúgio melhor aos náufragos desesperados. Como inaugurar-se uma nova experiência de novos regimes políticos no País, se o próprio principio democrático ainda não foi devidamente assimilado? Contudo, o que vemos no Brasil, nos últimos tempos, é a tendência para a desagregação das forças construtivas da nacionalidade, em lutas esterilizadoras. Reza a História que, nos séculos passados, quando as hordas de bárbaros ameaçavam a Europa medieval, o sultão Amurat submeteu ao seu domínio as províncias gregas da Trácia, da Albânia e da Macedônia. Cheio de galardões e de vitórias, avançou para o norte em direção dos sérvios e dos búlgaros que, comandados por Lázaro e Sisman, lhe opuseram a mais encarniçada resistência. O orgulhoso sultão ganhou-lhes a grande batalha de Kossovo, mas, quando vitorioso contemplava com feroz alegria o campo forrado de sangue e de cadáveres, orgulhoso do seu feito e da sua glória, o sérvio Miloch levantou-se, no silêncio da praça destruída, e, lesto, cravou-lhe um punhal no coração. A política brasileira dos últimos anos tem sido a repetição do mesmo quadro. Sempre um Amurat escalando o caminho da glória e da evidência, sobre as humilhações dos seus semelhantes, e sempre um Miloch saindo do seu anonimato para desferir-lhe o golpe supremo. Mas... Não falemos de assunto tão ingrato, quanto inoportuno. No dia de aniversário do Brasil, recordemos que o professor Tyndall acaba de anunciar os dez problemas mais importantes que a ciência terrestre terá de resolver nos próximos cem anos, neles incluindo a viagem à Lua e alimentação química, lembrando ao ilustre catedrático da Pensilvânia que, não obstante as suas mestranças, esqueceu a questão da vitória do Evangelho. E olhando o país maravilhoso onde todas as raças do Planeta se encontraram para a glorificação da fraternidade e do amor, saudemos, com as emoções de nossa esperança, as terras afortunadas de Santa Cruz.
Humberto de Campos
ÁVEL INSTITUIÇÃO 2 de agosto de 1937 Parecerá estranho que os Espíritos desencarnados volvam à Terra para visitar as instituições humanas, velando pelo mecanismo dos seus trabalhos e agindo, indiretamente, nas suas deliberações. A verdade, porém, é que isso constitui um acontecimento natural. Se os vivos continuam os trabalhos daqueles que os antecederam na jornada da morte, as almas do mundo invisível, nos planos em que me encontro, têm de voltar, em sua maioria, às lutas terrestres. Todas as edificações de uma época têm as suas bases profundas nas épocas que a precederam. Nenhum homem pode criar, por si só, alguma coisa e sim desenvolver os princípios encontrados, aproveitando o material disperso para continuar a obra evolutiva, imprimindo-lhe a expressão do seu pensamento pessoal. Mesmo o inventor e o artista, com as largas reservas de possibilidade e paciência que os séculos de experiências acumularam nos escaninhos de suas personalidades, estão englobados nessa classificação. É que o progresso é uma obra coletiva. Cada criatura deixa uma nota na sua admirável sinfonia. As eras se interpenetram umas às outras, tal como se confundem, no oceano largo do tempo, os vivos e os mortos. A vida é o resultado das trocas incessantes e o insulamento é a única morte no concerto universal. É considerando essas verdades que me tenho dedicado a conhecer, dentro das minhas possibilidades, as instituições dos homens, voltando para falar delas com a minha linguagem característica, evitando o terreno do transcendentalismo, para fornecer, espontaneamente, a minha carteira de identificação. * Nas proximidades do edifício do Tesouro Nacional, na Avenida Passos, ergue-se a Federação Espírita Brasileira, guardando, na cidade maravilhosa, as grandes tradições da caridade e da esperança, filhas do coração de Ismael, cujo pensamento inspira as atividades do Evangelho nas terras de Santa Cruz. Já tive ocasião de manifestar o meu respeito por essa instituição venerável, cujas portas se abrem generosas para os famintos do pão espiritual e para os necessitados do corpo, ao lado do formigueiro humano, onde se agitam cerca de dois milhões de pessoas. Conhecendo-lhe, embora, a finalidade evangélica, em cuja base imortal repousam os seus labores associativos, no objetivo de emprestar a minha colaboração humilde ao desdobramento dos seus programas, procurei alcançar numa visão de detalhe a sua obra edificadora. A visita de um desencarnado não se verifica conforme as praxes sociais que presidem, no mundo dos homens de carne, a um ato dessa natureza; mas, no pórtico da Casa de Ismael encontrei o mesmo Pedro Richard, que me levou a observar as intimidades do seu santuário. Visitei, uma a uma, as suas dependências.
Humberto de Campos
Nas escadarias e nos gabinetes amplos, não somente se reúnem os médiuns abnegados e os sofredores que aí os procuram diariamente; verdadeiras legiões de seres invisíveis, que os vivos considerariam como fileiras de sombras, deslizam pelas salas e pelos corredores, revezando-se no sagrado mister da caridade, fornecendo o que podem, no labor piedoso e cristão. A presença dos enfermeiros invisíveis enche a atmosfera da casa de fluidos suaves e balsâmicos. É, talvez, por esse motivo que alguns amigos meus procuravam descansar na Federação, quando passávamos nas vizinhanças da antiga rua do Sacramento, cansados dos rumores urbanos e das longas distâncias, acreditando alcançar ai um bando regenerador de suas energias psíquicas. - Aqui – explicava Pedro Richard -, nos reunimos todos nós, os que amamos as claridades do Evangelho, ansiosos de repartir as esperanças da Boa Nova,. Há lugar, nesta casa, para todos os trabalhadores, e basta querer para que cada um seja incorporado à caravana que nunca se dissolve. À maneira daqueles coxos e estropiados, a que se referia Jesus no seu ensinamento, vivemos pela misericórdia do Senhor, que não nos desampara com a sua bondade infinita. O banquete de Ismael está aqui sempre posto e, das alturas divinas, caem sobre o seu templo humano as flores da esperança, da piedade e do perdão, transformadas em bênçãos de Deus, repartidas, como a luz do Sol, com todos os corações. Aproveitamos, nos estudos da doutrina, aquela parte que representava a predileção de Maria, em contraposição com os trabalhos apressados e inquietos de Marta, segundo a observação do Divino Mestre, e pugnamos pelo esforço da reforma interior de cada um, reconhecendo que somente na assimilação dos princípios morais da doutrina, em sua feição de Cristianismo restaurado, poderemos atingir a finalidade de nossas preocupações. - Mas – perguntei admirado – a instituição desprezará, porventura, as expressões cientificas do Espiritismo? -“De modo algum – respondeu-me solícito -, seus aspectos fenomênicos merecem da Federação todo o zelo possível, mas essas expressões da ciência representam os meios e não o fim, constituindo, desse modo, corolários das expressões morais do ensinamento dos Espíritos, chegando-se à ilação de que nada se terá feito sem a edificação das consciências, à luz dos seus princípios. Haja vista o que aconteceu na Europa, bafejada por tantos fenômenos extraordinários. Com algumas exceções, os sábios que ali se ocuparam do assunto, possuídos do mais avançado personalismo, definiram os fatos mediúnicos dentro de suas vaidades pessoais, complicando o estudo da doutrina com o sabor cientifico de suas palavras, desconhecendo a profunda simplicidade dos ensinamentos revelados.” - É com essa expressão religiosa e regeneradora que o Espiritismo conta esclarecer os problemas do campo social? – perguntei ainda. -“De fato – continuou o meu generoso amigo -, toda a vitória da doutrina tem de começar no coração. Sem o selo da renovação interior, qualquer tentativa de reforma constitui um caminho para novas desilusões. Seria, pois, inútil organizarmos grandes movimentos para uma salvação imediata, se o espírito geral se encontra nas sombras. Onde se terá visto uma colheita sem o trabalho da semeadura? A missão dos espíritas não representa, portanto,
Humberto de Campos
uma tarefa artificiosa e nem lhes compete disseminar os laboratórios de ilusões. Suas responsabilidades são muito grandes no campo da educação evangélica das massas e no plano da caridade pura, assistindo os sofredores e os desesperados. Esse campo de trabalho moral é o imenso reservatório das forças indestrutíveis da Nova Revelação, e a beleza dos seus aspectos tem seduzido muitas mentalidades de elite, do mundo inteiro. Mesmo a esta Casa têm aportado muitos espíritos brilhantes, vindos da Política e da Ciência, considerando que o Espiritismo, verdadeiramente interpretado, é a síntese maravilhosa que abrange todas as atividades humanas, no sentido de aperfeiçoá-las para o bem comum.” - Mas – ponderei -, não seria aconselhável movimentarem-se os elementos da doutrina, projetando-se as expressões de seus valores no mundo das realizações? - “Não reprovamos quantos se entregam, desde já, aos trabalhos dessa natureza, reconhecendo que o Espiritismo é um campo imenso onde cada qual tem a sua tarefa a desempenhar, e onde o exclusivismo pecará sempre pela inoportunidade; mas, julgamos prudente criar-se a mentalidade evangélica antes das obras espíritas, a fim de que elas não se percam nos labirintos do mundo e para que sejam devidamente cultivadas pelos verdadeiros discípulos do único Mestre, que é Jesus-Cristo”. As palavras esclarecedoras de Richard calaram-me no espírito. Compreendi que, de fato, nunca, como agora, a sociedade humana precisou tanto de recorrer ao auxilio sobrenatural do mundo invisível para reorganizar as suas energias, a fim de manter a sua própria estabilidade moral. Em companhia do mesmo amigo, voltei para o saguão de entrada do edifício, onde se reunia a legião de aflitos e de consolados. Era noitinha. A Avenida Passos regurgitava de automóveis de luxo, plena de luz e de movimento. E enquanto os sujeitos felizes procuravam, no coração enorme da cidade, as casas alegres da noite, uma grande multidão de pessoas, ricas e pobres, subia com humildade as escadas do grande edifício, para se curvarem sobre o Evangelho, procurando aí a lição divina e o socorro espiritual. E antes que me confundisse, de novo, com as coisas da minha nova vida, lembrei-me das primitivas assembléias cristãs, onde se misturavam todas as posições sociais no exemplo de fraternidade apostólica, no recanto humilde das catacumbas romanas. Pedro Richard estava com a razão. É verdade que Nero não está hoje no poder, mas os circos dos suplícios foram substituídos, prevalecendo a mesma perversidade entre os homens, envenenando-lhes o coração. Aos funestos efeitos de uma nova aliança com Constantino, é preferível, portanto, esclarecer e iluminar o coração de Constantino.
Humberto de Campos
Hoje, mamãe, eu não te escrevo daquele gabinete cheio de livros sábios, onde o teu filho, pobre e enfermo, via passar os espectros dos enigmas humanos, junto da lâmpada que, aos poucos, lhe devorava os olhos, no silêncio da noite. A mão que me serve de porta-caneta é a mão cansada de um homem paupérrimo, que trabalhou o dia inteiro buscando o pão amargo e cotidiano dos que lutam e sofrem. A minha secretária é uma tripeça tosca à guisa de mesa e as paredes que me rodeiam são nuas e tristes, como aquelas da nossa casa desconfortável em Pedra do Sal. O telhado sem forro deixa passar a ventania lamentosa da noite e desse remanso humilde, onde a pobreza se esconde exausta e desalentada, eu te escrevo sem insônias e sem fadigas, para contar-te que ainda estou vivendo para amar e querer a mais nobre das mães. Quereria voltar ao mundo que deixei, para ser novamente teu filho, desejando fazer-me um menino, aprendendo a rezar com o teu espírito santificado nos sofrimentos. A saudade do teu afeto leva-me constantemente a essa Parnaíba das nossas recordações, cujas ruas arenosas, saturadas do vento salitroso do mar, sensibilizam a minha personalidade e, dentro do crepúsculo estrelado da tua velhice cheia de crença e de esperança, vou contigo, em espírito, nos retrospectos prodigiosos da imaginação, aos nossos tempos distantes. Vejo-te com os teus vestidos modestos, em nossa casa de Miritiba, suportando com serenidade e devotamento os caprichos alegres de meu pai. Depois, faço a recapitulação dos teus dias de viuvez dolorosa, junto da máquina de costura e do teu “terço” de orações, sacrificando a mocidade e a saúde pelos filhos, chorando com eles a orfandade que o destino lhes reservara, e, junto da figura gorda e risonha da Midoca, ajoelho-me aos teus pés e repito: - “Meu Senhor Jesus-Cristo, se eu não tiver de ter uma boa sorte, levai-me deste mundo, dando-me uma boa morte.” Muitas vezes o destino te fez crer que partirias antes daqueles que havias nutrido com o beijo das tuas caricias, demandando os mundos ermos e frios da Morte. Mas, partimos e tu ficaste. Ficaste no cadinho doloroso da saudade, prolongando a esperança numa vida melhor no seio imenso da Eternidade. E o culto dos filhos é o consolo suave do teu coração. Acariciando os teus netos, guardas com o mesmo desvelo o meu cajueiro, que aí ficou, como um símbolo plantado no coração da terra parnaibana, e, carinhosamente, colhes das suas castanhas e das suas folhas fartas e verdes, para que as almas boas conservem uma lembrança do teu filho, arrebatado no turbilhão da Dor e da Morte. Ao Mirocles, mamãe, que providenciou quanto ao destino desse irmão que aí deixei, enfeitado de flores e passarinhos, estuante de seiva, na carne moça da terra, pedi velasse pelos teus dias de insulamento e velhice, substituindo-me junto do teu coração. Todos os nossos te estendem as suas mãos bondosas e amigas e é assombrada que, hoje, ouves a minha voz, através das mensagens que tenho para quantos me possam compreender.
