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As 7 universidades brasileiras entre as 10 melhores da América Latina
Sete universidades brasileiras estão entre as dez melhores da América Latina, de acordo com ranking compilado pelo provedor de dados e avaliações de educação Times Higher Education (THE). A lista completa é composta por 197 universidades de 13 países. O Chile tem a primeira colocação, mas o Brasil é o país mais representado no ranking, com 72 universidades. Em seguida, estão Chile (30), Colômbia (29) e México (26). Fim do Matérias recomendadas 1. Pontifícia Universidade Católica do Chile - Chile 2. Universidade de São Paulo (USP) - Brasil Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast 3. Universidade de Campinas (Unicamp) - Brasil 4. Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) - Brasil 5. Instituto de Tecnologia de Monterrey - México 6. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) - Brasil 7. Universidade do Chile - Chile 8. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) - Brasil 9. Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) - Brasil 10. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) - Brasil 11. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - Brasil 12. Universidade Estadual Paulista (Unesp) - Brasil 13. Universidade dos Andes - Colômbia 14. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) - Brasil 15. Universidade de Brasília (UnB) - Brasil 16. Universidade Nacional Autônoma do México -México 17. Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) - Brasil 18. Universidade Nacional da Colômbia - Colômbia 19. Universidade Federal de Viçosa (UFV) - Brasil 20. Universidade Federal do Paraná (UFPR) - Brasil Fonte: Times Higher Education (THE) É o 4º ano consecutivo que a Pontifícia Universidade Católica do Chile lidera o ranking. E a USP ficou em 2º lugar pelo 6º ano consecutivo. Os responsáveis pela pesquisa destacaram que a UFSC e a Unifesp subiram cinco posições cada uma. A federal catarinense voltou para o ranking das dez melhores pela primeira vez desde 2020, passando do 11º lugar no ano passado para o 6º este ano, devido a uma melhora em diversas métricas de pesquisa, segundo o Times Higher Education (THE). A Unifesp passou de 9º no ano passado para 4º neste ano, devido a melhoras na influência das pesquisas (impacto de citações), de acordo com o THE. No geral, o THE destacou que "o Brasil supera a média latino-americana na maioria das métricas, exceto impacto de citações e métricas internacionais, e teve melhorias significativas na qualidade e quantidade de pesquisas". Apesar disso, houve uma pequena queda no número de instituições brasileiras entre as 50 melhores, caindo de 29 para 28, na comparação com o ano passado.
2022-07-14
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62150335
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Por que venezuelanos estão voltando ao país após êxodo histórico
Em 2016, quando a economia da Venezuela caía 18,6%, e a inflação batia todos os recordes, chegando perto de 800%, Fátima Camacho foi um dos milhões de venezuelanos que empacotaram suas vidas e partiram para o exterior. Naquela época, a fome, o desemprego, o alto custo de vida e o salário mínimo baixo, que era insuficiente para pagar até uma cesta básica, impulsionaram muitos a buscar uma vida melhor em outros países da América do Sul e do mundo. Ainda que muitos destes problemas permaneçam para a imensa maioria, em abril passado, Camacho, de 31 anos, decidiu que era o momento de retornar ao seu país. Ela voltou a empacotar tudo o que tinha e pegou novamente a estrada que a havia levado ao Peru seis anos antes. Mas, desta vez, se mudou com o filho de três anos para Maturín, no leste da Venezuela. Fim do Matérias recomendadas "O isolamento que vivemos em Lima afetou muito o meu filho. Tivemos que levá-lo para fazer várias terapias. Culturalmente, também nunca conseguimos nos adaptar ao Peru", explica a jovem em entrevista à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC. "Além disso, ouvi dizer que a economia melhorou um pouco e queria passar mais tempo com a minha família. Quero que meu filho desfrute do contato com ela", acrescentou. Camacho é parte de um novo fenômeno que se faz cada vez mais visível em todas as cidades venezuelanas: o retorno de emigrantes que haviam deixado a Venezuela para viver, em sua maioria, em outros países da América do Sul. Apesar dos familiares de Camacho dizerem que a situação está "mais estável", ela foi precavida: "Deixei meu marido em Lima. Não nos arriscamos a vir os dois, porque não tínhamos certeza de que as coisas estavam boas." A grave crise econômica que afeta a Venezuela desde 2013 e que levou mais de 6 milhões de venezuelanos a abandonarem o país, parece ter chegado a um limite, segundo especialistas. De fato, faz alguns meses que a economia venezuelana mostra alguns sinais de recuperação. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em março, o país sul-americano registrou uma taxa mensal de inflação de 1,4%, a mais baixa desde setembro de 2012. Em abril, subiu para 4,4%, mesmo assim bem abaixo dos 24,6% registrados em abril de 2021. Além disso, a produção de petróleo, principal fonte de riqueza do país, começou a aumentar no final do ano passado, depois de alcançar um mínimo histórico em 2020, quando caiu para 434 mil barris por dia. Em dezembro do ano passado, a Venezuela produziu 718 mil barris por dia e, desde então, a produção se mantém pouco abaixo dos 700 mil barris. Ainda que esta quantidade ainda seja muito pequena para um país que produzia mais de 3 milhões de barris por dia em 1998, e que tem as maiores reservas de petróleo bruto do mundo, ela quase duplicou em comparação com a queda histórica de 2020. A Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) prevê que neste ano a Venezuela será um dos países que mais vão crescer na região, com um crescimento estimado de 5% do Produto Interno Bruto (PIB). O Fundo Monetário Internacional, por outro lado, prevê um crescimento mais modesto da Venezuela: 1,5%. O economista venezuelano Luis Vicente León explica que é uma melhora "sobre uma pequena parte do que costumava ser" a economia venezuelana. Ele avalia que as sanções impostas pelos Estados Unidos e o isolamento do governo obrigaram o presidente Nicolás Maduro a aceitar uma abertura econômica. "A pressão e a perda de controle do governo sobre a economia o obrigaram a permitir uma dolarização de fato da economia e também levou a processos de abertura de preços e de menor hostilidade com o setor privado", diz León, que também é presidente da consultoria Datanálisis. "A economia segue sendo pequena, mas está em melhor condição que há dois anos." Calcular o número preciso de pessoas que regressam é quase impossível porque o governo venezuelano não publica estatísticas sobre migração — e não respondeu aos pedidos de informação e comentários feitos pela BBC News Mundo. Mas desde seu retorno à Venezuela, há dois meses, Camacho diz ser testemunha de um "movimento econômico" que não via quando decidiu ir embora e que impulsionou o regresso de outros compatriotas. "Há muita gente voltando. Eu vim pela estrada e cruzei com pessoas que se sacrificaram e economizaram para conseguir regressar à Venezuela. Também tem gente deixando o país, mas menos que em outros anos", avalia. "A melhora é evidente. Você vê que as pessoas estão investindo em negócios, você vê mais manutenção das ruas." Camacho espera que o crescimento seja "duradouro" para que seu país possa "melhorar de verdade". A Venezuela alcançou o pico do êxodo em 2018, registrando uma taxa líquida de migração — os que saem menos os que voltam — de cerca de 1.850.000 pessoas, segundo dados da Datanálisis. No ano de 2021, o saldo migratório foi de -180.000. Ainda que mais gente tenha saído do que entrado, este número é apenas 10% do registrado em 2018. "A Venezuela continua perdendo gente. Ainda tem mais pessoas deixando o país que voltando, mas as saídas caíram drasticamente, e agora tem cada vez mais gente retornando", confirma Luis Vicente León. Segundo o economista, a maioria retorna de outros países da América Latina. "A Venezuela atravessou três grandes ondas migratórias. Primeiro, saiu a elite. Depois, saíram os profissionais que não enxergavam um bom futuro para suas carreiras. E então, mais recentemente, teve a onda mais numerosa, composta sobretudo por uma população mais pobre, com menor escolaridade e que migrou para países vizinhos, a maioria por terra", destaca. "Os últimos a emigrar também estão sendo os primeiros a regressar." León explica que a razão é simplesmente o fato de estarem geograficamente mais perto e poderem voltar por terra. Além disso, ele afirma que as diferenças salariais para mão de obra não qualificada entre a Venezuela e países vizinhos agora são menores. "Há dois anos, uma empregada doméstica na Venezuela ganhava entre US$10 e US$15 mensais, e era impossível sobreviver com isso. Agora, pode ganhar entre US$ 200 e US$ 250 por mês", assegura. "A diferença entre o que ganhavam fora e o que podem ganhar na Venezuela não é mais tão grande. A isso se soma o fato de não ter que lidar com xenofobia no seu país e não precisarem, em muitos casos, pagar aluguel, porque têm suas casas ou se hospedam na residência de familiares na Venezuela." A xenofobia foi justamente uma das razões que levaram Fátima Camacho a regressar ao seu país. "Quando chegamos, apesar de não termos muitos recursos, não havia xenofobia. As pessoas eram abertas e gentis. Mas no último ano que passei no Peru, percebi muita diferença", relata. "Quando percebiam que você era venezuelano, paravam de te tratar bem. Os bancos impõem mil empecilhos a um venezuelano para abrir uma conta. Tudo é mais complicado se você é venezuelano." Camacho diz que no início não se incomodava muito e tentava ignorar, até perceber que seu filho de três anos estava começando a ser afetado. "Havia casos de xenofobia na escola. Nossos amigos venezuelanos que tinham crianças contavam coisas que ocorriam com seus filhos, apesar de terem nascido no Peru", diz Camacho. "Mas como os pais dessas crianças eram venezuelanos, eram tratadas de maneira diferente. E nenhum pai ou mãe quer que seu filho seja excluído." Em maio, o governo venezuelano anunciou que repatriou 264 venezuelanos que estavam no Peru, por meio do programa governamental "Plano de volta à pátria", que entrou em vigor em 2018 para facilitar o retorno de emigrantes. Segundo o governo, desde a criação do programa em 2018, retornaram ao país cerca de 30 mil venezuelanos provenientes de 20 países. Desde novembro de 2021, também é possível ver na Argentina uma mudança no fluxo migratório. Segundo dados compilados pelo jornal argentino El Clarín, cerca de mil venezuelanos deixam a Argentina todo mês desde então — e grande parte deles retorna ao seu país de origem. Assim como muitos dos que voltaram, Camacho quer recomeçar a vida na Venezuela com um negócio próprio: ela vende na internet slings elásticos e ergonômicos para bebês que ela mesmo faz. "É um produto que não é muito popular na Venezuela, mas que é muito prático. As vendas estão lentas, mas estou apenas começando", revela. "Já vendi alguns. Tenho recebido muito afeto, e as pessoas gostam. Mas o venezuelano agora é mais precavido na hora de investir em alguma coisa." Muitos dos que voltaram também abriram pequenos restaurantes ou compraram carros para trabalhar como taxistas. Outros simplesmente retornaram ao trabalho que faziam antes de partir para o exterior. Todos sonham que o país possa voltar a "ser como antes". Mas a maioria é consciente de que uma mudança radical não vai ocorrer da noite para o dia. Segundo estimativas, a economia teria que crescer 10% ao ano durante quase duas décadas para recuperar o tamanho que tinha em 1997, um ano antes de o ex-presidente Hugo Chávez chegar ao poder. Luis Vicente León destaca que a Venezuela atual não é um único país, mas vários. "Há segmentos da população cujas receitas se dolarizaram e, para eles, a situação melhorou. Mas para outros, cujas receitas não são em dólar, a situação está pior, porque seus custos se dolarizaram", explica. Apesar das limitações econômicas que persistem na Venezuela, Fátima mantém uma atitude positiva e pede a seus compatriotas que pretendem regressar ao país que venham com o propósito de seguir em frente e trabalhar. Ela considera que os que voltaram agora têm o dever de "empreender e motivar" seus compatriotas para fazer o país crescer.
2022-07-10
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62064570
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Como a concentração de testes genéticos em europeus pode prejudicar o mundo todo
Até junho de 2021, 86% dos estudos genômicos foram conduzidos em indivíduos de ascendência europeia. Para piorar, esse abismo só aumenta: em 2016, essa taxa estava em 81%. Nessa conta, são consideradas as pesquisas sobre genética humana, realizadas principalmente por acadêmicos e cientistas. Um dos objetivos de todas essas investigações é entender o nosso DNA e encontrar mutações ou características de alguns grupos e etnias que ajudem a explicar a origem das doenças — e possam servir de base para o desenvolvimento de novas ferramentas de diagnóstico e tratamentos. Mas o que acontece se esses estudos ficam concentrados numa única população? O artigo lista uma série de propostas para ampliar a diversidade nas pesquisas genômicas que tentam desvendar as origens dos seres humanos e os fatores por trás de diversas doenças. Fim do Matérias recomendadas Para isso, defendem os pesquisadores, é preciso ampliar dramaticamente a quantidade de testes genéticos feitos na África, no Sudeste Asiático e na América Latina. A BBC News Brasil conversou com o geneticista computacional Segun Fatumo, que é o autor principal do trabalho. Nascido na Nigéria, o cientista é professor associado de epidemiologia genética e bioinformática da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, no Reino Unido, e lidera o Grupo de Pesquisa em Genômica Computacional Africano, localizado em Uganda. Fatumo alerta que a falta de diversidade no conhecimento sobre a genética não é apenas ruim para os povos que são desprezados nos estudos, mas para toda a humanidade. A ausência de um conhecimento mais amplo sobre o DNA e suas variações impede descobertas sobre a origem de muitas doenças e o desenvolvimento de novos métodos de diagnóstico e tratamento para as enfermidades. Fatumo confessa que ele próprio ficou surpreso quando descobriu o tamanho do abismo nos testes genéticos. "Em 2016, cerca de 3% dos estudos genômicos foram conduzidos em indivíduos de ascendência africana", calcula. "Esse número caiu para 2% e, mais recentemente, baixou para 1%", estima. Essa diferença foi traduzida em uma série de gráficos publicados no artigo da Nature. O levantamento mostra que cerca de 12 milhões de pessoas participaram de estudos genéticos na América do Norte. Na Europa, são 10 milhões de indivíduos. Esses números caem para 342 mil no Sudeste Asiático, 130 mil na África e apenas 24 mil na América do Sul. Para piorar, da pouca informação genética africana disponível, segundo a análise de Fatumo, boa parte dela vêm da diáspora que vive nos Estados Unidos ou no Reino Unido. O artigo aponta que, de 1% dos participantes de ancestralidade africana que integram as bases de dados genômicas atualmente, a maioria se constitui de afro-americanos. A proporção de informações do DNA de indivíduos que moram na África é considerada "insignificante". "Enquanto existem cinco grandes divisões etnolinguísticas africanas, a diáspora para o Reino Unido e os Estados Unidos consiste predominantemente em apenas um desses grupos, os falantes de Níger-Congo", escrevem os autores. A pesquisa aponta que, apesar de a África ser o berço de uma das maiores diversidades genéticas e linguísticas do planeta, mais de "90% desses grupos não possuem qualquer dado genético representativo até o momento". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Fatumo reforça que a falta de representatividade nos testes genéticos faz mal à própria ciência. Para dar suporte a esse argumento, ele usa como exemplo o desenvolvimento dos inibidores de PCSK9, um remédio desenvolvido para baixar o colesterol que chegou ao mercado farmacêutico recentemente. "E isso só foi possível porque alguns estudos descobriram variantes genéticas relacionadas ao PCSK9 que apareciam em africanos e não eram tão comuns em outras populações", diz. Com esse conhecimento, foi possível descobrir um novo mecanismo de ação que leva ao colesterol alto — e, a partir daí, desenvolver um tratamento novo capaz de baixar a quantidade dessa molécula no organismo, que tem o potencial de beneficiar pacientes do mundo todo. E esse não é apenas um caso isolado de sucesso: os raros estudos com a população africana também encontraram genes relacionados à doença renal crônica e ao diabetes. Será que eles também não podem ser alvos de futuras terapias que beneficiem todas as pessoas? "Precisamos entender que todos precisam ser incluídos para que os benefícios da genômica sejam realmente universais", afirma o geneticista computacional. Ainda dentro desse debate, chama a atenção o fenômeno dos testes genéticos recreacionais, que são oferecidos por várias empresas e podem ser colhidos em casa pelos próprios clientes. Nesse mercado, entre as ofertas mais populares estão as dos exames de ancestralidade, que mostram de onde vieram seus antepassados. Não raro, os resultados desses testes trazem detalhes muito precisos quando a origem da pessoa tem a ver com a Europa — muitas vezes, é possível saber não apenas o país, mas o local bem específico onde moravam os tataravós. Na contramão, quando o indivíduo tem ascendência africana, é comum que as informações sejam mais genéricas e só mostrem o país ou a região mais ampla do continente onde aquela sequência de DNA é mais frequentemente encontrada. Isso, mais uma vez, tem a ver com a falta de diversidade na genética, como explica Fatumo. "A confiabilidade de um teste de ancestralidade depende do banco de dados que é usado para fazer a comparação com o seu genoma", ensina o pesquisador. "Então, sabendo que a quantidade de informação genética sobre as populações africanas é escassa, o risco de um resultado impreciso é alto." "A confiança num exame desses vai depender muito de sua origem. Se você tiver algum antepassado que veio da África, é capaz de sua ancestralidade não estar devidamente representada nos bancos de dados genômicos", completa. Entre os motivos que ajudam a explicar a desigualdade na genética, Fatumo destaca uma espécie de "suspeita mútua" que existe entre os cientistas e as comunidades marginalizadas. "Durante muitos anos, os pesquisadores visitavam esses locais, colhiam amostras de sangue das pessoas e voltavam para seus países de origem", conta. "Ninguém conversava direito e os participantes dos estudos não recebiam sequer uma resposta sobre os testes aos quais eram submetidos." O geneticista computacional entende que, mais recentemente, com a popularização da tecnologia de sequenciamento genético e a formação de cientistas de várias partes do mundo, que muitas vezes vêm dessas próprias comunidades (como ele próprio), é possível repensar essa relação. "Agora, nós temos a possibilidade de determinar a agenda. Podemos sentar e conversar diretamente com as pessoas para explicar por que aquela pesquisa será importante para elas", avalia. Para Fatumo, a única maneira de equilibrar de novo a balança da genética — e incluir cada vez mais africanos, latino-americanos e asiáticos — passa necessariamente por duas mudanças. "A primeira delas é reconhecer que esse é um problema global, que precisa ser resolvido por todos", diz. "Segundo, nós precisamos de investimento em infraestrutura e na capacitação de cientistas que venham desses locais menos representados." "Assim, eles próprios podem operar os equipamentos e fazer as pesquisas." - O texto foi originalmente publicado em http://bbc.co.uk/portuguese/geral-62064744
2022-07-09
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62064744
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A revolucionária rota que ligou América à Ásia por mais de 2 séculos
Setembro de 2022 marca o 500º aniversário do retorno à Espanha do que restava da frota de Fernão de Magalhães (1480-1521). A frota havia saído em 1519 em busca de uma passagem pelo continente americano até a Ásia. O objetivo do marinheiro português, que chefiava uma frota espanhola, eram as Ilhas das Especiarias — ou Ilhas Molucas, na Indonésia — com as quais Cristóvão Colombo (1451-1506) havia sonhado décadas atrás. Mas a viagem, que se tornaria a primeira circunavegação (em torno de um lugar) do mundo, custaria caro. Apenas 18 dos 250 tripulantes iniciais sobreviveram. E só 1 dos 5 navios originais retornou ao porto. E também a um preço alto seria vendida a única carga que Juan Sebastián Elcano (1476-1526) trouxe na Nau Victória: especiarias, especialmente cravo. Apenas a carga de um navio pagou por toda a expedição. Por isso, era essencial encontrar uma rota mais curta para a Ásia e, sobretudo, que não envolvesse dar a volta ao mundo. E nesta equação a variável chave seria o México. Em seu livro La plata y el Pacífico: China, Hispanoamérica y el nacimiento de la globalización, 1565-1815 ("A prata e o Pacífico: China, América Espanhola e o nascimento da globalização, 1565-1815"), os historiadores Juan José Morales e Peter Gordon contam como encontraram essa viagem de regresso, e como essa união dos dois continentes transformou o México, nas palavras dos autores, na "primeira cidade global". Fim do Matérias recomendadas A BBC News Mundo entrevistou Morales, natural da Espanha, mas que vive em Hong Kong há mais de três décadas, sobre a história da "rota da prata" que durou mais de dois séculos entre Acapulco e Manila. BBC News Mundo - A chegada de Cristóvão Colombo àquele continente que mais tarde se chamaria América é um fato histórico tão relevante que às vezes nos esquecemos que a Coroa espanhola realmente queria chegar à Ásia, e que nunca desistiu desse objetivo original. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Morales - De fato, para os espanhóis foi um misto de decepção e descrença que tal território se interpusesse, e com o passar dos anos e os perímetros daquele território serem descobertos, foi uma decepção atrás da outra. Também a resistência contra esse novo nome: América. Os espanhóis estavam muito relutantes em usar esse termo e essa palavra praticamente não existia há vários séculos. São as Índias. De tal forma que quando as Índias forem finalmente alcançadas, depois daquela missão impossível que era cruzar o Pacífico, todo aquele território vai se chamar Índias Ocidentais. Fernão de Magalhães chega às Filipinas em 1521 e lá morre. Juan Sebastián Elcano continua e realiza a primeira circunavegação do mundo. E embora tenha sido uma aventura dolorosa devido às perdas humanas, é economicamente bem-sucedida porque o que eles trocaram com o cravo foi capaz de pagar toda a expedição e muito mais. Mais tarde, outras expedições partirão para esses territórios da Espanha e também do México, após a conquista de Hernán Cortés (1485-1547, conquistador espanhol). Porque as viagens da Espanha, por este difícil estreito que será chamado de Magalhães, eram inviáveis. As únicas viagens viáveis eram as que partiam do México. BBC News Mundo - Quando falamos de Ásia e Europa, geralmente pensamos na Rota da Seda, mas não era isso que a Espanha procurava na Ásia. Morales - A principal razão para os europeus irem para a Ásia são as especiarias, não as sedas da China. O que acontece é que a relação da Europa com a Ásia está, digamos, norteada pelas "maravilhas" do Oriente descritas por Marco Polo em seu livro; são exageros e fantasias. Mas há algo mais prático no final do século 15, que são as especiarias. Cravo e noz-moscada das Molucas, pimenta da Índia e canela do Ceilão (hoje Sri Lanka). Especiarias são aqueles produtos que possuem um valor internacional que justifique o investimento nesses embarques. Mas apenas cruzar o Pacífico em uma direção era uma tarefa árdua. Estamos falando de velejar em barcos de madeira que dependem de correntes e ventos, além de tripulações que foram dizimadas por doenças, escorbuto, desnutrição, tempestades. Um dos sobreviventes dessas expedições foi Andrés de Urdaneta (1508-1568, explorador espanhol), que foi feito prisioneiro pelos portugueses e transferido para a península Ibérica. Acabaria como frade agostiniano no seminário da Cidade do México. Lá, o rei Felipe 2º escreveu-lhe em 1560 para pedir a este navegador e cosmógrafo, com mais de 60 anos, para participar da expedição de 1564 de Miguel López de Legazpi, com destino às Filipinas, mas com a missão de descobrir uma rota de regresso ao México. E Urdaneta descobriu essa rota indo para o paralelo 40, perto do Japão, e depois de pegar correntes favoráveis chegaria finalmente a Acapulco. Acho que, na história da navegação, na história dos descobrimentos, falamos de Colombo, falamos de Magalhães, e o grande esquecido é Urdaneta. Porque parece que as descobertas envolvem ir a algum lugar, mas não voltar. E sua descoberta foi saber voltar. Trata-se da viagem de regresso ou torna-viagem. É a Urdaneta que devemos estar conectados em um mundo globalizado, pois foi ele quem fechou o elo perdido para unir dois continentes tão importantes quanto a América e a Ásia. E não só ele descobriu a rota, mas ele e sua equipe vão traçá-la tão bem que esta rota será usada — tanto de e para o México e as Filipinas — por 250 anos, até 1815, com a Guerra da Independência Mexicana (1810-1921). Um navio por ano de Acapulco a Manila, que pode levar cerca de 45 dias, e um navio por ano de Manila a Acapulco, que pode levar até seis meses. E que recebeu o nome de Galeão de Manila ou Nau da China. BBC News Mundo: Se a seda chinesa não era o principal objetivo dessas expedições, como o gigante asiático acabou se envolvendo nessa rota? Morales: São os chineses que, vendo a chegada de outras pessoas, começam a navegar a partir do sul da China para estimular o comércio com os espanhóis. E os espanhóis são os primeiros a se surpreender ao perceber que essa gente tem tudo: sedas a bom preço, móveis preciosos e coisas que não se via na Europa, como porcelanas (no Velho Continente e no mundo islâmico, o que tínhamos era terracota coberta com um esmalte metálico, mas porosa). Em outras palavras, o encontro com esse conhecimento chinês é acidental, não foi o objetivo inicial. Claro, ter se estabelecido nas Filipinas para os espanhóis é um pouco como estabelecer um escritório de representação, promoção e inteligência. E aí os chineses também se instalam e estão em número infinitamente maior do que os espanhóis, o que gera o deslocamento da população local e um ressentimento que só foi resolvido com a miscigenação ao longo dos anos. E há também um intercâmbio comercial, mas a China era o país mais rico da Terra, o mais populoso, o mais urbanizado, onde o comércio sempre teve grande preponderância. Por exemplo, vamos ver o que aconteceu com a seda. No nosso livro citamos fontes originais dos séculos 16 e 17 nas quais as autoridades espanholas do Novo Mundo dizem que "aqui só querem usar roupa chinesa", porque são de muito boa qualidade e muito baratas. E isso arruína as alcaicerías, que é o nome dos lugares onde a seda é vendida na Espanha, especialmente na região da Andaluzia. Até Cortés havia estabelecido fábricas de seda no México. Mas nem os espanhóis, nem os mexicanos podem competir com a seda que vem da China — tanta crua quanto bordada — por mais protestos que haja, porque são efeitos do comércio. BBC News Mundo: Mas os espanhóis têm algo a oferecer àquela China do século 16. E comparado à "Rota da Seda", o sr. fala em seu livro da "Rota da Prata". Morales: Esta é uma das grandes surpresas ou coincidências da história. A China transformou gradualmente sua economia, movendo-a para o padrão prata. Antes da prata existir como moeda, o que existia era o escambo, mas isso não é mais possível com uma economia cada vez mais sofisticada, com uma população cada vez maior e uma sociedade urbanizada. Os chineses também inventaram o papel-moeda, mas isso criou inflação e uma distância entre a economia real e o que estava no papel, razão pela qual fracassou na dinastia Son e na era mongol; o que é a nossa Idade Média. Mas na dinastia Ming, entre o século 14 e o século 17, a economia é paulatinamente baseada na prata. A China tinha reservas limitadas. Havia reservas de prata no Japão, mas a China e o Japão nunca se deram muito bem. Assim, os portugueses, de Macau, foram introduzidos como intermediários para esse comércio, já em 1550, 1560. E em 1565 os espanhóis aparecem com uma quantidade de prata para inundar o mundo. Potosí, que hoje pertence à Bolívia, mas na época fazia parte do Vice-Reino do Peru, era uma montanha com uma quantidade impressionante de prata. E também havia Zacatecas e outros lugares do Vice-Reino da Nova Espanha, atual México. Mas não é só a quantidade de dinheiro. Os espanhóis também inventam um método de extração de mercúrio, e aqui está outra coincidência. Depois de descobrir Potosí, eles descobrem Huancavelica no Peru com os maiores depósitos de mercúrio. De tal forma que conseguiram o dinheiro de forma rápida, econômica e eficiente, e infelizmente com uma exploração muito triste do ser humano. BBC News Mundo - E o que acontece com o México nessa troca de produtos e culturas? Morales: Dizemos que a Cidade do México é a primeira cidade global. Os galeões com mercadorias chegam a Acapulco, mas Acapulco não era uma cidade estável, era apenas um porto provisório que foi montado quando as embarcações chegavam. Quando o galeão é visto na Califórnia, um sistema de alarme é acionado, calcula-se quando chegará a Acapulco, prepara-se um mercado provisório que em poucos dias comprará e distribuirá as mercadorias. As mercadorias vão de Acapulco à Cidade do México e lá são vendidas no El Zócalo, no chamado 'El Parián'. El Parián é a primeira Chinatown da América e também é o nome de Chinatown em Manila. Há pinturas da Plaza del Zócalo — por exemplo, uma de Cristóbal de Villalpando (1649-1714), um dos grandes pintores mexicanos — na qual você pode ver alguns mercados com telhados vermelhos, que é o mercado chinês, o mercado asiático. Há uma pequena parte que vai de Acapulco a Veracruz, por um caminho difícil, e em Veracruz é carregada para os navios que vão para Havana e de lá a Frota das Índias a leva primeiro para Sevilha e, quando o Guadalquivir (rio Guadalquivir) já não admitia navios de grande calado, para Cádiz. Mas é o México que recebe a primeira influência e do México irradia para o restante da América, para o Peru, para Cuzco, para Potosí, para a Colômbia. Então são os mexicanos que têm, digamos, esse grande poder de transação, são os verdadeiros catalisadores, são eles que recebem essa influência e essa influência se manifesta não só no comércio. O México vai se tornar o centro intelectual de informações sobre a China. A cidade já tinha uma tipografia, uma universidade, uma catedral, seminários e um grande comércio livreiro. E é no México que se consolidam as informações do primeiro livro sobre a China que finalmente superará Marco Polo. É "História das coisas mais notáveis, ritos e costumes do grande reino da China", escrita no México por Juan González de Mendoza (1545-1618, bispo, explorador, escritor e sinologista espanhol), que obtém todas as informações de quem esteve nas Filipinas e na China. Foi publicado em 1585 em Roma, traduzido para todas as línguas europeias e teve mais de 40 edições. Foi o mais vendido da época. Será também um centro diplomático. A primeira embaixada japonesa na Europa passa pelo México até a Espanha para ver o rei Filipe 2º e depois o papa. E os japoneses voltam pelo México. BBC News Mundo: E como isso mudará a sociedade hispano-americana? Morales: Alexander von Humboldt (geógrafo, polímata, naturalista, explorador prussiano), em seu 'Ensaio Político sobre o Reino da Nova Espanha', escreveu que quando visitou Acapulco em 1803, "ainda era a feira comercial mais celebrada do mundo". A chegada ao porto de Acapulco de um enorme galeão todos os anos por quase 250 anos evidencia um fluxo de mercadorias asiáticas de tal magnitude devido à sua qualidade, quantidade e variedade que necessariamente influenciaria a cultura material da América hispânica, não apenas do México. Sempre foi evidente, simplesmente esquecemos sua origem. Só agora vem à tona timidamente, por exemplo, a influência asiática na culinária americana. Para mim, a manifestação mais extraordinária dessa influência asiática e amostra de sofisticação do mundo hispânico ocorre nas artes, dando origem a uma arte híbrida ou mestiça, principalmente nas chamadas artes decorativas, criadas na América hispânica, mas com extraordinária Marca asiática, além das habituais influências espanholas e flamengas. São inúmeros os exemplos: a pintura sobre biombo, tela de origem chinesa, mas cujo uso foi mais importante no Japão, e que inspirou artistas americanos, tornando-se o meio natural e mais difundido da pintura na Nova Espanha. Influências que chegaram até o uso generoso da folha de ouro na imitação das telas do período Momoyama no Japão. Móveis de inspiração asiática, especialmente móveis lacados com uma resina americana semelhante à laca chinesa ou japonesa chamada "pasto", e com designs e estilos claramente inspirados em produtos asiáticos. Esses móveis produzidos na Colômbia são bem conhecidos. O uso generoso da madrepérola em obras pictóricas conhecidas como "concheado". Tapeçarias ou têxteis em geral com motivos chineses, como a fénix, o jilin (animal mítico chinês misturado com um cão e um leão), produzidos no Vice-Reino do Peru, entre outros locais. Ou a famosa cerâmica produzida em Puebla de Los Angeles conhecida como Talavera poblana, cuja primeira inspiração é a cerâmica hispano-mourisca de Talavera em Toledo, mas no México adotará motivos orientalizantes: branco e azul, desenhos orientais — paisagens, crianças chinesas com guarda-sóis — e as formas essencialmente chinesas como cabaças duplas e potes de ombros largos. BBC News Mundo: Quantas pessoas da Ásia acabaram morando no território do atual México e o que fizeram? Morales: Avaliar com exatidão a população de origem asiática que se instalou na Nova Espanha durante o período dos galeões não é fácil, entre outras razões, porque essa população tendia a se fundir com a população local, tendência induzida pela terminologia complexa que foi cunhada nos primeiros séculos do vice-reino. Eles foram chamados de "chineses" para todos os da Ásia, sem distinção, e "indiano-chineses" para os das Filipinas. Como em geral os "chineses" chegaram como escravos, principalmente das colônias portuguesas de Macau e Goa, embora tenham sido logo alforriados, a intenção de todos eles era libertar-se do estigma ou suspeita e passar despercebidos como "índios", isto é, vassalos da coroa que pagam impostos. Sobre suas ocupações, as fontes estão dispersas. Os mais conhecidos são os autos da Audiência de México que aludem às ações dos barbeiros espanhóis contra a concorrência dos barbeiros "chineses" exigindo que seu número seja limitado e que sejam excluídos de certos bairros da cidade, uma ação que ocorre nos anos de 1635 e 1667 e que alude a um número considerável de barbeiros "chineses". Embora alguns estudiosos suponham que sejam chineses da China, é mais provável que sejam asiáticos de outras origens. O frade dominicano inglês Thomas Gage fala de ourives chineses quando esteve na Nova Espanha entre os anos de 1625-1637. Do contexto de seus testemunhos, aqui parece que eles eram chineses da China, embora, é claro, tivessem vindo das Filipinas. Quanto aos filipinos, sabemos que eles compunham principalmente as tripulações dos galeões e que muitos preferiram ficar no México após o desembarque em Acapulco. Em geral, os ofícios exercidos pelos emigrantes asiáticos na América espanhola eram os de artesão, pequeno comerciante e agricultor. Na América, eles não se envolveram no comércio relacionado ao galeão de alta qualidade e maior valor, concorrência exclusiva dos mercadores mexicanos. A representante mais famosa dessa população no século 17 foi Catarina de San Juan, conhecida como China Poblana, uma mulher elogiada por sua piedade e virtudes que não era chinesa, mas originária da Índia portuguesa e que veio como escrava. A lenda dizia que seu suposto vestido com as cores vermelha, verde e branca da bandeira mexicana se tornasse o traje tradicional e fosse chamada assim, china poblana. Há poucos dias, o jornal espanhol El País noticiou um estudo recente da Universidade de Stanford (Estados Unidos) que confirma a pegada genética asiática na população mexicana e principalmente "que os habitantes de Acapulco são os que têm maior presença de ancestrais asiáticos e transpacíficos em seu DNA", algo que, considerando o que falei, não deve nos surpreender. BBC News Mundo: Hoje, essa história que o Sr. conta em seu livro não é tão conhecida fora dos círculos acadêmicos. Por que não sabemos mais sobre outros processos de globalização? Morales: O inglês Adam Smith, o autor de "A Riqueza das Nações", escreveu que "a prata do novo continente parece ser uma das principais mercadorias que permite o comércio entre os dois extremos do antigo (Ásia e Europa) e faz muito para que essas regiões distantes do mundo querem estar conectadas umas às outras". Ele não disse a palavra globalização, que é uma invenção moderna, mas a expressou brilhantemente porque foi assim. São os espanhóis, ao chegar à Ásia, que descobrem que o que Marco Polo havia dito estava errado, ou que a distinção entre Catai e China estava errada. É Martín de Herrada (1533-1578, missionário cristão espanhol enviado às Filipinas) em 1575 quem diz "mas hey, Catay e China são a mesma coisa". Ele faz essa distinção, que depois é citada no livro de Juan González de Mendoza, mas isso é esquecido. Por que isso foi esquecido? Primeiro por causa dos povos espanhóis, mas também pelo sucesso da maneira britânica de fazê-lo. Acredito que o sucesso do Império Britânico tenha sido estabelecer uma narrativa que seus próprios colonizados ou conquistados compraram, como se diria em termos ingleses, sem dúvida.
2022-07-07
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62030931
america_latina
Menine, meninx ou menin@: os países onde linguagem neutra enfrenta resistência
Nem chiques, chicx ou chic@s. Essas expressões que poderiam caracterizar gênero neutro para chico ou chica (garoto ou garota, em espanhol) foram proibidas nas escolas de Buenos Aires, capital da Argentina. Os professores não poderão mais usar essas formas, cada vez mais populares, para se comunicar com os alunos. Nos últimos anos, esse tema tem sido debatido em diversos países. O espanhol não é o único idioma que diferencia claramente masculino e feminino e que viu o surgimento de novas (e controversas) expressões neutras que buscam torná-lo mais inclusivo. O uso dessa linguagem também é alvo de muitas polêmicas no português. No Brasil, há diversas tentativas de coibir o uso dessas expressões, e o assunto foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF). Outro país que também enfrenta debates sobre o tema é a França. A capital argentina está atualmente em evidência sobre essa discussão porque o governo local emitiu, em junho, uma norma para impedir o uso da chamada "linguagem inclusiva" ou "neutra" na educação inicial, primária e secundária. Essa decisão em Buenos Aires proíbe o uso das terminações de gênero neutro, como "e", "x" ou "@", nas comunicações institucionais e veta que elas sejam ensinadas como parte do currículo escolar. Fim do Matérias recomendadas E também exige que todo o aprendizado ocorra "de acordo com as regras da língua espanhola". Ao justificar a decisão, as autoridades de Buenos Aires argumentaram que os alunos obtiveram baixos resultados nas últimas avaliações de leitura e escrita. "A deformação do uso da linguagem tem um impacto negativo na aprendizagem, especialmente considerando as consequências da pandemia", argumentou o Ministério da Educação de Buenos Aires. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "É muito importante esclarecer bem e simplificar o aprendizado", acrescentou o prefeito de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta, após uma onda de críticas à medida. A resolução em Buenos Aires se "aplica unicamente aos conteúdos ditos pelos docentes nas salas de aula, ao material entregue aos estudantes e aos documentos oficiais das escolas" e ressalta que os alunos podem seguir utilizando a linguagem neutra entre eles. A medida até reconhece ser importante "romper com as noções sexistas que permitem o uso genérico do masculino (para falar da população em geral) e incorporar uma linguagem mais inclusiva". Mas assegura que o espanhol "oferece muitas opções para ser inclusiva sem precisar distorcer a língua ou adicionar complexidade à compreensão e fluência da leitura". Para frisar que há outras opções e que não é necessário converter palavras para o "gênero neutro", o governo local divulgou um "guia prático de recomendações para uma comunicação inclusiva". A norma adotada em Buenos Aires recebeu críticas de educadores, linguistas e até do ministro nacional da Educação na Argentina, que apoia o uso da linguagem neutra e cujo governo faz parte da oposição ao de Buenos Aires. Vários destacaram que não há evidências de que o uso de linguagem neutra tenha qualquer relação com os baixos resultados nas avaliações de ensino. O que mais incomodou muitos docentes foi o anúncio de que quem não cumprisse a norma enfrentaria um "processo administrativo disciplinar". "Não se pode obrigar, muito menos proibir o uso e os costumes na linguagem", afirmou a deputada Alejandrina Barry, de Buenos Aires, que apresentou um projeto legislativo para revogar a regra. A capital argentina não é a única que se manifestou contra o uso da linguagem neutra. Como é mencionado nos fundamentos da norma publicada em Buenos Aires, uma das primeiras instituições a rechaçar o uso desses termos foi aquela que é considerada a maior referência neste idioma: a Real Academia Espanhola (RAE). Em 2020, a RAE publicou um relatório de 156 páginas explicando sua rejeição à linguagem neutra. "O uso de '@' ou de letras como 'e' ou 'x' como supostas marcas de gênero inclusivo é estranho à morfologia do espanhol", disse categoricamente. Além disso, a entidade se declarou contra a proposta de substituir o uso genérico do masculino gramatical - que os mais críticos consideram como o "tijolo simbólico do patriarcado" - por formas mais inclusivas. "É desnecessário, porque o masculino genérico não esconde a presença da mulher, mas sim a inclui com o mesmo direito que o homem", argumentou. A capital argentina não foi a primeira da região a buscar limitar o ensino da linguagem neutra. Em janeiro, o Uruguai tomou medida semelhante quando publicou uma circular afirmando que, no campo da educação pública, o uso da linguagem "deve obedecer às regras da língua espanhola". Assim como a resolução de Buenos Aires, a do Uruguai esclarece que suas instruções são dirigidas a funcionários e professores, não às formas de expressão dos alunos. Esse regulamento foi uma atualização de outra resolução semelhante, que já havia sido publicada pelo governo em 2019. Além das autoridades da área da Educação, houve outras tentativas de impedir o avanço da linguagem neutra nas escolas e em outros ambientes no país. Em abril, deputados de um partido de direita apresentaram um projeto de lei para proibir "alterações gramaticais e fonéticas" na administração pública e em centros educacionais públicos e privados. "O objetivo é que as palavras não sejam modificadas para que se tornem 'inclusivas' com E, X ou @. Vamos falar corretamente o nosso idioma", escreveu no Twitter a deputada uruguaia Inés Monzillo sobre o projeto, que gerou preocupação por parte da associação que representa os professores no país. Em outros países da região, como o Chile, também houve propostas legislativas para impedir o avanço da linguagem neutra. O Brasil está entre os países nos quais há tentativas para frear o uso de novas expressões consideradas neutras. No país, o uso desse tipo de linguagem se torna cada vez mais comum. "Menine", "amigue", "elu", "delu", entre outras expressões têm sido usadas rotineiramente por determinados grupos. Mas enquanto uns defendem que a adoção dessa linguagem é uma forma de inclusão para as pessoas não binárias (que não se identificam unicamente como homem ou mulher), outros dizem que é uma variação inconcebível na língua portuguesa. No Brasil, não há qualquer medida que proíba o uso dessas linguagens de forma nacional. Mas há diversas ações locais contra essas expressões. Em dezembro passado, um levantamento da Agência Diadorim apontou que havia 34 projetos tramitando em Assembleias Legislativas para impedir a variação da linguagem em 19 Estados e no Distrito Federal. O primeiro a tomar medidas foi Rondônia. Em outubro, o governo estadual sancionou uma lei que proibia o uso da linguagem neutra nas escolas, sob o risco de os professores sofrerem sanções. O governo argumentou, na época, que a medida foi tomada para estabelecer "medidas protetivas ao direito dos estudantes ao aprendizado da língua portuguesa de acordo com a norma culta". No entanto, a lei foi suspensa em novembro por meio de uma decisão liminar do ministro Edson Fachin, do STF, em uma ação que questiona a constitucionalidade da medida. Na decisão, Fachin mencionou que a lei é uma forma de censura e que possui "graves vícios" que poderiam causar o "silenciamento" dos professores e dos alunos das instituições de ensino. Desde então, a lei segue suspensa. O debate sobre o tema permanece em todo o país e vez ou outra volta a ter repercussão, principalmente quando há algum novo projeto contra essa linguagem. A discussão sobre a linguagem neutra também se tornou recorrente na França. Aliás, este foi o país que tomou a decisão mais abrangente e dura sobre o tema. Isso porque o ministro da Educação,Jean-Michel Blanquer, assinou uma circular, em maio de 2021, que proíbe o uso dessas escritas inclusivas nas salas de aula. Ao contrário do que acontece em espanhol e no português com terminações como "e", "x", ou "@", em francês a forma mais utilizada na escrita para conferir neutralidade é um ponto médio (•). Isso é usado para dar a uma palavra terminações masculinas e femininas, simultaneamente. Tomemos como exemplo a palavra amis (amigos, em português). A forma neutra seria: ami•e•s, que combina a versão masculina em francês (ami) com a feminina (amies). Em português seria algo parecido com "amigos/as". Blanquer proibiu o uso do ponto médio nas escolas argumentando que "a impossibilidade de transcrever oralmente textos com esse tipo de grafia dificulta tanto a leitura em voz alta quanto a pronúncia e, consequentemente, o aprendizado, principalmente dos pequenos". Além disso, o ministro salientou que "constitui um obstáculo ao acesso à língua das crianças que enfrentam determinadas deficiências ou transtornos de aprendizagem". É um argumento semelhante ao usado por alguns críticos na língua espanhola ou portuguesa, que afirmam que esse tipo de linguagem, com terminações em x ou @, pode dificultar a leitura para pessoas com dislexia ou cegos e, portanto, em vez de incluir acaba causando exclusão. Assim como a medida adotada em Buenos Aires, a proibição francesa não rejeita toda a linguagem inclusiva, mas busca outras formas de promover inclusão, recomendando, entre outras coisas, "o uso de termos femininos para ofícios e funções". No entanto, as autoridades francesas deixaram claro a oposição ao uso das palavras de gênero neutro quando, no fim de 2021, o renomado dicionário Le Petit Robert incluiu o pronome "iel", que combina "ele" e "ela" e que é amplamente utilizado por pessoas não binárias. Apesar da resistência, são muitos os que asseguram que as limitações e proibições não poderão impedir a imposição de uma linguagem inclusiva. Os próprios editores do dicionário francês explicaram, diante da polêmica, que estavam simplesmente refletindo um fenômeno que já existe. "A missão do Le Robert é observar e relatar a evolução de uma língua francesa diversificada e comovente", explicaram em um comunicado. A própria RAE reconheceu que, em última instância, a linguagem que se impõe é a que se fala no cotidiano e não a que ditam. "É oportuno lembrar que as mudanças gramaticais ou lexicais que triunfaram na história da nossa língua não foram definidas por instâncias superiores, mas surgiram espontaneamente entre os falantes", destacou a RAE. "São estes que promovem e adotam inovações linguísticas que só algumas vezes alcançam sucesso e são difundidas." Durante recente visita ao Chile, o diretor da RAE, Santiago Muñoz Machado, reforçou essa ideia afirmando que "são os cidadãos, usando o idioma, que estabelecem as regras". Em entrevista ao jornal chileno El Tiempo, Machado também admitiu que "a RAE sempre está um pouco atrás dos cidadãos". A renomada escritora argentina Claudia Piñeiro, que, em 2019, foi uma das primeiras personalidades literárias a defender o uso da linguagem neutra durante um discurso que proferiu no Congresso Internacional da Língua Espanhola, considerou que tentar regulamentá-la é inútil. "Querer proibir uma linguagem é como tentar pegar água com um coador", disse ela após o anúncio do governo de Buenos Aires. Piñeiro reconheceu em seu discurso que só "no futuro" saberemos se a linguagem neutra acabará sendo "adotada pela língua espanhola". Ela disse também que as proibições certamente terão o efeito contrário ao desejado e acabarão fazendo com que mais jovens queiram usá-la. *Com informações da BBC Mundo, serviço em espanhol da BBC.
2022-07-06
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62025281
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Povos indígenas reconhecidos e fim do Senado: as mudanças propostas por nova Constituição do Chile
Serão três votações no total: em 2020, a população aprovou a possibilidade de mudar a carta magna chilena. No ano seguinte, foram eleitos os membros da convenção encarregados do novo texto. Agora, o país decidirá finalmente se aprova ou rejeita a proposta. A convenção iniciou seus trabalhos em 4 de julho do ano passado, ainda sob o governo de Sebastián Piñera (2018-2022). Foi presidida por Elisa Loncón, acadêmica mapuche (a maior etnia indígena do país). A última sessão aconteceu exatamente um ano depois, nesta segunda-feira (4/7), presidida por María Elisa Quinteros, epidemiologista. No mesmo dia, o presidente chileno, Gabriel Boric, recebeu uma cópia do texto, com 178 páginas, 388 artigos e 54 regulamentos provisórios. "Há algo sobre o qual devemos todos estar orgulhosos: que no momento da crise política, institucional e social mais profunda da nossa pátria em décadas, os chilenos e chilenas optamos por mais democracia e não por menos", disse Boric durante a cerimônia desta segunda-feira. Fim do Matérias recomendadas "Hoje é um dia que ficará na história do país. Hoje, iniciamos uma nova etapa: trata-se de ler, estudar e debater a proposta constitucional", disse o presidente, que assinou o decreto que convoca oficialmente o plebiscito em 4 de setembro para ratificar ou rejeitar o texto. Caso seja aprovada no voto popular, a Constituição entra em vigor imediatamente e serão criados os novos órgãos previstos pelo texto, como a Agência Nacional de Águas ou a Câmara das Regiões, que substituirá o Senado. Caso contrário, a Constituição de 1980 permanecerá em vigor, em contraste com a esmagadora maioria (cerca de 80%) que votou pela sua substituição. A BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, mostra o que muda caso a proposta seja ratificada. É a primeira vez no Chile e no mundo que um grupo com mesmo número de homens e mulheres escreve uma Constituição. Este princípio está refletido na nova Constituição proposta, que define o Chile como uma "democracia paritária": propõe que as mulheres ocupem pelo menos 50% de todos os órgãos do Estado e ordena medidas para "alcançar a igualdade e a paridade substantivas". "O fato de esta Constituição ter sido redigida com base na paridade [de gênero] se reflete tanto nos direitos que foram considerados como na forma como o Estado está organizado. A democracia paritária é um princípio que permeia toda a Constituição. Essa é uma diferença radical", afirma Lita Vivaldi, doutora em sociologia pela Universidade de Londres e integrante da Associação de Advogadas Feministas. A atual Constituição afirma apenas que "homens e mulheres são iguais perante a lei" e que o Estado deve "garantir o direito das pessoas de participar com igualdade de oportunidades na vida nacional". "Não inclui nada relacionado a uma abordagem de gênero e paridade. O mais próximo foi a reforma constitucional em que se estabeleceu que as pessoas nascem livres e iguais em direitos. Antes, só dizia 'homens'", lembra Javier Couso, constitucionalista e acadêmico da Universidade de Utrecht, na Holanda. A atual Constituição não menciona povos nativos ou indígenas. Em uma grande mudança, o novo projeto define o Chile como um "Estado plurinacional e intercultural", reconhecendo 11 povos e nações (Mapuche, Aymara, Rapa Nui, Lickanantay, Quéchua, Colla, Diaguita, Chango, Kawashkar, Yaghan, Selk'nam "e outros que possam ser reconhecidos na forma estabelecida da lei", diz o texto). Também ordena o estabelecimento de Autonomias Regionais Indígenas com autonomia política, especificando que sua atuação não permite a separação do Estado do Chile, nem atentar contra seu caráter "único e indivisível", e que seus poderes serão estabelecidos por lei. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A nova Carta Magna preconiza que, dentro das entidades territoriais que compõem o Estado chileno, os povos e nações indígenas devem ser consultados e consentir em aspectos que afetem seus direitos. Da mesma forma, a proposta reconhece os sistemas jurídicos dos povos indígenas, especificando que eles devem respeitar a Constituição e os tratados internacionais, e que qualquer impugnação às suas decisões será resolvida pela Suprema Corte chilena. Para o ex-membro do Tribunal Constitucional chileno Jorge Correa Sutil, o texto em geral não define claramente o exercício da autonomia política e da justiça indígena. "Em uma questão tão importante quanto à igualdade perante à lei, não custaria nada estabelecer alguns limites." "Entendo que o reconhecimento da autonomia política implica poder repudiar uma lei do país. Caso contrário, não sei o que isso poderia significar... A possibilidade de uma justiça própria para as autoridades indígenas também está estabelecida. Não está definida quais autoridades, em quais assuntos, em quais territórios ou com respeito a quais pessoas... Isso vai exigir uma legislação, que pode ser muito razoável, mas que não tem limites constitucionais", diz. "O conceito de autonomia não pode ser lido sem observar que é sempre 'de acordo com a lei e a Constituição'", responde o constitucionalista Patricio Zapata. "E quanto ao pluralismo jurídico, não só no Equador ou na Bolívia, o Estado nacional, ao constatar que dentro dele existem comunidades que têm direito próprio, admite que certos conflitos sejam resolvidos de acordo com ele. O Canadá o faz com os francófonos de Quebec, os Estados Unidos com suas primeiras nações, Nova Zelândia, Austrália. Não há nada de estranho nisso. E o encerramento de qualquer julgamento será feito pela Suprema Corte." Zapata aprofunda a importância da plurinacionalidade: "É uma das mudanças mais profundas. Significa mudar a forma como a república chilena se relaciona com os povos indígenas, mas também a forma como ela se vê". "Muda a ideia de que, da mistura espanhola e indígena, teria surgido uma 'raça chilena' mestiça, vitoriosa sobre nossos vizinhos... e ignora o fato da pluralidade, da diferença. Este é um ponto de virada". A atual Constituição protege explicitamente "a vida do nascituro", mas não impediu em 2017 a descriminalização do aborto em três situações, pois o Tribunal Constitucional afirmou que a criminalização não era "um mecanismo ideal para proteger o nascituro" e que a sanção penal absoluta colide com os direitos das mulheres. A proposta de lei fundamental reconhece o exercício livre, autônomo e não discriminatório dos direitos sexuais e reprodutivos e estabelece que o Estado deve garantir as condições para a gravidez, parto e maternidade voluntárias e protegidas e para a interrupção voluntária da gravidez. "Esse direito não implica interromper a gravidez em qualquer momento. Será um direito que será regulamentado e regulamentado pelo legislador, quem dirá quais são os prazos e como fazê-lo", explica Vivaldi à BBC News Mundo. A demanda geral das convulsões sociais de outubro de 2019, que abriram caminho para o processo constitucional no Chile, foi recuperar um senso de dignidade prejudicado pelas deficiências do modelo político e econômico endossado na Constituição de 1980, que favorece as ações de instituições privadas sobre o Estado na provisão de bens sociais como educação, saúde e previdência (neste último caso, com exceção das Forças Armadas). O novo documento constitucional descreve o Chile como um "estado social e democrático de direito" que deve fornecer bens e serviços para garantir os direitos do povo. A Constituição vigente, por outro lado, estabelece que o Estado deve "contribuir para a criação das condições sociais" para a realização das pessoas, mas impede a participação estatal em atividades empresariais a não ser em casos autorizados pela lei. "A Constituição de 1980 afirma que se prescinde do Estado sempre que o setor privado possa [exercer uma atividade]. Agora se afirma com força que é dever do Estado se preocupar com educação, moradia, saúde, previdência, trabalho. Essa é uma mudança de paradigma no modelo político chileno, que atende as demandas dos protestos", diz Claudia Heiss, chefe do Departamento de Ciência Política da Universidade do Chile. No caso das aposentadorias, ambas as constituições consagram o direito à segurança social. A atual indica que o Estado deve garantir benefícios básicos uniformes concedidos por instituições públicas ou privadas. A proposta recentemente elaborada propõe um Sistema de Segurança Social público, financiado com rendimentos nacionais e contribuições obrigatórias. Não menciona fornecedores privados. Em relação aos serviços de saúde, tanto a nova redação da Constituição quanto a vigente incluem prestadores públicos e privados. Mas a lei atual permite que as pessoas destinem 100% dos seus recursos a operadoras privadas, enquanto a nova proposta prevê a criação de um Sistema Nacional de Saúde, que receberá todas as contribuições obrigatórias de saúde, deixando em aberto a opção de contratar um seguro privado extra. "A segregação na saúde no Chile está acabando", diz Couso. "O sistema público de saúde é mais fraco quando as elites não estão incluídas. Nesta Constituição, a contribuição da saúde irá para um fundo comum de saúde, como na Inglaterra. E embora haja provedores privados, eles estarão sob o regime público." O caráter social do Estado também se expressa em outras regulamentações, como o direito à cidade, à moradia digna, o reconhecimento do trabalho doméstico e a criação de um Sistema de Atenção Integral, um sistema de proteção social, universal e solidário. "O direito ao cuidado surgiu de uma iniciativa popular e reconhece as três dimensões: o direito ao cuidado, a ser cuidado e ao autocuidado. Este é um direito fundamental que, juntamente com outros direitos econômicos e culturais, faz uma diferença substancial em obter uma vida mais digna, que foi o que motivou o surto de 2019", destaca Vivaldi. A Constituição vigente tem uma breve menção à água no Chile. Afirma que "os direitos privados sobre as águas, reconhecidos ou constituídos de acordo com a lei, conferirão aos titulares sua propriedade". A proposta redigida recentemente estabelece a água como um bem "que não pode ser apropriado". Também estabelece um "direito humano à água", prioritário em relação a outros usos, e cria uma Agência Nacional de Águas para seu uso sustentável. Esta é uma questão de especial importância no Chile, onde, em meio a uma grande seca, diversas comunidades vivem em situação de emergência hídrica, setores no campo que dependem da água distribuída por caminhões-pipa e até mesmo a possibilidade de racionamento na capital Santiago. O uso, o acesso e a preservação da água estão no centro do debate no Chile e fazem parte de um número crescente de conflitos ambientais e processos judiciais. "Se antes não havia nada sobre questões indígenas, agora há um capítulo completo. Vamos de uma constituição extremamente breve sobre questões ambientais para uma constituição que é atravessada por mudanças climáticas e preocupação ecológica. Reconhece até mesmo os direitos à natureza", enfatiza Couso. O texto declara que pessoas e povos "são interdependentes com a natureza e formam, com ela, um todo inseparável. A natureza tem direitos. O Estado e a sociedade têm o dever de protegê-los e respeitá-los". Em ambos os textos o governo e a administração do Estado correspondem à figura presidencial. No novo texto, a idade para se candidatar ao cargo cai de 35 para 30 anos. O período presidencial permanece em quatro anos, mas a reeleição consecutiva é autorizada uma vez. Quanto ao Legislativo, a Constituição de 1980 define um Congresso Nacional com "dois poderes: a Câmara dos Deputados e o Senado" e especifica que ambos atuam na formação de leis — o Senado pode "aperfeiçoar" o trabalho da Câmara. No novo texto, o Senado é eliminado e são criadas duas Câmaras de poder equivalente: um "Congresso de Deputados e Deputadas" para a formação de leis (com ao menos 155 membros) e uma Câmara das Regiões, dedicadas à legislação de interesses regionais. Para o advogado Correa Sutil, "a atual Constituição tinha um hiperpresidencialismo muito forte, em que o governo funcionava desde que se acertasse com o Congresso: quando o governo tinha minoria no Congresso, havia crise". "Funcionou muito bem nos primeiros anos da transição [para a democracia] devido a um acordo entre os partidos que tinha a ver fortemente com o medo dos setores de esquerda a um retorno ao autoritarismo." Com o novo texto, adverte, "vamos experimentar um sistema inédito no mundo, que é o presidencialismo com câmaras com poderes muito assimétricos, muito típico dos sistemas semipresidenciais ou semiparlamentares". "Vejo que há vários elementos que implicam riscos de deterioração da política no Chile, porque os partidos políticos não são regulamentados, não há sistema eleitoral na Constituição: isso será definido pelo próprio Congresso." O processo legislativo chileno, que exige um alto quórum para realizar reformas em áreas-chave, é um dos elementos que definem a Constituição de 1980. A nova proposta reduz o quórum e acrescenta elementos como iniciativas de lei popular. "A Constituição de 1980 é extremamente hostil à democracia participativa. Esta é uma Constituição que introduz elementos de democracia direta", descreve Couso. Em maio de 2022, Tom Ginsburg, professor de Direito Internacional da Universidade de Chicago, destacou como o processo chileno poderia mostrar ao mundo a possibilidade de canalizar uma série de energias políticas muito diversas em um projeto constitucional. "Temos que ver o que vai acontecer, mas até agora, o Chile tem chance de alcançar essa conquista", disse ele ao site da agência de notícias financeiras Bloomberg. "Quando se olha o processo como um todo, houve grupos que não quiseram seguir as regras, houve provocações, houve uma direita que sabotou o processo desde o primeiro dia. Gostaria de ter mais abertura de setores radicalizados e maximalistas. Mas prevaleceu o bom senso. Poderia ter sido melhor, poderia ter havido mais diálogo", acrescenta Couso. "Mas considerando como o país estava dividido e o início da pandemia, eu diria que se trata de um processo no nível da herança republicana chilena."
2022-07-05
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As diferenças entre avanço da esquerda na América Latina e 'onda rosa' de duas décadas
Um após o outro, diferentes países latino-americanos elegeram governos de esquerda e uma nova onda política parece estar ocorrendo na região. Desde 2018, líderes à esquerda do espectro político chegaram à presidência do México, Argentina, Bolívia, Peru, Honduras, Chile e Colômbia. O fenômeno pode se completar nas eleições de outubro no Brasil, na qual o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem ampla vantagem nas pesquisas de intenção de voto. Embora outros países da região tenham escolhido governos de diferentes correntes políticas nos últimos anos, uma vitória de Lula deixaria as sete nações mais populosas da América Latina e suas seis maiores economias nas mãos da esquerda. Para alguns, tudo isso evoca o que aconteceu no subcontinente durante a primeira década deste século, quando três em cada quatro sul-americanos passaram a ser governados por presidentes de esquerda. Fim do Matérias recomendadas Mas há enormes diferenças entre aquela "maré rosa" que cobriu a América Latina e a atual onda progressista, que, segundo especialistas, corre o risco de ser mais limitada. O termo "maré rosa" ou "onda rosa" (do inglês "pink tide") para descrever a guinada à esquerda na região durante o início dos anos 2000 foi usado por Larry Rohter, então correspondente do jornal americano New York Times, durante a eleição de Tabaré Vásquez no Uruguai. Segundo Rohter, a chegada do socialista ao poder fazia parte de "não tanto uma maré vermelha... e sim uma rosa", em alusão à substituição do vermelho, cor associada ao comunismo, por um tom suave de "rosa", para indicar a ascensão dos ideais social-democratas. Anteriormente, a expressão havia denominado uma fase nas políticas nacionais durante a qual eleições, em meados da década de 1990, foram vencidas por figuras como o primeiro-ministro francês Lionel Jospin (do Partido Socialista) e o primeiro-ministro britânico Tony Blair (do Partido Trabalhista). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em um contexto de fúria com os políticos, desigualdade e estagnação econômica, o voto dos latino-americanos nos últimos tempos tem sido pendular: da esquerda para a direita e agora novamente para a esquerda. A regra nas eleições democráticas na região é a vitória da oposição. "O importante é mudar de lado para ver se as coisas melhoram, porque o grau de descontentamento na América Latina nunca foi maior do que agora", diz Marta Lagos, diretora da pesquisa de opinião regional Latinobarômetro, à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC. "A cada dia, a ideologia está se tornando menos relevante nas eleições", acrescenta. "As pessoas estão se aglomerando no centro político para o lado que os eleitores do centro se inclinam. Eles dão a vitória aos governantes." Uma coisa que os candidatos de esquerda na região têm em comum — e parece ajudá-los a atrair esses votos centristas cruciais — é sua maior ênfase na ação do Estado para diminuir a desigualdade econômica. Antes, os presidentes de esquerda se distinguiam por serem mais radicais, como o venezuelano Hugo Chávez, ou moderados, como Lula ou a chilena Michelle Bachelet. Os governantes da nova onda são muito mais heterogêneos. Lagos os divide em quatro tipos diferentes de esquerda: nova (onde coloca os presidentes eleitos no Chile e na Colômbia), populista (México), tradicional (Argentina, Bolívia e Honduras) ou ditatorial (na opinião dele, Venezuela, Nicarágua e Cuba, onde estão no poder há anos). E hoje alguns líderes de esquerda parecem mais dispostos do que no passado a se distanciar de outros na região. Antes de ser eleito presidente do Chile, Gabriel Boric criticou a repressão aos dissidentes em Cuba e na Nicarágua e, após sua vitória eleitoral, disse à BBC News Mundo em janeiro que "a Venezuela é uma experiência que fracassou". O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, falou em fevereiro de "uma esquerda covarde", algo que muitos interpretaram como uma resposta a Boric. Enquanto isso, o presidente eleito da Colômbia, Gustavo Petro, chamou Maduro de "ditador", embora esteja se preparando para restabelecer as relações com o governo dele. Heinz Dieterich, sociólogo alemão que cunhou o conceito de "socialismo do século 21", ao qual Chávez se referiu posteriormente em 2005, descarta que essa expressão possa ser aplicada hoje ao que está acontecendo em países da região, como Chile, Argentina ou Bolívia. "Nenhum desses governos quer o socialismo do século 20, que é o socialismo de Cuba", diz Dieterich à BBC News Mundo. "Mas eles também não querem um socialismo do século 21 porque isso significa superar a economia de mercado e ter um Estado forte que possa controlar as corporações." Talvez a maior diferença entre a onda esquerdista do passado e a onda atual na América Latina seja o cenário em que elas surgem. Entre 2000 e 2014, o boom internacional das commodities (matérias-primas oriundas do setor primário e negociadas nas bolsas de valores) deu aos presidentes da região um cheque gordo para investir em programas sociais e projetos estatais de todos os tipos. Isso, por sua vez, consolidou um amplo apoio político-eleitoral com maiorias legislativas para os governos, que conseguiram reformas e reeleições em todos os lugares. Ex-presidentes como o equatoriano Rafael Correa, o boliviano Evo Morales e o próprio Chávez chegaram a modificar as constituições de seus países e exerceram diferentes mandatos consecutivos. Agora, com uma guerra na Europa, inflação crescendo e alta dos preços, tanto para crédito quanto para insumos, as economias da região estão encontrando mais dificuldades para tirar vantagem do aumento dos preços das commodities. E os governos podem gastar muito menos do que seus cidadãos desejam, em tempos de pandemia de covid-19 e instabilidade social. Isso contrasta com a agenda dos antigos líderes da "maré rosa", de Chávez a Lula, que priorizavam a exploração de petróleo. De fato, as diferenças persistem: Lula disse recentemente que a ideia de Petro, da Colômbia, criar um bloco anti-petróleo com líderes regionais progressistas "não é real" neste mundo. Outros presidentes de esquerda, como o mexicano Andrés Manuel López Obrador e o boliviano Luis Arce, também apostam nas indústrias extrativas. No entanto, talvez nisso a nova política que Boric e Petro estão propondo hoje esteja em melhor em sintonia com a sociedade do que a antiga política, assinala Lagos. "Existe uma consciência ambiental na América Latina", diz o diretor do Latinobarômetro. "Então qualquer política ambientalmente correta vai ter um grande apoio da população."
2022-07-04
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61989885
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Discurso eleitoral contra comunismo não está mais tendo efeito na América Latina, diz especialista
A direita latino-americana tem que parar de fazer política por nostalgia se quiser ganhar as eleições presidenciais novamente. É o que pensa Alberto Vergara, cientista político da Universidade do Pacífico em Lima, no Peru, ao avaliar o que muitos descrevem como uma "onda esquerdista", movimento que ele acredita estar invadindo a região porque as pessoas estão cansadas da "nova direita" que governou recentemente em alguns países. Com a vitória de Gustavo Petro na Colômbia em 19 de junho, foi confirmada uma tendência de candidatos de esquerda na América Latina, precedida pelos triunfos de Xiomara Castro em Honduras, Pedro Castillo no Peru e Gabriel Boric no Chile. A chamada onda esquerdista surge após vários partidos de direita governarem essas regiões. Houve algum desgaste na direita? As pessoas se cansaram? Ou seus programas são pouco atraentes? Fim do Matérias recomendadas Vergara, que é autor de vários livros e ensaios sobre política latino-americana, fala em entrevista à BBC Mundo (serviço em espanhol da BBC) sobre os motivos pelos quais a "nova direita latino-americana" não é mais atraente para muitos setores da região. Além disso, explica como e por que a esquerda recuperou espaços que havia perdido e o que se pode esperar dos novos governos de esquerda na região. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast BBC Mundo - O triunfo de Petro na Colômbia confirma que, pouco a pouco, a América Latina continua voltando à esquerda. A que se deve essa mudança? Alberto Vergara - Existem duas coisas diferentes. Uma é que na região existe e tem existido um clima anti-incumbência, uma rejeição dos que estão no poder. Isso mostra que as pessoas estão cansadas. Também mostra que as pessoas querem experimentar outras opções e querem uma mudança. Em Honduras, por exemplo, as pessoas ficaram fartas do governo de Juan Orlando Hernández e entrou Xiomara Castro, que encararam como a mudança. Ele ganhou porque estava na esquerda? Sim, mas as pessoas também estavam cansadas de Hernández e queriam algo alternativo e lá estava ela. Diante desse espírito contra o status quo, acredito que a direita se apoiou em um discurso basicamente dos tempos da Guerra Fria, anticomunista, como forma de fazer política. Diante disso, a esquerda interpretou melhor a necessidade de mudança e oferece um projeto com o qual você pode concordar ou não, mas que é um projeto do início ao fim, enquanto a direita parece ter ficado sem projeto. Então temos de um lado uma direita que tem dificuldade em oferecer algo novo e do outro uma esquerda que acaba oferecendo algo que ressoa mais com a mudança. BBC Mundo - Por que você acha que não consegue desenvolver um plano? O que está acontecendo com a direita latino-americana hoje? Vergara - Acredito que a direita se transformou e é diferente daquela direita após a queda do Muro de Berlim. Aquela era uma direita associada às reformas neoliberais, ao consenso de Washington e à vontade de liberalizar os mercados, internacionalizar a economia e administrar a macroeconomia da forma mais ortodoxa possível. Isso foi se esgotando como retórica e projeto. De fato, a onda de governos de esquerda no início dos anos 2000 veio para tentar encerrar essa era neoliberal. Mas nos últimos 10 anos tem surgido uma direita mais radical que a direita economicista do passado. A preocupação central dessa nova direita já não é tanto a economia, mas o que eles chamam de batalhas culturais. A direita atual considera que a do passado, mais neoliberal e centrada na economia, é uma "direita covarde" e que eles, representantes da direita mais radical, estão travando as batalhas ideológicas e culturais que são as questões que importam, segundo eles. BBC Mundo - Então você acredita que as pessoas estão cansadas dessa direita mais radical? Vergara - Essa nova direita que é mais cultural, muito ligada a redes e circuitos que compartilham teorias da conspiração, um pouco na órbita do trumpismo, teve seu momento. Principalmente com a eleição de Jair Bolsonaro. A eleição de Bolsonaro talvez tenha sido o momento de maior sucesso para essa direita mais conservadora e antiliberal. Isso deu a eles a sensação de que você pode ter sucesso com plataformas reacionárias. No entanto, não é que tenha deixado de ter importância. Eles simplesmente pararam de ter vitórias presidenciais equivalentes. A direita que apoiou fortemente a candidatura de Kast no Chile ou por trás de Fujimori no Peru acabou fracassando. Na verdade, na Colômbia falhou ainda mais. María Fernanda Cabal, a política de extrema-direita da Colômbia, nem sequer ganhou as primárias do Uribismo. A direita radical vem perdendo relevância. Ainda tem seguidores muito fiéis e ativos nas redes, mas acho difícil para eles atrair mais pessoas fora desses circuitos. Com essas últimas derrotas, o racional seria que a direita latino-americana entendesse que não tem conseguido êxito com esse rol conservador, autoritário e orgulhosamente antiprogressista. BBC Mundo - O discurso "não votem neles porque vão transformar o país em outra Venezuela" não é mais convincente? Vergara - A direita na América Latina tentou durante anos dissuadir as pessoas de votar na esquerda acusando-a de comunista, mas essa tática não funciona mais, pelo menos não para ganhar as eleições presidenciais. Eu diria que ainda funciona parcialmente, mas não como antes. Na Colômbia, Rodolfo Hernández obteve 47% dos votos: não é que tenha ficado completamente arrasado. Ainda há um importante grupo da população que está genuinamente assustado com a chegada de um governo que leve o país a algo semelhante ao que Chávez fez com a Venezuela. Mas, efetivamente, o discurso não obteve êxito recentemente em Honduras, no Chile e no Peru. As pessoas ainda temem essa opção, mas não votam apenas por medo, mas também por necessidade de mudança. Os eleitores sabem que há nuances e que as opções não são apenas o status quo ou a Venezuela. Eles sabem que qualquer tentativa alternativa não será necessariamente o desastre venezuelano. BBC Mundo - Falam de uma nova onda de esquerda que está "expandindo por toda a América Latina". Você acha que vai durar e continuar chegando a outros países da região? Vergara - Não acho que vai durar tanto. Na América Latina de vez em quando fala-se de uma onda da esquerda, depois vem a onda da direita, como quando Sebastián Piñera, Bolsonaro, Pedro Pablo Kuczynski e Guillermo Lasso venceram. E agora estaríamos virando à esquerda novamente. O mais provável é que teremos que nos acostumar com essa saudável alternância democrática entre direita e esquerda, em vez de ter ondas duradouras. Vários estudos de ciências políticas demonstram que em geral não houve transformações profundas nos valores políticos da sociedade e que as crenças políticas do povo não se moveram para a direita ou para a esquerda. BBC Mundo - O que a esquerda deveria fazer para atrair novamente o eleitorado? Vergara - A direita latino-americana tem que parar de acreditar que a política pode ser feita na região a partir da nostalgia. É ridículo replicar o "tornar a América grande novamente" de Trump na América Latina. Os latino-americanos sabem que as melhorias na região sempre foram construídas aos poucos. Não havia momento ideal, um Éden, ao qual retornar. Quando Kast, no Chile, fez campanha com comentários abertamente machistas, ou quando o próprio Rodolfo Hernández o fez na Colômbia, eles estavam falando para um continente no qual as mulheres hoje são muito mais fortes, mais livres e autônomas e que não querem voltar ao passado. Ouvir um candidato que quer voltar no tempo é uma bobagem. O discurso abertamente sexista de Kast permitiu que um candidato como Boric obtivesse cerca de 70% dos votos de mulheres com menos de 30 anos. A direita latino-americana precisa reconsiderar por que não consegue convencer as pessoas. Eles devem entrar em uma fase de avaliação e transformação no futuro. BBC Mundo - O que esperar de Chile, Peru e Colômbia após a vitória da esquerda nesses países? Vergara - Acho que estão em situações diferentes. No Chile tenho a impressão de que a Assembleia Constituinte dominada pela nova esquerda desperdiçou uma oportunidade talvez única de renovar o país ao impor uma agenda muito ativista e muito distante do cidadão comum. Se o projeto constitucional acabar rejeitado, será um grande problema para o presidente Boric e para a esquerda latino-americana. No caso peruano, chegou ao poder um presidente que é uma rara combinação de inexperiência absoluta com corrupção significativa e que deixa o país à deriva, sem nenhum projeto. Castillo está simplesmente tentando sobreviver enquanto o país vai pelo ralo. Petro é um grande líder político, com muita experiência. Foi prefeito de Bogotá e foi um senador muito importante na Colômbia. Tem uma longa trajetória e vem mudando, em questões econômicas, por exemplo, e vem desenvolvendo uma preocupação com energia verde e ecologia. Politicamente, tudo indica que ele abandonou a reivindicação de uma nova assembleia constituinte para a Colômbia. Parece ser alguém da esquerda que vem moderando. Embora todos saibamos que há uma distância entre dizer e fazer. BBC Mundo - O que essa virada à esquerda significa do ponto de vista internacional e para as relações com os Estados Unidos e o resto do mundo? Vergara - As relações com os Estados Unidos ou com a China não são marcadas pelo ciclo eleitoral, mas sim por processos um pouco mais longos. Tenho a impressão de que os Estados Unidos perderam relevância na região. Parece não ter muito a oferecer, independentemente de governos de esquerda ou de direita. A Colômbia, que sempre foi aliada dos EUA, não vai deixar de ser aliada porque Petro venceu. Por outro lado, Bolsonaro, sendo um governo de direita, não tem nenhuma simpatia pelo governo Biden e abomina os democratas e suas agendas progressistas.
2022-07-02
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61973041
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Colômbia pós-Farc: 5 perguntas sobre Comissão da Verdade
"Como nos atrevemos a deixar isso acontecer e como podemos permitir que continue acontecendo", perguntou Francisco de Roux, padre jesuíta e presidente da Comissão para o Esclarecimento da Verdade (CEV) da Colômbia, referindo-se ao mais longo conflito armado da América Latina. Suas palavras nesta terça-feira (28/6) foram ouvidas por centenas de pessoas em um teatro na capital Bogotá e por milhares de outras que acompanharam a transmissão ao vivo da entrega do histórico relatório final da Comissão da Verdade. O relatório, intitulado Há futuro se houver verdade, é resultado de uma investigação que começou em 2018 e para a qual foram realizadas mais de 14 mil entrevistas com 27 mil pessoas na Colômbia e em 23 outros países. O trabalho da comissão, que começou após o acordo de paz entre o governo colombiano e os guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) em 2016, foi considerado histórico. A Comissão da Verdade é uma instituição autônoma, embora vinculada à Jurisdição Especial para a Paz, que foi criada como resultado do acordo de paz assinado com as Farc em 2016. Fim do Matérias recomendadas Seus 11 integrantes foram escolhidos após um longo processo. Entre eles, estão alguns dos mais importantes e experientes acadêmicos, líderes sociais e jornalistas do país. A Comissão tinha um orçamento equivalente a US$ 100 milhões (ou mais de R$ 520 milhões em valores atuais) para cumprir seu mandato em três anos. Esse prazo foi prorrogado por sete meses pelo Tribunal Constitucional para que a CEV recuperasse, em parte, o tempo de trabalho comprometido pela pandemia de covid-19. Foram realizadas 14 mil entrevistas com 27 mil pessoas, incluindo todos os ex-presidentes vivos do país. Também foram instaladas 29 "casas da verdade" em toda a Colômbia para coletar e divulgar informações. Na terça-feira, o resultado desse trabalho foi trazido a público, mas nem tudo foi publicado. Apenas a declaração de De Roux, uma espécie de prólogo, e o capítulo sobre conclusões e recomendações. Durante os próximos dois meses, serão publicados os outros capítulos. São 24 volumes, cerca de 8 mil páginas de relatório, que não só terão a versão em texto, mas serão divulgadas por meio de peças teatrais, documentários, exposições e diversos formatos digitais. Uma pesquisa encomendada pela Comissão constatou que 40% dos colombianos não conhecem a história da guerra e 35% a conhecem "mais ou menos". Assim, o trabalho se concentrou em reconstruir a verdade entendida como coletiva, e não como uma única versão oficial e incontestável. Em vez de estabelecer responsáveis, o relatório procura estabelecer os fatores de persistência que fizeram dessa guerra uma das mais longas da história e na qual 80% das vítimas foram civis não combatentes. "Não vamos contar uma história de mocinhos e bandidos ou preto e branco", disse uma fonte de alto escalão da Comissão à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC. Estas são algumas das conclusões: Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Se a Colômbia não resolver os fatores de persistência da guerra, o conflito "não terminará", disse Roux em seu discurso na terça-feira. Durante os quase quatro anos de trabalho da comissão, o conflito se intensificou em algumas áreas remotas, na forma de massacres, assassinatos de lideranças sociais e deslocamento forçado de populações. Há apenas dois meses, a CEV teve que cancelar vários eventos em regiões sensíveis devido a greves armadas promovidas pelos grupos. Para enfrentar essa realidade, a comissão faz uma série de recomendações ao Estado, como a criação de instituições que sigam suas próprias recomendações, e afirmações éticas aos colombianos para evitar a resolução de divergências com violência. Também pede à comunidade internacional que apoie as iniciativas de paz na Colômbia e não encoraje a guerra. O mandato constitucional da Comissão termina em 28 de agosto. Em seguida, será formado um comitê autônomo que seguirá as recomendações por sete anos e será acionada a rede de aliados da Comissão (ONGs, governos, organismos multilaterais) que esperam contribuir com o processo. Não apenas é a primeira vez que um trabalho coletivo de tal magnitude e rigor é realizado na Colômbia, mas é a primeira vez que aqueles que estiveram em lados opostos durante anos puderam se ouvir e, em muitos casos, reconciliar-se. Durante a entrega do relatório, por exemplo, foi mostrado um vídeo em que alguns indígenas Embera ouviam Salvatore Mancuso, ex-chefe paramilitar e traficante de drogas, reconhecer sua responsabilidade e pedir desculpas pelo assassinato do líder de seu povo, Kimmy Pernía. Braulio Vázquez, ex-comandante das Farc, também foi ouvido, falando em nome do "coletivo fariano" e reconhecendo sua responsabilidade pelas denúncias feitas pelas vítimas em Cauca durante uma reunião que ocorreu em 2021. E o ex-general Oscar Naranjo, que era diretor da polícia, foi visto reconhecendo que a estigmatização é uma forma de violência e que contribuiu para estigmatizar a universidade como instituição. Em geral, tem sido um processo em que se reconhece a complexidade do conflito armado e a responsabilidade coletiva. Foi identificada a responsabilidade não apenas de grupos à margem da lei, mas também das Forças Armadas e outros setores da sociedade responsáveis ​​por tudo o que aconteceu. Mas essa leitura, precisamente, é politicamente desconfortável para alguns. Foi muito significativo que, no início do evento, De Roux tenha dito que o presidente colombiano, Ivan Duque, havia sido convidado pela CEV, mas não pode comparecer porque tinha uma viagem internacional. Em seu nome, estava o ministro do Interior, Daniel Palacios. Assim, a entrega das recomendações foi feita ao presidente eleito, Gustavo Petro, que compareceu com Francia Márquez, a vice-presidente eleita. Em breve discurso, Petro recebeu o texto, agradeceu à CEV e fez um apelo para continuar no caminho do diálogo. "Vou ler as recomendações que forem feitas a mim, ao povo, à sociedade e ao Estado. Acredito que esse esforço que é dado ao país hoje não pode ser um espaço de vingança, tem que ser olhado e eu acho que esse era o objetivo da CEV, como instituição de paz, justamente como possibilidade de reconciliação e convivência", disse. Além da declaração e do capítulo de conclusões e recomendações, nos próximos meses serão publicados capítulos sobre a narrativa histórica da guerra, as violações dos direitos humanos pelo Estado e os fenômenos de resistência ao conflito que intensificaram a violência, como o paramilitarismo. Há um capítulo dedicado aos depoimentos das vítimas, outro às populações étnicas e aos jovens que foram afetados por ela, um ao exílio de milhões de colombianos (estima-se que 1 milhão dos 4 milhões fugiram para o exterior por causa da violência) e outro sobre a complexidade territorial do conflito. Todo o material estará disponível em formato digital transmídia na página do CEV, onde qualquer pessoa poderá consultar não só o relatório, mas também o arquivo e os diversos conteúdos em formato de áudio, vídeo e texto. Durante esses dois meses, De Roux também deve fazer viagens internacionais para divulgar o relatório em locais como a ONU, a União Europeia e o Congresso dos EUA.
2022-06-30
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61979680
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A família que viajou pelo mundo durante 22 anos em um carro de 1928
Duas pessoas partiram e seis voltaram, depois de visitar 102 países nos cinco continentes, com um desejo irreprimível de contar que a coisa mais bonita que encontraram foram as pessoas, e dizer ao mundo que não importa quão impossível um sonho possa parecer, ele não apenas pode, como deve ser realizado. O de Herman e Candelaria Zapp era um sonho antigo que eles haviam adiado por anos, até que se tornou uma "loucura" — porque uma coisa é um casal de adolescentes fazer um mochilão por um tempo, e outra um casal na faixa dos 30 anos, com emprego fixo e uma casa recém-construída, simplesmente fazer as malas e botar o pé na estrada. "Conheço a Cande desde que ela tinha 8 anos, e quando ela fez 14, começamos a namorar, e sempre nos imaginamos viajando. Planejamos que dois anos depois de casados, ​​iríamos fazer isso, mas você sabe como é a vida! As desculpas, os medos... tudo ia adiando o sonho", conta Herman à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC. Após seis anos de casados, o que estava no horizonte era ter filhos mas, embora quisessem ser pais, a perspectiva fez acender o alerta: "Se tivermos (filhos), nunca vamos conseguir viajar, porque com filhos não é possível", pensavam. Assim, eles fizeram "a melhor coisa que poderíamos ter feito: fechar uma data para a viagem. 25 de janeiro de 2000". Fim do Matérias recomendadas Inicialmente, era uma viagem até o outro lado do mundo, o que para os argentinos (no sul) significava chegar ao Alasca (no norte). Embora nada estivesse exatamente planejado, eles calcularam que levariam 6 meses, durante os quais, usando diferentes meios de transporte, percorreriam o continente americano de ponta a ponta. "Falar em realizar um sonho em 2000 não era o mesmo que em 2020; os sonhos eram algo para sonhar. Não havia redes sociais mostrando outros viajantes ou para se comunicar com pessoas de outros países, então as pessoas sentiam que o que estávamos planejando era muito, muito louco." Chegou uma hora, diz Herman, que eles pararam de contar os detalhes à família porque, além de embarcarem nesta aventura sem nenhuma experiência nem dinheiro suficiente, haviam tomado uma decisão aparentemente ridícula. Esta decisão tem nome, sobrenome e até passaporte: Macondo Cambalache, uma mistura de realismo mágico com tango. Trata-se de um companheiro de viagem inesperado que se juntou ao casal três meses antes de partirem: um automóvel clássico Graham-Paige, fabricado em Detroit em 1928, pelo qual Herman se apaixonou. Ele levou o carro para casa num guincho, já que nem sequer ligava, e anunciou a Candelaria: "Mudança de planos: vamos de carro". Embora parecesse prometer nada mais do que problemas, percorreu 362 mil quilômetros em seu ritmo vagaroso "arrancando sorrisos de quem o via passar". O estilo de viagem do casal sempre foi do tipo "lá a gente vê", o que na maioria das vezes dava excelentes resultados. Mas quando eles ficaram sem dinheiro pela primeira vez "foi um momento trágico... desesperador", lembra Herman. "Estávamos no Equador, onde a situação econômica era muito ruim. Eles haviam passado do sucre para o dólar. Um bom salário era de no máximo US$ 60, então nunca conseguiríamos economizar para continuar viajando." Candelaria começou a pintar — "uns quadros muito bonitos de pássaros... ela realmente tem um dom maravilhoso" — e Herman os emoldurava e vendia. "Nos saímos muito bem no Equador, o que nos deu força." "Depois, na Colômbia, um homem que tinha uma gráfica nos fez a pergunta típica de: 'Como vocês se sustentam?' Nós dissemos que com as pinturas, mas que precisávamos de algo que ocupasse menos espaço." "Ele pegou algumas fotos da nossa viagem e nos trouxe 500 cartões postais e alguns caderninhos cujas capas eram as fotos." "A ideia era que as pessoas escrevessem seus sonhos neles, mas nos diziam que queriam ler sobre os nossos, então começamos a escrever." Logo publicaram o primeiro de vários livros que os ajudariam a financiar sua jornada ao longo dos anos. Mas também foram aprendendo que havia outra fonte enorme de riqueza: a boa vontade das pessoas. Quando precisaram de transporte marítimo para levar Macondo Cambalache da Colômbia ao Panamá, "fomos a Barranquilla e conversamos com o gerente, e ele respondeu: 'Vamos dar um jeito'". "Ele conseguiu para a gente não uma, mas três companhias de navegação que queriam levá-lo de graça. Escolhi uma, e o dono de outra que eu não havia escolhido me disse: 'Pelo menos me deixe pagar sua viagem de avião'." "No começo foi um pouco difícil, mas logo percebemos que o melhor da viagem é o que você faz sem dinheiro." Após quase dois anos viajando, eles sentiram que "algo estava realmente faltando". "Além disso, a irmã de Candelaria não tinha conseguido ter filhos e estava fazendo todos os tratamentos possíveis, então pensamos que se tivéssemos o mesmo problema, era melhor começar antes que os anos passassem." "E, então, naquele famoso 11 de setembro (2001) nós nos abraçamos um pouco mais forte." Em Belize, confirmaram que Candelaria estava grávida e entraram em pânico. "Sim, pânico, porque uma coisa é ter a ideia de ser pai, e outra é saber que você vai ser. Não tínhamos muitas possibilidades de ganhar dinheiro, ou economizar... não estávamos tão preparados." Para lidar com a situação, eles estabeleceram datas. "15 dias em Belize, dois meses no México, três nos EUA, dois no Canadá e assim chegaríamos no Alasca a tempo do bebê nascer lá." Mas uma comunidade menonita amish os convidou para passar duas semanas com eles — "e eu disse a ela: 'Candi, quando vamos ter a oportunidade de estar com os menonitas'" —, e quando estavam em Cancún, foram convidados a visitar Cuba — "e eu digo: 'Candi, quando vamos ter a oportunidade de ficar 15 dias em Cuba?'"... No fim das contas, Pampa nasceu em 2002 em Greensboro, no Estado americano da Carolina do Norte, para onde haviam sido convidados para um encontro de carros antigos Graham-Paige. "Foi mágico." "Pedimos ajuda ao governo, porque nasci nos EUA, mas eles negaram porque eu não era residente; fomos ao hospital e nos disseram que era uma empresa privada, então cobraram (mais de US$ 12 mil), e fomos ao jornal pedir ajuda às pessoas", lembra Herman. "Fizeram uma nota muito bonita sobre nossa viagem, nosso sonho, nosso destino, mas também nossa situação, e diziam que se quisessem nos ajudar, poderiam ligar para o número de telefone da família que nos havia acolhido." "O telefone não parou de tocar por 4 dias." De uma avó que queria enviar para eles um suéter que estava tricotando para o neto, a médicos e enfermeiras que se ofereceram para não cobrar se estivessem de plantão no momento do parto. Diferentes igrejas organizaram eventos para arrecadar fundos, enquanto levavam legumes, frutas e verduras para eles — e compravam seus livros e pinturas. "No final, acabamos pagando nada além da hospedagem do hospital. Foi muito bom não termos dinheiro porque agora temos uma família na Carolina do Norte." "Não chegamos ao Alasca em seis meses... chegamos lá em três anos e nove meses. Houve um pequeno erro de cálculo." Mas prestes a realizar seu sonho, aconteceu algo peculiar. "Quando faltavam 30 km para chegar ao Alasca (e uma placa dizia isso), Cande me diz: 'Não quero chegar'." "'Como você não quer chegar ao Alasca?'" "'É que se chegarmos, o sonho acaba, e a beleza de um sonho não é realizá-lo, é vivê-lo, estar nele'." "Então tivemos que parar para ver o que poderíamos fazer para chegar felizes." "E descobrimos que o Alasca era o fim de um sonho, mas também o começo de outro." "Estabelecemos o objetivo de continuar a viajar." Mas tiveram que voltar para a Argentina. A mãe de Candelaria estava doente. Cinco dias depois de voltar, o segundo filho do casal, Tahue, nasceu em Capilla del Señor, em 2005. Quando estava com 13 dias de vida, a família partiu novamente. Com a chegada de Tahue, e a vontade de ter mais filhos, eles se deram conta de que Macondo Cambalache ia ficar pequeno. Como "a gente não tem que se adaptar às coisas, mas as coisas têm que se adaptar a nós", eles colocaram mais uma fileira de assentos. As crianças podiam dormir na barraca que levavam no teto, e os pais nos assentos que se transformavam em camas. À barraca, se juntaram Paloma, que nasceu em 2007 em Vancouver, no Canadá, e Wallaby, nascido na Austrália em 2009, além do cachorro Timon e do gato Hakuna. "A quantidade de coisas que você precisa tirar para dar lugar a eles! Eles precisam de cadeirinhas de carro, berços, fraldas... Quando todos eles nasceram, ficamos sem nada, mas como é bom mudar as coisas pelas crianças!" A cozinha ficava em um baú de madeira. "Uma casinha com um jardim gigante, que ainda não haviam terminado de conhecer", na qual passaram inúmeras noites de frente para o mar, lagos, rios, ilhas, montanhas e desertos. A família Zapp voltou definitivamente à Argentina (por enquanto) em fevereiro de 2022. As crianças já não são tão crianças: Pampa tem 20 anos, Tehue, 17, Paloma, quase 15, e Wallaby, 13. Voltaram com uma educação invejável. "Eles aprenderam geografia passando por ela; línguas, brincando com outras crianças; ciências sociais, compartilhando com pessoas de todas as camadas sociais e culturas, e viram que havia milhares de maneiras de rezar, viver e comer." "Viram a cadeia alimentar em ação na África, quando um guepardo comia um veado que estava comendo grama, e um leopardo roubava a presa do guepardo, e aprenderam biologia mergulhando no mar..." "Tiveram a melhor e mais linda sala de aula." Agora eles precisam se acostumar ao comum para que sejam capazes de escolher que tipo de vida querem ter. Herman e Candelaria têm consciência de que, embora "fôssemos capazes de dar a eles o mundo", a viagem privou as crianças de partilhar o dia a dia com avós, tios, primos e amigos sempre presentes. "Agora eles estão experimentando estar em uma única casa, com horários, a esperar as férias... para depois decidirem o que preferem, porque se você nunca provou chocolate, não sabe se é gostoso." Seus pais, no entanto, continuam com o pé na estrada, embora desbravando lugares mais próximos. "O que mais queremos fazer agora é ajudar a realizar sonhos, e vamos de cidade em cidade levando a notícia de que, apesar da política, da economia, da situação mundial, da guerra, do vírus, você pode criar sua própria realidade." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Além disso, ninguém está sozinho. Estamos entre 7 bilhões de amigos!" "Eu precisei de muitos barcos, e sempre apareceu um homem ou uma empresa que se oferecia, e não em troca de publicidade, mas em troca de fazer parte. E foram mais de 2 mil lares que abriram suas portas para receber uma família que não conheciam." "E assim mil coisas que demonstram que é um mundo maravilhoso, que gosta de fazer parte do sonho, e que tudo o que se tem a fazer é compartilhar. Não viemos para ficar sozinhos. As coisas são mais ricas e saborosas quando as compartilhamos, não?". Mas isso não significa que eles vão ficar parados: no ano que vem, eles planejam dar a volta ao mundo em um veleiro, como no que cruzaram o Atlântico. "Era mais velho que Macondo Cambalache, de 1908... lindo!" E, com toda a experiência do casal, o que é essencial levar? "Só duas coisas: lenço umedecido e gana, porque se você tiver gana, quem vai te impedir?"
2022-06-29
https://www.bbc.com/portuguese/geral-61954763
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Como 'flutuação suja' ajuda Peru a manter moeda estável e segurar inflação
O Peru representa um raro exemplo de estabilidade econômica na América Latina. Muitos especialistas até falam de um "milagre econômico peruano" devido ao crescimento sustentado do país nas últimas décadas, apenas interrompido pela pandemia de covid-19. Embora em amplos setores haja descontentamento com a manutenção das desigualdades, os números macroeconômicos da história recente do Peru são citados como exemplo de sucesso mundo afora. Uma razão, segundo os especialistas, é a estabilidade da moeda peruana, o sol. Waldo Mendoza, economista da Pontifícia Universidade Católica do Peru e ex-ministro da Economia do Peru, disse à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC, que "se observarmos o comportamento do câmbio na América Latina, o do Peru é o menos volátil". Fim do Matérias recomendadas Em outras palavras, a moeda peruana é a que menos vê seu valor flutuar em relação à moeda de referência, o dólar americano, e não apresenta tendência a desvalorizações acentuadas em momentos econômicos adversos típicos de outras economias da região. Neste ano, o comportamento dessa divisa até agora parece embasar a afirmação de Mendoza. Segundo o ranking de moedas elaborado pela agência Bloomberg, o sol é a segunda moeda latino-americana que teve melhor desempenho em relação ao dólar em 2022, superada apenas pelo peso uruguaio. A estabilidade no preço de sua moeda é alcançada graças a uma estratégia do Banco Central do Peru (BCRP) conhecida como "flutuação suja". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O valor do dólar medido em unidades da moeda local (taxa de câmbio) é um aspecto fundamental na economia, especialmente para países como a América Latina, em que a moeda americana desempenha um papel-chave e é utilizada amplamente. Em economia, distinguem-se três modelos principais de regime cambial. Com a taxa de câmbio fixa, o preço da moeda estrangeira permanece constante ao longo do tempo, mas isso requer uma intervenção permanente do banco central no mercado, comprando ou vendendo dólares conforme necessário para regular a oferta e a demanda e, assim, manter a taxa de câmbio no nível desejado. Poucos lugares aplicam esse modelo. Um caso típico é o do território autônomo chinês de Hong Kong. Na América Latina, a Bolívia ainda o mantém e ele vigorou na Venezuela chavista por anos. No modelo de câmbio flutuante, a taxa de câmbio flutua livremente, sem intervenção do Banco Central. É o seguido pelos países europeus que compartilham o euro, ou na América Latina, por exemplo, pelo Chile. Isso pode levar a grandes flutuações influenciadas pela situação atual ou fatores econômicos externos. Por fim, há o modelo de taxa de câmbio flutuante suja que o Peru segue, em que a taxa de câmbio também oscila, mas de forma muito limitada. A "flutuação suja" também é adotada pelo Banco Central do Brasil (Bacen). Devido a uma intervenção também limitada do banco central no mercado. Nas palavras de Mendoza, "o banco central luta contra a corrente no mercado de câmbio. Ele tende a comprar dólares quando a taxa de câmbio cai e tende a vender quando a taxa de câmbio sobe". Dessa forma, é possível manter seu preço relativamente estável. É um modelo comum em economias emergentes, onde as autoridades o utilizam para proteger suas moedas de grandes flutuações indesejadas. Algumas das maiores economias de "flutuação suja" incluem, além do Brasil, Índia, Cingapura, Turquia e Indonésia. Nos dois últimos, os bancos centrais intervieram em 2014 e 2015 para apoiar suas respectivas moedas locais. No Peru, esse modelo tem sido o adotado pelo Banco Central do Peru (BCRP) e os especialistas concordam que ele pode explicar a estabilidade monetária do país dos últimos anos, contrastando notavelmente com o que aconteceu em outros momentos da história, como a hiperinflação do final da década de 1980, que ainda traz lembranças amargas para muitos peruanos. O Banco Central do Peru começou a intervir no mercado de câmbio durante a política de estabilização econômica da década de 1990, quando o governo de Alberto Fujimori (1990-2000) realizou uma agressiva reforma econômica liberal. Quando Fujimori chegou ao poder em 1990, os peruanos viviam sob a hiperinflação herdada do primeiro governo de Alan García (1985-1990), que devorou o poder de compra e a credibilidade da moeda peruana da época, o inti. Em 1991, foi criada uma nova moeda nacional, o novo sol, e estabilizar seu valor tornou-se uma prioridade para o novo governo. No início, foi implementado um modelo de câmbio fixo, que acabou relaxado. Adotou-se, então, o modelo de taxa de câmbio de flutuação suja, que se mantém até hoje e tem ajudado o sol a enfrentar algumas das turbulências financeiras dos últimos anos. Nos primeiros anos, foram utilizadas intervenções limitadas e esporádicas, mas a partir de 2002, quando o BCRP adotou sua política de metas de inflação, com o objetivo oficial declarado de manter os níveis de aumento de preços entre 1% e 3%, a flutuação suja acabou implementada. Os sucessivos presidentes do Banco Central peruano permaneceram fiéis a esse sistema, a ponto de, segundo Mendoza, "não haver nenhum banco central que intervenha mais no mercado de câmbio do que o peruano". Segundo seu relatório anual, o BCRP interveio em 82% dos dias de 2021 e até agora, em 2022, vendeu US$ 1,8 bilhão em moeda estrangeira para manter o câmbio estável. Mas o peruano tem algumas particularidades em relação à "flutuação suja" de outros países. Diego Macera, especialista do Instituto Peruano de Economia e membro do conselho do BCRP, diz à BBC News Mundo que "a diferença mais importante com outros sistemas é que o Peru não tem regras fixas antes da intervenção". "Nos outros países, foi possível conhecer com mais clareza o momento e a magnitude da intervenção do banco central, o que possibilita a manipulação do sistema. O BCRP tem mais discricionariedade, o que lhe permite ser mais eficaz na redução da volatilidade." Como o Banco Central do Peru não anuncia com antecedência quando vai intervir no mercado, nem com que intensidade, a incerteza desencoraja os especuladores interessados em "apostar contra" a moeda nacional com manobras de curto prazo. Foi o que aconteceu com a libra esterlina quando em 1992 um ataque especulativo do financista George Soros acabou forçando sua exclusão do Mecanismo Europeu de Taxas de Câmbio (MTC), sistema acordado pelos países que acabaram adotando o euro antes de sua entrada em vigor. Macera aponta outras vantagens do modelo aplicado no Peru: "Ele é menos vinculante que o sistema de câmbio fixo, o que pode acarretar um risco maior de esgotamento rápido de reservas e especulação em relação à nossa moeda". O BCRP também é muito ativo na compra de dólares em momentos favoráveis para manter seus níveis de reservas e sua capacidade de intervir em momentos adversos, considerando o peso das exportações minerais na economia peruana. "Quando o preço dos minerais sobe, o valor do dólar tende a cair e é aí que o BCRP compra dólares", explica Mendoza. "Nos bons tempos, acaba acumulando muito e isso permitiu-lhe ser um dos bancos centrais com mais reservas internacionais." O BCRP tem US$ 76,1 bilhões em reservas internacionais, o que significa 30,5% do Produto Interno Bruto (PIB, soma de bens e serviços) do Peru. O Chile, por exemplo, apesar de ter um PIB maior, tem aproximadamente US$ 30 bilhões a menos em reservas internacionais. Já as reservas internacionais do Brasil totalizavam, em dezembro de 2021, US$ 362,20 bilhões. Macera explica que a elevada disponibilidade de reservas é fundamental para o sucesso da "flutuação suja". "A credibilidade da intervenção do BCRP no mercado é particularmente importante, e é alcançada com um bom histórico da instituição e com um nível de internacionalização de reservas significativo", explica. Foi isso que permitiu ao banco agir com vigor, como em 2009, quando o Peru foi abalado pelas consequências da crise financeira global, ou, mais recentemente, pela fuga de capitais após a chegada à presidência de Pedro Castillo, em julho de 2021. Mas a taxa de câmbio não é a única variável, nem mantê-la estável basta para solucionar todos os problemas da economia. A peruana tem alguns atualmente. O Banco Central recentemente baixou suas expectativas de crescimento para o Peru para este ano de 3,4% para 3,1%. Especialistas concordam que se trata de uma taxa muito baixa para uma economia emergente e que, a esse ritmo, o país terá dificuldade em criar empregos em volumes significativos. Tampouco uma taxa de câmbio estável é suficiente para corrigir os efeitos da queda na produção mineral, item fundamental para o Peru, devido aos conflitos que paralisaram algumas das principais minas do país. Depois, há o grande problema dos dias atuais, a inflação, em alta desde a invasão da Ucrânia pela Rússia. O Peru tampouco está imune a isso. A previsão é de que a inflação peruana feche o ano em 6,4% — a previsão anterior era de 3,5%. E o BCRP não espera que a inflação volte aos níveis normais até pelo menos o final de 2023. "Grande parte disso se deve ao preço do trigo, petróleo e outros produtos importados que representam entre 30% e 50% da cesta básica local e que seguirão dinâmicas próprias associadas à guerra", diz Mendoza. O BCRP está tentando conter essa escalada de preços, como outros bancos centrais, principalmente com o aumento nas taxas de juros, o que indiretamente também ajuda a limitar uma possível desvalorização do câmbio. Mas, como alerta Mendoza, "isso está esfriando a economia e terá custos, porque é a inflação mais alta em muito tempo".
2022-06-28
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61945230
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Vídeo, 3 pontos para entender nova crise no EquadorDuration, 5,26
Os protestos contra o governo de Guillermo Lasso começaram em 13 de junho e já deixaram ao menos quatro mortos em meio a violentos confrontos entre polícia e manifestantes. Entre as principais reivindicações estão a diminuição no preço dos combustíveis e um maior investimento do governo em setores como saúde e educação. Várias cidades estão isoladas em diversos pontos do país por causa do bloqueio de estradas, provocando o desabastecimento de alguns produtos. Neste vídeo, Camilla Costa explica o que há por trás dos protestos e como vem reagindo o governo, que também enfrenta uma crise política. Confira.
2022-06-27
https://www.bbc.com/portuguese/geral-61953026
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O que se sabe de queda de arquibancada em tourada que matou 4 e deixou dezenas feridos na Colômbia
Ao menos quatro pessoas morreram e dezenas ficaram feridas depois que uma arquibancada desabou durante uma tourada no centro da Colômbia, informou a mídia local. Registros do incidente mostram quando a arquibancada de madeira cheia de espectadores caiu em um estádio no município de El Espinal, no departamento de Tolima. Pessoas são vistas fugindo em pânico. A queda ocorreu no domingo (26/6) durante um evento tradicional de corraleja, quando o público é incentivado a entrar na arena para interagir com os touros e que faz parte das comemorações da popular festa de São Pedro e São João. Entre os mortos estão duas mulheres, um homem e uma criança, disse o governador de Tolima, José Ricardo Orozco, e pelo menos 30 pessoas ficaram gravemente feridas. Há temores de que o número de vítimas fatais seja maior. Fim do Matérias recomendadas Um touro escapou do estádio e causou pânico no município. O conselheiro local Iván Ferney Rojas disse que o hospital e os serviços de ambulância da cidade não conseguiram lidar com o número de feridos, informou o jornal El Tiempo. "Precisamos de apoio de ambulâncias e hospitais vizinhos, muitas pessoas ainda estão desacompanhadas", disse Rojas. O presidente colobiano, Iván Duque, enviou uma mensagem às vítimas e anunciou uma investigação."Lamentamos a terrível tragédia registrada em El Espinal, durante as festividades de São Pedro e São João, devido ao desabamento em uma corraleja. Solicitaremos uma investigação dos fatos; pronta recuperação dos feridos e solidariedade aos famílias das vítimas", disse em suas redes sociais. O presidente eleito da Colômbia, Gustavo Petro, publicou uma mensagem em sua conta no Twitter junto com um vídeo que mostra o acidente visto do alto. "Espero que todas as pessoas afetadas na arena de El Espinal consigam se recuperar", disse Petro. "Isso já havia acontecido antes em Sincelejo." Sincelejo é uma cidade no norte do país onde em janeiro de 1980 um incidente parecido deixou 222 mortos e centenas de feridos. Petro fez ainda um apelo: "Peço às prefeituras para não permitir mais espetáculos com a morte de pessoas e animais". O governador de Tolima disse que irá proibir as corralejas por serem perigosas e cruéis com os animais.
2022-06-26
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61946429
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5 sinais de recuperação — com limites — da economia da Venezuela
"Venezuela foi consertada" é uma frase que circula há meses nas redes sociais, mas que gera polêmica dentro e fora do país sul-americano. Muitos dizem isso com forte carga de ironia, e outros veem mudanças nos últimos anos que apontam para melhorias em alguns dos graves problemas econômicos do país. Alguns atribuem a frase a uma suposta estratégia do governo do presidente Nicolás Maduro de projetar uma imagem mais favorável. O presidente venezuelano, no entanto, não endossou essa declaração, embora tente ganhar crédito com as recentes mudanças. "A Venezuela hoje pode dizer que merece o Prêmio Nobel de Economia porque avançamos sozinhos, humildemente sozinhos, com a agenda econômica bolivariana", disse Maduro no final de março. Um mês depois, ele fez referência direta à frase. "Algumas pessoas começaram a dizer que 'a Venezuela foi consertada'. Não, não foi consertada. Está melhorando, a Venezuela vai melhorar, crescer, mas ainda há muito a ser feito", disse ele em um evento com empresários, de acordo com relatos da imprensa local. Fim do Matérias recomendadas Luis Vicente León, presidente da consultoria Datanalisis, diz que a percepção de melhora depende do ponto de comparação e que os venezuelanos vêm de uma "macrocrise", iniciada em 2018, com "hiperinflação brutal" e escassez de alimentos e medicamentos, e com longas filas e preços muitas vezes acima dos internacionais. Além disso, as pessoas podiam ir para a cadeia na Venezuela se realizassem operações com dólares. "Então, quando você compara [hoje] com 2018, não há dúvida de que a situação está melhor", diz León, que alerta, no entanto, que entre 2013 e 2021 a economia venezuelana se contraiu 75% e que no ano passado houve crescimento entre 6% e 8%. "É como um avião que estava voando a 10 mil pés e começou a despencar e antes de atingir o solo consegue levantar o nariz e agora está voando a 2,5 mil pés. Não caiu, mas está muito longe de sua altitude inicial." O efeito dessa longa crise se reflete na vida cotidiana dos venezuelanos, como mostra o estudo Encovi sobre condições de vida dos venezuelanos realizado em 2021 pela Universidade Católica Andrés Bello. A pesquisa revela que 24,8% dos venezuelanos estão em situação de extrema pobreza e que 60% da população vive com insegurança alimentar moderada a grave. Isso não significa que não houve mudanças ou melhorias. Mas abaixo explicamos as causas dessa recuperação. Antes, apresentamos 5 sinais que indicam as mudanças nas condições econômicas do país. Em janeiro de 2022, o Banco Central da Venezuela anunciou que o país havia completado 12 meses consecutivos com inflação abaixo de 50%, em contraste com a espiral hiperinflacionária na qual vinha desde 2017. Isso foi confirmado logo depois, em março, quando a Venezuela teve inflação mensal de 1,4% — a menor registrada desde setembro de 2012. Em abril, última data disponível, a inflação mensal subiu para 4,4%, mas ainda está bem abaixo dos 24,6% registrados em abril de 2021. A produção de petróleo da Venezuela atingiu o pico de mais de três milhões de barris por dia em 1998, e depois começou um lento declínio sob Hugo Chávez que acelerou sob Maduro. Em janeiro de 2019, a Venezuela extraía apenas 1.106.000 barris por dia — uma queda de dois terços na produção em 20 anos. Foi então que o governo dos EUA decidiu sancionar a indústria petrolífera venezuelana. A produção de petróleo bruto caiu para níveis de meados do século 20, registrando uma extração de apenas 434 mil barris por dia em novembro de 2020. No entanto, no último semestre de 2021, a produção de petróleo bruto — principal fonte de riqueza do Estado — começou a aumentar até atingir cerca de 718 mil barris por dia em dezembro. Desde então a produção se mantém ligeiramente abaixo dos 700 mil barris. Esse número é bem pequeno para um país que se orgulha de ter as maiores reservas comprovadas de petróleo do mundo, mas é quase o dobro do registrado durante a queda histórica em 2020. Entre especialistas, há um consenso quase unânime sobre a possibilidade de a economia venezuelana continuar a crescer em 2022. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As estimativas variam bastante. O Fundo Monetário Internacional projeta um crescimento de 1,5% para a Venezuela em 2022, enquanto um relatório do banco Credit Suisse citado pela agência Reuters estima o aumento do PIB venezuelano em 20%. Asdrúbal Oliveros, diretor da Ecoanalítica, destaca que sua consultoria espera que o PIB cresça 8% — e que o consumo privado cresça 12%. "Isso tem que ser entendido no contexto de um PIB que encolheu 80%, então estamos falando de uma economia que está no buraco, que caiu muito. Isso torna perfeitamente possível crescer a essa taxa porque estamos crescendo 8% acima de 20 e não acima de 100, que é onde estávamos em 2013. Para colocar em termos numéricos: 8% de 20 é apenas 1,6, então você está indo de 20% para 21,6% em relação ao seu ponto de partida que é 100", explica o especialista à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC). Também analisa que esse crescimento está muito focado em setores como comércio, tecnologia, indústrias de alimentos e saúde, enquanto outros como manufatura, construção, bancos e seguros continuam sendo altamente afetados. Ele alerta que o crescimento não é espalhado por todo o país e está concentrado em Caracas e algumas outras cidades. "Também é um crescimento desigual, porque na Venezuela a distância entre quem tem acesso a bens e pode cobrir todas as suas necessidades e quem não tem é muito grande." Nos últimos anos, a escassez de produtos na Venezuela ficou famosa no mundo todo. Da intermitente falta de produtos básicos — como leite, papel higiênico ou farinha de milho para fazer as típicas arepas — a Venezuela passou para uma escassez geral de todos os tipos, incluindo medicamentos essenciais e até gasolina. Atualmente, as imagens das longas filas de venezuelanos esperando para poder comprar produtos básicos sumiram — com uma importante exceção no caso da gasolina, que ainda exige filas de quem quer comprá-la a preços subsidiados. "Hoje você não faz fila no supermercado para comprar leite. Hoje você tem oferta praticamente cheia. O problema agora são os preços", diz León. Oliveros concorda e destaca que o índice de escassez de alimentos elaborado pela Econanalítica mostra uma redução muito significativa, que passou de 80% em 2016-2017 para 15-20% hoje. No entanto, venezuelanos de baixa renda seguem com problemas de abastecimento. Segundo Oliveros, um estudo realizado em janeiro mostra que cerca de 50% da população venezuelana ganha menos de US$ 100 por mês, enquanto outros 30% recebem entre US$ 100 e US$ 300. "Com esses níveis, fica claro que a capacidade das pessoas de se alimentarem adequadamente é extremamente limitada, pois a cesta básica gira em torno de US$ 350 por mês", explica. Depois de uma ausência que durou anos, muitas companhias aéreas internacionais e artistas estrangeiros (ou venezuelanos residentes no exterior) estão retornando à Venezuela. Oliveros diz que não tem conhecimento de nenhuma literatura econômica que use esses elementos como indicadores de crescimento econômico. No entanto, ambos foram fortemente incorporados ao debate em torno da frase "A Venezuela foi consertada". O desastre econômico vivido pela Venezuela nos últimos anos levou a uma redução maciça do número de companhias aéreas internacionais que operam no país — cujo número diminuiu de 25 para 5 entre 2014 e 2022. Muitas dessas empresas decidiram deixar o mercado venezuelano por não conseguiram que o governo pagasse uma dívida estimada em cerca de US$ 3,3 bilhões, derivada da venda de passagens aéreas em bolívares a um preço subsidiado pelo Estado através do controle cambial. No entanto, declarações recentes à imprensa do presidente da Associação de Companhias Aéreas da Venezuela, Humberto Figueras, indicam que pelo menos oito companhias aéreas internacionais iniciaram sondagens para voltar a operar na Venezuela. No caso da visita de artistas internacionais ao país, seus shows começaram a ser reduzidos por volta de 2014 — em princípio por razões políticas, já que artistas, como o espanhol Alejandro Sanz, criticavam a repressão de Maduro aos protestos contra seu governo. Em 2017, os shows pararam por motivos econômicos. Nos últimos meses, no entanto, houve um retorno perceptível de artistas internacionais (e artistas locais, mas residentes no exterior) aos palcos venezuelanos. Entre os grupos e cantores que se apresentaram no país estão a banda colombiana Morat, os cantores mexicanos Emmanuel e Christian Castro e o cantor e compositor colombiano Fonseca, que há uma década não visitava a Venezuela. Entre os artistas que têm shows programados na Venezuela estão a dupla Sin Bandera, a cantora porto-riquenha Olga Tañón, o cantor venezuelano José Luis Rodríguez "El Puma" e o roqueiro argentino Fito Páez. O produtor musical José Luis Ventura disse à BBC News Mundo que a dolarização da economia tem sido fundamental para o retorno de artistas internacionais à Venezuela, porque esses artistas são pagos em moeda estrangeira. Ele acrescentou que o custo estimado dos ingressos para esse tipo de espetáculo varia entre US$ 30 e US$ 200. Mas como é possível que em um país onde o salário mínimo gira em torno de US$ 30, as pessoas possam pagar por esses shows e, em alguns casos, lotar os locais onde são realizados? "Acho que todos nós entendemos que trabalhamos para um setor que ainda tem poder aquisitivo. É um setor pequeno, não sei se de 5% da população, mas que está dando certo", responde Ventura. Asdrúbal Oliveros destaca que há três fatores que explicam a melhora da economia: o fim das políticas "draconianas" de controle cambial e de preços, a dolarização da economia e a abertura às importações. Estas medidas permitiram ao setor privado operar em melhores condições, sabendo que poderia ajustar os seus custos e garantir rentabilidade. Ao mesmo tempo, graças à dolarização, o setor pode fixar os seus preços em dólar e chegar a acordos estáveis com fornecedores. No entanto, tanto Oliveros quanto León concordam que essa recuperação incipiente da economia venezuelana é muito limitada — "uma recuperação em segundo plano", como descreve Oliveros — e que será difícil levá-la adiante se outras mudanças importantes não ocorrerem. Uma taxa de crescimento como a atual — de 6% a 8% — é insuficiente para que a economia venezuelana tenha uma recuperação completa. "Com uma queda de 75% no PIB, é preciso crescer 400% para se recuperar os níveis de 2013. Você estava em 100 e caiu para 25, então, para voltar a 100 você teria que quadruplicar, mas o crescimento foi de 6% a 8%. Nesse ritmo, você precisaria de décadas para poder voltar ao patamar de 2013", diz León. Ambos apontam que esse ritmo de crescimento mais alto exige infraestrutura que permita o fornecimento de energia elétrica, água e todos os tipos de serviços necessários para investimentos — e que o governo não tem condições de fornecer isso. "A Venezuela não tem acesso a financiamento. É um elemento muito importante. Nem financiamento público nem privado. O grande problema das empresas venezuelanas é a falta de crédito. Além disso, você tem um colapso do Estado e um colapso do poder público, o que se reflete em uma queda significativa na capacidade de produção. O caso mais emblemático é a falta de energia elétrica. Sem energia elétrica, é muito difícil a indústria conseguir crescer", diz Oliveros. O especialista acredita que o crescimento necessário não pode ser alcançado sem uma reforma profunda e sem a construção de um acordo político que permita à Venezuela ter acesso ao financiamento de organismos multilaterais. Com isso, poderia haver uma recuperação econômica da Venezuela entre 8 e 10 anos. "Não podemos ter acesso ao Fundo Monetário, nem ao Banco Mundial e seu apoio — que é essencial para um programa de estabilização e reconstrução. Não teremos isso até que a questão política seja resolvida", diz ele, mencionando também sanções econômicas contra a Venezuela. Governo e oposição estão em desacordo há anos. Muitos países sequer reconhecem Maduro como presidente. Mas o que acontecerá com a economia venezuelana se não houver um acordo político? "Se as condições não mudarem significativamente, a Venezuela pode demorar entre 40 ou 50 anos para se recuperar. Não vai seguir caindo, mas também não vai crescer. Ficará estagnada e esse é o perigo que vemos para o futuro", conclui Oliveros.
2022-06-21
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61798960
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Gustavo Petro: o que se sabe sobre o papel do presidente eleito da Colômbia na guerrilha M-19
O triunfo de Gustavo Petro nas eleições de domingo (19/6) não é apenas um feito porque esta é a primeira vez que a Colômbia elege um presidente de esquerda. Chama a atenção também o fato de ele ter um passado como ex-guerrilheiro. Por isso, a vitória dele é vista como mais um passo na evolução de um país que está deixando para trás a fase sombria da violência extrema do final do século 20 e como um símbolo da confirmação do acordo de paz com vários grupos guerrilheiros entre os anos 1990 e 2000. Já existem algumas gerações que não sofreram com a violência extrema como seus pais e avós. Mas, além disso, a paz deu voz a novas demandas sociais e econômicas, e os cidadãos colombianos, apesar da desconfiança que o passado de guerrilha de Petro desperta em alguns, deram um voto de confiança nas promessas que ele fez sobre reformas estruturais e busca por mais igualdade. A chegada dele ao poder evidencia também a transformação de um político que, em sua juventude, foi integrante do Movimento 19 de Abril (M-19), grupo guerrilheiro que buscava impor ideias por meio das armas, mas que se diferenciava de outras organizações clandestinas em vários aspectos. Um dos principais tem a ver com a origem do grupo, que remonta a uma suposta fraude eleitoral. Fim do Matérias recomendadas Em 19 de abril de 1970, Petro tinha apenas 10 anos quando foram realizadas eleições presidenciais na Colômbia, nas quais o conservador Misael Pastrana chegou ao poder após derrotar o general Gustavo Rojas Pinilla. Os seguidores de Rojas Pinilla, um militar populista que liderou o governo entre 1953 e 1957, denunciaram uma fraude eleitoral e começaram a se mobilizar, dando origem ao M-19 (em alusão à data das eleições, em 19 de abril) alguns anos depois. "A ideologia do M-19 foi definida com três conceitos: nacionalismo, justiça social e democracia econômica e política", explica o engenheiro, professor universitário, político e ex-guerrilheiro Antonio Navarro Wolff, segundo no comando da organização, à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC para a América Latina. Além de não ser marxista, algo que o distinguia de outros grupos guerrilheiros da época, o M-19 se diferenciava nos primeiros anos tanto pelos métodos de luta quanto por uma peculiar estratégia para se tornar mais conhecido. O grupo comprou espaço publicitário em jornais colombianos e publicou mensagens enigmáticas: "Deterioração... Falta de memória? Espere." "Sem energia... Inativo? Espere." "Parasitas... Vermes? Espere. "Já chega." Essas frases, publicadas em branco sobre fundo preto, eram seguidas de um logotipo com dois triângulos voltados um para o outro e uma sigla então desconhecida: M-19. Em 1974, o grupo completou com sucesso a primeira missão: roubar a espada de Simón Bolívar, um dos líderes da independência da Colômbia e de outros países latino-americanos, da casa-museu Quinta de Bolívar, localizada na capital Bogotá. "Bolívar, sua espada volta à luta. Com o povo, com as armas, ao poder", proclamou o grupo, após a operação bem-sucedida. Essa ação simbólica serviu para divulgar o M-19, que reivindicava a causa do libertador da América contra um poder político considerado como "antidemocrático, tirânico e corrupto". Aos poucos, porém, o simbolismo deu lugar a outro princípio: a luta armada. O M-19 teve a história manchada de sangue pela primeira vez em 1976, com o sequestro e o assassinato de José Raquel Mercado, dirigente sindical acusado de traição. Gustavo Petro ingressou na guerrilha aos 18 anos, em 1978, quando morava em Zipaquirá (cidade que fica ao norte de Bogotá) e cursava economia na universidade. "A ideia de ingressar no M-19 me assustou. Não era um assunto qualquer. Era entrar em uma luta armada", conta o político colombiano na autobiografia Uma vida, muitas vidas. "Tudo aconteceu muito rápido. Passamos de conversas em cafés e discussões abstratas para sermos seduzidos não apenas pela ideia de que era hora de pegarmos em armas, mas também pela noção de que a organização que deveríamos pertencer era o M-19". Sobre o motivo de sua integração na guerrilha, ele mencionou em várias ocasiões a desigualdade social na Colômbia, à qual se somaram as ideias à esquerda que eram muito populares entre os jovens da América Latina e do mundo, embora elas não fossem as mais extremadas no grupo. "Tínhamos uma concepção completamente diferente da do Exército de Libertação Nacional (ELN), das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), do Partido Comunista ou dos vários grupos da esquerda universitária, que dialogavam com modelos como o soviético, o cubano ou o chinês, enquanto pensávamos em nosso próprio projeto nacionalista e democrático", escreve. Aos 21 anos, Petro combinou a militância clandestina na guerrilha com o cargo oficial de vereador em Zipaquirá. Petro, que naqueles anos era membro das bases da organização, reconhece que recebeu treinamento militar e empunhava um fuzil, embora assegure que nunca participou ativamente de ações armadas, algo que alguns críticos duvidam. Em vez disso, ele afirma ter participado de tarefas de distribuição de propaganda ideológica e de outras iniciativas pacíficas, como a entrega de alimentos em comunidades carentes. "Havia pessoas que se dedicavam à atividade política, fazendo trabalho educacional. Essas eram as tarefas que Petro e outros quadros desempenhavam", revela Darío Villamizar, analista político, escritor e ex-militante do M-19, à BBC News Mundo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No final da década de 1970, o M-19 realizou vários sequestros e roubos — entre eles, uma operação numa das bases mais importantes do exército colombiano, de onde retiraram mais de 5 mil armas. Os anos 1980, porém, foram o período de maior atividade criminosa do grupo, com ataques armados e assassinatos. Em fevereiro de 1980, o M-19 atacou e fez reféns na Embaixada da República Dominicana, onde acontecia um coquetel com diplomatas de vários países. Após quase dois meses de negociações, o evento terminou sem derramamento de sangue. Vários de seus protagonistas foram se refugiar em Cuba, que naqueles anos acolheu guerrilheiros latino-americanos, para quem ofereceu treinamento militar. Em meio a uma espiral de violência na sociedade colombiana, o M-19 também realizou um confronto aberto com o cartel de Medellín, comandado por Pablo Escobar. "Foi o resultado da atividade armada do M-19 em Medellín e parte do conflito armado", diz Navarro Wolff. Tanto o cartel de Medellín quanto as forças de segurança colombianas infligiram pesadas baixas ao grupo. Mas a ação que marcaria o M-19 para sempre foi o cerco ao Palácio da Justiça, em Bogotá, em novembro de 1985. A operação resultou em mais de 100 mortes e desaparecimentos, incluindo 11 magistrados da Suprema Corte do país, após uma sangrenta batalha entre a guerrilha e o exército. A Comissão da Verdade, criada para esclarecer os acontecimentos do conflito armado interno na Colômbia, investigou o episódio e declarou responsáveis pelo massacre ​​tanto o M-19, quanto o presidente Belisario Betancur e o Exército Nacional Colombiano, cuja ação foi considerada desproporcional. Até hoje, há incógnitas sobre o ocorrido, uma vez que o cerco ao palácio foi combinado com o cartel de Medellín, que tinha o objetivo de eliminar documentos incriminatórios, de acordo com a versão contada por ex-membros do cartel. Membros da guerrilha negam essa informação. Há também suspeitas de um suposto conluio com os militares, que sabiam de antemão do plano do M-19. Petro, que seus detratores ligaram à tomada do Palácio da Justiça durante a campanha de 2022, estava preso quando o fato ocorreu. Ele foi capturado pelo exército colombiano em outubro de 1985 e acusado de posse ilegal de armas. Petro afirma que os militares o espancaram várias vezes e que precisou ficar 18 meses na prisão, até ser liberado em fevereiro de 1987. "Isso me deu mais ânimo de que o país precisa ser modificado. Saí de lá [da prisão] com 27 anos. Já não me chamavam de Gustavo, Francisco ou Petro. Me chamavam de Aureliano", declarou em entrevista recente. Seu pseudônimo no movimento clandestino, Aureliano, era uma homenagem ao Coronel Aureliano Buendía, personagem do romance Cem Anos de Solidão, do também colombiano Gabriel García Márquez, que Petro tanto admirava por ser "o coronel de mil batalhas perdidas". Na segunda metade dos anos 1980, Petro participou das negociações de paz do M-19 com o governo, que não surtiram resultados até o final daquela década. Em 1990, após um diálogo que durou cerca de 14 meses, o grupo e o governo colombiano assinaram um acordo de paz, o primeiro entre um Estado e uma guerrilha na América Latina. Os dez pontos do acordo incluíam, entre outras coisas, a renúncia das armas pelo M-19 e a incorporação do grupo à vida política do país sob o nome Alianza Democrática M-19 (AD M-19). Gustavo Petro foi um dos cofundadores do partido. Nas eleições de 1990, marcadas por uma sangrenta campanha na qual o próprio líder da ex-guerrilha, Carlos Pizarro, foi assassinado, o AD M-19 obteve 12,48% dos votos. O candidato do partido estreante era Antonio Navarro Wolff, que acabou derrotado por César Gaviria. A maior conquista do partido veio meses depois. Nas eleições que definiram a Assembleia Nacional Constituinte de 1991, o AD M-19 conquistou 19 cadeiras, apenas seis a menos do que o Partido Liberal, que estava no poder. "O AD M-19 apresentou um projeto de Constituição completo e eu diria que 70% das propostas foram incluídas no texto aprovado", calcula Navarro Wolff, um representantes do grupo que trabalhou no texto da constituição colombiana, em vigor até hoje. Petro chegou à Câmara dos Deputados da Colômbia em 1991 como representante do Departamento (Estado) de Cundinamarca. As eleições de 1994 e 1998 deixaram o AD 19-M sem representantes eleitos. O partido foi dissolvido em 2003, embora vários de seus antigos membros tenham exercido cargos eletivos por outros partidos. Petro consolidou uma carreira política entre as décadas de 1990 e 2000, quando foi eleito senador em 2006 e prefeito de Bogotá em 2012, cargo que ocupou até 2015. Desde então, ele apresentou-se como candidato à presidência duas vezes, mas não obteve sucesso — pelo menos até as eleições de 2022. Na semana passada, em uma das últimas viagens de campanha, um morador de Caldas (cidade que fica entre Bogotá e Medellín) propôs a Petro a possibilidade de reviver o M-19. "Não sei se reviver, porque é como os Beatles. O espírito continua ali, mas reviver agora é algo problemático, porque não é mais a mesma coisa. É outra história, outra vida", respondeu.
2022-06-21
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61869354
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Boric, Maduro, López Obrador: como Gustavo Petro se compara a outros líderes da esquerda latino-americana
A notícia percorreu o mundo: Gustavo Petro é o primeiro presidente de esquerda eleito na história da Colômbia. Mas qual tipo de esquerda, exatamente, ele representa? No segundo turno das eleições presidenciais de domingo (19/06), Petro recebeu 50,44% dos votos contra 47,31% do seu adversário, o magnata da construção Rodolfo Hernández, depois de mais de 99,99% dos votos apurados. Petro é o caso mais recente de um político de esquerda latino-americano que chega ao poder em uma onda de descontentamento social com a classe política, a desigualdade e a estagnação econômica. De 2020 para cá, a lista inclui também Luis Arce, na Bolívia; Pedro Castillo, no Peru; Xiomara Castro, em Honduras; e Gabriel Boric, no Chile. Estes e outros mandatários da região felicitaram o novo presidente eleito da Colômbia. O presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador, também de esquerda, declarou em um fio de tuítes que "o triunfo de Gustavo Petro é histórico. Os conservadores da Colômbia sempre foram obstinados e rígidos". Fim do Matérias recomendadas Mas existem grandes diferenças entre esses governantes. E as comparações entre Petro e outros líderes de esquerda da região surgiram desde que ele foi eleito prefeito de Bogotá, em 2011. Ao chegar à Presidência do terceiro país mais populoso da América Latina, o posicionamento de Petro no espectro político torna-se ainda mais importante. Petro militou na guerrilha urbana e nacionalista do Movimento 19 de Abril (M-19) nas décadas de 1970 e 1980 - um passado que fez com que muitos oponentes tentassem associá-lo à esquerda radical durante a campanha. Mas o M-19 foi desmobilizado em 1990 e Petro se apresentou nesta sua terceira tentativa de chegar à Presidência como um político moderado, depois de ter sido eleito senador. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "A moderação de algumas propostas levou-o a ser visto por um setor da população mais como um candidato de centro-esquerda que de esquerda radical", afirmou à BBC News Mundo - o serviço em espanhol da BBC - Patricia Muñoz Yi, diretora de pós-graduação em ciência política da Universidade Javeriana de Bogotá, na Colômbia. De fato, Petro negou que a Colômbia precise adotar o socialismo e que ele pretende recorrer a desapropriações ou reformas da Constituição para permitir sua reeleição, como fizeram outros presidentes latino-americanos de esquerda. Mas ele propôs mudar o sistema econômico do país, reduzir a extração de recursos naturais, realizar uma reforma agrária para eliminar os latifúndios improdutivos e oferecer emprego no Estado às pessoas que não encontrarem trabalho no setor privado. "Vamos desenvolver o capitalismo na Colômbia", afirmou Petro no seu discurso da vitória no domingo, 19 de junho. "Não porque o adoremos, mas porque precisamos primeiro superar a pré-modernidade na Colômbia, o feudalismo." Embora tenha demonstrado simpatia no passado pelo ex-presidente venezuelano Hugo Chávez (a quem muitos de seus adversários também tentaram associá-lo), Petro distanciou-se do sucessor de Chávez, Nicolás Maduro. "Se você me perguntar se Chávez foi um ditador, eu responderei que não. Se você me perguntar se Maduro hoje é um ditador, responderei que sim", afirmou Petro à revista Newsweek em 2018. O presidente eleito da Colômbia indicou como referências na esquerda o ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva e o equatoriano Rafael Correa. Mas outros veem semelhanças entre Petro e o atual mandatário mexicano, Andrés Manuel López Obrador - ou AMLO, como é conhecido. Petro "vem de uma tradição da esquerda nacionalista e anti-imperialista, talvez um pouco parecida com aquela que inspirou López Obrador no México", segundo Yann Basset, professor de ciências políticas da Universidade del Rosario em Bogotá. Basset acrescenta que Petro tem "um estilo agressivo, com discursos às vezes populistas, o que gera muita resistência e temores de que seu governo tenha rasgos um tanto autoritários, novamente no estilo do que vem se verificando no México". Hoje com 68 anos de idade, López Obrador foi eleito em 2018 como o primeiro presidente de esquerda do México em sete décadas. E, neste mês, AMLO causou polêmica ao apoiar Petro, afirmando que o candidato enfrentava uma "guerra suja" como aconteceu com ele próprio no México - algo que a chancelaria colombiana chamou de "ingerência" nos assuntos do país. Existem também semelhanças entre a forma em que Petro chega à presidência da Colômbia e Gabriel Boric no Chile, em dezembro de 2021. Analistas indicam que ambos ganharam suas eleições depois de agitações sociais que revelaram o esgotamento com o establishment e com o modelo econômico dos seus países. Tanto Petro como Boric prometeram reformas estruturais para garantir a paz, com o Estado no centro dos seus projetos sociais, econômicos e de cuidado com o meio ambiente. Ao escolher Francia Márquez como vice-presidente - a primeira mulher negra, feminista e ambientalista a ocupar o cargo -, Petro demonstrou sua vontade de abordar temas de gênero, raça e clima, defendidos por uma esquerda mais jovem, como a representada por Boric, segundo Yann Basset. Ele acrescenta que tudo isso ocorreu apesar das tensões enfrentadas pela campanha de Petro por setores feministas, que o acusaram de rodear-se de políticos da "velha guarda", com visão machista. Já nos temas sociais, o presidente eleito da Colômbia também defendeu o acesso das mulheres ao aborto e prometeu garantir os direitos à diversidade de orientação sexual. Tudo isso, aliado à sua proposta de eliminar o enfoque proibitivo das drogas, torna Gustavo Petro mais próximo de figuras como o ex-presidente do Uruguai José Mujica - outro ex-guerrilheiro - que de outros políticos de esquerda mais clássicos da região. Mas é claro que o programa eleitoral e a forma de governo são coisas diferentes, ainda mais em um país polarizado e com claras disputas de poder. O especialista em Colômbia do Escritório de Washington para Assuntos Latino-Americanos (WOLA, na sigla em inglês) Adam Isaacson acredita que ainda não está certo o tipo de governante de esquerda que Petro representará depois que assumir a presidência, em agosto. Sua dúvida é "a personalidade de Petro", explica ele. "Se ele irá resistir aos controles sobre o seu poder ou se será mais como Boric, Mujica ou Lula, liberando-se um pouco do seu apego ao comando."
2022-06-20
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61874143
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Quem é Gustavo Petro, o 1º presidente de esquerda eleito na Colômbia
Gustavo Petro, presidente eleito da Colômbia, ainda era congressista quando foi a um encontro em 2000 com Carlos Castaño, o temido chefe dos paramilitares, a fim de tentar convencê-lo a não ser morto pelo grupo. "Eu tinha ouvido que deveria falar firme com ele, porque ele iria encolher diante de alguém com fortes convicções", escreveu Petro em seu livro de memórias. Petro, que havia deixado a guerrilha dez anos antes e exercia influência na Advocacia-Geral, fazia diversas denúncias contra os paramilitares, como são chamados os grupos armados ilegais que combatiam as guerrilhas. Essa atuação havia lhe garantido uma sentença de morte. "Eu pedi a ele com firmeza", conta Petro. "E depois de alguns minutos ele estava balbuciando e gaguejando." E não apenas os paramilitares não o mataram como, segundo Petro, se convenceram dos benefícios de fazerem um acordo de paz com o Estado, algo que ocorreria formalmente cinco anos depois. Esse episódio, segundo José Cuesta, amigo de longa data de Petro e companheiro de guerrilha, ilustra bem quem é o presidente eleito para governar a Colômbia de 2022 a 2026. "Isso porque ele acredita que a única forma de resolver problemas é pegar o touro pelos chifres." Fim do Matérias recomendadas Petro, 62, abalou a história política da Colômbia ao se tornar o primeiro líder de esquerda a chegar ao poder, com críticas ao modelo econômico vigente e pouca ligação com a classe política tradicional. O senador e ex-prefeito de Bogotá (segundo cargo político mais relevante do país) venceu Rodolfo Hernández por 50,44% a 47,31%, somando um patamar recorde de 11,2 milhões de votos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em sua campanha, Petro prometeu tirar do papel profundas reformas sociais, econômicas e políticas que levariam a Colômbia, um país violento e desigual, à paz e igualdade. "Pela trilha da vida e do amor", como ele costuma dizer. Rebelde, estudioso e introvertido, o presidente eleito passou 12 anos na guerrilha e construiu uma trajetória política de quatro décadas com posicionamentos corajosos em cargos como vereador, prefeito e senador. Muitos temem que sua personalidade com traços despóticos e contenciosos — ele próprio admite ter um perfil autoritário — vai gerar conflitos que levarão ao caos, e tornarão o país ingovernável. Outros afirmam que uma suposta proximidade ideológica com o líder venezuelano Hugo Chávez (a qual ele nega) vai levar a uma crise econômica semelhante à da Venezuela. Encontrar-se com Castaño foi quase um suicídio, mas Petro transformou o episódio numa oportunidade. "Naquele dia, eu senti que, para ele, eu poderia ser útil no futuro", lembra ele, em referência à desmobilização que os paramilitares firmaram poucos anos depois. Esse senso de oportunidade é o que Petro revelou em sua campanha por mudança, em meio a levantes populares e crises econômicas. E fez isso ao lado de uma liderança popular, feminista, negra e também de esquerda: Fracia Márquez, agora eleita vice-presidente. "Onde os outros veem riscos, Petro vê oportunidades. Ele é, no bom sentido do termo, um oportunista." Gustavo Petro Urrego nasceu em uma família de classe média baixa em Ciénaga de Oro, uma pequena cidade da savana caribenha, terra de gado e algodão. Seu pai foi professor e sua mãe, membro de um partido nacionalista. O mais velho entre três irmãos, Petro era descrito como um garoto jovem que se vestia com cores escuras e mergulhava nos livros. Ele é da costa colombiana, mas suas características são mais típicas na população da parte andina do país: sério, introvertido, desconfiado. Petro atribui esse paradoxo cultural aos seus aprendizados políticos. "Ele disse que a 'amarga e inflexível' esquerda colombiana precisava de 'um banho de Caribe' e de uma sacudida para poder entender sua própria sociedade", relata um perfil dele publicado pelo site noticioso colombiano La Silla Vacía. Quando ainda era criança, ele se mudou com seus pais para Zipaquirá, uma cidade ao norte da capital colombiana, Bogotá. Petro estudou numa escola pública dirigida por padres e frequentada também por Gabriel García Márquez, uma de suas maiores influências. Aliás, quando atuava como insurgente, seu codinome era Aureliano, em homenagem ao coronel que estrela a obra-prima de Márquez, Cem Anos de Solidão. Petro costuma citar o romance em seus discursos. Adolescente curioso, Petro frequentou reuniões sindicais e, aos 17 anos, aderiu a um grupo urbano, nacionalista e social democrata de guerrilheiros: o Movimento 19 de Abril (M19). Sobre o motivo de sua integração na guerrilha, ele mencionou em várias ocasiões a desigualdade social na Colômbia, à qual se somaram as ideias à esquerda que eram muito populares entre os jovens da América Latina e do mundo, embora elas não fossem as mais extremadas no grupo. "Tínhamos uma concepção completamente diferente da do Exército de Libertação Nacional (ELN), das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), do Partido Comunista ou dos vários grupos da esquerda universitária, que dialogavam com modelos como o soviético, o cubano ou o chinês, enquanto pensávamos em nosso próprio projeto nacionalista e democrático", escreveu Petro. Petro, que naqueles anos era membro das bases da organização, reconhece que recebeu treinamento militar e empunhava um fuzil, embora assegure que nunca participou ativamente de ações armadas, algo que alguns críticos duvidam. Em vez disso, ele afirma ter participado de tarefas de distribuição de propaganda ideológica e de outras iniciativas pacíficas, como a entrega de alimentos em comunidades carentes. "Havia pessoas que se dedicavam à atividade política, fazendo trabalho educacional. Essas eram as tarefas que Petro e outros quadros desempenhavam", conta Darío Villamizar, analista político, escritor e ex-militante do M-19, à BBC News Mundo. Petro viajava frequentemente para Bogotá, onde tinha uma bolsa de estudos numa universidade privada, a Externado, para estudar economia. Em 1985, quando o M19 se preparava para a invasão do Palácio de Justiça, que deixaria pelo menos 101 mortos, Petro foi preso sob acusação de posse ilegal de armas e levado para um acampamento militar, onde ele diz ter sido torturado. Dois anos depois, ele foi solto e continuou sua militância em várias regiões do país, até ser preso novamente. Só que em 1990 o M19 se desmobilizou. Naquela época, Petro era um representante eleito na Casa de Representantes de Cundinamarca, onde Zipaquirá fica localizada. Mas ele foi ameaçado de morte, e aos 34 anos deixou o país pela primeira vez. Como forma de proteger um ex-guerrilheiro que havia se afastado da luta, o governo colombiano lhe concedeu um cargo de baixo escalão na embaixada na Bélgica. Os quatro anos de Petro na Europa foram fundamentais para a construção de seu perfil político: conheceu o mundo mais desenvolvido, os partidos social-democratas e a "sociedade do conhecimento" que diz querer para a Colômbia. No continente europeu ele também estudou o meio ambiente, sua maior preocupação após a justiça social. Em suas memórias, ressalta que não dirige um carro há 30 anos por causa do impacto climático. Petro não esconde a alta estima que tem por si mesmo. "Os ventos do povo me levaram de um lugar para outro, fizeram de mim um gigante", escreve em seu livro. Por essas e outras ele é chamado de "vaidoso", além de "alpinista social" e "messiânico" porque "acredita ser o salvador do povo". A esquerda critica características como arrogância intelectual, despotismo gerencial, teimosia conceitual e discurso polarizador. A direita lamenta sua visão econômica do país, sua proximidade com personagens como Chávez e seu passado guerrilheiro. Em 1998, Petro voltou à Colômbia para ser eleito, novamente, como representante da Cundinamarca. "Foi assim que a carreira de alguém que é considerado um dos mais brilhantes congressistas da Colômbia realmente decolou", escreve o site La Silla Vacía. Petro e sua equipe parlamentar denunciaram alguns dos escândalos mais graves durante o governo de Álvaro Uribe (2002-2010), incluindo a ligação entre políticos e paramilitares e a violação dos direitos humanos pelas Forças armadas. "Os debates se tornaram o trabalho da minha vida", diz Petro em seu livro, onde fala do "regime mafioso" que governa a Colômbia. Em 2011, ele venceu as eleições para prefeito de Bogotá, o segundo cargo mais importante do país e plataforma para muitos candidatos à Presidência. Seu período como prefeito é usado como argumento por muitos adversários que tentam desacreditá-lo. Petro brigou com a mídia, com os órgãos reguladores, com a Presidência, com vendedores ambulantes e até com torcedores de futebol. Mas sua maior disputa foi com os empresários que administravam o triturador de lixo da cidade, já que Petro queria tirar o negócio deles e torná-lo público. A reforma resultou em dias sem coleta de lixo em uma grande cidade e em sua queda. Petro disse ter sido vítima de um golpe de Estado e saiu às ruas com um megafone na mão. E graças a uma decisão favorável da Corte Interamericana de Direitos Humanos, conseguiu sua volta ao cargo 35 dias depois. "Sua estratégia foi virar a situação a seu favor", diz La Silla Vacía. "Ele começou a forjar uma imagem de candidato perseguido por um sistema que ele assustou com suas promessas de derrubá-lo." Seu índice de aprovação na capital, de qualquer forma, é superior a 60%; venceu lá em 2018, quando acabou derrotado na eleição presidencial para Iván Duque, e venceu agora novamente. Seu tempo como prefeito teve conquistas: os homicídios e a pobreza diminuíram, milhões de pessoas passaram a ter acesso à água e os programas habitacionais e de assistência médica foram fortalecidos. Ele se orgulha de ter criado planos para viciados em drogas, modelos de expansão de cidades com foco ambiental, escolas e moradias para os pobres. Mas muitos lembram seu tempo como prefeito como um caos político que ele aproveitou para lançar seu perfil nacional. Parte da população afirma que o trânsito e o desenvolvimento urbano da cidade só pioraram, além do fato de que muitas de suas promessas, como construir escolas e creches. não foram cumpridas. Petro deixou a prefeitura com dezenas de processos e multas que, segundo ele, quase o levaram à falência. "Ele é um cara que inspira e atrai as pessoas porque é corajoso e quase suicida em suas iniciativas", diz Carlos Vicente de Roux, um político próximo a ele durante sua gestão como prefeito. "Mas isso afeta sua capacidade de gerenciar, porque ele está mais preocupado em romper sistemas e convenções e fazer as coisas de forma diferente do que com a execução em si de um projeto." De Roux afirma ainda que Petro é "um megalomaníaco, porque sente que tudo em que toca, seja um criminoso condenado ou uma má ideia, é redimido apenas pelo fato de estar envolvido". Desde sua saída da prefeitura, em 2015, Petro tem se dedicado a se tornar presidente. Foi candidato pela primeira vez em 2010, mas em 2018 e 2022 consolidou sua posição como a antítese daqueles que governam o país há décadas, ocupado o cargo de senador — destinado a quem fica em segundo lugar na disputa presidencial colombiana. Em 2018, a Colômbia acabava de sair de um complexo processo de paz com os insurgentes de esquerda das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) que dividiram a sociedade e reviveram a indignação contra os guerrilheiros. Com o agravamento da crise humanitária na vizinha Venezuela, que levou 2 milhões pessoas a migrarem para a Colômbia, a ideia de ter um ex-guerrilheiro amigo de Hugo Chávez como presidente não conquistou seguidores suficientes naquele ano. Iván Duque então venceu Petro por uma diferença de dez pontos percentuais no segundo turno de 2018. Mas nos últimos quatro anos o país mudou, e o Petro também. A Colômbia testemunhou recentemente convulsões sociais que revelaram uma profunda necessidade de mudança, e a pandemia exacerbou a pobreza e a desigualdade do país. Ao longo desse tempo, Petro dedicou-se a construir pontes, aliou-se a políticos tradicionais, jurou que não ia confiscar bens, prometeu não aumentar a inflação nem o déficit público (quando se gasta mais do que se arrecada), além de dizer que no seu governo a oposição não seria perseguida. Dessa forma, procurou distanciar-se da imagem de um esquerdista que poderia transformar a Colômbia na próxima Venezuela. Em seus discursos e posições, o ex-guerrilheiro famoso pelo confronto tornou-se mais calmo, conciliador e estadista. Sua ideia de um Pacto Histórico, nome da coalizão que o levou ao poder, mantém exatamente o tom de seu encontro com Castaño: criar um consenso entre os diferentes partidos para tentar alcançar a paz que todos sonham. Algumas de suas propostas podem mexer com a ordem neoliberal tradicional do país, como uma reforma tributária que muitos especialistas consideram essencial de uma forma ou de outra; ou a transição para o fim do extrativismo de petróleo, principal fonte de arrecadação do Estado por meio das exportações. Mas o que vem a seguir, com todo o poder do sistema contra ele e uma personalidade dada ao confronto, será um desafio ainda maior. Análise de Daniel Pardo, correspondente da BBC Mundo (serviço em espanhol da BBC) Gustavo Petro rompe com a História da Colômbia ao se tornar o primeiro presidente da esquerda pura e dura. O projeto de paz e reconciliação superou, desta vez, o de pragmatismo e crescimento econômico. Foram necessários 40 anos de carreira política. Quatro razões pelas quais ele ganhou: Primeiro, sua trajetória. Começou como guerrilheiro. Depois, como deputado, denunciou o pior da corrupção e das violações aos direitos humanos. Em seguida, usou a prefeitura de Bogotá como plataforma para a presidência. E em sua terceira candidatura, ganhou. Em segundo lugar, a conjuntura. Um processo de paz que abriu janelas para um futuro diferente, duas convulsões sociais, uma pandemia que aprofundou a pobreza e um governo impopular de Iván Duque geraram o momento certo para uma presidência do Petro. Terceiro, a crise da classe política. Como nunca antes, os colombianos concordaram em tirar "os mesmos de sempre" do poder, atualmente nas mãos do impopular Iván Duque. Com Álvaro Uribe legalmente questionado, a centro-direita ficou dividida e desacreditada. E quarto, o país de 60 anos de guerra elegeu um ex-guerrilheiro. E isso se deve a uma mudança geracional que deixou para trás a dicotomia da Guerra Fria e passou a falar de desigualdade, meio ambiente e direitos sociais. Petro soube representar essa nova Colômbia.
2022-06-20
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Os desafios de Gustavo Petro, primeiro presidente de esquerda eleito na Colômbia
A esquerda e centro-esquerda se uniram, pela primeira vez, para que Petro, que era candidato à Presidência pela terceira vez, chegasse ao palácio presidencial. Segundo analistas, o ineditismo da derrota da direita no país marca uma guinada política na Colômbia, iniciada com os protestos de 2019 e 2020. O outro candidato, o empresário do setor da construção Rodolfo Hernández, da Liga de Governantes Anticorrupção, recebeu 47,3% dos votos. No seu discurso da vitória, o presidente eleito ratificou sua proposta de realizar um acordo nacional com as diferentes linhas políticas do país, incluindo a extrema direita. Fim do Matérias recomendadas Petro convidou os eleitores de Hernández para que o visitem na Presidência, chamada de 'Casa de Nariño' (leia-se Casa de Narinho). "Fazer a paz na Colômbia significa que os mais de dez milhões de eleitores de Hernández são benvindos. Não vamos trabalhar destruindo o opositor. Todos serão 'benvindos' para dialogar no palácio presidencial", disse Petro. Seus eleitores reagiram gritando: "Não à guerra". Ele entende que somente através "do diálogo, do amor e sem ódio e vingança" será possível realizar as reformas necessárias para que o país seja mais igualitário e inclua também os indígenas, os afrodescendentes (como sua vice-presidente, Francia Márquez) e os que foram e são vítimas da violência. O professor colombiano de políticas públicas e internacionais da Universidade de Columbia, dos Estados Unidos, José Antonio Ocampo, acredita que este "acordo nacional" é decisivo. "Esperamos e devemos apoiar o acordo nacional (que Petro propôs). O acordo é essencial para que sejam superadas as profundas divisões sociais e regionais dos últimos anos e deste processo eleitoral colombiano". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Petro pretende implementar a reforma agrária, desacelerar a produção de petróleo e de carvão e ampliar as energias limpas. Suas ideias contam com respaldo dos seus simpatizantes, mas também com a rejeição do setor empresarial (e petroleiro) que associa suas iniciativas "à cartilha da esquerda dos anos setenta", como disse um deles. A Colômbia não é, como a sua vizinha Venezuela, um país petroleiro, como observou o professor de economia da universidade Javeriana, de Bogotá, Jorge Restrepo, mas é, disse o analista, "dependente" dos recursos financeiros gerados pela produção do combustível fóssil. Este promete ser um dos grandes debates da Colômbia na era Petro-Francia e que já está sendo acompanhado com atenção pelos investidores e mercados financeiros. A eles, o presidente também tem dito que as mudanças serão feitas através do diálogo e "não expropriará empresas" e "respeitará a Constituição". Petro, porém, tem dito que não é de esquerda, mas que sua política é "política da vida". Alguns setores o definem como sendo de centro-esquerda ou "socialdemocrata do século 21". Ele diz que é capitalista, mas com a consciência da importância dos cuidados com o meio ambiente e os efeitos do clima. Para críticos e opositores, o desafio de Petro, de 62 anos, será mostrar que sua vida de guerrilheiro ficou há muito tempo para trás, quando era jovem nos anos 1980. Dois dias antes do segundo turno da eleição presidencial, a tradicional revista Semana, de Bogotá, publicou na sua capa: "Ex-guerrilheiro ou engenheiro?", em referência as opções do eleitorado entre Petro e Hernández, que é engenheiro civil. O presidente eleito reagiu à capa, dizendo: "quero lembrar que sou economista". Guerrilheiro do grupo M-19, quando tinha pouco mais de vinte anos, ele conta que, na época, foi preso e torturado. Era quando usava o pseudônimo de "Aureliano", inspirado em um dos personagens do livro Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez. Em 2016, Petro apoiou o acordo de paz que levou grande parte da guerrilha a entregar as armas, após 50 anos de conflito. Mas, apesar de sua trajetória política, de ter sido prefeito de Bogotá e senador e de seus diplomas em economia com especializações em meio ambiente e administração de empresas, seus opositores e críticos continuam ressaltando aquele seu período na guerrilha. Um dos maiores desafios do novo presidente será a negociação que terá de conduzir no Congresso Nacional para realizar as mudanças que planeja. A expectativa do seu eleitorado é grande, observam analistas. Outro será o de lidar com a criminalidade e a violência policial. No seu discurso de vitória, uma mãe apareceu ao seu lado, no palanque, carregando a foto de um filho jovem morto. A Colômbia, como o Brasil, foi um porto de intenso desembarque de pessoas escravizadas. Petro disse que a população negra (cerca de 10% do país), os indígenas (várias comunidades) e os mais pobres terão atenção especial em sua gestão. Em seu discurso de vitória, a vice-presidente eleita Francia Márquez, primeira afrodescendente a chegar ao posto, enfatizou o lema de inclusão do novo governo e disse que a Colômbia, depois de 214 anos, terá um governo voltado aos "invisíveis". A atual taxa de desemprego do país é de 12%. A conjuntura econômica e social inclui a preocupação crescente dos colombianos com a inflação. Até abril do ano passado, a inflação anual era de 1,8%. Em abril deste ano, o índice foi de quase 10%. A alta de preços está entre as principais preocupações dos latino-americanos, após a pandemia do coronavírus e da invasão da Rússia na Ucrânia. Mas antes mesmo da pandemia, como ocorreu no Chile, no Equador e em outros países da região, a Colômbia viveu ondas de protestos que evidenciaram a insatisfação dos colombianos. Insatisfação que acabou refletida nas urnas, com a exclusão, do segundo turno da eleição, dos partidos tradicionais de direita e centro-direita que governaram o país durante décadas. Administrar esta herança econômica deixada pelo atual presidente Iván Duque, de direita, será outro dos grandes desafios de Petro. No âmbito internacional, a expectativa é de que Petro retome as relações diplomáticas da Colômbia com a Venezuela - os demais candidatos tinham prometido o mesmo. A Colômbia é um dos principais países de chegada de venezuelanos e os dois países têm, historicamente, um forte fluxo comercial. Na seara externa, Petro já disse que buscará uma relação diferente com os Estados Unidos, com quem a Colômbia tem acordo de livre comércio e há anos compartilha sua política de combate às drogas. Petro anunciou que também pretende incluir a questão do meio ambiente na agenda da relação com os Estados Unidos. Para ele, a Amazônia (também colombiana) é um assunto regional, assim como a necessidade de políticas conjuntas contra a mudança do clima. O presidente eleito da Colômbia acha que os colombianos devem enfatizar que são latino-americanos e aumentar a relação com seus vizinhos. Mas um analista ressaltou que na Colômbia as classes mais favorecidas sempre estiveram mais ligadas aos Estados Unidos - e que esta é uma relação que não deveria ser alterada. Outro desafio para Petro, Francia e sua equipe.
2022-06-20
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61842345
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Colômbia: acadêmica e ex-empregada doméstica negras disputam vice-presidência
Duas mulheres negras disputam a vice-presidência da Colômbia no segundo turno da eleição presidencial, que acontece neste domingo (19/06). De um lado, está a ex-empregada doméstica, advogada feminista e ativista pelo meio ambiente e contra o racismo Francia Márquez, que integra a chapa do político de esquerda Gustavo Petro. De outro, a doutora em educação e ex-vice-reitora da Universidade Minuto de Dios (Minuto de Deus) Marelen Castillo, parte da coligação do empresário Rodolfo Hernández, um empresário e ex-prefeito que se apresenta como "outsider" da política e acabou surpreendendo na reta final do primeiro turno. Márquez e Castillo vêm de cidades da área do Pacífico colombiano, no departamento de Cauca, reduto histórico de afrocolombianos. Uma área conhecida tanto pelas belezas naturais e pelo turismo quanto pelos desafios dos tempos da guerrilha — entre eles a questão da pobreza e dos "desplazados", aqueles que se veem sem alternativa a não ser deixar suas casas e territórios diante da criminalidade. Fim do Matérias recomendadas Esta é a primeira vez que a disputa presidencial na Colômbia se dará entre um candidato da esquerda ou centro-esquerda e um candidato que se apresenta como "outsider" do sistema político. Os partidos tradicionais de direita e de centro-direita, que governaram o país por décadas, foram derrotados no primeiro turno, realizado no dia 29/05. Márquez foi escolhida como vice de Petro após receber ampla votação nas primárias partidárias realizadas pela coligação Pacto Histórico em março passado. Com 40 anos, ela é definida como uma "fenômeno eleitoral" por sua capacidade de aglutinar apoiadores, que cresceu após sua participação nos protestos nacionais realizados em 2019 e 2020. Dois anos atrás, ela escrevia em suas redes sociais querer ser presidente do país "para que nossas crianças possam andar sem medo de serem assassinadas". Entre suas bandeiras em defesa do meio ambiente, ressaltadas nesta campanha eleitoral, está a oposição ao fracking para a exploração de petróleo e gás, que vai ao encontro da proposta de Petro de desacelerar a exploração petrolífera no país — e que tem gerado críticas do setor empresarial colombiano. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Castillo era, como ela mesma se definiu, uma "perfeita desconhecida" do eleitorado colombiano até pouco tempo. Há apenas três meses, ingressou na chapa do ex-prefeito de Bucaramanga Rodolfo Hernández, que enfrentou dificuldades para nomear uma candidata a vice. O empresário do ramo da construção, à frente da coligação Liga dos Governantes Anticorrupção, é dono de frases definidas como machistas, entre elas a de que as mulheres deveriam ficar em casa cuidando dos filhos. Com 53 anos, Castillo é formada no México e nos Estados Unidos e devota da santa católica Virgem de Guadalupe. Passou a ganhar popularidade na reta final da campanha do segundo turno ao expor seu trabalho ligado à inclusão universitária de jovens de áreas pobres do país e ao defender a criação de oportunidades para as mulheres. "Eu aceitei a candidatura para poder ajudar tantas mulheres colombianas que não têm oportunidades. E porque acredito que a política e a educação têm o mesmo objetivo de fazer o bem à cidadania", declarou. A candidata disse que Hernández tem experiência como "empreendedor e empresário" e que sua participação em um eventual governo se daria principalmente na área da educação. O presidenciável já afirmou que, caso a chapa seja eleita, Castillo ocupará também o Ministério da Educação. Nos planos da possível futura vice estão aumentar o salário dos professores das escolas públicas e a realização de investimentos nas áreas de esportes e artes. Em seu currículo, enviado por sua assessoria de imprensa à reportagem, constam quatro diplomas universitários, incluindo doutorado em educação nos Estados Unidos, mestrado em administração de empresas no México, engenharia industrial e biologia e química na Colômbia. Para a cientista política Luciana Manfredi, da Universidade Icesi, de Cali, as declarações de Castillo atuam como uma espécie de "contenção" às polêmicas afirmações de Hernández. "Ele a escolheu para ser sua vice após várias tentativas que não deram certo. Ela é uma educadora preparada, mas tem uma trajetória muito diferente da de Francia, [que é] muito mais popular e com mais experiência no âmbito político", completa Em entrevistas, Castillo, mãe de dois filhos, contou ter crescido em uma família de classe média e miscigenada, com um pai branco e uma mãe negra, onde raça não era um assunto discutido. Marquéz, mãe solteira aos 16 anos, teve uma vida de dificuldades financeiras. Ainda na adolescência, aos 15 anos, iniciou o ativismo em defesa do meio ambiente e contra as empresas ilegais de mineração em Cauca, como mostram suas entrevistas daquela época disponíveis. Anos mais tarde, em 2018, ela recebeu por sua atuação nessa área o prêmio internacional Goldman, definido por especialistas como o "Nobel Verde". Márquez diz ter decidido estudar direito por conta de suas preocupações ambientais e por sua dedicação a enfatizar seus antepassados escravizados. Em sua página na internet, define-se como "parte da luta contra o racismo estrutural". Em um país "profundamente racista", como disse o professor de ciências políticas Alejo Vargas Velázquez, da Universidade Nacional da Colômbia, ela passou a ser conhecida e respeitada nacionalmente por sua liderança e defesa também do meio ambiente. Apesar de pelo menos 10% da população do país ser negra, não se registra esta presença nas altas esferas do poder, como Márquez costuma frisar. Esta campanha eleitoral, contudo, marcou o recorde de cinco candidatos afrocolombianos à vice-presidência na primeira etapa da disputa eleitoral, o que foi definido pela professora de sociologia e diretora do Centro de Estudos Afrodiaspóricos da Universidade Icesi, Aurora Vergara-Figueroa, como "algo inédito e que ocorre quando há cerca de 170 anos os afrodescendentes estavam em condições de escravidão na Colômbia". O analista Jorge Restrepo, da Universidade Javeriana, de Bogotá, observa que as semelhanças entre as duas vices parece limitada ao fato de serem originárias da região do Pacífico colombiano. "Estamos começando a conhecer a vice de Hernández, enquanto Márquez já é uma política de expressão nacional e que já tinha influência antes mesmo de ser vice de Petro". Márquez foi presidente do Comitê Nacional de Paz e Reconciliação e Convivência do Conselho Nacional de Paz, quando apoiou e "impulsou", como disse, a implementação do acordo de paz entre o governo e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), que depuseram as armas após 50 anos de conflitos. Durante a campanha eleitoral, como publicou o El Espectador, de Bogotá, ela foi alvo de "fake news" que apontaram supostos vínculos seu com o grupo guerrilheiro ELN. Neste ano, ela entrou com uma ação na Justiça contra um senador que teria sugerido este vínculo, mas o Judiciário entendeu que o processo iniciado não tinha sustentação. Seu currículo como ativista e personalidade nacional inclui o ano de 2014, quando ela liderou o que ficou conhecido como "a marcha dos turbantes" contra a mineração na comunidade negra e sua terra natal de La Toma, no município de Suárez, em Cauca. A marcha reuniu dezenas de mulheres afrocolombianas que caminharam mais de 500 quilômetros durante 22 dias até a capital do país para denunciar a exploração ilegal de minerais. Várias vezes ameaçada de morte por suas denúncias contra a mineração ilegal e a contaminação de rios, como denunciou em diferentes ocasiões, Márquez subiu ao palanque da campanha eleitoral acompanhada por seguranças. Em um dos comícios, em Bogotá, quando era comemorado o dia da "afrocolombianidade", seus assessores decidiram tirá-la do palco às pressas quando um laser verde foi apontado contra a candidata. Para analistas, enquanto o desafio de Castillo é passar a ser mais conhecida entre os colombianos, o de Márquez é contar com apoio dos que não compartilham de seu ativismo em defesa do meio ambiente.
2022-06-19
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Colombianos vão ao segundo turno para eleger 'esquerdista' ou 'outsider'
Os colombianos que irão às urnas neste domingo (19/06) têm apenas uma certeza: seja qual for o resultado, o país iniciará uma etapa inédita. Esta é a primeira vez que a disputa será entre um candidato da esquerda ou centro-esquerda e um candidato que se apresenta como outsider do sistema político. Os partidos tradicionais de direita ou de centro-direita, que governaram a Colômbia por décadas, foram derrotados no primeiro turno, realizado no dia 29/05. Esta eleição tem outras novidades: a união da esquerda e a saída do conflito armado das prioridades dos debates colombianos. O ex-guerrilheiro e senador Gustavo Petro, da coalizão Pacto Histórico, que é classificado por especialistas como de esquerda ou de centro-esquerda, e o empresário do setor da construção e ex-prefeito Rodolfo Hernández, da Liga de Governantes Anticorrupção, tido por muitos analistas como populista e uma espécie de "Trump colombiano", estariam tecnicamente empatados, de acordo com as pesquisas de opinião. A perspectiva de uma suposta contagem "voto a voto" tem levado a imprensa colombiana a afirmar que esta será uma "eleição de infarto" ("infartante"). Fim do Matérias recomendadas Nos dois casos, as propostas são consideradas disruptivas e refletem o cansaço dos colombianos com os problemas que enfrentam, como o desemprego (em torno de 12%), inflação alta (9% anual) e a crônica desigualdade social, segundo analistas ouvidos pela BBC News Brasil. Tanto Petro como Hernández dizem representar mudanças contra o sistema atual e a esperança de uma guinada na vida dos colombianos — que, em muitos casos, encaram problemas similares aos de outros latino-americanos e agravados durante a pandemia do novo coronavírus e da guerra na Ucrânia, como o aumento nos preços dos alimentos. "Esta é uma eleição que reflete o sentimento de esgotamento dos colombianos com os problemas sociais que estão enfrentando. É a primeira vez desde os anos 1980 que os partidos tradicionais (Liberal e Conservador) não estão na disputa", disse a cientista política e especialista em negócios internacionais Luciana Manfredi, da Universidade ICESI, de Cali, e da UNAM, do México. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ela observa que, diante de um eleitorado fragmentado, ao mesmo tempo em que geram expectativas de renovação, os dois candidatos também provocam dúvidas em relação à estabilidade econômica (caso de Petro) e à estabilidade democrática (caso de Hernández). Os mais céticos questionam como Petro ou Hernández farão, na prática, para atender às demandas acumuladas dos colombianos. "Num contexto de baixo crescimento econômico, inflação e desemprego altos, surgiram o 'voto castigo' (contra a classe política tradicional) e o 'voto protesto' (contra as dificuldades sociais). Nas eleições anteriores, essas problemáticas apareciam num segundo plano, com a guerrilha e a segurança como prioridades. Mas Petro e Hernández são demagogos porque não está claro como vão resolver os problemas e se não podem acabar piorando a situação", disse Jorge Restrepo, professor de economia da Universidade Javeriana, de Bogotá. O debate sobre a guerrilha passou a ser secundário e praticamente inexistente nesta campanha eleitoral, em função do acordo de paz, assinado em 2016, para colocar um ponto final no conflito armado envolvendo as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), que durou 50 anos. A esquerda, que era rejeitada por sua associação com o movimento guerrilheiro, passou a ter maiores chances de eleição para a Casa de Nariño, a sede da Presidência colombiana. Petro, ex-prefeito de Bogotá, a capital colombiana, e Hernández, ex-prefeito de Bucaramanga, no departamento (Estado) de Santander, são opostos em seus perfis ideológicos. Na última eleição presidencial, Petro, de 62 anos, foi derrotado no segundo turno, quando os partidos tradicionais e seus opositores em geral se uniram em torno do nome do atual presidente Iván Duque. Neste ano, no primeiro turno, Petro foi o mais votado, com 40,34% da votação, mas não conseguiu superar os 50% para ser eleito. Suas bandeiras são a inclusão social e a energia limpa. Suas críticas contra a "dependência colombiana do petróleo" são frequentes e um dos motivos da rejeição de grande parte do empresariado ao seu nome. Em uma das recentes conversas que teve em suas redes sociais, Petro disse que suspenderia a exploração de petróleo no país e que entre seus objetivos está o setor agrícola, com maior proteção contra os produtos importados e o cuidado com o meio ambiente. Para o cientista político Alejo Vargas Velázquez, da Universidade Nacional da Colômbia, Petro conta com amplo respaldo da esquerda, mas um dos seus maiores desafios é gerar "credibilidade" entre os investidores. Na imprensa colombiana falou-se em "petrofobia" — a fobia, o medo dos que rejeitam Petro e a esquerda, principalmente nos setores empresariais e econômicos, e que optariam por Hernández para evitar a vitória do ex-prefeito de Bogotá. Petro e sua equipe costumam dizer que não há motivos para "temor" e que as mudanças serão feitas a partir do diálogo e do consenso político. "Se eu vencer, convocarei um grande acordo nacional, baseado no diálogo, incluindo o centro e até (o ex-presidente de direita) Álvaro Uribe. Temos que mudar o ambiente de ódio e sectarismo que existe hoje na Colômbia", disse em entrevista ao jornal espanhol El País. Por sua vez, Hernández, de 77 anos, demonstrou conhecer pouco até sobre a geografia do país e fez declarações jocosas e consideradas machistas. "O ideal seria que as mulheres se dedicassem à educação dos filhos", disse. E fez outras declarações também consideradas "ultrapassadas" ou "exploradoras", apontaram opositores, analistas e acadêmicos, como as de que os trabalhadores deveriam ampliar a jornada de trabalho para dez horas diárias e reduzir o tempo de almoço para meia hora. No primeiro turno, Hernández foi a grande surpresa e recebeu 28,17% dos votos, superando Federico Gutiérrez, candidato que representava partidos tradicionais. O índice de abstenção, normalmente alto no país, foi o mais baixo dos últimos 20 anos. Ainda assim, somente 54% compareceram às urnas, segundo dados oficiais. E analistas, como Luciana Manfredi, das universidades Icesi e Unam, e Victor M. Mijares, da Universidade de los Andes, observam que o eleitorado colombiano é marcado hoje pela fragmentação. Assim, o eleitor dos dois presidenciáveis está disperso nas várias camadas sociais do país, não significando que os economicamente mais pobres votarão em peso em Petro ou que os mais ricos optarão por Hernández, notam. Mas o que esperar de um possível governo Petro ou de um possível governo Hernández? "Petro tem uma política mais orientada à geração de empregos, a de criar oportunidades de educação superior aos jovens e de mudanças na área de direitos humanos, como a preocupação com os desplazados e o desaparecimento de líderes sociais. O temor entre os empresários é como estas medidas serão financiadas. No entanto, ficaram no passado as especulações de que sua política seria de desapropriar (empresas)", disse a cientista política Luciana Manfredi, que também é da Red Politólogas (cientistas políticas) da América Latina. Ela observa que entre os que rejeitam a possível eleição de Petro existe a preocupação "em relação à estabilidade econômica", já que ele questiona, além do petróleo, os acordos comerciais internacionais da Colômbia. "Na visão neoliberal, a Colômbia é vista com a mesma estabilidade que o Chile. Mas existe uma realidade que são a desigualdade social e os 'desplazados' (deslocados por conflitos)", disse. Como no Chile, a Colômbia também registrou fortes protestos em 2019 e em 2020. E, nesta campanha, Petro recebeu apoio de líderes políticos associados à esquerda ou centro-esquerda, entre eles o presidente chileno Gabriel Boric e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Os "desplazados" formam um drama nacional. Eles são aqueles que tiveram que se mudar, dentro do próprio país, diante do avanço territorial da guerrilha ou do tráfico de drogas. Dados oficiais apontam que a categoria superaria os 2 milhões de colombianos em um país de pouco mais de 50 milhões de habitantes. Na visão da professora da Universidade de Cali, Petro tem "experiência política" e conhece a Colômbia, diferentemente de seu adversário nesta corrida eleitoral. Mas se Petro gera o temor da "instabilidade econômica", Hernández gera o temor da "instabilidade institucional e democrática", diz ela. "Ele representa a incerteza institucional e justifica a definição de populista ao dizer que apoia medidas que no fundo desconhece ou não respalda de verdade", disse. Esse é o caso, diz ela, da sua defesa do uso medicinal da maconha ou do maior acesso dos jovens à universidade. Quando perguntado, Hernández disse que não sabe como fará para colocar as medidas em prática, mas que contará com gente qualificada para resolver a situação. Ou, quando a pergunta envolve recursos públicos, recorda a analista, ele responde que atenderá a promessa "com o dinheiro que será poupado da corrupção" — o combate à corrupção é uma de suas principais bandeiras. O analista econômico Restrepo, da Universidade Javeriana, entende que os dois presidenciáveis têm algo em comum no âmbito econômico, que é a defensa de uma economia mais "protecionista" contra a produção externa. Ele criticou as propostas econômicas dos dois presidenciáveis. "Representam um retrocesso para o país." A Colômbia, lembrou, tem cerca de 25 acordos de livre comércio, incluindo com Estados Unidos, União Europeia e Canadá, além de fazer parte da Aliança do Pacífico (Colômbia, Chile e México). "Vejo os dois candidatos como os mais radicais entre todos os presidenciáveis que tivemos nesta eleição. Realmente estamos em um momento inédito na nossa história recente", disse.
2022-06-18
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Como o Paraguai se tornou um dos países que melhor distribui água no mundo
Não há recurso mais vital para os seres humanos do que a água. No entanto, hoje o acesso a esse bem precioso é altamente desigual. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), hoje um quarto da humanidade não tem acesso a uma fonte segura de água. E é justamente a população mais pobre do mundo que sofre mais. Quase sempre o acesso à água é determinado pela capacidade econômica. Quanto mais rico é um país, maior o acesso de uma população à água. Nos países subdesenvolvidos, as populações mais ricas têm mais água disponível do que as mais pobres; e as urbanas, mais do que as rurais. Mas isso não acontece em todos os lugares. Há um país em particular que é considerado um exemplo de que não é preciso ser rico para poder fornecer água de forma igualitária para toda a população. Fim do Matérias recomendadas Veja abaixo como o Paraguai, cercado por Brasil, Argentina e Bolívia, conseguiu garantir acesso universal à água para sua população, com uma distribuição mais igualitária do que os vizinhos mais ricos na região. Parte do problema do acesso à água tem a ver com o fato de ser um bem escasso. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Embora nosso planeta contenha mais água do que terra, mais de 97% é água salgada, imprópria para consumo humano ou para a irrigação. E desses 3% de água doce, dois terços estão congelados, seja em geleiras ou gelo. Isso significa que os quase 8 bilhões de habitantes do planeta dependem de pouquíssimas fontes de águas superficiais não salgadas (lagos, pântanos e rios, que representam menos de 1% do total de água doce) ou das águas subterrâneas, que são nossa principal fonte. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), "as águas subterrâneas fornecem metade de toda a água usada pelas famílias em todo o mundo, um quarto de toda a água usada para a agricultura de irrigação e um terço do abastecimento de água necessário para a indústria". Mas para aproveitar esse recurso subterrâneo, nos locais onde ele existe, são necessários equipamentos e investimentos e, para trazê-lo até as residências, é preciso construir uma rede de distribuição. É por isso que o fator humano é fundamental para explicar as desigualdades que existem no acesso à água. "A crise mundial da água hoje é principalmente uma questão de governança e não de disponibilidade do recurso", declarou recentemente o diretor regional para América Latina e Caribe do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), Luis Felipe López-Calva. "A água é um serviço básico e um direito humano que os Estados devem garantir igualmente a todos os cidadãos, independentemente de onde vivam no território ou de quanto possam pagar pelo serviço", disse. López-Calva diz que "na América Latina e no Caribe, como em grande parte do mundo, o acesso à água continua muito desigual". Mas ressaltou que "essas desigualdades não são inevitáveis", citando o Paraguai como exemplo. A 15ª maior economia da América Latina tem "cobertura quase universal de acesso à água potável", observou. Mas o Paraguai vai ainda mais longe, disse ele. Comparado a outras nações latino-americanas que também garantem um serviço básico para quase toda a sua população, como Chile, México e Uruguai, o país se destaca por ser o que distribui água de forma mais uniforme. "No Paraguai há menos de 2 pontos percentuais de diferença no acesso à água entre áreas rurais e urbanas ou entre os grupos mais ricos e mais pobres", disse o funcionário do Pnud. Isso o torna o país da região com o acesso mais equitativo à água. E não só na região. O Paraguai também foi reconhecido pela ONG Water Aid por ser um dos países do mundo que mais aumentou a distribuição de água para as regiões rurais. No início do século 21, cerca de metade dos habitantes dessas áreas tinham acesso ao recurso, valor que já é dobro nos dias de hoje. Uma porta-voz da Water Aid disse à BBC News Mundo (serviço em língua espanhola da BBC) que, de acordo com os números mais recentes compilados em 2020 pelo Programa Conjunto de Monitoramento da OMS/Unicef para abastecimento de água, saneamento e higiene, 99,6% dos paraguaios têm pelo menos "acesso básico" à água. O modelo paraguaio nasce com a criação, em 1972, do Serviço Nacional de Saneamento Ambiental do Paraguai (Senasa), que visava garantir o acesso a água potável no país, diz a engenheira Sara López, diretora do órgão. O Senasa foi estabelecido em um formato comunitário, que descentralizou a gestão da água a partir da figura dos Conselhos de Saneamento. Essas entidades recebem assistência técnica e capacitação do Senasa. "São organizações comunitárias formadas por moradores de cada localidade e são eles que operam e mantêm os sistemas de água", disse López à BBC Mundo. A engenheira estima que há 4 mil Conselhos de Saneamento funcionando no Paraguai, sejam em pequenos povoados ou cidades maiores que abastecem até 50 mil habitantes. Os grupos responsáveis pela gestão da água em cada localidade são reconhecidos pelo Ministério da Saúde Pública. E essa é justamente outra peculiaridade de como o acesso à água funciona no Paraguai: é o Ministério da Saúde que supervisiona a distribuição do recurso, afinal, segundo Sara López, o acesso a uma fonte de água segura é uma questão de "prevenir a saúde". López explicou que os conselhos são formados por apenas cinco pessoas: um presidente, um vice-presidente, um secretário, um tesoureiro e um membro, eleitos por uma Assembleia Constituinte. "Não recebem salário nem ajuda de custo e são substituídos a cada cinco anos", disse. No entanto, o conselho opera "como empresa comercial, contratando operadores, administradores, técnicos e encanadores", entre outros. Esses profissionais recebem um salário, que é obtido a partir das tarifas cobradas pelo uso da água. "Existe uma taxa básica pelo que se consome por mês, entre 12 mil a 15 mil litros por mês. E quem usa mais paga mais", disse . López comenta que "a água é barata no Paraguai", já que se paga em média US$ 3 (R$ 15) por 12 mil litros. "Perfura-se um poço de mais ou menos 150 metros e a água é bombeada para um tanque elevado, de onde é distribuída por gravidade. Não precisa de nenhum outro tipo de bombeamento", diz. "O sistema é simples de operar e manter", destaca ela, que explica que são os próprios conselhos que gerencia o sistema de água. Por sua vez, Walter Godoy, assistente de projetos do Senasa, explicou à BBC News Mundo que o Estado financia 82% das obras e as comunidades, o restante. "Nas comunidades indígenas, o Estado financia 100% das obras", acrescentou. Os avanços no Paraguai, diz López-Calva, do Pnud, não são "resultado de um aumento repentino da quantidade de água disponível no país, mas o resultado de investimentos intencionais para melhorar a governança da água". Sara López reconhece que na região do "Chaco não estamos atingindo as populações mais pobres, pelo menos não de forma sustentável, porque chegamos, mas depois de um tempo temos que voltar". "Essa é a questão pendente, onde devemos fazer um esforço maior."
2022-06-12
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Vídeo, Argentina: a cidade onde cada vez mais gente busca comida no lixoDuration, 8,32
Na cidade argentina de Concordia, mais da metade da população vive na miséria. A pandemia agravou essa situação, que não começou agora. A Argentina, que já foi um dos países mais ricos da América Latina, não consegue há 25 anos fazer com que o percentual de pessoas que vivem em situação de pobreza no país fique abaixo dos 20%. “A quarentena foi muito ruim para nós. Porque não dava para trabalhar, as ruas ficavam fechadas, não podíamos mais sair. Minha mulher estava grávida, era sair ou sair para procurar algo”, diz Julio, que é catador de resíduos em Concordia. Ele trabalha no Campo del Abasto, um aterro onde todo o lixo produzido na cidade do nordeste argentino vai parar. É nesse local que muitas famílias da região acabam se instalando. “Há cada vez mais bairros, mais assentamentos. E o que chama a atenção é que são pessoas jovens, que formaram suas famílias, moram onde podem e como podem”, explica Pedro Sena, diretor da organização beneficente Cáritas Concordia. Neste vídeo, a repórter Agustina Latourette, da BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, mostra os impactos da pandemia em uma das regiões mais vulneráveis da Argentina. Confira.