Humberto de Campos
Sensibilizam-me as tuas lágrimas, quando passas os olhos cansados sobre as minhas páginas póstumas e procuro dissipar as dúvidas que torturam o teu coração, combalido nas lutas. Assalta-te o desejo de me encontrares, tocando-me com a generosa ternura de tuas mãos, lamentando as tuas vacilações e os teus escrúpulos, temendo aceitar as verdades espíritas, em detrimento da fé católica, que te vem sustentando nas provações. Mas, não é preciso, mãe, que me procures nas organizações espíritas e, para creres na sobrevivência do teu filho, não é preciso que abandones os princípios da tua fé. Já não há mais tempo para que teu espírito excursione em experiências no caminho vasto das filosofias religiosas. Numa de suas páginas, dizia Coelho Neto que as religiões são como as linguagens. Cada doutrina envia a Deus, a seu modo, o voto de súplica ou de adoração. Muitas mentalidades entregam-se, aí no mundo, aos trabalhos elucidativos da polêmica ou da discussão. Chega, porém, um dia em que o homem acha melhor repousar na fé a que se habituou, nas suas meditações e suas lutas. Esse dia, mamãe, é o que estás vivendo, refugiada no conforto triste das lágrimas e das recordações. Ascendendo às culminâncias do teu Calvário de saudade e angústia, fixas os olhos na celeste expressão do Crucificado e Jesus, que é a providência misericordiosa de todos os desamparados e de todos os tristes, te fala ao coração dos vinhos suaves e doces de Caná, que se metamorfosearam no vinagre amargoso dos martírios, e das palmas verdes de Jerusalém, que se transformaram na pesada coroa de espinhos. A cruz, então, se te afigura mais leve e caminhas. Amigos devotados e carinhosos te enviam de longe o terno consolo dos seus afetos e, prosseguindo no teu culto de amor aos filhos distantes, esperas que o Senhor, com as suas mãos prestigiosas, venha decifrar para os teus olhos os grandes mistérios da Vida. Esperar e sofrer têm sido os dois grandes motivos, em torno dos quais rodopiaram os teus quase setenta e cinco anos de provações, de viuvez e de orfandade. E eu, minha mãe, não estou mais aí para afagar-te as mãos trêmulas e os cabelos brancos que as dores santificaram. Não posso prover-te de pão e nem guardar-te da fúria da tempestade, mas, abraçando o teu Espírito, sou a força que adquires na oração, como se absorvesses um vinho misterioso e divino. Inquirido, certa vez, pelo grande Luiz Gama sobre as necessidades da sua alforria, um jovem escravo observou: - “Não, meu senhor!... a liberdade que me oferece me doeria mais que o ferrete da escravidão, porque minha mãe, cansada e decrépita, ficaria sozinha nos misteres do cativeiro.” Se Deus me perguntasse, mamãe, sobre os imperativos da minha emancipação espiritual, eu teria preferido ficar, não obstante a claridade apagada e triste dos meus olhos e a hipertrofia que me transformava num monstro, para levar-te o meu carinho e a minha afeição, até que pudéssemos partir juntos, desse mundo onde tudo sonhamos para nada alcançar. Mas, se a Morte parte os grilhões frágeis do corpo, é impotente para dissolver as algemas inquebrantáveis do espírito.
Humberto de Campos
Deixa que o teu coração prossiga, oficiando no altar da saudade e da oração; cântaro divino e santificado. Deus colocará dentro dele o mel abençoado da esperança e da crença, e um dia, no portal ignorado do mundo das Sombras, eu virei, de mãos entrelaçadas com a Midoca, retrocedendo no tempo, para nos transformarmos em tuas crianças bem-amadas. Seremos agasalhados, então, nos teus braços cariciosos, como dois passarinhos minúsculos, ansiosos da doçura quente e suave das asas maternas, e guardaremos as nossas lágrimas nos cofres de Deus, onde elas se cristalizam como as moedas fulgurantes e eternas do erário de todos os infelizes e desafortunados do mundo. Tuas mãos segurarão ainda o “terço” das preces inesquecidas e nos ensinarás, de joelhos, a implorar, de mãos postas, as bênçãos prestigiosas do Céu. E, enquanto os teus lábios sussurrarem de mansinho – “Salve Rainha... mãe de misericórdia...” começaremos juntos a viagem ditosa do Infinito, sob o dossel luminoso das nuvens claras, tênues e alegres do Amor.
Humberto de Campos
Apreciando, em 1932, o “Parnaso de Além-Túmulo” que os poetas desencarnados mandaram ao mundo por intermédio de você, chamei a atenção dos estudiosos para a incógnita que o seu caso apresentava. Os estudiosos, certamente, não apareceram. Deixando, porém, o meu corpo minado por uma hipertrofia renitente, lembrei-me do acontecimento. Julgara eu que os bardos “do outro mundo”, com a sua originalidade estilística, se comprometiam pela eternidade da produção, no falso pressuposto de que se pudessem identificar por outra forma. Encontrando ensejo para me fazer ouvir através de suas mãos, escrevi crônicas póstumas que o Sr. Frederico Figner transcreveu nas colunas do “Correio da Manhã”. Não imaginei que o humilde escritor desencarnado ainda na lembrança de quantos o viram desaparecer. E as minhas palavras provocaram celeuma. Discutiu-se e ainda se discute. Você foi apresentado como hábil fazedor de pastichos e os noticiaristas vieram averiguar o que havia de verdadeiro em torno do seu nome. Colheram informes. Conheceram a honestidade da sua vida simples e as dificuldades dos seus dias de pobre. E, por último, quiseram ver como você escrevia a mensagem dos mortos, qual uma Remington acionada por dedos invisíveis. Tive pena quando soube que iam conduzi-lo a um “test” e recordei-me do primeiro exame a que me sujeitei aí, com o coração batendo forte. Fiz questão de enviar-lhes algumas palavras, como o homem que fala de longe à sua pátria distante, através das ondas de Hertz, sem saber se seus conceitos serão reconhecidos pelos patrícios, levando em conta as deficiências do aparelho receptor e os desequilíbrios atmosféricos. Todavia, bem ou mal, consegui falar alguma coisa. Eu devia essa reparação à doutrina que você sinceramente professa. Esperariam, talvez, que eu falasse sobre os fabulosos canis de Marte, sobre a Natureza de Vênus, descrevendo, como os viajantes de Julio Verne, a orografia da Lua. Julgo, porém, que, por enquanto, me é mais fácil uma discussão sobre o diamagnetismo de Faraday. Admiraram-se, quando enxergaram a sua mão vertiginosa correndo sobre as linhas do papel. A curiosidade jornalística é agora levantada em torno da sua pessoa. É possível que outros acorram para lhe fazer suas visitas. Mas, ouça bem: não me espere como a pitonisa de Endor, aguardando a sombra de Samuel, para fazer predições a Saul sobre as suas atividades guerreiras. Não sei movimentar as trípodes espiritistas e, se procurei falar naquela noite, é que o seu nome estava em jogo. Colaborei, assim, na sua defesa. Mas, agora que os curiosos o procuram na sua ociosidade, busque você, no desinteresse, a melhor arma para
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desarmar os outros. Eu voltarei provavelmente, quando o deixarem em paz na sua amargurada vida. Não desejo escrever maravilhando a ninguém e tenho necessidade de fugir a tudo o que tenho obrigação de esquecer. Fique, pois, com a sua cruz, que é bem pesada, por amor dAquele que acende o lume dos estrelas e o lume da esperança nos corações. A mediunidade posta ao serviço do bem é quase a estrada do Gólgota; mas, a fé transforma em flores as pedras do caminho. Li, certa vez, num conto delicado, que uma mulher, em meio de sofrimentos acerbos, apelara para Deus a fim de que se modificasse a volumosa cruz de sua existência. Como a filha de Cipião, vira nos filhos as jóias preciosas da sua vaidade e do seu amor; mas, como Níobe, vira-os arrebatados no torvelinho da morte, impelidos pela fúria dos deuses. Tudo lhe falhara nas fantasias do amor, do lar e da aventura. - Senhor – exclama ela -, por que me deste uma cruz tão pesada? Arranca dos meus ombros fracos esse insuportável madeiro! Mas, mas nas asas brandas no sono, a sua alma de mulher viúva e órfã foi conduzida a um palácio resplandecente. Um Anjo do Senhor recebeu-a no pórtico, com a sua benção. Uma sala luminosa e imensa lhe foi designada. Toda ela se enchia de cruzes. Cruzes de todos os feitios. - Aqui – disse-lhe uma voz suave – se guardam todas as cruzes que as almas encarnadas carregam na face triste do mundo. Cada um desses madeiros traz o nome do seu possuidor. Atendendo, porem, à tua súplica, ordena Deus que escolhas aqui uma cruz menos pesada do que a tua. A mulher preferiu, conscientemente, aquela cujo peso competia com suas possibilidades, escolhendo-as entre todas. Mas, apresentando ao Mensageiro Divino a de sua preferência, verificou que na cruz escolhida se encontrava esculpido o seu próprio nome, reconhecendo a sua impertinência e rebeldia. - “Vai – disse-lhe o Anjo – com a tua cruz e não descreias! Deus, na sua misericordiosa justiça, não poderia macerar os teus ombros com um peso superior às tuas forças.” Não desanime, portanto, na faina em que se encontra, carregando esse fardo penoso que todos os incompreendidos já carregaram. E agora que os bisbilhoteiros o procuram, trago-lhe o meu adeus, sem prometer voltar breve. Que o Senhor derrame sobre você a sua benção, que conforta todos os infortunados e todos os tristes.
Humberto de Campos
Começa assim, no volume de suas “Memórias” [1], o capitulo 32, intitulado: “ Um amigo de infância”: No dia seguinte ao da mudança para a nossa pequena cada dos Campos, em Parnaíba, em 1896, toda ela cheirando ainda a cal, a tinta e a barro fresco, ofereceu-me a Natureza, ali, um amigo. Entrava eu no banheiro tosco, próximo ao poço, quando os meus olhos descobriram no chão, no interstício das pedras grosseiras que o calçavam, uma castanha-de-caju que acabava de rebentar, inchada, no desejo vegetal de ser arvore. Dobrado sobre si mesmo, o caule parecia mais um verme, um caramujo a carregar a sua casca, do que uma planta em eclosão. A castanha guardava, ainda, as duas primeiras folhas úmidas e avermelhadas, as quais eram como duas jóias flexíveis que tentassem fugir ao seu cofre. - Mamãe, olhe o que eu achei! – grito, contente, sustendo na concha das mãos curtas e ásperas o monstrengo que ainda sonhava com o Sol e com a Vida. - Planta, meu filho... Vai plantar... Planta-a no fundo do quintal, longe da cerca... Precipito-me, feliz, com a minha castanha viva. A trinta ou quarenta metros da casa, estaco. Faço com as mãos uma pequena cova, enterro aí o projeto de árvore, cerco-o de pedaços de tijolos e telhas. Rego-o. Protejo-o contra a fome dos pintos e a irreverência das galinhas. Todas as manhãs, ao lavar o rosto, é sobre ele que tomba a água dessa ablução alegre. Acompanho com afeto a multiplicação das suas folhas tenras. Vejo-as mudar de cor, na evolução natural da clorofila. E cada uma, estirada e limpa, é como uma língua verde e móbil, a agradecer-me o cuidado que lhe dispenso, o carinho que lhe voto, a água gostosa que lhe dou. Pois bem, esse recanto do terreno da casa em que ele, na quadra infantil, residiu longos anos, nessa Parnaíba tão decantada em seus escritos e, particularmente, no volume que vimos de citar, foi, após a sua desencarnação, transformado num jardim publico, a que deram a denominação de – Parque “Humberto de Campos”. Ocioso dizer que o que inspirou a transformação daquele fundo de quintal em parque, com o nome do humorista notável e talentoso cronista nascido no Maranhão, foi a circunstancia de ostentar-se ali o belo e frondoso cajueiro por ele plantado, quando ainda na primeira infância, e ao qual consagrou em suas “Memórias”, nada menos de sete paginas, donde se evola forte o perfume da saudade e das recordações doces, que tantas emoções despertam nas almas sensíveis, mormente em dias de sofrimento e amargor, se já começaram a descer sobre a criatura as sombras merencórias do ocaso da existência. Nem só, entretanto, no mencionado capitulo das suas “ Memórias”, fala Humberto da hoje pujante arvore que as suas mãos de criança viva e travessa plantaram um dia, em semente,
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lá perto da cerca do amplo terreiro em que ele multiplicava, despreocupado, os brincos da meninice, na sua inolvidável Parnaíba. Além de varias outras referencias ao cajueiro querido, na extensa obra literária que deixou como escritor humano, ainda agora, como escritor do mundo invisível, na penúltima das mensagens que este volume contém – “Carta a minha Mãe” – alude à arvore amada, nestes termos tocantes, como o são, alias, todos os dessa comovente pagina que o Espírito traçou, da outra margem da vida, acionando o lápis de Francisco Candido Xavier: Ao Mirocles, mamãe, que providenciou quanto ao destino desse irmão que aí deixei, enfeitado de flores e passarinhos, estuante de seiva, na carne moça da terra... Exprime ele assim, sem dúvida, quão grata foi, ao seu coração amorável, a idéia de realçarem a beleza do seu “irmão” frondoso, pondo-o em destaque na moldura de um parque singelo, mas donairoso, onde, “como um símbolo plantado no coração da terra parnaibana”, segundo as suas mesmas expressões em “Carta a minha mãe”, aquele, como que orgulhoso do irmão que ali o deixou, se ergue cheio de majestade, a perpetuar, “para as almas boas”, a lembrança de quem, “arrebatado no turbilhão da dor e da morte”, vive agora feliz. Feliz, sim, porque liberto da prisão da carne, e feliz também porque preso pelos grilhões do afeto transbordante de uma alma de escol, a da veneranda velhinha que aguarda, paciente e resignada, depois de muito sofrer, também lhe soe a hora da libertação, para juntar-se de novo ao filho idolatrado, nos páramos da verdadeira vida. Assim sendo, gratíssimo igualmente nos é a nós associar-nos à homenagem que a bem inspirada e piedosa iniciativa da criação do Parque “Humberto de Campos” envolve, sem, contudo, a restringirmos ao homem que, pelo fulgor da sua inteligência, se impôs à admiração e à estima dos seus contemporâneos e dos pósteros, tanto quanto pela soma de seus dotes morais. Antes, rendemo-la, de preferência, ao seu Espírito, pela magnitude do esforço e pela caridosa solicitude com que procura, desde que se romperam os véus que lhe impediam a visão da verdade espiritual, demonstrar, aos homens incrédulos, não só a realidade positiva da sobrevivência da alma, como a da sua existência no Além, qual a revelou e continua a patentear o Espiritismo, esse Espiritismo que na Terra pouco lhe atraiu a atenção. E é tomado de emoção viva e de legítimo encantamento, ante a grandiosidade desse esforço a que ele se lançou com prodigioso devotamento e que lhe conservará, pelos tempos em fora, o nome e os feitos, mais do que todas as obras que haja produzido e pudesse produzir como homem, como Espírito encarnado, por muito geniais fosse elas, que nos juntamos aos que lhe exalçaram, para os dias atuais, o nome e a lembrança, fundando o parque onde frondeia, opulento da seiva que lhe fornece “a carne moça da terra”, o seu inesquecível cajueiro. Fazemo-la da maneira que se nos apresenta objetivamente possível neste instante em que, reunidas em volume, entregamos à deleitação dos estudiosos e aos amantes das belas-letras as suas Crônicas de Além-Túmulo: reproduzindo aqui, como um símbolo, conforme ele próprio o qualificou, símbolo certamente de grandeza e elevação espiritual, pois que instituído “para as almas boas”, a imagem da árvore imponente, numa fotografia do parque onde ela altaneira se levanta, fotografia essa que a sua carinhosa genitora ofertou a um