2022-06-09
https://www.bbc.com/portuguese/geral-61751098
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'PCC é principal suspeito': o que diz polícia colombiana sobre assassinato de promotor em lua de mel
As autoridades explicaram nesta semana como o crime foi concebido e executado, e dizem que há cada vez mais indícios de que a autoria intelectual do crime é do Primeiro Comando da Capital (PCC), um dos maiores grupos criminosos do Brasil. Pecci estava em lua de mel com a esposa na cidade turística de Barú, perto de Cartagena (Colômbia), quando um pistoleiro chegou de jet ski no resort onde ele estava hospedado e o matou a tiros em 10 de maio. O promotor liderava uma das maiores operações antimáfia da história do Paraguai, país que é chave na rede de tráfico de drogas da região. Por isso, desde o início as investigações apontavam para uma operação internacional. Cinco pessoas foram presas. Quatro delas reconheceram participação no crime e confessaram detalhes sobre a execução do assassinato em audiência na segunda-feira (6/6). Fim do Matérias recomendadas O quinto preso, que negou as acusações, é identificado como o líder do grupo executor: Francisco Luis Correa, ex-integrante da quadrilha criminosa "Los Paisas", que tem um extenso histórico criminal. Eles estão presos em uma prisão de alta segurança, acusados de homicídio qualificado e posse ilegal de armas. Correa "foi quem estruturou aquela operação com pistoleiros que vieram de Medellín para Cartagena", segundo o procurador-geral da Colômbia, Francisco Barbosa. Marisol Londoño e Cristian Camilo Monsalve, que são mãe e filho, ficaram encarregados de seguir Pecci até Barú, destino de férias com vários quilômetros de praia com hotéis na orla. Eiverson Adrián Zavaleta foi encarregado de transportar os demais. Wender Scott Carrillo, um cidadão venezuelano, foi quem supostamente disparou a arma, segundo as autoridades. Além das confissões dos autores, a promotoria colombiana possui mais de uma centena de provas, desde comunicações interceptadas até imagens de câmeras de segurança, como a que mostra o promotor paraguaio e seus algozes momentos antes do crime. Publicações nas redes sociais da esposa de Pecci, a jornalista Claudia Aguilera, teriam ajudado os pistoleiros, segundo detalhes da investigação. "Os criminosos afirmaram que em muitas ocasiões tinham perdido o alvo, mas que graças às redes sociais conseguiram localizar o promotor", disse o promotor Barbosa. Um sexto envolvido está foragido e as autoridades colombianas estão oferecendo até 500 milhões de pesos (cerca de R$ 650 mil reais) em troca de informações que facilitem sua captura. Trata-se de Carlos Luis Salinas Mendoza, conhecido como "Mendoza", identificado como membro de uma organização criminosa a serviço de grupos internacionais e especificamente dedicado ao assassinato de aluguel. Mendoza é alvo de um alerta da Interpol e acredita-se que ele tenha fugido para a Venezuela, embora também seja procurado no Equador, Peru e Panamá, segundo o diretor-geral da Polícia Nacional da Colômbia, general Jorge Luis Vargas Valencia. O crime foi financiado com mais de 2 bilhões de pesos colombianos (R$ 2,6 milhões) que foram distribuídos entre várias pessoas, disse o promotor colombiano. Mas quem estaria interessado em desembolsar tal quantia para acabar com a vida de Marcelo Pecci? O promotor liderou inúmeras investigações contra a máfia, tráfico de drogas e lavagem de dinheiro no Paraguai, incluindo uma contra o PCC. Com sede em São Paulo e cerca de 30 mil membros, o PCC movimenta mais de R$ 390 milhões por ano em operações de tráfico de drogas, roubos, sequestros e assaltos a bancos, segundo cálculos da polícia brasileira. O diretor da polícia colombiana apontou o PCC como principal suspeito do assassinato. Ele argumenta que o PCC tinha planejado cometer o crime no Paraguai, mas que teriam sido convencidos a cometê-lo fora do país. Vargas diz que os autores intelectuais não estão na Colômbia e indicou que as autoridades estão trabalhando no Paraguai para "alcançar os mentores em qualquer parte do mundo". O Paraguai é um dos maiores produtores de maconha da América do Sul, abastecendo Brasil, Argentina e Chile, entre outros países, e é um centro regional de distribuição de cocaína boliviana destinada ao Brasil, Argentina e Europa, segundo dados de uma operação chamada "A Ultranza PY". Essa operação resultou na demissão de dois ministros e na prisão de 24 pessoas por supostas ligações com organizações de narcotráfico.
2022-06-09
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Colômbia encontra mais dois navios perto do 'Santo Graal dos naufrágios'
Autoridades da Marinha colombiana que monitoram um naufrágio espanhol histórico carregado de tesouros encontraram destroços de outros dois navios na mesma região. O galeão San José foi afundado no mar do Caribe por corsários britânicos em 1708 perto do porto de Cartagena. Com ele, quase 600 pessoas desapareceram e o que se estima serem bilhões de dólares em ouro, prata e esmeraldas que os espanhóis transportavam das colônias na América do Sul para a Europa. Descrito como o "Santo Graal dos naufrágios", pela imensa quantidade de objetos de valor que carregava, ficou perdido no fundo do oceano por três séculos quando, em 2015, o governo colombiano anunciou que ele havia sido encontrado. Agora, um veículo operado remotamente que monitorava os destroços localizou outros dois naufrágios próximos. "Temos duas outras descobertas na mesma área, que mostram outras linhas para a exploração arqueológica", disse o almirante Gabriel Pérez, o comandante da Marinha. "O trabalho está apenas começando." Fim do Matérias recomendadas As imagens feitas pela equipe de monitoramento dão uma visão mais clara do tesouro a bordo do San José, incluindo lingotes e moedas de ouro, canhões feitos em Sevilha em 1655 e um aparelho de jantar chinês intacto — arqueólogos estão trabalhando para descobrir a origem dos pratos com base nas inscrições visíveis, afirmaram as autoridades. Em uma coletiva de imprensa nesta terça (7/6), o presidente da Colômbia, Iván Duque, exibiu as imagens inéditas, obtidas a mais de mil metros de profundidade. Segundo ele, uma das embarcações é do período colonial e outra, já da fase republicana do país. Além delas, a Marinha teria conseguido localizar "uma dezena de embarcações similares", disse o presidente. O galeão San José está no centro de uma longa disputa legal — a razão que explica porque, até hoje, o tesouro localizado em 2015 ainda se encontra no fundo do mar. A Espanha o reivindica — assim como o tesouro — como um "navio do Estado", já que ambos pertenciam à marinha espanhola quando foram afundados e são protegidos como tal pelas regras das Nações Unidas. Já a Colômbia argumenta que ele se encontra dentro de suas águas territoriais e que foi descoberto pela Marinha do país. E eles não são os únicos: a empresa americana Sea Search Armada, que participou da parceria público-privada que localizou os destroços em 2015, alega que o governo do então presidente Juan Manuel Santos havia prometido dar parte do tesouro como pagamento pelo serviço.
2022-06-07
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61726991
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Sob risco de fiasco e pressão de China e Rússia, EUA tentam mostrar força com Cúpula das Américas
Depois de passar semanas diante do temor de protagonizar um fiasco e de ameaças de boicote, o governo do americano Joe Biden chega à 9ª edição da Cúpula das Américas, em Los Angeles, com a expectativa de fazer do evento uma virada na política internacional dos Estados Unidos, apesar das baixas e polêmicas entre os participantes. Os americanos veem o evento como uma oportunidade para "construir uma nova agenda e um novo entendimento do que é importante para o continente americano hoje", afirmou à BBC News Brasil o ex-embaixador dos EUA para o Brasil Thomas Shannon. Mas não só. Diante da competição com a China por influência na área e da tensão com a Rússia, em meio à Guerra da Ucrânia, a Cúpula representa para os americanos a chance de unir o continente em torno da liderança do democrata Biden, que proporá ao menos cinco declarações conjuntas a seus pares, com políticas e planos para temas como conservação ambiental, mudanças climáticas, democracia e resiliência à pandemia. Migração e fortalecimento de cadeias de produção e suprimentos também estarão na mesa. Em seus propalados objetivos, a Cúpula das Américas organizada pelos americanos ecoa noções da chamada Doutrina Monroe, com seu ideal de a "América para os Americanos". O ideário, lançado em 1823, para pregar a não interferência dos europeus sobre suas ex-colônias no continente, recebeu diferentes leituras ao longo dos séculos, mas sempre se resumiu à noção de que os americanos buscavam primazia (ou interferência) política no continente. "Essa retórica ainda existe, mas na prática os EUA perderam as principais narrativas na região, sua legitimidade está abalada com a crise à sua própria democracia e o governo não possui meios para competir com os chineses em investimentos em infraestrutura e inovação, o que ficou evidente com o caso da Huawei", afirma Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas, mencionando a gigante tecnológica chinesa que terá importância nas redes de 5G de países da região, como o Brasil, apesar das tentativas dos americanos de fazer com que os latinos excluíssem a Huawei de suas operações. Fim do Matérias recomendadas A julgar pelo acidentado percurso que leva parte dos líderes da região à cidade da Califórnia na segunda semana de junho, os resultados simbólicos e práticos do evento para os EUA seguem sendo dúvida. A principal ausência no evento, o presidente mexicano Andrés Manuel Lopez Obrador, conhecido como AMLO, cumpriu sua promessa de não participar da Cúpula se os governos de Nicarágua, Cuba e Venezuela não fossem convidados a comparecer também. Os EUA se recusaram a enviar convites às equipes do nicaraguense Daniel Ortega, do cubano Miguel Díaz-Canel e do venezuelano Nicolás Maduro, a quem Washington qualifica como ditadores e violadores dos direitos humanos. Nos EUA, as diásporas cubana e venezuelana são politicamente poderosas e decisivas para disputas como as eleições parlamentares de meio de mandato, que acontecerão em novembro. E um convite de Biden aos governantes desses países cairia mal nas comunidades. A exclusão deu a alguns líderes na região, especialmente aqueles cujo eleitorado é de esquerda, a condição de confrontar os americanos e recolher pontos em sua política doméstica, ao se posicionarem contra a decisão da Casa Branca, como AMLO. E deu aos chineses a possibilidade de alfinetar Washington. "Cuba, Nicarágua e Venezuela não são países das Américas?" ironizou Zhao Lijian, porta-voz do Ministério de Relações Internacionais da China. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A Casa Branca tentou minimizar a ausência de AMLO. De um lado, autoridades americanas disseram que a Cúpula ainda poderia ter sucesso sem ele. De outro, a gestão Biden lançou uma verdadeira força-tarefa de primeiro escalão para atrair mandatários à Califórnia. A vice-presidente Kamala Harris foi despachada a Honduras, para se encontrar com a recém-eleita Xiomara Castro, que já avisou que mandará ao encontro apenas seu ministro de relações exteriores. Um emissário de Biden, o ex-senador Cristopher Dodd, esteve em Brasília para transmitir "uma mensagem pessoal" do ocupante da Casa Branca sobre a importância da presença de Bolsonaro em Los Angeles. Depois de um ano e meio no poder, Biden também ofereceu a Bolsonaro a primeira oportunidade de uma interação direta entre os líderes. Pela reunião bilateral, Bolsonaro, que se ressentia por não ser recebido antes pelo mandatário americano, depois de lançar dúvidas sobre a eleição dos EUA em 2020, mudou de ideia e decidiu comparecer ao evento. O próprio Biden também passou 25 minutos ao telefone na semana passada para convencer o presidente argentino Alberto Fernandez a viajar a Los Angeles, que também protestava pela exclusão dos três países. E a mulher do presidente americano, a primeira-dama Jill Biden, se lançou a um tour entre Equador, Panamá e Costa Rica para cortejar os presidentes relutantes a participar do encontro, criado pelos EUA em 1994. No total, cerca de metade dos mandatários das Américas estará em Los Angeles. Além de AMLO, outras ausências notórias são os líderes de Bolívia (Luis Arce), Honduras (Xiomara Castro) e Uruguai (Lacalle Pou), que contraiu covid-19 às vésperas do evento. "Que os americanos tenham que ter feito esse tipo de esforço para atrair pessoas para Cúpula mostra mais fraqueza do que força. Por muitos anos, a América Latina ficou longe da prioridade na política externa dos EUA. Agora, os presidentes latinos escreveram na parede que também não veem os americanos com tanta urgência assim", afirma Daniella Campello, professora de política da FGV e pesquisadora do Wilson Center. Para Stuenkel, ter atraído Bolsonaro para a Cúpula livrou os americanos da "humilhação" de se ver sem os dois principais países (Brasil e México) em seu evento. E também da comparação com o líder russo Vladimir Putin, que apenas duas semanas antes de lançar a invasão à Ucrânia conseguiu atrair a Moscou tanto Bolsonaro quanto Fernandez. "Mas, na prática, os americanos estão se adequando para uma nova situação, em que a América Latina depende muito menos de Washington do que antes", diz Stuenkel. Analistas de políticas internacionais apontam que Biden pode estar diante de sua última oportunidade de se mostrar capaz de alterar positivamente a relação entre EUA e América Latina. "Biden não conseguiu mostrar que é realmente muito diferente de Trump para a região", afirma Ryan Berg, pesquisador sobre América Latina do Center for Strategic and International Studies. Segundo Berg, depois de prometer um novo olhar para a América Latina na campanha, Biden falhou em alterar sensivelmente a dinâmica de relações americanas com a região. Suas políticas migratórias diferiram pouco do que fez seu antecessor, Donald Trump. Os governos latinos se ressentem de não haver um plano econômico dos EUA para resgatar o continente, em crise mesmo antes do início da pandemia de covid-19. E notam que a distribuição de vacinas contra covid-19 na área foi feita primeiro pela China, e só depois pelos EUA. Trump, cuja bandeira eleitoral foi o mote "América First", que incluía até a construção de um muro na fronteira com o México para evitar a migração, não cultivou relações próximas com a América Latina. A esse vácuo de poder, muitos analistas internacionais atribuem o crescimento acelerado da presença da China na região. Quebrando a tradição de sua diplomacia silenciosa, Pequim acusou os americanos de querer forçar sua agenda a todos os países latinos com a formatação dos convidados e da agenda da Cúpula das Américas. "Os EUA têm falado nas Américas para os americanos, mas é para o povo americano apenas", afirmou o porta-voz Zhao. A crítica dos chineses encontra eco na América Latina. É comum ouvir de diplomatas da América do Sul que os EUA só querem discutir o tema da migração a partir da perspectiva do Triângulo Norte da América Central (Guatemala, Honduras e El Salvador), algo que não tem nada a ver com a realidade de Brasil e Colômbia, por exemplo, que tem recebido enormes contingentes de venezuelanos. Por outro lado, os americanos se mostrariam pouco porosos a demandas brasileiras, como do fim de uso de algemas para deportados brasileiros em voos dos EUA de retorno ao Brasil. Assim como Trump, Biden tem demonstrado dificuldade de olhar para a região não apenas da ótica de suas políticas domésticas - e o que pode ou não agradar um eleitorado latino conservador da Flórida - e entender que não existe uniformidade nas questões do continente. Segundo Thomas Shannon, a diplomacia americana precisa comparecer ao evento disposta a ouvir, e não só falar. Para o diplomata americano Michael McKinley, ex-embaixador no Brasil, Colômbia e Peru, é precisamente por esses velhos erros que a atual Cúpula corre o risco de falhar. "Apesar dos esforços do governo Biden para delinear uma visão nova e positiva para o envolvimento com a América Latina e o Caribe, é provável que velhos problemas entrem em jogo na próxima Cúpula das Américas. A política interna (dos EUA) e os governos da região com uma visão mais cética de Washington e suas intenções contribuem para essas tensões. É necessária uma nova perspectiva dos EUA - que leve em maior consideração a diversidade, as prioridades e a complexidade política da região. Sem essa mudança, a percepção e a realidade do declínio da influência dos EUA provavelmente se aprofundarão", escreveu McKinley em artigo para o United States Institute of Peace.
2022-06-07
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61714847
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A história por trás da 'estrada mais perigosa do mundo'
Depois de atravessar a passagem de La Cumbre, a 4.800m de altitude, o trufi (táxi compartilhado) mergulhou em uma nuvem de névoa. Dentro da van parecia estranhamente calmo, como se estivéssemos presos em uma bolha, o que talvez fosse bom, já que estávamos viajando pelo chamado Camino de la Muerte, ou Estrada da Morte. O Camino a los Yungas vai de La Paz, cidade andina de altitude elevada, até os vales subtropicais yungas e as planícies amazônicas mais além, percorrendo 64 km, com uma descida acentuada de 3.500m. Partes da rodovia possuem apenas três metros de largura; há uma série de curvas fechadas e cegas; e minicachoeiras caem na face rochosa ao redor. As barreiras de segurança só aparecem raramente — é muito mais comum ver santuários na beira da estrada: cruzes brancas, ramos de flores, fotos amareladas. Fim do Matérias recomendadas Durante a década de 1990, morreu tanta gente em acidentes nesta estrada — construída por prisioneiros de guerra paraguaios após a catastrófica Guerra do Chaco (1932-1935) —, que o Banco Interamericano de Desenvolvimento a descreveu como "a estrada mais perigosa do mundo". O trufi reduziu a velocidade, e o motorista se curvou para a frente, olhando atentamente por cima do volante como se fosse um exame de vista, antes de de repente emergirmos na luz do sol. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Do lado de fora da minha janela, havia um abismo praticamente vertical de mil metros, enquanto no lado oposto uma moto passou zunindo, acertando nosso espelho retrovisor. Logo à frente, um trio de ciclistas passava cautelosamente por um buraco do tamanho de uma cratera: embora um desvio tenha sido construído em torno do trecho mais perigoso, a reputação macabra da rodovia a transformou em uma atração turística, atraindo um fluxo constante de viajantes ansiosos para pedalar estrada abaixo. A rota é também a porta de entrada para uma região esquecida com associações poderosas. As Yungas ("terras quentes" na língua indígena aimará, falada por cerca de 1,7 milhão de bolivianos) são uma zona de transição fértil com biodiversidade extraordinária entre os Andes e a Amazônia, intimamente ligada a dois recursos naturais que provocam fascínio e veneração, mal-entendidos e controvérsia: a coca e o ouro. Após duas horas na Estrada da Morte, chegamos a Coroico, outrora um centro de mineração de ouro, hoje uma lânguida cidade turística. Encravada em uma encosta verde-esmeralda, tem um clima ameno e vistas panorâmicas de colinas ondulantes, além de lugares com preços acessíveis para comer, beber e dormir. Coroico é um lugar difícil de sair, mas depois de passar um dia me recuperando da viagem estressante, fui para a zona rural ao redor para aprender mais sobre como a região ajudou a moldar a Bolívia moderna. Solos ricos e chuvas abundantes fizeram das Yungas, que percorrem as encostas orientais dos Andes, um centro agrícola. Cortada por antigas rotas comerciais outrora percorridas por caravanas de lhamas, a região era um celeiro para os incas e impérios anteriores, como o Tiwanaku. Esta tradição continua até hoje. Enquanto caminhava por uma trilha secular em direção ao Rio Coroico, passei por socalcos (técnica de cultivo em degraus) nas encostas com plantações de café, banana, mandioca, goiaba, mamão e frutas cítricas. Havia também arbustos com galhos finos, folhas ovais e frutos avermelhados: a coca. Há milênios a coca é fundamental para muitas culturas sul-americanas, e a Bolívia é um dos maiores produtores do continente, com centenas de quilômetros quadrados dedicados à plantação, dois terços dos quais estão nas Yungas. Ricas em vitaminas e minerais, as folhas agem como um estimulante suave e ajudam a neutralizar o mal da altitude; matar a fome, a sede e o cansaço; ajudar na digestão e até mesmo suprimir a dor. Há 8 mil anos, elas têm sido usadas ​​em cerimônias religiosas e como remédio, moeda e lubrificante social. Os espanhóis inicialmente demonizaram a coca. Mas depois de observar o efeito benéfico que tinha sobre os povos indígenas forçados a trabalhar nas minas e nas plantações, as autoridades coloniais mudaram de ideia e comercializaram a colheita. O interesse pela coca cresceu lentamente além do continente. Acredita-se que a primeira referência em inglês seja o poema de 1662 do londrino Abraham Cowley, A Legend of Coca: Endow'd with leaves of wondrous nourishment, Whose juice succ'd in, and to the stomach tak'n Long hunger and long labour can sustain Durante o século 19, a coca — e seu alcaloide psicoativo, a cocaína — se tornou cada vez mais popular na Europa e na América do Norte, aparecendo em bebidas, tônicos, medicamentos e vários outros produtos. Entre eles, o Vin Mariani, um vinho francês com mais de 200mg/litro de cocaína. Os anúncios afirmavam que "refrescava o corpo e o cérebro", e seus fãs incluíam Thomas Edison, Ulysses S Grant, Emile Zola e o Papa Leão 13 (que até apareceu em um cartaz promocional). No estado americano da Geórgia, o sucesso de produtos como o Vin Mariani inspirou o farmacêutico e ex-soldado confederado John Pemberton a criar o "French Wine Coca", que originalmente incluía uma mistura de cocaína e álcool, além de extrato de noz de cola, rico em cafeína. Mais tarde, se transformou na Coca-Cola: embora a cocaína e o álcool tenham sido removidos há muito tempo, o extrato de folha de coca sem cocaína ainda é usado como aromatizante. A cocaína e produtos à base de cocaína eram legais em toda a Europa e América do Norte no final do século 19 e início do século 20, sendo defendidos por nomes como Sigmund Freud, que escreveu vários artigos sobre o tema e fez experimentos em si mesmo: "[Uma] pequena dose me levou às alturas de uma forma maravilhosa." Mas a droga caiu em desgraça, passou a ser associada à dependência e à criminalidade e acabou sendo proibida em grande parte do mundo, assim como a coca — embora esta última tenha permanecido legal na Bolívia. À medida que a demanda por cocaína aumentou novamente na década de 1980, a "guerra às drogas" liderada pelos EUA devastou a região vizinha de Chapare, na Bolívia, que havia se tornado uma importante área de produção de coca: atividades antidrogas resultaram em abusos generalizados de direitos humanos, incluindo assassinatos, tortura, prisões e detenções arbitrárias, espancamentos e roubos. Em resposta, protestos populares de cocaleiros — plantadores de coca, a maioria com ascendência indígena quíchua ou aimará — colaboraram para a ascensão de Evo Morales, líder das Seis Federações Cocaleiras do Trópico de Cochabamba, um sindicato que representa os plantadores de coca. Como a socióloga e historiadora Silvia Rivera Cusicanqui escreveu na revista ReVista, os cocaleros tiveram um papel importante na "guerra da água" de 1999-2000, uma revolta contra a privatização da empresa municipal de abastecimento de água na cidade de Cochabamba, evento que também impulsionou a ascensão política de Morales. Junto a outros movimentos de base, "acabou levando à eleição em 2005 de... Morales, um nativo aimará, como o primeiro presidente indígena das Américas". Uma vez no cargo, ele rapidamente se distanciou da abordagem de erradicação e proibição da coca liderada pelos Estados Unidos com uma política conhecida como "Coca sim, cocaína não", que permitia aos produtores cultivar lotes de coca dentro de limites especificados. Mas estas maquinações geopolíticas pareciam uma perspectiva distante enquanto eu caminhava pelos tranquilos campos de coca esculpidos na encosta abaixo de Coroico, em meio a suas folhagens espessas, enquanto o canto dos pássaros pairava no ar. Hoje, a coca é considerada uma planta sagrada por muitos bolivianos, sendo usada regularmente por um terço da população (a cocaína, no entanto, é ilegal). Em seu livro Coca Yes, Cocaine No ("Coca Sim, Cocaína Não", em tradução literal), Thomas Grisaffi escreveu: "[A Coca] é aceita na maioria dos setores, regiões e etnias... É mais vista como um costume nacional, assim como tomar chá é para os britânicos." Por fim, cheguei ao agitado Rio Coroico, símbolo de outro recurso natural das Yungas: o ouro. A chamada "rota do ouro" se estende por 350 km pelos cursos d'água da região até a vizinha Amazônia e atrai garimpeiros há séculos. Embora os leitos dos rios, córregos e riachos tenham se mostrado ricos em depósitos de ouro, eles nunca produziram o suficiente para saciar o apetite dos conquistadores e daqueles que os seguiram. Como resultado, inúmeros rumores de fortunas perdidas e tesouros escondidos rondam as Yungas e regiões vizinhas. Muitos mitos estão ligados aos jesuítas, que — por meio da exploração dos povos indígenas — acumularam grandes fortunas na América do Sul antes de serem expulsos em 1767, após se tornarem poderosos e independentes demais para o gosto da coroa espanhola. O que aconteceu com as riquezas da ordem logo se tornou objeto de muita especulação, sendo pouco atrelado à realidade. Percy Harrison Fawcett, um explorador britânico excêntrico que passou anos viajando pela América do Sul no início do século 20, oferece um vislumbre desta febre do ouro. Em seu livro Exploração Fawcett, ele conta a história de um "grande tesouro" enterrado pelos jesuítas em um túnel perto do Rio Sacambaya, que serpenteia ao sul das Yungas. "Ao saber de sua expulsão iminente... o ouro [jesuíta] foi reunido em Sacambaya... e levou seis meses para fechar o túnel", escreveu Fawcett. Os seis indígenas bolivianos que cavaram o túnel e sete dos oito padres que sabiam de seu paradeiro foram posteriormente mortos para proteger o segredo, ele acrescentou. (O próprio Fawcett acabou desaparecendo enquanto procurava a suposta cidade amazônica perdida de 'Z'.) Apesar da clara falta de evidências, esta forma irresistível de mito provou ser notavelmente resiliente. Lendas à parte, uma espécie de corrida do ouro está em andamento em partes das Yungas e da Amazônia boliviana, provocada pelo aumento dos preços do ouro após a crise financeira global de 2007-2008. Grande parte da mineração é ilegal e está ligada ao crime organizado, à contaminação de hidrovias e ao aumento do desmatamento, conforme mostra um relatório de 2018 do Projeto de Informação Socioambiental Georreferenciada da Amazônia, uma rede de organizações da sociedade civil. Mas havia poucos sinais disso em Coroico. Enquanto eu tomava uma xícara de chá de coca, esperando meu trufito se encher de passageiros para a viagem de volta pela Estrada da Morte, o único lampejo de ouro foi lançado pelo sol poente aos pés da encosta andina, que lentamente se revelava à medida que ele se deixava cair pelo vale.
2022-06-04
https://www.bbc.com/portuguese/vert-tra-61345406
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A onda de desaparecimento de mulheres jovens no México
Basta caminhar por apenas alguns minutos pelas ruas do centro de Monterrey e você verá até quatro fotos de pessoas desaparecidas. Há também murais com rostos e nomes daqueles cujo paradeiro é desconhecido. Eles estão em cada poste, em cada esquina. Trata-se de um sinal diário da crise que vive Monterrey — e todo o Estado de Nuevo León, no norte do México: há mais de 6.000 desaparecidos, segundo dados oficiais. Mas foi o recente aumento de casos, especialmente de meninas muito jovens, que disparou todos os alarmes sobre a insegurança que perturba o cotidiano de milhares de mulheres. "Como eu sei que você é jornalista? Por que você não usa um gravador?", me pergunta desconfiada Guadalupe, uma mulher que estava em um café depois das 22h na cidade velha de Monterrey. "Já tinha notado que você andou até lá e depois se aproximou... Estamos em alerta constante, chegamos a esse ponto", confessa sua amiga Diana, sentada à mesma mesa na animada rua José María Morelos, uma área repleta de bares e restaurantes. Fim do Matérias recomendadas Ambas as mulheres dizem que se recusam a "viver com medo, trancadas", mas admitem que esta noite "pensaram um pouco mais" antes de sair sozinhas. "Estamos mais atentas, não temos escolha a não ser cuidar de nós mesmas. É triste, mas é assim." Outras mulheres, no entanto, optam por desistir de seu direito de aproveitar a noite. No conhecido Morelos Salon, um bar próximo com música ao vivo, frequentadores dizem que "desde o caso Debanhi" (Debanhi Escobar, uma jovem que foi encontrada morta em uma cisterna de hotel em abril) menos pessoas vão lá e muitas saem mais cedo do que costumavam. "Olha, é muito raro você ver meninas sozinhas na rua. Elas sempre vêm em grupos ou acompanhadas (por homens)", diz María Palacios, que trabalha no local. Segundo ela, os funcionários estão agora mais atentos às garotas quando elas deixam as instalações e que, "quando estão bêbadas", se recusam a vender mais álcool. "Temos que cuidar umas das outras", diz ela. Nuevo León ocupa o noticiário desde o início de abril, quando a imprensa local noticiou o desaparecimento de oito jovens em apenas dez dias, a maioria delas na capital Monterrey e em sua região metropolitana. Segundo dados oficiais, 376 mulheres foram dadas como desaparecidas este ano neste Estado, até 12 de maio. Destas, 48 permanecem como "não localizadas" e seis foram encontradas mortas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast E em um país onde 95% das denúncias não têm solução, o papel das autoridades em garantir a segurança e investigar esses casos está sob escrutínio. Mas a verdade é que Nuevo León sofre com esta tragédia há muito tempo. Maya Hernández sabe disso, uma jovem estudante de psicologia clínica cuja mãe, Mayela Álvarez, desapareceu em Monterrey há quase dois anos. Com apenas 16 anos na época, Maya teve que não apenas liderar a busca, mas também administrar sua casa, onde mora com sua avó e seu irmão mais novo. "Antes de minha mãe desaparecer, não tinha ideia de que isso era uma crise social. E então percebi que não sou a única, que há muitos desaparecidos em Nuevo León. E que, em vez de diminuir, esse número aumentou ao longo dos anos", diz ela à BBC. Segundo Maya, em todo esse tempo, não houve avanços na investigação. "O Ministério Público falhou conosco", diz ela, enquanto cobra maior envolvimento do governador do Estado, Samuel García, como fez com outros casos recentes amplamente noticiados pela mídia, como o de Debanhi. "O fato de minha mãe ter desaparecido me deixou mais cautelosa e mais consciente. Mas cada vez me sinto menos segura", lamenta. "Temos o direito de nos divertir e não devemos nos trancar em casa. Já fizemos isso por causa de uma pandemia, agora não devemos fazer por insegurança." A BBC não recebeu resposta a dois pedidos de entrevistas com o governador de Nuevo León e com o Ministério Público, cujo trabalho foi duramente criticado por familiares de desaparecidos que dizem ter encontrado claras irregularidades em casos como o de Debanhi. A promotora estadual de feminicídio, Griselda Núñez, insistiu em descartar a acusação de que haja uma tendência generalizada ou organizada de violência contra as mulheres em Nuevo León e disse que cada caso deve ser tratado individualmente. Segundo Mariana Limón Rugerio, é "o desamparo do Estado" que não lhes deixa outra saída senão organizar-se. E mais ainda no caso dela, pois ela se sente mais exposta sendo uma jovem jornalista em Monterrey. "Deixei instruções à minha família sobre o que fazer e quem contatar se eu desaparecer" para ajudá-los a lidar "com o dinossauro burocrático que é o México", diz ela à BBC. Graças a um aplicativo, sua família pode monitorar sua localização pelo telefone. De acordo com suas instruções, seus parentes devem começar a se preocupar se três horas se passarem sem notícias dela. Ao fim de cinco horas, eles devem ir imediatamente ao Ministério Público e exigir que iniciem uma busca, pois esses primeiros momentos do desaparecimento são cruciais. "Obviamente, espero que eles nunca usem (as instruções). É realmente horrível explicar aos seus pais o que fazer se você desaparecer. Mas prefiro que eles tenham um corpo para enterrar do que passarem a vida inteira me procurando, porque em um nível psicológico, o último seria muito mais pesado." As jovens de Monterrey estão sendo cada vez mais engenhosas quando se trata de adotar medidas de proteção, desde compartilhar sua localização até carregar spray de pimenta ou um dispositivo taser (eletrochoque) de autodefesa na bolsa. As táticas também incluem evitar postar fotos nas redes sociais em tempo real, para que estranhos não possam saber de sua localização atual. Mónica López, professora de 26 anos da periferia de Monterrey, lamenta que as mulheres sejam obrigadas a adotar essas medidas. "Não é justo, mas você acaba fazendo isso pela sua família e para chegar em casa viva", admite. Ela diz à BBC que, por causa dos últimos casos, algumas de suas amigas desenvolveram ansiedade social. "É a incerteza. Você se censura, perde a segurança, restringe suas horas..." "Tenho medo porque saio à noite, vou a festas. Se me tornar vítima, espero que me chamem de 'professora' e não de 'aquela que desapareceu porque estava bebendo'", afirma, criticando aqueles que tendem a culpar as vítimas. E, inevitavelmente, a insegurança de que tanto se fala em Nuevo León repercute em seu trabalho e na relação com seus alunos. "Você dá muitos conselhos e recomendações de segurança, você trabalha para que eles confiem em você. É horrível, porque são crianças, mas, no fim das contas, este é o ambiente em que estão crescendo e cabe a nós na escola prepará-los para lidar com ele." As autoridades às vezes se encontram em "uma situação complicada", diz Gabriela Martínez. Ela é policial em Monterrey desde os 19 anos, mas também é uma jovem afetada pelo contexto atual. "Apesar de trabalhar nessa área, tenho medo porque também sou mãe. As pessoas pensam que você é policial 24 horas por dia e que temos um chip que nos deixa mais alertas, mas isso não quer dizer que algo poderia não aconteça conosco", diz ela. Martínez diz que os agentes da cidade implementaram medidas para aumentar o apoio às mulheres jovens em situação de vulnerabilidade, como acompanhá-las quando aguardam sozinhas o transporte. No entanto, ela está ciente de que um dos maiores desafios da polícia é reconquistar a confiança dos cidadãos. "Como mulher, obviamente vou cuidar das outras. Tenho uma filha e gostaria que outras pessoas cuidassem dela quando ela anda na rua. Realmente, espero que elas tenham confiança de que vamos fazer todo o possível para ajudá-las a chegar em casa com segurança", diz. Mas a insegurança em Nuevo León não parece estar melhorando aos olhos de muitas mulheres. Enquanto algumas se sentem obrigadas a limitar seus movimentos para evitar serem sequestradas, os parentes das desaparecidas continuam pressionando as autoridades para que seus casos não sejam esquecidos. Eles, como muitos outros, continuam a se fazer a pergunta que está pintada em letras grandes na calçada do lado de fora do Ministério Público, junto com os nomes de milhares de desaparecidas no Estado: "Onde estão?" *Colaborou Melva Frutos.
2022-05-31
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61635687
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Ex-guerrilheiro e 'Trump colombiano': quem são os candidatos que disputam presidência da Colômbia
Os colombianos vão decidir quem será o próximo presidente do país no segundo turno das eleições, em 19 de junho. A disputa será entre o candidato de esquerda ou centro-esquerda Gustavo Petro — ex-guerrilheiro, economista e senador, que disputa a Presidência pela terceira vez — e o candidato de direita Rodolfo Hernández — engenheiro, ex-prefeito de Bucaramanga, muitas vezes classificado como "populista", "escrachado" e "outsider da política". As bandeiras de Petro, de 62 anos, são justiça social, reforma agrária — "democratizar a terra" —, cobrança de impostos às grandes fortunas para "gerar bem-estar e inclusão social" e uma "economia produtiva e com estabilidade econômica". Petro também defende o fim do serviço militar obrigatório e a ampliação de áreas de Direitos Humanos nas Forças Armadas e policiais. Petro, da coalizão Pacto Histórico, tem insistido que não pretende confiscar ou nacionalizar empresas e criticou os governos da Venezuela, de Cuba e da Nicarágua, mas ainda assim não conseguiu evitar a rejeição do empresariado e dos setores conservadores do país. Sua defesa de renegociação dos acordos de livre comércio em vigor, que incluem os Estados Unidos, desagrada o empresariado. A principal bandeira de Hernández, de 77 anos, é o combate à corrupção — quase único assunto sobre o qual insistiu na sua estratégia de comunicação através das redes sociais, apesar de ele ter problemas com a Justiça por denúncias de irregularidades quando foi prefeito de Bucaramanga. Hernández, da Liga de Governantes Anticorrupção, defende o uso medicinal da maconha, a criação de uma renda mínima para os mais pobres e aposentadoria também para aqueles que não contribuíram para a previdência, mas não deu detalhes sobre de onde viriam os recursos. Fim do Matérias recomendadas Logo após os resultados das urnas, analistas disseram, na noite de domingo (29/5), ao canal de TV online do jornal El Tiempo, de Bogotá, que, em "termos matemáticos", não se poderia descartar que Hernández possa chegar a vencer a eleição depois que o candidato da direita Federico 'Fico' Gutiérrez, da coalizão Equipo por Colômbia, que tem apoio dos partidos tradicionais, disse que o apoiaria. "Pela matemática, se os votos de Hernández e de Gutiérrez forem somados, Hernández, o outsider, venceria", disse um deles. Petro recebeu 8,5 milhões de votos (40,32%), Hernández contou com 5,9 milhões (28,15%) e Gutiérrez com pouco mais de 5 milhões de votos (23,91%). Mas, nesta matemática, ainda pode pesar o índice de abstenção e, portanto, não está claro o que aconteceria no segundo turno. A eleição ocorre em meio a uma profunda polarização devido ao descontentamento social derivado da desigualdade e da pobreza, além de demandas para reduzir a insegurança nas cidades e a violência nas áreas rurais onde operam grupos armados ilegais dedicados ao narcotráfico. Mais de 85% dos colombianos acham que o país está no caminho errado. Desde a década de 1990, o momento mais agudo do conflito armado, números tão altos de pessimismo não foram relatados. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A votação surpreendente em Hernández revela, segundo analistas, o "cansaço" dos colombianos com os políticos e o sistema atual. A eleição deixou de fora da corrida eleitoral, pela primeira vez em décadas, os partidos tradicionais, o que também confirmaria este "cansaço" e a busca dos colombianos por "mudanças", num país com longa trajetória de governos de direita e conservadores. "Vencemos e ampliamos nossa votação em relação às eleições anteriores. E nossa disputa é pelas mudanças", disse Petro, famoso por sua oratória em tom de conversa, no fim da noite de domingo. Ele disse, porém, em claros recados para Hernández e seus eleitores, que existem "mudanças que podem ser suicídio" e que "a corrupção não se combate com frases de Tik-Tok". Foi aplaudido por seus seguidores 'petristas' (como seus apoiadores são chamados). Na sua fala, Petro citou o escritor colombiano Gabriel García Márquez. Foi da obra 'Cem Anos de Solidão' que Petro tirou seu pseudônimo nos tempos de jovem guerrilheiro — Aureliano, em referência ao coronel Aureliano Buendía, considerado, por estudiosos, o principal personagem do livro. Hernández foi a grande surpresa eleitoral. Até cerca de um mês, ele tinha 10% das intenções de voto e era levado pouco a sério entre políticos e analistas que viam suas declarações como "exóticas", "politicamente incorretas", "machistas" ou "brutas". Ele era interpretado como o "lanterninha" e com pouquíssimas chances de chegar ao segundo turno. Alguns setores o chamam 'Trump colombiano' e outros o comparam com o italiano Silvio Berlusconi por seu cabelo pintado e penteado. O que foi considerado "voto envergonhado" em Hernández foi decisivo para que ele chegasse ao segundo turno, como observou a professora de ciências políticas Luaciana Manfredi, da universidade ICESI, de Cali. Em seu discurso, após o resultado de domingo, Hernández voltou a falar em "acabar com a politicagem" e disse que sabe que, caso eleito, terá grandes desafios, mas que contará com "o apoio do povo". Durante a campanha, Hernández foi autor de declarações reprováveis. Ele disse, por exemplo, ter "confundido" Hitler com o cientista Albert Einstein, após ter sido criticado por elogiar o ditador alemão durante uma entrevista. Empresário e engenheiro, Hernández fala palavrões, sem rodeios, e durante uma entrevista ao canal CNN em espanhol, reconheceu que estava de pijama. Durante a entrevista de vídeo, o jornalista lhe perguntou se ele usava uma camisa de seda ou pijama. Ao que Hernández respondeu: "Estou de pijama. É que já estava no meu terceiro sono. Eu durmo cedo, por volta das sete da noite", disse. Analistas dizem que seu programa de governo é "vazio" ou "revela poucos detalhes" do que realmente pretende concretizar, caso seja eleito para suceder o atual presidente Iván Duque. Ter sido prefeito de Bucaramanga, com menos de 600 mil habitantes, foi sua única experiência num cargo político. Ele deixou o cargo com mais de 80% de popularidade. A vida de Hernández é marcada também por tragédias. Sua filha, contou ele durante a campanha, foi sequestrada e morta pelo grupo guerrilheiro ELN, ainda em ação, e seu pai esteve sequestrado pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) durante mais de cem dias. O drama de décadas de guerrilhas no país não esteve no centro dos debates no primeiro turno da campanha eleitoral, mas foi lembrado por opositores de Petro, que deixou o grupo armado M-19 ainda na juventude e foi a favor do Acordo de Paz, assinado em 2016. Hernández foi contra o entendimento, realizado durante o governo de Juan Manuel Santos, que levou as FARC a entregarem as armas, mas disse que levaria o acordo adiante, caso seja eleito. Os focos desta campanha são o desemprego e a pobreza, entre outros males evidenciados durante a pandemia de coronavírus. País com cerca de 50 milhões de habitantes, a Colômbia registra mais de 30% de pessoas em situação de pobreza, além de alto índice de trabalhadores informais. Além desse quadro social, não muito diferente de outros da América Latina, a sociedade colombiana aponta a violência — principalmente no interior do território colombiano, onde o tráfico de drogas e outros problemas geram temores — entre as maiores preocupações no país. Apesar de opositores, Petro e Hernández quase formaram a mesma chapa à Presidência, como lembraram analistas ouvidos pela BBC News Brasil, mas terminaram a campanha, no primeiro turno, com troca de farpas públicas. "Milionário corrupto", disse Petro sobre Hernández, que reagiu, lembrando que quase foram aliados. "Agora, não sirvo mais, senhor Petro", disse. Na votação, no primeiro turno, Petro recebeu ampla diferença de votos em relação aos demais candidatos, mas não o suficiente para evitar o segundo turno. Com 99,32% das mesas apuradas, ele, que foi prefeito de Bogotá, teve 40,31% da votação, e Hernández, que foi prefeito de Bucaramanga, 28,2%. Esta é a primeira vez, na história recente do país, que os candidatos que representavam a direita clássica, respaldados pelos partidos tradicionais, não disputarão a cadeira presidencial. O resultado do primeiro turno foi a maior derrota dos partidos tradicionais e dos políticos Álvaro Uribe, ex-presidente, e do atual presidente Iván Duque, que apoiaram Federico 'Fico' Gutiérrez, que ficou em terceiro lugar. A era do 'uribismo' está há vinte anos no poder. Na noite de domingo, 'Fico' anunciou que apoiará Hernández e, até aquele momento, a expectativa era que a direita e a centro-direita em peso seguissem o mesmo caminho — não exatamente por simpatia pelo candidato, mas, principalmente, por aversão a Petro. Em 19 de junho, os colombianos vão decidir quem governará o país por quatro anos.
2022-05-30
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Colômbia terá segundo turno entre esquerda e 'Trump colombiano'
Gustavo Petro e Rodolfo Hernández disputarão o segundo turno das eleições presidenciais colombianas em 19 de junho, segundo contagem inicial. Com 99,8% da apuração de votos contabilizada, Petro adicionou 40% de suporte, Hernández 28% e Federico "Fico" Gutiérrez quase 24%. Mais de 39 milhões de colombianos foram às urnas neste domingo. O voto não é obrigatório no país. A eleição ocorreu em meio a uma profunda polarização devido ao descontentamento social derivado da desigualdade e da pobreza, além de demandas para reduzir a insegurança nas cidades e a violência nas áreas rurais onde operam grupos armados ilegais dedicados ao narcotráfico. Fim do Matérias recomendadas Mais de 85% dos colombianos acham, segundo a pesquisa Invamer, empresa que faz análises de mercado, que o país está no caminho errado. Desde a década de 1990, o momento mais agudo do conflito armado, números tão altos de pessimismo não foram relatados. Por isso, todos os candidatos oferecem uma mudança, embora nem todos da mesma dimensão. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Já antes das eleições, o candidato do Pacto Histórico de esquerda, Gustavo Petro, um economista de 62 anos que foi prefeito de Bogotá e é atualmente senador, liderava as pesquisas como favorito, mas ainda longe dos 50% de apoio necessário para evitar o segundo turno. Petro foi membro do M-19, grupo guerrilheiro desmobilizado em 1990, mas que cometeu muitos atos violentos no país - fator amplamente usado contra ele por seus adversários. Ainda muito jovem, aos 21 anos, ele iniciou seu trabalho na esfera pública como conselheiro municipal, uma espécie de vereador. Na última eleição, Petro também avançou ao segundo turno, mas foi derrotado por ampla margem pelo atual presidente, Iván Duque. Sua companheira de chapa é Francia Márquez, uma ambientalista afro-colombiana que estimulou muitas comunidades indígenas, negras e marginalizadas. Se a dupla vencer, ela será a primeira vice-presidente negra, e Petro será o primeiro presidente de esquerda do país na história recente. O segundo lugar ficou com o empresário e ex-prefeito de Bucaramanga Rodolfo Hernández, de 77 anos. Ele trabalhou como empresário da construção civil, ramo no qual acumulou sua fortuna. Depois de uma passagem marcada por controvérsias - mas ainda com boa aprovação popular - como prefeito de Bucaramanga, uma cidade de cerca de 500 mil habitantes no nordeste da Colômbia, decidiu lançar-se como candidato independente à presidência. Ele ganhou popularidade por seus vídeos excêntricos nas redes sociais, nos quais aparece cantando e andando de bicicleta e skate, por seu discurso contra a corrupção e por sua fama de 'Trump colombiano', em referência ao ex-presidente dos Estados Unidos. Assim como o americano fez em sua campanha, Hernández se apresenta como um candidato anti-sistema, um "outsider". Desde novembro, ele ocupava o terceiro lugar nas pesquisas. Curiosamente, sua intenção de voto foi de 13% em quase todas as pesquisas de 2021 até o final de abril. Até três semanas atrás, os números indicavam que ele seria derrotado na primeira fase da disputa presidencial. No entanto, nas últimas quatro semanas, o candidato começou a aumentar exponencialmente a porcentagem de votos.
2022-05-29
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61628706
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'O que está em jogo nas eleições presidenciais na Colômbia'
Neste domingo, os colombianos decidem se elegem o primeiro candidato de esquerda da história do país ou se optam pela continuidade da direita na Presidência. O ex-guerrilheiro e senador Gustavo Petro, da coalizão Pacto Histórico, é o único de esquerda - ou de centro-esquerda - entre os seis candidatos à sucessão do presidente Iván Duque, no palácio presidencial Casa de Nariño, observaram analistas da Colômbia entrevistados pela BBC News Brasil. Esta é a terceira vez que Petro, que é economista e foi prefeito de Bogotá, disputa a carreira presidencial. "Na eleição passada, o segundo turno foi entre Duque e Petro e a direita se uniu para evitar a eleição de Petro e pela eleição do presidente atual", lembrou o professor de ciências políticas Alejo Vargas Velásquez, da Universidade Nacional da Colômbia. Ele entende, porém, que, nos últimos quatro anos, Petro se fortaleceu como líder da oposição e conseguiu canalizar a frustração de setores do eleitorado colombiano com a política e a exclusão social. Fim do Matérias recomendadas "Essa é uma eleição muito importante para a Colômbia. Duque sai com uma popularidade baixa e reforça a necessidade social por mudanças", disse a cientista política Luciana Manfredi, da Universidade ICESI, de Cali. Como em outros países da região - caso do Chile, por exemplo -, a Colômbia também registrou fortes protestos sociais em 2019 e em 2021, levando alguns analistas a associarem a eleição do chileno Gabriel Boric ao possível desembarque, desta vez, de Petro na Presidência colombiana. Mas, ao mesmo tempo, o presidenciável colombiano também encara altos índices de rejeição entre empresários e camadas das classes média e alta do país. "Ele chamou empresários para conversar e muitos rejeitaram o convite", disse o analista colombiano. Entre as propostas do candidato 'petrista', como dizem os colombianos, está a cobrança de impostos aos mais ricos, inspirada nas suas conversas com o economista francês Thomas Piketty, segundo aliados do presidenciável. Petro gera "simpatias na esquerda e muita antipatia na direita", observou o professor de ciências políticas Víctor M. Mijares, da Universidade de los Andes. Nesta eleição colombiana pelo menos cinco assuntos estão no centro do debate e do destino das políticas do país - além do pêndulo entre a esquerda, representada por Petro, e o restante de centro-direita e direita. São eles: a relação da Colômbia com os Estados Unidos e com a vizinha Venezuela; o combate à pobreza; o tráfico de drogas; a violência de dissidentes guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), que foram um grupo armado durante mais de 50 anos até a assinatura do Acordo de Paz, em 2016, e do grupo em vigor Exército de Libertação Nacional (ELN). Outros pilares do debate político atual são o petróleo - Petro criticou a dependência do país petroleiro nesta energia - e o suspense sobre a relação dos militares com o candidato de esquerda, caso ele seja eleito. "Aqui não se pensa em golpe militar, mas como será a relação de setores militares e da polícia num possível governo de esquerda, liderado por Petro", observou Vargas Velásquez. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em uma reportagem do jornal britânico Financial Times, publicada na semana passada, afirmou-se que "algumas das ideias (de Petro) ainda refletem o radicalismo da sua juventude". O jornal cita, entre outros, sua intenção de rever o acordo da Colômbia com os Estados Unidos "na guerra contra as drogas". De acordo com o analista Mijares, da Universidade de los Andes, a esquerda colombiana é contraria a aliança e a forma de combate dos dois países, realizada há anos, contra o narcotráfico colombiano. Os outros candidatos são mais favoráveis à continuidade do sistema atual, disse. Para ele, a relação da Colômbia com a Venezuela, hoje diplomaticamente interrompidas, seriam retomadas num eventual governo Petro, o que não gera críticas unânimes internamente, já que os dois países têm laços tradicionais que envolvem comércio e imigração - estima-se que mais de dois milhões de venezuelanos vivem no território colombiano. Ameaçado de morte, durante a campanha, Petro usou colete à prova de balas nos comícios e prometeu um giro nas políticas interna e externa do país. Sua candidata a vice-presidente, a líder social e ativista de direitos humanos Francia Márquez, que é afrodescendente, também denunciou ter recebido ameaças por ser mulher e negra. A Colômbia tem um passado de violência política que inclui o assassinato de candidatos à Presidência. "Os únicos que não cabem no nosso projeto de governo são os corruptos e os genocidas. O que defendemos é uma democracia sólida e a inclusão social", disse Petro. A eleição de Petro ou de um dos candidatos da centro-direita e direita poderá depender do tradicional alto índice de abstenção e do chamado voto envergonhado, principalmente, no presidenciável Rodolfo Hernández, da Liga de Governantes Anticorrupção, que com declarações classificadas de 'machistas' subiu nas pesquisas de intenção de votos. "Era esperado que Hernández fizesse barulho na campanha. Ele é o candidato politicamente incorreto e que provoca o voto envergonhado e subiu nas últimas pesquisas", disse Manfredi, da Universidade ICESI, de Cali. O crescimento de Hernández teria reduzido as chances do candidato Sergio Fajardo, do Centro Esperança, que era a esperança do centro, incluindo setores acadêmicos. Além disso, para alguns analistas, causou surpresa que Ingrid Betancourt, que foi vítima de sequestro das FARC, tenha desistido da candidatura e declarado apoio a Hernández. Ela era a única mulher na disputa à Presidência. Na Colômbia, o voto não é obrigatório e, como observou Manfredi, da 'Red de Politólogas' da América Latina, a abstenção registra cerca de 40% nas eleições dos últimos quarenta anos. As últimas pesquisas divulgadas indicaram que Petro está à frente, com 35% ou até 48% das intenções de voto e em segundo lugar, praticamente empatados, com cerca de 20%, estão o engenheiro e ex-prefeito de Medellín Federico 'Fico' Gutiérrez, do 'Equipo Por Colombia', e o engenheiro, ex-prefeito de Bucaramanga, Rodolfo Hernández, da Liga de Governantes Anticorrupção, como mostraram os levantamentos da Centro Nacional de Consultoria e do Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica. 'Fico' Gutiérrez conta com o apoio dos partidos tradicionais, o Partido Conservador e o Partido Liberal. "Ou nos unimos ou estamos ferrados", costuma repetir para mostrar sua aversão a Petro. Se as pesquisas forem confirmadas nas urnas, neste domingo (29), a eleição seria definida no segundo turno, no dia 19 de junho, já que são necessários 50% mais um voto para o candidato ser eleito. Algo une quase todos os candidatos, além da defesa, com diferentes matizes, da retomada das relações diplomáticas com a Venezuela, a preocupação com a apuração dos votos. Segundo a revista Semana, de Bogotá, Petro, Fico Gutiérrez e Sergio Fajardo concordaram que "há preocupação" em relação à 'Registraduría Nacional', órgão que organiza as eleições e é ligado ao Conselho Nacional Eleitoral. País com pouco mais de 50 milhões de habitantes, a Colômbia, que é andina e também banhada pelo Caribe e pelo Oceano Pacífico, tem desafios similares aos de outros países da região, incluindo o Brasil, como a desigualdade social e os altos índices de pobreza. Alguns analistas dizem que esta eleição faz parte do xadrez político regional. "No início dos anos 2000, houve uma onda de governos progressistas, com Lula, Tabaré, Evo e outros. Hoje, temos Bolsonaro no Brasil e (Guillermo) Lasso no Equador e Boric no Chile e Alberto Fernández na Argentina, além de Castillo no Peru. Como o Brasil também elege presidente neste ano, poderíamos estar, ou não, diante de novo pêndulo regional, dependendo do que as urnas digam", disse o professor colombiano Vargas Velásquez.
2022-05-28
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Por que tem sido tão difícil para a esquerda chegar ao poder na Colômbia
"A Colômbia nunca teve um presidente de esquerda." Essa é uma das frases mais ouvidas na campanha das eleições presidenciais deste ano, que serão realizadas neste domingo (29/5). Um candidato da esquerda, Gustavo Petro Urrego, é o favorito em todas as pesquisas. A Colômbia teve líderes progressistas no passado, mas nunca um político de origem popular chegou à Presidência sem o apoio dos partidos tradicionais ligados ao establishment. E Petro, um ex-guerrilheiro tímido que cresceu em cidades pequenas, pode se tornar o primeiro presidente — e com uma agenda econômica crítica ao modelo capitalista vigente no país. A Colômbia nunca foi liderada por revolucionários como o México ou a Bolívia, ou por movimentos populares como o peronismo na Argentina, ou por um socialista, como Salvador Allende no Chile. Fim do Matérias recomendadas Os políticos reformistas de esquerda que chegaram perto do poder foram assassinados. E seus assassinatos desencadearam ondas de violência. Embora o país tenha tido uma democracia e uma economia estáveis ​​da América Latina por décadas, uma parcela crescente da população desenvolveu uma antipatia pela classe dominante, a quem culpa por repetidos conflitos armados e por uma das sociedades mais desiguais do mundo. Após dois momentos de convulsão social em 2019 e 2021, uma pandemia que exacerbou a pobreza e a desigualdade, e um governo de direita que registra os maiores números de reprovação da história recente, a população estar farta de tudo. E a esquerda quer tirar vantagem disso. Mas por que até agora na Colômbia tenha sido tão difícil para a esquerda chegar ao poder? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Vamos primeiro fazer uma breve revisão da história da esquerda na Colômbia. Embora em um século 19 cheio de guerras civis houvesse expressões socialistas, somente na década de 1930 que se pode falar em movimentos sociais com agenda esquerdista, argumenta Mauricio Archila, historiador especialista no assunto. O chamado "Massacre das Bananeiras", ocorrido durante uma greve dos trabalhadores da United Fruit Company nos Estados Unidos em 1928, foi um precursor do que viria depois. Dentro da estrutura bipartidária tradicional, o Partido Liberal — oposto ao Conservador — representava as demandas associadas à esquerda. Mas a distância entre as bases e as lideranças, que pertenciam à aristocracia urbana, quase sempre impediu a consolidação de propostas de fato populares. Nos anos 1930 e 1940, a Colômbia teve seu presidente mais progressista da história: Alfonso López Pumarejo, do Partido Liberal, que abriu espaço para sindicatos no governo e lançou as bases para uma reforma agrária. Seu projeto, inspirado no New Deal americano após a crise financeira de 1929, foi chamado de Revolução em Movimento. Mas a revolução nunca veio. A direita reagiu rapidamente, o Partido Liberal se dividiu e no final prevaleceu a preocupação com a propriedade privada, a ascensão comunista e o medo de um "salto no vazio". Nesse contexto, ocorreu o primeiro pico de violência. Camponeses foram perseguidos por grupos paramilitares chamados de "os pássaros". Durante a década de 1940, figuras populares como Juan Domingo Perón na Argentina e Getúlio Vargas no Brasil governaram países vizinhos. Na Colômbia, surgiu Jorge Eliécer Gaitán, um orador carismático, filho de uma professora e de um livreiro que fez carreira dentro do Partido Liberal, mas sempre foi rotulado de dissidente. Em 9 de abril de 1948, quando um grande movimento popular o levou à Presidência, ele foi assassinado (até hoje não se sabe por quem), e outra onda de violência foi desencadeada. Uma situação mais caótica foi remediada com um pacto de alternância de poder entre os dois partidos tradicionais firmado, em 1958. Foi criada a Frente Nacional, que trouxe certa estabilidade e excluiu do sistema qualquer movimento de fora do establishment. No auge da revolução cubana, milhares de colombianos pegaram em armas contra o que consideravam uma "ditadura perfeita". Seis guerrilhas surgiram, mas nenhuma conseguiu derrubar o poder. Alguns entregaram suas armas e criaram partidos políticos, mas seus líderes e militantes foram perseguidos e mortos. O caso mais citado, classificado como "genocídio", é o da União Patriótica: 5.733 militantes foram mortos entre 1984 e 2016, segundo dados oficiais. Entre eles, dois candidatos presidenciais: Jaime Pardo Leal e Bernardo Jaramillo Ossa. A Frente Nacional acabou na década de 1970, mas sua lógica foi mantida e os governos subsequentes não fizeram mudanças drásticas para manter a calma política e econômica. Houve projetos democratizantes como a Constituição de 1991 e diversos processos de paz foram assinados com as guerrilhas que abriram o espectro político. Um outsider da elite rural também chegou ao poder em 2002, Álvaro Uribe, que quebrou o sistema bipartidário. Mas, na prática, a classe dominante não passou por mudanças drásticas. Na verdade, ela foi ainda mais para a direita. Entre 1995 e 2012, um novo pico de violência tornou impossível discutir reformas. Os presidentes foram eleitos por sua posição sobre a guerra rural. Os movimentos sindicais, camponeses e estudantis continuaram a ser perseguidos. Qualquer agenda progressista, se é que ela existia, foi perdida. Desde 2005, a esquerda democrática vem criando uma estrutura externa ao Partido Liberal, que apoia a direita há décadas. Petro, figura chave neste processo, é o resultado de duas décadas de trabalho. Uma primeira razão que explica a crise incessante da esquerda colombiana é que ter uma agenda progressista em meio à guerrilha é, no mínimo, uma imensa desvantagem. Após a queda da União Soviética em 1989 e a consolidação do capitalismo como modelo dominante, todas as esquerdas da região sofreram um golpe de prestígio. Mas, diferentemente de outros países da região, na Colômbia a insurgência se manteve viva por muitos anos — e continua assim. Sua crescente proximidade com o tráfico de drogas desde a década de 1990 e os ataques simbólicos que deixaram milhares de civis mortos diminuíram sua popularidade. O M19, do qual Petro pertenceu e que se desmobilizou em 1989, obteve 12% e 30% dos votos em duas eleições (seu candidato presidencial em 1990, Carlos Pizarro, foi assassinado), enquanto as FARC, que assinaram a paz em 2016, não conseguem mais que 1% de apoio do eleitorado. "As folhas de petição dos guerrilheiros poderiam ser a plataforma de um partido ou de um sindicato, mas por estarem armados, eles se radicalizaram e tiraram legitimidade dessa agenda", explica Gonzalo Sánchez, historiador especialista em conflitos. "Em um país tão fechado, qualquer demanda democrática se tornava subversiva", acrescenta. A guerrilha não afetou apenas o discurso e a reputação da esquerda política, mas sua própria formação, que nunca esteve isenta de divisões e dogmas. Uma segunda causa da fraqueza da esquerda é, segundo os especialistas, o poder da direita. Desde o século 19, o establishment conservador gozava de uma estrutura política e social, ancorada no clientelismo, que lhe permitia se manter no poder. "A influência da Igreja no Estado e no sistema educacional, uma Força Armada sem autonomia e sem renovação e dependente dos partidos tradicionais e um sistema eleitoral que privilegiava o abstencionismo gerou uma matriz autoritária que se manteve no poder sem muito contrapeso" diz a historiadora Mary Emma Wills. Entre 1949 e 1991, o Estado de Sítio, mecanismo constitucional que conferia poderes extraordinários ao presidente, vigorou por um total de 30 anos em diferentes períodos. Ou seja, 70% do tempo. O medo da chamada ameaça comunista — tão perigosa para o principal aliado da Colômbia, os Estados Unidos— se traduziu em decretos e regimes criminais que restringiam direitos sociais e políticos a movimentos de esquerda, aponta Wills em diversos trabalhos acadêmicos. Mas o Estado também se envolveu em práticas ilegais para deter a insurgência e qualquer corrente de esquerda. Dezenas de investigações, incluindo algumas realizadas pelo Estado, provaram que o paramilitarismo, o movimento armado que mais deixou mortos durante o conflito, surgiu em parte graças à sua aliança com as elites regionais e militares. Leopoldo Fergusson, economista que estuda o conflito, constatou que a vitória de lideranças de esquerda nas eleições locais entre 1988 e 2014 gerou, estatisticamente, um aumento da violência paramilitar naquelas regiões. "É uma reação das elites tradicionais para compensar o aumento do acesso de outsiders ao poder político formal", argumenta o economista. A abstenção de votos na Colômbia sempre foi alta. Há milhões de pessoas que, há décadas, se recusam a participar do sistema eleitoral. Por isso que o padre e defensor dos direitos humanos Javier Giraldo chama a Colômbia de "democracia genocida". No entanto, a classe dominante muitas vezes se orgulha de ter uma das democracias mais estáveis ​​da região. Porque, assim como não houve revoluções nem socialismos, também não houve regimes autoritários que restringissem o voto. Os colombianos que votaram quase sempre escolheram os nomes do establishment. Isso se deve, segundo especialistas, ao fato de que a cultura colombiana foi, pelo menos até o final do século 20, muito conservadora. Eles atribuem isso a três coisas: uma economia cautelosa sem grandes saltos no consumo, crescimento ou abertura; a influência da Igreja na educação e no Estado, que só se declarou laico até 1991; e a ausência de migração externa. "A Colômbia se modernizou e se abriu ao mundo tarde demais, e isso permitiu que a matriz autoritária tivesse um efeito enorme na cultura", diz Wills. No mar da informalidade que é o mercado de trabalho colombiano, aliado à estrutura oligárquica de poder, a única forma de ascender socialmente, diz Sánchez, foi através da ilegalidade. "Se antes a única maneira de ascender socialmente na Colômbia era casar com alguém da oligarquia, nos últimos 40 anos foi a violência e o tráfico de drogas que permitiram o acesso a uma vida mais cosmopolita", diz o historiador. Tudo, no entanto, está mudando. As regiões se articularam, o país se conectou com o mundo — em parte pela emigração herdada da violência — e os acordos de paz abriram um novo leque de preocupações em questões sociais e culturais. Além disso, nos últimos 20 anos a esquerda conseguiu, lenta e tortuosamente, unificar e criar uma certa base eleitoral. Gustavo Petro, desde sua passagem pelo Congresso até agora, foi um dos principais artífices dessa reconstrução eleitoral. Agora ele é o favorito para ser presidente. A história faz muitos até pensarem na possibilidade de um novo assassinato ou um golpe. Outros acreditam que muitos anos se passaram: que a Colômbia, o país onde a esquerda nunca governou, mudou.
2022-05-28
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Por que os EUA decidiram relaxar sanções contra a Venezuela agora?
O governo dos Estados Unidos anunciou nesta terça-feira (17/5) que irá aliviar algumas das sanções impostas à economia da Venezuela — punições que foram estabelecidas em resposta ao que Washington considera ações antidemocráticas do regime de Nicolás Maduro. A medida acontece, de acordo com altos funcionários da gestão Biden, a pedido da oposição venezuelana, liderada por Juan Guaidó, que os americanos reconhecem como presidente interino do país. Segundo os americanos, Guaidó teria acertado um retorno à mesa de negociações com o regime de Maduro, na Cidade do México, para a realização de eleições. As negociações estavam suspensas desde outubro de 2021. "Reiteramos nossa total disposição para construir de maneira urgente um grande acordo político que permita alcançar a recuperação da Venezuela por meio da reinstitucionalização democrática do país", afirmou em nota o grupo Plataforma Unitária, que reúne diversos setores da oposição ao chavismo. O governo Maduro comemorou o anúncio e a vice-presidente do país, Delcy Rodríguez, afirmou esperar que todas as sanções sejam extintas. Fim do Matérias recomendadas O passo ocorre depois que os EUA recorreram a conversas com integrantes do governo Maduro, em março, para sondar a possibilidade de retomada das negociações e a reabertura de seu mercado ao petróleo venezuelano, atualmente sob sanção, o que mitigaria os efeitos da crise de inflação de combustíveis gerada pelos embargos aos produtos russos, após a invasão da Ucrânia pela Rússia, de Vladimir Putin. À época, o líder da maioria no Senado, Dick Durbin (D-IL), explicou a opção entre banir do petróleo russo e reabrir negociações com a Venezuela: "A questão é o que é pior: o massacre de ucranianos inocentes por Putin todos os dias ou fazer negócios com o diabo por alguns dias?" O início da guerra na Ucrânia representou um incremento de cerca de 20% no preço visto pelos americanos nas bombas de gasolina, um impacto considerável em um país que enfrenta a maior inflação em 40 anos. É um risco eleitoral para o governo Biden, que precisará enfrentar eleições legislativas de meio de mandato no fim do ano. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Autoridades americanas, no entanto, negam que o alívio às sanções contra a Venezuela agora tenha relação com a demanda global por combustíveis ou com a pressão doméstica da inflação e afirmam que a mudança é resultado do avanço das conversas lideradas pelos próprios venezuelanos. "Nosso foco tem sido apoiar o governo interino (de Guaidó) a levar o regime (Maduro) a tomar passos de negociação na direção de eleições livres e justas. Este tem sido o foco, não o setor de petróleo, nem os preços do combustível", disse uma das autoridades americanas envolvidas nas negociações. As medidas de alívio de sanções ainda não foram extensamente detalhadas pelo governo dos EUA, mas a BBC News Brasil apurou que, em conjunto com o Departamento de Estado, o Tesouro americano emitiu uma licença autorizando a petroleira americana Chevron a negociar os termos de potenciais atividades econômicas futuras na Venezuela. A licença, no entanto, ainda não permitiria exploração e exportação de petróleo dos campos venezuelanos. Nas palavras de um assessor do governo Biden, seria uma licença meramente "para conversar". Os americanos devem também anunciar em breve a retirada de alguns nomes de empresários das listas de sanções. "Nenhum desses alívios de pressão deve levar a um aumento de receita do regime (Maduro)", afirmou uma autoridade americana com conhecimento das medidas. O argumento, porém, encontra ceticismo entre os estudiosos da relação entre EUA e América Latina. "O governo Biden diz que a Chevron não vai poder extrair petróleo, apenas negociar com a PDVSA (a estatal petrolífera venezuelana). Porém, o que as petroleiras fazem além de retirar petróleo e exportá-lo? O povo americano não é tão estúpido assim. Mais cedo ou mais tarde, a Chevron vai explorar petróleo e a PDVSA vai se beneficiar disso", afirma Ryan Berg, pesquisador de América Latina do Centro de Estratégia e Estudos Internacionais. Berg nota que os movimentos da administração Biden em relação à Venezuela têm causado desconforto no país e na região. Segundo diplomatas ouvidos pela BBC News Brasil, nem a oposição venezuelana, nem parceiros como Brasil e Colômbia foram avisados de antemão da visita-relâmpago de emissários de Biden ao regime Maduro, em março. Entre esses países, que alinharam com Washington sua política em relação ao vizinho - de reconhecer Guaidó como chefe de Estado - houve dúvidas sobre o significado das ações do governo americano. Em visita recente ao Brasil, uma comitiva de alto nível do Departamento de Estado repetiu aos brasileiros que nada havia mudado na relação EUA-Venezuela. Agora, diante de uma mudança que pode ter impactos consideráveis na área, os americanos tentam passar a mensagem que sua atuação aconteceu a pedido de Guaidó. "Quero deixar bem claro aqui que os EUA estão fazendo isso em resposta às ações e às conversas que estão ocorrendo entre o regime (Maduro) e o governo interino (de Guaidó) em uma plataforma de unidade, sem que os EUA tenham estado envolvidos. Foi uma conversa deles e entre eles, e eles vieram até nós para pedir para tomar essas ações", afirmou um funcionário de alto nível da gestão Biden. Segundo afirmou Berg à BBC News Brasil, a gestão Biden gostaria de ter revertido há mais tempo a política de "pressão máxima" nas sanções sobre a Venezuela, herdadas da gestão do republicano Donald Trump. Para isso, no entanto, precisava que o governo Maduro avançasse nas negociações com a oposição, em conversas na Cidade do México, sob mediação da Noruega. Porém, as negociações acabaram implodidas em outubro, quando a Justiça americana extraditou o aliado de Maduro, Alex Saab, de Cabo Verde, para cumprir pena nos EUA por lavagem de dinheiro relacionada às atividades de Saab com o governo venezuelano. Para Maduro, a ação representou quebra de confiança e o governo se levantou da mesa. Para atraí-lo de volta, Washington teria concedido uma primeira conversa em março e aliviado sanções agora. "É estranho que um país forte como os EUA tenha que fazer uma visita em março e agora levantar sanções em troca de um compromisso tão leve quanto apenas retornar para a mesa de negociações", afirma Berg. Em um artigo publicado pela revista Foreign Policy nesta segunda-feira, apenas um dia antes do anúncio dos americanos, Isadora Zubillaga, vice-ministra das Relações Exteriores no gabinete de Juan Guaidó, ajuda a lançar dúvidas sobre quem endossa o alívio das sanções decidido pela Casa Branca e qual é o real interesse por trás da decisão. "Como defensora de longa data da democracia venezuelana, acredito firmemente que ignorar a ditadura de Maduro (e fazer negócios com a Venezuela) na esperança de reduzir os preços domésticos da energia nos EUA não é apenas eticamente problemático, mas contraproducente e ineficaz. O petróleo venezuelano não reduzirá os preços dos combustíveis nos EUA no curto ou médio prazo nem servirá aos objetivos de longo prazo dos venezuelanos de garantir um país livre e democrático", escreveu Zubillaga. A nova postura da gestão Biden em relação à Venezuela acontece ainda às vésperas da Cúpula das Américas, das quais os EUA serão anfitriões, em junho, em Los Angeles. E embora os americanos estejam determinados a promover um encontro que transmita ao mundo, e especialmente à Rússia e à China, a percepção de que o continente está unido em torno da liderança da gestão Biden, a organização do evento tem patinado e líderes de peso ameaçam não comparecer. É o caso do presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, que ameaça faltar ao evento. Recentemente, Obrador afirmou que Washington não deveria excluir ninguém do encontro, em referência aos líderes de Nicarágua, Cuba e Venezuela, que não devem ser convidados. A diáspora dos dois últimos países é politicamente poderosa nos EUA - especialmente em um Estado pendular, a Flórida - e se opõe a qualquer concessão dos americanos aos governos de seus países, considerados ditaduras pelos EUA. Diante da necessidade de disputar o controle do Congresso, o governo Biden deixou claro que não considerava negociável convidar os três países para o encontro em Los Angeles. Se com isso ele preservou-se com as comunidades latinas nos EUA, ao aliviar sanções à Venezuela, ele faz uma jogada doméstica arriscada. "Ainda assim, Biden resolveu arriscar com a audiência interna ao levantar as sanções contra a Venezuela e reduzir a pressão contra Cuba também", afirma Berg, em referência à autorização de maiores remessas de dinheiro para a ilha sob regime comunista, anunciada esta semana. "Pode ser que ele esteja fazendo isso como uma concessão a Obrador, ou diga isso, mas está acumulando desgastes internos e externos". Ronald Sanders, embaixador de Antígua e Barbuda nos EUA, levou recentemente ao Departamento de Estado o recado de que boa parte dos mandatários do Caribe também estariam dispostos a furar o encontro se Cuba fosse excluída. A possibilidade de que não haja representantes da gestão Maduro, mas sim de Guaidó, também incomoda. A tensão em torno do evento chamou a atenção de um dos antagonistas globais dos EUA. "Cuba, Nicarágua e Venezuela não são países das Américas?" questionou Zhao Lijian, porta-voz do Ministério de Relações Internacionais da China. Já o mandatário brasileiro, Jair Bolsonaro, também ameaça não aparecer. Conhecido aliado de Trump, Bolsonaro se ressente de jamais ter tido um contato pessoal com o atual presidente americano, que assumiu em janeiro do ano passado. Além disso, recados para que o brasileiro deixe de lançar dúvidas sobre o processo eleitoral de outubro e comentários públicos da gestão Biden de que o Brasil estaria "do lado errado da História" por conta da visita de Bolsonaro a Putin, em Moscou, uma semana antes da guerra estourar, criaram no Planalto a percepção de que não há muito a ganhar com o contato com Biden em meio a uma pré-campanha eleitoral. Para analistas de América Latina, em um ano e meio de governo, Biden não foi capaz de criar uma agenda para a região que superasse o óbvio tema da migração e reaproximasse os países de Washington, depois de um grande afastamento durante a gestão Trump. Diplomatas latinos ouvidos pela BBC News Brasil dizem que a gestão é lenta para oferecer linhas de financiamento e investimentos em infraestrutura e comércio para uma região que sofre com baixo crescimento (ou recessão) e inflação alta. Nas palavras do site americano Político, em vez de unir o continente, o evento de Biden "atraiu vaias e ameaças de boicote". "O que fica claro é que o governo Biden falhou em ter uma política para a América Latina que criasse grandes incentivos para que os líderes latinos estivessem presentes e custos altos para quem faltasse ao encontro. Acho que pode não apenas ser um fracasso, mas também um épico sinal do declínio do poder dos EUA no Hemisfério Ocidental", afirma Berg.
2022-05-17
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61488916
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A hondurenha acusada de chefiar uma das principais quadrilhas de tráfico das Américas
Parece um efeito dominó: uma vez que o primeiro é derrubado, muitos dos possíveis atores da trama do narcotráfico em Honduras começam a cair um após o outro. Primeiro foi Juan Antonio Hernández, que, em 2020, foi considerado culpado por tráfico de drogas e armas. Neste domingo (15/5), foram divulgadas imagens da prisão de Herlinda Bobadilla, conhecida como La Chinda. O governo norte-americano havia oferecido uma recompensa de US$ 5 milhões (R$ 25 milhões) em troca de informações que levasse à sua captura. Ela é considerada a líder do clã Montes Bobadilla, acusado de controlar a região do Caribe hondurenho. Por meio de suas ligações com cartéis de drogas na Colômbia e no México, o grupo teria conseguido embarcar milhares de quilos de cocaína para os Estados Unidos. Fim do Matérias recomendadas Durante a operação, um de seus filhos, Tito Montes, morreu. Outro, Juan Carlos, teria conseguido fugir e segue como procurado pelas autoridades. Herlinda tem 61 anos e foi algemada e transferida em um helicóptero da polícia a partir da região de Colón, onde foi capturada, até a capital Tegucigalpa. Sua imagem levantou várias questões sobre sua identidade. "A verdade é que a presença de mulheres dentro das organizações do narcotráfico é muito mais comum do que parece, o que acontece é que elas não são tão visíveis devido ao machismo que se exerce no mundo das drogas", disse Deborah Bonello, editora para América Latina da Vice World News, à BBC Mundo (serviço em espanhol da BBC). Quem é "La Chinda" e como ela conseguiu se tornar a líder de um dos principais cartéis de drogas da América Central? O clã Montes Bobadilla tem suas origens na Colômbia, com ligações ao famoso mas agora extinto Cartel de Cali. Pedro García Montes, hondurenho encarregado de pagamentos e outros negócios, trabalhava para o cartel. Ao desenvolver este trabalho, ele começou a criar zonas de carga, descarga e transporte de drogas na área caribenha de seu país. Com o tempo, o negócio cresceu. Em 2004, García Montes foi assassinado em Cartagena e o controle dessas operações em Honduras foi assumido por um de seus parentes, Alex Adán Montes Bobadilla. Então, para ajudá-lo a fortalecer sua posição dentro do clã, Alex Adán decidiu trazer uma parente de confiança: Herlinda Bobadilla. La Chinda nasceu em outubro de 1961 na cidade de Macuelizo, a cerca de 290 quilômetros de Tegucigalpa, mas morava com a família na região de Colón, no norte do país, onde se concentravam as operações do clã. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Segundo as autoridades hondurenhas, Herlinda se casou com Alejandro Montes Alvarenga e os dois tiveram seis filhos. Três deles - Alejandro (mais conhecido como Tito), José Carlos e Noé - se envolveram totalmente no trabalho para o grupo criminoso. Ela teria colaborado ativamente em várias operações internas do clã na região de Colón. Autoridades hondurenhas apontam que Herlinda Bobadilla é proprietária de dezenas de casas no município de Limón, área de influência do clã. O portal jornalístico Insight Crime afirma que esta região hondurenha é estratégica para o transporte da droga dos cartéis sul-americanos, especialmente da Colômbia. De Honduras vai para a Guatemala, onde é recolhida pelos cartéis mexicanos, que finalmente colocam o produto no mercado norte-americano. Em 2014, houve uma mudança de comando após a morte de Alex Adán na prisão. Noé Montes Bobadilla, terceiro filho de Herlinda, assumiu como chefe, mas foi capturado em 2017 e extraditado para os EUA dois anos depois. Este é o momento, segundo as autoridades norte-americanas, em que ela, juntamente com os filhos Tito e José Carlos, assume a liderança do clã. Herlinda aumenta as operações de transporte, segundo documentos do governo hondurenho, e desenvolve o plantio de folhas de coca para produzir seus próprios carregamentos. "Seus papéis de liderança na organização de tráfico de drogas Montes Bobadilla cresceram significativamente desde a prisão em 2017 e a extradição para os Estados Unidos do terceiro filho de Herlinda, Noé Montes Bobadilla", disse o comunicado do Departamento de Estado de maio deste ano. Foram oferecidos US$ 5 milhões de recompensa relacionada a cada um dos três líderes do clã. Embora tenha sido após a captura de Noé e sua posterior extradição que Herlinda Bobadilla (também conhecida como Erlinda Montes Bobadilla) foi promovida à liderança, o governo dos EUA já estava atrás dela há tempos. Em 2015, um tribunal dos EUA no Estado da Virgínia acusou ela e seus filhos de transportar cocaína e outros crimes relacionados ao tráfico de drogas. É aí que começa uma perseguição direta ao clã. Em 2017, Noé foi capturado, mas também teve início um processo de cassação de domínio nas propriedades de Herlinda Bobadilla em Honduras. Cerca de 40 propriedades, localizadas principalmente na província de Colón, foram então confiscadas pelo governo hondurenho. Mas o passo definitivo foi dado no dia 2 de maio, com a oferta de US$ 5 milhões para cada um dos membros da família, incluindo Herlinda. O cerco se fechou neste fim de semana, quando, em uma grande operação, as forças especiais hondurenhas chegaram onde Herlinda estava com seus dois filhos, Tito e José Carlos. De acordo com o relatório das autoridades, Tito morreu em meio a confrontos com as forças especiais, enquanto José Carlos conseguiu fugir. As autoridades então procederam à captura de sua mãe, que foi algemada e enviada para a capital Tegucigalpa, onde enfrentaria acusações que iam de tráfico de drogas a corrupção e lavagem de dinheiro. Mas, sobretudo, ela estará esperando para ser extraditada para os Estados Unidos, país onde está seu filho Noé, que cumpre pena de 39 anos de prisão. Desde 2014, Honduras extraditou pelo menos 31 de seus cidadãos, desde membros do clã Montes Bobadilla até o ex-diretor da Polícia Nacional Juan Carlos Bonilla, que foi enviado aos EUA na semana passada sob a acusação de aceitar suborno para permitir o transporte de drogas dentro do país.
2022-05-17
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Como um cartel de drogas paralisou parte da Colômbia
A extradição de Dairo Antonio Úsuga, conhecido como "Otoniel", o homem mais procurado da Colômbia, desencadeou uma resposta imediata do Clã do Golfo, a organização criminosa comandada por ele. No dia 5 de maio, o Clã do Golfo, também conhecido como Autodefesa Gaitanista da Colômbia (AGC) fez circular um panfleto no qual decretou "4 dias de paralisação armada ". O panfleto dizia que estava proibido "abrir negócios de qualquer natureza" e "se movimentar através de qualquer tipo de transporte". A declaração acabava com a ameaça de haver "consequências desfavoráveis" para quem não cumprir essas medidas. Segundo o Clã do Golfo, o toque de recolher estava marcado para terminar à meia-noite da última segunda-feira (09/05). Fim do Matérias recomendadas A paralisação foi imposta depois que Otoniel foi extraditado para os Estados Unidos na última quarta-feira onde enfrenta um processo na Justiça local. Otoniel, além de poderoso narcotraficante e chefe do temido Clã del Golfo, é acusado de ser o autor de massacres, expulsões, sequestros e atos de pedofilia. Esta não é a primeira vez que a Colômbia enfrenta um toque de recolher ordenado por um grupo armado ilegal, mas, segundo analistas, há novas características nessa ação mais recente. Veja alguns pontos-chave para entender a atual situação. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na Colômbia, as "paralisações armadas" se referem a ações de grupos ilegais, formados por guerrilheiros, paramilitares ou narcotraficantes, com ataques a civis e às forças armadas, além do bloqueio de estradas, da restrição à circulação de pessoas e veículos, de ameaças que forçam o fechamento de estabelecimentos comerciais e da suspensão das aulas em colégios e universidades. Nessa última ação, o Clã do Golfo ameaçou atacar quem viajava pelas estradas de vários Departamentos (Estados) do país, incluindo caravanas escoltadas pelo exército. Os guerrilheiros do Exército de Liberação Nacional (ELN) anunciaram várias dessas ações, a mais recente em fevereiro passado. No entanto, nenhuma dessas paralisações no passado afetou tantas regiões ao mesmo tempo, segundo a agência de notícias EFE. Como explica o portal InSight Crime, "a paralisação armada tem sido uma estratégia comum dos atores armados na Colômbia como uma demonstração de poder em resposta ao assassinato ou a captura de seus chefes quando enfrentam operações do exército ou às vésperas de uma eleição". O Clã do Golfo anunciou a paralisação armada em retaliação à extradição para os EUA de seu principal líder, Dairo Antonio Úsuga. De acordo com um relatório da Polícia Nacional da Colômbia e da Fundação Paz e Reconciliação, a organização criminosa liderada por Otoniel está presente em 211 dos 1.103 municípios do país. Estima-se que mais de mil homens atuem sob sua liderança, a maioria ex-integrantes da extinta guerrilha do Exército Popular de Libertação (EPL) e das Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), um grupo paramilitar de direita que encerrou suas atividades em 2006. O próprio Otoniel fazia parte da EPL e, quando esse grupo guerrilheiro se desmobilizou em 1991, decidiu mudar de lado: passou a integrar as AUC, que ocupavam a região de Urabá, no noroeste da Colômbia. Na segunda-feira (09/05) a Jurisdição Especial para a Paz (JEP), um órgão da Justiça colombiana, informou que 11 dos 23 departamentos do país, em um total de 178 municípios, foram afetados por ações violentas. Foram registradas várias mortes, embora haja divergência sobre os números. Segundo o órgão, morreram 24 civis e dois membros das forças de segurança. Foram bloqueadas 26 estradas, 138 comunidades ficaram confinadas e houve 22 ataques às forças de segurança. No entanto, o Ministério da Defesa informou seis mortes: três civis, um policial e dois soldados. 180 veículos também foram atacados, a maioria deles incinerados. Uma das áreas mais afetadas é a cidade de Montería, no Departamento de Córdoba, onde lojas, escolas e universidades tiveram que permanecer fechadas. No sábado, a ouvidoria local informou que 162 pacientes em Córdoba não puderam fazer tratamento de diálise. "A vida dessas pessoas corre perigo se não receberem esses insumos logo", alertou o ouvidor, Carlos Camargo Assis. O Terminal de Transportes de Montería informou que no sábado a circulação de ônibus diminuiu mais de 90%. Na cidade também foi cancelado um jogo de futebol do campeonato nacional. O Deportivo Medellín, time visitante, não viajou para a partida porque não poderia "garantir a segurança da delegação". No Departamento de Antioquia, onde fica Medellín, a segunda maior cidade do país, houve falta de abastecimento de gás em vários municípios, afetando 77 mil pessoas. Outros Departamentos que aparecem entre os mais afetados pelas ações violentas são Sucre, Bolívar, La Guajira, Atlântico e Chocó. A presidente-executiva da Federação Colombiana de Transportadores Rodoviários de Carga (Colfecar), Nidia Hernández, informou que o toque de recolher gerou perdas equivalentes a US$ 3,2 milhões (R$ 16,4 milhões). Segundo o Ministério da Defesa, na última segunda 93 municípios registraram abertura comercial inferior a 50%. Quando Otoniel foi capturado em outubro de 2021, o presidente colombiano Iván Duque afirmou que esse golpe marcou "o fim do Clã do Golfo". Com esse toque de recolher, porém, o grupo mostrou que ainda tem capacidade de causar problemas. Essa paralisação é ​​a maior do Clã do Golfo nos últimos seis anos, segundo o portal La Silla Vacía. "O toque de recolher mostra que o Clã do Golfo tem o poder criminoso de paralisar departamentos inteiros", diz uma análise do portal. Sergio Guzmán, diretor da Colombia Risk Analysis, uma consultoria de risco político e de segurança que opera na Colômbia, vê dois outros fatores específicos nessa paralisação armada. "Já vimos que quando um capo [chefe] é capturado, é lançado um 'plano de pistola': policiais são mortos, estações são atacadas. Mas esse ataque foi contra a população civil de maneira mais ampla", disse Guzmán à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC. "Vimos isso com o ELN, mas não necessariamente com as Autodefesas Gaitanistas." "É preocupante que um grupo armado ilegal tenha a capacidade e a intenção de realizar uma ação armada dessa magnitude. Para isso, é necessária uma infraestrutura política e militar bastante sofisticada." Laura Ardila, jornalista do La Silla Vacía, descreveu esse toque de recolher como "sem precedentes". "Essa paralisação é ​​inédita porque as AGC chegam pela primeira vez a áreas que se recuperaram da violência ou em que atos de violência não ocorriam há muitos anos", disse Ardila à BBC. "Eles demonstraram uma capacidade de expansão no controle e exercício do medo." Da mesma forma, Guzmán chama a atenção para o fato de que a paralisação atingiu áreas menos periféricas. "Eles estão se aproximando perigosamente dos centros urbanos. É significativo que em uma cidade de importância econômica como Montería os negócios fecharam. É uma cidade bem conectada à infraestrutura nacional." Na segunda-feira, o Ministério da Defesa divulgou um balanço das ações da força pública para enfrentar as consequências da paralisação armada. O ministério menciona que "180 membros do Clã do Golfo foram capturados, neutralizados e levados à Justiça". Também informou que mobilizou 19.729 militares e foram realizados sobrevoos, incursões, patrulhas, escoltas policiais e entrega de alimentos. No domingo, o presidente Duque ofereceu uma recompensa equivalente a US$ 1,2 milhão (R$ 6,1 milhões) para quem fornecer informações que levem à captura de outros membros do Clã do Golfo. "Que fique claro: ou eles se entregam ou vão acabar como Otoniel", alertou o presidente. "Continuaremos a quebrar, permanentemente, toda a cadeia do Clã do Golfo." Alguns setores, no entanto, expressaram suas críticas à reação do governo. "É muito fácil ser corajoso na Casa de Nariño [sede governo colombiano] com 300 policiais e escoltas de proteção, mas é hora de visitar as regiões onde estamos sofrendo, passando fome e não há como retirar os feridos e doentes", disse no sábado o prefeito de Frontino (Antioquia), Jorge Hugo Elejalde, em declarações registradas pela EFE. Em entrevista à emissora W Radio na segunda-feira, o governador de Antioquia, Aníbal Gaviria, disse que "o controle territorial do Estado colombiano há quatro ou cinco décadas é cheio de lacunas, com deficiências, e essa situação deu força à paralisação". Por sua vez, a análise de La Silla Vacía sustenta que, apesar da extradição de Otoniel, a Colômbia de Duque "continua incapaz de garantir medidas básicas de segurança, como a livre circulação em vastas áreas do país". O analista Sergio Guzmán diz que a reação do governo não foi oportuna. "Vejo que as autoridades não reagiram com todo o peso da lei e a rapidez esperada", diz o analista. "O governo do presidente Duque saiu no meio da paralisação para a posse do presidente da Costa Rica e não apareceu em Montería." "Sem falar nas forças militares que, com a paralisação decretada na quinta, só se mobilizaram no domingo. Isso é preocupante porque parecem não dar o peso que merece uma ação que paralisou, ameaçou ou sitiou uma grande parte da população do país." Segundo Guzmán, o toque de recolher é um sinal de que a situação de segurança no país está "erodindo" e que o governo está perdendo o monopólio do uso da força. "Que o governo não tome isso como uma séria ameaça à existência da nação parece que é subestimar a ameaça que isso representa", conclui o analista.
2022-05-11
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61416344
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Quem é o promotor paraguaio que investigava PCC e foi assassinado em lua de mel
Um promotor que investigava o crime organizado no Paraguai foi assassinado nesta terça-feira (10/5) na Colômbia, onde passava a lua de mel. A informação foi confirmada pelo presidente do Paraguai, Mario Abdo Benítez, que condenou o crime em postagem no Twitter. "O assassinato covarde do promotor Marcelo Pecci na Colômbia deixa toda a nação paraguaia de luto. Nós condenamos este trágico acontecimento com a maior veemência e redobramos nosso compromisso de lutar contra o crime organizado", escreveu. Em 2017, Pecci liderou foi a chamada operação "Zootopia", em que foi desmontada a maior estrutura da facção criminosa brasileira Primeiro Comando da Capital (PCC) no Paraguai, com apreensão de 500 quilos de cocaína. Pecci também investigava uma chacina ocorrida no ano passado em Pedro Juan Caballero, na qual morreram quatro pessoas — incluindo a filha do governador da província de Amambay e duas estudantes brasileiras (Kaline Reinoso de Oliveira, de 22 anos, e Rhannye Jamilly Borges de Oliveira, de 18 anos). A principal suspeita das autoridades é que o crime tivesse sido cometido por causa de uma disputa interna em uma quadrilha brasileira de traficantes de drogas. Fim do Matérias recomendadas O narcotráfico na fronteira entre Pedro Juan Caballero e Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul, é controlado por pessoas ligadas ao PCC. Pecci morreu na ilha de Barú, localizada a cerca de 40 minutos de barco da cidade de Cartagena das Índias. Fontes da embaixada do Paraguai na Colômbia disseram à agência EFE que foram informadas sobre o acontecimento que ainda está sob investigação e que mantêm contato com a Polícia Nacional da Colômbia, que está realizando as investigações. O diretor da Polícia Nacional da Colômbia, general Jorge Luis Vargas, disse à imprensa que as autoridades estão tomando atitudes urgentes e confidenciais que, segundo afirmou, "ajudarão a identificar os responsáveis ​​por este lamentável acontecimento". A Polícia paraguaia também enviou uma delegação à Colômbia que se juntará à investigação. Pecci, de 45 anos, era procurador especializado contra o Crime Organizado, Narcotráfico, Lavagem de Dinheiro e Financiamento do Terrorismo. Ele havia recém se casado com a jornalista paraguaia Claudia Aguilera em 30 de abril e estava em lua de mel com ela. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Aguilera disse à imprensa paraguaia que eles foram abordados por dois homens que chegaram em um barco à praia do hotel onde estavam hospedados e que atiraram em seu marido. Ele disse que não recebeu ameaças de morte. Na manhã de terça-feira, o casal havia anunciado no Instagram que estava esperando um filho. A imprensa local também informou que o funcionário fazia parte de uma operação chamada "Ultranza", contra o tráfico de drogas e lavagem de dinheiro, e estava envolvido na investigação de um ataque ocorrido em janeiro durante um show no Paraguai. Ele participou na investigação do assassinato da filha de um governador regional e no caso do ex-jogador de futebol brasileiro Ronaldinho, que foi preso ao tentar entrar no Paraguai com passaporte falso em 2020. O presidente Mario Abdo Benítez informou que se comunicou com seu colega colombiano, Iván Duque, bem como com o governo dos EUA, e que eles ofereceram apoio para investigar o ocorrido.
2022-05-11
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61405978
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Toque de recolher na Colômbia desafia tentativa de dar fim a organização criminosa
No dia em que o líder de um dos cartéis mais poderosos da Colômbia, Dairo Antonio Úsuga, foi preso, o presidente da Colômbia, Iván Duque, comemorou: "Com este golpe, marca-se o fim do Clã do Golfo". Era outubro de 2021, e no mesmo discurso, Duque anunciou que pretendia providenciar a extradição de Úsuga para os Estados Unidos. Também conhecido como Otoniel, o líder do cartel é ex-guerrilheiro, paramilitar, traficante de drogas e membro de uma família poderosa do noroeste do país. Na semana passada, finalmente a promessa do presidente colombiano se concretizou: Otoniel foi extraditado para os EUA. Duque acompanhou a operação de transferência ao vivo, por videochamada. Mas enquanto as autoridades celebravam o "triunfo da justiça sobre a impunidade", membros do clã, também conhecido como Autodefensas Gaitanistas de Colombia (AGC), estavam se preparando para responder à extradição com um rigoroso toque de recolher que paralisou metade do país — e em plena campanha presidencial. Em 5 de maio, a AGC fez circular um panfleto no qual decretou "4 dias de paralisação armada", não sendo possível "abrir negócios de qualquer natureza" e "se movimentar através de qualquer tipo de transporte". Aqueles que descumprissem as ordens passariam por "consequências desfavoráveis". Fim do Matérias recomendadas Pelo menos 74 comunidades em 11 Departamentos (Estados) ficaram confinadas, quase 200 veículos foram queimados e pelo menos oito pessoas foram mortas — algumas por descumprimento das ordens do grupo criminoso e outras em confrontos com forças policiais. Na segunda-feira (9/5), um suposto comunicado da AGC anunciou o fim do toque de recolher. Depois, outra suposta comunicação do grupo desmentiu a anterior. Ainda não se sabe com precisão se as atividades nestes locais voltaram à normalidade. Duque, por sua vez, viajou a Urabá, berço do grupo criminoso, para visitar empresas e anunciar novas extradições e ofensivas contra lideranças do Clã. Ele anunciou que 300 prisões já haviam sido feitas e que 60 toneladas de cocaína foram apreendidas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas a Fundação Ideias para a Paz (FIP), dedicada aos estudos sobre a violência no país, afirmou em um relatório que a posição do governo de que a captura de Otoniel constituiria o fim da AGC é "apressada e distante da realidade". De acordo com a fundação, a AGC mantém seu poder sem Otoniel por quatro motivos: a organização criminosa continua controlando parte de Urabá; não perdeu conflitos por território ou renda com outros grupos armados; expandiu-se para regiões distantes de seu território núcleo; e consolidou uma estrutura de funcionamento heterogênea, conseguindo atuar em diferentes áreas ao mesmo tempo. Por isso, os especialistas da FIP avaliaram que "os efeitos da captura de Otoniel no mercado de drogas podem ser leves e limitados, mas as repercussões em termos de violência — massacres, deslocamentos, confinamentos, recrutamento de menores ou violência sexual — podem apresentar mudanças importantes". O Urabá é uma região próspera para a agricultura e pecuária, fica próximo à fronteira com o Panamá e tem acesso ao Oceano Pacífico. É um ponto estratégico para qualquer atividade comercial, e na Colômbia, o é também para o tráfico de drogas e armas. A região foi dominada na década de 1990 pelos guerrilheiros do Exército Popular de Libertação (EPL) e das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). Depois, vieram as Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), o exército paramilitar que enfrentava a insurgência. O EPL e a AUC marcaram a origem da AGC, já que ex-membros de ambos os lados, em teoria opostos e desmobilizados, se uniram no que acabou por se tornar um grupo mais voltado a atividades criminosas do que políticas. O próprio Dairo Antonio Úsuga, extraditado na semana passada, fez parte do EPL. "O Clã do Golfo é uma organização sofisticada que tem uma estrutura estável, uma âncora em negócios legais como a pecuária e um amplo portfólio de atividades criminosas que incluem extorsão e venda coercitiva de serviços", explica Víctor Barrera, pesquisador do Centro de Pesquisa e Educação Popular (CINEP), em Bogotá. Mas especialistas alertam que há muito desconhecimento sobre esse grupo. A multiplicidade de grupos armados associados a ele em todo o país — alguns permanentes e outros contratados, alguns autônomos e outros não — impossibilita conhecer a extensão de seu poder. Há estimativas que falam de 3 mil membros da AGC; outras chegam a 13 mil, número semelhante ao das FARC, o maior grupo guerrilheiro do país, em seu auge. Inclusive, Duque já afirmou que, ao lidar com a AGC, insistiria em uma estratégia do governo de Álvaro Uribe contra as FARC: derrubar os principais líderes. Mas, segundo Mauricio Romero, assessor da Fundação Paz e Reconciliação, a perseguição por si só não é uma solução: "É preciso ter em mente que essas organizações criam empregos, oferecem renda e mantêm a economia das regiões onde atuam." "Para acabar com eles, devemos gerar economias regionais vinculadas a negócios legais." E a Colômbia, apesar dos esforços para transformar suas atividades, continua sendo o maior exportador mundial de cocaína. *Colaborou Andrea Díaz
2022-05-10
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61403167
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'Tudo por eles': Mães solteiras venezuelanas enfrentam saga da migração em busca de vida melhor para filhos
Verónica Guillent, de 25 anos, conta que deixou o pequeno povoado onde morava na Venezuela em direção ao Brasil levando apenas uma garrafa de água, dois pães e um pacote de biscoitos para comer. A venezuelana é mãe solteira de Jeyver, de 7 anos, Keyner, de 4, e Josely, de apenas 1 ano. Eles saíram de Barbacoa, no norte da Venezuela, no dia 12 de agosto de 2021, em direção ao Brasil. A viagem até a fronteira durou cinco dias, durante os quais Verónica contou com a ajuda de outros migrantes que seguiam o mesmo caminho para alimentar as crianças. "Saí da Venezuela sem nem meio bolívar no bolso. Quando as crianças começaram a reclamar de fome, pessoas muito boas que encontramos no caminho deram o que comer aos dois mais velhos e leite para a mais nova", contou a venezuelana a BBC News Brasil. "O que mais eles me perguntavam era quanto faltava para chegar", lembra, com lágrimas nos olhos. A viagem começou a pé. Quando chegaram à estrada principal que os levaria ao Brasil, Verónica e os filhos continuaram o percurso pedindo carona para estranhos, segundo a imigrante. Fim do Matérias recomendadas "Enfrentamos chuva e horas de caminhada. Também foi bastante assustador pedir carona, especialmente estando sozinha", relata. "Entre um trecho e outro tínhamos que dormir na calçada, ao lado das rodovias. Eu, na verdade, não conseguia pregar os olhos - ficava o tempo todo vigiando as crianças". "Não recomendaria que outras mulheres fizessem o mesmo que fiz, porque sei que pode ser muito perigoso". A família teve que entrar no Brasil por rotas clandestinas devido ao fechamento da fronteira - a divisa com a Venezuela ficou bloqueada por quase dois anos por conta da pandemia de covid-19 e só foi liberada em fevereiro deste ano. "Tivemos que andar por uma trilha bastante instável e eu caí com minha filha no colo quando estávamos passando por algumas poças. Mas andávamos com outras pessoas e elas me ajudaram", conta. Assim que chegou a Pacaraima, a cidade mais próxima da fronteira venezuelana, Verónica foi internada em um hospital. Ela relata que ficou sem comer durante toda a viagem para poder alimentar os filhos com o pouco que receberam de doações. "Fiquei internada por três dias tomando soro pois estava desidratada, com febre, vômito e muita tontura", conta. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Assim que teve alta, Verónica foi encaminhada para uma organização que acolhe mulheres imigrantes. Ali ela afirma ter recebido apoio para se registrar oficialmente no Brasil e emitir sua Carteira de Registro Nacional Migratório - o documento mais importante de um imigrante no Brasil. Algumas semanas depois a família se mudou para Boa Vista, onde ela relata ter contado com a ajuda de uma senhora que a abrigou com os filhos por quatro meses. Logo depois, a solidariedade sorriu para ela outra vez: uma venezuelana que estava indo para o Rio Grande do Sul doou geladeira, camas, liquidificador e ventiladores para sua nova casa. Atualmente Verónica trabalha informalmente, como diarista, manicure e lavando e passando roupas para os vizinhos. Ela é auxiliada pelo projeto "Ven, Tú Puedes", iniciativa de acolhimento de imigrantes venezuelanos da organização de direitos humanos Visão Mundial, por meio do qual faz cursos de capacitação profissional. "Recebi ofertas para empregos fixos, mas não pude aceitar porque não tenho com quem deixar as crianças", diz. "Mas meu maior sonho é abrir meu próprio negócio no Brasil". Na Venezuela, a mãe solteira afirma que morava com a mãe e trabalhava como empregada doméstica, mas os US$ 5 (cerca de R$ 25) que ganhava por faxina não eram suficientes para alimentar a família. "Mal conseguia comprar um pacote de fralda, um litro de leite e um pouco de amido de milho com esse salário. A situação econômica estava cada dia pior e as crianças não estava crescendo bem", conta. "Eu sempre pedia a Deus que meus filhos tivessem no Brasil o que não tive na Venezuela, e tudo o que faço é por eles. Eles são tudo para mim. Quando saí da Venezuela pensei: o que adianta deixar meus filhos com minha mãe para procurar emprego no Brasil por três meses, se eles vão passar fome na Venezuela? Preferi trazê-los. Passamos dificuldades, mas conseguimos". Histórias como a de Verónica não são incomuns no contexto migratório. De acordo com pesquisa divulgada em dezembro pela ONU Mulheres, o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (ACNUR) e o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), as mulheres representam 54% da população venezuelana que permanece nos abrigos em Roraima. O estudo mostra ainda que 91% das pessoas venezuelanas abrigadas têm filhos, mas a taxa de desemprego recai mais sobre as mulheres - enquanto quase 34% das venezuelanas abrigadas estão desempregadas, entre os homens este índice é de 28%. Dados do projeto "Ven, Tú Puedes", frequentado por Verónica, confirmam a realidade. Quase 60% das mães atendidas pela organização são chefes de família, ou seja, são responsáveis pela maior parte da renda do lar. No último levantamento do governo federal, divulgado em dezembro de 2021, foram identificados 287 mil migrantes e refugiados venezuelanos regularizados vivendo no Brasil. A situação econômica e social da Venezuela é o principal motivo para a migração, segundo as Nações Unidas. Quem também faz parte desse grupo de mães solteiras venezuelanas que decidiram se aventurar no Brasil é Jairobis Parras. Ela está no país desde novembro de 2021. "Senti que precisava sair da Venezuela para dar melhores condições de vida para o meu filho, para que ele pudesse ter acesso a educação de qualidade e ter um futuro melhor que o meu", disse a venezuelana de 31 anos à BBC News Brasil. Jairobis deixou sua cidade natal de Bolívar, no estado de Monagas, acompanhada do filho Santiago, de 7 anos. Eles pegaram carona com um vizinho, que trabalha como caminhoneiro. "Viajamos por dois dias e só paramos durante algumas horas para dormir, mas nem saímos do carro", conta. A venezuelana foi acolhida em Pacaraima por amigos e, logo depois de regularizar sua situação migratória, foi viver em Boa Vista com familiares. Sua mãe Noris, de 49 anos, chegou no Brasil há cerca de três anos com outros dois filhos para buscar tratamento para sua insuficiência renal. "Um dos pontos altos de viver no Brasil até agora foi a qualidade das escolas daqui, que são muito melhores do que na Venezuela", diz. "Meu filho tem tido experiências incríveis e está até se consultando com um psicólogo. Sinto que ele não está mais com tantas dificuldades nos estudos ou tão rebelde". Jairobis também foi acolhida pela Visão Mundial, por meio da qual conseguiu emprego como caixa de supermercado em uma rede local. A venezuelana tem deciência física e nasceu sem a mão esquerda. "Estava bastante insegura quando comecei a trabalhar, mas aos poucos fui conhecendo os colegas. Todos foram muito solícitos e me ajudaram com a adaptação", conta. Segundo Jairobis, as experiências que viveu em sua trajetória até o Brasil a ajudaram a se tornar mais confiante em relação à sua capacidade como mãe. "Não esperava ter um filho e quando o Santiago nasceu estava sozinha, sem nenhuma ajuda do pai. Mas assim que ele chegou ao mundo me ensinou a ser mãe, a ser carinhosa, amorosa e atenta, coisas que não era antes", diz. "Vê-lo crescer dentro de mim trouxe experiências novas que nunca tinha vivido. Tenho lutado por ele". A venezuelana conta que agora ajuda outras imigrantes que também são mães solteiras a se adaptarem no Brasil, dando conselhos e acolhendo aquelas que precisam. "Quero que outras mães que estejam se sentindo sobrecarregadas como eu já me senti saibam que não precisam de um marido para continuar. Podemos conquistar tudo sozinhas".
2022-05-08
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61358998
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Vídeo, Por que tantos alemães estão imigrando para o Paraguai?Duration, 23,15
Às margens do rio Paraná, construídas em algumas das terras mais férteis do Paraguai, ficam Hohenau, Obligado e Bella Vista – ou “As Colônias Unidas”. Esses assentamentos alemães em que hoje vivem cerca de 45 mil colonos foram criados há mais de cem anos por imigrantes que se dedicavam à agricultura. Alguns dos novos moradores buscam uma espécie de “refúgio” das restrições causadas pela pandemia em seu país. Ou também se incomodam com o aumento no número de imigrantes que a Alemanha tem recebido. Neste vídeo, a repórter da BBC Mundo Mar Pichel investiga as razões por trás desse fenômeno e mostra os atritos que já acontecem entre a população local e os recém-chegados. Confira.
2022-05-06
https://www.bbc.com/portuguese/geral-61358904
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Por que tantos alemães estão migrando para o Paraguai
Ao caminhar pelas chamadas Colônias Unidas, no sul do Paraguai, percebe-se rapidamente que algo está mudando. Em alguns terrenos vazios, é possível ver contêineres com os pertences dos recém-chegados. Em outros, as novas casas já estão sendo construídas. É a evidência mais clara da nova onda de imigrantes europeus que esta região está recebendo. A área localizada às margens do rio Paraná abriga cerca de 45 mil pessoas divididas em três municípios: Honenau, Obligado e Bella Vista. Os moradores dizem que a onda migratória começou há cerca de três anos. No entanto, foi nos últimos meses que houve um salto perceptível no movimento. A maioria dos que chegam vem da Alemanha, mas também há austríacos e russos. Fim do Matérias recomendadas Segundo dados fornecidos à BBC Mundo pela Direção Geral de Migração do Paraguai, entre junho de 2021 e fevereiro de 2022, foram emitidas 1.324 permissões de residência para cidadãos alemães. Eles representam a segunda nacionalidade com maior número de permissões de residência emitida nesse período, atrás apenas dos brasileiros. Mas outras fontes nos disseram que de junho a fevereiro deste ano, milhares de alemães desembarcaram no Paraguai para se estabelecer no país. E nem todos eles passaram pelos registros de imigração. A BBC Mundo viajou ao Paraguai em fevereiro para entender as razões e consequências do fenômeno. Embora também tenham se estabelecido em outras partes do país, boa parte dos novos imigrantes opta por se estabelecer nas Colônias Unidas. E não é difícil entender o porquê. As Colônias Unidas foram fundadas por colonos de origem alemã quando Wilhem (Guillermo) Closs, um descendente de alemães nascido no Brasil, e um punhado de outras famílias alemãs estabeleceram a primeira delas, Hohenau, em 1900. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Desde então, tanto a cultura quanto a língua alemã permaneceram presentes: existem escolas alemãs, igrejas alemãs luteranas e evangélicas, e muitos dos moradores falam alemão. Na entrada da cidade de Obligado há uma placa que diz "Fuhl dich wie zu Hause" (Sinta-se em casa). Em Bella Vista, a tradicional mensagem de boas-vindas em espanhol é acompanhada por um "Willkommen" (Bem-vindo). "Temos um grande número de descendentes de europeus e acho que essa nova onda de imigrantes é porque eles se sentem à vontade aqui, as pessoas os tratam bem, de maneira amigável, e eles podem falar alemão confortavelmente, eles se sentem em casa", diz Enrique Hahn, prefeito de Hohenau e também descendente de alemães. Antes das Colônias Unidas, já existiam outras colônias alemãs no Paraguai como San Bernardino e Nueva Germania, fundadas pela irmã do filósofo Friedrich Nietzsche, Elisabeth Nietzsche, e seu marido, Bernhard Förster, na tentativa de criar uma comunidade de raça ariana fora da Alemanha. Os primeiros a chegar buscavam novas terras para trabalhar e oportunidades em um país que tentava se recuperar da devastadora Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870) com uma política de imigração aberta. Desde a sua fundação, as três "colônias" receberam um fluxo regular de imigrantes da Europa, principalmente durante e após a Segunda Guerra Mundial. Primeiro chegaram aqueles que fugiam da instabilidade e da violência. Após a derrota da Alemanha Nazista, alguns membros ou simpatizantes do partido nazista também começaram a chegar. Entre eles destaca-se o nome de Josef Mengele. Conhecido como o "Anjo da Morte", o ex-médico de Auschwitz viveu um tempo escondido em Hohenau, quando era um dos criminosos de guerra mais procurados do mundo. A história não é discutida abertamente na região. O mesmo não acontece, porém, quando o assunto é a chegada de novos imigrantes. "Temos muito interesse que eles venham porque trazem tecnologia, progresso e desenvolvimento e as pessoas aqui estão muito agradecidas pelo avanço que tivemos com a chegada dos imigrantes europeus", destaca o prefeito. Esta é uma das áreas mais férteis do país, onde prosperaram fazendas agroindustriais dedicadas à soja e à erva-mate. No entanto, muitos dos imigrantes do século 21 não parecem chegar motivados por razões econômicas. A família Hausen, composta por Stephan, Theresa e Ella, de 2 anos, deixou sua casa em Nuremberg em novembro e nos recebeu em sua nova casa nas Colônias Unidas. "Durante anos, a política na Alemanha foi em uma direção, e só nos foi permitido pensar na direção que o governo nos diz", disse Theresa, que é fisioterapeuta, à BBC Mundo. "Acho que há muito a dizer... desde a educação nas escolas, o que nossos filhos aprendem, até o que acontece com a nossa saúde, esses são os dois principais problemas. Nos dizem explicitamente o que fazer!" . Mas para eles, o verdadeiro ponto de virada foi a pandemia de coronavírus e o que eles veem como uma má gestão da crise pelo governo alemão. "Inicialmente apoiamos as medidas contra a covid", diz Stephan, que espera continuar trabalhando como carpinteiro no Paraguai. "Mas as restrições contínuas nos deixaram sem ideias. Esse foi o momento em que nos perguntamos para onde esses bloqueios estavam nos levando", acrescenta. "Decidimos sair muito antes, mas esta foi a gota d'água que encheu o copo". Assim como os Hausens, muitos dos alemães que chegaram ao Paraguai nos últimos meses acreditam que em seu país não há liberdade para tomar as próprias decisões e referem-se, em particular, à campanha de vacinação. Theresa e Stephan afirmam estar vacinados, mas o professor e editor de cinema Florentin Stemmer, que chegou a Hohenau em dezembro, não está. Stemmer acredita que a decisão de se vacinar deve ser pessoal e não governamental, e afirma que a covid dividiu a Alemanha. "Perdemos tudo por causa da decisão de não nos vacinarmos", diz. "Imagine alguém tentando forçá-lo a fazer algo que você não quer fazer. Obrigá-lo com as redes sociais e até ameaçar fazê-lo à força", diz ele. No momento, a vacinação não é obrigatória na Alemanha — embora o tema esteja sendo debatido —, mas os não vacinados têm acesso restrito a restaurantes, lojas e estabelecimentos de lazer e arte. Desde o início da pandemia, inúmeros protestos contra as restrições e contra a vacinação têm sido realizados nas ruas alemãs, nos quais a palavra "Freiheit" (liberdade) e as teorias da conspiração têm sido uma constante. No Paraguai, a chegada de novos imigrantes causou reações mistas. Por um lado, nas Colônias Unidas destacam-se os benefícios econômicos que os recém-chegados trouxeram. "No meio da pandemia tivemos um movimento econômico bastante interessante, considerando que os moradores de Hohenau conseguiram vender suas terras e isso lhes deu segurança e chance de sobreviver a essa pandemia que tivemos que viver", conta Noemi Jara, que no momento da entrevista trabalhava no Centro Histórico Cultural Edwing Krug como Secretária de Cultura. O setor da construção é um dos grandes beneficiados, como pode ser observado nas lojas de materiais de construção escolhidas pelas famílias alemãs. Edifícios pontilham os campos verdes nos arredores de cada uma das cidades. São, em geral, casas grandes e cercadas por extensos terrenos. Mas tudo isso também traz desafios para o município. "Somos uma cidade de aproximadamente 16.000 habitantes e o fato de 1.000, ou 2.000, ou 3.000 habitantes chegarem em 4 ou 5 meses, sobrecarrega um pouco e isso implica muito planejamento, muita logística para serviços básicos", explica o prefeito Hahn. Há também outras preocupações. Para Hahn, um dos maiores problemas é que a maioria dos recém-chegados "não está vacinada" e "é contra a vacinação". "Gostaríamos de conviver, trabalhar com eles. Sabemos que são pessoas que têm uma visão mais avançada do que aqui, que podem contribuir muito... mas eles também têm que saber que estão em um lugar onde há legislação e onde há restrições". "É uma grande preocupação para os cidadãos ficarem expostos a imigrantes que não estão vacinados. A maioria acredita que as medidas precisam ser cumpridas", destaca Noemi Jara. "Por que há esse privilégio enquanto para os paraguaios há uma exigência? É uma desigualdade. E esse é um sentimento muito profundo que os paraguaios têm em geral, sejam descendentes de estrangeiros ou nativos", explica. A vacinação não é obrigatória no Paraguai, mas há uma forte campanha institucional a favor dela, e desde janeiro deste ano é obrigatória a apresentação do certificado de vacinação para entrar no país. Mas isso não impediu a chegada de imigrantes europeus não vacinados. "Há notícias de pessoas que vão para a Bolívia, onde não é necessário o cartão de vacinação, entram no Paraguai por via terrestre e vêm se estabelecer em Hohenau", conta o próprio prefeito. Juan (alteramos seu nome por motivos de segurança) é um funcionário do governo paraguaio. Ele confirma que milhares de alemães entraram clandestinamente no Paraguai desde que os regulamentos mudaram. "Com as novas exigências do Ministério da Saúde do Paraguai introduzidas em janeiro, alguns contêineres ficaram nos portos, pois sem a carteira de vacinação não poderiam circular", diz. "Esse é o momento em que eles procuram lugares clandestinos por onde possam entrar, mesmo perdendo tudo o que trouxeram", diz. Na sequência deste depoimento, solicitamos comentários à Direção-Geral das Migrações, que via e-mail nos informa que não receberam "até ao momento, reclamações relativas à migração irregular massiva de cidadãos de nacionalidade alemã". "Embora nosso país tenha vários quilômetros de fronteira seca, a imigração irregular de cidadãos alemães, ainda que não seja impossível, é improvável", acrescentam no comunicado escrito. No entanto, não é apenas a pandemia que impulsionou essa nova onda de imigração alemã para o Paraguai. Praticamente todos os alemães com quem conversamos citaram a chegada de imigrantes muçulmanos na Alemanha como outra razão pela qual deixaram seu país. Desde 2015, mais de um milhão de imigrantes e refugiados — a maioria fugindo de conflitos no Afeganistão, Iraque e Síria — chegaram à Alemanha graças à política de portas abertas da ex-chanceler Angela Merkel. "Acho que deveríamos ter uma imigração mais regulamentada. Você tem que ter um planejamento de quantos você deixa entrar. O Estado tem capacidade de cuidar de todas essas pessoas? Precisamos ter uma discussão sobre isso", diz Theresa Hausen. "Claro que grupos estão se formando. De um lado, os alemães e, do outro, os muçulmanos. Não deveria ser assim, queremos viver em paz, mas isso não é possível se tantos entrarem no país", disse. Os Hausens dizem que se sentem muito bem-vindos no Paraguai, mas acreditam que as coisas não podem funcionar da mesma forma na Alemanha em relação aos imigrantes muçulmanos. O problema, eles apontam, é a diferença cultural. "Em nossa experiência, o Paraguai é um país muito cristão e viemos de uma cultura cristã. Conhecemos muitas pessoas aqui e estamos na mesma página", diz Stephan. No entanto, para outro imigrante alemão, o problema não é a diferença cultural. "Na Alemanha, sempre tivemos outras culturas, mas quando esses imigrantes chegaram, ficou muito perigoso para nós ficar", Hana (nome fictício) nos conta. Hana está aposentada. Ela chegou ao Paraguai com o marido há quatro anos, porque diz que, apesar de ter trabalhado muito durante toda a vida, sua aposentadoria estava ficando cada vez menor. Agora ela ajuda alguns dos recém-chegados a se estabelecerem no país sul-americano. "A Alemanha não era mais nosso país", disse ela à BBC Mundo. Assim como ela, outros alemães com quem conversamos associaram a chegada de refugiados e imigrantes muçulmanos ao aumento da criminalidade, argumento também usado pelo partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD). "Eles não se sentem seguros, temem por suas mulheres e meninas", diz Hana, referindo-se aos motivos apresentados pelos recém-chegados. Alguns ataques de imigrantes alimentaram a retórica anti-imigrante e xenófoba na Alemanha, como a série de agressões sexuais na véspera de Ano Novo de 2016 na cidade de Colônia, atribuídas principalmente a imigrantes de origem árabe ou norte-africana. O Escritório Federal de Investigação Criminal da Alemanha registrou entre 2014 e 2016 um aumento geral no número de crimes, assassinatos e estupros. Segundo dados da mesma agência, a porcentagem de imigrantes considerados culpados de crimes violentos também aumentou em 2015 e 2016. No entanto, a maioria desses crimes ocorreu dentro de abrigos de refugiados. Desde 2017, o número total de crimes registrados tem diminuído constantemente, assim como a porcentagem de crimes cometidos por imigrantes. Hana diz que na Alemanha há uma campanha da mídia para difamar os alemães que se instalam no Paraguai, que são descritos como antivacinas e racistas. "Não importa se você é preto, branco, vermelho, rico ou pobre, é a mesma coisa... A única coisa que importa é que o coração respeite qualquer cultura", responde à pergunta sobre o que diria a pessoas que pensam que seus argumentos são racistas. No entanto, quando questionada sobre os imigrantes alemães que atravessaram por terra para o Paraguai para evitar os controles que exigem a entrada no país com certificado de vacinação, ela responde que isso não é correto e que não existe tal imigração ilegal. "Os alemães não têm medo de vacinas, eles nos vacinam quando crianças, nos vacinam contra tudo. Alguns têm poucas dúvidas sobre a nova vacina." Ela então reconhece que alguns estão burlando os controles de fronteira: "Está acontecendo, sim, está acontecendo. Mas não são todos eles!" A realidade é que esse fato incomoda alguns setores da sociedade paraguaia. "Aqui estamos tentando cuidar uns dos outros, nos vacinar, vacinar até as crianças, e eles chegam sem querer ser vacinados, e entram no nosso país e o vírus está em todo lugar. E isso tem um grande impacto para nós paraguaio", diz João. "Espero que o controle seja rígido para todos. Sabemos que eles vêm para investir em nosso país, mas têm que cumprir as obrigações que temos aqui também."
2022-05-01
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61196964
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Kawésqar, o idioma falado por somente 8 pessoas e que linguistas lutam para preservar
Entre os labirínticos arquipélagos austrais — onde os ventos, as chuvas e o frio não dão tréguas —, viviam os kawésqar. O grupo nômade passava grande parte do dia em suas canoas (ou hallef) percorrendo os canais entre o Golfo das Penas e o Estreito de Magalhães, cercados por densas florestas, em busca de leões marinhos, lontras, pássaros e moluscos para se alimentar. Os homens eram responsáveis ​​pela caça em terra (que incluía o icônico huemul) e no mar, enquanto as mulheres coletavam mariscos em mergulhos e cobriam a pele delas com gordura de leão-marinho. Como os demais povos nativos que povoaram a América há milhares de anos, os kawésqar tinham uma língua própria, profundamente marcada por sua geografia. Isso explica, por exemplo, por que eles tinham 32 maneiras de dizer "aqui". Mas, com o passar do tempo e a chegada de colonos nesta parte sul do Chile, chamada Patagônia Ocidental, o grupo étnico passou por uma transformação brutal. Não só abandonou sua vida nômade — se estabeleceu em Puerto Edén, uma pequena aldeia localizada ao sul do Golfo das Penas — mas também deixou sua língua em segundo plano. Fim do Matérias recomendadas Isso ocorreu porque aprender espanhol se tornou uma necessidade para eles e, aos poucos, chegou-se a um ponto crítico: hoje, apenas oito pessoas falam a língua original. Quatro delas são idosos. Três nasceram na década de 1960 — a última geração a adquirir o idioma desde a infância — e apenas um que não faz parte da etnia: Oscar Aguilera. O etnolinguista chileno de 72 anos tenta salvar essa língua há quase 50 anos, registrando o vocabulário, gravando arquivos de som por horas e documentando o léxico. Agora, há outra pessoa, que não é da comunidade, interessada em aprender sua gramática: a parceira do presidente chileno, Gabriel Boric, a primeira-dama, Irina Karamanos. A líder feminista entrou em contato com Aguilera para pesquisar mais sobre o assunto. Para ela, os chilenos têm uma relação "ruim" com suas comunidades e povos indígenas, e aprender a língua é uma forma de se aproximar deles. Mas que particularidades essa língua nativa tem? Qual é a sua origem e as suas características mais importantes? Linguistas e pesquisadores sempre tentam responder a mesma pergunta: de onde vêm as línguas dos povos e qual é sua verdadeira origem? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No caso do kawésqar — assim como de muitas outras línguas indígenas — a resposta ainda não está clara. Isso é explicado, em parte, porque ela é considerada uma língua "isolada" ou "não classificada". Ou seja, não faz parte de uma família linguística nem tem vínculos com nenhuma outra língua viva (como, por exemplo, o espanhol, que vem do latim e faz parte das línguas românicas). Por estar "isolada", é mais difícil descobrir de onde vêm suas palavras, estrutura e gramática. Embora acredite-se que os kawésqar tenham habitado a Patagônia Ocidental há cerca de 10 mil anos, a primeira evidência conhecida de sua língua aparece apenas entre 1688 e 1689, registrada pelo aventureiro francês Jean de la Guilbaudière. De acordo com o Museu Chileno de Arte Pré-Colombiana, no século 19 sua população chegou a 4 mil indivíduos, e a maioria falava a língua ancestral. No final do século 19, no entanto, sua população caiu drasticamente para 500 pessoas, e depois para 150 na década de 1920. Atualmente, existem cerca de 250 kawésqar na região de Magallanes, mas são monolíngues — falam apenas espanhol — e não a língua de seus ancestrais. Por suas características morfológicas, o kawésqar é uma língua aglutinante (como o turco e outras) e polissintética. Ou seja, tem "palavras, expressões ou frases" que não podem ser traduzidas para o espanhol com uma única palavra. "Não existe equivalência uma a uma, como, por exemplo, a table, em inglês, e mesa, em espanhol", explica Oscar Aguilera à BBC News Mundo. Apesar do amplo contato dos kawésqar com os colonos, eles relutam em aceitar algo dos espanhóis. Dessa maneira, eles criaram sua próprias palavras para chamar, por exemplo, os dispositivos que estão comprando (como a televisão ou o telefone). As poucas palavras que foram adotadas do espanhol sofreram uma "nativização", uma transformação para a fonética kawésqar. É o exemplo de "barco", que se diz jemmáse ou também wárko. O "b" em espanhol é substituído pelo "w", já que o som "b" não existe em kawésqar. Além disso, há um lado cultural que, segundo Aguilera, "é notavelmente diferente da forma como nos expressamos". "Se o kawésqar não tem certeza do que está dizendo, ele não diz. Ele sempre usa o condicional. Culturalmente, eles rejeitam a falta de veracidade, isso é sancionado pelo grupo. A pessoa que mente se destaca negativamente entre eles", explica. Por exemplo, os kawésqar nunca diriam que tal pessoa ligou de Londres. Como eles não têm certeza de que essa pessoa estava em Londres (porque não o veem), eles diriam "ele teria me ligado" de Londres. Sendo falada por apenas oito pessoas, ela está entre as línguas que a Unesco considera em risco de extinção. "O problema é que, em linhas gerais, não é uma língua prática. É melhor aprender espanhol ou estudar inglês", diz Aguilera. Segundo o especialista, uma das razões que explicam a penetração tão forte do espanhol entre os kawésqar é a comercialização de seus produtos com os novos habitantes da região. Além disso, segundo o especialista, eles se sentiram discriminados pelas cidades vizinhas, como os chilotes (habitantes da ilha de Chiloé). "Os chilotes os desprezavam e até riam de como falavam sua língua. Então, decidiram não falar mais o idioma em público, apenas em casa", explica o linguista. O Estado do Chile também não priorizou seu resgate ou sobrevivência. Até hoje, não há incentivos suficientes para revitalizar a língua. A única escola em Puerto Edén, por exemplo, ensina em espanhol. "Há algumas pessoas que estão se esforçando para aprender o idioma, mas a falta de continuidade e persistência, além de ser um idioma gramaticalmente tão diferente do espanhol, dificulta para eles", diz Aguilera. No inverno de 1975, Oscar Aguilera embarcou em uma aventura que mudaria sua vida para sempre. Sendo um jovem inexperiente, recém-formado em Filologia Clássica, Germânica e Linguística na Universidade do Chile, decidiu viajar para Puerto Edén, local onde vivem atualmente os kawésqar. "Fiquei muito impressionado porque eles tinham pintado um quadro completamente diferente para mim. Imaginei que encontraria pessoas vestidas com peles, quase em trapos, e morando em cabanas icônicas. Mas não, eles moravam em casas comuns e se vestiam como eu", diz. Nessa viagem — que durou todo o inverno — conheceu a família Tonko, que o ajudou a começar a gravar o idioma, compartilhando com ele longas jornadas de gravação. No ano seguinte, publicou um primeiro léxico que perdura até hoje. O fascínio de Aguilera pelos kawésqar era tanto que ele sempre encontrava motivos para voltar. E foi assim que ele decidiu embarcar em uma segunda expedição, da qual retornou com dois membros da comunidade para a casa dele em Santiago, onde morava com os pais e a avó. "Eles moraram conosco por quatro meses. Minha família os recebeu bem, eles os aceitaram", conta. Na época, Aguilera era professor do Departamento de Filosofia da Universidade do Chile. Todas as tardes, quando as aulas terminavam, ele ficava com os dois kawésqar gravando parte do léxico e registrando informações etnográficas. Depois, todos voltaram juntos para Porto Eden. "Gostava de ir porque a língua de uma comunidade tem um componente cultural muito importante. Por isso, me dediquei não só a salvar a língua mas também ao resgate cultural que implica muito mais, todo o modo de vida e o próprio testemunho deles", explica . A maioria dos kawésqar que ele conheceu nessas viagens falava espanhol, mas com graus variados de fluência. Os mais velhos, por exemplo, costumavam ter mais interferência da língua materna, cometendo erros como não diferenciar o singular do plural. O acadêmico reconhece que se apaixonou pelo povo. "Fiz o contrário do que os livros recomendavam para um pesquisador: 'Você pega a informação, descreve a linguagem e vai embora'. Envolvi-me com a comunidade", diz. Na década de 1980, a relação entre Oscar Aguilera e os kawésqar se aprofundou ainda mais quando ele decidiu adotar duas crianças da comunidade para receber uma boa educação em Santiago. As crianças pertenciam à família Tonko. No total, havia oito irmãos. Um deles, José, adorava ler. "Com a permissão dos pais, comprei uma passagem para Puerto Montt e fui procurá-lo para ir a Santiago. Ele foi matriculado na escola, o Liceu Alessandri, onde eu também estudei", conta. Quatro anos depois, o irmão de José, Juan Carlos, também foi morar em Santiago com Aguilera. Todos moravam juntos em uma casa que o acadêmico alugou no bairro da Providência. "Eu os adotei. A família deles foi muito boa comigo, sempre me acolheu como se eu fosse parte deles. Então, foi realmente uma adoção mútua." Quando completaram 18 anos, José e Juan Carlos entraram na universidade. O primeiro estudou Serviço Social e Antropologia, e o segundo, jornalismo. Atualmente, os irmãos — que têm cerca de 60 anos — moram na cidade de Punta Arenas, assim como Aguilera, que ministra seis cursos na Universidade de Magallanes. "Até hoje, eles são minha família. É como se fossem meus filhos. Eles cuidam de mim e eu cuido deles". Ambos trabalharam com ele na árdua tarde de resgate da língua. José é coautor de diversas publicações — como "Gente de los canais" (2019) — e colaborou na criação de um dicionário kawésqar-espanhol, que ainda não terminou. Além disso, entre 2007 e 2010, eles escreveram um texto e registraram um arquivo de som que hoje está na Universidade do Texas, em Austin, nos Estados Unidos, e na James Cook University, na Austrália. No entanto, o linguista acredita que ainda há muito a ser feito. "Por trás das línguas, há muito conhecimento e por isso elas devem ser preservadas. Pois abrigam informações únicas sobre o ambiente onde vivem as pessoas que a falam", afirma. Olhando para o futuro da língua, a esperança está na futura primeira-dama, Irina Karamanos. Talvez o interesse de Irina, revela, realmente ajude a revitalizar a linguagem daqueles que o linguista considera a verdadeira família dele.
2022-04-28
https://www.bbc.com/portuguese/geral-61252686
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O que foi o massacre de Napalpí, que Argentina julga 100 anos depois
Em 19 de abril, a Argentina deu início a um julgamento sem precedentes no país. Encabeçado por uma juíza federal, o julgamento traz provas e testemunhas. Mas não há acusados, porque todos já morreram. Trata-se do primeiro "julgamento pela verdade", um processo penal que julgará uma das maiores chacinas contra povos originários na Argentina, ocorrida há quase um século: o Massacre de Napalpí. O julgamento foi aconselhado pela Unidade de Direitos Humanos da Promotoria Pública Federal da cidade de Resistência, capital da província do Chaco, no norte da Argentina, e procura definir os fatos por trás da matança de mais de 400 pessoas dos povos originários moqoit (ou mocovi) e qom (ou toba), promovida por agentes do Estado naquele local, em 1924. A juíza federal de Resistência Zunilda Niremperger ordenou a realização desse processo incomum, ao concluir que "os fatos objeto de investigação exibem características que permitem sua inclusão na categoria de crimes contra a humanidade, cuja imprescritibilidade possibilita sua investigação, apesar do tempo transcorrido". A magistrada argumentou ainda que "a busca concreta da verdade é relevante, não apenas em termos de memória coletiva, mas também por poder trazer consequências favoráveis no campo da reparação histórica e simbólica para as comunidades que teriam sido prejudicadas diretamente por esses fatos". Fim do Matérias recomendadas O Ministério Público Federal da Argentina indicou que este será "um processo dedicado à averiguação da verdade, similar aos promovidos na década de 1990 em diversas jurisdições para investigar os crimes da última ditadura, durante a vigência das leis de Ponto Final e Obediência Devida", que impediam que os repressores fossem julgados. O "julgamento pela verdade" começou na Casa das Culturas de Resistência em 19 de abril, data em que se comemora o Dia do Índio - chamado na Argentina de Dia do Aborígene Americano. O processo inclui audiências no interior da província, onde vivem atualmente os descendentes das vítimas do massacre, e no Centro Cultural da Memória de Buenos Aires, localizado na antiga Escola Mecânica da Marinha (ESMA) - o mais conhecido centro clandestino de detenção durante o último regime militar argentino. A Secretaria de Direitos Humanos do país destacou que se trata do "primeiro julgamento da história da Argentina que investigará um massacre de povos originários". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os registros históricos e a investigação da Promotoria Pública permitiram reconstruir os fatos ocorridos em 19 de julho de 1924, quando centenas de homens, mulheres, crianças e idosos das comunidades nativas americanas moqoit e qom foram assassinados por policiais civis e militares, além de latifundiários da região. Tudo ocorreu na chamada Redução Aborígene de Napalpí (hoje conhecida como Colônia Aborígene), a cerca de 150 km da cidade de Resistência. As "reduções" eram locais criados pelo Estado para poder concentrar as populações indígenas e explorá-las como mão de obra barata. As famílias que viviam em Napalpí sobreviviam colhendo algodão em condições análogas à escravidão. Um grupo de trabalhadores decidiu deflagrar greve para reivindicar a justa retribuição pelo seu trabalho ou a possibilidade de sair do território para trabalhar em outros engenhos. Em resposta, o então governador do Chaco, Fernando Centeno, enviou forças de segurança para reprimi-los. Cerca de 130 homens cercaram a redução e massacraram seus moradores, que estavam desarmados. Levantamentos de diferentes historiadores reunidos pela Promotoria Pública dão conta que, em 45 minutos, os agentes dispararam mais de cinco mil balas de fuzil contra a população de Napalpí. A operação também utilizou um avião que, segundo o testemunho de alguns dos descendentes da comunidade, lançou alimentos para atrair aqueles que estavam no morro e poder massacrá-los. O etnólogo alemão Roberto Lehmann-Nitsche - especialista nas comunidades de povos originários da Argentina - tirou uma fotografia desse avião, que foi incluída no processo. Muitas das vítimas foram enterradas em valas comuns depois de serem mutiladas para transformar partes dos corpos em "troféus" - como testículos, peitos e orelhas. E o massacre não terminou ali. Os sobreviventes foram perseguidos e "caçados" nos morros. Os feridos foram assassinados a facadas. Estima-se que, ao todo, mais de 400 pessoas tenham morrido naquele dia - e cerca de 40 crianças que haviam conseguido escapar foram entregues para servir de criados nas localidades próximas, quando não morriam pelo caminho. Ana Noriega, da Fundação Napalpí, afirmou à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) que 70% a 80% da população da Redução Napalpí foram massacrados. E os que conseguiram sobreviver precisaram esconder-se das autoridades, que tentavam eliminar todos os indícios, para poder negar o ocorrido. Segundo a versão oficial, noticiada pela imprensa na época, o que aconteceu foi um enfrentamento entre os indígenas que precisou ser sufocado pela polícia. Mas as histórias sobre esse dia, que os sobreviventes contaram aos seus descendentes, tornaram-se uma peça fundamental para que hoje, 98 anos depois, o etnocídio cometido esteja sendo julgado. A partir dos relatos da sua avó, o historiador qom Juan Chico começou a pesquisar os fatos e recolheu testemunhos e provas que viriam a ser publicados no seu livro La Voz de la Sangre ("A voz do sangue", em tradução livre), que permitiu romper o silêncio histórico sobre o ocorrido no princípio do século 20. O testemunho gravado de Chico - que morreu de covid-19 em 2021, com 42 anos de idade - foi ouvido na abertura das audiências, em 19 de abril. Foi também exibido o registro audiovisual de dois dos últimos sobreviventes do massacre: os centenários Pedro Balquinta e Rosa Grilo, que prestaram depoimento para os promotores em 2014 e 2018, respectivamente. "É muito triste para mim, porque mataram meu pai e quase não tenho vontade de recordar, me faz doer o coração", disse Grilo, a última vítima a prestar seu testemunho, abrindo sua declaração. Na próxima audiência em 3 de maio, na Casa das Culturas de Machagai (o município argentino onde se localiza Napalpí), serão ouvidas as declarações de descendentes dos sobreviventes do massacre. Noriega, da Fundação Napalpí (fundada por Chico), salientou que "é a primeira vez que a memória oral dos povos [originários], que é transmitida de geração em geração, terá a mesma legitimidade da palavra dos acadêmicos e especialistas. Isso é muito importante." "Este julgamento vai empoderar as pessoas, avalizar sua história, que eles ouviram muitas vezes, mas sempre foi desmentida pelos meios de comunicação e pelo Estado vigente", afirma ela. Já a juíza Niremperger destacou na abertura dos trabalhos que o julgamento não busca apenas "aliviar as feridas" e "reparar" os danos do passado. É também uma mensagem para as gerações atuais e futuras. "Um objetivo é ativar a memória e gerar a consciência coletiva de que essas graves violações aos direitos humanos não devem voltar a ser repetidas", afirmou a juíza.
2022-04-26
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Como Bolívia escapou da inflação que atinge América Latina
A economia internacional enfrenta uma onda de inflação global. A guerra na Ucrânia e os estímulos fiscais adotados pelos governos de todo o mundo em resposta à pandemia levaram a aumentos de preços não vistos há décadas. Na América Latina, o impacto é especialmente doloroso. De acordo com um relatório recente do FMI (Fundo Monetário Internacional), "para uma região com níveis historicamente altos de desigualdade, a erosão da renda real devido ao aumento dos custos de alimentos e energia aumentará a pressão econômica que as famílias vulneráveis ​​já enfrentam". A inflação nas cinco maiores economias latino-americanas atingiu o nível mais alto em 15 anos. Mas, até agora, um país sul-americano conseguiu escapar. Fim do Matérias recomendadas Trata-se da Bolívia, onde o Índice de Preços ao Consumidor (IPC) permaneceu surpreendentemente estável. Quando as curvas de inflação de países vizinhos e de boa parte do mundo dispararam, a Bolívia chegou a registrar deflação de 0,1% em março deste ano. Enquanto a inflação acumulada em 12 meses até março na Bolívia estava em apenas 0,77%, o FMI estima que deve chegar a cerca de 10% para toda a região ao fim de 2022 e as principais economias da região sofrem com altas muito mais fortes (em taxas ao ano): Os vizinhos Peru (6,8%) e Equador (2,6%) também foram afetados. E os números estratosféricos da Venezuela (284,4%) e da Argentina (55%) deixam os dois países distantes de todos os demais. "É muito difícil explicar porque a Bolívia tem uma inflação tão baixa neste momento", diz Roberto Laserna, diretor do Centro de Estudos da Realidade Econômica e Social (Ceres), um centro de análise com sede em La Paz, à BBC Mundo. Mas há vários motivos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ao contrário das moedas dos países vizinhos, por vezes sujeitas a fortes variações cambiais, a moeda nacional da Bolívia tem uma taxa de câmbio fixa em relação ao dólar norte-americano, fixada pelo então governo socialista de Evo Morales há mais de dez anos (1 dólar = 6,96 Bolivianos). Enquanto outros países da região tiveram que implementar mecanismos de controle cambial para sustentar sua moeda e há grandes diferenças entre a taxa de câmbio oficial e o preço real da moeda americana na rua, na Bolívia você pode comprar e vender dólares livremente, e a taxa de câmbio é mantida graças ao fato de o governo sustentá-la injetando dólares de suas reservas no mercado. Hugo Siles, economista e ministro de Autonomias de Morales (a pasta é responsável pela distribuição de competências entre entes subnacionais, como departamentos, municípios e comunidades indígenas autônomas), disse à BBC Mundo que "os imensos recursos obtidos com a nacionalização de hidrocarbonetos pelo ex-presidente Morales permitiram seguir uma política de valorização do boliviano que tem contribuído para a baixa inflação". O governo do atual presidente Luis Arce manteve a política de Morales de paridade cambial. A força relativa da moeda, em comparação com vizinhos como a Argentina, reduz o custo para a Bolívia de importar mercadorias. No atual contexto de alta dos preços dos alimentos e do petróleo nos mercados internacionais, uma moeda forte é particularmente vantajosa. Além disso, como diz José Luis Hevia, pesquisador da Fundação Milenio, "expectativas bem ancoradas em relação à taxa de câmbio fizeram com que as pessoas confiassem na moeda nacional", outro fator que favorece a estabilidade de preços. O Brasil adotou o câmbio fixo entre 1964 e 1968, em 1986 e novamente durante o Plano Real entre 1994 e 1999. Apesar de possibilitar um melhor controle sobre a inflação, o modelo pode provocar diminuição das exportações e aumento de importações devido à valorização artificial da moeda. No Brasil dos anos 1990, por exemplo, o aumento de importações provocado pelo câmbio fixo contribuiu para fechamento de indústrias, com perda de empregos no setor. Desde 1999, o país adota o modelo de câmbio flutuante, em que a cotação da moeda varia de acordo com a oferta e a demanda do mercado, sem intervenção direta do Banco Central. A desvantagem desse modelo é que a desvalorização excessiva da moeda pode gerar inflação. Produtores e consumidores em todo o mundo estão sendo atingidos pelo aumento dos preços dos combustíveis e dos alimentos. Os bolivianos não sentiram esse golpe até o momento. Na Bolívia, o preço da gasolina permanece estável em torno de US$ 0,50 por litro e os itens da cesta básica também não sofreram grandes aumentos. Especialistas apontam generosos subsídios governamentais como a causa. Apesar de os custos do petróleo continuarem a disparar nos mercados internacionais, o monopólio estatal que distribui gasolina na Bolívia absorveu totalmente esse impacto ao não alterar seu preço subsidiado. Consequentemente, os produtores agrícolas não foram pressionados a repassar aos consumidores finais o aumento de seus custos de produção decorrente do aumento dos preços dos combustíveis, como ocorreu em outros países. O país também conta com mecanismos que ajudam a conter a inflação no setor de alimentos, como a Empresa de Apoio à Produção de Alimentos (Emapa), estatal que presta apoio financeiro aos produtores agrícolas, e o Fundo Rotativo de Segurança Alimentar, que importa alimentos usando para isso recursos públicos e distribui no mercado para manter os preços baixos. Em uma de suas ações recentes, o Fundo injetou 10 mil toneladas de farinha de trigo no mercado para evitar o aumento do preço do pão. Lian Lin, analista da Unidade de Inteligência da revista britânica The Economist, garante que "essas coisas mantêm a inflação dos alimentos baixa e eles representam grande parte do total do Índice de Preços ao Consumidor". Outro freio ao aumento de preços implementado pelo governo são os certificados de exportação que são exigidos para todos os produtos vendidos no exterior. Quando seu abastecimento na Bolívia a um preço que as autoridades consideram justo não é garantido, eles podem negar o certificado de exportação, forçando assim um aumento de oferta no mercado interno que também alivia as pressões inflacionárias. O Brasil adotou preços controlados de combustíveis principalmente durante o governo de Dilma Rousseff (PT), como uma forma de mitigar a inflação. A medida, no entanto, gerou prejuízos à Petrobras. Desde 2016, a empresa adota o chamado preço de paridade internacional (PPI), com os combustíveis variando de acordo com a variação do barril de petróleo no mercado internacional e do câmbio, o que deixa o país sujeito às flutuações internacionais. O país também abandonou nos últimos anos - principalmente desde 2016 - sua política de estoques de alimentos pela Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), um instrumento que ajudava o controle de preços no mercado interno. A questão chave é por quanto tempo a Bolívia continuará se beneficiando de uma excepcional estabilidade de preços em um mundo em que a inflação se tornou o principal inimigo dos bancos centrais e uma das principais preocupações da população. José Luis Hevia prevê que este ano haverá "uma alta da inflação devido ao contexto internacional, mas será relativamente moderado". "Mas tudo vai depender de quanto tempo o modelo atual pode ser sustentado", acrescenta o especialista. Muitos economistas alertam para os efeitos adversos da política de subsídios do governo boliviano e crescem as dúvidas sobre a sustentabilidade das contas públicas. Um relatório recente do Banco Mundial estima que a dívida pública boliviana se aproximará de 80% do PIB (Produto Interno Bruto) até o final de 2022, mais de dez pontos percentuais acima da média regional. O Ministério da Economia e Finanças respondeu com um comunicado no qual assegurou que a proporção de dívida em relação ao PIB se situou em 43,6% em fevereiro, "abaixo dos limites estabelecidos conforme recomendado". O Executivo também afirmou que o "aumento explosivo da dívida interna registrado em 2020" foi causado pelo governo interino presidido por Jeanine Áñez, que assumiu o país após a queda de Evo Morales e hoje está presa acusada de terrorismo, sedição e conspiração. Hevia indica que "o tipo de câmbio fixo tem sido muito eficaz no controle da inflação, mas tem efeitos indesejados na economia porque desestimula a produção local ao baratear as importações e requer um grande conjunto de recursos externos para sustentá-lo". E nesse uso de recursos para sustentar a moeda nacional é percebido, há muito tempo, um notável aumento do déficit fiscal e um declínio sustentado das reservas internacionais do Banco Central da Bolívia. Até 2015, a Bolívia acumulava receitas principalmente com exportações de gás e havia até US$ 15 bilhões nas reservas do Banco Central. Mas esse valor vem caindo e em dezembro de 2021 era de US$ 4,7 bilhões. Com um déficit fiscal que, segundo projeções do Banco Central, encerrará o ano em 8,5% do PIB, é preocupante que o país continue consumindo suas reservas para pagar os subsídios que mantêm os preços sob controle e que devem custar ao Estado cerca de US$ 4 bilhões por ano. Há outros fatores de preocupação. Roberto Laserna, do Ceres, afirma que "a nacionalização dos hidrocarbonetos gerou um grande volume de recursos no curto prazo, mas no médio prazo desestimulou o investimento estrangeiro". Isso resultou em anos de queda na produção de gás e a Bolívia não conseguiu cumprir alguns dos compromissos de fornecimento assumidos com a vizinha Argentina, com a qual estão sendo negociados novos acordos. O ex-ministro Siles não vê motivos para preocupação. "A Bolívia vende gás, eletricidade e matérias-primas como soja ou minerais, cujo preço no mercado internacional também está subindo, o que trará mais recursos." E prevê: "O governo não vai eliminar subsídios ou alterar o câmbio porque isso significaria transferir o ônus para a grande maioria da população". Nem todos estão convencidos. Lian Lin acredita que "a Bolívia ainda terá algum tempo de vento a favor do preço do gás, mas no futuro a taxa de câmbio terá que ser reduzida pelo menos um pouco e haverá algum tipo de desvalorização gradual e cortes nos programas do governo". O tempo dirá qual previsão está correta. No momento, a última emissão da dívida boliviana, em fevereiro passado, estava a uma taxa de juros de 7%, um aumento na rentabilidade exigida aos títulos que geralmente está associado a uma menor confiança dos investidores e que evidencia a maior dificuldade que o Estado boliviano encontra agora para se financiar.
2022-04-26
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A incomum explicação de juíza que autorizou menino a ter uma mãe e dois pais
Em 2019, uma mulher de Salta, no norte da Argentina, teve um bebê junto com seu companheiro, com quem morava havia um ano. Alguns meses depois, sem avisar o namorado, ela entrou em contato com um ex-parceiro para dizer que acreditava que o filho era dele. Um teste de DNA confirmou que este homem era o verdadeiro pai biológico. Pouco depois dessa revelação, a mulher morreu e o ex-parceiro foi à Justiça para pedir que fosse reconhecido como o verdadeiro pai da criança. Mas em vez de terminar em uma amarga briga nos tribunais, o caso teve um final inesperado que comoveu a Argentina. "Foi uma amostra do que é o amor verdadeiro", disse à BBC News Mundo (serviço de notícias em língua espanhola da BBC) a juíza que presidiu o caso, Ana María Carriquiry, chefe do Tribunal de Família em Salta. Fim do Matérias recomendadas Em uma decisão inusitada, Carriquiry autorizou que ambos os homens — tanto o pai biológico quanto o pai adotivo — tenham a paternidade do menor, que hoje tem 3 anos. Assim, o pequeno P. — como é identificado no caso — terá a peculiaridade de ser oficialmente filho de uma mãe e dois pais. A juíza explicou sua decisão ao menino por meio de uma carta que ele poderá ler quando for mais velho. A mensagem, amplamente reproduzida nas redes sociais e na imprensa argentina, usa linguagem simples e inclui uma citação de uma das sagas mais queridas da literatura infantil, a de Harry Potter. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A juíza disse que quando recebeu o caso — que se viralizou agora, mas mas ocorreu em agosto de 2021 — a situação não era tão pacífica como acabaria se tornando posteriormente. "Quando o pai biológico iniciou a ação, ele veio com tudo", lembrou Carriquiry. No pedido inicial, o pai biológico pedia que o reconhecimento paterno do outro homem fosse anulado e entregue a ele. A juíza também conta que o chamado "pai socioafetivo" da criança ficou arrasado quando descobriu pelo teste de DNA ordenado pelo tribunal que não era de fato o pai biológico de P. "Imagine o estado de desespero daquele homem. Achei que ele não viria para a segunda audiência", confessou a juíza, que se comoveu com a atitude deste homeme, que acabara de perder a companheira e ao mesmo tempo ficou sabendo que seu filho não era biologicamente seu. Mas longe de optar por assumir uma postura de enfrentamento, o homem a surpreendeu com sua resposta ao processo. "Ele pediu para continuar sendo o pai, mesmo junto com o outro pai, e disse que não se importava se seu sobrenome fosse o segundo, terceiro ou quarto do menino." "Falou com firmeza, com amor, com uma renúncia... esse homem deu aulas sobre o amor e o que é ser pai", comoveu-se a juíza. Carriquiry apoiou o pedido deste homem, permitindo que a criança tivesse uma tríplice filiação, algo que não é reconhecido no Código Civil argentino, embora existam alguns poucos precedentes, tanto na Argentina quanto no exterior. A única coisa que faltava era que o pai biológico — que a lei argentina considera o único com direito legal à paternidade — concordasse. A mudança de posição do homem ocorreu quando a juíza convocou o menino para uma audiência, embora ele tivesse apenas 2 anos na época. "Quando eu deixei a criança entrar, ela se abraçou fortemente a seu único pai para ele, seu pai sócio-afetivo. E lá todo mundo ficou em silêncio", contou a juíza. "Apesar de não falar, ele se expressou. Sem dizer nada, ele falou alto. Com sua linguagem corporal, ele não deixou dúvidas de que tirá-lo de lá estava causando um prejuízo real, porque ele já havia sofrido com a perda recente de sua mãe." "Quando o pai biológico viu isso, ele mesmo disse: 'Eu quero o que mais beneficie meu filho, o que for melhor para ele'." "Foi muito louvável ver os dois homens colocarem seu orgulho de lado por aquele menino. Foi um sinal de amor verdadeiro." Os dois pais concordaram que o menor continuará morando com o pai adotivo e se relacionará progressivamente com o pai biológico, que também ajudará a sustentar o garoto financeiramente. "Temos que começar a abrir caminhos, porque para mim é o socioafetivo que marca na vida das pessoas e na lei. Não pode ser que continuemos com um direito de sangue", diz Carriquiry na justificativa de sua decisão, que considera inconstitucional o Código Civil que limita a paternidade a apenas duas pessoas (mãe e pai). Em sua decisão, a juíza determinou que os homens têm a obrigação de contar ao menino os detalhes de sua história, quando "ele for maduro o suficiente". E, observando o protocolo legal, ela também decidiu anexar à sentença a carta que ela própria escreveu para P. ler quando crescer. "Estou escrevendo para você porque você tem o direito de saber o que decidi e por que fiz isso", explica ela ao menor. "Aos juízes, cabe tomar decisões difíceis, mas seu caso foi muito simples, porque o que sobrou foi o amor de seus pais por você", diz ela na mensagem. Ela faz referência à falecida mãe do garoto, com uma citação de J.K. Rowling: "Sobre sua mãe, que infelizmente não está mais conosco, quero deixar a frase que Albus Dumbledore disse ao pequeno Harry Potter". "Um amor tão poderoso como o que sua mãe teve por você é algo que deixa marcas. Não uma cicatriz, ou qualquer outro sinal visível... ter sido amado tão profundamente, mesmo que aquela pessoa que nos amou não esteja aqui, fornece proteção que dura para sempre." "Além de sua mãe, você tem dois pais. Como isso pode ser possível? Também por amor. Ambos te amam igualmente e são seus pais." "Às vezes, você terá que decidir entre o pai biológico ou o pai socioafetivo. Mas neste caso, eu não tinha nada para decidir, porque eles tinham certeza da importância que o outro tinha na sua vida." "Por isso, a única coisa que fiz, P., foi reconhecer o direito que você tem de ter dois pais que te criem, cuidem de você. Porque, no fundo, a única coisa que importa é multiplicar o amor", concluiu. "Espero que você esteja muito feliz e sempre orgulhoso de sua mãe e dos pais que a vida lhe deu."
2022-04-25
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A história do bebê venezuelano morto por um disparo da guarda costeira em travessia para Trinidad e Tobago
O telefone tocou às 3h da manhã. O venezuelano Yermi Santoyo acordou e olhou para a tela. Era um número desconhecido. "Você é o marido de Darielvis?", perguntou um homem em espanhol, depois de traduzir o que outro havia dito em inglês, ao fundo. "Ela está ferida", disse. "Ferida? Ele caiu no rio?", perguntou. "Não, não. Você tem que vir", respondeu o outro, no telefone. "Mas o que houve?". "Se você quer descobrir, tem que vir aqui para que eu possa te dar uma força", respondeu o homem. Ele desligou. Yermi deu um pulo. Dar força? Ele sentiu sua cabeça girar: não tinha ideia do que poderia fazer. Yermi havia falado pela última vez com sua companheira, Darielvis Sarabia, dois dias antes, quando ela entrou em um barco que levaria ela e seus dois filhos de Tucupita, no leste da Venezuela, para Trinidad e Tobago. Fim do Matérias recomendadas Tucupita é a capital do Delta Amacuro, uma das províncias venezuelanas mais próximas da costa de Trinidad, e um dos principais pontos de partida para os venezuelanos que fogem do país de barco para se refugiar na ex-colônia britânica. Seis milhões de pessoas fugiram ou emigraram da Venezuela nos últimos anos, um êxodo que a Agência das Nações Unidas para Refugiados define como "uma das maiores crises de deslocamento do mundo". Os migrantes venezuelanos navegam pelos afluentes do Orinoco, que atravessam a geografia do Delta Amacuro e deságuam no Mar do Caribe. Por causa disso, Yermi temia que sua esposa tivesse caído no rio. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Yermi ligou para um amigo que morava perto de sua casa. Eles pegaram um ônibus para o Hospital de Sangre Grande, no nordeste de Trinidad. Chegaram pouco antes do amanhecer, depois de duas horas e meia de viagem. Darielvis estava na sala de emergência, deitada em uma maca, com o ombro esquerdo enfaixado e as roupas manchadas de sangue. Dois policiais a vigiavam. "O que aconteceu, meu amor?", perguntou Yermi, com medo da resposta. "Perdemos a criança", respondeu ela, tremendo. Ela e os filhos deixaram a Venezuela em 4 de fevereiro de 2022, uma sexta-feira, quando o governo do país completou 30 anos do golpe de Estado liderado pelo ex-presidente Hugo Chávez - marco do chavismo como movimento político. O casal tinha dois filhos: Danna, de dois anos, e Yaelvis, de 1. A mãe e os filhos navegaram pelos rios do Delta Amacuro e esperaram até a noite de sábado para zarpar. Era mais fácil fugir das patrulhas de Trinidad na escuridão da noite. No entanto, um navio da guarda costeira interceptou o barco quando se aproximava da costa de Trinidad na noite de sábado, 5 de fevereiro. Darielvis disse ao marido que a criança estava sentada em seu colo. Os policiais acenderam refletores e mandaram o barco parar, mas o motorista ficou nervoso e tentou retornar. Tiros foram disparados. Ela cobriu o menino com seu corpo para protegê-lo, mas uma bala atravessou seu ombro esquerdo e atingiu Yaelvis. "Sua cabecinha explodiu. Eu vi em minhas mãos", disse ela ao marido. A tripulação gritou que havia mulheres e crianças no barco e o tiroteio parou. Os guardas separaram Darielvis do corpo do filho para levá-la ao hospital. Danna, a mais velha, ficou com o resto da tripulação do barco. Um navio de 720 toneladas e 59 metros de comprimento estava patrulhando a costa sul de Trinidad e Tobago quando detectou uma embarcação que havia cruzado a fronteira em águas marítimas venezuelanas, informou a Guarda Costeira de Trinidad em comunicado no domingo, 6 de fevereiro. As autoridades do navio enviaram um barco para interceptar a lancha. Agentes chamaram os integrantes do barco por megafones, tocaram a buzina, apontaram o holofote e lançaram sinalizadores para forçar a embarcação a parar, segundo a entidade. No entanto, a guarda afirma que o barco insistiu em "fugir". "O esforço de abalroamento da embarcação suspeita, que era maior do que o navio, fez com que os tripulantes temessem por suas vidas e, em legítima defesa, dispararam contra os motores da embarcação suspeita", continuou a guarda. Quando o barco parou, funcionários da Guarda Costeira de Trinidad descobriram que havia "migrantes ilegais a bordo", que não foram vistos porque "permaneceram escondidos". Eles encontraram um "migrante ilegal adulto" que estava sangrando e segurando uma criança. "Infelizmente, o bebê não respondeu", explicou a Guarda Costeira. Eram Darielvis e seu filho Yaelvis. Dias depois, um pescador de Trinidad e Tobago desmentiu a versão da guarda costeira em um comunicado à imprensa do país, no qual pediu para permanecer anônimo. O pescador estava viajando com outras duas pessoas em um barco na região de Moruga, ao sul de Trinidad, quando avistaram um barco com problemas. A tripulação entrou no veículo dos pescadores para chegar à costa, mas foi interceptada antes de chegar à terra firme. "Vimos este barco, não tinha luzes nem nada. Vimos um sinalizador. Não sabíamos se eram bandidos ou a guarda costeira. Com o primeiro sinalizador que lançaram, ouvimos vários tiros", disse ele ao jornal Trinidadian Guardian. "Eles lançaram sinalizador e deram tiros. Após o segundo sinalizador, eles enviaram um terceiro sinalizador onde acenderam uma luz em seu barco que dizia Guarda Costeira Parada." Segundo ele, uma mulher ferida se levantou. "Vi um grande buraco na cabeça do bebê. Ela estava chorando. Ela estava ensanguentada", acrescentou, referindo-se a Darielvis. Os oficiais da Guarda Costeira usavam balaclavas, disse o pescador. Eles se aproximaram do barco em dois veículos menores e miraram nos imigrantes, diz. "Eles estavam xingando e exigindo drogas e armas." Obrigaram os pescadores a permanecerem no barco com o corpo da criança, enquanto os imigrantes eram transferidos para os barcos oficiais. "Então eles me chamaram para ir até a frente pegar o bebê e orar por ele. Eu fiz o que eles disseram porque estava com muito medo", disse o pescador aos jornalistas. A ex-primeira-ministra e líder da oposição de Trinidad, Kamla Persad-Bissessar, disse que sentiu uma "dor dilacerante" ao saber que a guarda costeira "atirou em um barco de imigrantes, matando um bebê". "A guarda diz que eles vieram para atacá-la. Eles poderiam ter feito uma ação evasiva. Por que tiveram que atirar? Foi isso que chamaram de força razoável?", questionou. O primeiro-ministro de Trinidad, Keith Rowley, respondeu em um post no Facebook que a patrulha de fronteira tentou "parar um navio que se recusou a responder e agiu de forma agressiva em conformidade com ordens legais, razoáveis ​​e profissionais sob a lei e o protocolo internacionais". E finalizou, em caixa alta, sobre a morte de Yaelvis: "FOI UM ACIDENTE!". A BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, não recebeu resposta ao pedido de entrevista com porta-vozes da Guarda Costeira ou do Ministério da Segurança Nacional de Trinidad e Tobago. A advogada Nafeesa Mohammed, especializada em direitos da criança, acredita que a guarda agiu sem levar em conta a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados ou a Convenção sobre os Direitos da Criança. "Refugiados e requerentes de asilo são vítimas e precisam de proteção, não de perseguição", disse ela. "A Guarda Costeira está encarregada de proteger nossas fronteiras e conduzir seus assuntos de maneira militar. Eles não respeitam os direitos humanos ou considerações humanitárias", afirmou. O governo venezuelano pediu uma investigação sobre a morte de Yaelvis. O casal e os filhos moravam na casa da avó de Darielvis, que cuidou dela desde os 15 anos, quando sua mãe morreu de câncer. Agora, a avó tem 80 anos e anda de cadeira de rodas. Em junho de 2021, Darielvis e as crianças estavam tão magras que Yermi decidiu migrar para Trinidad para procurar trabalho com o objetivo de mandar dinheiro para casa, na Venezuela. Ele chegou a vender o celular para receber os 200 dólares - o dinheiro foi usado para custear a viagem de Tucupita. Ao contrário do restante de sua família, Yermi conseguiu chegar à praia de Morne Diablo, ao sul de Trinidad, sem ser detectado. Ele trabalhou por oito meses em Trinidad como diarista em fazendas. Ligava para as crianças todos os dias, antes de sair de manhã, na hora do almoço e antes de dormir. Queria evitar que os filhos o esquecessem. "Pai", respondeu Yaelvis quando viu Yermi por videochamada pela última vez. Quando se sentiu confiante o suficiente para pedir um favor, Yermi conseguiu um empréstimo de seu chefe de 2.000 dólares de Trinidad (cerca de R$ 1.300) para colocar sua esposa e filhos naquele barco. Os coiotes que transportam venezuelanos do Delta Amacuro evitam especificar onde vão desembarcar. As manobras para evitar "o litoral" os impedem de saber em qual parte da ilha os passageiros poderão ficar. Quando chegam à praia, não param na margem. Ordenam aos passageiros que saltem para a água e desembarquem, embora muitos não saibam nadar. "E Dana, onde ela está?", perguntou Yermi à esposa na sala de emergência do hospital. "Eles a levaram. Encontre minha garota", ela respondeu. Os policiais disseram a Yermi que ele poderia visitar sua esposa todos os dias entre 16h e 17h, mas nos primeiros três dias ele não teve permissão para vê-la. Funcionários da embaixada venezuelana o acompanharam para procurar sua filha Danna. No terceiro dia de buscas, eles a encontraram no heliporto de Chaguaramas, uma instalação militar onde são detidas as pessoas que entram ilegalmente em Trinidad. Yermi desceu do carro e tentou se aproximar do prédio principal de Chaguaramas, mas dois guardas bloquearam o caminho. Danna apareceu segurando a mão de um estranho. Quando a entregaram para Yermi, a menina começou a chorar e não o reconheceu. Ele a abraçou e a lembrou que ele era seu pai. Ele disse que tudo ficaria bem, que ficariam juntos para sempre. A menina teve diarreia nos dias seguintes. Yermi se perguntou se ela havia bebido água contaminada. Ao amanhecer ela gritava e chorava, acordando assustada com pesadelos. Ele parou de trabalhar enquanto a esposa estava no hospital. Levava pelo menos duas horas para ir de casa ao centro médico e outras duas para voltar, sempre acompanhado por Danna. Yermi sentiu que a esposa evitava chorar na frente dele. Ela era "forte", assim como a mãe de Darielvis quando recebeu tratamento contra o câncer. Embora os policiais tenham dito a Yermi que ele poderia acompanhar Darielvis por pelo menos uma hora por dia, eles não permitiram que ele ficasse por mais de 30 minutos. Os agentes autorizaram Danna a ver sua mãe. Ela conseguiu beijá-la e dizer que a amava, mas a garota não demonstrou muito interesse pelo reencontro, como se não a reconhecesse. Darielvis ficou nove dias internada, até passar por uma cirurgia no ombro. Como ela parecia magra e apática, Yermi pediu para falar com um médico. Queria saber se seu sangue estava normal, para confirmar que seu corpo aguentaria a cirurgia. No entanto, ninguém respondeu. Ela se recuperou da operação e foi liberada após o velório do filho. Do grupo que viajou naquele barco, Darielvis e sua filha foram os únicos que receberam autorização do governo de Trinidad para permanecer na ilha. Os outros foram deportados de barco para Güiria, cidade venezuelana localizada a 516 quilômetros ao norte de Tucupita. O primeiro-ministro de Trinidad indicou que a ilha, de 1,39 milhão de habitantes, não tem capacidade para receber requerentes de refúgio da Venezuela, país de 28 milhões de pessoas. "Se você vai solicitar asilo em Trinidad e Tobago, ou em qualquer lugar do mundo, tem que mostrar que está pessoalmente em risco, sob ataque por causa de sua raça, religião, política ou qualquer outra coisa", declarou Rowley em dezembro de 2020. "A ambição por uma vida melhor por meio de mudanças econômicas não se aplica ao asilo em nenhum lugar do mundo", acrescentou. A Venezuela perdeu quatro quintos de sua economia a partir de 2014, a contração econômica mais severa da história moderna do Ocidente. Nesse cenário, Delta Amacuro aparece como um dos estados mais pobres da Venezuela. Ninguém se atreveu a contar à avó de Darielvis o que aconteceu com o bisneto. Ela ainda espera que a neta e seus filhos liguem para contar como foi a viagem a Trinidad.
2022-04-24
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Como a covid criou um congestionamento gigantesco no porto de Xangai que afeta o mundo inteiro
Dezenas de cidades da China estão atualmente em confinamento parcial ou total após um novo aumento de casos de coronavírus no país devido à disseminação da variante ômicron. A situação ameaça a controversa estratégia de "covid zero" das autoridades chineses. Com 25 milhões de habitantes e um peso vital para a economia do país, a cidade de Xangai sofre a pior onda de covid desde o início da pandemia, em Wuhan, há mais de dois anos. A metrópole chinesa não é apenas um centro financeiro global, mas também um dos portos de carga mais importantes para o comércio internacional. Nos últimos dez anos, tem sido o maior porto do mundo em termos movimentação de cargas. Em 2021, o porto de Xangai foi responsável por 17% do tráfego de contêineres e 27% das exportações da China. No entanto, o confinamento ao qual a cidade está submetida dificulta a chegada dos caminhões para levar as mercadorias a outros locais ou distribuí-las às fábricas próximas. Muitas indústrias, como a Volkswagen e a Tesla, tiveram que interromper suas atividades. Fim do Matérias recomendadas "As restrições afetam principalmente as estradas de entrada e saída do porto, resultando em um acúmulo de contêineres e uma redução de 30% na produtividade", explica Mike Kerley, gerente de investimentos da empresa Janus Henderson. Soma-se a isso a carência de trabalhadores portuários para processar os documentos necessários para que os navios desembarquem suas mercadorias ou façam a inspeção de saída. Agora os barcos também estão se acumulando na costa e nos canais ao redor do porto esperando o sinal verde para atracar. Os dados da consultoria VesselsValue demonstram como aumentaram os tempos de espera para navios tanque, navios graneleiros e navios cargueiros. Outro problema é que milhares de contêineres estão se acumulando no porto, colocando mais uma vez a cadeia de suprimentos global em xeque justamente quando os analistas estavam confiantes em sua recuperação após a pandemia. Embora o porto permaneça operando, está cada vez mais entupido. A Câmara de Comércio da União Europeia estimou que havia 40% a 50% menos caminhões disponíveis em Xangai e que menos de 30% da força de trabalho de Xangai pode retornar ao trabalho. As medidas impostas pela China nesta nova onda de covid determinam que todos que forem diagnosticados com a doença devem ficar em quarentena mesmo que não apresentem sintomas. Uma grande parte está em quarentena em instalações centralizadas, onde muitas pessoas se queixam de más condições. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os principais produtos exportados por Xangai incluem máquinas de lavar, aspiradores, painéis solares, componentes eletrônicos e têxteis. "A escassez temporária pode ser aparente para esses produtos, já que a exportação através de Xangai representa 30-50% do total das exportações chinesas desses produtos", disse Kerley, da Janus Henderson. A Ocean Network Express, uma empresa japonesa de transporte, avisou os clientes que contêineres estão se acumulando no porto de Xangai. "A situação não melhorou desde nossa última atualização em 6 de abril. O transporte rodoviário continua limitado e os terminais ainda estão congestionados, enquanto a capacidade de conexão da zona refrigerada continua muito tensa", disse a empresa em um comunicado. A maior empresa de transporte marítimo do mundo, Maersk, também emitiu um comunicado nesta semana dizendo que "vários navios vão pular o porto de Xangai em suas rotas" devido à falta de espaço disponível para contêineres. As consequências globais são cadeias de suprimentos tensas, fluxo lento de importações e aumento da inflação. "Há muita preocupação de que as exportações sejam afetadas e do impacto inflacionário no mundo, inclusive na América Latina, que é um grande parceiro comercial da China", diz Alicia García-Herrero, economista-chefe para Ásia-Pacífico do banco de investimentos Natixis . "Como a capacidade do porto não é a mesma de março, nem de fevereiro, levará algum tempo para resolver tudo isso. Mesmo que o lockdown da cidade termine amanhã, há um acúmulo de capacidade que não será resolvido rapidamente", diz Rodrigo Zeidan, professor de Economia e Finanças da NYU Shanghai, à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC "A inflação vai continuar por um tempo. Os preços de muitos bens levarão algum tempo para se estabilizar", acrescenta Zeidan. Os analistas do Bank of America acreditam que o impacto mais grave provavelmente será visto no fim do mês de abril. "Embora as autoridades já tenham notado os problemas e começado a tomar medidas nos últimos dias, é provável que as interrupções (na cadeia de suprimentos) se estendam por todo o mundo dentro de 3 a 6 semanas e durem ao menos até o final do segundo trimestre", diz o banco em um comunicado. O efeito na América Latina pode ser duplo, acredita Zeidán. Primeiro em termos de produtividade econômica, diz ele, pois mesmo que haja demanda da China por todas as matérias-primas que ela importa da América Latina, os embarques não serão fáceis de fazer. "Isso já está acontecendo. As taxas de envio estão ficando absurdamente altas por um longo tempo e os preços estão subindo." E segundo, a inflação vai subir um pouco mais. No entanto, vários dos especialistas consultados acreditam que, considerando a importância do porto de Xangai para o comércio da China, é improvável que as restrições durem muito. Eles dizem que o mais provável é que o governo chinês faça o possível para voltar à normalidade o mais rápido possível. Para Zeidan, a situação só deve melhorar em meados de maio.
2022-04-24
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Brasil é país que menos julgou e puniu crimes da ditadura na região, diz historiadora argentina
Paraguai, Brasil, Bolívia, Chile, Uruguai, Argentina. Em meados dos anos 1970, boa parte da América do Sul estava mergulhada em ditaduras militares. Apesar dos elementos em comum - o pano de fundo da Guerra Fria, os conflitos internos que colocavam grupos de esquerda como ameaça à ordem nacional, o princípio da doutrina de segurança nacional -, cada um desses regimes foi marcado por particularidades. E o mesmo se pode dizer do período posterior, a redemocratização. A maneira como cada país decidiu lidar com os crimes cometidos pelo Estado e com o processo de desmilitarização da política foi única - e essas escolhas reverberam até os dias de hoje, diz a historiadora argentina Marina Franco, que pesquisa o tema. Franco é professora da Universidade Nacional de San Martín (UNSAM) e co-coordenadora do Programa de Estudios de las Dictaduras del Cono Sur y Sus Legados ("Programa de Estudos das Ditaduras do Cone Sul e Seus Legados", em tradução literal). É co-organizadora do livro Ditaduras no Cone Sul da América Latina (editora Civilização Brasileira), publicado em 2021. A Argentina, por exemplo, foi um dos poucos países a revogar a lei de anistia que os militares aprovaram antes de deixar o poder. Fim do Matérias recomendadas Ainda em 1983, ano em que o civil Raúl Alfonsín assumiu a presidência, foi criada a Comisión Nacional sobre Desaparición de Personas (Conadep), que tinha a função de investigar os crimes contra direitos humanos cometidos entre 76 e 83, os anos do regime. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O Brasil é um exemplo do lado oposto. A lei de anistia sancionada em 1979 pelo regime militar segue em vigor e foi confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2010 - o que significa que a grande maioria dos civis e militares envolvidos nos crimes durante o período não pode ser julgada. A primeira condenação de um agente havia ocorrido ano passado, quando um juiz federal responsabilizou o delegado aposentado Carlos Alberto Augusto pelo sequestro de Edgar de Aquino Duarte nos anos 70 (o entendimento foi de que o sequestro é um crime continuado e, portanto, não coberto pela lei de anistia). Em fevereiro deste ano, contudo, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região acatou um recurso da defesa, que alegava prescrição do caso, e extinguiu a punibilidade do ex-delegado. Em entrevista à BBC News Brasil, a historiadora explica por que considera, entre os vizinhos do Cone Sul, o Brasil como um caso "extremo" da chamada justiça de transição, sendo o que menos investigou, julgou e puniu crimes da ditadura. Fala ainda sobre a importância dos áudios revelados nesta semana em que membros do Supremo Tribunal Militar admitem a prática de tortura durante a ditadura militar e sobre como o processo de redemocratização à brasileira explica o momento atual do país. BBC News Brasil - Quando olhamos para os países da região após o fim das ditaduras, a Argentina parece ser o que com mais afinco se debruçou sobre a questão da justiça de transição. A revogação da lei de anistia, a criação do Conadep, a prisão de Videla, os julgamentos que acontecem até os dias de hoje. O país é um caso particular? Se sim, por quê? Marina Franco - A Argentina é um caso particular em relação a como se resolveu a saída da transição. É diferente do Uruguai, do Chile, do Brasil. Se você olhar a partir do presente, é o melhor, é um modelo de como se julgar e investigar esses crimes. Agora, isso não se deve ao fato de que a Argentina em si seja um país modelo ou de que nós argentinos sejamos mais justos, com mais memória ou mais democráticos. Não tem nada a ver com isso. O que aconteceu na Argentina foi que existiram as condições políticas para que pudesse haver justiça transicional. Essas condições políticas são três, para mim, muito claras. As Forças Armadas saem de cena completamente derrotadas e fracassadas. Deixaram o poder com um fracasso político terrível, com um fracasso em uma guerra desastrosa - a Guerra das Malvinas -, com um fracasso econômico e uma crise atroz. Isso é o inverso do que aconteceu no Brasil. Durante o governo militar no Brasil se produziu um milagre econômico - muito questionado, mas houve um momento de crescimento. Aqui, quando as Forças Armadas deixaram o poder havia 300% de inflação mensal. Não há governo que resista a isso. E é o momento em que se começam a descobrir os crimes. A debilidade absoluta das Forças Armadas quando saem do poder cria as condições para que, se viesse um governo disposto a investigar e julgar, se pudesse fazê-lo. E o governo que veio [de Raúl Alfonsín, representante do partido União Cívica Radical (UCR), rival histórico do movimento peronista] efetivamente teve essa vontade. A outra força política que poderia ter ganhado aquelas eleições, o peronismo, não pensava em investigar e julgar. Então o que se deu foi uma confluência de elementos, um equilíbrio de forças que permitiu que se investigasse e se julgasse. O último elemento - e é importante que isso fique claro - é que na Argentina não se investigou porque socialmente havia um critério ético sobre as aberrações que haviam sido cometidas pelas Forças Armadas. Não existia uma consciência, é o contrário. A investigação e julgamento - ou seja, as políticas de Estado - criaram um consenso social sobre o que havia acontecido. BBC News Brasil - Às vezes parece que o caminho é inverso, que a pressão social dos argentinos levou à investigação, julgamentos e punições… Franco - Justamente, mas o que aconteceu foi que, no final da ditadura, começam a surgir informações sobre o que havia acontecido, sobre o desaparecimento forçado de pessoas. Naquele momento, a maioria acreditava que essas pessoas eram subversivas e que a repressão havia sido necessária. São os efeitos do julgamento, da investigação, que começam a mudar o olhar da sociedade. E aqui me parece importante destacar, pensando no caso brasileiro, que as políticas de Estado produzem efeitos e transformam. A ausência de políticas de Estado no Brasil, para mim, é um dado fundamental para entender algumas das coisas que acontecem no país. As políticas de Estado de memória, de justiça, as políticas educativas sobre as ditaduras geram efeitos de transformação social, e acredito que a Argentina seja um desses casos. Acho que o mais notável no caso argentino são os efeitos dessas políticas sociais junto com a mobilização social, que, claro, também existe. BBC News Brasil - O Brasil parece um exemplo no sentido contrário quando se pensa em justiça de transição. Criou sua Comissão da Verdade apenas em 2011, fez sua primeira condenação em 2021. Como a senhora vê esse processo - é também um caso particular? Franco - Bom, todos os casos são particulares. Nesse sentido, poderia-se dizer que o caso argentino é o extremo de investigação e justiça. O Brasil, por sua vez, estaria no outro extremo. Porque no Uruguai e no Chile houve processos, eles estariam ali no meio. Foram processos tardios e limitados de investigação e justiça, mas eles os tiveram. O Brasil é o caso mais extremo, porque, com a lei de anistia de 1979, não houve praticamente nenhum julgamento. E existe um consenso social a favor dessa lei [confirmada pelo Supremo em 2010], uma vontade política, uma vontade jurídica para que ela seja mantida. A Comissão da Verdade, como você mencionou, é bastante tardia. O próprio partido que poderia tê-la estabelecido muito antes, que era o PT, demorou para fazê-lo. E aí é importante agregar outro ponto. A lei de anistia também permitiu o retorno daqueles que estavam exilados, os opositores ao regime - e que passariam a fazer parte do jogo político dali para frente. Então há um interesse de todas as partes nessa possibilidade de restaurar o jogo político, o que não aconteceu na Argentina, porque a maioria dos opositores ao regime estavam mortos, desaparecidos ou faziam parte de grupos que depois não se integraram aos partidos políticos. Assim, é importante, no caso do Brasil, o fato de que a cena política posterior incorpora todos os atores, assim como no Uruguai, por exemplo, com seu Frente Amplio. Isso faz com que o jogo político posterior decida como se vê a situação prévia. Por isso sempre insisto na questão do equilíbrio de forças. BBC News Brasil - A ideia é de que poderia ser "desconfortável" para esses grupos tocar em assuntos como os grupos paramilitares de esquerda? Franco - Isso. Quando Dilma Rousseff chega ao poder, por exemplo, é constantemente "acusada" de ser guerrilheira. BBC News Brasil - Parece haver uma tensão permanente nesse sentido. O atual presidente do Supremo Tribunal Militar, Luis Carlos Gomes Mattos, ao comentar sobre os áudios inéditos revelados nesta semana em que membros do STM relatam casos de tortura durante a ditadura, desdenhou do material e disse que, quando se toca no assunto, "só varrem um lado, não varrem o outro". Franco - Nesse sentido, eu diria que os efeitos dos julgamentos na Argentina permitiram deixar claro que, não importa qual tenha sido a violência das organizações revolucionárias - que, aliás, na Argentina foram muito mais violentas do que no Brasil -, nada, nada é comparável com a violência exercida pelo Estado e pelas Forças Armadas. Em certa medida essa discussão está resolvida aqui. Há um consenso social muito claro de que a responsabilidade pela violência é do Estado, das Forças Armadas, e que ela é inadmissível. Acho que essa é uma diferença marcante, e é resultado das políticas de investigação e justiça. BBC News Brasil - Também comentando sobre os áudios, o vice-presidente, Hamilton Mourão, disse se tratar de "coisa do passado", que não se pode trazer os mortos de volta para submetê-los a julgamento. Como historiadora e pesquisadora das ditaduras latino-americanas, como a senhora avalia a importância dos documentos desse período e da forma como tratá-los? Franco - A importância dos áudios é absolutamente crucial em um país onde os processos de memória são limitados. O conhecimento sobre o passado é limitado, e sobre ele ainda se coloca em dúvida que tenha havido tortura e repressão. Esses áudios são provas indiscutíveis de que isso aconteceu. Me parece fundamental que isso seja divulgado, que circule, que seja discutido. Acredito ainda que ajuda a reduzir o espaço para as vozes negacionistas e as vozes revisionistas. Um historiador não precisa dessas provas hoje no Brasil [porque as evidências de violações já são claras]. Mas me parece que, socialmente, essas provas têm um impacto importante. Importante para a memória, para que se entenda realmente o que aconteceu. A verdade histórica não necessita de prova, mas, em um país onde ela é colocada em dúvida, é fundamental que tudo isso fique claro. BBC News Brasil - Que consequências práticas esse processo de memória limitado e a justiça de transição frouxa do Brasil no pós-ditadura têm? Franco - Em uma palavra, podemos dizer: Bolsonaro. Uma coisa está ligada com a outra. A falta de justiça, de políticas de processamento social e memorial do passado dificultam a criação de consensos sociais massivos pró-democráticos. Dificultam a criação de mecanismos de controle, mecanismos de vigilância que impeçam que certas coisas sejam admissíveis. Na Argentina, por exemplo, hoje é inadmissível que as Forças Armadas intervenham em questões de segurança pública ["seguridad interior"], que o Estado seja militarizado, que exista alguém que reivindique publicamente a violência estatal, a repressão, a tortura. Essas vozes podem aparecer, mas são imediatamente rechaçadas - e socialmente rechaçadas. BBC News Brasil - Outra questão quando se fala em redemocratização são os processos de desmilitarização dos países da região. Na Argentina, os militares parecem ter de fato voltado à caserna, um cenário bastante diferente do Brasil. Aqui, eles não apenas se mantiveram na política, como chegaram ao poder pelas urnas em 2018. Como a senhora analisa esse processo? Franco - O processo de desmilitarização no Brasil foi muito parcial, muito fragmentado e muito limitado. A eleição de Bolsonaro mostra um pouco isso. O tempo foi passando, foi passando e, de repente, quando Bolsonaro chega ao poder, percebe-se que o Estado ainda estava militarizado. E não só o Estado, mas também as concepções sobre ordem estavam militarizadas, o que é mais grave. Militarizadas e moralizadas. Bolsonaro reproduziu um discurso sobre a moral que também é profundamente repressivo. E volto àquele ponto: a grande diferença é a situação em meio à qual as Forças Armadas deixam o poder na Argentina e no Brasil. No Brasil, não saem completamente derrotadas. Deixam a direção do poder Executivo, mas não saem derrotadas. O mesmo acontece com um outro grande caso, o do Chile, em que as Forças Armadas se retiraram com um nível de presença e controle de peso no jogo político.