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excelente companheiro nosso, quando, em janeiro do ano corrente, a viajar por todo o Norte, logrou visitá-la, graças a gentileza de um amigo comum. Deparando-se-lhe, no visitante, um admirador entusiasta do seu saudoso Humberto, em cujo Espírito conta ele bondoso amigo invisível, a respeitável anciã não se contentou com o que presentear a reprodução fotográfica de uma solenidade que lhe há de ter feito derramar não poucas lágrimas de comoção e saudade: escreveu-lhe nas costas uma dedicatória bastante eloqüente na sua simplicidade. Esta circunstancia torna para nós a sua transcrição aqui mais que um dever – um ato de culto reverente a esse duplo amor, materno-filial, que de longe nos evos traz enlaçadas duas almas lidimamente irmãs e fundidas, por ele e para sempre, no amor infinito de Deus. Diz assim a dedicatória: Ao Sr. Jose Maria Macedo Santos ofereço, como lembrança da honrosa visita que me fez, a fotografia do parque “Humberto de Campos”, no dia de sua inauguração. Com sincera gratidão da humilde criada – Anna C. Veras – Parnaíba. 10 de janeiro de 1937. Excelsior! Dizemos, ao encerrar estas linhas pobres de uma homenagem que só não é desprezível porque feita de coração aberto, dizendo-o em saudação fraternal, e à maneira de sincero reconhecimento, ao Espírito amigo que foi entre nós – HUMBERTO DE CAMPOS Caro Amigo Se você gostou deste livro e tem oportunidade de adquiri-lo, faça-o, pois os direitos autorais são doados a instituições de caridade. Muita Paz
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I Viagens ao Espaço Falas, entusiasticamente, em habitantes de outros mundos, como se não estivéssemos habituados à experiência espírita. Ante a evolução dos projéteis balísticos, re feres -te às criaturas de Marte e Júpiter, Vênus e Saturno, com o êxtase de uma criança. E pensas em alterações e reviravoltas milagrosas, como se a tela moral do orbe pudesse modificar -se de momento. Lembra -te, porém, de que a vida estua, vitoriosa, em tod a à p arte, e de que a própria gota d’água é um pequenino mundo, povoado por miríades de seres dos quais o microscópio nos proporciona ampla notícia. -o- Cada esfera quanto cada paisagem é habitada a seu modo. E todos nós, amigos desencarnados, formulamos v otos para que o homem, nosso irmão, continue devassando pacificamente o espaço, surpreendendo novas características de vida no reino cósmico. Nota, entretanto, que há mais de um século os homens que “morreram” chamam, debalde, a atenção dos homens que “vão morrer”. E gritam que a vida continua para lá do sepulcro, que a matéria se gradua em outros estados diferentes daquele pelo qual é conhecida na Terra. -o- Convidados à verificação da verdade, sábios eminentes como Crookes, Myers, Morselli, Ochorowiez, Ak sakof, Lodge, empenham a própria autoridade, trazendo a lume observações e declarações indiscutíveis. Médiuns consagrados ao bem colaboram na difusão dos novos conhecimentos. Home, Eusápia, Esperance, Piper, sem nos reportarmos às irmãs Fox, submetem -se a exigências constantes. Os espíritos são vistos, ouvidos, apalpados, fotografados e identificados, mas, porque os medianeiros permanecem naturalmente unidos à mensagem, como o violino ao musicista, o notável
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pesquisador constrói com tal sutileza a sua filos ofia da dúvida, que a Doutrina Espírita estaria transfigurada simplesmente em vasto laboratório de intermináveis experimentos, não fosse a legião de bravos que lhe sustentam o estandarte de amor e luz, como autênticos vanguardeiros do progresso, junto da H umanidade. -o- Ainda assim, apesar de todos os empeços, avança a evidência do Mundo Espiritual. Nos países mais cultos do Globo os fenômenos do Evangelho vão sendo revividos, imprimindo conseqüências morais por toda parte. Os assuntos da sobrevivência são reexaminados. Outros médiuns chegam à sementeira das grandes revelações e o movimento prossegue, anunciando a continuação da vida no Além. -o- O problema, contudo, é tão fascinante que até mesmo os espíritos, privilegiados do entendimento, manuseiam -lhe os valores como quem lhe desconhece a grandeza.Permanecem na realidade fulgurante, à maneira do homem comum à frente do Sol. À força de recolher -lhe, gratuitamente, a vitalidade e o calor, se esquece de agradecer -lhe a presença. Não precisa perguntar -nos, as sim com esse ar de encantamento, se pode habilitar -se a uma excursão até Vênus ou Marte, em época próxima. Queiras ou não, farás, como nós já o fizemos, uma viagem muito pais importante. Mesmo que bebas soros de longevidade, com geléia real de contrapeso, conforme as usanças do século, apresentarás as tuas despedidas no momento adequado. -o- Creias ou não creias, conhecerás cidades prodigiosas e ninhos abismais, superlotados de gente que sente e pensa como tu. Não precisarás, para isso, tripular um foguete em velocidade. Virás mesmo na barca do velho Caronte. Nem alarme, nem propaganda. Para os homens, nossos irmãos na Terra, estarás em silencia. -o-
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Mas teus olhos verdadeiros mostrar -se-ão percucientes por trás da fronte marmórea e a tua voz se levantará, r enovada, por cima da boca hirta. Tão logo comece a romagem, dirão no mundo que estás morto. Pensa nisso para acostumar -te, desde agora, às dificuldades com que te haverás, depois, para seres recebido entre os homens. -o- De qualquer modo, porém, encontrará s na Doutrina Espírita todos os recursos necessários à grande preparação. Se respeitada, ela te será precioso passaporte, laboriosamente adquirido, para que te dirijas, tranqüilo, aos domínios maravilhosos que de sejas conhecer. E essa circunstâ ncia; no cas o, é a mais expressiva de todas, porque, se podes chegar hoje, em carne e osso, a planetas diversos do nosso, a fim de observares o que é dos outros para morreres em seguida, amanhã desembarcarás nos planos da Vida Maior, em espírito e verdade, pêra recebe res o que te pertence.
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II O Cultivador Infiel - Não me conformo – repetia irritado, o Dr. Novais Magalhães – o Espiritismo popular é vespeiro de confusão. Onde já se viu tamanha bagagem de embustes? É verdadeira escola de louc os e, freqüentemente, não se compreende tão elevado número de débeis mentais. - Mas, doutor – ponderava o Matos Lessa – há observações interessantes que cumpre não desprezar. Nem tudo é caso grosseiro ou indigno de análise. Claro que no intercâ mbio com o invisível há que destacar deficiências mediúnicas. Se alguém se incumbe de um recado nosso, logicamente misturará suas expressões individuais no esforço de transmissão necessária.É o caso do médium. Se um político ou um cientista, distantes do lar ou do tr abalho, apenas encontrassem humilde carregador capacitado à transmissão de uma mensagem à família ou aos colegas, naturalmente não sacrificariam o objetivo essencial ao processo exterior do serviço. É razoável que o portador satisfaça ao encargo, todavia, emprestando à colaboração características que lhe sejam peculiares. O dever, entretanto, estará cumprido, os detalhes, por certo, na maioria das vezes, deixarão a desejar. -o- - Não concordo, porém – reafirma o doutor – A observação justa não dispensa o método rigoroso. A meu ver, a sobrevivência está muito longe de ser provada, através das supostas comunicações com o Além. Temos somente apreciável acervo de fenômenos da própria subconsciência. As mensagens nunca ultrapassam a esfera de cultura do médium, os efeitos físicos são perfeitamente explicáveis pelo
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conhecimento do magnetismo em nossa época. Nada observo que transcenda o paralelismo psico -fisiólogico da ciência oficial. -o- Continuava a discussão acalorada, cheia de persuasão por parte do Lessa e de argumentos pesados do rigoroso investigador. O Dr. Magalhães, entretanto, jamais cedia terreno. Sua mente de pesquisador vivia repleta de conceitos clássicos a derramarem -se-lhe da boca em terminologia científica. Não apenas Matos Lessa vivia a duelar v erbalmente com ele. Amigos vários tentavam inutilmente renovar -lhe as interpretações. Novais era, porém, irredutível. Exibia chaves da ciência comum para todos os casos da fenomenologia. De qualquer reunião respeitável a que comparecia, in stado pelos compa nheiros, retirava -se mostrando sorriso irônico e invariável ao canto dos lábios. -o- - Não observou aquela mensagem dirigida à senhora Castanheira? – Indagava o Morais, velho amigo dele. O médium desconhecia as particularidades da comunicação. Notou os no mes familiares? E a descrição da moléstia do filho? Como interpretará você o fenômeno, sem o concurso do Espiritismo? Sorria o observador renitente, acentuando: - Simples transmissão telepática. Nada mais que isto. A ansiedade da família Castanheira envol veu a organização mediúnica e produziram -se as páginas de conselho. Ora, ora, o cérebro humano é aparelho que mal conhecemos... - Mas, meu amigo – atalhava o outro - semelhante conclusão não satisfaz. Além disto, outros casos existem mais surpreendentes. E Morais desfiava longo rosário de narrações, enquanto o doutor Magalhães de desfazia em comentários sobre automatismo, mecanicismo, subconsciência, patologia, telepatia, criptomnésia,
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telec inesia, psicogênese e outras teses respeitáveis do metapsiquismo contemporâneo. -o- Ao fim da longa conversação, o investigador rematava: - Afinal de contas, não me farei ao mar da ilusão. Quero fatos tangíveis, expressões palpáveis. O Espiritismo popular com os seus doutrinadores ignorantes e médiuns embusteiros não atr ai estudiosos de valor intelectual. Sou honesto, meu caro, e o homem honesto deve ser verdadeiro. - Não somos menos leais – aduzia o companheiro serenamente – e não desrespeitamos os postulados científicos. No entanto – e acentuava com inflexão firme – será admissível que a simples enunciação de palavras complicadas resolva problemas grandiosos da existência humana? A teoria não realiza coisa alguma por si só. Você, meu caro Magalhães, pode ser excelente educador, na expressão verbal, mas não é irmão. - Que pretendes dizer? – perguntou Novais agastado. - O educador explica, retalha, demonstra friamente e, por vezes, não vai além da lição teórica. O irmão é companheiro de luta, partilha as dores e alegrias do trabalho, compreende e consola. - Alto lá! Não co nfundamos ciência e fé religiosa, ra ciocínio e sentimentalidade. A lógica não toma apartamentos ao coração. Sigamos pelo método. Não tolero as fars as mediúnicas, com as velhas exortações descabidas e indigestas. E toda argumentação tornava -se inútil. Por mais que se falasse de vôos sublimes à Espiritualidade Superior, Novais fixava olhos e pensamentos no chão duro das interpretações sem esperança. Ninguém lhe discutia a honestidade, nem lhe negava inteligência. Mas, a sua atitude mental era sempre irritant e. Onde o amor dos espíritos benevolentes e sábios semeava consolações e energia novas, atirava ele dúvidas e desencantos.
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-o- Semelhava -se ao jardineiro infiel que, ao em vez de auxiliar a planta e protegê -la, arranca -a da base vital, no intuito de contar -lhe as folhas, observar -lhe a seiva e analisar -lhe as raízes, muito antes da promessa de fruto. Mas, como toda criatura terrestre, o doutor Novais Magalhães também entregou o corpo às exigências da morte. Com grande surpresa, porém, verificou que continua va vivo como dantes. Grande ansiedade por esclarecimentos particulares, enorme sede espiritual de revelação; entretanto, a solidão era absoluta. Ninguém para atender -lhe a fome do coração. Novais começou a caminhar a esmo, ponderando agora as barreiras se nsoriais. -o- Ah! Se encontrasse um médium! Alguém que lhe pudesse levar pequeno recado à família, humilde notícias aos colegas! Ainda que esse médium fosse de vulgar instrução, aproveitar -lhe-ia o concurso sem hesitar... E se algum espírito amigo viesse encaminhá -lo a serviços novos? No entanto, o Dr. Magalhães não podia esperar colheitas onde nada havia semeado, no capítulo da fraternidade e da consolação. O que mais o assombrava, porém, eram as sendas por onde se dirigia ansioso. Apenas divisava árvores mortas, ervas ressequidas, arbustos quebrados e, de quando em quando, a voz de alguém se mantinha invisível lhe gritava,ironicamente, aos ouvidos: “Mau jardineiro! Mau jardineiro! Cultivador infiel!...” -o- Novais, que começara indagando, vivia, agora entr e a súplica e a lágrima. Após muitos anos de dor, surgiu, enfim, alguém, na paisagem desolada. Tratava -se também dum jardineiro. O antigo observador
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fitou -o surpreso. Era um velhinho de olhar muito doce, cabeça aureolada de fios de neve, empunhando instrum entos agrícolas. Magalhães aproximou -se e lhe pediu socorro, angustiadamente. Face às amorosas interpelações do velho amigo, relatou a própria história, narrando -lhe as indagações do passado e as desilusões a que fora conduzido, afirmando sua honestidade e dedicação extrema ao método. O ancião sorriu generoso e falou: - Quando na Terra, conheceu a formiga? - Sim... – respondeu Novais, estanhando a pergunta. - Pois é, meu amigo, o seu caso é semelhante ao dela. A formiga é prodígio de inteligência e orga nização. Edifica o próprio lar, trabalha metodicamente, preserva com rigor o patrimônio que a natureza lhe confere. É minuciosa, mas é também um assombro de operosidade e de método; mas... nunca olha para o alto e, enquanto vive no campo, é sempre a mesma formiga... -o- Magalhães compreendeu a alusão e chorou com amargura; mas, o amorável mensageiro tomou -lhe a des tra e murmurou com brandura: - Venha comigo. Aprenderá doravante a zelar as plantas de Deus. Compreenderá agora que, se a investigação é justa, a verdade palpita acima dela, pedindo compreensão para as bênçãos da vida. Esqueça a sombra e busquemos a luz. Se a ciê ncia é necessária para o aprendizado de caminhos da Terra, é preciso não esquecer que o amor traça os caminhos o Céu.