2022-04-24
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De onde vem o nome do Estado americano da Flórida e o que ele tem a ver com a Páscoa
O primeiro europeu de que se tem registro a se aproximar do litoral do que hoje são os Estados Unidos foi o explorador e aventureiro espanhol Juan Ponce de León. Segundo a lenda, Ponce de León, então governador de Porto Rico, aventurou-se para o norte em busca da fonte da eterna juventude. Entre 2 e 8 de abril de 1513, diz o mito, o explorador espanhol e sua tripulação atravessaram as águas costeiras do que hoje é o Estado da Flórida, até mais ou menos a região onde hoje está a cidade de Saint Augustine. Além da vegetação imponente e cheia de flores desabrochando que encontrou, a data coincidiu naquele ano com a celebração da Páscoa - o fim da Semana Santa. Teria sido por causa das flores, que também são símbolo da Páscoa, que Ponce de León deu o nome de Flórida à região. O nome foi mantido apesar de várias tentativas de exploração e colonização da região por outras potências da época. Mas quão verdadeira é essa história? Fim do Matérias recomendadas A história é um "mito romantizado", diz Jack Davis, diretor do Rothman Family Humanities Center da Universidade da Flórida. "Nosso passado está cheio desse tipo de lenda." No entanto, a lenda pode ter sido construída em torno de alguns fatos verdadeiros. Por exemplo: até onde se sabe, Ponce de León foi de fato o primeiro a navegar ao longo da costa do território. Mas não chegou a Saint Augustine, "embora as pessoas na cidade gostem de dizer sim", diz Davis. Em vez disso, foi até a Ilha Merritt, perto do Cabo Canaveral. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A expedição também não tinha ido em busca da "fonte da eterna juventude". A lenda circulava há vários anos entre os exploradores, que provavelmente a procuravam em diferentes regiões do Novo Mundo. Mas não há evidências de que esse fosse o objetivo da expedição de Ponce de León. "O decreto do rei era que ele deveria encontrar metais preciosos - ouro e prata - e pessoas para escravizar", diz Jack Davis. "A população escravizada de Porto Rico havia diminuído significativamente devido ao excesso de trabalho e a doenças trazidas pelos europeus." O que a Flórida tinha, no entanto, eram fontes de água doce. "No centro do Estado, não muito longe de Saint Augustine, temos a maior convergência de mananciais de água doce do mundo, e os espanhóis as encontraram e as chamaram de fontes. O mito da fonte da juventude convinha muito bem ao Estado. Com a chegada do turismo do século 19, a cidade de Saint Augustine aproveitou a lenda para criar um parque arqueológico dedicado à suposta fonte da eterna juventude que atraiu Ponce de León. Em 1904, um rico médico de Chicago, Luella Day McConnell, comprou o parque e continuou a promovê-lo como um local com "fantásticas propriedades medicinais". De acordo com a pesquisa dos historiadores, a expedição de Ponce de León não desembarcou na primeira viagem, provavelmente por causa dos densos manguezais que se estendiam além da costa. Aquele território era, sem dúvida, cheio de vegetação, mas não há evidências de que fosse florido a ponto de inspirar o conquistador a batizar o local, diz o professor Davis. "Sabemos que sua viagem correspondia à época da Páscoa. Os exploradores espanhóis costumavam nomear os lugares que reivindicavam para a Espanha em homenagem a um santo ou a um dia religioso", explica Davis. "Muitos textos escolares dizem que o que o impressionou foram as flores", diz Davis, mas o nome muito provavelmente tem a sua origem na Páscoa e "pegou rápido", ficando registrado nos mapas da época. Mas a ideia das flores perdurou e hoje se estende a um dos apelidos com que o estado é conhecido: The Flower State ('Estado das flores', em tradução livre). Durante a época de floração das milhares de plantações de laranja - um produto agrícola essencial para a economia da Flórida -, a doce fragrância inunda grandes regiões do sul e centro do Estado. A flor branca da laranjeira (Citrus sinensis) foi adotada pela Assembleia Legislativa como flor oficial do Estado em 1909. Uma década depois e por sugestão de um professor da Flórida, a data de 2 de abril foi escolhida para comemorar a chegada de Ponce de León. A data é vista como um dia histórico estadual. Entre 27 de março e 2 de abril, há uma série de eventos e programas culturais na região. Ponce de León nunca percebeu que havia encontrado um continente ou uma península ligada a um continente enorme. Ele acreditava ter descoberto uma grande ilha, e vários anos se passaram até os espanhóis perceberem que a Flórida faz parte de uma grande massa de terra. Ponce de Leon fez uma nova expedição em 1521, desembarcando na costa sudoeste da península com a intenção de estabelecer um povoado. Mas entrou em conflito com a população nativa e foi ferido com uma flecha envenenada, o que causou sua morte. Apesar de a Flórida ter servido como um local estratégico para consolidar a presença da Espanha no Caribe, o território sempre foi um fardo para a Coroa espanhola. Os espanhóis aproveitavam a Corrente do Golfo para impulsionar galeões carregados de mercadorias e tesouros para a Europa, mas a região nunca "deu lucro" aos colonizadores. "Nunca deu lucro. Sempre tiveram que subsidiar, ao contrário de Cuba que, embora também não tivesse metais preciosos, tinha uma economia agrícola e era um território autossuficiente", afirma Davies. Foram as incursões francesas que motivaram os espanhóis a acelerar seus planos de colonização. Depois, perderam o controle da Flórida para os britânicos e recuperaram no século 18. O território foi finalmente cedido aos Estados Unidos em 1821. Hoje, o nome de Juan Ponce de León é onipresente no Estado. Existem inúmeros municípios, estradas, avenidas, parques, escolas e praias com o nome do conquistador espanhol. "Para alguém que falhou tão miseravelmente na Flórida, é incrível como seu nome está em toda parte", diz o historiador. Mas não é um lugar que Ponce de León reconheceria hoje. A transformação da Flórida, particularmente após a Segunda Guerra Mundial, criou um estado de desenvolvimento urbano contínuo e crescimento populacional descontrolado. Enormes projetos de engenharia para gerenciar o fluxo de água drenaram e encheram pântanos, abrindo enormes espaços para agricultura, construção de casas e criação de praias - "o verdadeiro 'ouro' da Flórida" do qual depende a lucrativa indústria do turismo. Essa expansão teve um enorme custo ecológico. No último meio século, os famosos Everglades, os pântanos subtropicais no sul da Flórida, encolheram quase pela metade. "Somos um Estado paradoxal", diz o professor Jack Davis. "Historicamente, a urbanização controlou a política de crescimento da Flórida, com a destruição de mangues e florestas. Mas, ao mesmo tempo, a Flórida também tem boas políticas de preservação, um sistema excelente de parques protegidos e um projeto para desenvolver um corredor contínuo de vida silvestre através de todo o Estado."
2022-04-15
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Morre Freddy Rincón: a lembrança do gol mais comemorado pelos colombianos
Os gritos. Minha primeira lembrança de Freddy Rincón é talvez a mesma que marcou a memória de muita gente: alguém gritando. Gritando abraçado aos amigos. Gritando no meio do escritório. Gritando no banheiro. Gritando na rua em frente a uma loja de eletrodomésticos. Gritando sem limites por toda a casa. Não importa o lugar, se pensarmos em Freddy - é assim que o chamamos, como se fosse nosso melhor amigo -, lembramos de termos gritado por ele e graças a ele. Na madrugada desta quinta-feira (14/4), a equipe médica do hospital Imbanaco, em Cali, na Colômbia, anunciou que o jogador colombiano havia morrido após passar dias agonizando após um acidente de carro em 11 de abril. E novamente nos lembramos daquele grito. De felicidade. Porque quando você grita com a alma, a memória fica guardada no seu coração. Fim do Matérias recomendadas Eu estava sozinho. Morava em Cali, a cidade onde Freddy construiria parte de sua lenda jogando pelo América de Cali. Era uma terça-feira. Meus pais e minha irmã saíram de casa para cumprir seus deveres: trabalho e escola. Eu tinha ficado em casa porque, milagrosamente, a escola em que eu estudava havia adiantado as férias em uma semana. Não me lembro do sentimento de desespero antes do jogo começar, mas certamente era algo assim, porque naquele dia a Colômbia jogava contra a Alemanha pela classificação para a segunda rodada da Copa do Mundo da Itália de 90. Vale a pena contextualizar alguns fatos: em seus dois jogos anteriores, a Alemanha (que na época era a Alemanha Ocidental e era vice-campeã do mundo) havia esmagado seus rivais do grupo. Primeiro a Iugoslávia, por 4 a 1, e depois os Emirados Árabes Unidos, 5 a 1. Já a Colômbia, apesar de ter jogado muito bem, tinha vencido os Emirados Árabes por 2 a 0 e havia sido derrotada por 1 a 0 pelos iugoslavos. Por isso, para se classificar para a próxima rodada, precisava de pelo menos um empate com a Alemanha. Não tenho muitas lembranças do jogo. Teve um chapéu de René Higuita em Rudi Voeller, o grande atacante do Werder Bremen e do Olympique de Marseille. Não elogiei a audácia do nosso goleiro porque na época o considerei absurdamente imprudente em um momento tão importante para o país. Porque foi isso: naqueles anos sombrios de violência das drogas e do conflito no campo entre guerrilhas, exército e paramilitares, na Colômbia os únicos raios de luz eram os que nos traziam os atletas. É por isso que não era só a seleção que estava jogando naquele dia, o país inteiro estava jogando. A sensação geral era de que naquela terça-feira, no magnífico estádio San Siro em Milão, cenário do drama, estávamos jogando para ganhar tudo, todos. Não só para empatar. Minha memória mais detalhada se resume aos últimos sete minutos de jogo. Aos 43 minutos, Voeller do nada escapou da zona defensiva colombiana e passou a bola a Pierre Littbarski, uma lenda do Colônia FC que disputava sua terceira Copa do Mundo. Gol da Alemanha. A dois minutos do fim do jogo. Se existe outra memória coletiva na Colômbia, é isso: o fundo do poço. O sentimento de injustiça. A raiva de repetir a mesma velha história: sempre nos faltam cinco centavos para completar o peso. Quando a bola voltou a se movimentar no centro do campo, lembro-me também das palavras do locutor de TV William Vinasco, citando uma frase de Eleonora Roosevelt: "Quem perde dinheiro, perde muito; quem perde um amigo, perde mais; mas quem perde a esperança, perde tudo. Vamos Colômbia, você consegue!" Lembro-me de ouvir essa frase e pensar que realmente havia perdido a esperança. Lembro-me de pensar em desligar a TV. Eu tinha 11 anos, e uma raiva infantil me invadiu por causa da injustiça. A sensação de que nos venceram sem merecer - que viveria dezenas de vezes mais ao longo da minha vida - se instalou pela primeira vez e fincou uma bandeira. E não sabia o que fazer com tanta raiva. Porque, de novo, não era o time, era o país. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Eu estava processando isso tudo quando Leonel Álvarez recupera uma bola. O tempo regulamentar já havia se esgotado e estávamos aos 48 minutos, o que significava que o árbitro poderia encerrar o jogo a qualquer momento. Álvarez dá a bola a Luis Alfonso Fajardo, que se chamava El Bendito, que, por sua vez, passa a Carlos Valderrama, mundialmente famoso por seu apelido El Pibe e seus cachos dourados. El Pibe pega a bola e por um microssegundo perde o controle dela. Mas a recupera e a entrega a Rincón. Rincón a devolve a Bendito - parece uma bola de bilhar tocando as bordas da mesa. Novamente para Pibe, que, sem olhar, faz o passe para uma dimensão desconhecida - onde havia apenas Freddy. Flutuando. Em entrevista à revista Bocas, o próprio Rincón definiria aquela bola como "uma batata quente" que Valderrama lhe havia mandado. E foi literalmente uma "batata quente": Freddy e o país inteiro estavam atrás dela. Aqui os segundos são confusos, porque a próxima coisa de que me lembro é a bola caminhando lentamente em direção ao gol e de sentir a explosão. Euforia. O movimento desenfreado do corpo. Vendo os punhos de Freddy perfurando o ar com tanta força na televisão que parecia que ele tinha esgotado as energias. Mas me lembro principalmente de gritar. Pelos corredores da casa, pelos cômodos vazios, pela janela com os vizinhos. Gritando meus primeiros palavrões, gritando meu amor pela Colômbia, também pela primeira vez. Gritar sem saber exatamente o que estava sentindo. Gritar até ficar sem ar. Respirar. E gritar novamente. Mas aquilo era muito mais: nesse grito desapareceu a raiva contida, o desespero acumulado, a injustiça repetida. Talvez não nos lembremos tanto do gol em si, mas de tudo o que sentimos. Da eletricidade sem precedentes produzida ao ver aquela bola encostando na rede. Que pela primeira vez não nos faltaram cinco centavos para completar um peso. E não havia como retribuir Freddy por isso. Alguns dias depois, o Camarões de Roger Milla nos eliminaria nas oitavas de final, mas havíamos criado uma memória coletiva tão poderosa que talvez a eliminação não tenha sido o mesmo golpe que costuma ser. Saímos tristes, mas felizes pelos momentos vividos. Freddy, é claro, nos daria muitas outras alegrias como aquela. Não à toa foi batizado de "Colosso de Buenaventura", em homenagem à cidade onde nasceu. Seria o primeiro jogador colombiano a vestir a mítica camisa do Real Madrid, onde não seria tratado com muita cortesia. Também seria o capitão do Corinthians que ergueria o troféu do primeiro Mundial de Clubes no ano 2000. E seria, sobretudo, uma peça fundamental de outra memória compartilhada entre todas as pessoas que se dizem colombianas. Isso foi três anos depois da Copa de 90, em 5 de setembro de 1993. Naquela noite, marcamos cinco gols sobre os argentinos. Freddy marcou o primeiro e o terceiro, uma vitória que desencadeou uma série de comemorações violentas que terminaria com mais de 90 mortes - como se, ao contrário da Copa da Itália, tivéssemos sido intoxicados pela nossa raiva em vez da alegria. Por isso, logo que soubemos do acidente, começamos a compartilhar as lembranças daquele primeiro momento, porque todos sabíamos perfeitamente o que estávamos fazendo naquela manhã de 19 de junho de 1990: uns abriram a cabeça pulando durante a comemoração, outros se perderam dos pais no meio do shopping depois de saírem correndo. Alguns abraçaram estranhos. E todos gritamos, porque aquele era um gol que ia ficar conosco para sempre em um "Rincón" (um canto) da alma.
2022-04-14
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Polarização ameaça democracia do Brasil, diz ex-assessor de Obama para a América Latina
O cenário de extrema polarização, fragmentação partidária e baixa confiança nas instituições é grave e pode ameaçar a democracia no Brasil. É o que acredita o ex-assessor e principal nome para a América Latina da gestão de Barack Obama nos Estados Unidos, Arturo Valenzuela. Em entrevista à BBC News Brasil, o professor emérito da Universidade Georgetown afirmou que o Brasil já demonstrou no passado ter instituições fortes para combater avanços de todo tipo, mas enfrenta novos obstáculos atualmente. "Será um desafio para todos os brasileiros analisarem as urnas e fortalecerem suas instituições", disse. Questionado se acredita que a democracia brasileira pode estar em risco, Valenzuela afirmou que essa é uma possibilidade real. "Sim (...). Há um aumento da polarização. Há, de certa forma, o desaparecimento do meio-termo onde geralmente são feitos acordos entre os setores, tanto de centro-esquerda quanto de centro-direita", afirmou. "Um contexto em que as pessoas não confiam mais nos políticos, onde há preocupação com questões de corrupção e coisas assim, também leva a uma falta de confiança dos membros da sociedade nas instituições. Isso é um problema". Fim do Matérias recomendadas Mas segundo o chileno naturalizado americano que serviu como assessor especial para o ex-presidente americano Bill Clinton e foi secretário-assistente de Estado no governo de Barack Obama, esse fenômeno não é exclusivo do Brasil. "Esses problemas são apresentados de diferentes formas e em diferentes graus em muitos países, incluindo nos Estados Unidos e em alguns países da Europa", disse. Indagado sobre as ameaças feitas pelo presidente Jair Bolsonaro e membros de seu governo sobre o não reconhecimento das eleições em caso de derrota, Valenzuela disse enxergar qualquer esforço para subverter o processo eleitoral como um golpe contra a democracia. "Isso é o tipo de coisa que afeta o fortalecimento das instituições democráticas", afirmou. O cientista político de formação comparou ainda os temores em relação ao pleito de outubro com o que aconteceu nos Estados Unidos após as eleições de 2020, quando o ex-presidente republicano Donald Trump se recusou a reconhecer sua derrota para Joe Biden. "Como especialista em Direito Constitucional, estou preocupado que precisemos de algumas reformas significativas em nossas constituições, para que esse tipo de coisa não aconteça", disse. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Arturo Valenzuela concedeu entrevista à BBC News Brasil por ocasião de sua participação em um webinar organizado pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais em parceria com o Consulado Geral dos EUA no Rio de Janeiro nesta quarta-feira (13/04). O evento marca a abertura de um projeto de um ano, liderado pelo ex-embaixador do Brasil em Washington Sérgio Amaral, que tem como objetivo aprofundar o conhecimento sobre as relações bilaterais entre os EUA e o Brasil. A seguir, os principais trechos da entrevista: BBC News Brasil - Havia a expectativa de que o presidente americano Joe Biden adotasse uma posição dura com Jair Bolsonaro, principalmente em relação a questões como democracia e meio ambiente. No cenário de vitória de Bolsonaro nas eleições de outubro, como o senhor acredita que o atual governo dos Estados Unidos se posicionaria para um novo mandato? Arturo Valenzuela - A relação dos Estados Unidos com o Brasil é importante, assim como com a América Latina em geral. É importante em questões de desenvolvimento econômico, comércio, tecnologia, propriedade intelectual, agricultura, abastecimento de alimentos e uma série de outras coisas. Mas, é claro, existem muitas agendas hoje que são realmente críticas, como a da mudança climática. E à medida que vemos o desdobramento da situação na Ucrânia, todas as questões de sobrevivência da governança democrática e direitos humanos se tornam realmente importantes. E assim, fica claro que este é um momento mais difícil na relação com o Brasil. Talvez com o governo anterior houvesse certa afinidade - digo, entre o governo de Donald Trump e o de Bolsonaro. Mas isso acabou, Bolsonaro está concorrendo à reeleição e vamos ver o que acontece nos Estados Unidos. A relação é um trabalho em andamento e muito vai depender do que acontecer no Brasil. Neste ponto em particular, é justo dizer que há divergências significativas com Bolsonaro e sua abordagem, tanto em relação à política doméstica quanto à sua política internacional. E vemos isso com as diferenças que foram colocadas nas últimas semanas em relação à crise na Ucrânia. Mas nosso presidente anterior [Donald Trump] ainda não acredita que perdeu a eleição, então este não é um momento em que os Estados Unidos possam pregar a outros países do mundo que temos instituições melhores. Também lutamos com a qualidade de nossas próprias instituições e com muitas pessoas que tentaram essencialmente perturbar o processo democrático. Portanto, esses são desafios comuns que enfrentamos em todo o mundo. BBC News Brasil - No momento, as pesquisas mostram o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na liderança da corrida presidencial. Considerando um segundo cenário, em que Lula seja eleito presidente, como acredita que a Casa Branca avaliaria essa mudança de governo? Valenzuela - Fui Secretário de Estado Adjunto quando Lula era presidente e tive que lidar com o governo brasileiro. Houve algumas dificuldades e desentendimentos com o ministro das Relações Exteriores e outros em temas como a abordagem da questão iraniana. Por outro lado, houve um esforço para trabalharmos juntos em uma série de questões importantes, incluindo, por exemplo, a crise na Venezuela. Mas não acho que haveria uma lacuna significativa com um novo governo. Creio que os Estados Unidos trabalharão com quem for eleito e farão um esforço nessa direção. Não estou tão preocupado com a possibilidade de revisitarmos algumas das questões do passado, porque, de certa forma, o mundo mudou muito significativamente e em um período muito curto de tempo. E muito vai depender também do apoio que Lula terá no Congresso. Há uma história recente na América Latina de colapso e fragmentação de partidos políticos. Isso acontece não apenas em países com períodos curtos de estabilidade democrática, mas também em países com histórico de estabilidade. E não é possível ter certeza de quem terá maioria no Legislativo. BBC News Brasil - Há uma certa preocupação de alguns setores de que o presidente Jair Bolsonaro pode não reconhecer o resultado da eleição caso perca. Na sua opinião, essa é uma possibilidade real? Podemos ter uma repetição da invasão do Capitólio de 6 de janeiro e toda aquela violência aqui no Brasil? Valenzuela - Prefiro não especular muito sobre qual pode ser o resultado. Obviamente, se houver um esforço para não reconhecer uma eleição legítima e tentar subverter o próprio processo da eleição, a forma como a eleição é administrada ou realizada, seria um problema muito sério para qualquer democracia. Isso é o tipo de coisa que afeta o fortalecimento das instituições democráticas. Isso aconteceu e ainda continua acontecendo nos Estados Unidos. Felizmente, os tribunais e muitos dos profissionais de diferentes níveis que estavam encarregados do processo eleitoral em ambos os partidos se opuseram a essa falsa narrativa. Espero que existam instituições suficientemente fortes no Judiciário e em outros lugares no Brasil para garantir o mesmo tipo de resultado. Um dos pontos problemáticos, para voltar a um argumento que fiz anteriormente, é que a fragmentação política significa que não há um processo centrista alternativo no Brasil neste ponto em particular. E, como especialista em Direito Constitucional, estou preocupado que precisemos de algumas reformas significativas em nossas constituições, para que esse tipo de coisa não aconteça. Na verdade, o segundo turno é uma má ideia. Creio que o Congresso deve ter um papel maior e decidir em casos de candidatos que não obtêm mais de 45% dos votos. Não deveríamos entrar em um segundo turno que pode pulverizar e fragmentar ainda mais o sistema político. Esse tipo de coisa precisa ser tratada no Legislativo. Portanto, há maneiras pelas quais precisamos parlamentarizar, por assim dizer, os sistemas presidencialistas. BBC News Brasil - Vários institutos internacionais que medem o status da democracia no mundo apontam para um declínio na qualidade da democracia brasileira desde o início do governo de Jair Bolsonaro. Na sua opinião, a democracia no Brasil está em risco? Valenzuela - Sim, por alguns dos pontos que já indiquei. Há um aumento da polarização. Há, de certa forma, o desaparecimento do meio-termo onde geralmente são feitos acordos entre os setores, tanto de centro-esquerda quanto de centro-direita. Esse tipo de fenômeno é um problema do nosso tempo. Temos observado um declínio considerável dos partidos políticos e sua fragmentação, e esse tipo de coisa é preocupante. O Brasil vive um momento de extrema fragmentação, com uma polarização maior e talvez mais forte de extrema direita manifestada pelo atual presidente. A eleição em si está muito polarizada, com candidatos da extrema esquerda e da extrema direita com mais apoio do que os candidatos que podem ser identificados como centro. Um contexto em que as pessoas não confiam mais nos políticos, onde há preocupação com questões de corrupção e coisas assim, também leva a uma falta de confiança dos membros da sociedade nas instituições. Isso é um problema. Não estou dizendo que essas sejam características necessariamente exclusivas do Brasil. Esses problemas são apresentados de diferentes formas e em diferentes graus em muitos países, incluindo nos Estados Unidos e em alguns países da Europa. O que realmente precisamos são de forças políticas pragmáticas que representem setores importantes da população. E deve haver regras nesse jogo para garantir que os partidos fiquem mais fortes e possam ser bons representantes. BBC News Brasil - O senhor acredita que o Brasil tem instituições fortes o suficiente para lidar com isso? Valenzuela - O Brasil mostrou que já teve instituições fortes, por meio de sua capacidade de combater a corrupção, por exemplo. Mas, de certa forma, isso foi há algum tempo. Então será um desafio para todos os brasileiros analisarem as urnas e fortalecerem suas instituições. Esse também é um desafio nos Estados Unidos. BBC News Brasil - Dados recentes mostram que o desmatamento na Amazônia em 2021 foi o pior em 10 anos. O que o senhor acredita que o governo Joe Biden pode fazer nos próximos anos para pressionar mais o Brasil na questão ambiental? Valenzuela - Esta é uma questão crítica e, de certa forma, o Brasil se destaca devido à extraordinária importância de sua contribuição para o ecossistema do mundo. As mudanças climáticas estão afetando o mundo de uma maneira muito significativa - tivemos incêndios horríveis na Califórnia por conta de secas excessivas, seguidos de tornados e as tempestades no sul dos Estados Unidos. As nações insulares também enfrentam um grande desafio à medida que as geleiras estão derretendo. Portanto, o Brasil desempenha um papel muito importante e não prestar atenção nessas ramificações mais amplas é preocupante. Mas ao mesmo tempo, observadores e países estrangeiros também estão preocupados com o que está acontecendo com certas populações no Brasil. Não se trata apenas de cuidar da floresta, mas também das populações indígenas que foram suas guardiãs e tiveram que enfrentar as afrontas do extermínio e comercialização dessas áreas preciosas do Brasil. E sei que muitos brasileiros estão preocupados com isso também. BBC News Brasil - O senhor acredita que os EUA podem tomar ações mais assertivas em relação ao Brasil? Valenzuela - Durante a era Trump houve um desdém pelas alianças e instituições internacionais. Já o governo Biden representa uma administração que entende a importância de trabalhar com outros países, de apostar no multilateralismo, construir consenso e trabalhar em conjunto. Mas isso só pode ser feito se as instituições mundiais estiverem funcionando. Por instituições mundiais quero dizer as instituições multilaterais e organizações internacionais como a Organização Mundial do Comércio, a Organização Mundial da Saúde, a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, a Organização dos Estados Americanos e outras. Temas como o meio ambiente precisam ser fortalecidos por meio desses tipos de organizações. E o Brasil pode ser um líder nessa área. Mas, em vez disso, o Brasil está desprezando esse tipo de instituição e está contribuindo, de certa forma, para sua fraqueza. BBC News Brasil - Na sua opinião, o Brasil perdeu relevância como mediador de conflitos e referência na América Latina? Valenzuela - Sim, o Brasil perdeu relevância. Muitos podem discordar de algumas das coisas que foram feitas pelo governo Lula em termos de projeção, mas quando o ex-presidente pensou em cooperar com o Irã tinha o compromisso de tentar abordar os temas de forma que seriam vantajosos não apenas para os países envolvidos, mas para a ordem mundial. E pode-se discordar se tudo isso foi útil ou não naquele momento específico, mas pelo menos fez algum sentido. E acho que o Brasil pode e deve agir dessa forma, porque é um país grande e um dos Brics do mundo. Há muitos elementos da tradição brasileira que contribuíram para essa ordem mundial para a qual precisamos retornar. Eu sou um admirador de muitos dos líderes brasileiros do passado e Fernando Henrique é uma das minhas referências. Então, em última análise, precisamos de ordem mundial, precisamos de uma ordem mundial baseada no conceito fundamental de governança democrática, de governos do povo, pelo povo e para o povo. Precisamos de instituições internacionais que ajudem a proteger essa ideia para que possamos ter uma ordem mundial pacífica e bem-sucedida. BBC News Brasil - A América Latina passou por muitas crises ao longo dos anos, mas nos últimos cinco anos parece que a situação da democracia na região se complicou, com muitas crises políticas em países como Chile, Bolívia, Nicarágua, Peru e Venezuela. A que o senhor atribui esse período de instabilidade política? Valenzuela - Há uma diferença entre a trajetória de diferentes países da América Latina. Há alguns países em que não houve a consolidação das instituições democráticas e outros que têm uma longa história de consolidação das instituições democráticas. Agora, como eu disse anteriormente, há realmente uma espécie de crise universal da democracia. Em alguns países da América Latina, ironicamente, parte disso se deve ao fato de que houve muito progresso. E digo isso porque muitas pessoas que observam situação chilena, por exemplo, e pensam que os protestos são motivados por uma enorme desigualdade. Na realidade, havia uma desigualdade muito maior em 1960, com uma grande uma porcentagem da população na pobreza absoluta, algo como 50% ou 65%. Hoje está em cerca de 8%. O que vimos acontecer é o surgimento de novas classes médias, que agora se sentem ameaçadas e mais vulneráveis. Portanto, há razões pelas quais estamos enfrentando uma nova crise. Eu pertenço a várias organizações que analisam pesquisas de opiniões voltadas para os mais jovens, e é lamentável, mas muitos jovens sentem que as elites são os partidos convencionais. E isso tem acontecido no Brasil com partidos políticos realmente fortes como PSDB e outros que perderam uma forte base de apoio. Há uma crise da social-democracia em grande parte do mundo, por essa razão.
2022-04-13
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3 sinais de 'desgaste' nas democracias da América Latina, segundo analistas
Uma série de acontecimentos recentes em diferentes países chamou a atenção para a situação da democracia na América Latina. No Peru, o presidente Pedro Castillo, que assumiu há apenas oito meses, decretou toque de recolher na capital do país, Lima, e na sua vizinha Callao. Em El Salvador, o presidente Nayib Bukele disse que a Assembleia Legislativa deveria declarar "regime de exceção" diante do aumento de homicídios. As medidas de Bukele levaram o secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken, a invocar a necessidade das liberdades civis e de expressão. Na Argentina, um dos homens fortes do presidente Alberto Fernández, o secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência, Gustavo Béliz, defendeu a regulamentação do uso das redes sociais. Na Nicarágua, estudiosos acompanham atentamente o quadro político no país, onde opositores foram presos e o presidente Daniel Ortega eleito, em novembro passado, para seu quarto mandato seguido. Ouvidos pela BBC News Brasil, quatro analistas apontaram para os problemas da democracia regional nos dias de hoje. Falando de lugares diferentes, eles ressaltaram o "desgaste" pelo qual as democracias estão passando. A cientista política peruana Paula Muñoz, da Universidade del Pacífico, de Lima, entende que existe "uma certa insatisfação" com a democracia e seus "resultados insuficientes" que ficaram evidentes depois do boom econômico gerado pelas commodities, entre o início dos anos 2000 e 2014. "A insatisfação das populações da nossa região é visível neste período de vacas magras", disse Muñoz. Fim do Matérias recomendadas O professor equatoriano de ciências políticas Simón Pachano, da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (FLACSO) do Equador, concorda com Muñoz, dizendo que existe "frustração" nas sociedades da região com a recessão e a percepção de queda no bem-estar. Os efeitos da pandemia na economia, no desemprego, na inflação - agora agravada com a invasão da Rússia na Ucrânia - contribuíram para a insatisfação popular em relação à política e aos rumos de alguns governos. "As frustrações ocorrem, independentemente de serem em relação aos governos de direita ou de esquerda", disse Pachano. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas por que está ocorrendo o "desgaste" da democracia? Os analistas entendem que a fragmentação dos partidos políticos, a implosão de partidos tradicionais e a falta de conexão da política com a realidade das pessoas são alguns dos fatores. "Sem partidos políticos sólidos, as decisões acabam sendo personalizadas e fragmentadas. E a relação entre o Executivo e o Legislativo também. Se perde o equilíbrio entre os poderes. Isto gera instabilidade institucional. Na América Latina, nesta conjuntura, o trânsito para o autoritarismo é cada vez maior", disse o professor chileno Guillermo Holzmann, da Universidade de Valparaiso. Na opinião dele, a falta de projetos e visão de longo prazo para "o bem comum que é a base das democracias" também as enfraquecem. Alguns governos recorrem então a instrumentos do passado, como no caso do decreto de toque de recolher no Peru, para tentar resolver problemas como os protestos que deixaram quatro mortos no país e que levaram Castillo à canetada da medida. Para Muñoz, "há um evidente retrocesso democrático" na América Latina. Os governos são eleitos, mas desvirtuam promessas de campanha, por exemplo. Em muitos casos, a fragmentação dos partidos políticos ou a implosão dos partidos tradicionais, assim como as polarizações entre opositores extremos, são observadas no Peru, no Chile e no Brasil, disseram os analistas. Falando dos Estados Unidos, o especialista chileno Ricardo Israel, ex-candidato presidencial no Chile, e agora no Observatório da Democracia do Instituto Interamericano para a Democracia (Inter American Institute for Democracy), afirmou que as democracias e os partidos políticos se enfraquecem na América Latina já não por golpes militares, como no passado, mas pela "fortaleza dos caudilhos e do populismo". "O populismo é velho na América Latina. Muito antes de (Jair) Bolsonaro existiu Getúlio Vargas. Muito antes de Nestor e de Cristina Kirchner, existiram Perón e Evita Perón. Atualmente, com o enfraquecimento dos partidos políticos, a destruição das democracias surge de dentro e não de fora, como foi com os golpes militares", disse Israel. Holzmann afirma que estudos e levantamentos recentes apontam para o "enfraquecimento" das democracias em vários países do mundo e não só na nossa região. Mas o que leva um presidente a decretar uma medida que remete ao período das ditaduras na América Latina, como foi o toque de recolher, em pleno no século 21? No caso de Castillo, os analistas Muñoz e Pachano observaram sua inexperiência e despreparo para o cargo. Ex-professor de escolas rurais e ex-sindicalista, Castillo fez quatro reformas ministeriais em oito meses e compareceu ao Congresso duas vezes para tentar se defender do impeachment. Sua popularidade encolheu em pouco tempo - o que costuma ser frequente para um presidente na história recente da política peruana. O fato de ele ter sido eleito com estreita margem de votos leva, ainda hoje, a oposição - maioria no Congresso - a questionar sua vitória e sua gestão. "Castillo não tem contribuído para a estabilidade porque a cada semana surge um novo escândalo (de suposta corrupção), envolvendo até seus parentes", disse o analista Carlos Aquino, da Universidade de San Marcos, de Lima. O decreto acabou sendo ignorado pela população que saiu às ruas com cartazes que diziam "Castillo ditador" e "Fora Castillo". Panelaços também foram registrados nas principais cidades do país. E o presidente então cancelou a medida. Na Argentina, a reação das entidades de jornalismo e de liberdade de expressão, como Adepa e Fopea, levaram o secretário de Assuntos Estratégicos, Gustavo Béliz, a também recuar da sua proposta. O governo teve que esclarecer que não planejava uma lei para regular as redes sociais. Béliz tinha dito que elas deveriam ser "bem usadas", que hoje estão "intoxicando a democracia" e que era preciso criar "regras para seu uso e bem comum". As situações parecem ainda mais complexas em El Salvador e na Nicarágua. No domingo (10/4), o secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken, escreveu em suas redes sociais que, assim como o presidente salvadorenho, também condena o aumento da violência de gangues e homicídios em El Salvador. Mas ressalvou que as liberdades civis, incluindo as liberdades de imprensa, reunião pacifica e de expressão devem ser respeitadas. Na semana passada, o presidente salvadorenho disse, em suas redes sociais, que a Assembleia Legislativa, com maioria governista, deveria declarar "regime de exceção", baseado na Constituição do país, diante do aumento de homicídios - 76 homicídios em dois dias, colocando em dúvida a estratégia oficial de combate ao crime, de acordo com analistas locais. Seu pedido foi acatado pelo parlamento. As medidas incluíram, por exemplo, a suspensão por 30 dias de liberdade para reuniões. Juan Pappier, da entidade internacional de Direitos Humanos Human Rights Watch (HRW), informou em suas redes sociais que as medidas incluíam a possibilidade de prisão de crianças a partir dos 12 anos, restrições para a liberdade de imprensa e "a perigosa expansão do regime de prisão preventiva". A lei imposta pelo presidente Nayib Bukele prevê a "penalização ainda dos meios de comunicação que transmitam informações que possam ter partido de grupos criminosos e gerem pânico na população". O presidente salvadorenho chegou a se definir como "dictador cool" ('ditador gente boa') em suas redes sociais, segundo a CNN em espanhol. Analistas internacionais observam que ali também o "declínio" dos partidos que governaram o país durante 30 anos (Arena, de direita, e FMLN, de esquerda), escândalos de corrupção e a criminalidade abriram caminho para a eleição de Bukele. Para os analistas ouvidos pela BBC News Brasil, a situação na Nicarágua foi ainda mais chamativa durante o período eleitoral do ano passado, quando Ortega foi eleito para um novo mandato. Seus opositores foram presos ou fugiram das perseguições para a vizinha Costa Rica, como informaram as agências internacionais de notícias, ou para a Espanha, como no caso do escritor Sergio Ramírez. "A Nicarágua é um caso explícito de sequestro da democracia. Quando falamos em democracia, falamos nos respeito às normas democráticas, não importa se o líder é de direita ou de esquerda", disse Ricardo Israel, que também é crítico dos governos da Venezuela e de Cuba. Segundo ele, a Carta Democrática Interamericana, criada em 2001, prevê sanções e deveria ser acionada para a defesa da democracia na região. Mas ele reconhece que não é algo simples porque precisa do apoio de vários países da própria América Latina para ser aplicada.
2022-04-12
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61077901
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Governo do Peru suspende toque de recolher, mas protestos seguem em Lima
O presidente peruano, Pedro Castillo, anunciou no Congresso o fim do estado de emergência que havia decretado na noite da segunda-feira (5/4) para lidar com uma onda de protestos e tumultos que se espalharam por todo o país. "Devo informar que a partir de agora vamos anular o toque de recolher, cabe ao povo peruano se acalmar", disse Castillo em uma reunião com membros de seu governo e parlamentares na sede do Poder Legislativo em Lima. O presidente saiu então do palácio legislativo, segundo ele, para assinar o decreto que anula o anterior. A essa altura, confrontos ocorriam no centro de Lima entre policiais e manifestantes que tentavam avançar em direção ao Congresso para mostrar sua rejeição a Castillo e ao estado de emergência. As imagens na televisão local mostraram policiais feridos e sob uma chuva de objetos lançados pelos manifestantes, além do gás lançado pela polícia contra os participantes do protesto. Fim do Matérias recomendadas Os jornais locais falam em dezenas de feridos entre os manifestantes. O governo peruano decretou toque de recolher nesta terça-feira (5/4), na província de Lima e sua vizinha Callao, em resposta à greve dos caminhoneiros que já dura uma semana. Em meio à paralisação, quatro pessoas morreram e outras 20 foram detidas. Os protestos e bloqueios tiveram início em 28 de março, em resposta ao aumento dos preços dos combustíveis. Começaram com os motoristas, mas depois juntaram-se outros sindicatos de trabalhadores. O decreto que aprovou o estado de emergência suspendeu até à meia-noite de terça-feira "os direitos constitucionais relacionados com a liberdade e segurança pessoal, a inviolabilidade do domicílio e a liberdade de reunião e circulação". O defensor público Walter Gutiérrez e o prefeito de Lima, Jorge Muñoz, impetraram habeas corpus por julgarem a medida inconstitucional. O Congresso também pediu a revogação do estado de emergência. Na semana passada, Castillo sobreviveu à segunda tentativa de impeachment em apenas oito meses de governo. Nesta segunda-feira (4/4), a agência de avaliação de risco Moody's afirmou ser improvável que ele chegue até o fim do mandato em 2026. Mesmo após a revogação do estado de emergência, os protestos continuavam nas ruas de Lima, segundo a imprensa local.
2022-04-05
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61004985
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Por que governo do Peru decretou estado de emergência e suspendeu direitos após protestos
O governo peruano decretou toque de recolher nesta terça-feira (5/4) na província de Lima e na vizinha Callao em resposta à greve dos caminhoneiros que já dura uma semana. A manifestação já deixou quatro mortos. Outras 20 pessoas foram detidas. Os protestos e bloqueios começaram em 28 de março em resposta ao aumento dos preços dos combustíveis. Inicialmente, foram mobilizados por caminhoneiros, mas ganharam força com a adesão de trabalhadores de outras áreas, como agricultores. As restrições começaram às 2h desta terça-feira e vão até as 23h59 (hora local). "O Conselho de Ministros aprovou a declaração de imobilidade dos cidadãos das 02h00 da manhã até às 11h59 da noite de terça-feira, 5 de abril, para proteger os direitos fundamentais de todas as pessoas, o que não impedirá a prestação de serviços essenciais", disse o presidente do Peru, Pedro Castillo, em um discurso pouco antes da meia-noite. Fim do Matérias recomendadas Além disso, decretou estado de emergência tanto em Lima quanto em Callao, "suspendendo os direitos constitucionais relacionados à liberdade e segurança pessoal, à inviolabilidade do lar e à liberdade de reunião e movimento". O toque de recolher surpreendeu os quase 10 milhões de habitantes de Lima e grande parte dos cidadãos, já que, quando foi anunciado, muitas pessoas já estavam dormindo. Estão isentos de cumprir a medida funcionários dos serviços de saúde, água, saneamento, eletricidade, combustível, telecomunicações, limpeza, serviços funerários, transporte de cargas e mercadorias. Além disso, só é permitido o atendimento das farmácias e o trabalho da imprensa devidamente credenciada, bem como a mobilização para atendimento de emergência médica. "Os trabalhadores dos setores público e privado só devem realizar trabalho remoto, segundo as regulamentações sobre o assunto", concluiu Castillo. A medida gerou rejeição imediata. A oposicionista María del Carmen Alva, presidente do Congresso, afirmou no Twitter que Castillo "não pode impedir o funcionamento do Congresso", conforme a Constituição. Até a deputada Sigrid Bazán, da coalizão Juntos pelo Peru, aliada do governo, afirmou que "sendo praticamente meia-noite, não faz sentido uma medida inatacável, que não responde a nenhuma solução e que vai afetar todos os trabalhadores que logo se levantarão cedo para suas atividades diárias". A decisão do Executivo foi tomada em meio a uma onda de rumores nas redes sociais sobre possíveis manifestações e saques em Lima nesta terça-feira. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em uma tentativa de apaziguar os protestos, o governo eliminou o imposto sobre o combustível no fim de semana, informou a agência de notícias AFP. Mas na manifestação desta segunda-feira (4/4), caminhoneiros e motoristas de transporte de passageiros voltaram às ruas. Vários incidentes violentos, incluindo a queima de pedágios de rodovias, saques de lojas e confrontos entre manifestantes e policiais, ocorreram em diferentes áreas do Peru na primeira greve desse tipo enfrentada pelo governo de Castillo. Os protestos se intensificaram e, segundo as autoridades, pelo menos quatro pessoas morreram em decorrência deles. Outras 20 foram detidas devido aos distúrbios causados ​​em onze regiões do país que registraram interrupções no transporte terrestre. "A greve não está acontecendo apenas aqui, está em todo o Peru", disse um manifestante não identificado na cidade de Ica, no sul, citado pela agência de notícias Reuters. A agitação eclodiu na semana passada quando fazendeiros e caminhoneiros bloquearam algumas das principais rodovias para Lima, provocando um aumento nos preços dos alimentos. O governo respondeu neste fim de semana com uma proposta para eliminar a maioria dos impostos sobre combustíveis na tentativa de baixar os preços, ao mesmo tempo em que aumentou o salário mínimo em quase 10% para 1.205 soles por mês, cerca de R$ 1.500. Castillo justificou o toque de recolher devido aos "atos de violência que alguns grupos quiseram criar" com os bloqueios de estradas. Ao mesmo tempo que apelou à "calma" e "serenidade", o presidente peruano reconheceu que o protesto social é um direito constitucional, afirmando que deve ser feito "no quadro da lei, respeitando a integridade das pessoas, bem como propriedade pública e privada". As manifestações foram o mais recente revés no governo de Castillo, que foi eleito com amplo apoio camponês, mas viu sua popularidade cair drasticamente, mesmo nas regiões rurais.
2022-04-05
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60999946
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Mina terrestre, drone e 'narcotanque': as armas não convencionais usadas por cartéis mexicanos
A morte de um camponês em fevereiro deste ano, depois de pisar sobre uma mina plantada por traficantes em Aguililla, no oeste do México, disparou o alerta sobre o aumento da violência em uma região já afetada, durante anos, pelo fogo cruzado entre grupos rivais. O incidente registrado no município - bastião do Cartel Jalisco Nova Geração (CJNG) e onde nasceu seu líder Nemesio Oseguera Cervantes, o "Mencho" - está longe de ser uma ameaça pontual. Em cerca de três semanas, o Exército mexicano desativou ao menos 250 explosivos caseiros nessa região conhecida como Tierra Caliente (Terra Quente), no que ficou revelado como um autêntico campo minado, para aumentar ainda mais o terror da população local. As chamadas minas antipessoais, que lembram as táticas adotadas em países com grandes conflitos armados, somam-se ao arsenal dos cartéis mexicanos, que aumentaram seu poder e diversificaram suas armas até contar com muitos armamentos usados por militares e exércitos em guerras. "O crime organizado agora utiliza minas artesanais em trilhas e drones carregados com explosivos. Então, ou você presta atenção onde pisa ou no que está sobre sua cabeça", diz Gilberto Vergara, padre de Aguililla, resumindo a situação para a BBC Mundo, serviço em espanhol da BBC. Fim do Matérias recomendadas Em fevereiro, efetivos do Exército foram enviados ao município para tentar recuperar seu controle. De fato, à medida que a violência aumentou no México, os grupos criminosos adotaram na última década um enfoque cada vez mais militarizado em suas táticas e, sobretudo, em seus armamentos. Os cartéis, que contavam com antigas armas soviéticas no passado, passaram a utilizar desde fuzis característicos de exércitos em guerra até drones com explosivos de tecnologia mais sofisticada, passando pela fabricação de seus próprios veículos blindados, inclusive submarinos. Agora, também minas improvisadas. Para Robert J. Bunker e John P. Sullivan, autores de dois livros sobre os avanços e as táticas dos cartéis mexicanos nos últimos anos e sobre a evolução de seus armamentos com artigos explosivos aéreos, a adoção de minas terrestres ou de drones armados reflete "um aumento da violência potencialmente indiscriminada". "Eles representam ameaças potenciais significativas às quais o Exército mexicano terá de responder, antes de que se proliferem entre outros grupos no país", disse Bunker, em entrevista à BBC Mundo. A BBC Mundo procurou a Secretaria de Defesa do México (Sedena), que enviou efetivos para desativar as minas em Michoacán, mas não obteve resposta. Segundo autoridades militares citadas pelo jornal El Universal, foram encontradas na área minas fabricadas de forma caseira, colocadas a cerca de 150 metros uma das outras. Estavam escondidas não apenas fora das comunidades, mas também em seu interior. Em um comunicado em 9 de fevereiro, a Sedena afirmou que "conseguiu restabelecer a transitabilidade e a paz social" em Aguililla, após o envio de soldados ao município. A secretaria disse que a ação teve "a finalidade de realizar operações para fortalecer o estado de direito na região", sem, no entanto, mencionar a descoberta das minas. Apesar do anúncio do Exército, entretanto, o prefeito de Aguililla, César Arturo Valencia Caballero, foi assassinado menos de um mês depois. O presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, disse ter havido progresso na região. "Estamos trabalhando há meses, porque toda essa região estava tomada, trabalhando com programas sociais (…) E estamos avançando, pessoas já começaram a voltar, colheram seus plantios, estão se inscrevendo nos programas de bem-estar. Entretanto, continuam existindo tensões", afirmou. Os especialistas consultados pela BBC situam essa evolução e militarização das armas do crime organizado no México no momento em que o Cartel do Golfo, anos atrás, empregou pela primeira vez ex-soldados profissionais, como parte dos Zetas, seu antigo braço armado. Na avaliação de Bunker e Sullivan, fundadores do site Small Wars Journal-El Centro, de análises de conflitos e grupos criminosos na América Latina, aquilo foi o detonador para que, quando um cartel tentasse sobreviver e competir contra grupos rivais, optasse por reforçar suas unidades usando armamento de nível militar. "Isso resultou em uma 'revolução militar de cartéis' que ainda continua", afirma Bunker. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Há três possibilidades para a origem dessas armas. Primeiro, de nações diversas, como da América Central e outras partes do mundo. No passado, os cartéis mexicanos obtinham armas de arsenais de governos centro-americanos, como rifles de assalto, lançadores de granadas, metralhadoras e armamentos antitanques. De um mercado ilegal mais distante, chegavam armas de grau militar produzidas em países como China, Rússia, Coreia do Sul ou África do Sul. Essas rotas de tráfico, no entanto, não são hoje tão sólidas como quando os cartéis estavam presentes em alguns portos do México, afirma Bunker. Uma segunda e importante origem atual dessas armas continua sendo os Estados Unidos. Do país com o qual o México compartilha a fronteira terrestre mais movimentada do mundo, procedem milhares dos rifles Barret calibre 50 ou os fuzis semiautomáticos utilizados pelos cartéis, que são comprados por intermediários naquela país para depois serem introduzidos no México, escondidos dentro de veículos. Segundo dados do governo mexicano, a cada ano são traficadas ilegalmente mais de 500 mil armas a partir dos EUA. Somente em 2019, elas foram responsáveis por mais de 17 mil assassinatos no México. O governo mexicano entrou com um processo contra um grupo de empresas americanas de armas, que segue em curso. "Elas fabricam armas enquanto os clientes do México que se dedicam à delinquência organizada", afirmou o presidente López Obrador. Essa procedência das armas ficou visível em vários incidentes. Durante a fracassada operação para capturar, em 2019, Ovidio Guzmán López, filho de Joaquín "El Chapo" Guzmán, foram identificadas armas com o cartel de Sinaloa como fuzis de assalto AK47 ou metralhadoras como a Browning M2 calibre .50, uma das mais poderosas utilizadas pela infantaria dos EUA. Uma terceira origem dessas armas, porém, é o próprio México. Segundo Bunker, "os cartéis têm obtido armas de policiais, militares e funcionários corruptos do governo. Inclusive quando as autoridades apreendem armas de grau militar dos cartéis, elas nem sempre são destruídas e podem voltar para eles mediante um pagamento". Nos últimos anos, os cartéis vêm aumentando seus conhecimentos e capacidade para fabricar suas próprias armas, como as recentes minas terrestres improvisadas ou drones armados. Uma de suas principais fontes de aprendizagem é a interação com outros grupos criminosos. "Às vezes, isso se aprende na prisão. Tais habilidades táticas de armamento foram transmitidas de grupos como as Farc, da Colômbia, ao CJNG, por exemplo, quando os grupos cooperam e formam alianças", destaca Sullivan. De fato, se existe algo que para os especialistas representa essa militarização dos armamentos dos cartéis e é o melhor exemplo de fabricação caseira são aqueles conhecidos como "monstros" ou "narcotanques". "Esses veículos blindados evoluíram - de ter apenas portas de armas, nas quais enfiavam canos de armas, a estruturas fixas de armas (para metralhadoras e rifles Barret calibre .50) e torres blindadas giratórias que contém essas armas", afirma Bunker. Outra mostra desse poderio é o uso de drones, que passou de uma utilização como artefato explosivo explosivo improvisado de detonação pontual para um elemento com capacidades de bombardeio aéreo. Em janeiro, um vídeo gravado a partir de um drone do CJNG permitiu ver o momento em que o objeto lançava várias bombas sobre um acampamento em Michoacán, das quais as pessoas fugiam aterrorizadas. O grupo liderado por Mencho é hoje considerado o cartel mais avançado, em termos operacionais, em sua corrida armamentista. Assim mostram os vídeos em que eles exibem, sem pudor e em plena luz do dia, sem cobrir os rostos, parte de seu equipamento. No ano passado, integrantes do grupo desfilaram em tanques caseiros por Aguililla, entre gritos de "Puro pessoal do Mencho!". "Essas 'demonstrações de força' são uma mostra de poder para impressionar a população e seus rivais, mas também têm uma utilidade tática real. São uma propaganda com real capacidade operacional", analisa Sullivan. De olho no futuro, especialistas consideram que a especialização em armamentos vista atualmente na região da Tierra Caliente poderia se estender a outras partes do México, onde os grupos criminosos vejam a necessidade de alcançar uma vantagem tática. "Uma vez que haja ali um cartel definitivamente no controle, a violência e a inovação serão menos acentuadas. À medida que o conflito se transfira para outras frentes, onde os cartéis estejam competindo, essas novas áreas de disputa se converterão em incubadoras de inovação tática", prevê Sullivan. Além disso, ele lembra que grupos colombianos que usaram minas terrestres, como as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), o ELN (Exército de Libertação Nacional) ou grupos criminosos, como o Clan del Golfo, interagiram em diversos níveis com os cartéis mexicanos. "Pode-se esperar que as minas continuem proliferando", conclui o analista. Bunker afirma que o Exército mexicano segue tendo muito mais poder bélico que os cartéis, na forma de tanques, artilharia e helicópteros. Uma de suas fragilidades, porém, é que "os cartéis envolvem-se em atos de corrupção que enfraquecem as instituições do governo mexicano. As unidades da Secretaria da Defesa no local podem ser vulneráveis à corrupção se são empregadas em uma área por longos períodos de tempo", alerta ele.
2022-03-30
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60904230
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Por que Peru tentou tirar um presidente do cargo pela 5ª vez em cinco anos
Nesta segunda-feira (28/3), quando completava apenas oito meses de mandato, o presidente peruano Pedro Castillo compareceu ao Congresso Nacional para defender sua Presidência e tentar evitar uma saída antecipada do cargo. "A luta que tenho agora não é pelo apego ao poder, que é temporal, por um período constitucional de cinco anos. Minha luta é para servir ao país e para que a crise institucional seja superada", disse Castillo diante dos congressistas. Com a faixa presidencial e sem o chapéu que o caracterizou durante a campanha eleitoral e os primeiros meses de governo, o ex-professor de escolas rurais do norte peruano, chegou ao Parlamento com sua equipe ministerial, na busca por sinalizar fortaleza e apoio políticos. Esta é a segunda vez que congressistas da oposição apresentam o pedido para que Castillo seja retirado da cadeira presidencial. Para que o pedido de "vacancia" (impeachment) fosse aprovado eram necessários 87 dos 130 votos dos legisladores. "Desde que fui eleito, a 'vacancia' passou a ser o centro (da política peruana). Isso não pode continuar. Não existem bases jurídicas para isso e tampouco provas contra mim", disse o presidente. Fim do Matérias recomendadas Após cinco horas de debates, a votação, na madrugada desta terça-feira, terminou com o placar de 55 parlamentares votando a favor do impeachment, 54 votando contra e 19 abstenções. Com isso, Castillo sobreviveu à segunda tentativa de tirá-lo do cargo. O analista peruano Carlos Aquino, professor da Universidade San Marcos, disse à BBC News Brasil, que a perspectiva é de que a "instabilidade política continue", independentemente do resultado da votação. "Os confrontos entre o Executivo e o Legislativo têm sido frequentes", disse, referindo-se à gestão atual. Nesta terça-feira, o governo peruano tem outro desafio: a paralisação do setor de transportes de carga contra o aumento dos combustíveis. Neste primeiro dia de greve por tempo indeterminado, várias estradas tinham sido bloqueadas, incrementando os desafios políticos e econômicos no país. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na segunda-feira, na longa sessão de debates sobre a destituição de Castillo, no Congresso, que é unicameral, os parlamentares opositores voltaram a acusá-lo de "incapacidade moral permanente" — prevista na Constituição e uma forma de definir a falta de condições éticas para um líder governar e que, no século 19, segundo historiadores, era chamada de "incapacidade mental permanente". Este mesmo argumento levou à saída de dois presidentes peruanos. Há menos de dois anos, em novembro de 2020, o então presidente Martín Vizcarra foi destituído do cargo, no segundo processo de "vacancia". No primeiro, a oposição não tinha conseguido os votos necessários para seu impeachment. Como Castillo, ele também foi acusado de "incapacidade moral permanente", sob acusações de atos de corrupção, que ele negou. Na sexta-feira passada (25/3), a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) questionou o uso seguido da "incapacidade moral permanente" para a destituição presidencial e integrantes da Organização de Estados Americanos (OEA) assistiam o debate no Congresso, a pedido do governo e contra a vontade da oposição. O presidente é o quinto do país em cinco anos. A saga de presidentes peruanos, que não concluem o mandato ou que foram presos após a conclusão do mandato, acusados de irregularidades, levou a imprensa peruana a colocar especial atenção nos candidatos a vice nas chapas que disputaram as últimas eleições presidenciais, como informou a agência estatal argentina de notícias Télam, antes do segundo turno em junho passado. "Os candidatos a vice-presidente são chave na instável política peruana", noticiou. Vizcarra era vice-presidente quando assumiu a Presidência. Seu sucessor, Mario Merino, que era o presidente do Congresso e estava na linha de sucessão, durou apenas cinco dias na Presidência e renunciou diante de fortes protestos. Antes de Vizcarra, o então presidente Pedro Pablo Kuczynki, conhecido como PPK, renunciou ao cargo, em meio a denúncias de corrupção e vínculos com a empresa Odebrecht. Atualmente, ele cumpre prisão domiciliar. Na época da sua prisão, ele disse que se tratava de uma "arbitrariedade". PPK cumpriu apenas dois anos (2016-2018) dos cinco anos de mandato. Vizcarra foi presidente também por dois anos (2018-2020). Os presidentes anteriores concluíram os mandatos, mas tiveram problemas com a Justiça: Alberto Fujimori (1990-2000), Alejandro Toledo (2001-2006) e Alan García (2006-2011) — que se suicidou em meio à denúncias de que teria recebido subornos. Castillo foi eleito no segundo turno da eleição presidencial, mas sua eleição só foi confirmada após contagem voto a voto, disputas judiciais e protestos da oposição liderada por sua opositora Keiko Fujimori. Na noite de segunda-feira (28/3), na sessão para sua destituição no Congresso, seus apoiadores afirmaram que a oposição ainda hoje acusa a eleição de "fraudulenta", o que não seria certo, disseram. O advogado do presidente, José Palomino Manchego, argumentou na tribuna da casa que as vinte acusações contra Castillo eram infundadas. Ele chamou de "mito" as denúncias de que Castillo governa com assessores paralelos, que teria defendido que o Peru conceda à Bolívia saída ao mar (tema sensível no Peru, no Chile e na Bolívia desde a Guerra do Pacífico, no século dezenove). "Em nenhum momento, o presidente pensou em reduzir o território peruano e em cometer traição à pátria. Além disso, se não existe condenação (pelos atos de Castillo), não existem delitos", disse o advogado. Numa das falas, um parlamentar governista disse, porém, que o presidente citou a possibilidade de convocar um plebiscito, durante entrevista à imprensa mexicana, para saber se os peruanos permitiriam este acesso à Bolívia. A política peruana tem sido marcada pela fragmentação política e partidária e do "distanciamento" e "desinteresse", segundo analistas, dos debates políticos. Para governar, com estabilidade política, dizem, o presidente precisaria conversar com os vários setores políticos, o que, segundo Aquino e outros analistas, não estaria ocorrendo na gestão atual e não teria ocorrido nas gestões recentes. Nos discursos, de poucos minutos para cada parlamentar, o governista Waldemar José Cerrón Díaz, do Perú Libre, disse que as denúncias contra Castillo eram "montadas" e que os que defendem a "vacancia" querem "parar o país". Já o opositor Hernando Guerra García, da opositora Fuerza Popular, disse que defendia o argumento de "incapacidade moral e permanente" porque Castillo teria mostrado que é "incapaz de governar". Uma parlamentar governista disse que, enquanto eles discutiam, novamente, a saída do presidente, os peruanos estavam preocupados com o aumento nos preços dos alimentos e as sequelas deixadas pela pandemia do coronavírus, com mais de 200 mil mortes num país de 32,9 milhões de habitantes. Em seus argumentos na defesa do impeachment, a oposição apontou para as trinta mudanças de ministros nas várias reformas ministeriais, em apenas oito meses de mandato Castillo. A parlamentar opositora Patricia Rosa Chirinos Venegas, do Avanza País, acusou o presidente de corrupção e citou seus sobrinhos — acusados de tráfico de influência, de serem parte de um "gabinete paralelo" e de entradas seguidas no Palácio presidencial. "Para o bem do país, o presidente deve renunciar", disse. Na segunda-feira, segundo o jornal Gestión, de Lima, o Poder Judicial determinou, a pedido do Ministério Público, a prisão de onze pessoas, incluindo dois sobrinhos do presidente (Fray Vázquez Castillo e Gianmarco Castillo Gómez) e o secretário geral da Presidência, Bruno Pacheco. Eles foram citados na investigação sobre irregularidades em uma obra pública. A parlamentar Hilda Marleny Portero, da Acción Popular, criticou o presidente por querer dividir os peruanos com seus discursos frequentes, disse, sobre ricos e pobres, e afirmou, no entanto, que as denúncias ainda estão sendo investigadas. Tradicionalmente, logo após assumir, os presidentes perdem rapidamente o apoio popular que conquistaram nas urnas. No Peru, existem vários argumentos para essa conjuntura. Um deles é que, apesar do crescimento econômico (até antes da pandemia) a expansão não gerou a inclusão social no mesmo ritmo e os trabalhadores informais representam mais de 60% da população. Durante a pandemia do coronavírus, cenas como a falta de oxigênio nos hospitais do país, que provocaram filas para a compra de cilindros no mercado paralelo, evidenciaram os problemas sociais e a desigualdade no país.
2022-03-29
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'Bolsonaro começou a destruir o continente': rapper Residente explica por que destacou presidente brasileiro em clipe
"Estamos aqui, ei / Estamos aqui / Olhe para mim, estamos aqui". O novo single do porto-riquenho René Pérez, mais conhecido como Residente, pede que o mundo preste atenção aos abusos e sofrimentos que ele atribui aos Estados Unidos da América. Mas, sobretudo, This is Not America mostra, segundo o artista, como os Estados Unidos se apropriaram do nome que pertence a toda uma região caracterizada pela diversidade de suas centenas de milhões de habitantes. "Do ponto de vista dos Estados Unidos, tudo o que está presente no vídeo não é a América", diz em entrevista à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC. Com isso em mente, o artista tentou retratar a América de ponta a ponta, para deixar claro que "é da Terra do Fogo ao Canadá". Fim do Matérias recomendadas A produção, que veio a público na quinta-feira e que já conta com milhões de visualizações no YouTube, une a voz de Residente à dupla Ibeyi, formada pelas irmãs de ascendência cubana Naomi Díaz e Lisa-Kaindé. No clipe, ele encena protestos na Venezuela, Colômbia e Porto Rico; apresenta imagens de guerrilheiros, narcotraficantes e favelas; gangues que oram a um Cristo crucificado na praia e uma mulher que, separada de seu filho, o amamenta através de uma cerca; coloca pirâmides pré-colombianas no meio das cidades e substitui a Estátua da Liberdade por outra de uma pessoa de um povo originário. E também critica o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro (PL). Também mostra eventos históricos específicos de forma crua, como o assassinato do músico chileno Víctor Jara, que foi baleado na cabeça em 1973 pela ditadura militar de Augusto Pinochet, após ter sofrido tortura. A BBC News Mundo conversou com o artista sobre o simbolismo por trás de sua nova música. Confira trechos da entrevista abaixo. BBC Mundo - O vídeo e a letra da música estão cheios de simbolismos. O que é a América para você? Residente - O vídeo começa com uma obra do artista chileno Alfredo Jaar, que fez a mesma afirmação há cerca de 30 anos: a América é todo o continente, e não apenas um país. Foi nisso que me inspirei para dar o nome à música. Do ponto de vista dos Estados Unidos, as situações que apresento no vídeo não fazem parte da América. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Obviamente, é a América e todos nós sabemos disso. Mas é um segredo aberto que as pessoas ouvem e deixam passar. Quando você o interioriza, dentro do seu corpo, do seu ser e do seu espírito, incomoda saber que os Estados Unidos carregam um nome que pertence a todo um continente. Nesses tempos em que as palavras e seus usos estão sendo modificados, o que as palavras significam, (...) pode ser um bom momento para buscar alternativas para a palavra 'América', em inglês. Quando se referem ao seu país, não precisam dizer 'América', podem dizer Estados Unidos. Fácil. BBC - No vídeo, você apresenta acontecimentos em sua maioria trágicos ou que remetem ao inconformismo nos diferentes países da América Latina. Por que você decidiu mostrar este lado do continente? Residente - Porque a maioria das situações que apresento no vídeo estão ligadas a intervenções dos Estados Unidos. Qual a melhor maneira de dizer: 'irmão, você está levando o nome depois de ter feito a Operação Condor e ter matado meio milhão de pessoas, e ter causado indiretamente a morte de Víctor Jara durante a ditadura de Augusto Pinochet'. Também é um bom momento para tocar em diferentes situações que ocorreram na Colômbia, na Venezuela e rever os importantes acontecimentos na América. BBC - O vídeo é uma resposta ao clipe This is America, de Childish Gambino, que fazia uma crítica ácida ao racismo nos Estados Unidos? Residente - Sou fã do Gambino. Meu vídeo mostra o que estava faltando em This is America. Estou completando-o, ajudando-o. Eu canto com aborrecimento, porque eu faço rap do começo ao fim da música, e enquanto eu estou fazendo isso, é difícil parar e ser uma pessoa legal, como no final de uma piada. Mas é por isso que digo "meu irmão" na letra. Eu o considero um irmão como todos os afro-americanos. Tem que haver uma unidade entre afro-americanos e latinos também. BBC - A música de Gambino é de 2018. Há alguma razão para você lançar This is not America agora? Residente - Esse é um tema que me ocorreu há muito tempo, desde antes da pandemia. A pandemia paralisou muitos lançamentos. A primeira parte do álbum foi a música René, que saiu há dois anos. Parece que é uma resposta tardia, mas não, eu fiz a música rapidamente. Eu disse 'deixe-me contribuir com a ideia para preencher o que está faltando'. E foi isso que fiz. BBC - Onde você gravou o vídeo? Residente - Gravei o clipe em Tijuana, no México. Eu odeio voar. Eu odeio voar em todos os tipos de aeronaves. Foi fácil chegar lá por terra porque eu estava em Los Angeles na época. Tijuana é bem colorida, tem uma equipe de produção super boa, porque eles produzem muita coisa para Hollywood. Todos os países latino-americanos compartilham visualmente muitas coisas: a cor dos bairros, as pessoas, nossa aparência física. O México tem isso, é como um funil latino-americano onde tudo que passa pela América Latina tem que passar por lá antes de chegar aos Estados Unidos, e um pouco de tudo fica lá. BBC - Por que você decidiu começar o vídeo com a líder nacionalista porto-riquenha Lolita Lebrón? (Ela foi presa em 1954 junto com outras três pessoas por disparar uma arma no Congresso dos Estados Unidos). Residente - Para que outras pessoas possam conhecê-la, e quando perguntarem, possam falar sobre ela e sobre a situação colonial de Porto Rico. É uma boa maneira de começar o vídeo, com aquele evento do ataque ao Congresso. É forte, sou porto-riquenho e estamos próximos do governo dos Estados Unidos. Nosso presidente é Joe Biden. Mas a ideia principal é contar a história para pessoas que não a conhecem. BBC - Há quem diga que a ideia de culpar o colonizador pelos eventos que ocorrem na América Latina e em outras partes do mundo já foi muito usada. Residente - Eu disse isso na música: 'Eu perdoo, mas nunca esqueço'. Eles (colonizadores) foram perdoados, mas não podemos esquecer a raiz, o porquê de as coisas terem acontecido. É como dizer aos afro-americanos para esquecer todas as atrocidades cometidas contra eles. Você não pode esquecer isso. Você pode perdoar, viver em paz com isso, mas não esquecer. Muitos brancos nos Estados Unidos também não esquecem disso e estão cientes, e têm o cuidado com os afro-americanos quando vão falar deles, mas é normal que haja essa coragem. E não é contra os Estados Unidos, um país brutal. Eu tenho americanos na minha banda que amam This Is Not America. A música não é sobre criar uma ideia e um clichê de que nós odiamos os Estados Unidos. Estamos apontando como o governo dos Estados Unidos doutrinou muitas pessoas a acreditar que eles são a América e como eles colonizaram todos os países e estiveram envolvidos na maioria das atrocidades que ocorreram na América Latina. O mesmo vale para a Rússia e seus países adjacentes. O mesmo vale para a China. Países grandes sempre fazem isso. BBC - Muitas pessoas perguntam por que você critica os Estados Unidos e ainda vive no país. Essa é uma pergunta bem boba. É como dizer a um venezuelano que se ele mora na Venezuela não pode criticar seu país. BBC - Mas o que você responde quando alguém faz essa pergunta? Residente - Há muitas maneiras de responder. Acredito na independência dos países, estou vivendo em um país independente, uma república. Mas eu não moro nos Estados Unidos integralmente, moro em Porto Rico. Essa é a coisa mais importante, o que acontece é que as pessoas inventam qualquer história. Eu trabalho nos Estados Unidos, às vezes por vários meses. Mas se eu tenho uma casa em Porto Rico, isso não aparece. 'Ele comprou uma casa em Los Angeles'... Bem, é assim que dão a notícia. Mas minha casa fica em Porto Rico, eu voto em Porto Rico, estive em Porto Rico durante a pandemia. O que acontece é que tenho uma equipe de trabalho em Los Angeles, me reúno com ela, fico um tempo e volto para Porto Rico. BBC - Das cenas e símbolos que você apresenta no vídeo, há alguns que se destacam, como o assassinato de Víctor Jara. Quais são os mais significativos para você? Residente - Sim, é uma das mortes mais fortes. Mataram um músico por tocar música. É como se tivessem matado Nina Simone, apesar de que ela foi censurada e tornaram sua vida muito difícil. Mas acho que há muitas imagens poderosas. A Estátua da Liberdade com os latino-americanos, acho forte. Bolsonaro também, comendo e limpando a boca com a bandeira do Brasil. BBC - Por que você escolhe Jair Bolsonaro e não dá destaque a outros líderes latino-americanos? Residente - Poderíamos fazer um vídeo de todos os presidentes lavando a boca com a bandeira. O que acontece é que havia apenas um espaço, e para mim quem ganhou o prêmio este ano por tudo que fez foi Bolsonaro. Embora existam muitos, Bolsonaro tem algo particular. Por mais que esses líderes tenham cometido atrocidades, alguém que eu imagino limpando a boca com bandeiras é Bolsonaro. É alguém que incendiou a Amazônia, entende? Começou a destruir o continente. Além disso, o Brasil é sempre excluído quando as coisas latino-americanas acontecem. As pessoas se esquecem do Brasil porque a população não fala espanhol. Então foi bom representá-lo desse modo. Mas acho que Daniel Ortega (presidente da Nicarágua) também mereceu, assim como muitos outros presidentes... Nicolás Maduro. Há uma lista de presidentes que merecem ser destacados pelo que fazem em seus países. BBC - Tem uma parte com alguns jovens baleados na cabeça... Residente - Esse trecho representa muitos dos jovens latino-americanos, estudantes, que foram assassinados. Estudantes que se manifestaram na Venezuela, em Cali, na Colômbia. Na Argentina, em todos os lugares.
2022-03-22
https://www.bbc.com/portuguese/geral-60842427
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O rio que secou na Amazônia colombiana e deixou populações ribeirinhas ‘órfãs’
Orlando Rufino fica de pé sobre o leito do rio que ele diz ter "dado a vida" para seu povo por centenas de anos. "Deu a vida, porque ele nos dá tudo", explica. Importante meio de transporte e fonte de alimento e renda para famílias como a de Rufino, o rio sempre serpenteou pelas densas florestas no sul da Colômbia, até chegar ao poderoso rio Amazonas. Mas, em vez de caminharem pela água, os pés de Rufino afundam na areia seca. Os barcos de madeira que normalmente trafegavam ao longo do fluxo constante do rio agora estão esquecidos, encalhados ao lado dele. "Mesmo durante as secas, o rio sempre chegou até aqui", afirma Rufino, de 43 anos, apontando acima da sua cabeça. "Agora, está difícil." Fim do Matérias recomendadas Historicamente, a estação seca na região vai de julho a dezembro. Embora o nível do rio diminua neste período, sua profundidade quase sempre é suficiente para os barcos trafegarem, segundo Rufino. Mas, nos últimos cinco anos, o período de seca aumentou gradativamente. E, neste ano, se estendeu por meses além do normal. Normalmente com alguns metros de profundidade, o rio agora é pouco mais que um fio d'água. O nível baixo representa uma ameaça à sobrevivência de cerca de 30 milhões de pessoas que moram na Bacia Amazônica, incluindo o povo Ticuna, natural da região, ao qual pertence Orlando Rufino. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O diretor da ONG colombiana Fundação para a Conservação e Desenvolvimento Sustentável, Rodrigo Botero, afirma que as mudanças climáticas são a causa do aumento da frequência das secas. "E quem sofre são as pessoas com menos recursos", segundo ele. Botero é um cientista que trabalha em toda a região amazônica colombiana e vem documentando a destruição ao longo das últimas décadas. Chamadas de "pulmão do mundo", as florestas tropicais da Bacia Amazônica ocupam 6,9 milhões de quilômetros quadrados — mais de duas vezes a superfície da Índia — e vêm enfrentando desmatamento desenfreado, o que alimenta as mudanças climáticas. Desde 1978, cerca de 15% da floresta amazônica foram destruídos no Brasil, Bolívia, Colômbia, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela, segundo dados coletados pela Mongabay — plataforma jornalística sem fins lucrativos, especializada em conservação ambiental. "Entre o desmatamento e estas secas imensas... as comunidades locais enfrentam novos problemas todos os dias", alerta Botero. Deisi Sánchez Parente Bóatakü é uma das pessoas afetadas pela queda nos níveis dos rios. Ela tem 33 anos e mora em San Pedro de los Lagos, no meio da região amazônica colombiana, perto da fronteira com o Brasil e o Peru. Normalmente, ela manda os filhos para a escola de barco. Mas, com os níveis do rio baixos demais para a navegação, sua viagem de meia hora agora é uma caminhada de duas horas a pé pela densa floresta. Todos os dias, ela acorda os filhos às 3h30 da manhã para que cheguem a tempo à escola. "Às vezes, eles me dizem: 'Mamãe, não quero ir para a aula, é muito longe'", ela conta. Para Rufino, que é pescador e agricultor, a seca significa que metade do seu trabalho desapareceu. Os peixes se mudaram para águas mais profundas, e a comunidade luta para regar suas plantações, segundo ele. E, mesmo quando ele e seus colegas agricultores conseguem cultivar alguma coisa, eles não conseguem levar para o mercado sem barcos. "Você perde dinheiro, porque não há como vender nada. Não existe transporte", relata. Botero afirma que, em situações extremas, ele já viu animais morrerem por falta de água. Os animais silvestres, que as comunidades normalmente caçam para ter alimento, migram para locais onde existe água em maior quantidade. Ele alerta que a escassez de alimentos poderá aumentar ainda mais para populações que já enfrentam taxas de desnutrição desproporcionalmente altas. As comunidades nativas vêm advertindo repetidamente sobre os efeitos que a seca poderá ter em cerca de 350 grupos étnicos diferentes na região. "Não queremos mais discursos. Estamos enfrentando um ponto sem retorno na Amazônia", afirmou recentemente em entrevista coletiva o chefe da Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica, José Gregorio Díaz, enquanto os líderes da Organização das Nações Unidas (ONU) se reuniam para discutir a questão. E, para piorar a situação, grandes áreas da região amazônica colombiana foram devastadas por incêndios florestais desde o início do ano. Embora os dados sobre os incêndios ainda não estejam disponíveis, o Ministério do Meio Ambiente da Colômbia publicou uma nota em janeiro afirmando que, aparentemente, foram os piores incêndios na região em uma década. "O que está acontecendo é inédito", segundo Botero. "É um dos maiores incêndios que vi nos últimos 10 anos. De fato, é uma situação apocalíptica." O medo é que, a longo prazo, os incêndios possam contribuir com as mudanças climáticas, colocando a região em um círculo vicioso de queimadas e secas. De volta à sua pequena comunidade, Sánchez Parente dá de comer ao seu bebê na sua pequena casa de tijolos sem reboco. Ela conta que está preocupada com o futuro que vai deixar para os filhos. "Isso nunca havia acontecido", afirma ela. "São coisas que deixam você triste, porque tudo mudou muito."
2022-03-20
https://www.bbc.com/portuguese/geral-60751063
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Riqueza extrema: no Chile, os ultrarricos têm o maior patrimônio da América Latina
O Chile foi o país da América Latina que concentrou o maior nível de patrimônio entre seus ultrarricos em 2021, em relação ao tamanho de sua economia. O patrimônio conjunto dos chilenos mais ricos foi equivalente a 16,1% do PIB (Produto Interno Bruto) do país, segundo calculou a Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), utilizando dados publicados da revista Forbes. Esses cálculos só consideram os chamados "bilionários", ou seja, aqueles que possuem um patrimônio de ao menos US$ 1 bilhão. Em todo o mundo, existem 2.755 pessoas que pertencem a essa categoria, numa lista liderada por Jeff Bezos (fundador da Amazon, com US$ 177 bilhões), seguido de Elon Musk (CEO da Tesla) e Bernard Arnault (CEO da LVMH, empresa de artigos de luxo que inclui a marca Louis Vuitton). Já a América Latina tem 104 ultrarricos, dos quais nove chilenos, segundo a revista americana Forbes. São eles: Fim do Matérias recomendadas (*Vive e trabalha em Hong Kong desde 1989). Segundo a lista da Forbes dos bilionários do Chile, suas fortunas estão concentradas principalmente nos setores de finanças, mineração, florestal e varejo. A concentração do patrimônio nessas famílias é um reflexo da desigualdade existente na sociedade chilena. Segundo o relatório World Inequality Report (Relatório da Desigualdade Mundial) de 2022, a parcela de 1% mais rica do Chile concentra 49,6% de toda a riqueza do país, enquanto no Brasil o 1% mais rico detém 48,9%, no México 46,9%, e nos Estados Unidos 34,9%. Os historiadores geralmente associam a origem do abismo social chileno aos tempos da colonização espanhola, em que a maior parte das terras foi repartida entre espanhóis e seus descendentes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Nessa época surgiu a grande fazenda, que baseou a estrutura da sociedade, dividida entre patrões, empregados, inquilinos e trabalhadores braçais. A partir dessa desigualdade agrária, a concentração da riqueza foi se expandindo a outros setores econômicos de exploração de recursos naturais, como, por exemplo, a mineração, que transformou o Chile no maior exportador de cobre do mundo. Na história mais recente, o abismo social expandiu-se nas décadas de 1970 e 1980, durante o regime do general Augusto Pinochet (1915-2006), com a criação de um modelo econômico de pouca regulação que permitiu o surgimento de grandes fortunas familiares. Segundo escreveu o economista Osvaldo Larrañaga, no livro La Desigualdad a lo Largo de la Historia de Chile (A Desigualdade ao Longo da História do Chile), o abismo aumentou com Pinochet por meio de mecanismos como "a privatização das empresas públicas, que passam a ser propriedade de um número pequeno de grupos econômicos, a supressão e repressão dos sindicatos e a conversão do Estado benfeitor em um de caráter residual", entre outras medidas. Algo semelhante aconteceu durante a ditadura militar brasileira, por exemplo. Estudos indicam que a desigualdade social costuma se acentuar durante regimes não democráticos. No grupo dos ultrarricos do Chile atual, o caso de Julio Ponce Lerou é emblemático. Ex-genro de Pinochet, ele se converteu no maior acionista da empresa SQM (Soquimich), uma das maiores produtoras de fertilizantes, iodo e lítio do mundo, após sua privatização. Com a volta da democracia ao país, em 1990, a pobreza e a desigualdade de renda diminuíram, mas a riqueza permaneceu concentrada na ponta da pirâmide — uma das principais razões dos protestos iniciados no país em outubro de 2019. Dessa forma, o tema da desigualdade social converteu-se em uma parte fundamental do debate da campanha eleitoral das eleições presidenciais de 2021, vencidas pelo esquerdista Gabriel Boric, de 35 anos. Na última sexta-feira (11/3), Boric tomou posse como novo presidente do Chile. Ele pretende pôr em prática um ambicioso programa de governo que inclui medidas como eliminar o atual sistema previdenciário, transformar o sistema de saúde e aumentar impostos, criando um Estado de bem-estar social. Essa pauta "transformadora", que exigirá uma maior arrecadação fiscal, enfrentará uma série de obstáculos como, por exemplo, a falta de maioria no Congresso, um orçamento limitado e um crescimento econômico baixo, segundo as projeções para 2022. Para financiar seus planos, Boric propôs uma reforma tributária "com gradualidade e responsabilidade fiscal", que pretende arrecadar 5% do PIB durante seu mandato. A reforma considera mudanças no imposto de renda para as grandes empresas, redução de isenções, impostos verdes (a favor do meio ambiente), cobrança de royalties das grandes mineradoras, medidas contra a evasão e a elusão fiscais e um imposto sobre a riqueza. Este último, conhecido como o "imposto dos super-ricos", incidiria sobre cerca de 0,1% da população chilena. A proposta de reforma tributária foi alvo de duras críticas. Aqueles que se opõem à ideia dizem que, em outras partes do mundo, ela não serviu para arrecadar quantidades significativas de recursos. "O caso mais famoso é o da França, onde os milionários foram viver na Bélgica. Depois foi eliminado, porque acabou sendo inútil", diz o economista Bernardo Fontaine à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC. Em muitos dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômicos (OCDE), a proposta "foi retirada", acrescenta o especialista. Outro dos argumentos mais citados contra a iniciativa é o que ela desincentivará o investimento e, com isso, prejudicará o crescimento econômico. Na maioria dos países, são taxados os rendimentos de cada pessoa, não sua riqueza. Esta última inclui, além dos rendimentos, os ativos financeiros, propriedades, terras, iates ou qualquer ative que faça parte do patrimônio. "Em países como Chile, Brasil e México, temos visto que a desigualdade de renda vinda do trabalho tem sido reduzida, mas se agregarmos as rendas do capital, a desigualdade mantém-se mais constante", explica Ignacio Flores, coordenador para a América Latina do World Inequality Database (Banco de Dados da Desigualdade no Mundo) da Escola de Economia de Paris, na França, e pesquisador da Universidade de Nova York, nos Estados Unidos. Nos mercados financeiros, "quanto mais dinheiro se tem, mais rápido ele se reproduz", fenômeno que torna muito difícil o movimento das pessoas na direção do topo da pirâmide. "No Chile, a mobilidade social é baixíssima", afirma Flores, especialmente para se chegar ao grupo de 10% mais ricos. No Chile e na América Latina há níveis mais altos de concentração de riqueza porque em alguns setores há muito poucas empresas, diz Luis Felipe López-Calva, diretor regional para América Latian e Caribe do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). "A riqueza nos preocupa quando vem da falta de competição, não quando é riqueza produtiva que gera bem-estar para um país", acrescenta ele, em conversa com a BBC News Mundo. Antes da discussão que se avizinha no Chile, sobre como aplicar um imposto sobre a riqueza, os especialistas têm debatido qual a melhor maneira de taxar esses recursos. Alguns afirmam que o mais eficaz é criar um imposto sobre as propriedades, dado que é muito complexo identificar onde estão os fundos investidos nos mercados financeiros internacionais. Outros consideram factível introduzir um tributo que também inclua os fluxos de capital. "Grande parte da riqueza é financeira", diz à BBC News Mundo Pablo Gutiérrez, pesquisador da Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá. Diante do argumento de que um imposto sobre a riqueza provocaria uma saída de capitais na direção de outros países, onde os investidores possam obter rentabilidades melhores, o economista afirma que as pessoas com alto patrimônio preferem um país estável, em vez de se arriscar a buscar retorno em nações com vantagens tributárias, mas baixa classificação em avaliações de risco. "Com um imposto sobre a riqueza, você está controlando um pouco o descontentamento social", argumenta Gutiérrez. "Ainda que seja verdade que os empresários terão um retorno menor, a médio prazo haverá uma maior estabilidade social, e seus negócios poderão crescer." "Ninguém gosta de cobrança de impostos. Ninguém. Mas, se é feito de uma forma gradual e com consenso, assegurando uma maior estabilidade social, eles não vão sair do país."
2022-03-12
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60482908
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Por que invasão da Ucrânia está reaproximando os EUA da Venezuela
As reverberações políticas da guerra na Ucrânia não se limitam à Europa ou às grandes potências e alianças, como Otan, China e União Europeia. Duas semanas após a invasão do território ucraniano por tropas russas, o conflito já tem impacto sobre um dos principais embates das Américas: entre Estados Unidos e Venezuela. Diante do abalo da guerra sobre as relações econômicas entre Moscou e o Ocidente, o governo americano passou a sinalizar a Caracas sua disposição de estreitar relações e, com isso, usar o petróleo venezuelano como substituto às importações do produto da Rússia. Mas será possível superar rapidamente os anos de tensão e desconfiança entre os dois países? E será que a guerra na Ucrânia é o único motivo por trás dessa reaproximação? Na terça-feira (08/03) um executivo da Citgo, a subsidiária americana da petroleira estatal venezuelana PDVSA (Petróleos de Venezuela), e um turista cubano-americano foram libertados pelas autoridades venezuelanas. O executivo Gustavo Cárdenas estava preso desde 2017, enquanto Jorge Alberto Fernández fora detido em 2021, ao desembarcar no país de posse de um drone. Eles haviam sido condenados por corrupção e terrorismo, respectivamente. O gesto ocorreu poucos dias depois que uma delegação de altos representantes dos Estados Unidos reuniu-se com o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, em Caracas - o primeiro encontrou dessa natureza desde que os dois países romperam relações em 2019. Também na terça-feira, o presidente americano, Joe Biden, anunciou um boicote americano às importações de petróleo e gás da Rússia. Se a causa imediata dessa aproximação parece diretamente ligada ao conflito na Ucrânia e o abalo que ele causou no mercado internacional de energia, ao menos em parte as novas negociações têm relação com outro acontecimento recente de grande impacto: a mudança de comando em Washington. Fim do Matérias recomendadas A chegada do democrata Joe Biden à Casa Branca, em substituição ao republicano Donald Trump, sinalizou mudanças diversas no comportamento do governo dos Estados Unidos em suas relações com o resto do mundo. Do compromisso com os acordos de Paris para combater o aquecimento global à reaproximação com seus aliados europeus, a Casa Branca mudou significativamente o tom adotado anteriormente por Trump. O governo de Nicolás Maduro viu na mudança uma oportunidade. Os momentos de maior tensão entre Washington e Caracas foram vividos no início de 2019, quando Donald Trump não apenas reconheceu o oposicionista Juan Guaidó como o legítimo presidente venezuelano como também conclamou as Forças Armadas do país sul-americano a depor Maduro - e pareceu sugerir a possibilidade de intervenção armada. "Buscamos uma transição de poder pacífica, mas todas as opções estão abertas", afirmou Trump na época. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A transição não ocorreu, Maduro continuou no Palácio de Miraflores, sede do governo em Caracas, e quem perdeu o emprego foi Trump. Maduro, no entanto, seguiu presidindo um país em grave crise econômica, com uma taxa de inflação de 2.958,8% em 2020. Segundo a agência da ONU para refugiados, Acnur, o número de venezuelanos buscando o status de refugiados em outros países, após escapar da violência e da pobreza na Venezuela, aumentou 8.000% desde 2014, chegando a 4 milhões. Diante de um novo presidente americano, Maduro passou a tentar retomar os laços diplomáticos com Washington, passo fundamental para reduzir a gravidade da crise na Venezuela. Em maio de 2021, apenas quatro meses após a posse de Joe Biden, o líder venezuelano já enviava sinais à Casa Branca de que buscava uma melhora nas relações - e o alívio das sanções econômicas americanas. Na época o governo em Caracas transferiu seis executivos da Citgo detidos, incluindo Gustavo Cárdenas, para prisão domiciliar, o que foi apresentado como um gesto de boa vontade para atrair os americanos à mesa de negociações. Washington, no entanto, indicou que não aceitaria nenhum diálogo sem antes haver algum passo na direção de eleições livres na Venezuela. Segundo noticiou na época a agência Reuters, um oficial do governo Biden disse: "Responderemos com base em ações concretas". Um mês depois, em entrevista à agência Bloomberg, Nicolás Maduro voltou a fazer um apelo pela normalização de relações entre Venezuela e Estados Unidos, pedindo o fim das sanções e do que chamou de "demonização" de seu país. O governo americano, ainda segundo a Bloomberg, respondeu que qualquer mudança em sua política em relação a Caracas exigia que Maduro dialogasse com a oposição para resolver a divisão política no país. Os EUA de Biden reafirmavam continuar reconhecendo o oposicionista Guaidó como presidente interino da Venezuela. Um ano depois, com a inflação venezuelana desacelerando, mas ainda tendo fechado 2021 com a taxa anual de 686,4%, a guerra na Ucrânia parece ter mudado os cálculos de Washington sobre a Venezuela. O recente encontro realizado entre representantes americanos e Nicolás Maduro foi descrito de forma positiva pelos dois lados. Segundo a Casa Branca, foram discutidos "temas energéticos" no contexto da invasão da Ucrânia por tropas de Vladimir Putin. Já Maduro chamou a reunião de "respeitosa, cordial e muito diplomática". "Concordamos em trabalhar em uma pauta a partir do respeito e da esperança do mundo, para assim poder avançar uma pauta que permita o bem-estar e a paz dos povos da região", afirmou o líder venezuelano. Maduro afirmou que as negociações continuariam. O encontro causou surpresa e mal-estar entre os apoiadores de Juan Guaidó. Após a conversa com Maduro, porém, a delegação americana também reuniu-se com Guaidó e outros representantes da oposição venezuelana. O líder oposicionista não fez comentários diretos sobre a aproximação entre Washington e Maduro, mas se referiu a sua reunião como "trabalho de coordenação com o governo dos EUA, atendendo a razões de interesse e segurança nacional do nosso aliado". Entretanto, o embaixador de Guaidó nos EUA, Carlos Vecchio, publicou uma série de mensagens na rede social Twitter criticando qualquer possibilidade de negociação com o governo de Maduro na área de energia. "Comprar petróleo de Maduro ou de Putin dá no mesmo. São petróleos de sangue", disse Vecchio. Desde abril de 2019, os EUA não permitem que Caracas negocie seu petróleo no mercado americano, um comércio que representava 96% do faturamento externo da Venezuela. No entanto, quando Washignton e seus aliados ocidentais começaram a impor sanções econômicas à Rússia, vários influentes integrantes dos dois grandes partidos políticos dos EUA apontaram a Venezuela como um potencial substituto para suprir a escassez gerada com as medidas. Atualmente a Venezuela produz cerca de 800 mil barris de petróleo por dia, apenas uma fração dos 3 milhões de barris que produziu diariamente durante anos, antes de sua recente crise. Na terça-feira, dia 8, o chefe da Câmara Petroleira da Venezuela, Reinaldo Quintero, disse à BBC que seu país poderia elevar a produção de petróleo em 400 mil barris por dia para ajudar a substituir o petróleo russo. Quintero afirmou que o país sul-americano conta com a infraestrutura para aumentar sua produção diária para 1,2 milhão de barris. "Isso nos permitirá satisfazer algumas das necessidades no mercado americano." Ele disse não esperar que as sanções sejam eliminadas, mas acredita que Biden provavelmente emita licenças que permitam que empresas estrangeiras operem na Venezuela sem que sofram punições. Ainda segundo ele, isso permitiria a entrada de necessário investimento do exterior, além de aliviar a escassez de trabalhadores habilitados. Mesmo que a suspensão das sanções americanas e o restabelecimento de contatos diplomáticas ainda estejam distantes, a mudança de governo em Washington e a guerra na Ucrânia criaram condições para que um novo capítulo seja iniciado nas relações entre Estados Unidos e Venezuela. É mais um exemplo das muitas - e ainda desconhecidas - consequências dos desdobramentos recentes na política internacional.
2022-03-09
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60679256
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Aborto na Colômbia: a 'onda verde' que está descriminalizando interrupção da gravidez na América Latina
A Colômbia se tornou o sexto país da América Latina e do Caribe onde o aborto não é mais considerado crime. Na última década, as ativistas da Onda Verde impulsionaram mudanças históricas em uma região que tem algumas das leis mais restritivas do mundo sobre o procedimento e onde a Igreja Católica, com sua postura antiaborto, é extremamente influente. Além da Colômbia, os países que descriminalizaram ou legalizaram o aborto até certo ponto são Argentina, Cuba, Guiana, México e Uruguai. Em 2006, o aborto foi parcialmente legalizado na Colômbia para casos de estupro ou incesto, malformação genética grave do feto ou risco à vida da mãe. Fim do Matérias recomendadas Em todos os outros casos, o procedimento era punido com até quatro anos e meio de prisão. No ano passado, porém, a Causa Justa — uma coalização de mais de 90 organizações — entrou com uma ação questionando a legalidade das restrições. Entre seus argumentos, está o de que a criminalização alimenta a indústria clandestina do aborto. De acordo estimativas dos Médicos Sem Fronteiras, apenas 10% dos abortos na Colômbia são realizados com segurança. Números oficiais mostram que os abortos ilegais causam cerca de 70 mortes por ano no país. Em um comunicado, Catalina Martínez Coral, diretora regional da ONG Centro de Direitos Reprodutivos, comemorou o placar de cinco votos a quatro no tribunal acatando a ação da Causa Justa. "Isso eliminará os obstáculos e estigmas que impedem mulheres e meninas de acessar os cuidados de saúde reprodutiva de que necessitam e colocará fim à perseguição injusta de mulheres e meninas na Colômbia", disse Coral. O tribunal colombiano ordenou que o Congresso e o Executivo elaborem e implementem no "tempo mais curto possível" uma "política pública abrangente" regulamentando o aborto realizado até as 24 semanas de gestação. Não é por acaso que a Causa Justa adotou o verde como cor de sua campanha, espelhando o que em anos anteriores acontecia na Argentina. No início dos anos 2000, ativistas dos direitos das mulheres na Argentina iniciaram uma campanha pela legalização do aborto. A inspiração para chegar ao público veio da forma como as Avós da Praça de Maio protestavam. Este movimento, anteriormente chamado de Mães da Praça de Maio, conquistou fama internacional ao usar bandanas brancas em protestos rotineiros denunciando o assassinato de ativistas políticos e o sequestro de seus filhos durante o regime militar na Argentina (1976-1983). As ativistas pró-aborto mantiveram os lenços, mas mudaram a cor. Em uma entrevista de 2018 ao jornal argentino La Nación, a antropóloga e ativista Miranda Gonzalez Martin disse que o verde era "a única opção disponível" no espectro de cores, já que outras eram historicamente associadas a partidos políticos e outros movimentos. "O roxo é a cor do feminismo, e o laranja é usado pela Igreja (Católica)", disse ela. "As bandanas têm um significado enorme para as mulheres na Argentina e também são um símbolo muito visível." O movimento na Argentina decolou quase quatro décadas depois que Cuba se tornou o primeiro país da América Latina e Caribe a legalizar o aborto para todas as mulheres. O primeiro grande sucesso do movimento foi em 2012, quando o Uruguai legalizou o aborto para todas as mulheres, permitindo interrupções por até 12 semanas de gravidez. Vários Estados do México adotaram uma postura semelhante desde 2007 e, em setembro do ano passado, a Suprema Corte do país decidiu que o aborto não é mais crime nacionalmente. A vez da Argentina chegou em dezembro de 2020, quando o Congresso legalizou o aborto até a 14ª semana de gravidez. Enquanto isso, o Centro de Direitos Reprodutivos estima que 97% das mulheres latino-americanas em idade reprodutiva ainda vivem em países com leis restritivas ao aborto. A lista inclui o Brasil, o país mais populoso da região e que permite o aborto, segundo a lei, apenas em casos de estupro e risco à vida da gestante. Em 2012, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) também descriminalizou o aborto em gestações de fetos anencéfalos.
2022-03-06
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60501587
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As reações e preocupação dos países da América Latina sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia
O ataque militar da Rússia contra a Ucrânia nesta quinta-feira gerou reações quase imediatas de governos da América Latina. A defesa da paz e do diálogo marcou o teor das declarações públicas e dos comunicados oficiais do Chile, da Argentina, do Peru, do Equador e do México, por exemplo. Autoridades de Cuba, por sua vez, aliada de Vladimir Putin na região, disseram que a Rússia "tem o direito a se defender", como afirmou o presidente da Assembleia Nacional Cubana, Esteban Lazo, de acordo com tuíte da Assembleia Federal russa (Duma), informaram as agências internacionais de notícias. O pedido pelo entendimento e pela pacificação levou o presidente mexicano Andrés López Obrador a afirmar que seu país "não está a favor de nenhuma guerra". O líder peruano Pedro Castillo fez um apelo para que exista acordo diplomático e "não se invistam em balas e munições". Fim do Matérias recomendadas A Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, a ex-presidente chilena Michelle Bachelet, pediu, em comunicado, um cessar-fogo e disse que "a proteção da população civil deve ser prioritária". As reações ocorrem em meio a preocupações sobre os impactos políticos e econômicos que a guerra terá sobre o continente. A América Latina reúne países que estão na lista dos grandes produtores de petróleo - Venezuela, México, Brasil, Colômbia e Equador - e de trigo - Argentina. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Como a Rússia e a Ucrânia são produtoras de petróleo e de trigo, a alta nos preços destes produtos já é um dos efeitos imediatos no cenário global. Para especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, estes são alguns dos efeitos imediatos entre outras ramificações para o continente. O professor peruano Carlos Aquino, diretor do Departamento Ásia-Pacífico da Universidade de San Marcos, de Lima, disse que a alta do dólar e das commodities, como petróleo, trigo, soja e cobre, é o efeito imediato da guerra de Putin contra a Ucrânia. E que este turbilhão, que incluiu a forte queda nas bolsas nesta quinta-feira, tenderá a pressionar ainda mais a inflação, num momento em que a alta de preços - principalmente de combustíveis e alimentos - passou a ser observada em vários países durante a pandemia de coronavírus. Para Aquino, a alta do petróleo poderia beneficiar os países produtores da América Latina, mas esta é uma conta que poderia ter "soma zero", disse, já que mesmo aqueles que exportam o produto devem importar o trigo, por exemplo. Na sua visão, o impacto do conflito russo-ucraniano "não será igual para todos na América Latina". Mas o cenário geral de incertezas pode agravar os já altos índices de pobreza no continente. "Como se costuma dizer, o capital é medroso. Esta guerra gera incertezas para o mundo. E quando existem incertezas, os investidores tiram o dinheiro dos países emergentes e buscam refúgio nos lugares mais seguros, principalmente os Estados Unidos", disse Aquino. De Quito, no Equador, o professor Simón Pachano, da Faculdade de Ciências Sociais da América Latina (FLACSO), disse que a região pode ter problemas "por vários motivos" com a guerra recém-iniciada. A Rússia é, por exemplo, um dos principais compradores de produtos equatorianos, como bananas e flores, e o conflito pode influenciar o fluxo do comércio internacional. "A instabilidade nos mercados mundiais afeta tanto os mercados de produtos como o setor financeiro. Os créditos que países da região precisam passaram a ser mais caros (pelo aumento das taxas de juros)", observou Pachano. Na sua visão, até por interesses próprios, alguns países, como o Equador, fizeram declarações pedindo o diálogo, mas, de forma cautelosa. Os líderes dos países da América Latina destacaram, principalmente, uma saída pacífica e os princípios das Nações Unidas. Argentina: "A Argentina rejeita firmemente o uso da força armada e lamenta profundamente a escalada da situação. Não vamos apoiar nenhuma guerra, iniciada por nenhum país e em qualquer parte do mundo. As soluções justas e duradouras só são alcançadas através do diálogo. Reiteramos nosso apego a todos os princípios das Nações Unidas, sem ambiguidades e respeitando o direito de soberania dos Estados. Essa situação não afeta a relação da Argentina com a Rússia, mas ao mundo em seu conjunto", disse a porta-voz da Presidência, Gabriela Cerruti. Chile: "O Chile pede à Rússia que respeite a Convenção de Genebra sobre o direito internacional humanitário. Colaboremos com outros países para buscar uma solução pacífica do conflito, dentro do marco do direito internacional. O Chile condena a agressão armada da Rússia e sua violação à soberania e integridade territorial da Ucrânia. Estes atos atentam contra a vida de inocentes e a segurança internacional", afirmou o presidente chileno Sebastián Piñera. Uruguai: "Rejeitamos as ações contrárias ao direito internacional e aos princípios da ONU. Que as negociações sejam retomadas e o conflito resolvido através da diplomacia", disse o presidente Luis Lacalle Pou. Peru: "Os povos do mundo inteiro devem se unir. Que os conflitos sejam resolvidos no âmbito da diplomacia. Que não se invistam em balas, que não se invistam em munições. Que o investimento seja no diálogo para atacar os inimigos que temos em comum em todo o mundo: a pobreza, a desigualdade e as doenças", disse o presidente Pedro Castillo. Equador: "O Equador condena a decisão da Rússia de lançar uma operação militar e a violação à soberania e à integridade territorial da Ucrânia. A agressão armada vulnera os princípios da Carta das Nações Unidas e, principalmente, a solução pacífica das controvérsias. A vida de inocentes está em jogo", escreveu o presidente Guillermo Lasso. México: "Vamos continuar promovendo a defesa do diálogo, que não se utilize a força. Não estamos a favor de nenhuma guerra. O México sempre se manifestou a favor da paz, da solução pacífica diante dos conflitos e isto está na nossa constituição", disse o presidente Andrés López Obrador.
2022-02-24
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60518238
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Corte colombiana descriminaliza aborto até 24ª semana de gestação
A Colômbia descriminalizou nesta segunda-feira (21/2) o aborto feito até as 24 semanas de gestação, uma decisão que vinha sendo adiada há meses devido a vários obstáculos. O Tribunal Constitucional do país aprovou a mudança por cinco votos a quatro, em resposta a uma ação apresentada em 2020 pelo movimento Causa Justa, uma coalização de 90 organizações. Antes, o aborto era punível com até quatro anos e meio de prisão no país, embora desde 2006 a interrupção voluntária da gravidez fosse permitida por três causas: estupro, malformação do feto ou risco à saúde da mãe, sem limite de tempo. As regras pra esses três casos não mudarão com a decisão desta segunda-feira. O tribunal ordenou que o Congresso e o poder executivo elaborem e implementem no "tempo mais curto possível" uma "política pública abrangente" regulamentando o aborto realizado até as 24 semanas de gestação. Correspondente da BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) na Colômbia, Daniel Pardo explica que a vitória do movimento Causa Justa é resultado de uma estratégia de questionar na Justiça a criminalização do aborto, em vez de estimular a criação de um conjunto de leis que teria que passar pelo Congresso. Fim do Matérias recomendadas "Isso permitiu, em primeiro lugar, que a discussão se concentrasse na proteção dos direitos das mulheres, que muitas vezes são processadas ou sofrem complicações médicas em clínicas clandestinas", escreveu Pardo. "Em segundo lugar, isso também trouxe como benefício o fato de que o debate ocorreu na sociedade civil, onde a maioria aprova o aborto livre segundo pesquisas, e não no Congresso, onde a influência de setores conservadores é profunda e tradicional." O jornalista acrescenta que a corte colombiana tem uma "longa história de proteção aos direitos sociais e democráticos". "(O Tribunal Constitucional) impediu a reeleição ilimitada, aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo e estabeleceu diretrizes específicas para garantir os direitos das mulheres à saúde, educação e política em um país onde não havia lei de cotas até poucos anos atrás", explica Pardo.
2022-02-21
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60473376
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Por que Putin está se aproximando da América Latina
Nos últimos dias, a turbulenta relação entre Rússia e Estados Unidos envolveu um terceiro ator: a América Latina. A aproximação entre o presidente russo, Vladimir Putin, e a região ficou clara neste mês de fevereiro com a visita a Moscou dos presidentes do Brasil, Jair Bolsonaro, e da Argentina, Alberto Fernández. Enquanto Bolsonaro definiu a relação do Brasil com a Rússia como "mais que um casamento perfeito", Fernández disse a Putin que a Argentina "deve ser a porta de entrada da Rússia na América Latina". Políticos com perfis diferentes, Bolsonaro e Fernández sinalizaram que o "sentimento" é correspondido. "É mais que um casamento perfeito que eu levo para o Brasil. E senti também, pela fisionomia, pelo que foi tratado até fora da agenda oficial, com autoridades russas, em especial com o presidente Putin, que é esse o sentimento que ele tem também", disse Bolsonaro. Fim do Matérias recomendadas Até recentemente, a relação do Kremlin com a América Latina estava centrada em países liderados por políticos rejeitados pela Casa Branca: Venezuela, Nicarágua e Cuba, além de uma aproximação crescente com a Bolívia. Nesta semana, em meio à tensão entre a Rússia e a Ucrânia, que é acompanhada mundialmente e especialmente pelos Estados Unidos, o vice-primeiro-ministro da Rússia, Yuri Borisov, visitou Cuba e a Venezuela. Putin ligou pessoalmente para os colegas cubano, venezuelano e nicaraguense — com este último, não falava por telefone desde 2014. O presidente Nicolás Maduro ratificou que o sentimento é correspondido. "A Rússia conta com todo o apoio da Venezuela para dissipar as ameaças da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte, aliança militar ocidental) e de todos esses países para que siga sendo um território de paz", disse. A relação dos russos com os venezuelanos envolve o petróleo e a mineração venezuelana, além da venda de armas russas para a Venezuela. A estatal PDVSA, que é um pilar fundamental para os planos políticos venezuelanos, mudou, recentemente, sua sede de Lisboa para Moscou, como informaram as agências internacionais de notícias. No caso dos cubanos, que foram tão dependentes dos recursos da ex-União Soviética e sentem até hoje a falta daquele respaldo financeiro, a aproximação tem várias motivações. Segundo o jornal oficial Granma, Cuba e Rússia mantêm "diálogo político no mais alto nível", através de "um fluido intercâmbio de visitas", com aprofundamento dessa relação durante a pandemia. Como ocorreu com Argentina, Bolívia e Paraguai, o governo Putin enviou carregamentos da vacina Sputnik V para Cuba — o imunizante foi o primeiro a chegar nestes países. Ainda segundo a publicação, há uma embarcação prestes a zarpar para a ilha com carregamento de trigo dos russos para os cubanos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O leque de relações dos russos com países na região tem aumentado e poderia crescer ainda mais com a chegada de novos políticos ao poder, segundo analistas da Rússia e latino-americanos ouvidos pela BBC News Brasil. No dia 11 de março, o presidente eleito do Chile, Gabriel Boric — um político de esquerda, será empossado. Em maio há eleições presidenciais da Colômbia — vista como o "principal aliado" dos Estados Unidos, seja pela já tradicional aliança para o combate às drogas ou por ser vizinha da Venezuela — e em outubro, no Brasil. De Cali, na Colômbia, o russo Vladimir Rouvinski, professor de Relações Internacionais e Ciências Políticas da Universidade Icesi e especialista na relação entre a Rússia e a América Latina, contextualiza a relação atual de Putin com líderes latino-americanos. "A Rússia busca uma reciprocidade simbólica com líderes da América Latina, mirando principalmente os Estados Unidos. Putin está querendo dizer aos americanos: 'Olha, não estou sozinho, e não se metam com a Ucrânia, com nosso território'. Putin quer mostrar que não está isolado", diz Rouvinski, que nasceu na Sibéria, estudou no Japão e mora na Colômbia desde o fim dos anos 90. O especialista observa que Putin tem sua forma particular de fazer política internacional. "Putin constrói relação a partir da confiança pessoal. E ele tem isso com Maduro e com Ortega. Mas ainda não conseguiu isso com o governo atual de Cuba. A Rússia é hoje um país capitalista e Cuba continua dizendo que é um país socialista. E como Cuba precisa de dinheiro, acredito que, se tiver que fazer uma opção futura, será pelos Estados Unidos, que têm mais recursos", acrescenta. Foi essa relação "de confiança pessoal" que levou, por exemplo, os presidentes da Argentina e da Bolívia, Luis Arce, a telefonarem para Putin quando o envio das doses da Sputnik estava atrasado. "A Bolívia tem um governo amigo na Rússia desde o início da pandemia. Em janeiro de 2021, chegou aqui um carregamento simbólico de 25 vacinas e depois vários carregamentos. Mas quando houve atraso, devido à demanda e a capacidade de produção (dos russos), Arce ligou para Putin e os envios foram acelerados", diz o porta-voz do presidente boliviano Jorge Richter, falando de La Paz. Para ele, foi com o foco no "anti-imperialismo" americano que a relação entre a Bolívia e a Rússia passou a ser construída, durante o governo do ex-presidente Evo Morales (2006-2019), já que, segundo ele, os dois países não eram "muito próximos ou complementares". No caso de Alberto Fernández, que abriu as portas da América Latina para a Sputnik V, entre os telefonemas com Putin destacou-se a ligação do russo para saber de seu estado de saúde depois que o argentino contraiu o vírus, quando já tinha as duas doses do imunizante. Fernández atribuiu os "efeitos leves do coronavírus" à vacina enviada por Putin. E disse a Putin: "Vocês estiveram presentes (com as vacinas) quando o mundo não esteve". Mas, sendo o Brasil o maior país da América Latina, em termos populacionais e econômicos, a visita de Bolsonaro ao Kremlin foi acompanhada ainda com maior atenção por parte dos estudiosos e políticos. Para Rouvinski, a relação do Brasil com a Rússia de Putin "é totalmente diferente" da que é estabelecida com os demais países da região. "O Brasil é uma potência global, um ator decisivo para a economia internacional. Faz parte dos BRICS e integra o Conselho de Segurança das Nações Unidas (uma cadeira não permanente e por dois anos, a partir de janeiro deste ano)", diz o professor. Ele lembrou que a Rússia é um importante fornecedor de fertilizantes para o Brasil, mas que os dois países disputam internacionalmente o comércio de aviões. No caso do Brasil, através da Embraer, que em si é uma potência no ramo. O especialista mencionou ainda que o Brasil é o principal parceiro comercial da Rússia na América Latina, mas que representa, porém, "uma porcentagem pequena do comércio global da Rússia". Sobre a visita de Bolsonaro a Putin, Rouvinski acredita que o presidente brasileiro buscou enviar uma mensagem aos Estados Unidos, diante de suas diferenças explícitas com o presidente Joe Biden, e ao seu próprio eleitorado. "Mas lendo o que o presidente brasileiro disse, achei que ele foi cuidadoso e pareceu não querer problemas com os Estados Unidos", acrescenta. Rouvinski entende que essa aproximação é "mais simbólica" do que efetiva no longo prazo. Os investimentos russos na região estão longe de se compararem com os dos Estados Unidos e da China na América Latina. "Quando a gente compara, os investimentos russos são de chorar. Mas a América Latina ainda costuma ser vista como o quintal dos Estados Unidos", destaca, sugerindo que a presença russa, mesmo que simbólica, incomoda a Casa Branca. Menos "simbólica" e, de certa forma, física é a presença russa na Venezuela, onde, afirmou Rouvinski, as armas das forças de segurança do país liderado por Maduro são russas. "Os russos sempre olham com muita esperança para o mercado de armas da América Latina, mas sabem que a competição é grande." Segundo agências internacionais de notícias, a Rússia vendeu armas e tanques para Cuba e Nicarágua e sistemas antimísseis para a Venezuela — e essa é a parte bélica e igualmente estratégica da relação dos russos com pelo menos parte do mapa da América Latina. Rouvinski lembra que, já em 2008, na guerra pela Geórgia, os russos já tinham começado a considerar a reciprocidade com a América Latina também como estratégia para se contrapor aos Estados Unidos. Mas por que Fernández, da Argentina, o chileno Boric e o colombiano Gustavo Petro, da frente de esquerda Pacto Histórico, que lidera as pesquisas de intenção de votos, e até o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva — pré-candidato às eleições presidenciais do Brasil deste ano, tão diferentes de Putin, poderiam também receber aceno de Moscou? Fernández, segundo analistas argentinos, busca reduzir a dependência dos Estados Unidos, do qual necessita por seu acordo bilionário com o Fundo Monetário Internacional (FMI). E os demais? "Apesar das distâncias ideológicas, o novo governo do Chile poderia estabelecer uma relação mais próxima com a Rússia, que há muito tempo tenta essa aproximação com nosso país. E Boric poderia ter essa maior aproximação, apesar do que pensem os Estados Unidos", diz Guillermo Holzmann, professor de ciências políticas da Universidade de Valparaiso. Na opinião de Rouvinski, governos como os de Petro e Lula, se eleitos, seriam "multipolares". "Um discurso multipolar que os russos também adoram", diz.
2022-02-19
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60440159
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Por que a América Latina se tornou novo 'lixão' dos EUA
Durante anos, no mundo da política, a América Latina foi considerada "o quintal dos Estados Unidos", sua "zona de influência". Agora, grupos ambientalistas da região dizem que se tornou outra coisa: seu lixão. Desde 2018, os níveis de exportação de resíduos plásticos dos Estados Unidos para a América Latina aumentaram consideravelmente, sendo 2021 o ano em que a maior quantidade de lixo foi exportada desde que se tem registros. Segundo dados da Last Beach Cleanup, organização ambientalista sediada na Califórnia, até outubro do ano passado, os EUA haviam enviado mais de 89.824.167 kg de resíduos plásticos para os países da região, alguns dos quais receberam o dobro do que em 2020. A situação levou a plataforma ambiental Gaia, que reúne 130 organizações da América Latina e do Caribe, a publicar um comunicado em dezembro passado exigindo que os governos da região atuem no que considera uma emergência. "Alertamos que estamos diante de um perigo iminente de contaminação da natureza e violação dos direitos das comunidades de viver em um ambiente seguro para sua saúde e a de seus territórios", diz o comunicado. Fim do Matérias recomendadas O principal destino das exportações de resíduos plásticos é o México, que de janeiro a outubro de 2021 recebeu cerca de 60.503.460 kg, o que equivale a cerca de 57 contêineres por dia. No entanto, toneladas de lixo também foram enviadas durante 2021 para Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Honduras, Guatemala, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana e até Venezuela. No Brasil, houve uma queda na quantidade de lixo enviada dos EUA, segundo o relatório da Last Beach Clean Up: foram 481 toneladas nos primeiros dez meses de 2021, contra 1,7 mil toneladas em todo o ano de 2000. "Os Estados Unidos estão inundando a América Latina com resíduos plásticos, principalmente da Califórnia ao México. Mas, embora a quantidade de lixo que é exportada para o México seja excessiva, a quantidade que é enviada para o resto da América Latina não é menor se compararmos o tamanho dos países e a quantidade de população", disse Jan Dell, engenheira ambiental e fundadora do Last Beach Cleanup à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC). "E não é apenas uma questão de tamanho ou população. É que esses países, na maioria dos casos, já têm problemas suficientes para lidar com seu próprio lixo e processá-lo para ter que lidar também com lixo plástico dos EUA", acrescenta. É o caso de países como Honduras, que teve conflitos ambientais com a Guatemala devido à questão do lixo e que até novembro de 2021 recebeu 6.127.221 kg de resíduos plásticos, mais que o dobro dos 2.250.593 kg recebidos em todo o ano de 2020. El Salvador, que tem poucos centros de processamento de lixo, recebeu cerca de 1.932.206 kg apenas em novembro de 2021. Para os ambientalistas, a grande questão é o que acontece ou para onde vai o lixo enviado para esses países. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast De acordo com María Fernanda Solís, especialista em questões ambientais da Universidade Andina Simón Bolívar, no Equador, embora as exportações de resíduos plásticos dos EUA para a América Latina venham acontecendo há anos, elas começaram a aumentar com o anúncio da China de que deixaria de receber esses resíduos. "Em 2018, a China decidiu deixar de ser o lixão do mundo, e foi aí que os EUA encontraram uma via de escape na América Latina", diz a especialista. "Com governos enfraquecidos e marcos regulatórios, normativos e jurídicos fracos como em nossos países, a região é um cenário perfeito para importações gigantescas de resíduos plásticos", diz. Segundo Dell, outros contextos específicos contribuíram para os recordes alcançados no último ano. "As exportações de resíduos plásticos dos EUA para a América Latina aumentaram fortemente em 2021 em comparação com 2020 e acho que isso se deve às restrições de importação mais rígidas que impuseram na Turquia e na Ásia, mas também pode ser devido à crise de contêineres, que aumentou significativamente o custo do envio de resíduos dos EUA para a Ásia", diz ela. A principal razão das exportações, segundo a especialista, é porque é mais fácil (e mais barato) para as empresas americanas enviar o lixo para outros países do que processá-lo e ter que lidar com as regulamentações ambientais americanas ou com os altos custos dos poucos centros de processamento nos EUA. "No fim das contas, é uma questão de dinheiro. É muito mais barato colocar resíduos plásticos em caminhões e enviá-los em um contêiner para o exterior do que ter que pagar para ir para um aterro sanitário. É mais fácil enviar nosso lixo para outro lugar e 'todos vivemos felizes para sempre'", diz ela. "Além disso, há também o fato de que produzir plástico hoje é muito mais barato do que reciclá-lo. Então, não é um negócio que traga benefícios para as empresas americanas, é mais barato mandar para outro lugar." Segundo Solís, esses contextos transformaram o lixo em um negócio para empresas não estatais em toda a América Latina. "Geralmente são empresas privadas que importam esses resíduos em convênio direto com empresas americanas ou municípios americanos", diz. "No caso do Equador, por exemplo, recebemos anualmente dos EUA a mesma quantidade de lixo que 40 de nossas cidades produziriam. Ou seja, 20 empresas no Equador importam dos EUA a mesma quantidade de lixo plástico que 40 cidades em nosso país produzem." No entanto, a prática é polêmica, já que grupos e especialistas ambientalistas denunciam que essas empresas se aproveitam de algumas brechas para importar lixo que não deveriam poder... pelo menos não legalmente. Muitas das nações latino-americanas que recebem esses resíduos são signatárias da Convenção de Basileia, que regulamenta a importação de resíduos plásticos. "No entanto, em nossos países existem mecanismos, brechas e buracos negros legais para permitir que esses resíduos continuem entrando, apesar de esses países serem signatários desses acordos internacionais e, portanto, a entrada desses resíduos constitui uma violação desses tratados internacionais", diz Solís. Segundo a acadêmica, a pesquisa realizada mostra que uma das formas como isso ocorre é que, geralmente, quando esse resíduo é importado, é feito com o rótulo "matéria-prima", o que, segundo ela, é uma forma para "disfarçar" o conteúdo. "Na maioria dos países, a alfândega mal verifica esses carregamentos de lixo, então é muito difícil regular o que entra", diz ele. Mas, para ela, há um aspecto ainda mais preocupante. "O que os estudos mostram é que, na realidade, mais de 50% do lixo plástico que chegam até nós não pode ser processado, porque está contaminado. Então, acaba sendo enterrado, abandonado em córregos, rios ou aterros", aponta. A especialista diz que várias investigações realizadas mostram que as autoridades não dão seguimento a estes resíduos depois de saírem dos portos, e que não existe um controle sobre o que acontece com este lixo, como ele é processado ou para onde vai parar. Os envolvidos no negócio do lixo na região alegam que o mercado de importação de resíduos plásticos é fonte de emprego para milhares de pessoas, além de contribuir para a "economia circular" e a reciclagem de matérias-primas. No entanto, os ambientalistas acreditam que, na prática, a realidade muitas vezes é bem diferente. Dell ressalta que, por não ser um processo fiscalizado pelas autoridades, há denúncias de que muitas dessas empresas não só pagam salários baixos ​​a seus trabalhadores, como também não lhes oferecem condições de trabalho seguras ou proteção adequada. Várias reportagens da imprensa local relataram nos últimos anos pessoas trabalhando no lixo sem sequer usar luvas. Algumas dessas empresas foram acusadas de usar trabalho infantil. "Tem a dimensão ambiental, o dano que se faz ao meio ambiente quando esse lixo é levado para países que não têm condições para o seu processamento ou que já têm muitos problemas com o próprio lixo, mas também a dimensão humana, os perigos de não ter regulamentação ou fiscalização sobre o trabalho feito por milhares de pessoas que entram em contato com esse resíduo", diz Dell. Dell e Solís concordam que a maioria dos países da região sofre com dificuldades de processamento e descarte de seu próprio lixo, por isso é um problema a mais para eles "ter também que arcar com a responsabilidade pelo lixo dos EUA". "Além do fato de que esse resíduo pode ir parar em qualquer lugar ou ser queimado e gerar gases tóxicos, seu processamento também demanda grandes quantidades de água, o que faz com que muitas comunidades vejam seu acesso à água afetado", diz Dell. A engenheira explica que essa é uma das grandes preocupações do norte do México, que tem sérios problemas de escassez de água e é a área que mais recebe lixo por estar tão próxima da Califórnia, Texas e Novo México. Solís, por sua vez, acredita que o problema virou uma questão de Estado, já que às vezes são os governos que acabam por arcar com o custo do descarte do lixo. "Embora sejam empresas privadas que importam este lixo plástico e que sejam poucos que estão enriquecendo com este negócio, no fim das contas é o Estado que tem de amortecer não só os custos económicos da gestão desse lixo, mas também os impactos ambientais que isso pode causar a curto, médio e longo prazo para comunidades inteiras", completa. Na sua opinião, essa situação reproduz mecanismos coloniais de décadas anteriores. "As expressões do colonialismo evoluíram e agora também se expressam desta forma: na exportação de grandes quantidades de resíduos plásticos contaminados para o sul, que acabam por transformar esses territórios em zonas de sacrifício", diz. "É mais uma ocupação colonial, uma espécie de imperialismo do lixo, e como consequência estão gerando todo tipo de impactos ambientais nas comunidades cujas consequências mais graves ainda não foram vistas", conclui.
2022-02-13
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60304415
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O que é carfentanil, anestésico para elefantes encontrado na cocaína adulterada que matou 24 na Argentina
A Procuradoria Geral de Buenos Aires disse que a cocaína adulterada que matou 24 pessoas na semana passada continha carfentanil, um opioide "extremamente forte" cujos efeitos são 10 mil vezes mais potentes do que a heroína ou o fentanil. Dois estudos foram realizados por peritos independentes com várias amostras da cocaína apreendida pela polícia de Buenos Aires no bairro Puerta 8, oeste da Grande Buenos Aires, onde a droga era distribuída. Na noite de 3 de fevereiro, os serviços de emergência receberam ligações de dezenas de pessoas que passaram mal após terem consumido cocaína adulterada. Foram relatados desmaios, paradas cardíacas, asfixias e mortes quase imediatas. Outras pessoas receberam tratamento em hospitais. A hipótese de que a causa das overdoses poderia ter sido o carfentanil (ou um de seus derivados misturado com cocaína) surgiu depois que alguns pacientes reagiram à naloxona, um antídoto para intoxicação por opioides, segundo a imprensa argentina. Fim do Matérias recomendadas Após ouvir depoimentos de sobreviventes sobre onde eles haviam adquirido a droga, a Justiça argentina ordenou uma operação policial que resultou na prisão de vários suspeitos. De acordo com a página da Agência Antidrogas dos Estados Unidos (DEA), o carfentanil é um opioide sintético aproximadamente 10 mil vezes mais potente que a morfina e 100 vezes mais potente que o fentanil. Pode ser fatal com apenas 2 miligramas, dependendo de como é administrado e de outros fatores. Ele é usado em várias formas, incluindo pó, comprimido e spray. Fabricado na China, ele é distribuído no mercado clandestino. A substância está ligada a uma série de mortes em vários países ao redor do mundo. Segundo as autoridades americanas, a sua presença nos mercados de drogas ilícitas dos EUA é preocupante, pois a potência da droga pode levar a um aumento nas mortes por overdose. O carfentanil pode ser letal mesmo quando apenas tocado, o que significa que ele é uma ameaça para médicos que atendem emergências de pacientes com suspeita de overdose. Legalmente a substância é usada como anestésico para animais de grande porte, como elefantes, rinocerontes e ursos. Depois que a presença do carfentanil foi relatada, grande parte da discussão pública na Argentina se concentrou em como a droga entrou no país. Segundo informações do jornal La Nación, o carfentanil foi incluído em uma lista de substâncias proibidas na Argentina em 14 de agosto de 2019. "Não está disponível para veterinários, não está em uso corrente. Não é como a cetamina, que pode ter uso humano ou veterinário. Portanto, há duas alternativas: ou a droga já foi introduzida em sua forma acabada, ilegalmente, ou [...] ela está sendo processada em algum laboratório", disse Sergio Saracco, presidente da Associação Argentina de Toxicologia (ATA), ao La Nación. Carlos Damin, chefe de Toxicologia do Hospital Fernández, disse ao La Nación que o carfentanil "é usado em países como Canadá, EUA e México como substância para ser adicionada à heroína e ao fentanil, então provavelmente alguém poderia tê-lo usado em pequenas quantidades para testar." A investigação ainda está em andamento, disseram as autoridades. As conclusões publicadas na quinta-feira (10/2) ainda precisam ser complementadas com outros resultados extraídos das autópsias das vítimas.
2022-02-11
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60346713
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Íngrid Olderöck, a torturadora que inspirou curta chileno indicado ao Oscar
Conhecida como "a mulher dos cachorros", Íngrid Felicitas Olderöck Bernhard foi uma ex-agente da Direção de Inteligência Nacional (DINA), o serviço de segurança criado no Chile pelo general e ditador Augusto Pinochet após a derrubada de Salvador Allende em 1973. Mas ela não era apenas mais uma agente do órgão encarregado de torturar e eliminar os opositores políticos do regime militar. Olderöck, ex-oficial dos carabineros (polícia no Chile), tornou-se a mulher mais importante dentro da DINA. Uma de suas funções era o treinamento de dezenas de jovens agentes para enfrentar inimigos políticos. Ela morreu aos 58 anos, de hemorragia digestiva aguda, sem ter sido condenada por nenhum crime. Vítimas a acusaram de ter treinado cães para estuprar presos políticos nos centros de detenção onde muitos desapareceram — especialmente em um dos locais clandestinos de tortura mais brutais, "La Venda Sexy", uma casa de dois andares em uma região de classe média na comuna de Macul, na cidade de Santiago, onde Íngrid Olderöck costumava agir. Fim do Matérias recomendadas Os agentes deram esse nome ao centro clandestino porque o método de tortura preferido era o abuso sexual, segundo revelou o primeiro Relatório da Comissão Nacional de Prisão Política e Tortura, mais conhecido como relatório Valech. Sobreviventes que passaram pela Venda Sexy, como Beatriz Bataszew, denunciaram o uso de cães como método de tortura, além do enforcamento, afogamento, simulações de fuzilamentos, gestações e abortos forçados e choques elétricos nos genitais. "Na Venda Sexy havia um cachorro chamado Volodia, adestrado para violar sexualmente as mulheres", disse ela em declarações à imprensa local. Alejandra Holzapfel, detida com apenas 19 anos naquela casa, contou uma história semelhante. Fui "abusada sexualmente por um pastor alemão que os agentes da ditadura chamavam de Volodia", disse Holzapfel ao jornal The Clinic. "Íngrid comandava o animal, enquanto os outros torturadores obrigavam os detentos a ficar em posições que facilitavam o abuso. Homens e mulheres que passaram pela Venda Sexy foram vítimas dessa atrocidade." Olderöck negou todas as acusações e nunca foi submetida a um processo judicial. Sua figura voltou ao debate público depois que ela se tornou a protagonista da animação Fera (no original, Bestia), curta indicado ao Oscar esta semana, dirigido pelo chileno Hugo Covarrubias. "É um thriller psicológico sobre uma mente sinistra", disse Covarrubias à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC). Uma das poucas pessoas que teve a oportunidade de conversar longamente com a ex-agente foi a jornalista chilena Nancy Guzmán, que publicou o livro Íngrid Olderöck, la mujer de los perros ("Íngrid Olderöck, a mulher dos cachorros", em tradução livre), no qual ela descreve Olderöck como a "a mulher mais poderosa e brutal da DINA". Em conversa com a BBC News Mundo, Guzmán conta que, em um dia de 1996, ela bateu na porta da casa de Olderöck na comuna de Ñuñoa. "Apareceu uma mulher de corpo gordo, mãos grandes e voz rouca, com um cigarro na mão." Era a ex-agente. "Ela estava usando uma saia florida, um suéter feito à mão vagamente rosa e botas curtas." "Ela vivia completamente sozinha", diz Guzmán. "Ela não tinha filhos, não tinha marido." NA DINA, a agente era um comando por si só, diz a jornalista. "Ela era especialista em tiro, paraquedismo, artes marciais, equitação e treinamento de cães." "Foi ela quem treinou um cachorro chamado Volodia, direcionado a estuprar mulheres e homens durante as sessões de tortura", diz Guzmán. "Há ex-detentos que sofreram esse tipo de tortura ou que viram isso acontecendo com outros. Todos lembram que uma das jovens, Marta Neira, chegou chorando desesperada e arrasada porque foi vítima do estupro do cachorro. Dias depois, Marta desapareceu. " Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O pai de Íngrid Olderöck emigrou da Alemanha em 1925, aos 29 anos. Ela e as irmãs, Hannelore e Karin, cresceram sob um sistema familiar muito rígido. As garotas não podiam falar em espanhol ou ter amigos chilenos. Assim, elas cresceram praticamente isoladas. "Sou nazista desde pequena, desde que aprendi que o melhor período que a Alemanha viveu foi quando os nazistas estavam no poder, quando havia trabalho e tranquilidade e não havia ladrões sem vergonha", diz Olderöck no livro de Guzmán. Quando os carabineros autorizaram admissão de mulheres em sua Escola de Oficiais, em 1967, Olderöck entrou no primeiro concurso. Ela foi a primeira mulher paraquedista no Chile e na América Latina. Também dizia ser especialista em tiro, equitação e adestramento de cães, além de ser faixa azul em judô, praticar tênis, esqui e montanhismo. Com essas credenciais, Olderöck rapidamente passou a fazer parte do serviço secreto dirigido pelo coronel Manuel Contreras, a DINA, e consolidou seu poder. Mas em 1981 sua vida deu uma guinada. Ao sair de casa, ela foi atacada por dois desconhecidos que atiraram contra ela à queima-roupa na cabeça e no estômago, mas não a mataram. Na verdade, ele sobreviveu até o fim de seus dias com uma bala alojada na cabeça, diz Guzmán. Membros do Movimento de Esquerda Revolucionária foram acusados do ataque. No entanto, Olderöck sempre insistiu que o ataque havia sido planejado contra ela pelos próprios serviços de inteligência que estavam tentando puni-la por sua suposta tentativa de deserção. Depois, ela se aposentou e, quando a Justiça a convocou para testemunhar nos casos de detentos desaparecidos de La Venda Sexy, ela fingiu estar com amnésia, diz Guzmán. "Ela era uma mulher violenta e agressiva que não tinha piedade", descreve a jornalista. Em uma das entrevistas, a ex-agente disse a Guzmán que sempre tinha consigo três armas: uma pistola na bolsa, outra no criado-mudo e uma no forno da cozinha. "Então ela se levanta, vai até a cozinha, volta e coloca a arma na mesa. Eu não sabia o que fazer." "Até eu dizer a ela: 'Tira essa arma daqui, eu não gosto de armas'. Nesse momento, ela fica furiosa e diz que odeia pessoas como eu. Ela ficava repetindo para mim: 'Eu te odeio, eu odeio pacifistas'". Em outra ocasião, Olderöck disse à jornalista para ter cuidado porque havia uma organização ativa de ex-agentes chamada DINITA e que "qualquer coisa poderia acontecer com ela (Guzmán)". "Ela era uma personagem terrível em um mundo de horror", reflete a escritora. "As sociedades têm esses monstros. E esses monstros não acabam junto com ditaduras. Os monstros estão permanentemente nas sociedades."
2022-02-11
https://www.bbc.com/portuguese/geral-60342920
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Mapas mostram disputas territoriais ativas nos países da América Latina — inclusive no Brasil
Em 2022, a América Latina ainda terá 10 disputas territoriais abertas entre países do continente ou com nações como Reino Unido e Estados Unidos. Muitas delas têm 90 anos ou mais, e remontam à delimitação das fronteiras após os processos de independência de cada país. Elas continuam sem resolução por causa da importância estratégica das áreas disputadas. Cinco desses casos foram levados à Corte Internacional de Justiça (CIJ) em Haia, na Holanda, e quatro continuam pendentes de uma decisão. Algumas dessas disputas, mesmo nunca tendo sido levadas à Corte, ainda envolvem órgãos internacionais, como é o caso do desacordo entre a Argentina e o Chile sobre a Passagem de Drake, e das Ilhas Malvinas/Falklands, cuja soberania ainda é um tema espinhoso nas relações entre Argentina e Reino Unido. E em outros casos, as tensões diplomáticas continuam existindo mesmo após uma decisão da CIJ. A disputa costuma ser reavivada durante campanhas eleitorais ou em datas comemorativas, como é o caso da disputa pela Ilha Coelho entre El Salvador, Honduras e Nicarágua. Fim do Matérias recomendadas No entanto, a região também tem pelo menos três disputas latentes, ou seja, que não têm resolução, mas há anos deixaram de ser discutidas entre os países envolvidos. Duas delas ocorrem na fronteira entre o Brasil e o Uruguai. Nos mapas abaixo mostramos quais territórios são disputados e qual é a situação atual em cada caso: Imagem indisponível Essequibo (Guiana vs. Venezuela) A região conhecida como Essequibo ou Guiana Essequiba tem 159 mil km² ricos em recursos naturais e florestas, o equivalente a dois terços do território guianês. O Essequibo é o epicentro de uma disputa entre a Guiana e a Venezuela que já dura 180 anos, e na qual a Venezuela já contou até com o apoio dos Estados Unidos. A região costuma aparecer nos mapas venezuelanos chamada de "Área sob reivindicação". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Nas últimas décadas, o conflito teve altos e baixos, mas a descoberta de grandes reservas de petróleo na Guiana nos últimos anos fez com que as tensões aumentem. O país começou a explorar suas reservas e já construiu inclusive plataformas de alto-mar próximo à região reivindicada pela Venezuela. Em 2018, a Guiana entrou com um pedido na CIJ para que o conflito seja resolvido, mas a Venezuela nega a legitimidade da instituição para resolver a questão. Em dezembro de 2020, a Corte se declarou competente no assunto, mas a Venezuela ainda não aceita. Em março de 2021, Haia afirmou que a Guiana teria um ano, até março de 2022, para apresentar seus documentos sobre o caso e a Venezuela, um ano a mais, até 2023. Área de fronteira (Belize vs. Guatemala) A disputa fronteiriça entre a Guatemala e Belize dura mais de 160 anos. Começou no período colonial, quando a Espanha concedeu à coroa britânica o direito de extrair madeira em uma parte do território da atual Belize para evitar o assédio dos piratas ingleses a seus navios. Hoje, a Guatemala reivindica essa região ao sul de Belize, desde o rio Sibún até o rio Sarstún, que tem mais de 11 mil km² e inclui ilhas, abrolhos, ilhotas e superfície marítima no golfo de Honduras. No entanto, a área reivindicada equivale a quase a metade do território de Belize. Depois de muitas tentativas fracassadas de negociação, os dois países consultaram suas populações e em 2019 levaram a disputa à CIJ, que deverá estabelecer uma fronteira real entre eles. Em 1991 foi estabelecida a chamada "zona de adjacência", dividida por uma linha imaginária que separa o território de cada um. A falta de uma definição clara de fronteira até hoje favoreceu o tráfico de drogas e de mercadorias na região, além dos episódios de violência. Caso a decisão de Haia favoreça a Guatemala, o país duplicaria seu acesso à costa do oceano Atlântico onde está a segunda maior reserva de corais do mundo depois da australiana. Mas, se a sentença for no sentido contrário, Belize pode conservar as regiões turísticas que recebem uma média de 2 milhões de visitantes por ano. Em 8 de dezembro de 2020, a Guatemala apresentou seu pedido à CIJ. O prazo havia sido estendido por seis meses por causa do impacto da covid-19. Belize tem até o dia 8 de junho de 2022 para apresentar sua resposta. Arquipélago de San Andrés, Providência e Santa Catalina (Colômbia vs. Nicarágua) O arquipélago de San Andrés, Providência e Santa Catalina está a 110 km da costa nicaraguense e a 720 km da costa colombiana. Os dois países levam décadas disputando em instâncias internacionais a soberania dessas ilhas, que têm cerca de 100 mil habitantes, além de praias de areia branca, mar cristalino, enormes montanhas, abrolhos, ilhotas e reservas de petróleo e gás natural. Há dois séculos, a coroa espanhola deu o controle das ilhas à Colômbia e da Costa dos Mosquitos, como é chamada a região, à Nicarágua. Em 2001, a Nicarágua reivindicou as ilhas à CIJ, mas a Corte ratificou, em 2012, a posse colombiana do arquipélago. No entanto, a mesma resolução deu à Nicarágua a exclusividade de exploração econômica de uma parte importante do espaço marítimo que antes pertencia à Colômbia. Desde então, a Colômbia afirmou que não pode aplicar a decisão de Haia até assinar um tratado com a Nicarágua, e decidiu delimitar uma "zona contígua integral", que considera como suas as águas do arquipélago como um todo. A decisão gerou dois novos pedidos de Manágua à CIJ: em um deles, o governo nicaraguense argumenta que a Colômbia não está respeitando a decisão de 2012 e, no outro, pede que sua plataforma continental seja estendida para além das 200 milhas náuticas. Os dois casos continuam em aberto. Bogotá argumenta que, ao explorar as reservas marítimas de petróleo, a Nicarágua está prejudicando a biodiversidade da região e violando os direitos de pesca artesanal e de subsistência dos povos ilhéus. A Corte vai começar a deliberar sobre o tema, mas ainda não tem data definida para anunciar sua decisão. Rio Silala (Chile vs. Bolívia) O conflito entre os países vizinhos pelo direito às águas do rio ou manacial Silala foi reavivado no final dos anos 1990 e chegou à CIJ em 2016. No entanto, parece ter perdido força política em ambos os países desde então. O Silala nasce no departamento de Potosí, no sudeste da Bolívia, a 4 km da fronteira com o Chile. A Bolívia afirma que as águas do manancial fluem para o Chile, em parte, por canais artificiais construídos em 1908, e que o Chile está fazendo um "uso ilegal e abusivo" destas águas "sem pagar por isso". O governo chileno, por sua vez, afirma que o rio é internacional, já que nasce na Bolívia, cruza a fronteira e desemboca no rio chileno San Pedro de Inacaliri, na bacia hidrográfica do Pacífico. Suas águas, portanto, pertenceriam a ambos os países. Em 2016, o então presidente Evo Morales anunciou que seu governo apresentaria um pedido à CIJ para que o Chile "reconhecesse uma dívida milionária" pelo uso das águas do Silala, por causa de uma permissão de uso concedida pela Bolívia em 1908 a uma empresa ferroviária chilena que foi revogada em 1997. No entanto, o Chile se adiantou e levou o tema a Haia no mesmo ano, pedindo que a Corte reconhecesse o rio como internacional e que determinasse a partilha de suas águas "de forma igualitária e razoável". La Paz respondeu em agosto de 2018, argumentando que o rio foi canalizado até a fronteira com o Chile pela empresa ferroviária, mas admitiu que parte das águas de fato fluem naturalmente até o país vizinho, por causa de um declive do terreno. O caso continua parado em Haia desde 2019, sem data para uma decisão. Em maio de 2021, os países concordaram em normalizar suas relações bilaterais, apesar da disputa. Golfo de Fonseca (Honduras vs. El Salvador vs. Nicarágua) O golfo de Fonseca, com apenas 3.200 km², é cenário de conflitos territoriais desde as independências de Honduras, El Salvador e Nicarágua. Até os anos 1990 não havia delimitação clara dos limites marítimos de cada país, e o assunto foi levado à CIJ em uma disputa entre El Salvador e Honduras. Para Honduras, o golfo é a única saída para o oceano, diferentemente da Nicarágua e de El Salvador, que contam com 352 e 307 km de costa banhada pelo oceano Pacífico, respectivamente. Em uma resolução de 1992, a CIJ determinou que os dois países tinham soberania exclusiva sobre uma faixa de 3 milhas náuticas a partir de sua costa, e que o golfo seria administrado pelos três países que o compartilham. No entanto, a disputa não terminou aí. No centro do golfo de Fonseca fica a ilha Coelho, de menos de 1 km², ocupada pelo exército hondurenho nos anos 1980, enquanto El Salvador estava em guerra civil. As autoridades salvadorenhas dizem que a ocupação foi ilegal e que a ilhota pertence a seu país. Honduras argumenta que a faixa delimitada por Haia lhe dá direito ao território. A ilha Coelho não foi mencionada na decisão da Corte em 1992, que estabelecia a soberania sobre outras ilhotas do golfo. Em 2003, a CIJ rejeitou um pedido de El Salvador para revisar sua resolução. Mesmo assim, o caso continua sendo objeto de declarações provocativas dos líderes de ambos os países. Meses antes das eleições gerais, que ocorreram em 28 de novembro, o presidente hondurenho Juan Orlando Hernández fez um comunicado em seu Twitter reafirmando a soberania do país sobre a ilha Coelho, ao qual o líder salvadorenho, Nayib Bukele, respondeu com ironicamente com um meme. Políticos da oposição em Honduras disseram que qualquer nova disputa por causa da decisão da CIJ seria uma "cortina de fumaça" para distrair dos problemas internos de cada país. No mesmo dia, Hernández tuitou afirmando que o golfo "não voltará a ser objeto de conflitos". Honduras e Nicarágua, por sua vez, ratificaram oficialmente a decisão da Corte de Haia sobre os limites marítimos dos dois países no golfo no último mês de outubro. Passagem de Drake (Argentina vs. Chile) No último dia 23 de agosto, o presidente chileno, Sebastián Piñera, aprovou por decreto uma atualização de uma carta náutica estendendo os limites marítimos do Chile em cerca de 30 mil km². Só que dentro desta extensão está incluída uma área de cerca de 5.500 km² de plataforma submarina em forma de meia-lua, que a Argentina considera sua: a Passagem de Drake. A decisão de Piñera reacendeu a disputa história dos vizinhos do cone Sul, que quase foram à guerra por uma região próxima nos anos 1970 e são os dois únicos países do continente americano que reivindicam uma parte da Antártida. Em um comunicado, o governo argentino acusou o Chile de tentar "se apropriar de uma parte da plataforma continental argentina". A Argentina argumenta que essa área foi considerada sua pela Comissão de Limites da Plataforma Continental da ONU (CLPC). Em 2016, a CLPC aprovou os novos limites marítimos apresentados pelo país, que representavam uma ampliação de cerca de 1,6 milhões de km², incluindo a área que o Chile agora reivindica. No entanto, o governo chileno considera que a comissão é um "órgão científico" que não tem autoridade para determinar os limites legais de um país. O ministro de Relações Exteriores do Chile respondeu ao comunicado argentino dizendo que "ninguém pode se apropriar do que já lhe pertence", mas garantiu que a situação será resolvida por meio do diálogo entre os países, de acordo com os tratados já firmados. Malvinas/Falklands (Argentina vs. Reino Unido) No último mês de novembro, a assembleia geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) aprovou por unanimidade uma declaração reafirmando a necessidade de que os governos da Argentina e do Reino Unido voltem à mesa de negociações sobre a soberania das ilhas Malvinas/Falklands, uma disputa que começou em 1833. Desde então, estas ilhas do Atlântico Sul, onde vivem cerca de 3 mil pessoas, são território ultramarino britânico, mas continuam sendo reivindicadas pela Argentina. Em 1982, eles protagonizaram uma guerra que deixou centenas de mortos e terminou com a rendição da Argentina. Durante os oito anos de seu governo (2007-2015), a ex-presidente Cristina Fernández de Kirchner reivindicou a soberania das ilhas e tentou pressionar empresas britânicas e americanas para que não fizessem perfurações nas águas próximas a elas em busca de petróleo. Em 2016, durante o governo de Mauricio Macri, os dois países concordaram em retomar os voos dos aeroportos argentinos às ilhas e reiniciaram as conversas sobre temas como comércio, segurança, exploração de hidrocarbonetos e pesca nas Malvinas. No entanto, o presidente Alberto Fernández, que sucedeu Macri em dezembro de 2019, voltou a afirmar, no último mês de junho, que o Reino Unido tem que "devolver a terra que nos usurparam", referindo-se às ilhas. A controvérsia mais recente entre os dois países tem a ver com a construção de um novo porto de águas profundas nas Malvinas/Falklands, e colocam as ilhas no centro de outra frente de batalha: a Antártida. Argentina e Reino Unido são os únicos países que reivindicam exatamente a mesma porção de território no continente gelado. A construção do porto, que está a cargo de uma empresa anglo-holandesa, foi vista por autoridades e analistas argentinos como uma tentativa do Reino Unido de aumentar sua influência na região e substituir a capital da província argentina da Terra do Fogo, Ushuaia, como ponto principal de acesso à Antártida. A BBC procurou as autoridades das Malvinas e do Reino Unido para comentarem a polêmica sobre o porto, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem. Rincão de Artigas e Ilha Brasileira (Brasil vs. Uruguai) Há quase 90 anos existe uma disputa entre Uruguai e Brasil por dois pequenos trechos da fronteira entre os dois países, mas eles não se pronunciam a respeito desde o final dos anos 1980. A partir de um decreto da ditadura militar, em 1974, o Uruguai passou a representar as duas áreas como zonas de limites contestados em seus mapas. O Brasil não reconhece a reivindicação. Em 1934, o Uruguai contestou pela primeira vez uma parte do tratado de limites de 1851 entre os dois países, mais especificamente uma região chamada Rincão de Artigasy, de cerca de 220 km². O governo uruguaio da época afirmou que o riacho registrado como marco da fronteira estava incorreto e que, por isso, a área pertenceria a seu país. Em nota, o Brasil respondeu que confiava na demarcação feita no século 19 e que estranhava que o vizinho demorasse tantos anos para disputá-la. Hoje vivem cerca de 40 famílias na região, na vila Thomas Albornoz. Segundo o jornal Folha de S. Paulo, que visitou o local em 2019, os moradores reclamam da falta de assistência do Estado brasileiro e se beneficiam da infraestrutura uruguaia, que está mais próxima. Cerca de 220 km à leste da vila fica a Ilha Brasileira, uma ilhota deserta de 2 km² no rio Quaraí, também reivindicada pelo Uruguai desde 1940. O governo uruguaio afirma que a ilha está localizada na foz do rio Uruguai e que sua posse, portanto, estaria determinada pelos tratados de fronteiras. O Brasil, que pôs seu marco na ilha em 1862 e chegou a instalar uma família ali nos anos 1960, discorda dessa interpretação. As últimas comunicações oficiais entre os países sobre as disputas aconteceram entre 1988 e 1989. O Itamaraty afirmou à BBC News Brasil que "o tema não faz parte da agenda bilateral do Brasil com o Uruguai". Procurado pela reportagem, o Ministério de Relações Exteriores uruguaio não se pronunciou a respeito. Ilha de Navassa (Haiti vs. Estados Unidos) Em 1859, o secretário de Estado americano Lewiss Cass aceitou o pedido de um capitão que reivindicou a posse da pequena ilha caribenha de Navassa em nome dos Estados Unidos. Se uma ilha não estivesse sob a jurisdição de outro governo, a lei da época permitia que qualquer cidadão americano tomara posse dela com a finalidade de extrair guano — acumulado de fezes de aves e morcegos que é rico em nitrogênio e usado como fertilizante. No entanto, Navassa já tinha dono, teoricamente. Em 1801, o Haiti, em plena revolução, tinha reivindicado a posse da ilha em sua nova constituição. Mas o governo americano não reconhecia o governo revolucionário do Haiti (e não o faria até 1862), resultado de um levante de ex-escravizados. Por isso, ignorou os protestos dos haitianos pela ilha. Hoje em dia, o local é considerado uma reserva de biodiversidade caribenha e administrado pelo Serviço de Pesca e Vida Silvestre dos Estados Unidos, uma agência ligada ao Ministério do Interior. A constituição atual do Haiti continua listando a ilha de Navassa como parte de seu território. Procurados pela reportagem, nem o Ministério das Relações Exteriores haitiano nem a agência americana se pronunciaram sobre o tema. Até o início do século 20, o território da Bolívia chegava até o oceano Pacífico. Mas, o país perdeu seus 400 km de costa na chamada Guerra do Pacífico (1879-1884), no qual se uniu com o Peru contra o Chile. Os atuais limites territoriais dos países foram determinados em um tratado assinado em 1904, que afirmava que a soberania chilena se estenderia até a fronteira com o Peru, e a da Bolívia não chegaria mais até o mar. No entanto, o documento concedia à Bolívia, para sempre, um direito livre e amplo de trânsito comercial pelo território chileno e pelos portos do Pacífico. Mesmo assim, a constituição do país até hoje reivindica o "direito irrenunciável e imprescritível da Bolívia sobre o território que lhe dê acesso ao oceano Pacífico e a seu espaço marítimo". A Bolívia levou o Chile à Corte Internacional de Justiça em 2013 para que o tribunal obrigasse o país vizinho a negociar a restituição de sua saída soberana ao mar. Só que, diferentemente de outros conflitos do tipo levados a Haia, nesse caso a demanda não foi por um trecho concreto de terra ou de mar, ou uma quantidade específica de quilômetros de costa. Ainda não há território em jogo. Por isso, não se pode dizer que, neste momento, seja uma disputa territorial. Em 2018, a Haia determinou que o Chile não tinha a obrigação de negociar o tema com a Bolívia. A decisão é inapelável. "No entanto, apesar desta sentença, a CIJ convida ambos os governos a buscar uma forma de iniciar um diálogo sobre o assunto", disse o juiz Abdulqawi Ahmed Yusuf na época. Ao longo dos anos, a Bolívia fez acordos com outros países vizinhos para garantir mais pontos de acesso aos oceanos Pacífico e Atlântico — incluindo o Brasil. Os bolivianos querem acabar com sua "porto-dependência" do Chile, considerando que 75% de sua carga passa pelo pelas instalações do país vizinho. As negociações entre os dois países não deram sinais de avanço desde a sentença de Haia em 2018. No último mês de março de 2021, o presidente da Bolívia, Luis Arce, propôs abrir um novo diálogo com o Chile para tratar do assunto, durante a comemoração do Dia do Mar. Segundo a agência AFP, ele afirmou que a Bolívia queria uma solução para "uma questão aberta e pendente" entre os países. No entanto, a chancelaria chilena respondeu à declaração dizendo que "a insistência boliviana em um acesso soberano ao mar foi resolvida pela Corte Internacional de Justiça em 2018". Em resposta à BBC News Brasil, o Ministério das Relações Exteriores boliviano reafirmou que "a Bolívia considera que esta controvérsia com o Chile ainda está pendente de uma solução, e que as partes devem continuar com o diálogo diplomático a fim de encontrar uma fórmula que permita à Bolívia recuperar um acesso soberano ao mar". O Ministério de Relações Exteriores chileno não respondeu a perguntas sobre o assunto até a publicação desta reportagem. *Com reportagem de Norberto Paredes, Daniel Pardo, Cecilia Barría, Boris Miranda e Veronica Smink.
2022-02-10
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59585669
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Por que os EUA começaram a deportar venezuelanos para a Colômbia
Os Estados Unidos começaram a deportar para a Colômbia venezuelanos que viviam no país antes de tentarem cruzar ilegalmente para o território norte-americano. Os primeiros deportados foram dois imigrantes venezuelanos que estavam sob custódia e que residiam anteriormente na Colômbia. Eles foram deportados em 27 de janeiro, confirmou o Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos (DHS, na sigla em inglês) na terça-feira (1/2) em um comunicado enviado à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC). O DHS especificou que a deportação ocorreu com base no Título 42, uma política estabelecida pela Administração Donald Trump (2017-2021) e mantida pela de Joe Biden, que permite que os migrantes sejam rapidamente expulsos devido à pandemia de covid-19. No comunicado, o governo dos EUA afirma que os voos com venezuelanos que anteriormente residiam na Colômbia devem ser realizados "de forma regular", operados pelo Serviço de Fiscalização de Imigração e Alfândega (ICE, em inglês). Fim do Matérias recomendadas A agência "está comprometida em garantir que cada migrante encontrado seja tratado de maneira segura, ordenada e humana", afirma o comunicado. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O governo colombiano, por meio do Escritório de Migração, confirmou a chegada dos cidadãos venezuelanos expulsos em 27 de janeiro. "Esses estrangeiros, que chegaram com a documentação em ordem, deixaram o território nacional em direção ao México e depois cruzaram irregularmente para os EUA", disse um porta-voz da Migração Colômbia à agência de notícias AFP. Em seu comunicado, o Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos destacou que a decisão de deportar venezuelanos para o território colombiano foi tomada após "conversar com a Colômbia". A imprensa colombiana informou que em dezembro ambos os governos se reuniram para explorar essa possibilidade, mas que a chanceler colombiana e vice-presidente, Marta Lucía Ramírez, alegou na terça-feira (1/2) que não houve acordo sobre o assunto com os EUA. "Não assinamos nenhum acordo com os EUA para receber 6 mil venezuelanos deportados, como indicam alguns meios de comunicação", disse ela à rede Blu Radio. "Os EUA levantaram a possibilidade de que alguns venezuelanos, que chegaram irregularmente junto com colombianos, serão deportados. Se são colombianos, que sejam deportados. Se são venezuelanos, que fazem parte do Estatuto de Proteção Temporária, e não querem mais viver na Colômbia, então vamos analisar", disse. A BBC News Mundo entrou em contato com o Ministério das Relações Exteriores da Colômbia, mas até o momento da publicação desta reportagem não obteve resposta. A Colômbia tem sido a grande receptora da imigrantes venezuelanos devido à crise econômica que atingiu o país vizinho na última década. O país abriga mais de 1,7 milhão de venezuelanos. Mas o crescente fluxo de imigração de venezuelanos também tem outros destinos. Em dezembro, as autoridades dos EUA encontraram venezuelanos cruzando a fronteira mexicana ilegalmente quase 25 mil vezes - a segunda nacionalidade mais recorrente depois dos mexicanos. O número foi mais que o dobro registrado apenas três meses antes e muito maior do que os quase 200 do ano anterior. Desde que os EUA romperam relações diplomáticas com o governo de Nicolás Maduro, as autoridades de imigração dos EUA não têm como processar deportações de venezuelanos para seu país de origem. A Embaixada da Venezuela nos EUA, que está sob poder do grupo de oposição do líder Juan Guaidó (reconhecido por Washington como "presidente interino"), fez um apelo ao governo dos EUA em comunicado na terça-feira (1/2) para que migrantes venezuelanos possam pedir asilo. A embaixada afirma que a imposição de restrições aos venezuelanos "só aprofundará a crise e aumentará os negócios ilegais, como tráfico de pessoas e contrabando". Como o DHS aponta em seu comunicado, as deportações de venezuelanos para a Colômbia estão sendo realizadas seguindo as indicações do chamado Título 42. Trata-se de uma exceção à lei sanitária do país, que permite restringir a entrada de estrangeiros por via terrestre por motivos de saúde (mesmo para quem tem visto). A regra foi criada na década de 1940 e afirmava que se algum médico certificado pelo governo determinasse que uma pessoa apresentava risco de introduzir uma doença contagiosa no país, essa pessoa deveria ser expulsa imediatamente. Essa decisão mais tarde passou a ser de responsabilidade exclusiva dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) e raramente foi colocada em prática ao longo das décadas. Mas em março de 2020, o então presidente Donald Trump reativou a norma no contexto da pandemia, gerando polêmica, porque a medida restringe o direito de se buscar asilo no país. Em setembro do ano passado, a rádio americana NPR informou que o governo de Joe Biden havia pedido na Justiça que o Título 42 fosse mantido para questões de imigração, a fim de "retardar a expansão da covid-19 no país". Olga Byrne, diretora de assuntos migratórios do Comitê Internacional de Resgate, critica a medida. "Apesar dos compromissos anunciados pelo governo dos EUA nos primeiros 100 dias, políticas prejudiciais como o Título 42 permanecem em vigor mais de um ano após a posse", diz Byrne. "As remoções devido ao Título 42 privam os requerentes de asilo e, em vez disso, os enviam de volta a condições perigosas semelhantes, se não piores, àquelas das quais escaparam. Em certos casos, eles são enviados para países terceiros como a Colômbia." Os venezuelanos se tornaram a segunda nacionalidade, atrás dos mexicanos, que mais busca cruzar a fronteira sul dos EUA, segundo dados das autoridades norte-americanas. De acordo com os relatórios da patrulha de fronteira, os cruzamentos onde mais imigrantes foram identificados foram os de Yuma, no Arizona, e Del Río, no Texas. Os venezuelanos costumam viajar para Mexicali, no México, e de lá tentam atravessar a passagem de Yuma. Em setembro passado, a ONU confirmou que quase 6 milhões de venezuelanos deixaram o país nos últimos anos. Muitos deles apontaram que emigraram por causa da crise econômica que o país sul-americano atravessa. A Colômbia, principal receptora dessa migração, ativou um ambicioso plano de naturalização de migrantes venezuelanos, que se estima representarem uma população de cerca de um milhão e meio de pessoas.
2022-02-04
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60257474
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O que se sabe até agora sobre morte de 20 pessoas por 'cocaína envenenada' na Argentina
Um homem de cerca de 30 anos chegou carregado a um hospital da província de Buenos Aires no fim da tarde da quarta-feira (2/2). Ele tinha os mesmos sintomas que as 20 pessoas mortas e as 74 internadas após consumo de suposta cocaína "envenenada" — dificuldades para respirar e para ficar de pé, além de convulsões, segundo relatos de familiares à imprensa local. As autoridades dizem que a quantidade de pessoas afetadas neste caso pode ser ainda maior que as 20 mortes e mais de 70 internações divulgadas até o fim desta quarta-feira pela imprensa argentina. A mãe de outra vítima, que se identificou como Beatriz, contou, diante das câmeras de televisão, que encontrou o filho, de 41 anos, caído de madrugada na cozinha da casa onde os dois moram, em uma área humilde da mesma província. "Meu filho teve uma parada cardíaca e mal conseguia respirar. A ambulância demorou meia hora. Mas eu entendo porque foram muitos chamados, pelo mesmo problema, ao mesmo tempo. Meu filho é usuário de drogas desde os 14 anos, ele agora está entubado, mas tenho esperanças", disse ela. Na entrada dos quatro hospitais para onde as vítimas foram inicialmente levadas, as famílias choravam e se abraçavam, do lado de fora, enquanto esperavam informações sobre seus parentes. Fim do Matérias recomendadas "O que está acontecendo é inédito. Peço a quem comprou (cocaína) nas últimas 24 horas que a descarte. É fulminante. Esta droga tem substância extremamente mortal", disse o secretário de Segurança da província de Buenos Aires, Sergio Berni. Segundo ele, entre os que consumiram do que chamou de "cocaína envenenada" estão pessoas com diferentes níveis de intoxicação, incluindo "muito graves". Assessores do governo provincial disseram à BBC News Brasil que não se descartava que "o número de vítimas pudesse ser maior". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Nove pessoas foram presas em uma operação que resultou na apreensão de papelotes. O caso provocou comoção no país. A emissora de televisão América, de Buenos Aires, passou a estampar na sua tela o telefone de urgência da Secretaria de Prevenção às Drogas (Sedronar). A ex-ministra de Segurança, Patricia Bullrich, opositora do governo atual, disse que "é um dia triste na história argentina". Especialistas em toxicologia disseram que a situação representava um "alerta epidemiológico", já que não se sabia quantas pessoas podem ter consumido a cocaína adulterada. "O sistema de saúde deveria estar atento e preparado para receber estas pessoas de forma urgente, não se sabe quantos podem estar nesta situação crítica. Esta situação deve ser enfrentada como uma crise sanitária de surto epidemiológico, como recomenda o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças)", disse o presidente da Sociedade Latino-Americana de Infectologia Pediátrica, Roberto Debbag. Os envelopes com o conteúdo rosado eram vendidos a 200 pesos (R$ 10) na localidade de casas simples e inacabadas de Puerto 8, segundo a polícia local. A polícia e os investigadores não descartam que a venda da droga possa ser parte da briga entre quadrilhas de traficantes. "Na pandemia, aumentou muito o consumo de bebidas alcoólicas e também de drogas", disse a toxicóloga Mónica Nápoli. O debate público, entre autoridades dos governos e toxicólogos, era sobre que tipo de "veneno" poderia ter sido inserido na cocaína e se a ação teria sido acidental ou proposital. O toxicólogo Carlos Damín disse à emissora de televisão TN, de Buenos Aires, que a cocaína costuma ser "adulterada" na Argentina com "talcos e medicamentos anti-inflamatórios". Num primeiro momento, chegou-se a especular que que o produto teria sido misturado com veneno de rato, o que não foi confirmado pelas autoridades locais. A partir dos sintomas das vítimas da "cocaína envenenada", Damín deu seu prognóstico: "A cocaína é um estimulante. E tudo indica que, neste caso, foi adulterada com 'opioides', que tem efeito contrário. Por isso, as vítimas apresentam quadro respiratório severo, as pessoas acabam ficando asfixiadas. Pela minha experiência, isto não foi acidental, mas proposital". O opioide em questão seria o fentanil, de acordo com a imprensa local e fontes do governo provincial. "Ele é mais barato e também mais destrutivo que a cocaína", disse o Alberto Fohrig, especialista no combate ao narcotráfico. Em comunicado na noite de quarta-feira, a Secretaria de Saúde da província de Buenos Aires informou que havia sido declarado "alerta epidemiológico" e que informações preliminares indicavam que as vítimas sofriam "quadros de intoxicação por opiáceos e se desconhece a existência de outro produto vinculado". As vítimas que chegaram a ser socorridas eram principalmente de bairros e comunidades pobres da província de Buenos Aires. As dificuldades econômicas e sociais que enfrentam também foram evidenciadas nesta história apontada como "inédita" não apenas pelo secretário de Segurança Berni e por toxicólogos, mas por investigadores da Justiça. "O que precisamos são mais centros de reabilitação e não de mais cadeias. Meu filho busca emprego e não encontra e, quando encontra, usa o dinheiro na droga", disse Beatriz, a mãe que encontrou o filho de 41 anos caído na cozinha na madrugada de quarta-feira. Segundo dados oficiais, a pobreza na Argentina, que disparou na pandemia, supera 40% da população de cerca de 45 milhões de pessoas. Nas ruelas sem asfalto, entre casas inacabadas, nas áreas pobres, onde moram ou moravam as vítimas da "cocaína envenenada", muitos moradores pareciam temer falar sobre o tráfico no lugar, evitando os microfones de televisão. Mas os que falaram mostravam sua angústia. "Somos pessoas pobres, simples e que vimos estes meninos pequenos e eles agora podem morrer. Nós somos religiosos, frequentamos o culto, não queremos confusão. Mas hoje, vendo esta situação, estamos muito tristes", disse uma mulher à TV. A cunhada de uma das vítimas que tinha sido internada às pressas contou que o consumo da droga tinha sido entre pessoas de grupos diferentes e de lugares diferentes. A mesma informação foi confirmada pelas autoridades da província de Buenos Aires. "Meu cunhado saiu com um amigo depois de assistir ao jogo da seleção argentina e consumiu (a droga). Ele está lutando pela vida, com um respirador artificial, e o amigo dele morreu", disse ela, que se identificou como Maria Morales.
2022-02-03
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60241344
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Cientistas descem a 8km de profundidade na Fossa do Atacama: 'Outro planeta'
Durante anos, os oceanógrafos chilenos Osvaldo Ulloa e Rubén Escribano imaginaram em suas conversas como seria a paisagem "alienígena" da Fossa do Atacama, a fenda impressionante que cai a mais de 8.000 metros de profundidade nas costas do Chile e do Peru, e que nenhum ser humano tinha visto diretamente. Ulloa e Escribano, diretor e vice-diretor, respectivamente, do Instituto Milênio de Oceanografia da Universidade de Concepción, no Chile, tinham se resignado a estudar a Fossa do Atacama a partir da superfície. Junto com sua equipe, eles mapearam parte da topografia da Fossa do Atacama pela primeira vez. Em 2018, durante a Expedição Atacamex, eles tiraram algumas fotos, vídeos, e coletaram amostras de água e DNA das estranhas criaturas que habitam o fundo deste submundo. Chegar a essa profundidade, tecnicamente, é mais ou menos como ir à Lua - sonhar em ser testemunha ocular do seu objeto de estudo nunca tinha sido uma opção… Pelo menos, até agora. Ambos os cientistas desceram ao local neste ano com a expedição do explorador americano Víctor Vescovo - que em 2019 se tornou a primeira pessoa a visitar os cinco pontos mais profundos dos cinco oceanos, pilotando um submarino especialmente construído para esse propósito. Fim do Matérias recomendadas Ulloa, Escribano e Vescovo são os primeiros seres humanos a descer à Fossa do Atacama. Cada uma das duas viagens durou um total de dez horas, para as quais os aquanautas literalmente tiveram que se desidratar na noite anterior, levar roupas quentes e fazer um sanduíche. Em dois mergulhos separados, primeiro Ulloa e depois Escribano embarcaram junto com Vescovo, em uma esfera de titânio muito pequena, coberta por uma espessa camada protetora de espuma sintética. "Esta foi a aventura da minha vida e o auge da minha carreira como pesquisador de ciências marinhas", disse Ulloa, de 60 anos, à BBC Mundo (serviço em espanhol da BBC), minutos depois daquele mergulho e já de volta à "nave-mãe", a embarcação Pressure Drop. "O interior da esfera é cinza escuro, tem duas cadeiras confortáveis e é forrado com tanques de oxigênio e interruptores para todos os aparelhos eletrônicos. Na parte inferior, há três escotilhas que permitem uma visão do fundo do mar. Fiquei impressionado com a suavidade da travessia e o silêncio, apenas interrompido pelas comunicações com a superfície". A descida até o ponto mais profundo da Fossa - 8.069 metros, segundo os mapas feitos no dia anterior - levou três horas e meia. Ulloa imaginou que ficaria entediado, mas entre momentos de conversa com Vescovo, acabaram ouvindo música. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ulloa colocou uma música do cantor e compositor chileno Manuel García em dueto com Mon Laferte e mostrou a Vescovo fotos de seus filhos, que moram na Suécia. Por sua vez, Vescovo escolheu Tequila Sunrise, do grupo The Eagles, e contou-lhe sobre suas motivações para explorar as profundezas. Entre risos, decidiram que quando voltassem teriam tempo de ver um trecho da série espanhola El Cid. E assim foi. Em algum momento da descida, comeram metade dos sanduíches: de atum para Vescovo e salada de ovos para Ulloa. Uma vez no fundo, Vescovo manobrou a espaçonave sobre um incrível terreno de vales, cordilheiras e outras formações rochosas que trarão informações importantes sobre a geologia característica desta região do planeta. "Também ficamos impressionados com o grande número de holotúrias, uma espécie de pepino-do-mar que foi encontrada em outras trincheiras, mas que estava presente em grande abundância aqui", diz Ulloa. "Mas se há algo que eu, como microbiologista, queria nesta expedição, era encontrar "tapetes" de colônias de micróbios. E é por isso que vê-los com meus próprios olhos foi algo extraordinário, a confirmação pela primeira vez de sua existência na Fossa do Atacama e a mais de 8.000 metros. Para Rubén Escribano, de 64 anos, a experiência, dois dias depois, foi igualmente intensa. Como seu interesse é a fauna, Vescovo desceu apenas até 7.330 metros, explorando a vertente leste da Fossa em busca de organismos mais abundantes. Eles encontraram criaturas inesperadas para tais profundidades, como corais de água fria e uma estrela do mar solitária. Eles também foram capazes de observar animais presentes em maior número do que em qualquer outra Fossa estudada até agora. Incluindo vermes poliquetas, crustáceos anfípodes e outras criaturas hadais, que só agora começaram a ser estudadas. "Disseram-me que tínhamos que estudar a Fossa, mas não me disseram que tínhamos que ir até lá", brincou Escribano, assim que saiu do submersível e pisou no convés. "Foi algo mágico, como pousar em outro planeta e ver as estruturas construídas por esses seres. Imaginei que fossem pequenas cidades feitas por vermes e crustáceos que fazem caminhos no sedimento." A Expedição Atacama Hadal também fez mapas em alta resolução de vários trechos da Fossa do Atacama, que, com 5.900 quilômetros de extensão, é uma das fendas mais longas do oceano profundo. Uma estrutura formidável que nasce onde a placa de Nazca afunda sob a da América do Sul, o que causa os terremotos e tsunamis que atingem essa região. Os mapas serão fundamentais para determinar o local ideal para instalar os sensores de um futuro projeto para estabelecer o primeiro sistema de observação ancorado no fundo do oceano, um esforço titânico em construção pela comunidade científica chilena. Estudar como as condições físicas, geoquímicas e biológicas presentes na área mudam ao longo do tempo forneceria a base científica que pode ser usada para eventualmente observar os efeitos das mudanças climáticas em altas profundidades. E para entender melhor os processos que causam grandes terremotos e tsunamis na região. "Tivemos um acesso único para dar um salto na ciência oceanográfica chilena e estou confiante de que essa conquista inspirará novas gerações", disse Ulloa. Por sua vez, Vescovo diz estar comprometido com o esforço de continuar mapeando dezenas de milhares de quilômetros quadrados por mês para apoiar a iniciativa GEBCO 2030, que busca concluir o mapeamento de todo o fundo do mar até 2030.
2022-01-31
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60176963
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5 cidades ao redor do mundo que estão debaixo d’água
Escondidas debaixo d'água, vilas e cidades perdidas podem ser encontradas em diferentes lugares do mundo. Se você pensou na mítica cidade submersa de Atlântida, esqueça. Estamos falando de lugares que já estiveram repletos de gente, mas foram "engolidos" por desastres naturais, pelo aumento do nível do mar ou inundações propositais. E onde mosaicos intrincados, estátuas imponentes e hieróglifos surpreendentes, que antes estavam em terra firme, foram parar debaixo d'água. A seguir, a BBC apresenta para você algumas destas cidades submersas: Era uma cidade de festas para os antigos romanos. Fim do Matérias recomendadas Baiae em latim (Baia, em italiano) era famosa por suas águas termais relaxantes, pelo clima agradável e por suas construções extravagantes. Mais de 2 mil anos atrás, era considerada a Las Vegas do Império Romano: um balneário localizado a aproximadamente 30 quilômetros de Nápoles, na ardente e sedutora costa oeste da Itália, que satisfazia os caprichos dos poetas, generais e de quem se aventurasse por lá. Júlio César e Nero tinham casas de veraneio luxuosas lá. E o imperador Adriano morreu na cidade no ano 138 d.C. A mesma atividade vulcânica que criou as famosas águas termais também levou Baia a ficar submersa. A cidade havia sido construída no Campi Flegrei (Campos Flégreos), um supervulcão perto de Nápoles. Com o passar do tempo, ocorreu um processo conhecido como bradissismo — movimento gradual de subida e descida da superfície da Terra causado pela atividade sísmica e hidrotermal —, no qual o solo cedeu lentamente de quatro a seis metros, submergindo grande parte da cidade. Desde 2002, as áreas submersas de Baia foram designadas Área Marinha Protegida pelas autoridades locais, o que significa que apenas mergulhadores licenciados podem, com um guia local, explorar as ruínas. Mencionada com frequência em lendas antigas, Thonis-Heracleion foi supostamente o lugar em que o herói grego Hércules pisou pela primeira vez no Egito, e também um local visitado pelos amantes Páris e Helena antes da Guerra de Troia. Thonis é o nome egípcio original da cidade, enquanto Heracleion é o nome grego em homenagem a Hércules. Ela está localizada na foz ocidental do Rio Nilo e, no passado, foi um porto próspero. Mercadorias de todo o Mediterrâneo passavam por sua complexa rede de canais, como foi evidenciado pela descoberta de 60 naufrágios e mais de 700 âncoras na região. Um dos artefatos mais impressionantes recuperados na cidade submarina é o Decreto de Sais. Na lousa de pedra preta, com dois metros de altura, que estava gravada com hieróglifos do início do 4 a.C., foram revelados detalhes cruciais do sistema fiscal egípcio da época, além de confirmar que Thonis-Heracleion era uma única cidade. A vila de Derwent, em Derbyshire, foi submersa propositalmente para a criação do reservatório Ladybower. À medida que cidades como Derby, Leicester, Nottingham e Sheffield se expandiam em meados do século 20, suas populações cada vez maiores exigiam um fornecimento maior de água. Por isso, foi necessário construir uma barragem e um reservatório. A princípio, o plano era construir dois reservatórios, Howden e Derwent, para poder salvar a vila. No entanto, logo ficou claro que não seria suficiente — e foi necessário um terceiro. As obras começaram em 1935 e, em 1945, a vila Derwent estava completamente submersa. Durante os verões particularmente quentes, os níveis da água do reservatório de Ladybower podem baixar o suficiente para que as ruínas submersas de Derwent voltem a ficar visíveis, e os visitantes possam passear por elas. Durante quase 25 anos, o balneário de Villa Epecuén ficou escondido sob as águas, antes de ressurgir em 2009. Fundado em 1920 às margens de um lago salgado, o Epecuén, na província de Buenos Aires, recebia milhares de turistas que queriam tomar banho em suas águas, que diziam ter propriedades curativas. O lago costumava inundar e secar naturalmente, mas a partir de 1980 aconteceu algo incomum: choveu muito por vários anos, o que fez com que o nível da água começasse a subir. Assim, foi construído um muro em seu arco para oferecer proteção adicional à cidade. Porém, uma tempestade em novembro de 1985 fez com que o lago transbordasse e uma barragem se rompeu. Os moradores conseguiram abandonar o local em segurança, mas a região ficou sob 10 metros de água salgada e corrosiva. Desde 2009, os níveis da água estão recuando e expondo a Villa Epecuén novamente. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Atualmente, Port Royal é uma tranquila vila de pescadores. Porém, em seu auge, no século 17, era conhecida como "a cidade mais malvada da Terra", em razão da sua população de piratas. Importante centro de comércio no Novo Mundo, inclusive durante o tráfico de pessoas escravizadas, Port Royal expandiu rapidamente. Em 1662, havia 740 habitantes registrados na cidade. Já em 1692, sua população era estimada em de 6,5 mil a 10 mil habitantes. Os moradores viviam em casas de tijolo ou madeira, muitas vezes com até quatro andares. Perto de meio-dia de 7 de junho de 1692, Port Royal foi atingida por um forte terremoto, seguido por um tsunami. Aproximadamente dois terços da cidade ficaram submersos, começando pelos armazéns localizados na costa da região. A estimativa é de que cerca de 2 mil pessoas morreram naquele dia e muitas ficaram feridas. Hoje em dia, é possível mergulhar nas ruínas preservadas e ao redor de centenas de barcos naufragados. Mas é preciso solicitar uma permissão às autoridades locais.
2022-01-30
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60119576
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'A única saída é o aeroporto': por que jovens profissionais abandonam em massa a Argentina
Anat Procianoy tinha 19 anos quando deixou seu país natal, a Argentina, e se mudou para Israel. Era fevereiro de 2002, e o país sul-americano atravessava a pior crise econômica, política e social da sua história recente. O presidente do país — o quinto, em menos de duas semanas — havia determinado a conversão em pesos argentinos dos depósitos bancários em dólares, provocando uma desvalorização repentina que, de um momento para outro, eliminou três quartos do valor das economias de milhões de pessoas. Dezenas de milhares de argentinos deixaram o país durante a chamada "crise de 2001". Muitos, como os pais de Anat, haviam perdido seu trabalho ou precisaram fechar seus empreendimentos comerciais, o que os levou a começar a vida novamente em outros países. Quando a Argentina conseguiu recuperar sua economia, alguns anos depois, e se estabilizou politicamente, alguns dos emigrantes começaram a voltar. Foi o caso de Anat, que se mudou novamente para a Argentina em 2011, já com 29 anos de idade, e hoje, passados mais dez anos, vive nas redondezas da capital Buenos Aires com seu marido e filho. Fim do Matérias recomendadas Embora seu país esteja mergulhado em uma nova crise econômica, com uma inflação anual de mais de 50% e uma das moedas mais desvalorizadas do mundo, ela garante que não se arrepende de ter voltado e afirma que, enquanto continuar a ter trabalho, pensa em permanecer na Argentina. Mas ela destacou para a BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC) que, nos últimos tempos, vem observando uma tendência que traz muitas lembranças do que ela viveu duas décadas atrás. "Tenho vários amigos e conhecidos que estão indo embora", ela conta. "Alguns já foram, outros planejam ir neste ano." Anat não tem dúvidas de que o país está atravessando outra grande onda migratória — um fenômeno que boa parte da imprensa local vem chamando de "êxodo". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A BBC News Mundo consultou a Direção Nacional de Migrações (DNM) da Argentina sobre qual seria os números mais recentes de emigrantes, mas um porta-voz do organismo explicou que não poderia fornecer essa informação. Ele destacou que o motivo é "proteger os dados pessoais" dos viajantes, depois de supostas manipulações no banco de dados migratórios durante o governo anterior, algo ainda sob investigação. Mas o site de notícias A24 publicou, em outubro de 2021, estatísticas obtidas da DNM após um pedido de acesso a informações públicas, que indicam que, entre setembro de 2020 e junho de 2021, quase 60 mil pessoas emigraram do país — o que equivale a cerca de 200 emigrantes por dia. Esse número é o total das pessoas que preencheram "mudança" como motivo de viagem na sua declaração juramentada, antes de saírem do país. Mas especialistas indicam que o número de migrantes poderá ser muito maior, já que nem todos que planejam mudar-se de forma definitiva declaram essa situação nos seus documentos de viagem. "Não são só os que declaram mudança que se vão. Existem outros que declaram viajar para turismo ou estudos, mas que podem também ser emigrantes", alertou ao site A24 o diretor do Instituto de Políticas de Migrações e Asilo (IPMA) da Argentina, Lelio Mármora. Mais de 445 mil argentinos viajaram para "turismo" naqueles 10 meses e quase 15 mil saíram do país para "estudo". Outros 180 mil declararam "residência" como motivo da sua viagem, enquanto mais de 142 mil afirmaram que viajavam a "trabalho" no mesmo período. A Espanha é o destino de um quarto dos viajantes que reconheceram estar se mudando do país, segundo as informações fornecidas pela DNM ao site A24. Os outros destinos mais populares foram países vizinhos — Paraguai, Brasil, Chile e Uruguai — e outros 5% mudaram-se para os Estados Unidos. Não é fácil fazer comparações entre o êxodo atual e a emigração de 2001 porque, naquela época, não existiam as declarações juramentadas indicando o motivo da viagem. Além disso, a população argentina, duas décadas atrás, era menor. Mas é possível usar como referência um trabalho publicado em 2003 pelo sociólogo Fernando Esteban, que estimou que "118.087 argentinos abandonaram o país" entre 2000 e 2001. A partir desse parâmetro, é possível estimar que, naquela época, a média foi de cerca de 160 emigrantes por dia — o que leva algumas pessoas a advertir que a onda atual de emigração não tem precedentes na Argentina. Mais importante que os números é o fato destacado por grande parte da imprensa de que o fenômeno migratório atual é protagonizado por jovens profissionais, muitos deles com alta qualificação, o que significa uma perda considerável para a Argentina. Esse panorama é diferente do ocorrido em 2001, quando a emigração era muito mais heterogênea, tanto do ponto de vista etário quanto profissional — e até socioeconômico. Outra diferença é que, duas décadas atrás, muitos foram embora com o pouco que tinham. Um grande número de pessoas havia perdido a maior parte das suas economias no chamado "corralito" financeiro. Mas, agora, os emigrantes parecem estar viajando muito mais bem preparados, tanto logística quanto economicamente. E Anat percebeu isso. "O que se vê agora está muito longe do contexto que vivíamos em 2001", destaca ela. "As pessoas que estão saindo agora são diferentes. Elas têm tempo de planejar. Não estão fugindo para poder dar de comer aos seus filhos." De fato, Anat ressalta que todos os seus amigos que já saíram ou planejam sair do país têm (ou tinham) boa posição econômica na Argentina. É o caso, por exemplo, da sua amiga Daniela Mansbach, engenheira com 38 anos de idade que se mudou para a Espanha em julho de 2021, com seu marido e os dois filhos pequenos. Embora ela tenha documentos europeus graças à sua ascendência alemã, Daniela sabe que conseguir trabalho na Espanha não será fácil. "Nós vendemos nossa casa na Argentina e viemos dispostos a viver de nossas economias por algum tempo", ela conta à BBC News Mundo, em Madri. Questionada sobre o motivo de todo esse sacrifício se a família tinha uma boa vida em Buenos Aires, Daniela responde: "Viemos pelos nossos filhos", citando o aumento da pobreza em sua terra natal — e o temor de que essa pobreza continue crescendo. "Não queremos viver assim e não queremos que nossos filhos vivam assim no futuro." "Economicamente, nós estávamos bem por lá", reconhece Daniela. "Tínhamos a vida que queríamos. Eu havia até deixado de trabalhar durante a pandemia para cuidar da minha filha, que tinha três meses." Daniela conta que outro fator que os influenciou foi a decisão do governo argentino de fechar as escolas por cerca de um ano e meio durante a pandemia de coronavírus. Esse fechamento afetou centenas de milhares de crianças de famílias humildes, que não tiveram possibilidade de prosseguir com sua educação de forma virtual. "Como eles vão recuperar o tempo que ficaram sem aulas? É uma situação que, no futuro, terá consequências muito sérias para o país", afirma ela. Daniela conta que, no bairro onde moram, nas redondezas de Madri, existem muitas famílias de argentinos recém-chegados como a sua, com crianças pequenas. "Você não imagina a quantidade de pessoas de nossas relações que chegaram um mês antes ou depois de nós e que também vieram com suas economias, dispostas a gastá-las até que se estabeleçam", afirma ela. Daniela acrescenta que a maioria tem cidadania europeia e alguns começaram a procurar trabalho na Espanha antes de mudar-se. Outros chegaram dispostos a iniciar seus próprios empreendimentos. Mas todos compartilham do mesmo pessimismo sobre o seu país de origem. "Perdemos totalmente a esperança de que algo possa mudar na Argentina", lamenta ela. Muitos dos que decidem sair do país expressam essa mesma desesperança. Mas, no caso dos mais jovens, além da preocupação sobre o futuro, soma-se a exaustão sobre o presente. "Há muitos anos eu vinha ouvindo que o país estava cada vez pior: a inflação, o dólar que disparou. Meus pais estavam estressados, meus avós estavam estressados", conta Alexis Lewin, de 26 anos, que vivia com a família em Buenos Aires. "Todos me diziam que, quando eram mais jovens, as coisas não eram assim. E, além de ouvi-los, eu estava vivendo isso", destaca o jovem, que é formado em administração de negócios globais. Embora ele tivesse um bom emprego em uma empresa conhecida, Alexis afirma que o salário não cobria o aluguel do seu próprio apartamento, nem o custo de viagens para o exterior. "Eu não via luz no fim do túnel, não via possibilidade de viver sozinho. Eu e minha companheira tínhamos que nos matar para pagar o aluguel e nem sonhávamos em ter filhos", contou ele à BBC News Mundo. "Eu me levantava todo dia e perguntava: 'Para quê? Para que continuo aqui se o meu objetivo é aproveitar a vida?'" "Eu me reunia com meus companheiros de ensino médio e da faculdade e todos estávamos na mesma [situação]: adoramos a Argentina, amamos o país, amamos as pessoas e o grupo de amigos que criamos, mas não temos futuro", conta ele. Foi isso que fez com que Alexis, em abril de 2021, aproveitasse as facilidades oferecidas pelo Estado de Israel para os judeus que desejam mudar-se para lá. E, quando chegou ao aeroporto para embarcar para Tel Aviv, em Israel, encontrou um grande número de jovens compatriotas na casa de 20 anos de idade como ele, dispostos a enfrentar a mesma aventura. Alexis confessa que emigrar foi muito mais difícil que ele pensava. Ele precisou aprender hebraico e — como acontece com muitos recém-chegados em todo o mundo — o primeiro trabalho que conseguiu estava longe de ser o ideal para alguém com diploma universitário. "Trabalhei em um call center. Foi péssimo", reconhece ele. "Muitos dos meus colegas argentinos trabalharam como garçons ou limpando residências. Também passeavam com cachorros." Mas Alexis destaca que, três meses depois de concluir seus estudos do idioma hebraico, ele conseguiu emprego em uma empresa israelense de alta tecnologia. "Tive muita sorte. É um luxo. O salário é muito bom e também as condições", ressalta ele, orgulhoso. "Israel oferece muitas oportunidades", afirma Alexis. "Na Argentina, tudo era para sobreviver. Era muito frustrante. A única saída era ir para o aeroporto, tomar um avião e ir viver em outro país." Camila Levin, produtora teatral argentina com 28 anos de idade que também tem passagens compradas para mudar-se para Israel em maio, expressa sentimentos similares. "Aqui é trabalhar, trabalhar, trabalhar e não chega", afirma ela. "Não estou saindo feliz da vida, dói muito ter que me mudar. Tenho uma história aqui, meus amigos estão aqui. Mas não tenho possibilidade real de desenvolvimento." Diferentemente de Alexis Lewin, ela não emigrará sozinha. Camila irá com seus pais, ambos psiquiatras, com quem vive no bairro nobre de Belgrano, em Buenos Aires. Ela conta: "hoje não consigo pagar um aluguel sozinha e essa é uma das razões por que decidi me mudar". "Meus pais também querem ir porque sentem que não vão ter uma boa velhice por aqui", destaca ela. "Por mais que amem sua profissão, eles vão querer se aposentar algum dia, como qualquer pessoa, mas aqui terão que morrer trabalhando para poder sobreviver." Camila menciona outro motivo para querer sair do país, além do econômico: a insegurança. "Em 2019, fui assaltada com um revólver em plena rua, depois de me roubarem o celular", ela conta. Camila afirma que esse tipo de violência a preocupa muito mais que o que pode eventualmente enfrentar em Israel, que vive um dos conflitos armados mais prolongados do mundo. "Tenho mais chances de que me matem nas ruas de Buenos Aires por um celular do que um míssil cair na minha cabeça em Israel", opina. A insegurança é algo que todos os entrevistados mencionaram. Patrícia — que preferiu não informar seu nome verdadeiro porque ainda atende pacientes virtualmente na Argentina — é uma psicóloga de 34 anos que viajou para a Europa em maio de 2021 "por amor". Seu romance não seguiu adiante, mas ela decidiu tentar a sorte em Barcelona, na Espanha, onde reside atualmente. "Existem coisas que mudaram muito minha cabeça", conta ela. "Já não dou meia volta quando alguém vem correndo ao meu lado por medo de que irá me assaltar. Na Argentina, isso era muito natural." Ela, Alexis Lewin e Daniela Mansbach também ressaltam que, fora da Argentina, podem organizar um orçamento, sem precisar levar em conta uma inflação galopante. "Aqui, as coisas não aumentam [de preço]", ressalta Patrícia, que estava acostumada a conviver com preços que aumentavam cerca de 4% por mês no seu país. "Temos previsibilidade, você sabe quanto ganha, quanto gasta e isso diminui muito o estresse", concorda Daniela. "[Consigo] ir ao supermercado quando quero e não só nos dias de desconto com meu cartão de crédito, como na Argentina." "Aqui, o dinheiro chega [para as despesas]", comenta Alexis, que se sente "tranquilo" por saber que "o queijo custa tanto e o frango, tanto — e que , daqui a dois meses, custará o mesmo". Todos esses motivos explicam por que diversas pesquisas publicadas na imprensa local demonstram que um grande número de jovens — mais da metade, em todas as consultas — decidiria mudar-se da Argentina, se pudesse. Mas aqueles que se mudaram reconhecem que emigrar não é fácil e que sentem falta de muitas coisas do seu país. "Eu não voltaria neste momento, mas existe algo 'romantizado' sobre morar fora... é muito difícil o desapego, não entender coisas por mais que seja o mesmo idioma, uma porção de coisas", afirma Patrícia. "Quando você conta que está na Europa, as pessoas na Argentina dizem 'que lindo!'. Sim, é lindo, mas é difícil", conclui ela.