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III Petições Diante da Benfeitora desencarnada, que atendia por intermédio do médium, em plena reunião de atividades espirituais, exclamou à senhora, súplice: - Irmã Corina, sou Angélica de Seixas... Ainda não sou espírita, mas venho até aqui em grandes ne cessidades. Ampare -me, por amor de Deus!... - Diga, filha – respondeu a entidade benevolente. A visitante prosseguiu, quase em lágrimas: - Tanto e tamanhos são os meus problemas, que fiz uma lista de minhas petições. Posso lê -la? - Como não? E dona Angél ica, desdobrando larga folha de papel, passou a falar, atenta às notas escritas. - Eis o que desejo: Cura de minha velha nevralgia. Remédio para meus olhos. Liquidação da angústia que me persegue. Esquecimento da tristeza e do tédio que me acompanham. Medicação para a insônia. Sossego íntimo. Dizem que sofro de obsessão e quero livrar -me. Desaparecimento dos vultos e das vozes que me atormentam. Recuperação do meu esposo, atacado de hepatite. Restabelecimento do meu filho Damião, internado em repouso. Casa mento feliz para minha filha Ariléia.
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Melhoria do temperamento de meu filho Avelino, que já consumiu dois automóveis, em menos de dois meses. Solução dos papeis relativos ao recebimento da herança que nos foi legada por meu tio João de Seixas, que morreu n o ano passado. Calma e revigoramento para meu futuro genro, que anda extremamente nervoso desde a noite em que se embriagou, quebrando o braço numa queda de lambreta. Bênçãos para a nossa fazenda, onde o gado, há muito tempo, está doente e mofino, sem que o veterinário descubra a causa. Paciência e harmonia para as minhas quatro empregadas, que vivem reclamando contra mim. Mudança pacífica do vizinho da esquerda, cuja casa é uma fábrica de barulhos constante. Compradores corretos para os seis apartamentos q ue acabamos de construir. Concessão de cinco telefones. Encontro do meu anel de brilhantes, perdido há dois meses. Despacho favorável num processo de despejo que movi contra dois inquilinos relapsos. Dona Angélica terminou em pranto, mas a venerada Corina, compreendendo -lhe o desajuste psíquico, abraçou -a com afeto e ponderou gentil: - Sim, minha irmã, confiemos na Divina Providência. Examinaremos todas as solicitações formuladas; no entanto, é preciso começar pelo tratamento adequado de sua própria saúde . Rogo -lhe apenas vir à nossa instituição durante meia hora por semana, a fim de que lhe seja administrado o tratamento magnético necessário, em nossos minutos consagrados à prece. -o-
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Ante a pausa que se fizera natural, tornou a Benfeitora com a ternura d e quem afaga um doente: - Poderemos aguardá -la, amanhã? Dona Angélica, entretanto, abanou a cabeça, em sinal negativo, e alegou a multiplicidade dos compromissos que a reteriam no lar. Tropeços, dificuldades, trabalhos, obrigações... A abnegada interlocu tora, porém, observou, prestimosa: - Bem, a irmã não pode vir ao nosso encontro; contudo, não nos será difícil prestar -lhe a devida cooperação em sua própria casa. Bastará que se mantenha em recolhimento, por vinte minutos, de sete em sete dias, no horár io e local a combinar. Logo após, com assentimento da interessada, marcou -se a primeira etapa socorrista para a noite seguinte, e lá fomos, alguns companheiros em equipe de assistência, para a tarefa a realizar -se; no entanto, a irmã Corina esperou, debald e, no aposento indicado aos breves momentos de silêncio e oração Dona Angélica de Seixas não conseguiu atender -nos, por estar mentalmente ocupada, em meio de alegres amigas, numa longa e agitada sessão de pif -paf.
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IV Duas Semanas Quando penetramos no aposento íntimo do abastado comerciante João de Toledo, estavam à mostra as folhas do diário em que lançara, do próprio punho, as resumidas anotações das próprias atividades nas duas últimas semanas daquele mês de abril: . Sonhei estar abraçando meu pai, morto há vinte anos. Não era precisamente um sonho. Era uma perfeita visão, dentro do quarto, mas compreendo a elucidação, pois comi lombo de porco à ceia, com boa rega de vinho verde. Ao almoço, contei o sucedid o a minha mulher que acredita numa comunicação espiritual. Ora, ora! Crendices! Etelvina, apesar de boa esposa, é mulher de cabeça fraca. Na parte da tarde, consegui armazenar mais duzentos sacos de arroz, completando o total de mil e quinhentos. , chorando. Disse haver sonhado também com meu pai, a rogar -me serviço à beneficência. Dizia que o velho chegara a indicar o cofre, repetindo o meu nome em voz ,alta. Baboseiras de minha mulher. Ela não bebe e come pouco, mas é impres sionável. Bastou que eu falasse de sonho à mesa para que igualmente se iludisse, a respeito de comunicações. Consegui adquirir mais trezentos sacos de feijão imunizado. . Declarou ter visto meu pai morto (oh! estupidez h umana!) e pediu em levá -la a um Centro Espírita. Neguei. Se as cousas continuarem dessa forma, devo levá -la a um psiquiatra. Dei um pulo a Caxias e obtive a promessa de mais centro e oitenta sacos de arroz. Ótimo preço.
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ão de pessoas religio sas veio hoje a minha casa insinuando a concessão de um dos meus lotes na cidade para o levantamento de uma casa destinada ao amparo de crianças vadias. Achei muita graça. Se querem posses que vão trabalhar. Virei -me quanto pude e comprei mais duzentos e v inte sacos de arroz, somando o total de mil e novecentos nos meus quatro galpões. Dentro de um a dois meses, a alta será compensadora. Pretendo adquirir mais imóveis. ói, articulando com amigos a compra de quinhentos sacos de arro z paulista, do melhor. Margem excelente. O artigo chegará em caminhões. . Disse ter visto meu pai a recomendar -me auxílio para as crianças necessitadas. Não compreendo. Meu pai morreu há muito tempo. Minha mulher quer ir a um Centro Espírita. Que vá sozinha. Não creio em bobagem. Ouvi vários atacadistas. O arroz subirá assustadoramente, depois da safra. ! Etelvina veio do Centro Espírita com um papelucho escrito, dizendo ser comunicação de meu pai. A assinatura é a do velho. Pede para que eu assente a cabeça, a fim de cultivar a saúde. Fala em caridade, repouso, meditação! Ora essa! Sou um homem conhecido. Esses espíritas devem ser grandes velhacos. Proibi Etelvina de qualquer novo entendimento com esses mandriões . Amanhã, imitarão a letra de meu pai para arrancar -me o dinheiro. Tudo isso deve ser chantagem religiosa. Mensagem! O conto da mensagem, isso é o que é. Não sou tão lorpa. Recebemos quatrocentos sacos de arroz paulista. Verdadeira pechincha. Tudo indica b ons lucros. ão. Estoque excelente. Vantagens imediatas.
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, declarando estar vendo meu pai constantemente. Isso é de enlouquecer. Os negócios me tomam tempo, sem que eu possa co nduzi -la a tratamento. Os empregados querem aumento. Era o que faltava. Não dou um vintém. Rua para quem reclamar. Comprei mais seiscentos sacos de arroz brunido para saída breve. Espero cinco milhões em maio próximo. . Acompanhei a descarga pessoalmente. Suei como estivador. Lucro certo. írita com dez crianças veio procurar -me no armazém com uma lista de auxílio. Não assinei. Vi tudo. Etelvina no Centro atraiu a exploração. A senho ra acabou solicitando um saco de arroz, mas aconselhei -a a levar os meninos para a Baixada e plantar. Caridade é manto de vagabundos. Comprei mais oitocentos sacos de feijão de Minas. , dia a dia. Contei ao meu gerente o que se passa e ele me falou que é mediunidade. Até ele! Não sei se um homem de bem, falando nisso, dá para rir ou pensar. Consegui mais quinhentos sacos de arroz. ão. A praça começa os primeiros sinais de alta. ções de meu pai e mandei que calasse a boca. Não quero comunicações, não quero notícia de mortos. Vou interná -la amanhã numa clínica de repouso, em Santa Tereza. Quero sossego. Meus representantes estão autorizados a começar as ven das depois de amanhã. Estaremos até a noite nos armazéns, recolhendo novas remessas do arroz que chegará de São Paulo. Uma frota de quarenta caminhões. Até vinte de maio próximo, espero o lucro de cinco a seis milhões para começar, em base mínima.
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Estas er am as últimas notas do abastado negociante Pedro João de Toledo quando lhe vimos enfim no lar o corpo maduro e hirto, que tombara repentinamente na rua, depois de algumas horas em trânsito agitado para averiguações no necrotério.
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V Psicografia Assevera você que o médium, a serviço do livro no Espiritismo, deve ser analfabeto, para que o fenômeno da comunicação se mantenha insofismável. Isso, porém, meu cão, não toa com os imperativos da lógica. Exigir um atestado de ignorância aos medianeiros incumbidos de veicular à palavra dos instrutores desencarnados, é o mesmo que reclamar obra -prima de imprensa a quem não possua o mais leve conhecimento do caixotim tipográfico. É claro que criaturas admiráveis podem realizar prodígios de beneficência, sem o concurso das letras. Sublimes tarefas da natureza são executadas sem necessidade de informação cultural. -o- A semente de que se faz o pão e a maternidade em que o lar se baseia prescindem de instrução da inteligência, cont udo, os serviços que lhes são conseqüentes, reclamam técnica e condução. Sem a agronomia que aperfeiçoa, a gleba estaria enquistada na insipiência, e sem a escola que honorifica o templo doméstico, a dignidade feminina acomodar -se-ia ao nível dos brutos. Não podemos prescrever princípios eternos como sejam afinidade e seqüência nos processos da vida. Quem aprende a manejar o buril, por vontade própria, com um estatuário, naturalmente acabará escultor, tanto quanto quem se afeiçoa ao ladrão, admirando -lhe as aventuras, decerto, com mais segurança, se fará competente na arte do furto. Problema de inclinação e de companhia.
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Se determinado médium dedica bastante amor aos misteres psicográficos, oferecendo -lhe tempo e carinho, indubitavelmente merecerá atenção do s amigos desencarnados que se valem do lápis no auxílio aos semelhantes, qual o aluno aplicado À frente de professores conscientes e justos. E, estabelecida à comunhão, o serviço progredirá na medida em que se desdobre a consagração do intermediário ao pro pósito de aprender e servir. -o- Isso é mais que natural. O trato de terra que suporte a presença do adubo e que se faça dócil À passagem do agente úmido é sempre aquele que mais produz, conquistando as mãos e s olhos do lavrador. -o- Médium que se mostre constante na disciplina a que se revele submisso aos ditames construtivos da Espiritualidade obterá, inegavelmente, o amparo dos companheiros desencarnados que buscam na caridade e na cultura o caminho da própria renovação. Há médicos notáveis, desenleados do carro físico, aproveitando operários humildes da fraternidade humana para o socorro aos doentes e cientistas ilustres que, ausentes do corpo carnal, não desdenham o concurso de apagados servidores da fé para a difusão do conhecimento nobre, no intuito de sublimarem, eles mesmos, o próprio coração. -o- E quanto mais se devotam os medianeiros à bondade e à instrução, mais se lhes eleva o grau evolutivo no campo da alma. Indiscutivelmente, na falta de pessoas alfabetizadas, os Benfeitores da Vida Superior não menosprezam os amigos privados da escola e, através deles, transmitem recados e ensinamentos que exprimem esperança e consolo.
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Aliás, em circunstâncias propícias, utilizam -se até de animais para as tarefas que lhes digam respeito. -o- Na Bíblia, temos o caso da jumenta de Balaão, cujas forças foram manipuladas por um Mensageiro Divino, a fim de que o fenômeno da voz direta alertasse o filho de Beor, no desempenho da missão que lhe fora cometida e, na atualidade há algum tempo, era possível observar o no sso prestimoso Canário, o burro sábia, cuja pata graciosa, manobrada por jovem estudante desencarnada, conseguia fornecer respostas interessantes a perguntas diversas. -o- Ainda assim, os muares a que nos referimos não conseguiram abra mediúnica de maior v ulto. Faltava -lhes, pelo menos, um curso primário de letras humanas para o avanço preciso. Enfim, meu amigo, estude a questão em seu próprio gabinete. Lembre -se de que a carta primorosa foi naturalmente ditada por sua boca à datilógrafa que lhe grafou os c onceitos. Se ela não fosse quem é – colaboradora exímia do seu trabalho de homem consagrado ao pensamento – você com certeza não conseguiria expandir -se, no plano das relações e das idéias. Você precisa dela, tão instruída e atenciosa, para instrumento de suas realizações, como nós outros, os espíritos desencarnados, não prescindimos de bons medianeiros para o serviço que nos compete. Como vê, nossos irmãos ainda analfabetos poderão, muitas vezes, efetuar glorioso ministério de amor e humildade, do qual nos achamos todos distantes em nossa deficitária posição na virtude, mas, em matéria de psicografia, por enquanto, não podemos dispensar s médiuns que saibam ler e escrever.
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VI Apreciando os Satélites Indaga você como apreciam os espíritos desenca rnados a proeza da ciência humana enviando ao espaço os primeiros satélites artificiais e só nos cabe responder -lhe que nós, os estudiosos, desenfaixados da teia física, achamo -nos ao lado da iniciativa, assim como larga torcida de futebol, aguardando o êx ito do nosso time terrestre. Sem a preocupação do observador chumbado ao solo, de lente em punho, vimo -los também deslocando -se no céu, pequeninos fantasmas encerrando aparelhos e pilhas que recolhendo informações da imensidade e transmitindo -as com a leal dade possível, simbolizam por si as preciosas sementes das grandes astronaves imaginadas agora para as gerações do futuro. -o- Aquecendo -se bruscamente ao contato dos raios solares, quando de passagem sobre a face iluminada do globo, e resfriando -se, de sú bito, ao atravessarem a face noturna do orbe, endereçam aos homens valiosa contribuição ao estudo da ionosfera, da radiação corpuscular do Sol, das torrentes de forças cósmicas e dos campos eletrostáticos em zonas superiores da atmosfera, sem nos referirmo s às observações positivas quanto ao comportamento das ondas de rádio e quanto à importância das correntes magnéticas circulantes que envolvem o corpo ciclópico do Planeta. -o- Que essas máquinas primorosas constituem os primeiros passos do homem físico pa ra a conquista do espaço cósmico, não duvidamos de leve.