2022-01-29
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A história por trás da foto de sobrevivente de naufrágio na Flórida
A fotografia de um jovem sentado sobre o casco de um barco virado no meio do mar na costa da Flórida rodou o mundo. Trata-se de Juan Esteban Montoya, de 22 anos, da Colômbia, conforme apurou a BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC. O jovem, que foi resgatado na terça-feira (25/1) após passar horas à deriva, disse que deixou as Bahamas na madrugada de domingo com outras 39 pessoas. Ele estava viajando com sua irmã mais nova, María Camila, que desapareceu no naufrágio. A Guarda Costeira dos EUA resgatou cinco corpos do mar antes de encerrar suas buscas — em uma área marítima do tamanho do estado americano de Nova Jersey — na quinta-feira (27/1). Fim do Matérias recomendadas As autoridades foram alertadas sobre o ocorrido na terça-feira, quando um navio comercial avistou um homem agarrado ao casco de um barco a cerca de 72 km de Fort Pierce, na Flórida. As autoridades americanas acreditam que a embarcação poderia ser parte de um "esquema de contrabando de pessoas". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Nenhum dos 40 passageiros estava usando colete salva-vidas, segundo contou Montoya, que é do município de Guacarí, na região do Vale do Cauca, na Colômbia. Ele foi resgatado na terça-feira, quando o capitão do rebocador, Signet Intruder, o avistou em apuros. "Às 8h05, nós o trouxemos a bordo, e ele foi tratado imediatamente. Já que estava desidratado, demos a ele água e um pouco de comida. Ele estava muito fraco e muito angustiado", contou o gerente de operações da companhia de navegação Signet, na Flórida, ao jornalista Atahualpa Amerise, da BBC News Mundo. "Ele nos disse que havia 40 pessoas em seu barco no total, incluindo ele, e que, depois de deixar Bimini à meia-noite de sábado para domingo, eles completaram quatro horas de viagem até que o mau tempo fez o barco virar". Cerca de 20 pessoas ainda teriam resistido horas agarradas ao casco da embarcação, segundo Montoya contou à tripulação. A capitã Jo-Ann Burdian, comandante da Guarda Costeira do setor de Miami, disse em entrevista coletiva que o incidente ocorreu em uma rota "habitual" de contrabando de pessoas das Bahamas para o sul dos EUA. As condições meteorológicas no domingo incluíam uma frente fria severa, ondas altas e ventos fortes. A ilha de Bimini é o distrito mais ocidental das Bahamas e fica a apenas 80 quilômetros de Miami. Incidentes envolvendo embarcações lotadas de pessoas não são incomuns nas águas da Flórida. Muitos casos envolvem migrantes de Cuba e do Haiti tentando chegar aos EUA. Na terça-feira, mesmo dia em que as autoridades souberam do naufrágio, a Guarda Costeira interceptou 191 cidadãos haitianos nas águas próximas às Bahamas. Em outro incidente, apenas alguns dias antes, 88 haitianos foram encontrados em um barco superlotado na área. "Navegar pelos Estreitos da Flórida, os Canais de Mona e Barlavento em embarcações superlotadas e aquém das condições adequadas à navegação é extremamente perigoso e pode resultar em perda de vidas", alertou a Guarda Costeira em comunicado.
2022-01-28
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60167061
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'Lixo do mundo': o gigantesco cemitério de roupa usada no deserto do Atacama
O calor é extenuante. Ao meu redor só há terra, areia e algumas aves de rapina que dão voltas pelo ar em busca de animais mortos. O silêncio é desolador. São 11 da manhã de uma segunda-feira de dezembro. Estou no imenso deserto do Atacama, no norte do Chile, na altura da cidade de Iquique - situada a 1.800 km da capital Santiago. A alguns metros consigo avistar uma enorme montanha. Vamos nos aproximando pouco a pouco em um caminho improvisado e sem marcas de trilha. A imagem vai ficando cada vez mais nítida. Sapatos, camisetas, casacos, vestidos, gorros, trajes de banho e até luvas para neve formam essa surpreendente montanha. São peças inexplicavelmente abandonadas em pleno deserto. É roupa descartada pelos Estados Unidos, pela Europa e Ásia, enviada ao Chile para ser revendida. Fim do Matérias recomendadas Das 59 mil toneladas importadas todos os anos, grande parte (algo como 40 mil toneladas) não é vendida - acaba no lixo. A maioria fica nas cercanias de Alto Hospicio, uma comunidade com altos níveis de pobreza e vulnerabilidade. Em novembro, imagens desse lixão deram a volta ao mundo. Quisemos ir até lá para averiguar com profundidade o que está acontecendo. Caminhões carregados com fardos de roupa usada entram e saem da Zona Franca de Iquique, mais conhecida como Zofri. Este paraíso das compras abriga um imenso parque industrial onde operam mais de mil empresas que comercializam seus produtos isentos de impostos. Seu lugar estratégico no norte do Chile - a poucos quilômetros do porto do Iquique - transforma a área em um importante centro comercial para outros países latino-americanos como Argentina, Brasil, Peru e Bolívia. Aqui estão instaladas ao menos 50 importadoras que diariamente recebem dezenas de toneladas de peças de segunda mão que depois são distribuídas por todo o Chile para revenda. O negócio é imenso e completamente legal. De acordo com o Observatório de Complexidade Econômica (OEC), uma plataforma que registra diversas atividades econômicas pelo mundo, o Chile é o maior importador de roupa usada na América do Sul, recebendo 90% desse tipo de mercadoria na região. Os proprietários das importadoras têm nacionalidades distintas: alguns são de países longínquos como o Paquistão. Com um domínio precário do espanhol, vários se recusam falar sobre o assunto. "Ninguém quer se responsabilizar", diz um dos importadores. Após várias tentativas, a fundadora da PakChile, Paola Laiseca, explica à BBC Mundo como funciona o negócio. "Nós trazemos roupa dos Estados Unidos, mas também chega da Europa", diz ela, sentada no escritório de um imenso galpão onde se acumulam vários fardos de peças de segunda mão. A maioria dessas roupas foi doada a organizações de caridade em países desenvolvidos. Muitas vão para locais de distribuição ou são entregues a pessoas necessitadas. Mas o que não é aproveitado (por defeito na peça, por exemplo) segue para países como Chile, Índia ou Gana. Laiseca explica que ao porto de Iquique chegam peças de qualidades distintas. "A roupa usada vem em sacos e nós aqui fazemos uma seleção dividida em primeira, segunda e terceira categoria." "A primeira é das melhores peças, sem defeitos, sem manchas, impecáveis. A segunda pode ter peças sujas ou descosturadas. Na terceira há produtos mais deteriorados", explica. A empresária diz que as peças de terceira categoria são, sim, vendidas (e que ela só descarta 1% de tudo o que é importado). Mas autoridades locais ouvidas pela BBC Mundo afirmam que grande parte acaba em lixões clandestinos. "Sabe-se que ao menos 60% [do que se importa] é resíduo ou descartável e é isso que forma os montes de lixo", afirma Edgard Ortega, responsável pela área de meio ambiente na municipalidade de Alto Hospicio. No Chile é proibido descartar têxteis até em depósitos legais porque causa instabilidade do solo. Assim, não há, em teoria local, para jogar fora o que não se comercializa. Laiseca reconhece que existem pessoas que recebem dinheiro para descartar a roupa que não é vendida. De acordo com Patricio Ferreira, prefeito de Alto Hospicio, os importadores da zona franca "contratam carreteiros ou um caminhão coletor e pagam para que deixem em qualquer lugar". Carmen García, que veio da pequena cidade de Colchane, compra roupa dos importadores para revender na imensa feira de La Quebradilla, em Alto Hospicio. É possível encontrar marcas como H&M, Pepe Jeans, Wrangler e Nike. Os preços são incrivelmente baixos: por menos de US$ 1 é possível comprar uma camiseta ou calças. "Tudo o que você vê aqui vem da Zofri", diz ela, mostrando sua barraca com araras cheias de roupa. García diz que compra tudo por saco, sem garantia do que vem dentro. "Com sorte você se dá bem. Mas tem vezes que tudo acaba no lixo", diz. Quando questionada onde essa roupa vai parar, ela diz, sem dar muitos detalhes, que as peças são doadas para pessoas necessitadas. A indústria da moda está entre as mais poluentes do mundo, depois da indústria do petróleo. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), ela é responsável por 8% dos gases do efeito estufa e por 20% do desperdício de água no mundo. Para produzir uma peça de jeans são gastos algo como 7.500 litros de água. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Além disso, grande parte da roupa está cheia de poliéster, um tipo de resina plástica derivada do petróleo e que oferece grandes vantagens em relação ao algodão: mais barato, pesa pouco, seca rápido e não amassa. O problema é que demora 200 anos para se desintegrar - o algodão leva 2 anos e meio. E aqui, no deserto do Atacama, a maioria das peças estão cheias justamente de poliéster. Camisetas esportivas, trajes de banho ou shorts brilham como novos, mas provavelmente estão há meses ou anos nas pilhas de lixo. Com o passar do tempo, as roupas se desgastam e liberam microplásticos que acabam na atmosfera, afetando fortemente a fauna marítima ou terrestre das cercanias. Outra coisa que preocupam as autoridades são os incêndios que anualmente ocorrem nos lixões clandestinos. "Como não há um dispositivo legal, a única solução é queimar [a roupa]. E a poluição da fumaça é um grande problema", explica Eduardo Ortega. "São provocados incêndios anuais de grandes proporções, que duram entre dois e dez dias." Segundo o departamento de meio ambiente da região de Tarapacá, a fumaça pode provocar doenças cardiorrespiratórias nos moradores de áreas próximas aos lixões, a maioria deles imigrantes ilegais que se instalam em casas improvisadas e em mau estado. "Há populações que vivem nesses lixões, que inalam diretamente os gases produzidos e ficam sujeitas a doenças cardiorrespiratórias", diz Gerson Ramos, responsável pelos resíduos da secretaria regional de meio ambiente. Nesses depósitos é comum encontrar imigrantes que escavam as montanhas de roupas para achar uma peça para vestir ou ganhar algumas moedas com revenda. "Como não podem trabalhar formalmente procuram peças nos lixões para vender por um preço mínimo. E isso gera um problema porque o lixo se dispersa ainda mais", diz Ortega. "Os pobres pagam o pato por esse modelo de negócio que ninguém quer se responsabilizar", afirma. O problema da roupa no deserto do Atacama não é novo. Faz cerca de 15 anos que os descartes têxteis se acumulam nesse lugar icônico, mas agora o problema tem atingido proporções gigantescas, afetando 300 hectares (algo como 420 campos de futebol) da região, segundo a secretaria de meio ambiente de Tarapacá. A solução, no entanto, não é simples. No momento, há dois planos em andamento: um programa de erradicação de lixões clandestinos e a incorporação da roupa usada à Lei de Responsabilidade Estendida do Produtor, que estabelece obrigações para empresas importadoras. Mas ainda faltam passos importantes para que os planos sejam colocados em prática: no caso do primeiro, é necessária a aprovação do governador regional e, no caso do segundo, ainda é preciso elaborar o decreto de regulamentação. "Não é fácil conciliar tantos interesses para uma solução ampla e incisiva, como proibir a entrada de roupa usada, isso não é factível", diz Moyra Rojas, secretária de meio ambiente da região de Tarapacá. A falta de fiscalização e controle na área faz com que seja muito fácil descartar as peças em depósitos ilegais. "Alto Hospicio é uma área vulnerável, que tem um orçamento muito baixo. Não podemos contratar mais fiscais, não recebemos recursos", declara Ortega. Com a falta de soluções reais - e o aumento indiscriminado da chamada "fast fashion" - a roupa segue se acumulando todos os dias nesse deserto inóspito. Bonecas velhas e jogos infantis escondidos entre as montanhas do deserto evidenciam a passagem do tempo e, de alguma forma, o abandono de uma área distante dos países desenvolvidos - de onde sai muito da roupa descartada aqui. "Ninguém quer viver em um lixão", diz Ferreira. "E lamentavelmente transformamos nossa cidade no lixão do mundo", conclui.
2022-01-28
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60144656
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Venda de 'águia nazista' envolve Uruguai em polêmica internacional
O Uruguai enfrenta um delicado problema que evoca os tempos da Segunda Guerra Mundial: como vender uma águia de bronze que pertenceu a um encouraçado nazista? A questão agora está sendo debatida, depois que a justiça uruguaia ordenou que o Estado se desfaça da peça — que tem uma suástica sob as garras do pássaro —, para pagar a quem a extraiu do fundo do Rio da Prata. O emblema pertencia ao Admiral Graf Spee, um sofisticado navio de guerra do Terceiro Reich afundado na Baía de Montevidéu após uma batalha com navios britânicos em 1939. Para o governo uruguaio, a questão tornou-se mais pesada do que as três toneladas que a escultura de bronze e as asas estendidas marcam na balança. Tanto a Alemanha quanto as organizações judaicas alertam que existe o risco de que o símbolo vá a leilão e contribua para exaltar o nazismo. Fim do Matérias recomendadas "Alemanha e Uruguai compartilham o interesse de que o objeto não seja leiloado e, portanto, não seja usado incorretamente para glorificar o regime nazista", disse uma fonte oficial do Ministério das Relações Exteriores da Alemanha à BBC Mundo. Mas, para entender como se chegou a essa situação, é preciso voltar no tempo. A Batalha do Rio da Prata, que ocorreu no Graf Spee em 13 de dezembro de 1939, foi um dos primeiros duelos navais entre a Alemanha e o Reino Unido na Segunda Guerra Mundial. Foi também a única batalha daquele conflito bélico em águas latino-americanas. O veloz navio alemão, um "encouraçado de bolso" com seis canhões de 280 milímetros, cruzava o Atlântico Sul caçando navios aliados quando três cruzadores (navios de guerra) britânicos o avistaram e enfrentaram perto de Punta del Este, no litoral sul do Uruguai. Após intensos combates que ceifaram mais de cem vidas, o Graf Spee foi afundado na baía de Montevidéu por ordem de seu próprio capitão, Hans Langsdorff, que temia que os britânicos se apoderassem de sua tecnologia. Dias depois, Langsdorff suicidou-se em Buenos Aires. O navio, com sua águia de bronze com mais de dois metros de altura ainda na popa, permaneceu no fundo do Rio da Prata por 67 anos, até que uma empresa privada recuperou a escultura em 2006. A tarefa foi realizada com "visibilidade zero e risco muito alto devido ao ferro retorcido do navio, que se partiu em dois", diz Alfredo Etchegaray, um profissional de relações públicas uruguaio e organizador de eventos, que promoveu a missão com seu irmão após um acordo com o Estado de seu país. Junto com a águia, porém, surgiram problemas inesperados. Etchegaray queria leiloar a peça, mas as autoridades uruguaias na época congelaram os planos por suspeitas de que o certame poderia atrair simpatizantes do nazismo. Após ficar um mês exposta em um hotel em Montevidéu, a águia foi mantida em um complexo militar sob custódia da Marinha uruguaia. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A disputa foi à Justiça e um tribunal de apelações do Uruguai confirmou em 24 de dezembro uma decisão de que o Estado deve vender a escultura e entregar metade do dinheiro obtido aos resgatistas privados, com base no contrato entre as partes. O governo uruguaio ainda pode levar o assunto ao Supremo Tribunal de Justiça, e o Ministério da Defesa do país antecipa que "certamente se recorrerá" da sentença. "Ainda há um longo caminho a percorrer", disse uma fonte da pasta à BBC Mundo. "A posição do governo é garantir por todos os meios que isso não leve de forma alguma a qualquer tipo de culto nazista." Mas Carlos Rodríguez Arralde, advogado de Etchegaray, diz que "chama a atenção" que ninguém do Estado uruguaio tenha se comunicado com eles em busca de uma solução. "Se [o Estado] não chegar a um acordo conosco, ele tem que vender as peças", diz. Seu cliente diz que, em um leilão internacional com diferentes licitantes, ele acredita que poderiam ser obtidos cerca de US$ 50 milhões (R$ 270 milhões) pela águia. Com a confirmação da decisão da Justiça uruguaia, nas últimas semanas ressurgiram as preocupações sobre o que acontecerá com o antigo emblema do Graf Spee. Objetos desse tipo têm três destinos possíveis, diz Ariel Gelblung, diretor para a América Latina do Simon Wiesenthal Center, uma organização judaica global de direitos humanos que investiga o Holocausto e o ódio em contextos históricos e contemporâneos. Uma possibilidade é que alguém queira ter a peça trancada em casa, explica. Outra, que sirva para expor os danos causados ​​pelo regime nazista. Segundo o especialista, nenhuma dessas alternativas seria censurável. "A terceira [opção é que comprem] para reivindicar o que aconteceu. Esse caso acreditamos estar no âmbito criminal e essa é a preocupação", diz Gelblung. No entanto, um empresário argentino radicado no Uruguai expressou outra motivação para adquirir a águia nazista: destruí-la completamente e evitar que se tornasse objeto de culto. "Assim que a tiver em meu poder, imediatamente a explodirei em mil pedaços", disse Daniel Sielecki ao jornal Correo de Punta del Este. "Cada peça resultante da explosão será pulverizada." Etchegaray, por sua vez, traça um "plano B" diferente para a venda: destinar a águia a um memorial pela paz em Punta del Este, com uma tela no lugar da suástica, que exiba imagens dos tempos da guerra. Mas ele defende que, além de um consenso entre as partes, isso exigiria uma indenização milionária para os indivíduos que recuperaram a escultura, incluindo parentes do falecido mergulhador Héctor Bado. "Juntando um valor próximo a US$ 10 milhões [R$ 54 milhões], tudo pode ser resolvido", diz Etchegaray. "Tenho três filhos adotivos e dois filhos meus... Tenho a responsabilidade de deixar a eles pelo menos o suficiente para pagar seus estudos."
2022-01-28
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60162270
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Os 3 pilares da expansão chinesa na América Latina em 2 anos de pandemia de covid-19
Com a venda de milhões de doses de vacinas, a China está impulsionando sua indústria farmacêutica. Paralelamente, segundo os analistas, está também ampliando sua influência na América Latina e no Caribe. Esse processo recebeu o nome de "diplomacia da covid". Ele consiste na venda e doação de máscaras, respiradores, equipamentos de proteção e vacinas a outros países em meio à necessidade urgente de combater a crise sanitária nos diferentes picos da pandemia em todo o mundo. À medida que a produção do material foi se expandindo, essa prática avançou rapidamente na região latino-americana ao longo de 2021 — também com o propósito de formar acordos de coprodução de vacinas com vários países. Enquanto isso, o volume do comércio bilateral entre a China e a América Latina continuou aumentando. Projeções de Pequim indicam que, em 2021, ele atingiria um nível recorde de US$ 400 bilhões (R$ 2,27 trilhões). E os investimentos contratados antes da pandemia em projetos de energia e infraestrutura prosseguem, bem como o avanço das negociações comerciais sobre tecnologia (como no caso da tecnologia 5G no Brasil) e os empréstimos que a China vem oferecendo há anos para países com risco de crédito muito alto, como a Argentina e a Venezuela. Fim do Matérias recomendadas Ao mesmo tempo, as circunstâncias abriram as portas para novas aproximações políticas. É o caso da Nicarágua, que rompeu relações diplomáticas com Taiwan para estabelecer novas relações com Pequim. A pandemia "foi muito importante para a China porque ofereceu ao país um novo caminho para ampliar sua participação na região", segundo declarou à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) Pepe Zhang, diretor e membro do Centro Adrienne Arsht para a América Latina do centro de estudos Atlantic Council, nos Estados Unidos. Também conhecida como a "diplomacia das máscaras", ou a "diplomacia das vacinas", a doação e venda de produtos para enfrentar a pandemia no seu momento mais crítico fez com que a China se tornasse protagonista durante a crise sanitária na América Latina. Enquanto a Europa e, posteriormente, os Estados Unidos tratavam de conseguir respiradores, equipamentos de proteção, oxigênio, máscaras e tudo o mais que fosse necessário para salvar a vida dos seus habitantes frente à rápida expansão da covid-19, a China, onde irrompeu o surto inicial, reagiu mais cedo à tragédia e começou a produzir a toda velocidade os insumos médicos necessários. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Pequim aplicou duras medidas de controle e isolamento contra o vírus e, assim que conseguiu controlar a situação no seu território, posicionou-se como uma espécie de tábua de salvação para os países mais desesperados, que não conseguiam encontrar produtos médicos nos primeiros meses de 2020. Um dos primeiros países a receber ajuda foi a Venezuela, em meados de março. Logo seguiram-se outras nações como Bolívia, Equador e Argentina. Paralelamente às doações, começaram as compras pelos países latino-americanos que tinham recursos econômicos disponíveis, mas não encontravam vendedores. "Queremos agradecer à República Popular da China pela rapidez com que atendeu a esta solicitação do México", destacou, em 2020, o chanceler mexicano Marcelo Ebrard em meio à escassez de equipamentos de proteção contra a covid-19 na época e à batalha internacional para consegui-los. Segundo Enrique Dussel, coordenador do Centro de Estudos China-México da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) e da Rede Acadêmica da América Latina e do Caribe sobre a China (Rede ALC-China), o governo do presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador havia feito naquele momento um "pedido de auxílio" — e "o único país que respondeu de forma rápida foi a China", declarou à BBC News Mundo. Por isso, Dussel é da opinião de que a ideia de que exista uma "diplomacia da covid" por parte da China é, na verdade, uma crítica feita por Washington à política externa chinesa. "Essa questão da diplomacia das máscaras e das vacinas é uma reação exagerada. A China vem desenvolvendo relações com a América Latina há décadas", ressalta Dussel. Já Evan Ellis, professor de Estudos Latino-americanos da Escola de Guerra do Exército dos Estados Unidos, especializado nas relações da região com a China, tem uma opinião diferente. Ele declarou à BBC News Mundo que "a pandemia deu espaço para a China aumentar sua influência. Ela serviu para (o país) projetar o seu poder." Ellis destaca que, nestes últimos dois anos, devido à pandemia, foram abertos novos mercados na América Latina para a venda de vacinas e produtos sanitários. Agora, segundo ele, foi iniciada uma nova fase da diplomacia da covid na área de tecnologia da saúde. Um exemplo desse fenômeno são os planos de coprodução de vacinas no Brasil, Peru e Argentina, até 2024. Para o analista, esse novo tipo de relação permitirá a Pequim avançar em desenvolvimentos biotecnológicos na região. Até o momento, a China encontrou na América Latina um grande mercado para a venda das vacinas produzidas pelos laboratórios chineses Sinovac (que faz a CoronaVac, desenvolvida no Brasil pelo Instituto Butantan), Sinopharm e CanSino. A grande maioria dos países da região adquiriu doses dessas vacinas. A capacidade chinesa de produzir vacinas em massa e enviá-las a países em desenvolvimento gerou uma abertura diplomática e comercial que ofereceu à China, segundo os especialistas, uma vantagem com relação aos países desenvolvidos que se concentraram nas suas próprias necessidades. Na América Latina, além do benefício das vendas, a China também desenvolveu um programa de doação de vacinas. Há algumas semanas, o governo do presidente Xi Jinping realizou a segunda doação de vacinas para a Nicarágua, assim que o país centro-americano rompeu relações diplomáticas com Taiwan. "No mundo, existe apenas uma China", afirmou o ministro das Relações Exteriores da Nicarágua, Denis Moncada, tomando para si a posição de Pequim sobre o governo da ilha, considerada parte inalienável do território da República Popular. A decisão da Nicarágua "demonstra que a China está expandindo sua influência na região", segundo afirmou à BBC News Mundo o professor e diretor do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade Renmin, na China, Cui Shoujun. Ele acrescenta que "a China considera os países latino-americanos como sócios para o desenvolvimento e forneceu enorme assistência médica aos países mais afetados pela pandemia". Com o término das relações diplomáticas com a Nicarágua, Taiwan tem agora apenas 14 aliados diplomáticos formais em todo o mundo, em meio a tensões cada vez maiores com o governo de Pequim. Na América Central, os países que mantêm relações diplomáticas com Taiwan são a Guatemala, Belize e Honduras — mas a presidente eleita Xiomara Castro, que assumirá o cargo em Honduras no dia 27 de janeiro, comprometeu-se durante a campanha a romper relações com Taiwan, em favor de Pequim. No Caribe, o Haiti, São Cristóvão e Nevis, São Vicente e Granadinas e Santa Lúcia mantêm relações diplomáticas com Taiwan — e, na América do Sul, somente o Paraguai. As últimas doações de vacinas à Nicarágua, após seu rompimento com Taiwan, somam-se às enviadas a outros países latino-americanos, como a Venezuela, Cuba, Bolívia e Peru, que agradeceram pela ajuda chinesa em meio à crise sanitária. Enquanto a China considera as doações um ato humanitário após entraves do consórcio Covax Facility definido pelas grandes potências para ajudar os países mais vulneráveis, seus críticos consideram que Pequim faz uso dessa circunstância como uma oportunidade para conseguir benefícios em negócios futuros — e, de forma mais ampla, para melhorar a imagem do país pelo mundo. Por outro lado, uma inclinação para a esquerda dos governos da América Latina poderia criar um cenário novo. "O desvio para a esquerda abre uma porta pós-covid para maior expansão da influência chinesa na América Latina", afirma Evan Ellis. Segundo o pesquisador, existe um padrão histórico de vínculo entre a China e países como a Venezuela, Cuba, o Equador do ex-presidente Rafael Correa, a Bolívia de Evo Morales, a Argentina da ex-presidente Cristina Kirchner e El Salvador de Naiyb Bukele, além dos primeiros encontros com o Peru de Pedro Castillo e, agora, a Nicarágua de Daniel Ortega. Mas os especialistas consultados concordam que existe um elemento fundamental: a China quer fazer negócios. E esse objetivo depende muito mais das oportunidades que da posição política do governo que estiver no poder no momento. Alicia García-Herrero, economista-chefe para a Ásia e a Oceania do banco de investimentos francês Natixis e ex-economista do Fundo Monetário Internacional (FMI), defende que "a pandemia aprofundou a relação de dependência entre a América Latina e a China". Além de uma conta comercial em déficit e de uma grande quantidade de empréstimos chineses para a região nas últimas décadas, surgiram novos elementos. Entre eles, a atual dependência latino-americana das importações de vacinas chinesas e, em alguns casos, "doações em troca de favores políticos", segundo a economista. Além disso, está em jogo a redução do fornecimento de empréstimos para a região, com o aumento da pressão para o pagamento das dívidas contraídas. Nesse contexto, García-Herrero salienta que "os países mais endividados da região precisam enfrentar uma enorme quantidade de pagamentos para a China em um momento muito difícil", quando os cofres dos governos estão muito prejudicados pela pandemia. Embora os investimentos estrangeiros diretos da China na América Latina tenham sido reduzidos durante a pandemia, segundo Pepe Zhang, as "relações comerciais permanecem sólidas e resistentes". "É provável que 2021 tenha sido outro ano recorde, ou perto disso, para o comércio entre a China e a região", afirma. De fato, durante a reunião ministerial do Foro da Comunidade de Estados Latino-Americanos e do Caribe (Celac) com a China no início de dezembro, o vice-ministro das Relações Exteriores chinês, Ma Zhaoxu, anunciou que o volume de comércio entre as partes superou US$ 300 bilhões (R$ 1,7 trilhão) em 2020. "E esperamos que, este ano (2021), essa cifra alcance US$ 400 bilhões" (R$ 2,275 trilhões), segundo ele. Com relação aos investimentos chineses em infraestrutura, 24 projetos foram desenvolvidos na região, somando um total de US$ 18 bilhões (R$ 102 bilhões) em 2020, segundo Enrique Dussel, "embora estivéssemos em plena pandemia". Para o pesquisador mexicano, a China busca estabelecer uma associação estratégica integral de longo prazo com a região, que vá mais além dos governos no poder. Ele acrescenta que a China oferece um portfólio de opções para os países latino-americanos há mais de dez anos. "Se você tiver interesse por tênis de mesa, eu ofereço tênis de mesa, se quiser tecnologia 5G, ofereço tecnologia 5G. Se quiser um trem de alta velocidade, um porto, um satélite ou um empréstimo, aqui está", exemplifica Dussel. No final, os países latino-americanos escolhem qual parte deste portfólio querem receber. Como temos visto, "países como Argentina, Equador, Brasil, México, Cuba e Venezuela escolheram uma parte do portfólio chinês", segundo Dussel. Além disso, estamos presenciando novas relações triangulares entre a América Latina, os Estados Unidos e a China. "Vamos continuar convivendo com a tensão entre os dois gigantes", destaca ele. "Fazer um casamento ideológico com um dos dois é falta de sensatez. É algo pouco inteligente."
2022-01-23
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Como Irã ajuda Venezuela a elevar produção de petróleo apesar de sanções dos EUA
Das entranhas do subsolo venezuelano começou a sair mais petróleo. Após a produção de óleo bruto no país ter sofrido nos últimos dois anos um retrocesso histórico, chegando aos níveis de meados do século 20, nos últimos meses houve uma recuperação que a elevou em novembro passado para uma média de 824 mil barris por dia — quase o dobro dos 434 mil diários extraídos no mesmo mês de 2020. E, em entrevista transmitida pela televisão estatal venezuelana em 1º de janeiro, o presidente Nicolás Maduro se gabou de que o país conseguiu produzir novamente 1 milhão de barris por dia. "A meta do próximo ano é chegar a 2 milhões", disse. Em 1998, antes de Hugo Chávez chegar ao poder, a Venezuela produzia cerca de 3,12 milhões de barris por dia, segundo a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep). Fim do Matérias recomendadas Após uma queda abrupta durante a greve dos petroleiros de 2002-2003, a produção voltou em 2004 a 3 milhões de barris, antes de iniciar um lento declínio até chegar a 2,6 milhões de barris em 2015. A partir daí, a queda se acelerou até atingir o patamar de 1,14 milhão de barris por dia em novembro de 2018. Dois meses depois, por conta da reeleição de Maduro, o governo dos Estados Unidos impôs sanções contra a indústria petrolífera venezuelana — pedindo a "restauração da democracia, eleições livres e justas, libertação de presos políticos e fim da repressão" —, o que acabou ajudando a arruinar a já minguada produção. Embora muitos especialistas questionem o número de barris anunciado por Maduro, eles reconhecem que em 2021 a Venezuela conseguiu recuperar parte de sua produção de petróleo — e apontam o Irã como uma peça fundamental nesse processo. "O que vem acontecendo é que a Venezuela está importando diluentes do Irã — nafta, condensados, óleo bruto leve — que estão sendo misturados ao óleo bruto extrapesado venezuelano do Cinturão do Orinoco para aumentar a produção", explica o economista José Toro Hardy, que foi membro do conselho de administração da PDVSA, petroleira estatal venezuelana. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ele explica que o petróleo dessa região da Venezuela é muito pesado e está carregado de enxofre — por isso, é preciso misturá-lo com esses produtos para criar um petróleo mais comercial. Ele ressalta que a Venezuela no passado produzia esses diluentes, mas isso não acontece mais porque há muitos campos de petróleo fechados, e as refinarias do país estão trabalhando bem abaixo da capacidade. Hardy indica que a Venezuela vai dar ao Irã, em troca desses diluentes, uma parte da produção desse petróleo médio. "O Irã, assim como a Venezuela, é alvo de sanções dos Estados Unidos, e sua produção de petróleo caiu drasticamente. Provavelmente, esse petróleo que está saindo, digamos, à margem das sanções que são impostas à Venezuela e ao Irã, está sendo transportado em petroleiros não reconhecidos, que até desligam seus dispositivos para não serem localizados por satélite. Esse é um petróleo que o Irã pode comercializar assim que o tiver em seu poder", acrescenta. Teerã também vem ajudando a Venezuela com o embarque de gasolina para abastecer o mercado interno do país latino-americano, onde a produção desse derivado diminuiu devido a problemas nas refinarias. Francisco Monaldi, diretor do Programa Latino-Americano de Energia do Instituto Baker da Universidade Rice, nos Estados Unidos, destacou que a produção de petróleo bruto venezuelano está voltando aos níveis registrados no início de 2020, antes da petroleira russa Rosneft se retirar da Venezuela e dos preços despencarem devido ao impacto da pandemia de covid-19. "A PDVSA foi capaz, com a ajuda do Irã, de criar uma estrutura de evasão de sanções substituindo a Rosneft. Além disso, o Irã passou a fornecer os diluentes que os russos traziam antes. Tudo isso requer pagar intermediários e cobrir custos de transporte", escreveu Monaldi no Twitter. O especialista acrescentou que o colapso da produção ocorrido em 2020 não foi consequência de uma redução na capacidade de produção, mas sim de dificuldades em vender petróleo a preços tão baixos e driblar sanções. Muitos analistas do setor de petróleo, incluindo Hardy e Monaldi, questionam o volume de produção de 1 milhão de barris anunciado por Maduro — e preveem limitações para o crescimento da mesma no futuro. "Isso parece pouco provável, porque, em agosto, o próprio governo dizia que estávamos em 600 mil barris", diz Hardy. O especialista afirma que, em toda sua história, a época em que a Venezuela conseguiu aumentar mais a produção de petróleo foi em 1998, quando estava imersa no ambicioso projeto de abertura petrolífera — que visava aumentar a produção por meio de parcerias com o capital privado. Naquele ano, aumentou em 190 mil barris por dia. "O anúncio do governo implicaria que, em quatro meses, a produção teria aumentado em 400 mil barris por dia. E isso parece pouco provável", reitera. Ele destaca ainda que atualmente não há sondas de perfuração ativas na Venezuela, o que indica que o país não está abrindo novos poços. Mas explica que é possível que a PDVSA consiga aumentar a produção reparando os poços existentes. "Há uma grande quantidade de poços de petróleo fechados na Venezuela porque os motores ou outros equipamentos foram roubados. Se consertados, poderia se conseguir um aumento na produção de forma mais ou menos barata, mas, ainda assim, seria difícil chegar aos 400 mil barris diários", diz Hardy. Monaldi, por sua vez, alertou que os aumentos que podem ser alcançados no bombeamento de petróleo com a atual capacidade de produção são limitados. "É provável que a produção esteja chegando a seu potencial de cerca de 900 mil barris por dia, e a produção adicional exigirá investimentos significativos em novos poços e infraestrutura", escreveu no Twitter. Hardy concorda que, nas condições atuais, a produção venezuelana tem margem de crescimento limitada. "A Venezuela tem reservas imensas de petróleo, mas são necessários grandes investimentos para explorá-las. Estima-se que, entre investimentos e gastos, para recuperar os níveis de produção de 20 anos atrás, seriam necessários cerca de US$ 25 bilhões por ano durante os próximos oito ou dez anos", diz ele. "É muito difícil que esse montante possa vir hoje de investimentos feitos por Irã, Rússia ou China, porque, na Venezuela, há uma enorme falta de segurança jurídica que também os afeta", explica. Assim, pelo menos de acordo com esses cálculos, os planos de Maduro de aumentar a produção para 2 milhões de barris por dia em 2022 parecem distantes.
2022-01-23
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60070276
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'Elites não têm de concordar comigo, mas não precisam ter medo', diz presidente eleito Gabriel Boric à BBC
Ele admite que nunca pensou que chegaria a esse ponto. Prestes a completar 36 anos, idade que o habilita a se sentar na cadeira presidencial no Palácio La Moneda a partir de 11 de março, Gabriel Boric Font fuma um cigarro atrás do outro poucas horas antes de anunciar seu gabinete. A equipe ao seu lado no governo, que promete profundas transformações sociais, é provavelmente a mais diversa que o país já viu: mais mulheres do que homens, metade oriunda de escolas públicas, membros de sua coligação política; são um símbolo de um Chile que se afasta das elites sociais que governam o país desde o retorno à democracia, nos anos 1990. "Em um momento em que o mundo muda vertiginosamente, o Chile também precisa mudar e se adaptar. Representamos a força de uma época", disse Boric à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC), na primeira entrevista a um veículo estrangeiro após vencer as eleições presidenciais. Foram quase duas horas de conversa em que ele falou não apenas de uma "nova ordem" para o Chile, mas também de sua relação com a esquerda latino-americana — inclusive com o ex-presidente Lula, com quem diz planejar colaborar caso o brasileiro se eleja —, de suas referências políticas ao redor do mundo e da violência vista durante a revolta social no país. BBC News Mundo - O que o sr. acha que representa e o que lhe permitiu chegar ao Palácio La Moneda? Fim do Matérias recomendadas Gabriel Boric - Acredito que representamos uma energia geracional de transformação que aprendeu ao longo do caminho a valorizar a história que nos constitui. Representamos o ar puro, a juventude, a novidade, mas com consciência da cadeia histórica dos processos. Também representamos (a ideia de) que o status quo, ou o conservadorismo, é a pior coisa que pode acontecer ao Chile neste momento. Num momento em que o mundo está mudando rapidamente, o Chile também precisa mudar e se adaptar. Representamos a força de uma era. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast BBC News Mundo - O sr. acaba de anunciar um gabinete com 10 homens e 14 mulheres… Boric - Que alegria poder falar isso nos dias de hoje. O fato de termos conseguido isso se deve à luta de milhares de mulheres que, por muito tempo, empurraram as barreiras do que era considerado possível, e agora com a última onda feminista ainda mais. Mas não somos os primeiros a fazer isso. A presidente (Michelle) Bachelet em seu primeiro mandato fez um esforço para ter um gabinete conjunto, e as forças do conservadorismo rapidamente a cortaram. BBC News Mundo - Por que diz isso? Boric - Porque teve que mudar. O primeiro gabinete apresentado tinha paridade e ninguém repete o prato, disse; e na primeira mudança de gabinete, ela teve que fazer mudanças por causa de pressões que iam além do que era seu desejo genuíno. Hoje nós trazemos essa experiência também. Não quero nos apresentar como pioneiros, mas estamos colhendo frutos de um legado que vai muito além de nós. BBC News Mundo - E com ministras e ministros que vêm de diferentes realidades educacionais, qual é a sinalização que o sr. quer dar? Boric - Que o Chile é diverso, e que a diversidade também deve ser expressa em suas instituições e em sua política. Por muito tempo, a elite chilena foi excessivamente consanguínea e não conseguia enxergar além de seus próprios narizes. Como parte de uma elite, acredito que temos o dever e a responsabilidade de sair de nossos círculos de conforto e pensar em um Chile mais abrangente. BBC News Mundo - Entre seus ministros há um professor na pasta de Educação que foi formado em escola pública... Boric - Isso mesmo, em San Miguel, na mesma escola de Los Prisioneros (uma das principais bandas de rock do Chile). Pareceu-nos que este foi um gesto importante, para além da competência e da vocação profissional de Marco Ávila. Creio que foi um gesto necessário para o setor. Por muito tempo tivemos acadêmicos sem sala de aula, engenheiros comerciais dirigindo a educação em nosso país. Acredito que era preciso um choque de sala de aula, que é onde as desigualdades e os desafios da experiência educacional se expressam com mais clareza. Esta não pode ser uma reforma sem sala de aula, sem meninos e meninas, não pode ser uma reforma sem professores. BBC News Mundo - E uma mulher de 35 anos, a ex-presidente da Faculdade de Medicina, Izkia Siches, no Ministério do Interior… Boric - Que coragem tem Izkia Siches. Mas isso vem sendo amplamente demonstrado há muito tempo. É uma liderança reconhecida pela sociedade chilena pelo papel que desempenhou nos momentos mais difíceis em que a pandemia nos atingiu. De opiniões firmes, mas ao mesmo tempo aberta a ouvir e convocar de forma transversal para um bem comum acima dos interesses pessoais. Acho que ela conseguiu dar sentido a uma faculdade de medicina que, por muito tempo, só defendia os interesses de um setor muito pequeno. E a partir daí falou com a sociedade. Não tenho dúvidas de que desempenhará um excelente papel no comando do Ministério do Interior e Segurança Pública, o que é um tremendo desafio, porque é um ministério que tem sido tradicionalmente conturbado. Izkia também está muito interessada em aceitar este desafio, e confio plenamente nela. BBC News Mundo - Que critérios o sr. utilizou para escolher a sua equipe de ministros? Boric - Os critérios que tivemos em vista foram, por um lado, que teria que ser um gabinete paritário, ou com mais mulheres que homens; que incorporaria a diversidade de realidades, incluindo a presença da educação pública, tanto acerca da formação escolar como universitária; um gabinete que conseguisse ser uma síntese de gerações, por um lado a nossa geração que emergiu na vida pública em 2006 e tem crescido a partir de lutas sociais, mas também outra que administrou o Estado por muito tempo e tem experiências valiosas das quais queremos aprender. E também um gabinete que representasse a amplitude social que conseguimos reunir na vitória de 19 de dezembro na base da coligação Apruebo Dignidad, mas que vai além dela, com os partidos políticos que nos deram seu apoio no segundo turno e têm representação parlamentar. Além, também, das organizações sociais e das pessoas independentes que mobilizaram e fizeram a diferença com as mulheres. BBC News Mundo - A sinalização da escolha do atual presidente do Banco Central para administrar o Ministério da Fazenda foi aplaudida por empresários e investidores. Quanto lhe custou convencer o Partido Comunista desta nomeação? Boric - As nomeações, de todos os cargos, eram discutidas em termos de pessoas com os partidos. Eles me deram total liberdade para designar o gabinete, confinados aos critérios que eu tinha para formar nossa equipe de trabalho. E nisso eu aprecio o nível da visão que todas as partes tiveram. BBC News Mundo - Foi uma decisão coletiva? Boric - Foi uma decisão coletiva. Discuti no início do processo com o Apruebo Dignidad a possibilidade de incorporar independentes e militantes de partidos políticos que não faziam parte da coalizão, e eles me deram total liberdade para isso, algo que usei adequadamente. Além disso, acredito que no caso de Mario Marcel em particular, ele tem uma trajetória e experiência no Estado, na diretoria de orçamento, no Banco Central e também no exterior, no Banco Mundial, na OCDE. Essa trajetória histórica é inquestionável, e é também uma garantia de seriedade para as reformas que temos de impulsionar, que vão ser difíceis e que vão exigir um amplo consenso. Eles precisavam, penso eu, desta garantia de que uma pessoa como Mario Marcel pode dar, além de suas firmes convicções progressistas, já que ele se define como social-democrata. BBC News Mundo - O sr. sempre responde no plural, em todas as perguntas foram feitas ao sr., provavelmente porque toma suas decisões negociando com o resto de sua equipe. Essa lógica de assembleia que usa com seu grupo para tomar decisões pode ser bem democrática, mas o sr. acha que será eficiente na hora de tomar decisões? Boric - Há muito mito em torno das assembleias. Toda organização requer algum tipo de ordem. E o desafio que temos como governo é gerar uma nova ordem. Eu diria que o problema no Chile hoje é que essa ordem não existe. O contrato social foi quebrado. E, do meu ponto de vista, pelas elites. Portanto, para recuperar a ordem são necessárias novas formas, e não repetir as mesmas do passado. BBC News Mundo - De que maneira o contrato social foi quebrado? Boric - Quando vemos que, durante a pandemia, por exemplo, os mais ricos do Chile aumentaram substancialmente seu capital, enquanto a pobreza e a extrema pobreza cresceram pela primeira vez em décadas. Quando vemos o nível de precariedade e vulnerabilidade que a classe média tem em relação às pessoas mais ricas deste país, (vemos que) o lugar onde se nasce continua a determinar de forma muito substantiva ou preditiva o lugar onde se vai morrer. Por isso a promessa de igualdade, além do fato de que sem dúvida houve maior acesso a bens básicos, ampliação de matrículas, redução da pobreza… Acredito que a promessa de igualdade e inclusão não foi cumprida e, portanto, esse pacto social está quebrado e precisamos construir um novo. BBC News Mundo - O sr. pode definir essa "nova ordem"? Boric - O que aspiramos é poder construir uma sociedade colaborativa, na qual alguns de seus membros não sejam abandonados ou discriminados pelas condições de vida em que tiveram que viver, e na qual o Estado também seja capaz de garantir os direitos sociais de forma universal. independentemente de onde você nasceu, da etnia da qual você vem ou da cor de sua pele. Isso requer reformas estruturais. Sabemos que essas coisas não podem ser alcançadas da noite para o dia, sabemos que certamente nosso governo vai construir sobre o que foi construído no Chile nos últimos 30 anos, mas também vamos ter uma virada em relação à lógica política neoliberal de cada um por si na sociedade. Isso é algo que tem que acabar. Não podemos passar de "não esperávamos" para "nada aconteceu aqui". No Chile, ainda existe um mal-estar profundo que não foi resolvido em questões sociais. Há muita precariedade. BBC News Mundo - O sr. é um homem de dúvidas ou de certezas? Boric - Sou um homem mais de dúvidas do que de certezas. É importante acompanhar as convicções que tenho com a possibilidade de duvidar delas, para melhorar. As pessoas que são muito seguras de si me geram um certo distanciamento. BBC News Mundo - Haverá muitas vezes em que o sr. terá que tomar decisões difíceis sozinho. Quanto estresse essas circunstâncias têm sobre o sr.? Boric - É super difícil. Não será a primeira vez, você tem que ser muito claro sobre suas convicções e princípios e agir sempre em coerência com eles. Às vezes isso significa ir contra o que pode ser mais popular em um determinado momento ou o que as pessoas mais próximas te dizem. Há algo impossível de se medir, que é a intuição em política. Quando se tem convicções firmes não se vai ziguezagueando pela vida. Isso te permite ter uma trajetória previsível. BBC News Mundo - Quais são as habilidades e competências que um presidente deve ter atualmente? Boric - Venho formando a convicção de que um bom presidente não é aquele que está mais ocupado, não é aquele que tem mais papéis a sua volta. Um bom presidente é aquele que tem capacidade de ouvir, estar aberto a novas ideias mesmo que não venham de seu círculo mais íntimo. Um presidente que tem capacidade de refletir e convocar. Sempre disse que a radicalidade da nossa proposta não está em quão forte a defendemo, em quão esdrúxulas são as intervenções, mas sim pela capacidade de convocação e pelo significado que dá às pessoas. Primeiro você se torna classe dominante antes de ser classe dirigente. Você primeiro faz mudanças culturais antes de ter a chance de dirigi-las. E acho que nossa geração fez exatamente isso. BBC News Mundo - Você adotou uma nova forma de relacionamento com as pessoas, muito horizontal, próxima, afetuosa, as pessoas lhe contam seus problemas, você as ouve e anota. Não tem medo de gerar expectativas impossíveis de cumprir? Boric - É uma preocupação, mas também sempre digo às pessoas nessas conversas que não vou conseguir cumprir tudo. E há uma sabedoria popular maior do que supõem as elites. As pessoas sabem que isso vai ser difícil, sabem que as mudanças não virão da noite para o dia, mas querem que tentemos e que sejamos honestos ao tentar. Uma das coisas que importa para mim é contar a eles sobre os obstáculos que estamos enfrentando e por que há certas coisas que fazemos e outras que não podemos fazer. E também para envolvê-los no processo de governo, para que eles se sintam parte dele, e nós vamos lá juntos, moldando expectativas com base na realidade. A realidade é mais teimosa do que qualquer ideologia. BBC News Mundo - E quais são suas expectativas? Boric - Minha expectativa é que ao final de nosso mandato tenhamos um Chile que se encontre, onde colaboramos mais do que competimos; um Chile que se faz ouvir e sobretudo um Chile mais justo no sentido de que as enormes desigualdades que hoje marcam o lugar de origem e o lugar da morte se diluem em função da trajetória de vida e das possibilidades que cada um tem como pessoa. E que essas possibilidades sejam cada vez mais iguais. BBC News Mundo - Não é fácil assumir este país... O que está disposto a perder? Boric - Essa pergunta é boa porque na política sempre perguntam o que você quer fazer, mas não do que você está disposto a desistir. O que importa para mim é melhorar as condições de vida de forma sustentável e sustentável a tempo para quem habita o nosso país. É preciso, portanto, ter mais do que limites rígidos. Estou disposto a conversar muito e me preocupo mais em chegar ao porto do que apenas seguir o caminho que tracei para mim no início. Temos um roteiro, mas se descobrirmos que há um precipício no caminho, encontraremos uma maneira de atravessá-lo, mesmo que isso torne a estrada um pouco mais longa. BBC News Mundo - O sr. disse em muitas ocasiões que quer ser um presidente que no final de seu mandato tenha menos poder do que quando começou. Ao que o sr. se refere especificamente? Boric - Isso tem a ver de onde eu venho. Sou de Magalhães, nascido e criado nas margens do Estreito e desde que me lembro ouço a palavra descentralização sem que ela tenha tido grandes efeitos na vida cotidiana das pessoas. As decisões acabam sendo tomadas por uma elite de classe alta de Santiago, acima das realidades vividas nas comunas, nos bairros. E a figura presidencial está no topo disso. De fato, a quantidade de expectativas que existem tem a ver com a idealização da figura presidencial que vai muito além das minhas características. É algo que aconteceu muitas vezes na história do Chile. Assim, espero, e isso estará na vanguarda do processo constitucional, que possamos construir um país em que sejamos democráticos, onde uma pessoa não detenha tanto poder e onde o poder seja também mais transparente, não apenas em termos da Presidência da República, mas também dos famosos poderes fáticos que a exercem sem mediar qualquer tipo de decisão ou deliberação democrática. Sendo mais específico, espero que no final de nosso mandato tenhamos um Chile descentralizado, que nos bairros, nas comunas, nas regiões se possa decidir seu futuro mais do que a partir do Palácio La Moneda ou de um bairro rico de Santiago. BBC News Mundo - Prefere ser chamado de presidente ou apenas de Gabriel? Boric - É um desafio, mas tenho entendido que é importante assimilar a instituição presidencial. Porque hoje estou assumindo uma instituição que já existe. Por isso, sem perder a minha essência, acredito que seja importante o que foi construído e o que vem depois. Nesse sentido, penso que nesse momento eu deva se tratado como a instituição que represento. BBC News Mundo - O sr. passa a sensação de que é muito importante para si demonstrar afeto. Boric - É que em um país tão agredido ultimamente, tão dividido, é importante que nos amemos de novo. Para mim, a preocupação com a saúde mental foi fundamental no meu desenvolvimento nos últimos anos, e entender que, como chilenos, nos falta afeto. E se alguém pode contribuir um pouco para dar isso, me parece uma boa hora. Agora, ouvir tem muito de reparar. Quando você ouve uma pessoa, mesmo que não consiga resolver o problema dela, você começa a gerar um vínculo diferente, ciente, insisto, de que provavelmente nem todos os problemas serão resolvidos. Mas vai se tendo um termômetro diferente. Se você se cercar apenas das mesmas pessoas que são iguais a você, da mesma classe social que você, ou que pensam igual a você, você acaba em uma bolha que distorce a realidade. E esse é um problema endêmico da política que temos que tentar mudar. Não estou dizendo que somos mais virtuosos, ou moralmente limpos, mas que, aprendendo, e vou insistir muito nessa ideia, a partir dos erros e acertos do passado, devemos mudar e melhorar. Há uma frase que citei recentemente em um discurso e de que gosto muito. É do compositor Gustav Mahler, que diz que "a tradição não consiste no culto às cinzas, mas na preservação do fogo" e que, de certa forma, também é um leitmotiv. BBC News Mundo - Há também muitos que o temem, ou melhor, que não confiam em seu discurso de chamamento... "Lobinho disfarçado de cordeiro", comentam alguns. O que o sr. representa que pode gerar medo em parte da elite? Boric - Parte da elite é muito egocêntrica, isso ainda é muito inato. Por viverem em uma posição privilegiada por tanto tempo, qualquer mudança gera a incerteza que a maioria dos chilenos vive no dia a dia. E isso gera rejeição. Uma rejeição um tanto atávica. Espero, por um lado, que as elites deixem de ter medo de nós. Não espero que concordem comigo, mas espero que parem de ter medo de nós. Mas essa desconfiança não é uma crítica infundada, porque de alguma forma se passou de um político de frases e ações às vezes impetuosas para um político acolhedor, moderado... No caminho da política, que se cruza com o da vida, há sempre aprendizados, e na minha construção política prefiro ser barro do que pedra. As experiências ou ações nas quais alguns se baseiam para fazer esses julgamentos também são o que me moldou. Porque errando é que eu consegui aprender. Então eu não veria isso como um problema, mas como parte de um processo de aprendizagem. BBC News Mundo - Outra dúvida é a capacidade de seu setor, muito millennial para alguns, de garantir a governabilidade do país… Boric - Essa crítica de que somos muito millennials (nascidos entre 1980 e 1996) é como se tivéssemos dito alguma vez que os baby boomers (nascidos entre 1946 e 1964) nunca deveriam ter assumido o poder quando são eles que governaram o Chile nos últimos 30 anos. Essa crítica fica aquém da perspectiva histórica quando se vê o que as gerações anteriores foram. No "Balanço Patriótico", (Vicente) Huidobro em 1920 disse muito claramente sobre os primeiros anos da República que tudo de grande no Chile foi feito pelos jovens: (um dos líderes da independência chilena José Miguel) Carrera aos 26, (outro líder da independência chilena Bernardo) O'Higgins aos 36, (o guerrilheiro da independência chilena) Manuel Rodríguez aos 24… Você tem que olhar para a história e ver que não é um fenômeno novo. Não é preciso ter tanto medo disso. BBC News Mundo - Sua vitória nas eleições representa o triunfo de uma ideia de sociedade ou do olhar de uma nova geração? Boris - Como tudo em coisas assim, é múltiplo. Tem a ver com o surgimento de uma nova geração, com a necessidade de renovação, com a ideia de uma sociedade que se opõe claramente ao que o atual governo apresentou e à candidatura com que nos deparamos no segundo turno. É o oposto do gestor 24 horas por dia, 7 dias por semana, o self-made man que estudou apenas em universidades estrangeiras, mas também tem a ver com conhecer bem a trajetória do Chile. BBC News Mundo - Parece que sua vitória se deve mais a seu capital político pessoal e pouco a ver com a formação de uma frente ampla ou com sua identidade comunista. Como o Partido Comunista contribui para o seu governo? Boric - Muito. Nossa aliança é a "Aprovar Dignidade", mas chamamos ao gabinete partidos que fazem parte de outra tradição. Devemos conseguir desmistificar os medos contra o Partido Comunista chileno. Tivemos diferenças táticas e outras mais em determinados momentos. O dia 15 de novembro (data da assinatura do acordo que prevê uma Convenção Constitucional — órgão encarregado de redigir uma nova Constituição —.e que o Partido Comunista não assinou) é o mais visível, mas o Partido Comunista hoje está comprometido com a implementação do nosso programa. Além disso, foi um partido que, no Chile, foi profundamente democrático e que esteve do lado das lutas sociais e dos oprimidos, e isso é algo que também me inspira. BBC News Mundo - Dois anos após a eclosão de uma crise social, como você entende o que aconteceu então? Boric - Acho que foi um momento de muita frustração com as promessas da meritocracia que não estavam sendo cumpridas. E havia uma consciência coletiva de que isso não estava acontecendo em diferentes partes do país. E esse encontro levou a uma mobilização fora dos canais institucionais que, por sua vez, uniu raiva e esperança. Espero que o que prevaleça nisso seja a esperança. Paralelamente a isso, enquanto discutimos as regras do futuro, temos que ser capazes de resolver os problemas específicos das pessoas, que foram particularmente afetadas pela pandemia. BBC News Mundo - Existe a possibilidade de um governo de esquerda comedido e reformista? Boric - Discordo da obsessão da elite com moderar nosso discurso e nos rotular. É mais um complexo deles do que nosso. Temos uma direção e vamos caminhar rumo a ela. E essa direção é criar um Estado que consagre os direitos sociais universais, com pleno respeito aos direitos humanos, que descentralize o poder, que assuma os desafios ambientais, da crise climática. BBC News Mundo - Não estamos falando de moderação, então... Boric - A ideia de ser equilibrado em vez de moderado faz mais sentido para mim. Há alguns fanáticos da moderação que acabam não se movendo, e esses fanáticos causaram danos profundos ao país. Porque, com um medo atávico da mudança, acabaram estourando a panela de pressão. BBC News Brasil - O sr. está mais próximo da social-democracia ou do comunismo? Boric - Venho da tradição socialista libertária chilena. Esse é o meu espaço ideológico de referência. Sou democrata e acredito que a democracia tem que mudar e se adaptar, e não se petrificar. Acredito que a democracia no Chile carece de maior densidade. BBC News Brasil - E dentro da América Latina, o sr. se reconhece em algum dos governantes de esquerda? Boric - Espero trabalhar ao lado de Luis Arce, na Bolívia, de Lula se ele ganhar as eleições no Brasil, de Gustavo Petro, cuja experiência se consolida na Colômbia. Acho que pode ser um eixo interessante. Entendo que a pergunta está relacionada à Venezuela e à Nicarágua. No caso da Nicarágua, não consigo encontrar nada lá, e no caso da Venezuela é uma experiência que fracassou, e a principal demonstração de seu fracasso é a diáspora de 6 milhões de venezuelanos. BBC News Mundo - O sr. se sente parte da geração de Jacinda Ardern, Sanna Marin, Emmanuel Macron, até mesmo Alexandria Ocasio-Cortez? Existe algo maior, além de todos terem menos de 45 anos? Boric - Não sei em detalhes quais são as convicções de cada um deles, e ter a mesma idade não indica necessariamente alguma coisa. Posso dizer que tenho uma proximidade ideológica com (o político boliviano Álvaro) García Linera, independentemente de sua idade, ou uma clara cumplicidade com o Podemos na Espanha, que não tem nada a ver com uma questão de idade, mas com as convicções que temos. E valorizo ​​muito a experiência de Lula, mas também procuro conhecer a de (Fernando Henrique) Cardoso. Não se pode ter referências estáticas. O que é certo é que hoje existe uma crise climática global partir da qual acredito que nossa geração vai adquirir uma consciência maior do que as anteriores. E que eu espero seja algo que nos una. Tive a oportunidade de falar sobre isso com (o premiê canadense) Justin Trudeau. Recebi uma carta de Emmanuel Macron (presidente da França), também nesse sentido, sei que (a premiê neozelandesa) Jacinda Ardern teve essa preocupação, então espero que tenhamos um ponto em comum e forcemos a gerações anteriores e os governantes de todos os países, como (a ativista) Greta (Thunberg) disse, a agir agora. BBC News Brasil - Quais são suas prioridades na economia? Boric - Que possamos ter uma consolidação da recuperação econômica que seja justa. Que não sejam reproduzidas as desigualdades anteriores. E isso implica dar maiores ferramentas às pequenas empresas para que haja uma desconcentração do mercado. Hoje, 87% das vendas no Chile estão concentradas em grandes empresas e apenas 13% em pequenas e médias empresas. Essa é a pedra angular da desigualdade em nosso país. Temos que alcançar a combinação entre crescimento e redistribuição. Uma distribuição mais justa da riqueza. Um não é sustentável sem o outro. Todos cresceram, é verdade, mas alguns muito mais do que outros e isso ampliou a fratura da sociedade chilena. BBC News Mundo - O sr. fala de um pacto tributário e não de uma reforma, uma diferença semântica fundamental, porque a primeira significa um acordo com todos os setores políticos. Boric - É bom que você perceba isso, porque é ao que aspiramos. Não se trata de mocinhos contra bandidos. Queremos que todas as forças produtivas do país concordem que é necessária uma melhor redistribuição de riqueza para crescer. E que também seja sustentável em relação ao meio ambiente, e, para isso, esperamos convocar trabalhadores organizados, pequenas e médias empresas e grandes empresários. BBC News Mundo - O sr. receberá um país com uma das maiores taxas de inflação das últimas décadas, com um déficit relevante. Em que momento pretende comunicar que não será fácil cumprir as promessas do seu programa? Boric - Estamos fazendo isso permanentemente. Temos o compromisso de respeitar o orçamento aprovado pelo Congresso, que tem redução de 22% nos gastos, e também de avançar em nossas reformas na medida em que estamos garantindo receita permanente para o que é considerado gasto permanente. E essa é uma linha da qual não podemos nos desviar. Não pode haver atalhos irresponsáveis. Estou confiante de que a população vai entender. BBC News Brasil - Quão complexo é instalar um Estado de bem-estar social em um país que não tem os padrões econômicos ou sociais que os modelos social-democratas mais bem sucedidos têm? Boric - Precisamos ver como se encontravam os países que desenvolveram Estados de bem-estar social no momento em que optaram por esse caminho. Os desafios são diferentes. No caso dos países europeus, não apenas os nórdicos, eles decidiram criar Estados de bem-estar que garantissem direitos sociais universais quando tinham um PIB per capita semelhante ou inferior ao do Chile hoje. Espero que concordemos como sociedade, no sentido de que há metas de longo prazo que não terão resultados antes das próximas eleições e que, portanto, muitas das decisões que tomaremos não podem ser pautadas por uma ansiedade eleitoral e que há frutos que não vou colher (durante o governo). BBC News Brasil - O que diria que é o nosso calcanhar de Aquiles? Boric - A desigualdade. BBC News Brasil - E o seu? Boric- Há muitas coisas que poderia dizer, mas, se tivesse que escolher uma, mais do que uma minha pessoal, o grande risco para nosso governo é não conseguir ampliar nossa base social de apoio para além de nossas fronteiras atuais. Se ficarmos apenas com quem somos hoje, não conseguiremos fazer as transformações que queremos. Portanto, se não caminharmos todos juntos, será um desafio muito difícil. BBC News Mundo - Como líder estudantil, o sr. esteve nas ruas muitas vezes, mas muitas dessas manifestações terminaram em atos de violência. Vocês mesmos falaram de pessoas que mancharam aqueles protestos, mas disseram que foram poucas... Hoje, elas parecem ser a norma. O que aconteceu? Boric - Elas não são a norma em relação à maioria. O que acontece é que existem várias explicações, mas primeiro quero deixar claro que continuo acreditando que o caminho não é a violência, quero deixar bem claro isso. Acredito que há uma frustração acumulada ao ver que as mudanças não puderam ser feitas pelos canais institucionais. Mas a violência é um fenômeno que devemos tentar entender para tentar erradicar. Se você quer ter certeza de que seguirá havendo violência, basta deixar as coisas como estão. BBC News Mundo - Há um setor da esquerda que provavelmente não lhe dará margem para um radicalismo ponderado, e a resposta pode ser mais violência nas ruas. Como pretende lidar com isso? Boric - Temos o dever de fazer cumprir a ordem pública, isso não é uma opção para o governo. E fazer cumprir a lei. O que esperamos é que, através do processo de transformação que vamos iniciar, da convocação e da forma como falamos com povo do Chile, esses setores sejam cada vez mais minoritários. BBC News Mundo - Que tipo de Constituição o atrai mais, uma bem regulamentada ou uma mais orientadora? Boric - Gosto da ideia de uma Constituição orientadora, mas não asséptica. Uma Constituição que consagra os direitos sociais universais, que defende a liberdade e a igualdade, uma Constituição que descentraliza, mas uma Constituição que não abarca todas as questões e todos os problemas. A Constituição não pode ser concebida apenas a partir de 2021 e 2022. Ela tem que permitir até questões que ainda não temos como enquadrar na Constituição. BBC News Mundo - Na esfera pessoal, do que mais teve que abrir mão além dos cabelos compridos e das camisetas de bandas de rock? Boric - Ultimamente, sair para um bar, ir a uma livraria, está cada vez mais difícil. BBC News Mundo - O senhor é conhecido por não usar gravata. Em que circunstâncias usaria? Boric - A gravata tem dois sentidos. Um é estético e um tanto absurdo, mas também percebi que havia no Congresso um espírito de disciplina e homogeneização por parte de uma elite muito fechada e muito parecida entre si — e por isso me mandaram para a comissão de ética, por não usar gravata. Agora, isso está totalmente naturalizado, e é totalmente normal andar sem gravata no Congresso. A propósito, uma vez tive a sorte de conhecer (a cantora americana) Joan Baez, e nós dançamos, ela me perguntou sobre esse assunto, porque eles contaram essa anedota sobre a gravata, e meses depois eu ganhei uma gravata feita por aborígenes australianos. Se um dia eu tivesse que usar uma, com certeza seria essa. BBC News Mundo - E isso pode acontecer logo? Boric - Não pensei nisso. Talvez no casamento de um amigo. BBC News Mundo - Não na posse? Boric - Não, há limites. BBC News Mundo - O sr. vem de uma família religiosa, tem uma mãe católica, que reza e tem um altar à Virgem em casa. Nada disso faz sentido para o sr. em momentos de angústia? Boric - Tenho muito respeito pela fé da minha mãe e, às vezes, sinto falta do dom da fé, mas não é algo que tenho agora, e não acho que seja algo que você só possa recorrer em um estado de necessidade. Tenho uma questão pendente de como trabalhar a espiritualidade. É algo que sempre me interessou, e nunca tive tempo para fazê-lo. BBC News Mundo - Como controla sua ansiedade? Boric - Às vezes, comendo, que não é o melhor método. Ler me acalma. Quando tenho tempo, pratico esportes, gosto de jogar futebol. BBC News Mundo - Sente que às vezes perde o controle? Boric - Aprendi, graças a tratamentos, a controlar isso. Tenho transtorno obsessivo compulsivo, e tomo remédios. Também é algo que consegui domar graças à Ciência, não é só vontade. BBC News Mundo - Falou-se muito de sua saúde e também do transtorno obsessivo compulsivo de que o sr. sofre e que o sr. tornou público. Houve outras intenções quando essa questão foi levantada durante a campanha eleitoral? Boric - Sem sombra de dúvida. Há um estigma em torno da saúde mental. BBC News Mundo - Quais situações o incomodam? Boric - A mentira intencional me incomoda muito, não o erro, as pessoas que falam mal no jornalismo me incomodam, os intrigueiros me incomodam. BBC News Mundo - O sr. se mostrou um político muito tolerante com as críticas da oposição, mas e quando isso atinge as pessoas que você mais ama — como sua parceira Irina Karamanos, que assumirá como primeira-dama e foi criticada por isso? Boric - Devemos distinguir entre a crítica construtiva — e o debate político que ocorre dentro do feminismo e que é totalmente legítimo — e a crítica oportunista. Parece que já houve o suficiente da primeira e pouco da segunda. Os debates do feminismo são desejáveis. Temos que nos acostumar com o fato de que ter diferenças de opinião não significa uma tragédia. Mas, quando os ataques são pessoais, e particularmente contra meus entes queridos, irmãos, pais, amigos ou Irina, é algo que realmente me incomoda muito. BBC News Mundo - Qual é a imagem que gostaria de imprimir com seu governo? Boric - Que, através da política, é possível mudar o mundo. Que a política não é um espaço de corrupção, mentiras e acomodações. A política pode ser um trabalho honesto para transformações sociais, inclusivas, não apenas profissionais.
2022-01-23
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60100351
america_latina
A incrível história do primeiro narcossubmarino apreendido na Europa
Três homens corpulentos confinados em um espaço minúsculo de apenas 1,5m². Fechados ali por 27 longos dias. Navegando debaixo d'água, respirando um ar frio e úmido o tempo inteiro. Sem espaço para se mexer, alternando-se para dormir sobre fardos no porão da embarcação submersível em que viajavam. O batiscafo (um tipo de submarino geralmente usado para explorar grandes profundezas) em que o trio estava não sistema de evacuação, o que faziam com que eles usassem uma bolsa como banheiro. Eles se alimentavam com comida enlatada, doces industrializados, barras energéticas e latas de Red Bull para ficarem acordados. Os três enfrentavam também feridas na pele, causadas pelas roupas molhadas e gordurosas que usavam o tempo todo. Havia apenas seis janelas estreitas. Esses três homens cruzaram o oceano Atlântico entre outubro e novembro de 2019, percorrendo mais de 3.500 milhas náuticas (quase 6.500km) entre Brasil e Europa a bordo desse pequeno e precário submarino artesanal feito de fibra de vidro, sem grandes dispositivos eletrônicos para navegação. A embarcação era equipada apenas com telefones convencionais via satélite, uma bússola montada no painel e um compasso. Nesse submersível eles resistiram a tempestades terríveis, ondas aterrorizantes, estragos de todos os tipos e estiveram a ponto de serem atingidos por um barco em uma ocasião. Várias vezes eles pensaram que iam morrer. O objetivo era levar uma carga de 3.068 quilos de cocaína para a Europa (avaliada em pelo menos R$ 760 milhões segundo a cotação europeia) naquele submersível e cobrar por seus serviços de transporte. E eles estavam prestes a conseguir. Durante vários dias conseguiram enganar a polícia e os serviços de inteligência especializados no tráfico de drogas em vários países. Mas no final eles acabaram derrotados. Fim do Matérias recomendadas Uma operação policial chamada "Maré Negra", que entrou para a história por ter apreendido o primeiro "narcossubmarino" a chegar à Europa vindo da América Latina, interrompeu seus planos e terminou com a prisão desses três homens. Agora eles acabaram de ser julgados na Espanha. Os três se declararam culpados, mas nenhum quis colaborar com a Justiça por medo de retaliação a eles ou suas famílias pelos narcotraficantes que enviaram a droga à Europa. As sentenças devem sair em breve, e cada um deles pode ser condenado a até 13 anos de prisão. "Operação Maré Negra", livro escrito pelo jornalista galego Javier Romero e publicado pela Ediciones B, resgatou em detalhes a incrível jornada daqueles homens que transportaram por 27 dias mais de 3 toneladas de cocaína. Sem lançamento previsto no Brasil, a obra reúne depoimentos de policiais, juízes, especialistas e testemunhas do evento para traçar em detalhes a crônica de "Che", como foi batizado o submersível. Um submersível projetado para poder navegar com a maior parte do casco submerso, movendo-se próximo à superfície, quase invisível entre ondas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Esse não é obviamente o primeiro equipamento do tipo. A tradição dos narcossubmarinos começou na Colômbia na década de 1990, pelas mãos de ex-soldados e engenheiros da antiga União Soviética. O precursor foi Pablo Escobar, traficante colombiano que nunca escondeu o fato de que havia dois desses submarinos em sua frota marítima. "Agora são bastante comuns: todos os anos entre 30 e 40 são interceptados na Colômbia", conta Romero à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC). "E embora diversos relatórios de policiais especialistas em tráfico de drogas tenham apontado há muito tempo que os narcotraficantes estavam usando submarinos para cruzar o Atlântico, nenhum havia sido apreendido, até o Che." "Ele foi construído em um estaleiro clandestino na Amazônia. A missão para pilotá-lo coube a um ex-campeão espanhol de boxe e velejador experiente chamado Agustín Álvarez. O restante da tripulação era formado por dois primos equatorianos, também velejadores: Luis Tomás Benítez Manzaba e Pedro Roberto Delgado Manzaba. "O preço acordado pelos Manzabas foi de US$ 5.000 (cerca de R$ 27 mil) adiantados para cada um e, se tudo corresse bem e a missão terminasse com sucesso, mais US$ 50 mil por cabeça (cerca de R$ 270 mil). Não se sabe quanto iriam pagar a Agustín Álvarez, mas fontes policiais estimam que entre US$ 400 mil e US$ 500 mil (entre R$ 2,1 milhões e R$ 2,7 milhões)", aponta o autor de "Operação Maré Negra". O Ministério do Interior espanhol, por sua vez, calcula que o preço da cocaína transportada pelo narcossubmarino seria de 123 milhões de euros (cerca de R$ 760 milhões) na Europa. Uma vez carregados com 3.068 quilos de cocaína da Colômbia, distribuídos em 152 fardos, na noite de 29 de outubro de 2019, os três tripulantes soltaram as amarras e o "Che" iniciou sua jornada. Eles primeiro navegaram pelo rio Amazonas por 12 horas, atravessando alta umidade, mosquitos, manguezais e vegetação exuberante. Não se descarta que algum navio tenha os conduzido, abrindo caminho para o narcossubmarino, impedindo que ele colidisse com algum dos milhares de troncos de todas as espessuras que flutuam na superfície do Amazonas até o oceano Atlântico. Apesar de o "Che" não ter radar, sistema de identificação automática, radiofarol ou qualquer coisa do tipo, tudo estava indo muito bem. Até 5 de novembro de 2019, oitavo dia da travessia, quando surgiram as primeiras nuvens. "O bom tempo se foi, para nunca mais voltar, deixando a tripulação indefesa em direção ao seu destino. A próxima vez que viram o sol brilhar, contra um céu azul, foi enquanto caminhavam no pátio da prisão galega conhecida como A Lama", relata Romero. Do dia 7 de novembro e até que o momento em que o submarino chegaria ao ponto acordado, três fortes tempestades surgiram no trajeto, uma após a outra, contra um "Che" que estava em franca deterioração. Chegaram prestes a afundar, fazendo com que seus três tripulantes vivessem uma verdadeira pesadelo durante oito longos dias. No dia 14 de novembro o tempo lhes deu uma certa folga. Havia outro "detalhe". Pelo menos, os três tripulantes do "Che" não haviam sido trancados no narcossubmarino, como acontecia com submersíveis cruzavam o Atlântico carregados de drogas. "Eles fechavam a escotilha pelo lado de fora com cadeados, ou algo do tipo, para que ela só abrisse quando chegassem ao destino. Eles não deram escolha à tripulação a não ser terminar a viagem para sobreviver. Era isso ou a morte. Eles fizeram isso por causa do desconfiança que existia no passado com integrantes na Galícia (região da Espanha), caso tentassem roubar mercadorias", disse um dos tripulantes do "Che" às ​​autoridades espanholas. Dezessete dias depois de zarpar, e depois de cruzar as águas do Atlântico por 4.931 quilômetros, "Che" conseguiu finalmente superar o principal objetivo da viagem: as ilhas dos Açores, que pertencem a Portugal. De lá, os três tripulantes seguiram para o norte para chegar às coordenadas passadas onde a droga seria descarregada: 38º 14'47,4"; 14º52'01,1". O "Che" conseguiu chegar a esse ponto preciso, a 270 milhas em linha reta de Lisboa, mas sem o sucesso esperado. A embarcação flutuava e a tripulação estava viva, mas a essa altura, a umidade e a má alimentação já tinham abalado a saúde da tripulação. Ao chegarem à área marcada no mapa, no local combinado para descarregar a cocaína, ninguém saiu para encontrá-los no "Che". Em algum lugar ao longo da costa de Portugal, havia duas lanchas (planadores projetados e equipados exclusivamente para transportar grandes quantidades no menor tempo possível) prontas para pegar a droga. Mas uma delas sofreu um problema mecânico e não conseguiu zarpar. A organização do narcotráfico, segundo informações recolhidas pela polícia espanhola, instruiu a tripulação do "Che" a seguir caminho em direção à Galícia, de onde é o piloto Agustín. "Na Galícia, existe um importante negócio de 'narcolancheros' que se dedicam ao desembarque de drogas", conta Romero. Mas ao perceber que o plano inicial dos profissionais do narcotráfico havia falhado, Agustín decidiu adotar um plano B e recorreu a dois amigos de infância. A essa altura, o Centro de Análise e Operações Marítimas do Narcotráfico (MAOC-N) já tinha conhecimento de que havia uma embarcação com várias toneladas de cocaína na região. Veículos aéreos e marítimos foram enviados em busca dele, sem sucesso. Eles procuravam um barco de pesca, um veleiro, um cargueiro... mas não um semissubmersível. Segundo a investigação oficial da Espanha, "uma patrulha da Marinha Portuguesa e meios aéreos estiveram nas coordenadas em tempo real e não conseguiram detectar (o 'Che')". Os esforços dos narcotraficantes para descarregar a cocaína não deram resultado. Embora tenham enviado um pequeno barco para o sul da chamada Costa da Morte, na Galícia, para tentar recolher a mercadoria, a Guarda Civil espanhola obteve informações sobre a operação e um helicóptero e um barco posicionaram-se na zona onde foi vai ser feito o desembarque da droga. Ao avistar os agentes de segurança, a tripulação do pequeno barco decidiu não tentar a manobra. E o mau estado do mar permitiu que o narcossubmarino passasse despercebido. Desesperados, sem comida nem água potável, os tripulantes do "Che" decidiram então levar a embarcação para a zona de Rías Baixas, na costa galega. Mais especificamente, ao estuário de Aldán, onde o piloto do "Che" passava os verões quando era criança e que conhecia muito bem. "Com muita habilidade, por se tratar de uma área complicada para a navegação, Agustín conseguiu colocar o submarino naquele estuário e o posicionou em frente a uma enseada com cerca de 8 metros de profundidade", conta Romero. Na madrugada de 24 de novembro, a tripulação do "Che" abriu a torneira e a água começou a entrar no "Che" até afundar. Os três tripulantes pularam na água, com a ideia de voltar para recolher a droga mais tarde. Mas não houve oportunidade. Luis Tomás Benítez Manzaba foi preso logo em seguida na mesma praia. O mesmo destino teve Pedro Roberto Delgado Manzaba, cinco horas depois em uma rodovia próxima dali. O capitão, Agustín, foi preso cinco dias depois em uma casa da região onde estava escondido. "Ao verificar a precariedade e falta de espaço do narcossubmarino, foi incrível que conseguiram chegar vivos à Espanha", nas palavras do sargento Basante, o primeiro policial a pisar na embarcação. "Eu também estive dentro do 'Che' e a sensação de claustrofobia era enorme. Estar lá por 27 dias deve ter sido uma verdadeira tortura psicológica para o trio", relembra Romero. Os 152 fardos de cocaína acabariam confiscados pelas forças de segurança junto com a embarcação. Agustín e os primos Manzaba foram levados à prisão, ondem ficaram à espera da sentença judicial. Outras quatro pessoas, como os amigos com quem o piloto do narcossubmarino entrou em contato, também aguardam uma decisão sobre a pena. Mas os donos das drogas e aqueles que as receberiam seguem livres. E provavelmente preparando novas remessas.
2022-01-22
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60097718
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A tecnologia inovadora que alimentou o Império Inca
No século 15 e início do 16, uma pequena ilha no lago Titicaca era um dos locais religiosos mais importantes da América do Sul. Reverenciada como o local de nascimento do Sol, da Lua e da dinastia Inca, Isla del Sol ("Ilha do Sol") atraía peregrinos de toda parte dos Andes. Há alguns anos, segui os passos deles, pegando um barco na cidade boliviana de Copacabana para atravessar as águas agitadas do lago, que fica a 3.812m de altitude, sendo o único lugar do planeta que um viajante pode "sofrer de enjoo no mar e mal da altitude ao mesmo tempo", de acordo com o explorador britânico Percy Harrison Fawcett, que o visitou no início do século 20. Após atracar na costa nordeste de Isla del Sol, segui uma trilha centenária passando por uma série de ruínas incas e pré-incas — tambos (estalagens), santuários, templos, praças, altares e um complexo cerimonial que inclui Titikala, um afloramento de arenito de onde o deus criador dos Andes Viracocha teria gerado o Sol e a Lua. Fascinado pelos sítios arqueológicos antigos e pela vista da Cordilheira Real coberta de neve à distância, prestei pouca atenção às plantações em socalcos (técnica de cultivo em degraus) que serpenteavam ao longo das encostas da ilha. Fim do Matérias recomendadas No entanto, esta façanha aparentemente simples de engenharia agrícola ajudou os Incas a construir o maior império da história da América do Sul. Conhecidos como andenes ("plataformas", em tradução literal), estas plantações em socalcos estão espalhadas pelos Andes Centrais. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Construídos pela primeira vez há cerca de 4.500 anos por culturas antigas de toda a região, eles foram aperfeiçoados pelos Inca, que surgiram no século 12 e eram mestres na adoção e adaptação de técnicas, estratégias e sistemas de crenças de outras sociedades. Os andenes, diz Cecilia Pardo Grau, curadora da exposição Peru: A Journey in time em cartaz no British Museum, em Londres, foram "uma forma criativa de desafiar o terreno... que permite uma maneira eficiente de cultivar [lavouras]". Eles permitiram que as comunidades andinas superassem ambientes desafiadores, incluindo encostas íngremes, solo ralo, temperaturas extremas e oscilantes e chuvas escassas ou sazonais. Abastecidos por poços artificiais e elaborados sistemas de irrigação, os andenes expandiram significativamente a área de terras cultiváveis. Eles também conservaram água, reduziram a erosão do solo e — graças aos muros de pedra que absorviam o calor durante o dia e depois o liberavam à noite — protegiam as plantas de geadas severas. Isso permitiu que os agricultores cultivassem dezenas de safras diferentes, de milho e batata a quinoa e coca, muitas das quais não teriam sobrevivido na região. O resultado foi um aumento dramático na quantidade total de alimentos produzidos. Além de sua engenhosidade, os andenes também possuem uma qualidade artística, formando vastos padrões geométricos nas paisagens dos Andes. Alguns se parecem com gigantescas escadarias verdes esculpidas na encosta da montanha, enquanto outros são feitos de conjuntos de círculos concêntricos, chamando a atenção como uma ilusão de ótica. Um dos mais impressionantes é o sítio arqueológico peruano de Moray, que se assemelha a um anfiteatro natural. Localizado a cerca de 50 km ao norte da antiga capital inca de Cuzco e 3.500m acima do nível do mar, ele demonstra como os andenes eram usados ​​para criar uma variedade de microclimas. Graças aos vários desenhos, tamanhos, profundidades e orientações dos socalcos, a diferença de temperatura entre o mais alto e o mais baixo é de cerca de 15ºC. Moray foi descrito como uma "estação de pesquisa agrícola": amostras de solo de todo o império foram descobertas aqui, e os pesquisadores argumentam que os Incas podem ter usado o local para experimentar práticas como rotação de culturas, domesticação e hibridização. Técnicas agrícolas sofisticadas, como os andenes, desempenharam um papel vital na expansão do império Inca, que era conhecido como Tawantinsuyu e se estendia por grande parte do Peru moderno, oeste da Bolívia, sudoeste do Equador, sudoeste da Colômbia, noroeste da Argentina e norte do Chile em seu auge. Um dos relatos mais antigos que temos conhecimento sobre seu uso vem de Garcilaso de la Vega (1539-1616), filho de uma nobre inca e um conquistador espanhol. Após conquistar um novo território, os Incas começavam a expandir a quantidade de terras agrícolas levando engenheiros qualificados, observou de la Vega em seu livro Royal Commentaries of the Incas. "Depois de cavar os canais [de irrigação], eles nivelavam os campos e os retificavam para que a água da irrigação pudesse ser distribuída de forma adequada", escreveu ele. "Eles construíam socalcos nas montanhas e nas encostas, onde o solo era bom… Desta forma todo o monte foi sendo gradualmente cultivado, as plataformas sendo aplainadas como degraus de uma escada, e todo o terreno cultivável e irrigável sendo aproveitado." O terreno recém-expandido era posteriormente dividido em três partes: uma para o imperador Inca; outra para fins religiosos; e uma terceira para a comunidade, cujos lotes eram distribuídos pelas lideranças locais. Embora não fossem tributados, os agricultores eram obrigados a passar um tempo trabalhando nas terras religiosas e do imperador, assim como nas suas próprias terras. Técnicas como os andenes eram combinadas com políticas como a mitma, em que as pessoas eram levadas para territórios recentemente conquistados para ajudar a consolidar o controle inca; e a mit'a, uma forma de serviço público obrigatório usado para fornecer mão de obra para construir infraestrutura, incluindo uma rede de estradas com dezenas de milhares de quilômetros de extensão. Esta abordagem em relação à agricultura, comunidade e organização imperial permitiu aos Incas acumularem grandes excedentes de alimentos para uso durante as secas, inundações, conflitos e outros períodos de escassez. Estas reservas — que incluíam chuño, batata liofilizada produzida por repetida exposição à geada e ao sol forte — eram mantidas em enormes depósitos chamados qullqas. Na ausência de uma linguagem escrita, os Incas usavam um sistema complexo de cordas multicoloridas com nós, conhecido como quipu (ou khipu), para administrar os estoques, assim como para manter o controle de população e dados astronômicos. Alguns acadêmicos acreditam que o quipu pode até ter sido usado para registrar narrativas como histórias, canções e poemas. Grau argumenta que os quipus — há exemplares em exibição na exposição do British Museum — eram fundamentais para a sociedade Inca. "Eles herdaram esse conhecimento dos Wari, uma sociedade que existia nas terras altas do sul, 400 anos antes dos Incas", diz ela. "Os Incas usavam um sistema decimal: eles tinham um nó diferente para cada número de um a nove, e depois para dezenas, centenas e milhares... o quipu era essencial na forma como o império funcionava e era organizado." No fim das contas, os andenes, os estoques de alimentos e os quipus ajudaram os Incas a expandirem constantemente um império que acabou dominando uma grande parte da América do Sul, abrangendo 12 milhões de pessoas e produzindo cidadelas majestosas como Machu Picchu. Mas a chegada dos conquistadores espanhóis no século 16 provocou a queda dos Incas e o declínio dos andenes. A violência colonial, as epidemias de doenças europeias e os deslocamentos forçados devastaram as populações indígenas dos Andes Centrais. Lavouras e práticas agrícolas europeias foram introduzidas e rapidamente se espalharam por toda a região. No entanto, embora muitos andenes tenham sido abandonados ou caíram em desuso, eles nunca desapareceram por completo. Com base no conhecimento transmitido ao longo das gerações, muitos agricultores andinos continuam a usá-los hoje e, embora muitas vezes esquecidos pelos turistas, ainda é comum avistá-los em lugares como a Isla del Sol e a região do Titicaca como um todo, o Vale Sagrado perto de Machu Picchu, e o Vale do Colca no sul do Peru, que tem o dobro da profundidade do Grand Canyon. Nos últimos anos, também houve um interesse acadêmico renovado pelos andenes como uma forma de agricultura sustentável que poderia ajudar o mundo a enfrentar a crise climática, a escassez de água e a erosão do solo. A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, por exemplo, descreve a cultura andina tradicional como "um dos melhores exemplos de adaptação e consciência dos agricultores do meio ambiente" e destaca sua abordagem sustentável em relação ao uso da terra, gestão da água, proteção do solo e biodiversidade de culturas. Quatro mil e quinhentos anos após terem surgido, as plantações em socalcos dos Andes parecem estar à frente de seu tempo.