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Dominado o problema do combustível para a criação de motores que ainda não existem na Terra, o homem poderá realmente concretizar as idéias do radiotelecomando para foguetes interplanetários que o in duzirão às mais arrojadas pesquisas. -o- Desdobrar -se-lhes-ão aos olhos maravilhados caminhos que nunca pode fantasiar e a generosa moradia em que estamos residindo há tantos séculos, com seus continentes e mares, cidades e florestas estará reduzida a sing elas proporções, ante os vôos imensos e sonhos astronômicos que tomará, de assalto, a mente do porvir. Entretanto, ao lado das grandes aspirações da ciência moderna, que incluem viagens a Vênus e Marte tanto quanto a formação de bases na Lua, com escalas p elas ilhas volantes a serem construídas no firmamento, encontramos questões morais estarrecedoras. É que, junto à física nuclear para fins pacíficos, suscetíveis de nortear a civilização para mais altos níveis de segurança e progresso, vemos a bomba atômic a produzida em massa para golpear essa mesma civilização culta e nobre e, ao pé dos foguetes de propulsão que transportam os satélites de sondagem, situando -os a grande altura, assinalamos a presença do foguete balístico intercontinental, com capacidade de arrazamento jamais prevista. -o- Desse modo, admiramos a grande empresa e formulamos votos sinceros para que os pioneiros da Astronáutica prossigam destemerosos, na gradativa superação do estágio humano, em plena conquista dos valores universais, associan do, porém, aplauso e receio, alegria e dor, ante a estreiteza do sentimento que baseia o arrojo do raciocínio. -o- Sem respeito à vida do próximo, o homem ameaça a estabilidade da própria vida e qualquer conflito entre as nações da atualidade pode
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trazer a o campo bélico a exibição de engenhos mortíferos capazes de envenenar o ambiente do mundo ou de alterar o leito das grandes águas, paralisando ou destruindo a construção que ultrapassa milênios numerosos de esforço da inteligência. -o- Ainda assim, não som os clientes do derrotismo. Prossigamos confiantes, trabalhando e aprendendo, na esperança de avançar nos domínios do Cosmo, guardando a certeza de que a Terra é uma casa de Deus concedida a nós, por empréstimo, a fim de que nela façamos o curso evolutivo q ue nos fala de perto, à luz da imortalidade, e se os homens nossos irmãos lhe complicarem os fundamentos, insultando -lhe os alicerces, resta -nos o supremo consolo de que a Misericórdia Divina, paciente e imutável, permitir -nos-á, como é certo, começar tudo de novo. (Página recebida pelo médium Francisco Cândido Xavier, em reunião da noite de Novembro ).
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VII De Pé os Mortos Senhor! O Brasil é o coração do Mundo e o coração nunca dorme. É a Pátria do Evangelho, é a Terra espi ritual do testemunho. Confiaste -lhe a Árvore de Teu Infinito Amor e no País da Fraternidade estenderam -se-lhe os ramos verdes e fartos, acolhendo as criaturas. Abençoaste os que choram. O Brasil incorporou torturados e oprimidos de outras raças à sua famíl ia generosa. Atendeste a i njustiçados. O Brasil sempre abrigou os perseguidos, proporcionando -lhes vida nova. Exaltaste os pacíficos. O Brasil exerceu, em todo tempo, a bondade e a tolerância, perdoando criminosos, anistiando rebeldes, esquecendo traições e calúnias, por acolher irmãos bem -amados. Elevaste os limpos de coração. O Brasil nunca tingiu as mãos no sangue fratricida, nas horas culminantes de renovação política, aceitando -Te os desígnios nos instantes solenes de sua história. -o- Determinaste que os homens se amem uns aos outros, como nos amaste. O Brasil abriu suas portas de oito mil quilômetros de extensão à frente do mar e recebeu fraternalmente os filhos de todos os povos do globo, sem preconceitos de cor, de sangue, de nacionalidade, de relig ião. -o-
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Agora, Senhor, neste momento grave do mundo, o Teu grande Brasil, nossa Pátria, foi chamado à defesa da verdade contra a mentira e a impostura. Não Te reclamamos a assistência necessária. Sabemos que Tuas mãos misericordiosas pousam no leme, guian do aqueles que governam o destino dos filhos do Cruzeiro; mas, neta hora de suprema determinação histórica, reafirmamos -Te confiança e pedimos derrames Tua luz em cada coração, em cada anseio materno, em cada recanto do lar, para que todo o Brasil compreen da que esta não é uma guerra de irmãos contra irmãos, porém, a da luz contra as sombras, da civilização contra a barbaria, do direito contra a força, do equilíbrio contra a demência. -o- Sabemos que preservarás a Pátria do Evangelho, desde o vale do Amazo nas às coxilhas do Rio Grande, envolvendo -a nas dobras do pendão auriverde, em que colocaste um coração azul enfeitado de estrelas, símbolo de Tuas sagradas esperanças; que irás de norte a sul, inspirando os que administram, orientando resoluções sábias, encorajando as mães, iluminando o conselho dos velhos, renovando energias da juventude, unificando o pensamento nacional. Entretanto, rogamos esclareças a todos os brasileiros, para que cada um se integre no espírito de serviço que dignifica o dever, a responsabilidade, o trabalho, a ordem e a disciplina. Auxilia -os a fazerem cessar neste momento as paixões, contendas, suspeitas, opiniões individualistas, interpretações políticas e sectarismos religiosos, a fim de que paire, acima das preocupações inferiores , a visão do Brasil imperecível, na integridade gloriosa dos bens que nos confiaste. -o- Nós, os “mortos” da Pátria, estamos igualmente de pé.
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Aqui nos encontramos para dizer aos nossos irmãos que a Vida Eterna resume as realidades sublimes e imortais, e q ue entrelaçaremos nossas mãos com as deles, nos testemunhos necessários. -o- Jesus, acrescenta valores aos nossos valores, como tens acrescentado confiança à nossa fé; ensina -nos a transportar a flâmula auriverde, do topo radiante dos mastros aos nossos corações, a fim de a içarmos bem alto no cimo da consciência. Senhor, o Brasil permanece contigo, por expulsar do templo da vida os vendilhões do direito e da paz, e cada brasileiro reconhece que Tu estás conosco, porque a Tua cruz é símbolo de resistência heróica e porque sabemos que combates, desde o primeiro dia do Evangelho, na guerra do bem contra o mal, que ainda não terminou.
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VIII Entre D ois Mundos A fim de colaborar no socorro à Senhora M...., internada numa instituição de s aúde mental, fomos compulsar -lhe o diário íntimo, em cujas páginas respigávamos tão somente algumas de suas observações mais específicas, em torno de suas próprias atitudes quanto à maternidade. “ – de maio – E, afinal, casei -me. Estou feliz, muito feliz... de junho – Alfredo me falou hoje da possibilidade de termos filhos. Não concordo. Filhos para destruir -me? Que idéia!... de novembro – Tia Emerenciana afirmou que os meus sintomas são de gravidez. Estou amedrontada. Alfredo não pode saber. Dare i um jeito para livrar -me. – de janeiro – Tia Emerenciana disse que não convém ficar sem filhos, que o casamento envolve obrigações muito sérias, perante o destino, e – coitada de minha santa velhinha! – tentou explicar -me que existem espíritos de e ras passadas, comprometidos conosco, aos quais somos chamados a dar novo corpo, através do lar (!?), e que somente assim resgataremos nossos débitos de outras existências. Não entendi patavina. de setembro – Tive um sonho terrível de ontem para hoje. Vi -me à frente de dois jovens, no quais acendera devastadora paixão. Tudo isso eu sentia, compreendia e via no sonho... Eles se rebaixavam, mutuamente, diante de mim, até que um deles sacou da arma, alvejando o outro e suicidando -se em seguida. Depois da cena triste, pareceu -me estar numa grande nuvem a fugir dos dois, ao mesmo tempo que escutava a gritaria de ambos, vociferando contra
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mim: “Assassina! Assassina!...” Acordei assustada e estou doente. Contei o caso a Tia Emerenciana, e ela declarou acreditar qu e me tenham voltado à memória minhas vidas passadas, que eu teria provavelmente provocado a morte desses moços, e que o sonho será talvez uma advertência do Plano Espiritual para que eu me decida a recebê -los agora, como filhos, em meu coração e em minha c asa... não aceito essas superstições. – de maio – Sonhei outra vez com os dois rapazes, exterminando -se por minha causa. A conversa sobre filhos foi retomada por Tia Emerenciana e por mim, junto de Alfredo. Meu marido admite a chamada reencarnação e quer filhos. Eu não tolero nem uma coisa, nem outra. de novembro – Não suporto tanta gente a me falar sobre filhos. Detesto! – de janeiro – Consegui hoje outro aborto. Dona Antônia me confessou que, se eu esperasse, teria gêmeos. Deus me livre!. .. – de dezembro – Tenho a idéia de que fiquei muito fraca depois do segundo aborto. Ando triste, acabrunhada... E o terrível sonho voltando sempre... – de setembro – Meu m,árido e Tia Emerenciana me levaram a um grupo espírita para ouvir pr eleções sobre assuntos de reencarnação. Querem que eu refaça minha saúde com sermões. Uma senhora simpática me garantiu que ficarei boa se me decidir a ser mãe, acrescentando que os tais homens que ando vendo em sonho, quase que constantemente, são entidad es com quem me comprometi em existências pretéritas e que necessitam de mim para renascerem na Terra... Nada sei disso e nem quero saber. – de junho – Sinto -me nervosa, muito cansada, enfastiada de remédios. E os sonhos agora parecem alucinações permanentes. Às vezes, chego quase a crer que os dois acusadores
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estão abeirando -se de mim, até mesmo durante o dia... Dizem por aí que me fiz obsidiada e que preciso ser mãe. Conversas!... – de julho – Tia Emerenciana me comunicou haver recebido mensa gem do espírito de minha vovozinha Candora, que me teria enviado um recado assim: “Se você, minha filha, receber os adversários desencarnados nos braços de mãe, abrigando -os por filhos, sua saúde voltará...” Como gostaria de acreditar numa história como es tá! – de maio – Pratiquei outro aborto, mas estou pior, muito perturbada e deprimida... de setembro – Comecei novo tratamento para nervos. Só vejo os homens do sonho na imaginação e escuto vozes por dentro de mim, condenando -me, ameaçando -me... – de março – Tomarei qualquer espécie de anticoncepcionais. Não quero filhos, decididamente não quero! – de abril – Estou arrasada. Minha cabeça é um turbilhão. Observo que até os médicos mais amigos não me agüentam mais... de julho – As fi guras infelizes e grotescas de meus sonhos não mais me largam. Parecem demônios que se combatem e, depois de lutas tremendas um contra o outro, se voltam contra mim. Coitado do Alfredo!... É um homem aniquilado. Desde que Tia Emerenciana morreu, no ano pas sado, já não tenho ninguém que me reconforte. Emagreci. Sou hoje uma sombra do que fui... Mas, o pior de tudo é a cabeça... Oh! Meus Deus, quem me auxiliará a tolerar a bola de angústia e de fogo que carrego nos ombros?...” Nesse ponto terminaram as observ ações que nos interessavam, no curioso caderno. Entretanto, já sabíamos o suficiente para socorrer, de algum modo, a senhora M...., em dolorosas crises no hospício, arruinada nas forças orgânicas e mentalmente subjugada
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por dois implacáveis obsessores – os amados de outro tempo e filhos desditosos que não chegaram a nascer.
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IX Médiuns e Instrutores Ante os enigmas da mediunidade entre os homens, você pergunta, espantadiço: “Não dispõem os Espíritos Benevolentes e Sábios de recursos suficientes para impedir o abuso e a má fé? Estaremos sempre à mercê de médiuns infelizes, capazes de amplo comércio com as forças da sombra, a tisnarem de lodo o serviço nobre dos medianeiros honestos? Por que não instituir o estudo metódic o da Doutrina Espírita nos templos de nossa fé, plasmando -se o caráter do instrumento mediúnico, antes de guindá -lo à publicidade?” Suas inquirições realmente chegam a comover pela sinceridade em que se expressam;no entanto, meu caro, respondemos com a mesma clareza que os amigos desencarnados não escravizam as faculdades dos companheiros que permanecem no mundo. Somente as entidades inferiores avocam para si o privilégio da posse temporária sobre as inteligências enfermiças, nos tristes processos da obsess ão. Entrosadas entre si, partilham, na Terra, a loucura e a delinqüência, provocando, onde passam, os mais estranhos sentimentos, que variam do ridículo à compaixão. -o- Todavia, entre os que despertaram para a responsabilidade, a governanta tem o seu just o limite. Os instrutores espirituais, qual acontece aos professores da escola comum, esclarecem e auxiliam sem constranger aos que lhes recebem assistência e bondade, encaminhando -os para a educação sem, contudo, violentar -lhes o livre arbítrio.
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Do que pos so deduzir, pelos estudos a que me consagro presentemente, milhares de tarefeiros da mediunidade foram conduzidos à Esfera Humana, durante o primeiro século do Espiritismo, todos eles munidos de honrosas designações de trabalho, em diversos países do Globo . Doutrinadores, materializadores, escreventes, assistentes, enfermeiros e condutores de opinião receberam preciosos títulos mediúnicos, renascendo na coletividade terrestre com a missão de servi -la, à feição de operários da luz; entretanto, raros atingira m o objetivo a que se propunham. -o- Muitos desertaram, receando as preocupações do caminho; outros se distraíram excessivamente com as fascinações marginais; alguns esqueceram a conta que lhes seria pedida no Plano Divino, colocando -se na disputa ao poder humano; e alguns outros, ainda, preferiram acomodar -se a propostas menos dignas, descansando em felicidades ilusórias do mundo, como se pudessem fugir à sacudidela da morte. -o- Partilhando as energias e os recursos dos Espíritos Benevolentes que os suste ntavam, assim como pupilos amparados pelo prestígio e pela bolsa dos benfeitores que lhes estendem proteção e carinho, supuseram -se donos de possibilidades que lhes não pertenciam e, superestimando o próprio valor, entregaram -se a aventuras particulares, n as quais se iniciaram em dolorosas experiências, quando não se afundaram em escabrosos precipícios de frustração. -o- Nessas circunstâncias, o médium está sempre na posição de criatura que sacou valioso empréstimo no Banco da Bondade Divina com determinada finalidade, gastando o dinheiro a benefício próprio, com agravo dos próprios débitos. -o-
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E, como a administração de qualquer instituto bancário não pode interferir na consciência dos seus devedores, sob pena de co rtar-lhes a ação, também a Espiritualidad e não subtraíra de nenhum modo, a iniciativa dos espíritos que se reencarnaram, com esse ou aquele mandato específico, porquanto, é da Lei que a colheita corresponda à espécie da plantação. -o- No entanto, o último tópico de seus apontamentos merece anotaç ão especial. Efetivamente, compete às organizações espíritas indiscutível responsabilidade na formação e observação dos médiuns, com mais ampla tarefa na divulgação doutrinária. Isso, porque a mediunidade, interpretada no ponto de vista de sintonia, só por si não constitui galardão. Há médiuns de todo feitio, inclusive aqueles que, por força de seu próprio passado, ainda suportam pesada influência das sombras, esperando que a Doutrina Espírita lhes envolva o campo mental na bênção de sua luz, a fim de que possam executar as próprias obrigações. -o- Ainda aqui, todavia, não podemos compelir os irmãos de ideal, nos variados setores de nossa edificação, a proceder nesse ou naquele padrão de conduta, de vez que os princípios do Espiritismo são claros para nós to dos. De qualquer modo, porém, não se atenha ao desânimo. Cada noite é a introdução de nova manhã. De uma verdade inconteste, podemos guardar absoluta convicção, e essa verdade é a de que Jesus não nos abandona em razão de nossas fraquezas, de que a Doutrin a Espírita continuará brilhando sempre por chave de luz do Evangelho, acima de quaisquer desacertos humanos, e de que todos nós, seja onde for, receberemos sempre da vida, de acordo com as próprias obras.
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X Vinte Anos Realmente, meu amigo, em d ezembro de , abandonei o corpo apressadamente, à maneira do inquilino despejado de casa, por força de sentença inapelável que, em meu caso, era o decreto da morte. E você pergunta por minhas impressões da Vida Espiritual por todo esse tempo que, à fren te da Eternidade, não tem qualquer significação. Sinceramente, não tenho muito a dizer. O homem que se desencarna sem as asas do gênio sublimado na fé e na virtude assemelha -se, de algum modo, ao navegador do século XVI que, descobrindo terras novas, plant ava o domicílio no litoral, incapaz de romper os laços com a retaguarda, de modo a seguir gradativamente, na direção da floresta. -o- Novidades por novidades tenho visto inúmeras. Assim como o selvagem dos trópicos pode ser transportado até as vizinhanças do pólo, a fim de extasiar -se com o glorioso espetáculo da aurora boreal, sem compreender -lhe o jogo de luz, assim também tenho contemplado paisagens maravilhosas de outros mundos, sem, contudo, entender -lhes a magnificência. -o- Terminado o estímulo da ex cursão educativa, eis -me de volta ao solo áspero de minhas próprias experiências, no qual devo cultivar os valores do porvir. -o-
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Você será naturalmente induzido a indagar quanto ao pretérito. Atravessando a criatura múltiplas existências, de outras vezes terei igualmente regressado ao campo espiritual e, por isso, não posso estar pisando um terreno desconhecido... Ainda assim, não suponha que algumas peregrinações na carne possam valer grande cousa, quando nosso esforço na própria elevação não seja indiscu tivelmente muito grande. -o- Viajamos no oceano das forças físicas, tornando a velhos continentes da recapitulação por alguns lustros apenas e regressamos ao litoral, a fim de prosseguir na construção das bases de progresso e segurança que nos habilitarão, um dia, aos altos cimos. Por enquanto, é preciso vencer obstáculos e sombras, dificuldades e inibições no país de mim mesmo, para caminhar da animalidade que me caracteriza a Humanidade real de que ainda me vejo distante. E, nesse trabalho, não há muito g osto de alinhar notificações e surpresas, porque, tanto aí quanto aqui, não é fácil modificar a química do pensamento, com vistas à própria renovação. -o- Desnecessário comentar nossas organizações e deveres. Toda uma literatura copiosa e brilhante, nos ma is diversos centros do mundo, revelam hoje os processos evolutivos da Terra Melhorada, onde presentemente me encontro, sem o pesado escafandro das células enfermiças e, por essa razão, você deve saber que vivem errantes aqui somente os que aí pervagavam, e ntre a ociosidade e a indisciplina, que apenas se precipitam nas trevas infernais os que, no mundo, já haviam organizado um inferno na própria cabeça e que os heróis passam por nós, de relance, com destino às Alturas em que se colocaram. -o-
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Quanto a nós, pecadores penitentes e almas de boa vontade, estamos marchando, passo a passo, na superação de nós mesmos, entre o céu que sonhamos e o inferno que nos cabe evitar. Ainda assim, o comboio da morte, todos os dias, derrama viajores em nossa estação. Não raro , por isso, observo antigos companheiros do mundo chegando aqui sob as farpas do sofrimento, mastigando resíduos de extremas desilusões. São amigos que choram o ouro largado no chão, que suspiram pelo poder ou pela evidência social de que o sepulcro os des poja, que deploram o tempo perdido em atividades inúteis ou que enlouquecem, tentando debalde reaver o corpo bem cuidado que o túmulo apodreceu... -o- Não julgue que a recuperação seja obra de improviso. Resignação, coragem, compreensão, paciência e valor moral não constituem artigos adquiríveis no estoque alheio. Representam qualidades que todos somos constrangidos a edificar no mundo que nos é próprio, ao preço de nossa renunciação e de nossas lágrimas. -o- A única nota diferente que possuo em meu círculo individual é a que se refere à minha adesão intelectual ao Evangelho, sob a luz do Espiritismo. Digo “intelectual” porque ainda estou trabalhando o coração, como o lapidário burila a pedra, a fim de ofertá -lo efetivamente ao Senhor. E não diga que a minha conversão surge tarde demais, porque assim como o esforço de vocês no bem é valioso investimento de recursos para a existência daqui, a nossa tarefa nessa direção capitaliza em nosso favor preciosas oportunidades para o estágio que aí nos compete de futur o, de vez que, em tempo oportuno, estarei de novo entre os homens, tanto quanto você estará igualmente entre os espíritos desencarnados. -o-
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Como repa ramos, vinte nos de vida espiritual são poucos dias para a restauração e para o reajuste, porque a dor e a experimentação, a prova e a luta ainda permanecem conosco, à feição de instrutoras, que não podemos menosprezar. -o- Não se aflija nem desconsole, porém,. Diante de minha confidência fraternal. Trabalhe e estude, ame e instrua -se, fazendo o melhor que pud er no mundo e, se você retém qualquer dúvida em torno de minhas afirmativas, em breve, você mesmo estará aqui, depois de escalar pela casa da morte, a fim de melhor sentir a vida com o próprio coração e apreciar a realidade com os próprios olhos. (página recebida pelo médium Francisco Cândido Xavier, em reunião do mês de dezembro de )
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XI Sinceramente Diz você que é necessário inflamar a lâmina da crítica, em fogo de combatividade, para expulsar os vendilhões dos templos do Espiritismo e, exaltadamente, repete a palavra “conspurcação”, a cada trecho de sua carta, como se apenas encontrasse, em torno dos próprios passos, malfeitores e ladrões. -o- Nesse afã de julgar e sentenciar, você se reporta à impressões de oitiva sobre d eterminados companheiros, descobrindo -lhes, desapiedadamente, as cic atrizes, à maneira de um santo convertido em juiz de consciências alheias. E promete devassar a vida pública e privada de pessoas respeitáveis, incompreensivelmente indignado em nome do Me stre da Cruz. -o- Mas, examinando os propósitos que você mesmo traz À nossa consideração, seria justo movimentar semelhantes golpes, em nome da caridade? Seu zelo relaciona fraquezas e desventuras de irmãos nossos, aos quais você, se pudesse, deserdaria de todos os benefícios da proteção divina, a pretexto de preservar a pureza doutrinária. -o- Mas, se o Cristo, cuja inspiração procuramos para os destinos de nossa fé, nunca se afastou dos transviados e dos enfermos, por que razão se recolheria o Espiritismo , num círculo de eleitos, sem qualquer vantagem para a nossa extensa coletividade dos sofredores
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a que nossa bandeira veio servir? Onde colocaríamos o nosso programa de regeneração fugindo aos mais necessitados? E se vamos condenar aquele que hoje procura acertar o próprio caminho, onde situar a doutrina de amor que pretendemos estender, na Terra, em favor do próximo? -o- Se estamos interessados na recuperação humana com Jesus, é preciso lembrar que não sustentaremos a ordem de um edifício, atirando -lhes pe dradas. A cultura da fé assemelha -se à lavoura comum. Para salvar um espécime entre milhares, ninguém se aventuraria a ameaçar a plantação inteira. -o- E, ainda para defender um simples arbusto – se é que nos propomos realmente defendê -lo – não concretizar emos qualquer auxílio ao preço da violência. O sarcasmo não constrói, tanto quanto o vinagre não mata a sede. Uma doutrina religiosa é serviço de educação das almas. -o- O Espiritismo não pode escapar à regra. Dispomos no Brasil de mais de quinhentos mil e spíritas confessos, mas poderíamos alimentar a vaidade de contar com meio milhão de heróis? Sabemos que, entre as legiões dos companheiros de boa vontade, temos vastas fileiras de doentes, obsedados e aflitos... Declara -se você, contudo, disposto a guerrea r os expositores da Doutrina que, segundo suas afirmativas, não cumprem o que ensinam. Entretanto, estará você suficientemente seguro, quanto às alheias consciências, ao ponto de apreciá -las, com exatidão, pela superfície?
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-o- Quantas árvores, desagradávei s pelo acúleos da epiderme, sustentam as fontes preciosas do mundo? Quantos cais, aparentemente enlameados, defendem povoações e cidades contra a fúria do mar? Não nos consta a existência de alguma ordem de Jesus recomendando -nos a instalação de tribunais para a censura a irmãos, em experiências diversas da nossa; no entanto, não ignoramos que o Mestre nos exortou ao serviço do amor, em todas as circunstâncias... -o- Atravessada a fronteira da morte do corpo, se nos mantemos efetivamente despertos para o de sempenho dos deveres que nos cabem, ante as Leis Superiores, uma compreensão mais humana nos aclara o espírito e, dentro dela, meu caro, não há lugar para a ironia ou o fel. -o- O sentimento de nossa pequenez impõe -nos a obrigação de cooperar no bem de tod os, a fim de que nos não falte auxílio no crescimento para a Vida Eterna. Acreditando, assim, que você nos escreve com sinceridade, devo afirmar -lhe, sinceramente, que não posso concordar com a sua cruzada de reprovações públicas. -o- O tempo é uma dádiva do Senhor, com a qual necessitamos aprender a semear e a construir com o bem. È possível que outrem lhe diga de minha incapacidade para corrigir, por ter errado muito, por minha vez, na Terra. Outros dirão que não passo de um espírito perturbado, em razão de meus distúrbios intelectuais no mundo. Não nego a minha condição de enfermo em reajuste.
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Sou um pecador, trabalhando para não alongar a relação de minhas próprias faltas. Mas, no fundo, não posso prestigiar a sua campanha de crítica e de condenação porq ue eu sou um homem desencarnado, e porque você é um homem que vai morrer.
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XII Kardec, Obrigado Kardec, enquanto recebes as homenagens do mundo, pedimos vênia para associar nosso preito singelo de amor aos cânticos de reconhecimento que te exaltam a obra gigantesca ns domínios da libertação espiritual. Não nos referimos aqui ao professor emérito que foste, mas ao discípulo de Jesus que possibilitou o levantamento das bases do Espiritismo Cristão, cuja estrutura desafia a passagem do tempo. Falem outros dos títulos de cultura que te exornavam a personalidade, do prestígio que desfrutavas na esfera da inteligência, do brilho de tua presença nos fastos sociais, da glória que te ilustrava o nome, de vez que todas as referência s à tua dignidade pessoal nunca dirão integralmente o exato valor de teus créditos humanos. -o- Reportar -nos-emos ao amigo fiel do Cristo e da Humanidade, em agradecimento pela coragem e abnegação com que te esqueceste para entregar ao mundo a mensagem da Espiritualidade Superior. E, rememorando o clima de inquietações e dificuldades em que, a fim de reacender a luz do Evangelho, superaste injúria e sarcasmo, perseguição e calúnia, desejamos expressar -te o carinho e a gratidão de quantos edificaste para a f é na imortalidade e na sabedoria da vida. -o- O Senhor te engrandeça por todos aqueles que emancipaste das trevas e te faça bendito pelos que se renovaram perante o destino à força de teu verbo e de teu exemplo!...
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Diante de ti, enfileiram -se, agradecidos e reverentes, os que arrebataste à loucura e ao suicídio com o facho da esperança; os que arrancaste ao labirinto da obsessão com o esclarecimento salvador; os pais desditosos que se viram atormentados por filhos insensíveis e delinqüentes, e os filhos ago niados que se encontraram na vala da frustração e do abandono pela irresponsabilidade dos pais em desequilíbrio e que foram reajustados por teus ensinamentos, em torno da reencarnação; os que renasceram em dolorosos conflitos da alma e se reconheceram, por isso, esmagados de angústia nas brenhas da provação, e os quais livraste da demência, apontando -lhes as vidas sucessivas; os que se acharam arrasados de pranto, tateando a lousa na procura dos entes queridos que a morte lhes furtou dos braços ansiosos, e aos quais abriste os horizontes da sobrevivência, insuflando -lhes renovação e paz, na contemplação do futuro; os que soergueste do chão pantanoso do tédio e do desalento, conferindo -lhes, de novo, o anseio de trabalhar e a alegria de viver; os que aprender am contigo o perdão das ofensas e abençoaram, em prece, aqueles mesmos companheiros da Humanidade que lhes apunhalaram o espírito, a golpes de insulto e de ingratidão; os que te ouviram a palavra fraterna e aceitaram com humildade a injúria e a dor por ins trumento de redenção; e os que desencarnaram incompreendidos ou acusados sem crime, abrançando -te as páginas consoladoras que molharam cm as próprias lágrimas... -o- Todos nós, o que levantaste do pó da inutilidade ou do fel do desencanto para as bênçãos d a vida, estamos também diante de ti!... E, identificando -nos na condição dos teus mais apagados admiradores e com os últimos dos teus mais pobres amigos, comovidamente, em tua festa, nós te rogamos permissão para dizer: “Kardec, obrigado!... Muito obrigado !”...
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(página recebida pelo médium Francisco Cândido Xavier,em homenagem, ao aniversário de Allan Kardec)
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XIII O Centenário de Hydesville O centenário das manifestações de Hydesville desperta considerações especia is em todos os círculos espíritas da América. Margaretta e Kate Fox, as jovens médiuns utilizadas pela Esfera Espiritual na demonstração objetiva da imortalidade, são lembradas com respeito e carinho. O ambiente característico de é reconstituído nos comentários de jornais e emissoras. Num lar de evangelistas da Igreja Reformada, um homem invisível prova a sobrevivência além da morte e, não obstante o trabalho substancioso de abnegados missionários do espiritualismo, em ação no mundo inteiro, os fatos de Hydesville caminham através da grande nação norte -americana. Do vilarejo humilde, seguem para New York, de onde prosseguem, varando cidades e campos, até alcançarem o Congresso Nacional, numa solene petição em que alguns milhares de pessoas solicitam a atenção dos legisladores para o assunto. -o- As meninas Fox passam a constituir tese viva nas conversações científica s, acadêmicas e universitárias. Aplaudidas e ridicularizadas, atraem para o movimento renovador as simpatias de administradores e juízes, f ilósofos e artistas, estudantes e operários. -o- A luz guerreia a sombra, a revelação anula o dogmatismo, a verdade confunde a mentira. Em breve, os fenômenos se estendem mundialmente, os instrumentos humanos se multiplicam, o conhecimento progride insofr eável...
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-o- Quem provoca, no entanto, semelhante revolução mental não é um mensageiro resplandecente de luz. Não é um anjo que se põe a confabular com os homens. No recinto, não há relâmpagos do Sinai. O autor perceptível do empreendimento é um homem... desencarnado, desconhecendo, ele mesmo, a importância da iniciativa. Mostra -se apaixonado e inferior, quanto qualquer de nós. Confessa que foi assassinado, todavia, apesar da posição de vítima, não foi promovido à Corte Celestial. Condensam -se-lhe as idéias na experiência física. Tem ânsia de conversar com criaturas que ainda se encontram na embalagem dos ossos. Não ganhou, até ali, suficiente coragem para enfrentar o desconhecido. Terá lido, naturalmente, muitas páginas edificantes, no esforço terrestre, ma s encontra imensa dificuldade para esquecer a ofensa e perdoar o ofensor. -o- Exibe complexos de inferioridade. Pretende vingar -se. Desejaria justiçar -se pelas próprias mãos. Qualquer entendido de medicina ou psicologia lhe identifica a perturbação evident e. Além disso, não é “morto” da véspera. Declara que ali permanece, desde alguns anos, em torno dos despojos. A morte não conduziu à glória divina, mas ao tormento infernal. Reintegrou -se na própria consciência e a mente dele, atormentada e
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sofredora, busc a exteriorizar -se, por intermédio de sinais à maneira de qualquer náufrago perdido. Não foi bafejado ainda por claridade santificante que não procurou. Alimenta -se de preocupações puramente personalistas. -o- Após identificar -se pelas suas características de humanidade, prossegue aprendendo e evoluindo, tanto quanto nos ocorre no Brasil ou na Conchinchina. Tal verificação, contudo, não impede a exaltação da verdade e a compreensão gloriosa da Vida Eterna. O fenômeno inicial de Hydesville, comentado neste ân gulo adquire mais expressão e vivacidade, porque se, há cem anos, o Plano Superior encaminhava o homem desencarnado, com seus apetites e paixões, mágoas e enigmas, à consideração e entendimento dos semelhantes, como a dizerem que a morte é simples continua ção da vida, há muita gente aguardando o gongo final para receber as asas de cera e entrada gratuita no paraíso.
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XIV Problemas de um Médium O médium Calixto iniciou a tarefa com verdadeira compreensão da responsabilidade que lhe co mpetia. Criatura simples e de coração voltado para o dever, recebia as páginas dos mensageiros espirituais com a infantilidade do menino de boa índole que recebe um recado para transmitir, obediente e humilde. Vestia -se pobremente e, nos pés, não exibia ou tro calçado que não fossem tamancos rústicos. Recebendo -lhe, contudo, os trabalhos que psicografava, a maioria dos entendidos proclamavam sem rebuliços: - É um ignorantão! Não conjuga cinco palavras com acerto. Puro jogral de espertalhões do mundo livresco , a serviço de fanáticos do espiritismo. -o- Humilhado pelos repetidos insultos, Calixto mobilizou as próprias necessidades, de modo a diminuir os sarcasmos que, a propósito dele, se atiravam à Consoladora Doutrina de que se fizera pregoeiro. Trajou -se com mais apuro e queimou as pestanas, estudando a gramática. Sabia agora conversar com relativa elegância e expor os princípios que os Espíritos Superiores lhe ditavam, com facilidade e clareza. -o- Todavia, logo se lhe percebeu a modificação, o parecer públi co enunciou, solene:
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- Vejam só! É um homem genial. Produz em plano superior, através da própria inteligência. Quem revela, assim, tamanha cultura, escreverá com mais propriedade que os literatos mortos... E os investigadores atilados concluíam, rematando : - Embuste, pastiche e mais nada. O rapaz, embora surpreendido, continuou a tarefa. Evitou a multidão e fugiu às manifestações de público. Não seria mais justo recolher as bênçãos, na intimidade dos irmãos? Confinou -se ao campo doméstico dos princípios r edentores que abraçara. Contudo, ainda aí, a censura vigorou, subtil e contundente. -o- Se Calixto recebia mensagens, relacionando verdades duras, apontavam -no, sem piedade: - É um mistificador, obsediado pela mania de grandeza e virtude. Claro que os emi ssários da Esfera Superior não menoscabam o poder da gentileza e ninguém por haver transposto as fronteiras da morte encontra alegria em acusar os semelhantes, mas se um amigo espiritual temperava os conceitos em sal de estímulo, buscando o soerguimento do s companheiros encarnados, indicavam -no, com acrimoniosa atitude: - É um bajulador infeliz que se demora, sob a influência de perversos doadores de lisonja. -o- Sob perplexidades consecutivas, o médium satisfazia as exigências do ministério, no entanto, er a preciso interromper -se a cada passo para destrinçar enigmas pequeninos. Se os viajores do Reino da Morte vinham falar da majestade do Céu, o intermediário era apontado por instigador da fantasia; se comentavam problemas da Terra, era definido à conta de cretino.
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Jornalistas e escritores “mortos” utilizavam -lhe as faculdades a se fazerem sentir claramente, entretanto, as respectivas famílias, receiando -lhes a intromissão, ameaçavam o medianeiro, através de processos espetaculosos e humilhantes. Citado nos órgãos judiciários por miserável impostor, Calixto recolhia -se em prece, suplicando aos missionários invisíveis providências contra a perturbação estabelecida, mas enquanto os Espíritos Benevolentes adotavam pseudônimos, a fim de lançaram idéias renovadora s, com a facilidade possível, os companheiros de fé observavam -lhe, risonhos e irônicos: - Onde iremos? Os “mortos” também usam máscara? -o- O confundido trabalhador era objeto de geral exame, dia e noite.O zelo com que atendia ao serviço pela própria man utenção era interpretado por excessiva defesa na vida material, mas se era encontrado fora da atividade comum por algumas horas, era categorizado por garimpeiro de vantagens especiais. Tentava isolar -se por desincumbir -se das obrigações com mais segurança e eficiência, no entanto, era apontado, de imediato, por orgulhoso e frio, ante os sofrimentos alheios. Calixto passava, então, a comunicar -se com todos, entretanto, suas palavras convertiam -se em objeto de exploração aviltante e escandalosa. -o- Discutido , atormentado, fustigado e seguido pela crítica incessante, através do todas as maneiras pelas quais procurava solucionar os compromissos a que se devotava, chegou o dia em que se deitou desanimado, à maneira do burro que arreia sob a carga pesada. Não ser ia razoável parar? Como seguir adiante? Foi então que lobrigou, de olhos nublados de lágrimas, a presença de um mensageiro divino.
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Endereçou -lhe sentida súplica, mas notou assombrado que o emissário se mantinha sorridente ao ouvi -lo. Finda a rogativa, entr ecortada de soluços, o anunciador das Boas Novas Celestiais falou -lhe, bem -humorado: - Calixto, levante -se e não se aflija! Banhe -se uma vez por dia, tome refeições regulares e faça o que puder. O Senhor não exige o impossível. Habitue -se a auxiliar por am or ao bem, contando com a incompreensão natural do mundo. A calúnia não piora ninguém, tanto quanto a bajulação não nos aperfeiçoa qualidade alguma. Quanto ao mais, meu amigo – e, nesse ponto, o mensageiro riu -se francamente – se Jesus retirou -se do mundo pelas portas sangrentas do sacrifício na cruz, será mesmo que você pretende ausentar -se da Terra nas fofas almofadas dum automóvel? Com a interrogação, interrompeu -se a singular entrevista e Calixto, copiando os movimentos de uma muar resignados, ergueu -se de novo, e retornou o passo para o que desse e viesse.
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XV O Crente Modificado Certo devoto, em se retirando do templo, sempre encontrava pequena turma de pedintes e sofredores, com os quais distribuía os níqueis que lhe sobrava m na bolsa. Em seguida, exortava -os à confiança no porvir, quando as administrações terrestres aprendessem a efetuar a justa repartição das riquezas. Contassem todos com o Senhor, rico de bondade para todos os dilacerados da sorte, e que lhes enviaria benf eitores leias para o suprimento de pão e bem estar no momento oportuno. À noite, de mãos postas, elevava -se espiritualmente ao Céu e figurava -se, à frente do Cordeiro Divino... Ajoelhava -se e pedia reverente: - Senhor, teus pobrezinhos padecem frio e fome. .. Auxilia -me para que possa, por minha vez, ampará -los em teu nome. Para isso, ó Providência dos deserdados, digna -te conceder -me a mordomia nos bens materiais! É imprescindível que os celeiros de tua compaixão permaneçam sob a guarda de colaboradores efi cientes e fiéis!... -o- E o Salvador ouvia -o, complacente, sem prometer modificação de programa. O aprendiz da fé retomava a luta habitual, sempre interessado na crítica fraterna. De quando a quando, visitava instituições de benemerência e reparando a onda crescente dos necessitados ao redor dos trabalhos socorristas, inquiria santamente indignado: - Onde se ocultam os ricaços sem deveres?
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E, sem qualquer escrúpulo, justificava a indisciplina reinando na Terra. Fazia carga asfixiante de palavras contra os f avorecidos da fortuna e, não obstante cristão, declarava compreender o desespero dos pobres, quando se convertiam em revolucionários demolidores. -o- - Impossível em equilíbrio social – asseverava, ríspido – quando os endinheirados alardeiam conforto exces sivo ao pé dos indigentes. Chegada à noite, tornava a rogativa, semi liberto do corpo físico e, sentindo -se diante do Mestre, voltava a solicitar: - Senhor, tenho encontrado dezenas de enfermos esfomeados plenamente esquecidos... Sofrem e choram, esmolando debalde na via pública... Os missionários da proteção coletiva, a quem emprestaste a autoridade e o ouro, esquecera -te as bênçãos e cristalizam -se no egoísmo feroz. Dá -me recursos! Tenho necessidade de espalhar os teus benefícios! -o- O Salvador registrou a prece, sem alterar -lhe o roteiro. E semelhantes cenas passaram à categoria de hábito inveterado. O devoto, em esforço verbal diário, defendia os órfãos, os doentes, as viúvas, os desempregados, os aflitos e os tristes, apaixonadamente. -o- Nas rodas de companheiros, depois dos ofícios religiosos, pregava o advento do mundo novo em que os ricos da Terra seriam menos tirânicos e os pobrezinhos menos desditosos. Avançava, para isso, em teorias sociais de conseqüências imprevisíveis... -o- Em certa ocasião, depois de grande calamidade pública, saiu a esmolar em favor das vítimas infelizes. A seca trouxera à cidade
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lamentáveis farrapos humanos. Inexprimíveis padecimentos desfiguravam centenas de rostos. Os infortunados pediam trabalho, mas, antes de tudo, requ eriam remédio e alimentação. -o- Tantas aflições presenciou o devoto, no círculo dos flagelados, e tanta indiferença surpreendeu na esfera das pessoas felizes que, à noite, em preces mais comovedoras e mais ardentes, subiu, em lágrimas, ao Trono do Cordeir o e suplicou: - Senhor, os teus tutelados na Terra perecem a míngua de amor... Os afortunados escarnecem dos miseráveis, a opulência pisa os desvalidos. Dá -me acesso à riqueza fácil. Tenho necessidade de recursos urgentes para atender, no mundo, em nome de tua caridade infinita... -o- O Mestre, tocado mo íntimo, através de tão reiteradas rogativas, alterou os desígnios e recomendou que o pedinte fosse conduzido, sem demora, ao manancial da prosperidade terrestre. E a ordem desceu de anjo a anjo e de servo a servo, assim quanto ocorre num exército humano em que a determinação do general supremo desce de oficial a oficial e de soldado a soldado. -o- Em breve, o devoto era invariavelmente seguido por um mensageiro espiritual incumbido de soerguer -lhe o padrão econômico. Atendendo aos imperativos da tarefa que lhe fora cometida, o emissário começou por observar -lhe as atividades comuns, identificando -lhe a posição de comerciante ativo e, examinado o melhor processo de conferir -lhe a doação celestial, passou a insuflar -lhe idéias favoráveis, utilizando recursos indiretos... -o-
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Em algumas semanas, o crente sentiu -se compelido a realizar enormes aquisições de cereais, estimulado por inexplicável entusiasmos e, em sessenta dias, à face das exigências de exportação, o estoque gigantesco rendeu -se o lucro líquido de oitocentos mil cruzeiros. -o- O auxiliar invisível, contudo, anotou -lhe profunda modificação íntima. O homem que possuía oitenta por cento de vocação para o desinteresse com Jesus e vinte por cento de comerc ialismo por necessidade fatal da experiência humana revelava estranha diferença. A mente dele, de inopino, acusou noventa e nove por cento de pensamentos alusivos à oferta e procura, compra e venda, restando apenas um por cento para o idealismo evangélico. -o- O cooperador espiritual, sem acesso agora ao coração dele, buscou um companheiro d e fé e inspirou -lhe a formular apelo ardente à execução da promessa ao Senhor, mas o crente, quase irreconhecível, respondeu, sem rebouços: - Sim, efetivamente, em dois meses, ganhei oitocentos contos, todavia, é imperioso reconhecer que isto é uma insignificância para a nossa época. Além disso, a caridade pode esperar... O verdadeiro bem não é serviço que se faça afogadilho... Fixou a máscara grave do homem de negócios e xcessivamente preocupado e concluiu: - Não posso esquecer igualmente que, acima de tudo, tenho a família e o futuro não é brincadeira... Foi então que o mensageiro, fundamente desapontado, voltou ao domicílio que lhe era próprio e a nova notícia, de servo a servo e de anjo a anjo, subiu para o Senhor.
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XVI Pedro em Visita Conta -se que Simão Pedro, há tempos, conseguiu chegar ao Rio de Janeiro, perfeitamente materializado. Utilizando preciosos fluidos da natureza, nos bosques floridos que margin am Petrópolis, desceu dos subúrbios para o centro, com o objetivo de verificar as realizações cristãs, entre os novos discípulos do Evangelho. -o- Alpercatas de pobre, cabelos à nazarena, leve bastão a sustentar -lhe o corpo e singela túnica de estamenha, i a o apóstolo, de olhos vivos e doces, estranho aos automóveis e aos arranha -céus, na consoladora antevisão do encontro com os aprendizes do Senhor. -o- Achavam -se multiplicados, pensava. Trazia, mentalmente, o endereço de muitos, de conformidade com as rog ativas que subiam da Terra para o Céu. Que lhe contariam, acerca dos ideais evangélicos no mundo? Não ignorava que o Planeta continuava sob o guante infernal da guerra, entretanto, sabia que os ensinamentos do Messias avançavam salvando almas. -o- Ante o f rontispício de admirável organização católica -romana, deteve -se, emocionado. Aproximou -se. Tocou a campainha. Pretendia avistar -se com os superiores da casa, a fim de trocarem idéias. Um padre bem humorado atendeu: - Quem é o senhor?
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- Simão Pedro, para servi -lo. O clérigo sorriu e anotou -lhe os desejos. Findos alguns minutos, um dos diretores apareceu, em companhia de vários religiosos. Ouviram o visitante humilde, com inequívocos sinais de incredulidade e sarcasmo. Não chegaram nem mesmo a considerar -lhe s palavras. - Volte segunda -feira, com o atestado policial – declarou o orientador da instituição – e providenciarei seu ingresso no asilo. Simão tentou explicar -se. O eclesiástico, no entanto, foi claro: - Não insista. Tenho mais o que fazer. Venha se gunda -feira. O psiquiatra organizará sua ficha. Sequioso de entendimento, pediu Pedro: - Tenho sede. Permita -me entrar, por obséquio. - Quê? Entrar? Não precisa disto para beber água. Na esquina próxima encontrará um café, e será atendido. -o- Em vista da porta repentinamente cerrada, o apóstolo, algo triste, cruzou várias ruas e estacionou junto de simpática vivenda. Perguntou ao jardineiro pelo ministro da igreja reformada que a ocupava. O robusto rapaz deu -se pressa em satisfazê -lo. Em momentos breves, t rouxe consigo não só o pastor, mas também dois jovens presbíteros. À primeira interrogação, o visitante respondeu, esperançado: - Sou Pedro, o antigo pescador de Cafarnaum. - Entreolharam -se os presentes, espantadiços. - Debalde buscou o velho Ce phas escl arecer os propósitos que alimentava. O ministro evangélico, ai invés de prestar -lhe atenção, pos-se a ouvir os rapazes tagarelas.
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- Penso que é portador da mania ambulatória – asseverou um deles – traz alpercatas e os pés não parecem muito distintos. - Tenho ido pregar no hospício – informou o outro e conheço alguns casos de loucura circular. O pastor dirigiu -se a Pedro e declarou, sem rebuços: - Pode retirar -se. Aqui, não posso recebê -lo. Procure o culto no domingo pela manhã. - Irmão, não me expulse ass im... rogou Pedro, humilde. - Nada posso prometer -lhe – revidou o ministro, seguro de si – a congregação está longe de construir o nosso hospital de alienados. -o- Vendo -se novamente sozinho, o ex -pescador Galileu varou largo trecho da via pública e parou à frente de nobre domicílio. Bateu, acanhado. Ao rapazelho que atendeu, lépido, indagou pelo diretor de importante organização espiritista que ali residia. Decorridos alguns instantes, o dono da casa veio em pessoa, seguido de dois confrades. À inquirição inicial, respondeu tímido: - Sou Simão Pedro, o discípulo de Cafarnaum. Os novos amigos permutaram expressivo olhar. O missionário da Nova Revelação, que o apóstolo procurara, nominalmente, afirmou calmo: - Obsessão evidente. Creio esteja ele atuado por a rgucioso perseguidor invisível. - Um vidente faria aqui a necessária verificação, acentuou um dos companheiros. O outro, contudo, mostrando extensa intimidade com Richet, acrescentou, com algum pedantismo:
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- Tipo inabitual. Bem provável possa ser aproveit ado aos estudos de criptestesia. Adiantando -se, Pedro implorou: - Irmãos, tenho sede de comunhão fraterna em torno do Cristo, Nosso Senhor. Que me dizem do trabalho evangélico, na atualidade do mundo? O principal do grupo afagou -lhe a destra que se movia suplicante e replicou: - Procure -me na sessão de sexta -feira, depois das vinte horas. Teremos doutrinação. A cousa vai melhorar, “meu velho”. E, gentilmente, deu -lhe o endereço. Fechou -se a porta e o trinco rodou, automático. -o- Quem contou a história, di sse-nos ter visto o antigo discípulo da Galiléia enxugar as lágrimas a lhe deslizarem copiosas do rosto e perguntar a esmo, fixando o céu tranqüilo do crepúsculo: - Senhor, onde estará pulsando o coração de teus aprendizes?!... Em seguida, silencioso e ta citurno, o velho pescador pos-se de novo, a caminho, na direção do mar...
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XVII Explicações Não, meu amigo. Quando me desvencilhei do corpo físico, há quase vinte anos, o título de “espírita” não me classificava as convicções. Como ac ontece a muita gente boa, acreditava mais no que via com os meus olhos e tateava com as minhas mãos. Lia o Evangelho de Jesus e compulsava as impressões de vários experimentadores da sobrevivência, entretanto, sem objetivos sérios de estudo e sim na extrav agância das galhas da inteligência que vão à lavoura do espírito, gritando inutilmente ou bicando aqui e ali para perturbar o crescimento das plantas e prejudicar -lhes a produção. -o- Era um homem demasiadamente ocupado com a Terra para devotar -me às revel ações do Céu. Meus pensamentos jaziam tão vigorosamente encarnados nas preocupações mundanas, que nem a força hercúlea da enfermidade conseguia deslocar -me para as visões íntimas da Vida Superior. Ilhado na fortaleza de minha pretensa superioridade intelec tual, ria ou chorava nas letras, acreditando, porém, que a fé seria apanágio das criaturas ignorantes e simples, indigna dos cérebros mergulhados em maiores cogitações. -o- Situava -me entre a dúvida e a ironia, quando a Morte, na condição de meirinho da Ju stiça Divina, me intimou a comparecer no tribunal da realidade, mais cedo que eu supunha, e somente então comecei a interessar -me pelo gigantesco esforço dos homens de boa
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vontade que, nos mais diversos climas do Planeta, se dedicam hoje à solução dos enig mas inquietantes do destino e do ser. -o- O túmulo não é apenas a porta de cinza. Morrer não é terminar. E, banhado ao clarão da verdade, por mercê de Deus,incorporei -me à imensa caravana dos que despertam e trabalham na recuperação de si mesmos. Não estra nhe, pois, se continuo em minha fain a de escritor humilde, tentando nortear as minhas faculdades no rumo do bem. É o que posso fazer, porquanto não disponho de especialização adequada para outro mister. -o- Você pergunta porque me devoto presentemente ao E spiritismo com Jesus, quando fui intérprete da literatura fescenina, lançando vários livros picantes, e político apaixonado na corrente partidária a que me filiei, como defensor dos interesses de minha terra. Creia que, realmente, errei muito. Mas sempre c onsegui equilibrar -me na corda bamba das convenções terrestres e, muita vez, caí escandalosamente em pleno espetáculo, à frente daqueles que me aplaudiam ou me apupavam. Entretanto, a morte constrangeu -me ao reajuste preciso. Acordei para um dia novo e pro curo comunicar -me com os que ainda se encontram nas sombras da noite. -o- Admito que poderia fazer cousa pior. Se me deixasse vencer pela tentação, efetivamente integraria a vasta fileira dos espíritos obstinados na perversidade que lhes é própria, cavalga ndo os ombros de meus desafetos. Algo, porém, amadureceu dentro de mim.
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Aquilo que me causava prazer impele -me agora à repugnância. A experiência mostrou -me a parte inútil de minha vida e, por acréscimo de bondade do Senhor, voltei ao campo de minha própri a sementeira, não mais para deslustrar o serviço da natureza, mas para colaborar com o bem, a favor de mim próprio. -o- É por essa razão que ainda estou escrevendo... Convença -se, contudo, de que não possuo mais no vaso do coração a tinta escura do sarcasm o e esteja certo de que me sinto excessivamente distante de qualquer milagre da sublimação. Sou apenas um homem... desencarnado com o sadio propósito de regenerar -me. Depreenderá você, portanto, desta confissão que, em hipótese alguma, poderia inculcar -me na posição de guia espiritual dos meus semelhantes. A sepultura não converte a carne que ela engole, voraz, em manto de santidade. Somos depois da morte o fomos e muita gente, que anda por aí mascarada, aqui encontra recursos para ser mais cruel. Quanto a mim, rendo graças a Deus por achar -me na condição de pecador arrependido, esmurrando o próprio peito e clamando “meã culpa, meã culpa...” Nosso orientador real é o Cristo, Nosso Senhor. Sem Ele, sem a nossa aplicação aos Seus ensinos e exemplos, respirare mos invariavelmente na antiga cegueira que nos arroja aos fundos espinheiros do fosso. Procuremo -Lo, pois, auxiliemo -nos uns aos outros e você, que com tanta generosidade se interessa pela minha renovação, não se esqueça das oito letras de luz que brilham sobre o seu nome. Ser “espírita” é continuar com Jesus o apostolado da redenção e que
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você prossiga com o Mestre, amando e servindo, no constante incentivo ao bem, é tudo de mais nobre que lhe posso desejar. (página recebida pelo médium Francisco Cândido Xavier, em reunião do mês de setembro de )
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XVIII A Receita O portuna Anacleto, o alegre orientador de uma reunião evangélica, recebeu a visita da Dona Clotilde Serra, que se banhava nas irradiações da fé, plenament e rejuvenescida em seus ideais novos e, ouvindo -lhe a palavra amiga, quanto à provável admissão dela nos serviços do bem, aconselhou, bondoso: - Irmã Clotilde, comece a tarefa nas obras simples da oração. Encontrará precioso acesso à luz espiritual. Abrind o nossas almas às correntes sublimes que dimanam da prece, surgem para nós oportunidades mil de alegria e paz, sob a inspiração do Cristo. A companheira reconhecida agradeceu e partiu, entusiasta; mas, depois de um mês, informava a amigo invisível: - Infel izmente, não pude atender à sugestão. Iniciando o trabalho, fui ferida pelo sarcasmo de muitos. Fui severamente criticada e muita gente considerou -me hipócrita... -o- -Minha amiga – obtemperou o benfeitor paciente – por que não ensaia a visitação dos enfer mos? Há grande vantagem na sementeira de amizade e simpatia. A consulente ausentou -se conformada, entretanto, alegava, depois de alguns dias: - Irmão Anacleto, não consegui obedecer -lhe a orientação. Junto aos doentes, recolhi chagas sem número. Não falto u quem me interpretasse por bajuladora na pista de legados e remunerações... - Não esmoreça! – observou o instrutor – o trabalho útil é o nosso caminho para a luz. Auxilie as crianças! Há tanta promessa desamparada no reino infantil!... Jesus lhe abençoará o devotamento.
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Dona Clotilde saiu encorajada, contudo, quando correram dois meses sobre a nova experiência, regressou clamando desalentada: - Irmão, não me foi possível seguir adiante... Tentando socorrer os meninos abandonados, não faltou quem me designa sse por sanguessuga da caridade e alguns vizinhos chegaram a caluniar -me, afirmando, de público, que meu apego Às criancinhas significava a reparação de crimes que não cometi... Anotando as grossas lágrimas que lhe rolavam das faces, Anacleto afagou -a e po nderou, calmo: - Não se entristeça! Volte -se para as nossas irmãs desventuradas. Ampare, sem alarde, as mulheres infelizes que a necessidade arrastou aos despenhadeiros de ilusão!... Quem sabe? Talvez encontre uma lavoura preciosa de amor. A sensível senho ra ausentou -se, consolada, mas quando duas semanas se escoaram sobre o novo trabalho, tornou à reunião, choramingando: - Anacleto, não posso! Não posso!... a maldade, desta vez, foi excessivamente rude comigo... Imagine que, em me derramando no socorro fr aternal, fui nomeada por mulher indigna do nome que me gabo de sustentar!... - Doem -me fundamente semelhantes insultos!... -o- Registrando -lhe os soluços convulsivos, o prestimoso orientador sugeriu, compadecidamente: - Clotilde, tente a mediunidade no aux ílio ao próximo. A enfermidade e a ignorância campeiam em quase todos os setores da luta humana. Faça alguma cousa. A grande questão é começar. Não dê entrada ao desânimo! Sigamos na vanguarda luminosa do bem! Mais vale uma candeia brilhante palidamente so bre o óleo da boa vontade que um milhão de comovedores discursos contra domínio das trevas!...
Humberto de Campos
-o- Retirou -se a irmã tranqüilizada e confiante, mas, após o transcurso de algumas semanas, voltou a grupo e reclamou: - Ah! Que tarefa ingrata nos impõe o min istério mediúnico! O médium é um joguete desventurado entre a curiosidade e a suspeição! Por mais se esforce não encontra a segurança do apoio e da fé naqueles que o rodeiam, e acaba sempre qual me sinto, sucumbindo de dor entre a desconfiança e a malícia de quase todos os companheiros... Anacleto, Anacleto! Que será de mim? -o- Desta vez, porém, o mentor recolheu -se ao silêncio com visível tristeza e porque tardasse a resposta à servidora complicada inquiriu ansiosa: - Que fazer, meu amigo? Como proceder? Auxilia -me com uma receita oportuna!... Anacleto, contudo, razoavelmente desencantado, mas, ainda otimista, respondeu sereno: - Irmã Clotilde, compreendo agora o seu caso com mais clareza! O seu problema, por enquanto, é de medicina. Procure um especiali sta em moléstias de pele, com a presteza possível, e provavelmente, muito em breve poderá recomeçar...
Humberto de Campos
XIX Memórias “Deve ser horrível – diz você –o escândalo, em torno de nossa memória. O nome arrastado ao pelourinho do escárnio públi co e ao pasto da maledicência deve ser uma fogueira de angústia para o coração acordado, além da morte.” Você tem razão. A ave, em pleno céu, que se visse constrangida a voltar à casca do ovo, ou a árvore opulenta, que se reconhecesse obrigada a retornar p ara a cova do lodo, sofreriam menos que a alma desencarnada, sob a intimação ao regresso às perigosas infantilidades da experiência humana. -o- Em tais circunstâncias, laços mais pesados nos religam o espírito com mais intensidade, a gleba da carne, e a vo z dos nossos julgadores,não raro, nos converte os ouvidos em receptores gigantescos para os quais convergem todos os apontamentos justos ou injustos de quantos nos apreciam a conduta e as decisões. -o- Você já pensou num homem cujo corpo seja uma chaga viv a, tangido violentamente por milhares de mãos descaridosas e rudes? Esse é um símbolo pálido com que ousamos qualificar o suplício do infortunado que lega aos contemporâneos as recordações da própria viagem na Terra, quando essas memórias se referem às situações que fazem o inferno dos seus semelhantes. -o- Fustigado por reclamações e acusações infindáveis, o morto -vivo, com a infelicidade desse jaez, sofre golpes desapiedados, a