2022-01-21
https://www.bbc.com/portuguese/vert-tra-59769771
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O que é o neoliberalismo e por que alguns negam que ele exista
Ele é motivo de debates na América Latina há décadas, mas, para muitos, é difícil defini-lo e outros acreditam que ele nem mesmo exista: neoliberalismo, a palavra que marcou uma época. Basta examinar a campanha eleitoral no Chile — o país latino-americano que concentra maior influência das ideias neoliberais — para constatar como esse conceito ainda é um divisor de águas na região. Kast, por outro lado, apresentava as bandeiras neoliberais, como o livre mercado e a redução da intervenção do Estado na economia. Seu programa de governo mencionava uma das maiores referências dessa linha de pensamento — o economista americano Milton Friedman. Mas o programa de Kast não fazia menção explícita ao neoliberalismo. Fim do Matérias recomendadas Este é o reflexo de uma tendência que ultrapassa as fronteiras chilenas. Enquanto a esquerda se refere ao neoliberalismo de forma depreciativa, não se ouve com frequência alguém reivindicá-lo pelo seu nome, como Friedman fazia 70 anos atrás. Alguns especialistas defendem que essa orientação econômica, cujo apogeu teve lugar nas décadas de 1980 e 1990, começou a perder projeção desde a crise financeira global de 2008. "O neoliberalismo se encontra na defensiva", disse o economista e filósofo brasileiro Eduardo Giannetti da Fonseca declarou à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC). Mas o que é exatamente o neoliberalismo e por que é tão polêmico? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Como o próprio nome indica, o neoliberalismo surgiu no século 20 como um esforço para renovar o liberalismo clássico. Apesar de existirem registros isolados de uso do termo desde o final do século 19, é aceito que a adoção formal do termo em si remonta a um encontro de pensadores liberais ocorrido em Paris, no ano de 1938. No encontro, ficou definido que o conceito de neoliberalismo iria incorporar "a prioridade do mecanismo de preços, o livre empreendedorismo, a competição, e um Estado imparcial e forte". Seus promotores se opunham às políticas econômicas keynesianas (baseadas nas teorias do economista britânico John Maynard Keynes), que concedem ao Estado um papel fundamental para evitar crises ou recessões. O economista austríaco Friedrich Hayek, outra importante referência para os neoliberais, argumentava em seu livro Caminho da Servidão (1944) que o planejamento estatal da economia leva ao totalitarismo. Hayek fundou com outros intelectuais, em 1947, a Sociedade Mont Pèlerin, um centro de pensamento econômico para defender, logo após a Segunda Guerra Mundial, valores liberais como a economia de mercado, a sociedade aberta ou a liberdade de expressão. As ideias neoliberais ganharam força particularmente a partir da década de 1970, quando a estagflação e outros problemas econômicos no Ocidente semearam dúvidas sobre as políticas keynesianas e muitos governos buscaram alternativas. Os governos conservadores de Margaret Thatcher, no Reino Unido (1979-90), e Ronald Reagan, nos Estados Unidos (1981-89), adotaram políticas defendidas pelos neoliberais, como a redução do Estado e o controle rígido da oferta de moeda para baixar a inflação. Mas o neoliberalismo está longe de ser uma doutrina uniforme. Ele inclui diversas escolas, como a austríaca de Hayek e Ludwig von Mises, a escola de Chicago (Friedman) e a escola da Virgínia, de James Buchanan — e há diferenças notáveis entre elas, por exemplo, em questões de política monetária. Tudo isso dificulta a definição do neoliberalismo, o que é ainda mais agravado, segundo alguns estudiosos, pelas fortes reprovações que a doutrina costuma receber. "Embora o termo neoliberalismo continue sendo um lugar comum, o seu uso para englobar uma série de coisas que desagradam às pessoas dificulta sua definição clara", segundo Ross Emmett, diretor do Centro de Estudos da Liberdade Econômica da Universidade do Estado do Arizona, nos EUA, declarou à BBC News Mundo. Os críticos do neoliberalismo afirmam que colocar o mercado no centro das prioridades, desregulamentar a economia e desmantelar os mecanismos do Estado que asseguram o bem-estar da população contribuiu para o aumento da distância entre os mais ricos e os mais pobres em vários países. Eles acrescentam que a desigualdade social trouxe problemas cada vez maiores para a democracia e para os indivíduos. No plano político, a esquerda vem tentando frequentemente demonizar o neoliberalismo. "É o caminho que leva ao inferno", declarou em 2002 o então presidente venezuelano Hugo Chávez. Mas os defensores das ideias de Hayek e Friedman defendem que nem Chávez, nem o restante da esquerda, conseguiram demonstrar uma alternativa com sucesso. Outros estudiosos simplesmente negam a existência do neoliberalismo. "Neoliberalismo? Isso não existe!", escreveu o economista Daniel Altman no jornal americano The New York Times em 2005, argumentando que os países ricos, na verdade, nunca se abriram para o livre comércio. "Não existem novas ou velhas liberdades. Ou há liberdade ou não há. Por isso, o conceito neoliberal não tem sentido", defendeu o economista ultraliberal argentino Javier Milei em agosto de 2021, antes de ser eleito deputado em novembro. Mas a Argentina, depois do Chile, foi um dos símbolos do neoliberalismo na década de 1990, quando o governo Carlos Menem privatizou tudo o que pôde, desregulamentou a economia e adotou a paridade um por um entre o peso e o dólar. Essas mudanças foram aprovadas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), que se referia à Argentina como modelo até dezembro de 2001, quando o país entrou em uma crise financeira muito séria e suspendeu os pagamentos da dívida externa de US$ 144 bilhões (cerca de R$ 815 bilhões) — a maior dívida da história. James Boughton trabalhou no FMI e foi seu historiador entre 1992 e 2012. Ele nega que a instituição tivesse "uma visão extremista do neoliberalismo", mas admite que a instituição incentivou políticas de privatização e livre mercado em países da extinta União Soviética e da América Latina. "O FMI impulsionou tudo isso, de forma que, nesse sentido, pode-se afirmar que ele estava incentivando políticas neoliberais", declarou Boughton à BBC News Mundo. Por outro lado, Giannetti da Fonseca considera "um erro grave" dos neoliberais querer implantar receitas de países desenvolvidos na América Latina, onde existem problemas de pobreza e escassez de capital humano que, segundo ele, sensibilizavam mais os liberais clássicos. Nas últimas décadas e sob regime democrático, o Chile manteve políticas de livre mercado que permitiram atingir um PIB per capita similar ao de países europeus e reduzir os índices de pobreza. Mas o modelo chileno entrou em crise com os movimentos de protesto que eclodiram em 2019 contra a desigualdade e pedindo reformas sociais. "Com exceção do Chile, o neoliberalismo dos governos latino-americanos foi muito inconsistente e ineficaz, pois não houve reformas neoliberais, para o bem ou para o mal", disse Giannetti da Fonseca.
2022-01-16
https://www.bbc.com/portuguese/geral-59521979
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Como é a Corbevax, 1ª vacina contra covid sem patente desenvolvida na América Latina
Desde que as primeiras vacinas contra a covid-19 foram aprovadas, surgiu um intenso debate que dividiu o mundo. De um lado, estavam as empresas farmacêuticas de países poderosos que protegiam a propriedade intelectual das vacinas que desenvolviam. E, de outro, aqueles que pediam a liberação das patentes para que as vacinas pudessem ser produzidas em maior quantidade e chegassem aos países mais pobres. Agora, uma cientista hondurenha espera acabar com esse embate, graças ao desenvolvimento de uma vacina sem patente. Trata-se de María Elena Bottazzi, codiretora do Centro de Desenvolvimento de Vacinas do Hospital Infantil do Texas, em Houston, nos Estados Unidos. Fim do Matérias recomendadas Bottazzi e Peter Hotez desenvolveram uma vacina contra a covid-19 que no final de dezembro recebeu autorização para uso emergencial na Índia. O nome da vacina é Corbevax e, segundo Bottazzi, todas as informações necessárias para fabricá-la estão disponíveis sem fins lucrativos. "Qualquer um pode replicá-la", diz Bottazzi à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC. "Qualquer um pode trabalhar conosco." Atualmente, Bottazzi e sua equipe estão em negociação para produzir a vacina em países como Indonésia, Bangladesh e Botsuana. E, por ser hondurenha, ela tem um interesse especial de que o imunizante possa ser produzido na América Central e distribuído em toda a região. Em conversa com a BBC News Mundo, Bottazzi explica por que considera a Corbevax "a primeira vacina contra covid concebida para a saúde global" — e como espera que a mesma mude os paradigmas de produção e distribuição de vacinas. A vacina desenvolvida por Bottazzi e Hotez é baseada em uma tecnologia tradicional, chamada proteína recombinante. Esta tecnologia já se mostra eficaz há décadas, em vacinas como a da hepatite B, por exemplo. Seu funcionamento é baseado no uso de proteínas do vírus que sejam suficientes para despertar uma resposta imune, mas não a doença. Além disso, requer um processo de produção mais simples e barato do que outros tipos de vacinas, como aquelas com tecnologia de RNA mensageiro produzidas pela Pfizer ou Moderna. Bottazzi e Hotez vinham trabalhando em uma vacina desde o início dos anos 2000, quando surgiram as epidemias de Mers (síndrome respiratória do Oriente Médio) e Sars (síndrome respiratória aguda grave), que também são coronavírus. Como estes vírus não levaram a uma pandemia, se perdeu o interesse por essas vacinas — mas com a chegada do SARS-CoV-2, vírus causador da covid-19, Bottazzi e Hotez retomaram seus trabalhos, aproveitando os avanços que já haviam feito. Por isso, quando a pandemia eclodiu, eles estavam prontos para desenvolver os testes necessários para aperfeiçoar a vacina. "Mas não houve interesse", conta Bottazzi, se referindo ao fato de não terem conseguido o apoio de órgãos do governo americano. "Eles estavam focados que precisava ser uma vacina de mRNA", explica. "Foi uma falha não apoiar tecnologias como a de proteínas recombinantes, ou as vacinas convencionais, porque é verdade que talvez demoremos mais para produzir, mas uma vez que conseguimos, podemos produzir bilhões de doses. Enquanto as de mRNA podem ser produzidas rápido, mas não em escala suficiente." Mas à medida que a pandemia entra no seu terceiro ano, a vacina de Bottazzi parece finalmente ter conseguido uma chance. Para a cientista, o governo da Índia foi "mais esperto". "Eles disseram: 'Se ninguém quer estas vacinas, vou analisá-las e produzir minhas próprias vacinas, sem ter que esperar que alguém venha entregar para nós'." O Hospital Baylor College, onde Bottazzi e Hotez trabalham, fez uma parceria com o laboratório indiano Biological E. para compartilhar informações e realizar os estudos necessários para verificar a segurança e eficácia da vacina. De acordo com um estudo de Fase 3, realizado com 3 mil voluntários, a Corbevax é 90% eficaz na prevenção da doença causada pela versão original do SARS-CoV-2 e 80% eficaz para a variante delta. Os dados destes estudos ainda não foram publicados, por isso alguns especialistas preferem ser cautelosos. "A ciência, especialmente quando se trata de saúde pública, se baseia na análise objetiva de dados abertos, não aceitando a palavra de um fabricante de vacinas com interesse no produto", afirmou James Krellenstein, cofundador da PrEP4All, organização que zela pela equidade nos serviços de saúde, ao jornal americano The Washington Post. Em relação à variante ômicron, Bottazzi diz que está fazendo testes e aguardando a validação dos resultados. A pesquisadora afirma também que os dados dos estudos ainda não foram publicados porque leva tempo para processá-los e disponibilizá-los ao público — e tanto a equipe dela quanto a da Biological E. são pequenas em relação às grandes multinacionais. Ao mesmo tempo, Bottazzi garante que "não haverá surpresas". O fato é que o governo da Índia já encomendou 300 milhões de vacinas da Biological E. Além disso, Bottazzi afirma que a ideia é que a Corbevax entre em março no mecanismo Covax, por meio do qual a Organização Mundial da Saúde (OMS) busca uma distribuição igualitária de vacinas entre os países menos desenvolvidos. Bottazzi está confiante de que seu trabalho ajudará a mudar o modelo de produção e distribuição de vacinas em todo o mundo. "Os fabricantes precisam ter algum altruísmo", diz ela. "A desgraça foi que esse altruísmo não aconteceu nessa situação de emergência e não fomos capazes de oferecer ao mundo o que ele precisava, e é por isso que ainda estamos nessa situação tão grave." "Acesso global não é apenas enviar a vacina para outra parte do mundo, acesso global é que haja acesso igualitário, que qualquer fabricante possa replicar a fórmula, que qualquer pessoa tenha acesso à vacina", acrescenta. Segundo ela, este modelo livre de patentes ressalta o papel das entidades acadêmicas e serve para chamar a atenção dos governos para que apoiem mais áreas de pesquisa. "É preciso mudar os incentivos, não pode ser só econômico", diz Bottazzi. "A vacina não é um produto para fazer dinheiro."
2022-01-13
https://www.bbc.com/portuguese/geral-59978358
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'Sou policial, mas conserto micro-ondas para sobreviver': os 'bicos' feitos por venezuelanos em meio à crise
"Compro seus dólares feios, rasgados, manchados e deteriorados", anuncia o estudante de contabilidade Miguel Urrutia, que recorre à compra e venda de moeda estrangeira para sobreviver. "A coisa está difícil, sabe?", acrescenta ele, ao lado de vários outros jovens de Caracas, na Venezuela, em uma praça barulhenta, vibrante e cheia de gente. "Ninguém mais quer estudar nem trabalhar, porque só o que dá dinheiro é isto", ele conta. Muitas lojas e pessoas não aceitam as notas de dólares deterioradas, mas Miguel as negocia. Em uma esquina da Praça Bonalde, no bairro popular de Catia, em Caracas, Urrutia compartilha a região com vendedores de parafusos, cabos para celular e comida chinesa, entre outros produtos. Esta sempre foi uma região de vendedores ambulantes, conhecidos na Venezuela como "buhoneros". Eles ficavam em dois ou três calçadões para pedestres. Mas, nos últimos anos, o mercado popular se espalhou por outras ruas, pela própria praça e chegou aos bairros vizinhos. "As pessoas mudaram com a chegada do dólar", segundo Ana Cermeño, de 61 anos, vendedora de sacolas de compras em Catia. "Antes você ganhava [as sacolas] na padaria, mas agora as pessoas estão vendendo tudo o que encontram e, se não encontram algo, elas inventam." Fim do Matérias recomendadas Depois de uma crise econômica que reduziu a economia em 80% entre 2013 e 2021, a chegada informal do dólar às ruas venezuelanas agitou a lógica de emprego. Segundo a Pesquisa Nacional de Condições de Vida (Encovi, na sigla em espanhol) da Universidade Católica Andrés Bello, de Caracas, o emprego formal perdeu 4,4 milhões de vagas — quase um terço da população economicamente ativa — entre 2014 e 2021. E, só em 2021, foram fechados 1,3 milhão de vagas de emprego formal. Atualmente, somente 40% dos empregos são formais, segundo a Encovi, mas outros estudos, como os que analisam a informalidade com base na quantidade de pessoas inscritas na previdência social, a formalidade cai para 20% — de longe, o menor percentual da América Latina. A crise dos empregos formais não repercutiu apenas nas ruas. A BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC) entrevistou um policial que conserta micro-ondas, um engenheiro que presta serviços de encanador, uma professora que produz geleias e molhos de macarrão e outro educador que trabalha em uma pizzaria. Muitos têm até uma terceira atividade; alguns trabalham sete dias por semana; e a maioria tem como objetivo conseguir um dólar a mais, 12 horas por dia. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Oscar - que pediu para não revelar seu nome porque sua atividade pode ser interpretada como ilegal — está estudando para ser chefe de cozinha e já manteve um empreendimento de banco virtual. Mas, hoje, sua renda vem de videogames. "Se você pesquisar, verá que a maioria das pessoas consegue ganhar até cerca de US$ 50 (R$ 280) por mês, o que é muito mais que o salário mínimo ou a aposentadoria (entre US$ 5 e US$ 10 — R$ 28 a 56), mas ainda não é suficiente", segundo ele. Oscar passa seus dias em Axie Infinity, um videogame para computador ou telefone celular cujo objetivo é criar personagens com poderes específicos que são comercializados por meio de um token não fungível (NFT, na sigla em inglês). "Quando as pessoas veem alguém ganhar US$ 50 com uma ou duas horas de trabalho, isso se torna uma tábua de salvação ou auxílio", explica Oscar. As pessoas dedicadas a monetizar Axie Infinity costumam ganhar, em média, cerca de US$ 800 (R$ 4,5 mil) por mês. Segundo o medidor de tráfego da internet SimilarWeb, a Venezuela é o segundo país com mais usuários de Axie Infinity, atrás apenas das Filipinas. "Existem diversas formas de monetizar e o investimento não precisa ser muito grande", segundo Oscar. "O sistema é meio que cooperativo e, para ganhar, você precisa de outros jogadores. (...) Eu colaboro (na Venezuela) com um dentista que joga enquanto espera pacientes e com outro que cuida da sua mãe, trabalha no supermercado e joga nas horas vagas." A expressão "matar um tigre" na Venezuela significa trabalhar fora da sua área de especialização para poder sobreviver. Ela surgiu no setor de entretenimento na década de 1930, quando muitos músicos não eram profissionais. Desde então e principalmente agora, depois de uma das crises econômicas mais severas já registradas na história do continente americano, os venezuelanos comentam sobre seus "tigritos". "Trabalhar na informalidade dá mais dinheiro. Por isso, muitas pessoas, principalmente do setor público, pediram demissão ou simplesmente não vão ao trabalho e se dedicam a outras coisas", afirma Demetrio Marotta, economista e consultor empresarial. "O Estado entrou em colapso e a previdência social não é mais um mecanismo para ter uma vida estável." Outro economista venezuelano, Asdrúbal Oliveros, acrescenta: "a hiperinflação destruiu não só a moeda, mas também a maioria dos empregos, acabando com a estabilidade no trabalho. Essa situação precária fez com que as pessoas dessem prioridade a trabalhos que dão sustento para o dia, em vez de outros que teoricamente lhes dariam estabilidade." Mas Oliveros explica que, além disso, "a dolarização ocorreu com mais rapidez na informalidade que na estrutura formal, já que muitas empresas continuam pagando em bolívares [a moeda venezuelana]". É por isso que Yulimar Aldana, com 26 anos de idade, decidiu deixar seu emprego como auxiliar de laboratório e montou uma mesa de venda de produtos básicos no bairro San Martín, em Caracas. "Ganho mais vendendo arroz, farinha e óleo aqui na rua que no laboratório (...) e, além disso, não preciso gastar o dinheiro do transporte, nem passar quatro horas por dia indo até o trabalho", conta ela. A crise econômica venezuelana teve forte impacto sobre os serviços públicos, incluindo o transporte que, com a escassez de abastecimento e complicações na compra de gasolina, perdeu a eficiência que teve no passado. "No laboratório, eu tinha um bônus anual e descontos em consultas médicas e algumas lojas", conta Aldana, "mas ganho mais fazendo isso, que não é o que estudei, mas me permite ficar tranquila".
2022-01-12
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Como a Venezuela saiu da hiperinflação e o que isso significa para a frágil economia do país
Quatro anos e duas reconversões monetárias depois, a Venezuela sai do ciclo de hiperinflação em que se encontrava desde 2017. O Banco Central da Venezuela (BCV) divulgou no sábado (8/1) os números da inflação: de acordo com o Índice Nacional de Preços ao Consumidor, a variação mensal dos preços em dezembro foi de 7,6%. Isto significa que a Venezuela completou exatamente doze meses com uma variação abaixo de 50%, considerada pelos especialistas como o limiar da hiperinflação. Além disso, a Venezuela está há quatro meses consecutivos com uma variação inflacionária de apenas um dígito. A inflação em setembro de 2021 foi de 7,1%, seguida por 6,8% (outubro), 8,4% (novembro) e 7,6% (dezembro), conforme os dados divulgados. Isso não é surpresa para muita gente. O próprio presidente venezuelano, Nicolás Maduro, havia dito dias atrás, em entrevista ao canal de televisão Telesur, que o país havia encerrado o ciclo de hiperinflação. Fim do Matérias recomendadas "Posso declarar politicamente, com o resultado da gestão da inflação entre os meses de setembro, outubro, novembro e dezembro, que tem sido de um dígito com tendência de queda, que a Venezuela deixa o estado de hiperinflação", declarou o presidente. Mas o que isso significa? E quais são as consequências para a economia venezuelana, que teve que enfrentar um dos mais longos processos hiperinflacionários da história moderna? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para Luis Oliveros, professor e economista da Universidade Metropolitana, o fim do ciclo hiperinflacionário representa "uma excelente notícia". Ele destaca que a Venezuela passou quatro anos com variações "superiores a 100%". "Era (uma inflação) muito alta", diz ele à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC. Este ciclo teve início no último trimestre de 2017, quando se registou uma inflação mensal de 56,7%, ultrapassando assim o limiar. Naquele ano, segundo o BCV, a inflação anual foi de 862,6%. Mas isso foi apenas um preâmbulo do que estava por vir: 2018, ano em que a hiperinflação disparou, fechou com uma taxa de 130.060%. Foi a partir do primeiro trimestre de 2019 que a alta dos preços foi desacelerando, registrando variações acima do limiar de 50% apenas em momentos específicos. A última vez que a Venezuela registrou uma variação mensal acima de 50% foi em dezembro de 2020, quando os preços aumentaram 77,5%. Desde janeiro de 2021 até hoje, a Venezuela não registra variações mensais acima de 50%. Economistas como Oliveros já haviam observado esta tendência e asseguravam que a Venezuela sairia da hiperinflação entre o final de 2021 e os primeiros meses de 2022. No entanto, isso não é necessariamente uma boa notícia para a nação petrolífera. A Venezuela, mesmo sem o prefixo de "hiper", continua tendo hoje a inflação mais alta do mundo. Segundo o próprio BCV, 2021 acabou com uma inflação anual acumulada de 686,4%. "Uma variação média de 7% ao mês pode ser baixa para o contexto da Venezuela", afirma Oliveros. "Mas ainda é muito alta para a inflação média anual na região e no mundo." A hiperinflação da Venezuela foi uma das mais longas da história moderna, superada apenas pela da Nicarágua (1986-1991) e da Grécia (1941-1945). Este processo de hiperinflação para "inflação grave" não teria sido possível não fosse por um "coquetel" de decisões emanadas do governo central, como explica Asdrúbal Oliveros, diretor da empresa Ecoanalítica. Assim como seu colega, Asdrúbal Oliveros concorda que esta mudança na economia tem implicações que são positivas, mas devem ser vistas em contexto. Com a queda dos preços do petróleo em 2013, a contração da economia e as sanções impostas pelos EUA, Canadá e União Europeia, o governo Maduro aplicou uma redução significativa nos gastos do Estado, restrições ao crédito bancário e um menor gasto em bolívares para manter a estabilidade cambial. Em 2017, o déficit público superava 20% do Produto Interno Bruto (PIB), o maior da América Latina. Mas um estudo independente da Universidade Católica Andrés Bello o situou em 7,9% em 2020. O déficit fiscal é o saldo que resulta da subtração das receitas pelas despesas de um Estado. Se o resultado for positivo, o Estado tem um superávit fiscal. Se for negativo, como aconteceu na Venezuela, significa que está se gastando mais do que ganhando. Outras medidas aplicadas foram acabar com o subsídio à gasolina (durante anos a mais barata do mundo, mais barata que uma garrafa de água mineral), afrouxar o controle de preços e abrir o mercado de câmbio, que esteve sujeito a um rígido controle estatal por mais de 16 anos. Isso permitiu mais importações e um pequeno renascimento da indústria privada. Mas há um ponto-chave em tudo isso: a dolarização. Há anos, os venezuelanos vêm usando o dólar como moeda para cada vez mais transações. Isso representa um balão de oxigênio para muitos venezuelanos que viram sua renda reduzida diante da desvalorização do bolívar, que passou por um total de três reconversões monetárias desde 2008 (duas desde o início da hiperinflação) e a eliminação de 14 zeros. Em Caracas, as pessoas garantem que o dólar veio para ficar. Se a imagem da Venezuela em 2017 foi de supermercados vazios, a de 2021 foi de dólares. E os especialistas consultados pela BBC News Mundo indicam que esta dinâmica continuará ocorrendo em 2022. Restaurantes, supermercados e lojas de roupas agora marcam seus preços em moeda estrangeira — e o dólar é usado para quase dois terços das transações, segundo a Ecoanalítica. Esta dolarização tem várias características: a primeira é que é de facto, já que não fazia parte de uma estratégia formal do governo, mas foi assumida pelos próprios venezuelanos. A segunda é que o bolívar não foi substituído pelo dólar, por mais desvalorizado que esteja. E é por isso que os analistas dizem que a dolarização é parcial, já que o governo mantém a moeda nacional para, por exemplo, pagar funcionários públicos ou cobrar por serviços. "Temos duas Venezuelas", afirma Asdrúbal Oliveros. De um lado, uma classe social que adotou o dólar como moeda de uso frequente; e, de outro, uma classe que tem dificuldade de acesso ao dólar e precisa se adaptar para obtê-lo de qualquer maneira, explica. "Então é preciso ver qual é o verdadeiro impacto da inflação", ele completa. "E soma-se a isso que há um aumento do custo de vida em dólares, que, embora seja menor (do que o bolívar), é muito significativo." "Efetivamente, a dolarização trouxe desigualdade", diz, por sua vez, Luis Oliveros. "Nesta história, há perdedores que agora não têm acesso a dólares." A seguinte declaração foi feita pelo próprio Maduro diante das câmeras de televisão em 17 de novembro de 2019: "Estou atento ao setor monetário, para defender o bolívar, os salários, a renda com o 'carnê da pátria'. Avaliar como este processo chamado dolarização pode servir para a recuperação e mobilização das forças do país. É uma válvula de escape. Graças a Deus que existe." Desde então, o dólar circulou livremente de forma cada vez mais evidente. Mas isso não significa que o governo esteja adotando uma dolarização total da economia. Adotar o dólar como moeda "seria o pior erro" para a Venezuela, disse a vice-presidente, Delcy Rodríguez, em dezembro passado. "2022 será o ano da recuperação definitiva do bolívar como moeda nacional", acrescentou. Mas a Venezuela continua a enfrentar grandes desafios, diz Luis Oliveros. Não só para continuar baixando a inflação, como também para corrigir a sobrevalorização cambial. "O governo se concentrou em que a taxa de câmbio não se movesse tanto, e praticamente não se moveu nos últimos quatro meses", explica. "Mas se a taxa de câmbio não se move, continua havendo inflação, e é aí que aparece essa sobrevalorização." A sobrevalorização faz com que as importações sejam mais baratas do que a produção interna, o que se traduz em um desincentivo para a economia doméstica. "A grande missão é o crescimento econômico. A Venezuela teve sete anos de declínio econômico. Mas se continuarmos tendo sobrevalorização, a inflação continuará", conclui Luis Oliveros.
2022-01-12
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Onda de calor na América do Sul pode elevar temperaturas a quase 50 graus
Uma onda de calor intensa atinge a região central da América do Sul nesta semana e pode fazer com que cidades na Argentina, Uruguai e Paraguai registrem temperaturas recordes, próximas dos 50ºC. Causado por uma massa de ar quente e seca, o fenômeno repercute também no sul do Brasil, especialmente no Rio Grande do Sul, onde os termômetros podem chegar a 40ºC. Os primeiros sinais do aquecimento já são sentidos desde segunda-feira (10/1), quando a cidade de San Antonio Oeste, na Patagônia argentina, registrou 42,8ºC, e a província de Mendoza foi colocada sob alerta vermelho. Nesta terça-feira (12/1), a previsão de máxima de 37ºC para Buenos Aires foi superada e os termômetros marcavam 40ºC por volta das 16h do horário local - a maior temperatura desde 1995. Segundo o Serviço Meteorológico Nacional (SMN), a capital argentina enfrenta seu quarto dia mais quente em 115 anos, ou desde que os registros passaram a ser arquivados em 1906. A expectativa é que o calor só cresça nos próximos dias. Os locais mais quentes da Argentina devem registrar entre 45ºC e 47ºC, de acordo com previsões feitas pela MetSul, empresa de meteorologia gaúcha. Os termômetros uruguaios devem ficar entre 41ºC e 43ºC. Fim do Matérias recomendadas Já no Brasil, as temperaturas mais altas no Rio Grande do Sul devem ser marcadas no oeste do estado, com máximas entre 10ºC e 15ºC acima da média para esta época do ano. O Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) emitiu aviso de perigo para 216 municípios do RS em razão da onda de calor. De acordo com o modelo feito pela MetSul, a área da cidade de Uruguaiana pode ver uma escalada de calor com máximas de 41ºC e 42ºC nos próximos dias. Até regiões mais frias, como a Serra Gaúcha, podem ter marcas extremas no final da semana, com máximas de até 37ºC em Caxias do Sul e ao redor dos 40ºC nos vales de Farroupilha e Bento Gonçalves. Em Porto Alegre e região, o calor será maior no final da semana e no próximo fim de semana, com marcas ao redor ou acima dos 40ºC e índices de radiação ultravioleta entre 11 e 16. A Defesa Civil do município pede cuidado extremo e recomenda que a população se proteja do sol, mantenha a hidratação constante e evite exercícios entre 10h e 16h. A maior temperatura já registrada no Rio Grande do Sul, de acordo com os dados oficiais contabilizados desde 1910, foi de 42,6ºC, nos verões de 1917, em Alegrete, e de 1943, em Jaguarão. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O impacto das condições climáticas extremas deve ser sentido especialmente pelos agricultores. A região que engloba o sul do Brasil, o Uruguai e a Argentina sofreu perdas significativas no cultivo com uma profunda seca que marcou o ano que passou, e as temperaturas elevadas podem agravar ainda mais a situação. No Rio Grande do Sul, 159 municípios já estão em situação de emergência devido à estiagem que começou em novembro. Os prejuízos registrados até o momento estão espalhados pela produção de grãos, frutas, hortigranjeiros e leite. Já no sul da Argentina, onde as chuvas não acumularam nem 200 milímetros em todo o ano de 2021, a seca atinge especialmente o polo portuário de Rosário, onde cerca de 80% das exportações agrícolas do país são carregadas. "O setor agropecuário que já vinha sofrendo com a falta de chuva deve ser ainda mais castigado pelas altas temperaturas. O calor em excesso afeta diretamente o desenvolvimento das plantas e pode queimar as plantações", diz Olivio Bahia, meteorologista do Inmet. Há ainda risco de incêndios florestais e quedas de energia. No Uruguai, os primeiros dias de 2022 já foram marcados por imagens assustadoras do fogo no oeste do país. Cerca de 37 mil hectares foram arrasados nas regiões de Paysandú e Río Negro, marcando a maior queimada da história do país. Enquanto isso, as autoridades argentinas já alertavam desde a semana passada para a possibilidade de uma crise de abastecimento de luz com cortes de energia em Buenos Aires e outras cidades do país. Só nesta terça-feira, 11 bairros e 700 mil usuários ficaram sem luz na capital. A falta de energia está associada à alta demanda e ao baixo nível dos rios que abastecem as usinas hidrelétricas do país. O cenário preocupante levou o governo argentino a reunir vários ministérios e organismos para coordenar ações que possam amenizar os riscos provocados pelas altas temperaturas. No encontro realizado na segunda-feira, as autoridades discutiram a ampliação da oferta de unidades de terapia intensiva, centros de diálise e neonatologia para acompanhar a população mais vulnerável e buscaram soluções para manter o fornecimento de energia e água. "Fizemos contato com governadores e prefeitos para unir forças e responder a esta difícil situação excepcional", disse à imprensa o ministro chefe da Casa Civil, Juan Manzur. Segundo Éder Maier, especialista em climatologia da América do Sul e membro do Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a onda de calor atual é consequência da massa de ar quente e seca instalada entre a Argentina e o Brasil. O fenômeno é favorecido pela área de alta pressão atmosférica que está atuando sobre o Rio Grande do Sul, inibindo a formação de nebulosidade e, consequentemente, elevando as temperaturas e reduzindo a umidade do ar. "A baixa cobertura de nuvens e o tempo seco causam maior eficiência do sistema ambiental em converter a radiação solar em calor", diz o especialista. O que se observa atualmente também pode ser classificado como um "extremo climático composto". O termo é utilizado pelos meteorologistas para descrever eventos climáticos extremos simultâneos, concorrentes ou coincidentes, que podem levar a impactos ainda maiores para o meio ambiente e a população. Atualmente na América do Sul, a poderosa onda de calor é acompanhada por um quadro de estiagem forte a severa - enquanto a seca favorece as altas temperaturas, o calor também piora a estiagem. Segundo o climatologista e professor de ciências atmosféricas da USP, Pedro Leite da Silva Dias, a onda de calor está ainda associada às fortes chuvas registradas na Bahia e em Minas Gerais nas últimas semanas. O bloqueio de alta pressão atmosférica impede que as chuvas se desloquem para o sul, fazendo com que elas fiquem retidas sobre as regiões nordeste e sudeste do Brasil. "Funciona como uma gangorra: enquanto o centro da América Latina experimenta seca e calor, o nordeste e sudeste brasileiros sofrem com a chuva", diz. Há ainda uma relação com o fenômeno climático La Niña, que se desenvolve quando ventos que sopram sobre o Pacífico empurram as águas quentes da superfície para o oeste, em direção à Indonésia. Isso causa grandes mudanças climáticas em diferentes partes do mundo, inclusive na América do Sul. "A atmosfera está toda conectada e um fenômeno anômalo nunca acontece de forma isolada", explica o climatologista e professor de ciências atmosféricas da USP, Pedro Leite da Silva Dias. "O La Ninã contribui não só para potencializar a intensidade da atual onda de calor, como também pode fazer com que ela demore a passar". Há registros de eventos extremos associados ao La Ninã há pelo menos 2 milhões de anos, mas já se sabe que seus efeitos negativos estão se tornando cada vez mais intensos. "As temperaturas máximas aumentaram significativamente nos últimos 60 anos e o aquecimento global é, sem dúvidas, um potencial candidato para explicar o aumento da intensidade das ondas de calor", diz Silva Dias.
2022-01-12
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Inflação no Brasil é 5ª maior da América Latina
A inflação voltou a cruzar a marca dos dois dígitos no Brasil em 2021, algo que não acontecia desde 2015. Conforme os dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) nesta terça (11/1), entre janeiro e dezembro do ano passado o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) atingiu 10,06%. O país está longe de ser o único que enfrenta um problema de aumento generalizado de preços. Nos Estados Unidos, na Europa e na própria América Latina, os bancos centrais - a quem geralmente cabe a tarefa de tentar conter a inflação usando o mecanismo das taxas de juros - viram os indicadores de inflação crescer muito mais do que imaginavam. No Brasil, contudo, fatores domésticos se somaram aos motores externos e contribuíram para que o país registrasse uma das maiores inflações da região. Levando em consideração as 11 maiores economias da América Latina, o Brasil só fica atrás de Argentina e Venezuela, dois países que atravessam crises profundas e que vão muito além dos problemas trazidos pela pandemia de covid-19 e suas repercussões. Na Argentina, a inflação atingiu 51,2% nos 12 meses até novembro; na Venezuela, bateu impressionantes 2.700%, conforme a projeção do Fundo Monetário Nacional (FMI) para 2021 fechado. Fim do Matérias recomendadas Quando se incluem os países do Caribe, conforme a base de dados com informações de 34 nações disponibilizada pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), além de Argentina e Venezuela, o Brasil só é superado por Cuba, que amarga inflação superior a 70%, e pelo Haiti, mergulhado em crise, que registra índice próximo de 20% no acumulado em 12 meses. A BBC News Brasil conversou com economistas que acompanham os indicadores da região para entender as razões. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Chile, Colômbia, México, Paraguai, Peru, todos registraram aumento expressivo dos índices de preços no ano passado. O Uruguai viu a inflação ceder em relação a 2020, mas ela continua em nível incômodo, acima do limite de tolerância de 7% estabelecido pelo banco central do país. As exceções são Equador e Bolívia, onde os preços subiram menos de 2% no ano passado, mas que se tratam de casos particulares. Ambos os países têm a economia dolarizada, com um regime de câmbio fixo - uma política que ajuda a conter a inflação, mas que também cobra seu preço, entre eles a exigência de um nível elevado de reservas e o risco de desequilíbrio na balança comercial, com perda de competitividade das exportações. E fora a dupla, praticamente todos os países da região viram suas moedas perderem valor frente ao dólar em 2021. Uma parte desse movimento se deveu a fatores internos, como as eleições turbulentas no Chile e a crise política e institucional no Brasil. Não por acaso, o peso chileno foi a moeda que mais perdeu valor na região em 2021 e o real é a moeda há mais tempo depreciada no continente - desde abril de 2020 o dólar se mantém persistente acima de R$ 5 por aqui. Ao lado das particularidades de cada país, as condições globais também favoreceram a desvalorização das moedas latino americanas. Uma delas foi o aumento dos juros nos Estados Unidos - que se deparou com a necessidade de subir as taxas porque também passou a lidar com um problema de inflação crescente. Com juros maiores nos EUA, os investidores em geral tendem a migrar para mercados considerados mais seguros e tiram dinheiro daqueles considerados mais arriscados, como os emergentes. Sozinha, a desvalorização cambial por si só costuma pressionar a inflação. No ano passado, contudo, ela se juntou a outro componente, o aumento global dos preços de commodities. Em parte devido à retomada das atividades em diversas regiões com o avanço da vacinação, petróleo, minério de ferro, soja, milho, carne, laranja, café e outras commodities viram suas cotações se elevarem nas bolsas pelo mundo. Na avaliação de Felipe Camargo, economista para América Latina da consultoria inglesa Oxford Economics, boa parte da inflação que bateu na América Latina em 2021 veio da combinação entre esses dois fatores. "É o que estamos chamando [em nossos relatórios] de 'inflação importada'", diz o economista. E são dois os principais canais de transmissão dessa "inflação importada" para os preços internos em cada país. O primeiro, mais intuitivo, é o repasse de custos: o produtor local passa a comprar insumo mais caro (porque precisa importar, por exemplo) e repassa esse custo para o consumidor. O segundo se dá pelo incentivo que o câmbio gera sobre os exportadores, explica Camargo. Como é financeiramente bastante vantajoso exportar, os produtores muitas vezes preferem vender para fora em vez de domesticamente, o que ajuda a empurrar os preços internos para cima à medida que diminui a oferta. Um outro fator que também concorreu para trazer mais inflação para a América Latina (e muitos outros países) em 2021, acrescenta Alberto Ramos, economista-chefe do banco Goldman Sachs para a América Latina, foram as rupturas nas cadeias de suprimentos globais. Esse foi outro efeito da retomada mais rápida do que o esperado, traduzido na falta de componentes para a indústria e nos problemas de falta de contêineres para transporte de mercadorias, afetando especialmente os custos industriais. No caso específico do Brasil, ambos os economistas citam um quarto componente que se somou à desvalorização cambial, ao aumento das commodities e aos gargalos de logística: a crise hídrica, que exerceu pressão sobre dois grupos importantes, energia elétrica e alimentos. Assim, a combinação de fatores acabou gerando o que, na avaliação de Camargo, se desenhou como a pior situação da região. "A inflação do Brasil foi a que mais se desviou da meta", ressalta, referindo-se à meta de inflação determinada pelo Banco Central, de 3,75%, com tolerância de 1,5 ponto percentual para cima ou para baixo. "Foi o que mais sofreu choques: a pior depreciação cambial, que veio antes e durou mais, e o maior choque de oferta, por causa da questão da crise hídrica e da energia", completa. Olhando especificamente para o câmbio, que é um fator de preocupação para o Brasil, o economista coloca Colômbia e Chile junto ao país na lista dos piores colocados da região. O peso chileno, ele destaca, sofreu inclusive desvalorização superior à do real em 2021, devido às turbulências de sua corrida eleitoral e às discussões sobre a nova Constituição (no ano passado, os chilenos elegeram os parlamentares que vão redigir a nova Carta, que deve ser apresentada no segundo semestre de 2022). Ramos, do Goldman Sachs, destaca o papel das questões domésticas no caso brasileiro, que considera fundamentais para entender porque o país teve um dos piores desempenhos da região. O "ruído político", fruto das tensões entre o Executivo, o Judiciário e o Legislativo, e suas consequências institucionais e na economia, pontua o economista, acabaram criando um "desencantamento" com o Brasil entre os investidores, que passaram a procurar outros mercados e engrossaram a saída de dólares do país. Esse quadro ajuda a explicar porque a moeda americana passou de R$ 5 em abril de 2020 e praticamente não desceu desse patamar desde então. Contribuíram ainda para o "desencantamento", adiciona o economista, a desaceleração forte do crescimento, a falta de reformas e os sinais de descompromisso do governo com as contas públicas, entre eles a PEC dos precatórios e as manobras para driblar o teto de gastos. "É difícil ver um lado bom hoje", diz. Entre outras razões, ele cita as eleições, que se desenham bastante turbulentas e, ao contrário da vizinha Colômbia, que vai escolher o novo presidente já em maio, só serão realizadas em outubro. Até lá, é pouco provável a retomada de reformas, afirma Ramos. O cenário base é de manutenção de um nível elevado de incerteza, que afeta a decisão dos consumidores de gastar e das empresas de investir. "Um otimista hoje [em relação ao Brasil] é um pessimista mal informado", conclui.
2022-01-11
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Eleições na Venezuela: a simbólica vitória da oposição no Estado natal de Hugo Chávez
A oposição venezuelana conseguiu no domingo (09/01) uma vitória política bastante simbólica ao conquistar o governo de Barinas, Estado natal do ex-presidente Hugo Chávez. O candidato da coalizão Mesa de Unidade Democrática (MUD), Sergio Garrido, venceu com 55,36% dos votos o candidato governista do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), Jorge Arreaza, que obteve 41,27% da preferência do eleitorado, segundo os resultados anunciados pelo Colégio Eleitoral Regional pouco depois das 23h (hora local). Quase três horas antes, Arreaza havia reconhecido sua derrota em uma mensagem postada no Twitter, na qual admitia não ter alcançado seu objetivo. "Barinas querida. As informações que recebemos das nossas bases do PSUV indicam que, embora tenhamos aumentado em votação, não atingimos o objetivo. Agradeço de coração a nossa heroica militância. Continuaremos a proteger o povo barinês em todos os espaços", escreveu Arreaza. Pouco depois, a emissora oficial de televisão venezuelana fez o anúncio. Fim do Matérias recomendadas Os resultados do pleito farão de Sergio Garrido o primeiro membro da oposição a ocupar o governo de Barinas desde 1998. O Estado também será o quarto a ser governado pela oposição, após as eleições regionais de 21 de novembro. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast É que a votação de domingo foi, na verdade, uma repetição das eleições em que a oposição também havia vencido em Barinas, mas que foram anuladas pelo Supremo Tribunal de Justiça (TSJ, na sigla em espanhol). Em decisão de 29 de novembro, o tribunal reconheceu que o então candidato da oposição Freddy Superlano havia obtido mais votos do que o candidato à reeleição Argenis Chávez, candidato do chavismo e irmão do falecido presidente Hugo Chávez, mas ordenou a repetição do pleito porque o adversário da oposição havia sido desqualificado previamente pela Controladoria-Geral da República. A decisão da Justiça foi criticada pela oposição, que argumentou que jamais havia sido levantado nenhum impedimento à candidatura de Superlano, cujo nome, aliás, havia sido incluído pelo governo em uma lista de opositores perdoados pelo presidente Nicolás Maduro. Superlano classificou o ocorrido como um "golpe constitucional", enquanto o diretor do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), Roberto Picón, nomeado por proposta da oposição, afirmou em comunicado que o poder eleitoral desconhecia a desqualificação que pesava sobre Superlano e assegurou que com a repetição das eleições "não só se faltava gravemente com a autoridade do Conselho Nacional Eleitoral, como também com a vontade do povo de Barinas". Além da anulação dos resultados das eleições de 21 de novembro, a oposição venezuelana enfrentou outras dificuldades diante da repetição do pleito, já que seus possíveis candidatos também foram impedidos de concorrer. Ficaram fora da disputa Aurora Silva, mulher de Freddy Superlano; e o ex-deputado da Assembleia Nacional Julio César Reyes. Por fim, a coalizão MUD acabou nomeando Sergio Garrido, que é deputado da Assembleia Legislativa do Estado de Barinas. O partido governista PSUV também recorreu, por sua vez, à apresentação de um novo candidato, depois que Argenis Chávez anunciou no fim de novembro sua renúncia ao governo de Barinas, deixando nas mãos do partido a nomeação de um novo candidato. O escolhido foi Arreaza, que foi casado com a filha mais velha de Hugo Chávez, e ocupou altos cargos no governo central desde 2011. Foi vice-presidente executivo; ministro das Relações Exteriores; ministro da Ciência e Tecnologia; ministro da Educação Universitária; ministro do Desenvolvimento das Minas; e ministro da Produção Nacional. Barinas tem grande importância simbólica para o chavismo, por ser o Estado natal do falecido presidente Hugo Chávez. Desde 1998, todos os governadores eleitos neste estado eram parentes diretos de Chávez. Primeiro foi seu pai, Hugo de los Reyes Chávez, depois vieram seus irmãos Adán Chávez e Argenis Chávez. Por estas mesmas razões, Barinas constitui um Estado importante para a oposição que, ao obter uma vitória ali, desfere um forte golpe simbólico no chavismo. Ciente do que estava em jogo, o governo de Nicolás Maduro se dedicou a apoiar a candidatura de Arreaza, conforme denunciou em 7 de janeiro o diretor do CNE, Roberto Picón. "Os mecanismos de controle e penalização à disposição do CNE são insuficientes para controlar uma ação orquestrada do Estado, numa campanha eleitoral, como a que se evidenciou em Barinas nas eleições de 9 de janeiro", escreveu Rincón no Twitter Posteriormente, ele afirmou que houve no Estado um "destacamento de altos funcionários estaduais" — que instalações, prédios públicos, veículos e outros bens do Estado foram utilizados para atos de proselitismo, enquanto a emissora oficial de televisão venezuelana, ministérios e outros órgãos públicos promoveram em suas redes sociais hashtags em apoio à campanha de Arreaza. Além da mobilização de recursos, o fato é que importantes atores políticos como Diosdado Cabello, considerado o número dois do chavismo depois de Maduro, e até figuras simbólicas como Maria Gabriela e Rosinés Chávez, filhas do falecido presidente venezuelano, estiveram em Barinas dando apoio à campanha de Arreaza. Paradoxalmente, apesar de toda esta mobilização, os resultados obtidos pelo chavismo nas eleições de domingo foram piores do que os obtidos no pleito de 21 de novembro em Barinas. Se a diferença entre Freddy Superlano e Argenis Chávez foi de menos de um ponto percentual, na segunda edição da disputa, a diferença entre a oposição e o chavismo aumentou para 14 pontos.
2022-01-10
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59911878
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As 3 eleições da América Latina em 2022 e como elas podem mudar ou consolidar a política da região
Nos primeiros anos do século 21, a reeleição de presidentes em exercício na América Latina foi um fato corriqueiro, tanto entre líderes da esquerda quanto da direita. Mas logo acabou o boom de matérias-primas (principais itens exportados pelo continente), surgiram problemas econômicos profundos, vieram à tona escândalos de corrupção e cresceu o mal-estar social (manifestado em diferentes ondas de protestos), tudo isso aprofundado pela pandemia de covid-19. Então, a tendência eleitoral latino-americana mudou: passou a ser votar contra o establishment e dar espaço à oposição. Em 11 das 12 eleições presidenciais realizadas na América Latina desde 2019, o voto majoritário foi para mudar o partido que estava no poder. Fim do Matérias recomendadas "Há uma insatisfação geral com a classe política e quem acaba pagando a conta é o partido no poder", diz Paulo Velasco, professor de Política Internacional da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Esse quadro de descontentamento pode se completar em 2022, com três eleições previstas na região, duas delas nos países mais populosos da América do Sul: Brasil e Colômbia. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O primeiro dos pleitos está agendado para 6 de fevereiro na Costa Rica, com um possível segundo turno em 3 de abril entre os dois candidatos mais votados. Entre os mais de 20 candidatos registrados, há nomes conhecidos por ali, como o ex-presidente centrista José María Figueres, a ex-vice-presidente conservadora Lineth Saborío e Fabricio Alvarado, um líder evangélico de direita que em 2018 perdeu para o atual mandatário, Carlos Alvarado. Em outro sinal de descontentamento popular com os governos de turno, Welmer Ramos, o candidato do governista Partido Ação Cidadã, tem intenção de voto inferior à margem de erro em algumas pesquisas de opinião. Mas as duas eleições que vão concentrar as atenções na região neste ano são, por ordem cronológica, as de Colômbia e Brasil. O primeiro turno do pleito colombiano está marcado para 29 de maio (mais de dois meses depois das eleições legislativas, em março) e o possível segundo turno será em 19 de junho. Um eventual triunfo de Petro marcaria algo inédito: a primeira vez que um candidato de esquerda seria eleito presidente da Colômbia. Mas pode haver um cenário diferente da polarização esquerda-direita das recentes eleições latino-americanas. A direita colombiana, liderada pelo ex-presidente Álvaro Uribe, está desgastada depois do governo de Duque, e talvez Petro tenha que competir com um candidato de centro, como o ex-prefeito de Medellín Sergio Fajardo, o economista Alejandro Gaviria e o ex-senador Carlos Fernando Galán. "Essa é uma possibilidade forte: não temos assegurada hoje essa polarização entre um candidato de esquerda e outro de direita", diz Patricia Muñoz, professora de Ciência Política na Pontifícia Universidade Javeriana, em Bogotá. Em contrapartida, tudo indica que o Brasil terá, nas eleições de outubro, um enfrentamento entre o atual presidente Jair Bolsonaro (PL) e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), por enquanto líder nas pesquisas de intenção de voto para o pleito de 2 de outubro (com um possível segundo turno em 30 de outubro). Até o momento, as pesquisas não indicam grandes intenções de voto em candidatos da chamada "terceira via", como o ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro (Podemos) e o ex-governador Ciro Gomes (PDT). Eventuais vitórias de Lula e Petro dariam um novo impulso à esquerda na América Latina, não só pelo peso relativo de Brasil e Colômbia no continente. Entre 2020 e 2021, ganharam candidatos da esquerda na maioria das eleições realizadas na região: Luis Arce na Bolívia, Pedro Castillo no Peru, Xiomara Castro em Honduras e Gabriel Boric no Chile, além do caso particular da Nicarágua. No entanto, alguns analistas descartam que seja possível prever agora uma nova tendência regional como a que houve na primeira década do século, quando vários governos de esquerda foram consolidados e reeleitos. "Começa a se desenhar um quadro em que os governos de esquerda são maioria, mas não seguem a mesma tendência e não vejo uma onda como nos anos 2000", diz Velasco. A seu ver, é normal que em vários países o eleitor migre à esquerda depois da decepção demonstrada com presidentes de direita eleitos para substituir os do polo contrário. "Se houvesse mais governos de esquerda neste momento, a tendência seria que ganhasse a direita ou a centro-direita", afirma. O grande desafio para governantes latino-americanos segue sendo cumprir com a demanda de melhores serviços públicos e seguridade social, assim como pela menor desigualdade, talvez temas com os quais a esquerda tenha mais sintonia. Executar a tarefa, porém, será difícil em uma América Latina de crescimento moderado (a média regional é de cerca de 3% em 2022, segundo a Comissão Econômica para América Latina e Caribe - Cepal), pressão inflacionária, maior dívida pública e a incerteza trazida agora pela variante ômicron do coronavírus. Alguns especialistas advertem também que o mal-estar social pode voltar a dar a caras, com protestos populares na região. "A deficiente ou escassa resposta de vários governos da América Latina e Caribe (...) às múltiplas crises atuais pode gerar uma nova onda de protestos sociais massivos e violentos", indicou o instituto intergovernamental Idea, sediado na Suécia, em seu relatório sobre o estado da democracia na região, publicado em novembro. Embora o relatório destaque que a democracia deu sinais de resiliência durante a pandemia, agrega que "os ataques a órgãos eleitorais se tornaram mais frequentes" na América Latina, tanto por parte de governos quanto da oposição em países como Brasil, El Salvador, México e Peru. Nesse contexto, os olhares também estarão sobre a eleição brasileira depois de ataques de Bolsonaro ao sistema eleitoral (em novembro, ele recuou e disse que "passou a acreditar no voto eletrônico") e de o presidente brasileiro apoiar a reivindicação de Donald Trump, sem provas, de que teria havido fraude na eleição presidencial americana de 2020.
2022-01-10
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59862924
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Após batalha judicial, colombiana Martha Sepúlveda morre por eutanásia
Depois de uma longa batalha na Colômbia, Martha Sepúlveda morreu no sábado (08/1) por meio da eutanásia. A mulher tinha esclerose lateral amiotrófica (ELA), uma doença grave e incurável, e morreu aos 51 anos no Instituto Colombiano de Dor (Incodol), na cidade de Medellín. A informação foi revelada por meio de um comunicado do Laboratório de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, , que atua nas causas dos direitos humanos. "Martha Sepúlveda concordou com a eutanásia e morreu de acordo com sua ideia de autonomia e dignidade", disse a organização. "Martha partiu agradecida com todas as pessoas que a acompanharam e a apoiaram, que oraram por ela e trocaram palavras de amor e empatia durante esses meses difíceis", acrescentou o comunicado. Na Colômbia, a eutanásia foi descriminalizada em 1997, mas só se tornou lei em 2015. Fim do Matérias recomendadas Em julho de 2021, o Tribunal Constitucional do país estendeu o direito a uma morte digna para aqueles que sofrem de "intenso sofrimento físico ou mental" devido a uma lesão ou doença incurável. E o caso de Martha Sepúlveda havia se tornado o primeiro em que a eutanásia foi autorizada em um paciente sem uma doença terminal. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O argumento foi que a Comissão Científica Interdisciplinar pelo Direito de Morrer com Dignidade "decidiu por unanimidade pelo cancelamento do procedimento", ao determinar que "o critério de terminalidade não foi cumprido como tinha sido considerado pela primeira comissão" que avaliou o caso. Porém, a Justiça colombiana revogou essa suspensão do procedimento no fim de outubro e ordenou que o Instituto Colombiano de Dor cumprisse "com o estabelecido com a comissão científica interdisciplinar para morrer dignamente" em uma decisão de 6 de agosto. Nessa resolução, um painel de especialistas determinou que a paciente cumpria "com os requisitos para exercer seu direito de morrer com dignidade por meio da eutanásia", disse o juiz. O magistrado considerou que o Incodol violou "os direitos fundamentais de morrer com dignidade, a uma vida digna, ao livre desenvolvimento da personalidade e da dignidade humana de Martha Sepúlveda", e determinou que fosse fixada uma nova data para a eutanásia. O caso gerou um amplo debate no país sobre o direito pela opção da morte assistida. Em uma entrevista em setembro à Caracol TV, Sepúlveda contou sobre o seu desejo de morrer. "Sobre o plano espiritual, estou totalmente tranquila (...) Serei covarde, mas não quero mais sofrer, estou cansada. Luto para descansar", declarou. Ela acrescentou que a certeza de que logo morreria dava "tranquilidade". Ela disse ainda: "Sou católica e me considero uma pessoa muito crente. Mas Deus não quer me ver sofrer". "Com a esclerose lateral no estado em que está, a melhor coisa que pode me acontecer é que eu descanse". Na sexta-feira (07/01), um dia antes da eutanásia ser aplicada a Sepúlveda, um outro paciente se tornou o primeiro a receber o procedimento no país, e na América Latina, sem ter uma doença terminal. Victor Escobar, um motorista colombiano de 60 anos, sofria de várias doenças degenerativas incuráveis: doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) e hipertensão, além de ter sofrido dois acidentes vasculares cerebrais (AVCs), em 2007 e 2008. Na juventude, ele tinha sofrido um acidente de carro que fez com que passasse por três cirurgias na coluna. Nos últimos anos de vida, ele tinha diversos problemas de mobilidade e precisava de oxigênio diariamente.
2022-01-09
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59928037
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A combinação de fatores que deixa Brasil e América do Sul mais protegidos contra a ômicron
Enfermarias e pronto-socorros lotados de pessoas com problemas respiratórios retratam um momento preocupante da pandemia de covid-19 no Brasil, simultaneamente a uma epidemia de influenza. Mas, em meio ao avanço global da variante ômicron, que demonstra ser muito mais transmissível, faz o mundo bater recorde de novos casos de covid-19 e já causou mortes por aqui, os dados e os especialistas sinalizam que o Brasil - junto a boa parte da América do Sul - tem atualmente barreiras de proteção mais robustas para evitar que a explosão de infecções resulte em altos números de casos pacientes graves e óbitos. Em parte, isso se dá tanto por motivos positivos - como a alta adesão da população brasileira às vacinas - quanto por razões trágicas e ao menos parcialmente evitáveis, como a devastação causada no país por ondas e variantes prévias do coronavírus. A revista britânica The Economist combinou dados de duas universidades britânicas que estão monitorando a pandemia pelo mundo: o Imperial College London e a Universidade de Oxford, que produz a plataforma Our World in Data. Fim do Matérias recomendadas A OMS disse que o número de casos globais aumentou em 71% na última semana - e, nas Américas, subiu 100%. A entidade afirma que, entre os casos graves em todo o mundo, 90% são em pessoas que não foram vacinadas. Mas o argumento de Croda e outros especialistas é de que temos, no Brasil, mais ferramentas para nos protegermos desta vez - desde que consigamos ampliar a vacinação para os públicos que ainda não a receberam (como as crianças) e avançar com a aplicação das doses de reforço. Os três países sul-americanos citados pela The Economist têm altas taxas de vacinação: no Chile, 86% da população está plenamente vacinada - um dos maiores índices do mundo, segundo o Our World in Data. E o governo chileno anunciou que começará a aplicar uma quarta dose da vacina no mês que vem, para grupos considerados prioritários ou vulneráveis. O Uruguai tem 76% da população com o esquema vacinal completo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas, de modo geral, o país tem registrado uma alta adesão à vacinação. A estimativa mais recente, provavelmente desatualizada, é de que em torno de 67% da população esteja com o esquema vacinal completo e que 15,4 milhões de doses de reforço já tenham sido aplicadas. Embora o Brasil esteja, em relação a outros países, mais protegido contra a ômicron, precisa levar em conta a desigualdade regional na aplicação de vacinas, explica à BBC News Brasil o microbiologista Átila Iamarino. "Nem todo lugar tem acesso à vacinação dessa forma: temos regiões do interior dos Estados do Norte onde a vacinação não chega a 40% da população de alguns municípios, e são regiões que estão enfrentando falta de leitos agora, por causa de ondas de casos causados ainda pela (variante) delta, antes mesmo da ômicron. Pela falta de vacinação, elas estão suscetíveis a qualquer uma das variantes", diz o especialista. "Pelo menos não temos aqui a concentração de grupos antivacina, como nos Estados Unidos e Europa, que montam focos onde a doença consegue circular muito bem", agrega. Se levarmos em conta quem tomou ao menos uma dose da vacina, esse índice sobe para 74,3% dos 434 milhões de habitantes sul-americanos. Esse é o lado positivo dessa história. O lado negativo é que a região chega a esse patamar depois de ter sido o epicentro mundial da covid-19 e acumulado os maiores índices de mortes pela pandemia em todo o planeta, a um enorme custo social, econômico e de saúde que deixou cicatrizes irreversíveis em milhões de famílias. Não sabemos ao certo o quanto da população brasileira foi em algum momento infectada pelo coronavírus, já que o país nunca conseguiu estabelecer um programa amplo de testagem e rastreamento de casos. Mas tudo indica que os números de infecções são bem maiores que os 22,3 milhões de casos confirmados oficialmente. Julio Croda estima que entre 30 milhões e 60 milhões de brasileiros tenham pego covid-19 em algum momento, mesmo que assintomáticos. Iamarino acha que esse índice pode passar de 50% dos brasileiros - ou seja, mais de 100 milhões de pessoas. É importante destacar que, apesar de infecções prévias oferecerem algum tipo de proteção contra a ômicron, essa proteção diminui com o tempo. Além disso, a nova variante tem se mostrado muito mais capaz de driblar a imunidade prévia. A nova variante também é mais eficiente em driblar a vacina - o que explica o recente aumento de testes positivos de covid-19 mesmo entre vacinados. Apesar da superlotação no atendimento emergencial em hospitais e UPAs de várias cidades, ainda mais pressionada pela epidemia de influenza, "aqui no Brasil, a explosão da ômicron tem sido sem um impacto importante em hospitalizações e mortes - o que é efeito dessa combinação de fatores (de alta infecção prévia e alta taxa de vacinação)", agrega Croda. A ausência de dados oficiais atualizados torna mais difícil avaliar o atual cenário, mas a média móvel de óbitos por covid-19 tem se mantido estável no país, apesar do aumento de casos. O que, então, podemos aprender para tirar proveito dos pontos fortes do Brasil neste momento? "A lição é que a vacina é essencial, e talvez com uma dose de reforço - é natural que a gente precise (de doses extras da vacina) para manter a resposta imune elevada", explica Julio Croda. "Quanto mais pessoas tiverem exposição (ao vírus) protegidas com a vacina, mais provavelmente teremos formas mais leves da doença e menos casos severos, mesmo com novas variantes", diz ele. Para essas pessoas previamente infectadas, tomar duas doses de uma dessas vacinas (ou dose única, no caso da Janssen) traz uma proteção semelhante à de quem já recebeu a dose de reforço. E, para quem não foi previamente exposto ao coronavírus, tudo indica que as doses de reforço serão cada vez mais importantes, já que elas recuperam a proteção perdida com o passar do tempo e com a evolução natural do vírus, em variantes que podem se tornar mais perigosas. Ao mesmo tempo, o que deixa especialistas em alerta é a vulnerabilidade de alguns grupos diante de variantes mais infecciosas, em particular as crianças. "É um grupo que nos preocupa, porque as crianças não têm acesso à vacina e não tiveram muita exposição à doença, já as escolas ficaram fechadas. Então é um grupo altamente exposto agora", explica Croda. Em dezembro, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou a vacina da Pfizer para crianças de 5 a 11 anos, o que tem enfrentado resistência do governo de Jair Bolsonaro, crítico da vacinação infantil. Na quinta-feira (6/1), o presidente criticou a aprovação da Anvisa e disse desconhecer casos de mortes por covid-19 nessa faixa etária - apesar de os números do próprio governo confirmarem que 301 crianças de 5 a 11 anos já morreram da doença no país. Foi só no dia 5 que o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, afirmou que está prevista a chegada de 20 milhões de doses da vacina infantil da Pfizer ao Brasil neste primeiro trimestre, e mais 20 milhões no segundo trimestre. Além da vulnerabilidade desse público, Átila Iamarino lista também outros obstáculos enfrentados pelo Brasil no momento: em meio à nova explosão de casos de covid-19, será mais difícil - e impopular - implementar medidas de isolamento social, em um momento em que a crise e o desemprego seguem altos no país. "Vai ser mais difícil ter o distanciamento, apesar de haver a demanda. A pressão econômica e social é muito maior para as pessoas continuarem na rua, e com isso o vírus vai circular muito mais e atingir os mais suscetíveis, que são principalmente as crianças", afirma. Outra dúvida, diz ele, é qual será o desempenho da principal vacina que deu início ao programa de imunização contra covid-19 no Brasil: a CoronaVac. Isso porque os países por onde a ômicron passou com mais força até agora, como África do Sul, Reino Unido e EUA, usam outro regime vacinal, explica Iamarino. E é desses países que saíram as principais lições e os principais estudos científicos sobre a ômicron até agora. "Nosso alto índice de vacinação é com a CoronaVac, o que é ótimo - ela garantidamente salvou dezenas de milhares de vidas por aqui, quando a vacinação começou. Mas a gente ainda não tem um panorama tão claro de como ela se sai em relação à ômicron na população. É muito provável que ela previna a maioria das hospitalizações como as outras vacinas, mas a gente não sabe", prossegue. "É um ponto que eu não diria que é inseguro, mas é incerto. E a gente tem algumas populações de idosos que receberam só a CoronaVac, com duas ou três doses. Quem estudou resposta imune recomenda que essas pessoas recebam doses de reforço de vacina de RNA (no caso, a vacina da Pfizer). Esse é um ponto preocupante que pode fazer diferença aqui no Brasil", conclui Iamarino. Croda também ressalta que, no caso de doses de reforço, a resposta imune tem se mostrado maior quando se aplica uma vacina diferente daquela que foi aplicada nas doses iniciais.
2022-01-07
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59917056
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As economias da América Latina mais preparadas para enfrentar 2022
O último ano foi, para uma parte da América Latina, de um "efeito rebote" na economia. A razão é que o aumento do Produto Interno Bruto (PIB, ou soma de tudo o que é produzido na economia) se mede em relação ao ano anterior, pode parecer, à primeira vista, que países em situação de crescimento deram um salto espetacular. O problema é que a base de comparação — 2020 — é muito baixa, portanto esse crescimento é o tal "efeito rebote". De olho no ano que vem, as projeções de organismos internacionais dão uma fotografia um pouco mais "realista" de como os países latinos-americanos estão avançando (ou não). Fim do Matérias recomendadas O principal termômetro da economia de um país é seu PIB, mas há outros indicadores importantes a serem considerados. A BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) traz, a seguir, dados que levam em conta crescimento econômico, inflação e classificação de risco das economias do continente: Olhando-se exclusivamente o crescimento econômico, os países com as perspectivas de maior alta para o próximo ano são Panamá, República Dominicana, El Salvador e Peru, segundo as previsões mais recentes da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal). O gráfico a seguir mostra a lista de países incluídos nos estudos da Cepal: As perspectivas, no entanto, podem variar dependendo "dos avanços desiguais nos processos de vacinação (contra o coronavírus) e a capacidade dos países em reverter os problemas estruturais por trás da baixa trajetória de crescimento que exibiam antes da pandemia", diz o organismo em seu Estudo Econômico da América Latina e Caribe, publicado em outubro. Entre as economias maiores da região, há algumas como Chile e Colômbia que estão "razoavelmente bem posicionadas para se recuperar em 2022, inclusive em meio à ansiedade (provocada pela) variante ômicron", diz à BBC News Mundo Benjamin Gedan, vice-diretor do Programa América Latina do centro de estudos Wilson Center, em Washington. Em comparação com outros países da região, o Chile está em boa forma, diz o pesquisador, porque a maior parte de sua população está completamente vacinada e mais da metade dos chilenos já receberam uma dose de reforço. O Banco Central do país projeta um crescimento de cerca de 2% no ano que vem, embora a economia possa crescer mais por conta do aumento da demanda por sua produção de cobre e lítio, afirma Gedan. Entre os países menores, o Panamá lidera a lista de projeção de crescimento para o próximo ano, segundo a Cepal. "Parece que (o Panamá) está se recuperando muito bem", aponta Gedan. A economia panamenha tende a se beneficiar do reaquecimento do comércio mundial, em um momento em que o governo local tem um ambicioso programa de infraestrutura. Um potencial obstáculo, porém, é que a ômicron pode afetar a importante indústria turística panamenha. Uma das dores de cabeça de partes do mundo e da América Latina é a escalada de inflação durante este ano. Mesmo em lugares onde o crescimento econômico está voltando, o custo de vida tem subido, fazendo com que o salário não chegue até o fim do mês para muita gente. O Brasil tem atualmente uma das taxas de inflação mais altas do continente: 10,74% nos últimos 12 meses, segundo a mensuração mais recente do IPCA, feita pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em meio a uma combinação de alta no dólar, no preço dos combustíveis e no custo de alimentos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A taxa de inflação brasileira, já em dois dígitos, só é superada no continente pelas taxas exorbitantes de Cuba (70% de inflação, segundo dados recentes do próprio governo), Argentina (51%) e Venezuela, que tem um problema crônico de hiperinflação. A inflação tem sido impulsionada, em parte, pela alta no preço dos alimentos, escreveu Maximiliano Appendino, economista da Divisão de Estudos Regionais do Departamento de Hemisfério Ocidental do FMI, Fundo Monetário Internacional. Há muita incerteza com relação ao preço de matérias-primas, aos gargalos internacionais nas cadeias de abastecimento e à alta nos custos de transporte marítimo, além do temor de que a ômicron ou outras variantes continuem a atrasar o fim da pandemia. Por outro lado, acrescentou Appendino, a região precisa equilibrar uma perspectiva de inflação incerta com a geração de empregos, "ainda substancialmente abaixo dos níveis anteriores à pandemia"> No Brasil, o desemprego atinge patamares de 12,1%, segundo o IBGE - são 12,9 milhões de pessoas desocupadas. Agências de classificação de risco como Moody's, Standard & Poor's e Fitch avaliam a solvência de um país — sua capacidade de cumprir com suas obrigações financeiras. É um indicador por vezes contestado, mas que serve para analisar a saúde de uma economia. Em uma escala decrescente, a melhor classificação é Aaa e a mais baixa é C. A lista abaixo ordena os países latino-americanos de mais bem avaliados para os de desempenho pior, segundo a agência Moody's. Baixo risco creditício Risco de crédito moderado Qualidade de crédito questionável Fonte: Moody's (Dezembro de 2021). De modo geral, "as perspectivas de crescimento da América Latina para 2022 são sombrias", comenta Gedan. Não só pelos efeitos econômicos deixados pela covid-19, mas também porque a região já estava em mau estado quando entrou na pandemia. O próximo ano vem com "uma preocupante ressaca de dívida e uma inflação em alta", argumenta o pesquisador. No âmbito político, os cortes em gastos públicos podem desencadear novos episódios de insatisfação social, como ocorreu, por exemplo, na Colômbia em abril de 2021 em resposta às propostas de reformas econômicas, argumenta Gedan.Nesse sentido, a incerteza política nas principais economias da América Latina "tem limitado os investimentos que a região precisa para se recuperar", ele opina. Essa incerteza vem dada por governos novos, como os de Pedro Castillo no Peru e Gabriel Boric no Chile, e pelas eleições presidenciais do ano que vem no Brasil e na Colômbia.
2022-01-02
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59814352
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Ano Novo: os rituais mais curiosos para a virada na América Latina
Como a América Latina celebra a chegada do Ano Novo? Em cada país há distintas formas de comemorar essa data. No imaginário popular, são rituais que servem para encerrar um ciclo e começar o outro de forma positiva. Muitas dessas simpatias possuem semelhanças, com uma ou outra variação que depende do país. Alguns rituais são muito conhecidos, como as famosas 12 uvas, uma para cada batida do relógio, que precisam ser consumidas à meia-noite enquanto a pessoa faz um pedido. Há também aqueles que guardam uma nota no bolso ou uma moeda no sapato para que não falte dinheiro no ano seguinte. Existe também uma simpatia na qual a pessoa anda com uma mala por um quarteirão, ou até mesmo dentro de casa, para que não faltem viagens no ano seguinte. Há, inclusive, quem faça esse ritual com o passaporte nas mãos. Conhecidos ou não, similares ou diferentes, todos esses rituais têm um ponto em comum: a busca por um novo ano com prosperidade. Há quem peça dinheiro, saúde, amor ou mesmo tudo isso junto. Mas há também quem faça essas simpatias por pura diversão. Em meio aos diversos rituais que são adotados nos países da América Latina, nem todos são tão conhecidos. Abaixo, conheça alguns deles: Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em alguns países, é preciso tomar cuidado nesse período do ano para não ser atingido por um balde de água enquanto anda na rua. No Uruguai é celebrado o "baldaço", no qual as pessoas jogam um balde cheio de água pela janela. Dizem que essa tradição afasta as tristezas do ano que termina e dá boas-vindas a um novo ano cheio de prosperidade. Como é verão no Cone Sul, muitas pessoas não levam isso a sério e veem mais como uma brincadeira (ou algo ruim, dependendo se você é a pessoa que lança ou recebe a água). Outras versões dessa simpatia economizam na quantidade de água: em vez do balde, jogam uma "bombita", um balão cheio d'água, ou um apenas um copo com o líquido. Em Cuba é feito algo semelhante, chamado "el cubazo", que, como no Uruguai, consiste em jogar um balde de água pelas janelas ou sacadas. Isso tem dois objetivos: limpar as energias e divertir os vizinhos. Uma variação da água é jogar papéis pelas janelas. No Uruguai também é costume jogar fora calendários velhos, que estão rasgados ou queimados. Isso pode ser por causa da tradição de desfazer de tudo o que é antigo para dar lugar a novos objetos. Essa tradição de se livrar de tudo o que é velho não envolve necessariamente os calendários. Em alguns países, costumam limpar a casa completamente como um ato de purificação, seja aqueles sapatos que não usa mais ou algo que não precisa mais. Em outros lugares, há quem varra a casa, certificando-se de que tirou todo o pó para fora da porta. Mas você tem que limpar o mais profundamente possível, para evitar que as energias do ano velho permaneçam na residência. Como a água, o fogo é um elemento que significa renovação ou purificação. Em muitos países da América Latina, um boneco feito com materiais inflamáveis, como papel, serragem e roupas velhas, é queimado. No Equador, a "queima do ano velho" é uma prática popular, com origens no período colonial, que consiste em queimar um boneco que costuma representar uma pessoa famosa, real ou fictícia — como um político ou o protagonista de um filme. Essa tradição vem acompanhada pelas "viúvas": homens vestidos de mulheres com maquiagem exagerada e perucas que "choram" pelo "velho", enquanto caminham no trânsito pedindo doações que, posteriormente, serão usadas para uma festa. Minutos antes da meia-noite, essas "viúvas" começam a leitura do testamento, preparado com muito humor e sátira, em meio a gritos de dor. As pessoas assistem enquanto fazem outros rituais, como o das 12 uvas ou o passeio com a mala. Já no norte do Chile, é feita uma tradicional queima de bonecos, que são enormes figuras montadas para a data, que simbolizam as experiências ruins do ano que está acabando. Essa prática de queima também se estende pela Nicarágua, Colômbia, Peru, México e algumas regiões da Venezuela e da Argentina. Outra variação que é praticada em muitos países, muito mais simples, é escrever desejos para o ano novo (geralmente três) em um papel, ou anotar coisas ruins do ano que está passando, e queimar à meia-noite com as devidas precauções para evitar acidentes. Se você quer ter sorte, uma simpatia recomendada é comer lentilhas. Há quem acredite que esse alimento pode significar fortuna. Para alguns, a lentilha não é apenas alimento nesse período e a colocam em locais onde costuma haver dinheiro, como os bolsos ou a carteira. Há também quem receba o Ano Novo abraçando seus entes queridos com um punhado de lentilhas na mão, ou quem coloque esses grãos nos cantos da casa para que a sorte chegue ao local. O costume não se limita a lentilhas, mas também a diversos tipos de grãos, como o arroz. O grão é colocado em um prato com uma vela, que é deixada acesa durante a noite do dia 31 e depois é enterrada. Muitos acreditam que esse costume da lentilha veio da Itália e justificam que surgiu porque o grão lembra as moedas da Roma Antiga. Nem todas as pessoas confiam apenas em um punhado de lentilhas ou arroz para chamar sorte e dinheiro. No México, muitos costumam dar lembrancinhas de ovelhas como presente porque consideram que o animal traz coisas positivas. Na Costa Rica, as pessoas carregam um ramo de Santa Lúcia, flor que acreditam que traga boa sorte. É colocado em carteiras ou malas para que não falte dinheiro. Se você está no México ou na Colômbia, talvez saiba o que são as "cabanuelas". Mas caso você não saiba, se trata de um método tradicional de previsão meteorológica, que começa a partir do ano novo. E muita gente acredita na veracidade disso e usa como referência para saber como será o clima no novo período. Há quem insista que esse método não tem qualquer rigor científico. Mas isso não impede que muitos aproveitem esse ritual para ver como estará o clima nos próximos meses e até fazer planos com base nisso. O método é o seguinte: os primeiros 12 dias de janeiro representam um mês de forma crescente (dia 1 é janeiro, dia 2 é fevereiro e assim por diante). E de 13 a 24 de janeiro é ao contrário (13 de janeiro é dezembro, 14 de janeiro é novembro, e assim vai). Depois, de 25 a 30 de janeiro, cada dia representa dois meses em ordem crescente dependendo do horário (de meia-noite de 25 de janeiro ao meio-dia representa janeiro, e de meio-dia até meia-noite seguinte representa fevereiro). E, finalmente, o dia 31 de janeiro, onde cada trecho de duas horas representa um mês de forma decrescente (da meia-noite às 2h é dezembro, das 2h às 4h é novembro etc). No Peru e na Bolívia não pode faltar o ekeko, uma estatueta de poucos centímetros que representa um homem vestido de maneira típica do altiplano andino. Embora o culto a esse personagem não se limite ao Ano Novo, as pessoas enxergam esse período como uma oportunidade ideal para a presença dessa divindade. Dizem que ekeko está carregado com um grande número de fardos cheios de alimentos e necessidade. E se você cuidar bem, trará abundância e alegria. Mas cuidado, porque se for negligenciado ou abandonado, o ekeko pode reverter as coisas e causar infortúnios. O cuidado deste amuleto no final do ano também coincide com o fato de que em janeiro é celebrada a Feira da Alasita, uma festa tradicional que tem o ekeko como figura central. Em alguns países da América Central é comum quebrar um ovo e colocá-lo em um copo d'água. Há quem o deixe pernoitar no dia 31 de dezembro no lado de fora, pela janela, ou mesmo o coloque embaixo da cama. Dizem que a forma que o ovo vai assumir pode ser um indicativo de como será o ano novo. Assim como para muitas pessoas no Brasil, em outros diversos países há quem acredite que a roupa que vestimos durante a virada do ano é um elemento importante. Em países como a Venezuela, por exemplo, muitos têm o costume de "fazer a estreia" das últimas roupas adquiridas. A ideia é que a pessoa não pode chegar ao Ano Novo com roupas velhas. A cor também é importante. Por exemplo, o amarelo é para atrair dinheiro (muitos insistem que essa tem que ser a cor da roupa íntima), vermelho para quem procura um relacionamento amoroso e branco para boas energias. Em meio à pandemia, essa prática também ganhou uma nova característica: há pessoas que adaptam a cor da máscara conforme aquilo que quer com mais intensidade para o novo ano.
2021-12-31
https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-59842926
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Covid: como América do Sul passou de epicentro da pandemia a líder em vacinação
A América do Sul é a região com o pior histórico da pandemia de covid-19 do mundo, com as ondas mais mortais e o maior acumulado de mortes pela doença no planeta. Desde que começaram a ser registrados os óbitos de pacientes com covid-19, houve 2.740 mortes por milhão de habitantes na América do Sul, segundo o banco de dados Our World in Data. Nos Estados Unidos, foram 2.450; na Europa, 2 mil; e na Ásia, 267. O pico de mortes diárias ao longo da pandemia também ocorreu na América do Sul, com uma média de 10,85 por milhão de habitantes em abril deste ano. No entanto, o subcontinente encerra 2021 com um dado auspicioso: é o que possui a maior taxa de vacinação contra o coronavírus, com 63,4% de sua população completamente imunizada (com duas doses ou dose única, conforme o requerimento de cada vacina) e 74,3% de seus 434 milhões de habitantes com pelo menos uma dose, segundo dados oficiais divulgados pela Organização Pan-Americana de Saúde até a última quinta-feira (23/12). Além disso, de 17 a 23 de dezembro, a região teve uma média diária de 0,7 óbitos por milhão de habitantes, seis vezes menos que a Europa ou os Estados Unidos, segundo a plataforma Our World in Data. A Europa é a segunda região com mais gente completamente imunizada, um percentual de 60,5%, enquanto outros 4,2% da população estão parcialmente vacinados. A América do Norte aparece em terceiro lugar, com 59,6% dos 500 milhões de habitantes do México, Estados Unidos e Canadá com a vacinação completa, e os que tomaram pelo menos uma dose somavam 71,4% até a última quinta-feira. O Caribe apresenta, por sua vez, 43% da população com a imunização completa e 49% com pelo menos uma dose, enquanto na América Central, estes percentuais são de 42% e 54%, respectivamente. O continente americano como um todo conta com 59,7% da população vacinada com duas doses (ou dose única), 70,8% com pelo menos uma dose e 10,6% com doses de reforço. Já a Oceania tem 58% de sua população imunizada com duas doses, e a Ásia, 55%. Por último, vem a África, com apenas 8,8% de seus habitantes com o processo de vacinação completo. O país com melhor taxa de vacinação da América do Sul é o Chile, onde 85,6% da população recebeu o programa de imunização completo. Lá, crianças a partir de 3 anos podem tomar a vacina. Em seguida, aparecem o Uruguai (76,6%), Argentina (76,5%), Equador (69,1%) e Brasil (65,7%). Em piores condições, estão Guiana, Bolívia e Suriname, com uma taxa inferior a 40%. Embora dois países da América do Sul — Chile e Uruguai — registrem altos níveis de vacinação com doses de reforço (52,7% e 42,7%, respectivamente), a média do subcontinente é consideravelmente menor (8,8%). A Europa é o continente com o maior número de doses de reforço aplicadas (21,5%). Na América do Norte, 13,4% da população recebeu a dose de reforço. A Oceania (5%) e a Ásia (4%) são as regiões onde menos se administrou a terceira dose, tirando a África, onde a aplicação do reforço tem sido insignificante.
2021-12-31
https://www.bbc.com/portuguese/geral-59808572
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Fidel Castro, um símbolo revolucionário do século 20
O noticiário da BBC News, na manhã de domingo, 27 de novembro de 2016, trazia duas realidades opostas. Na primeira, "muitos tinham os olhos cheios de lágrimas, genuinamente emocionados com a perda de um homem que eles consideravam ter libertado o seu país do controle de Washington". Em outra, "pela segunda noite consecutiva, o clima em Miami era de festa e celebração com a notícia de sua morte". Duas comunidades, em Havana e na Flórida, reagiam de formas completamente diferentes à notícia da morte do líder comunista cubano Fidel Castro, aos 90 anos, na noite da sexta-feira, 25 de novembro. Eram reações esperadas dada a maneira como dois mundos diferentes, em Cuba e nos Estados Unidos, viam um dos mais famosos e influentes revolucionários do século 20. Em 2016, Castro já não mais comandava pessoalmente seu país havia quase nove anos, tendo transferido a Presidência para seu irmão, Raúl, em 2008. A morte de Fidel Castro, no entanto, lembrava a todos a distância política que ainda havia entre a ilha caribenha e seu poderoso vizinho do norte, ao mesmo tempo que sinalizava o fim de uma era. Um símbolo das divisões do século 20 finalmente entregava o século 21 às novas gerações, marcadas, de uma forma ou de outra, por seus ideais revolucionários, lutas e autoritarismo. Começo do fim da guerra Ao longo dos anos 1990, as hostilidades entre os Estados Unidos, a maior superpotência do planeta, e Cuba, um pequeno país de 11 milhões de habitantes, foram consideradas uma relíquia da Guerra Fria. Na virada de 1999 para o ano 2000, porém, elas ganharam renovada relevância. Não por meio de armas, mas nos tribunais. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em março de 2000, um juiz federal do Estado americano da Flórida decidiu que o menino cubano Elián González, de 6 anos de idade, deveria ser entregue a seu pai, Juan Miguel González Quintana, que vivia em Cuba. Cinco meses antes, Elián sobrevivera a um naufrágio de uma embarcação de um grupo de cubanos que tentavam emigrar para os Estados Unidos. Entre eles, sua mãe, Elizabeth Brotons Rodriguez, morta durante a travessia. A decisão representava uma derrota para parentes de Elián moradores de Miami, com quem o menino vivia desde a tragédia, e para a comunidade anticastrista da região. Em abril, o menino foi retirado à força pela polícia da casa dos parentes e entregue a González Quintana, que fora aos Estados Unidos para lutar pela guarda da criança. Em junho, após novas disputas na Justiça americana que reafirmaram o direito de González Quintana, pai e filho voltaram para Havana, onde foram recebidos como heróis. O drama envolvendo a família deu uma face humana a uma disputa política internacional que já durava quatro décadas, desde que Fidel Castro, seu irmão Raúl, Ernesto Guevara e suas forças revolucionárias tomaram o poder em Cuba, em 1959. O caso obrigou políticos americanos a falar sobre o conflito com a ilha comunista com referências a relações humanas. "Se ele e seu pai decidissem que queriam ficar aqui, tudo bem por mim. Mas acho que o mais importante é que ele era um bom pai, um pai amoroso, comprometido com o bem-estar de seu filho", disse o então presidente americano, o democrata Bill Clinton. "Meus pensamentos e orações estão com toda a família González, e espero que um dia Elián possa viver numa Cuba livre e seja capaz de escolher por ele mesmo se quer voltar à América", disse o então governador do Texas e candidato republicano à Presidência, George W. Bush. A breve humanização das relações entre Estados Unidos e Cuba foi positiva para o regime comunista. Fidel Castro encabeçara uma campanha nacional pelo retorno do menino ao país assim que chegou a notícia de seu naufrágio, num caso em que as leis e o bom senso estavam do lado de Havana. O fato de um cubano, que foi de avião a Miami para lutar pela guarda do filho, não ter sido atraído pelas maravilhas do capitalismo americano também permitiu que uma ditatura de décadas se apresentasse como um regime querido pelo povo. Em Cuba, o menino foi levado a Fidel Castro, que celebrou a vitória com a família. O século 21, ao começar com o sorriso de um garoto em vez de tentativas de invasão, sugeria que o estado de guerra entre Washington e Havana caminhava para o fim. A caminhada, porém, seria lenta e tortuosa, em meio ao forte e antigo ressentimento de ambas as partes. Conflito histórico O outro lado do regime cubano, focado em avanços sociais, também foi regularmente destacado por especialistas. Segundo a Anistia, "o acesso a serviços públicos, como saúde e educação para os cubanos, foi substancialmente melhorado pela Revolução Cubana, e por isso sua liderança deve ser aplaudida". No âmbito da educação, uma conquista do regime castrista frequentemente citada era a erradicação do analfabetismo, relativamente contestada por alguns críticos. Segundo dados reunidos pelo site Our World in Data, a alfabetização em Cuba aumentou de 79%, em 1960, para 89% em 1970, chegando a 98% em 1981 e atingindo 100% em 2002. A curva de longo prazo, porém, já era de crescimento desde o início do século 20, com a taxa indo de 46% em 1900 para 76% em 1940. A tendência histórica também era muito semelhante à de outro país da região com bons resultados, a Costa Rica, que só atingiu, porém, 95% em 2000. Para o bem ou para o mal, a chegada de Fidel Castro ao poder mudou as regras do jogo em Cuba, o que gerou punições de Washington. A primeira veio na forma de um bloqueio econômico. Iniciado logo em 1960 e ampliado em 1962, o embargo econômico contra Havana elevou a pobreza na ilha e favoreceu a aproximação entre Castro e a União Soviética. Uma retaliação militar também foi tentada, com a fracassada invasão da Baía dos Porcos, em abril de 1961, por exilados cubanos com apoio da CIA, a agência de inteligência dos Estados Unidos. Mais grave ainda, a constante tensão entre os dois países quase levou o mundo a uma Terceira Guerra Mundial - que seria travada, possivelmente, com armas nucleares. Em outubro de 1962, imagens aéreas feias pela espionagem americana confirmou suas suspeitas de que a União Soviética estava instalando mísseis balísticos em Cuba. Os armamentos, trazidos a pedido de Havana, eram vistos pelo regime cubano como forma de proteger a ilha de uma possível invasão do vizinho inimigo. Para Moscou, a medida funcionaria para capacitar o país a lançar mísseis nucleares sobre os Estados Unidos - na época a União Soviética só tinha capacidade o Alasca, numa suposta guerra nuclear. No dia 22 de outubro, o presidente John F. Kennedy falou à nação pela televisão anunciando a descoberta dos mísseis e um bloqueio naval a Cuba. Segundo Kennedy, qualquer ataque nuclear ao Ocidente saído de Cuba seria considerado um ataque aos EUA e levaria a uma retaliação nuclear contra a União Soviética. A crise foi solucionada em pouco mais de um mês, com um acordo entre Washington e Moscou que levou à retirada dos mísseis e a um compromisso americano de não invadir a ilha caribenha. Fidel Castro, entretanto, em uma carta ao líder soviético, Nikita Khrushchev, de 26 de outubro de 1962, expôs uma polêmica opinião sobre o confronto. Ao comentar a possibilidade de uma invasão seguida de ocupação de Cuba pelos Estados Unidos, Fidel disse que "esse seria o momento de eliminar esse perigo para sempre, num ato da mais legítima autodefesa. Por mais dura e terrível essa solução, não haveria outra". Diante da aparente sugestão de que os soviéticos deveriam realizar um ataque nuclear contra os EUA, em caso de ocupação da ilha, Khrushchev a rebateu, em carta de 30 de outubro. "Caro camarada Fidel Castro, eu acho que sua proposta é errada, embora eu entenda seus motivos." Em 2010, numa entrevista a Jeffrey Goldberg, da revista The Atlantic, Fidel diria ter se arrependido da sugestão que fizera ao líder soviético. "Depois de ter visto o que eu vi, e sabendo o que eu sei agora, não valeria a pena." O líder cubano, que após seu sucesso militar em Cuba se tornara um símbolo do socialismo revolucionário no mundo todo, também foi alvo de inúmeras tentativas de assassinato - segundo ele, em mais de 600 oportunidades. Uma delas envolveu a colaboração entre a CIA e um grupo de mafiosos, no início dos anos 1960. Em outra, diz a lenda, a agência americana considerou matá-lo com um charuto explosivo. A última tentativa foi exatamente no ano 2000. Meses depois do drama envolvendo Elián Gonzalez, Fidel Castro denunciou uma trama para assassiná-lo na Cidade de Panamá, durante o Encontro Ibero-Americano. Segundo ele, o chefe do plano, que envolvia o uso de explosivos no lugar onde Castro faria seu discurso, era o exilado cubano Luís Posada Carriles. Juntamente com outros três cubanos, Posada Carriles foi preso na cidade no mesmo dia. Os quatro foram posteriormente condenados à prisão, onde ficaram por quase quatro anos, após receberem um perdão presidencial do Panamá em 2004. Bush e Chávez Durante 20 anos, entre 1996 e 2016, nenhum presidente americano foi eleito sem vencer a disputa na Flórida, cuja demografia foi significativamente afetada pela imigração latina, particularmente cubana. A sabedoria local dizia ser muito difícil vencer na Flórida sem o apoio da comunidade cubana anticastrista. Em 2000, o Estado foi decisivo: deu a vitória a George W. Bush contra o vice-presidente Al Gore por apenas 537 votos, sendo que seus 25 votos no Colégio Eleitoral mudariam o resultado de 271 para Bush contra 266 para Gore. O resultado e a simpatia dos conservadores republicanos pelos exilados cubanos fizeram com que EUA e Cuba se mantivessem distantes durante os oito anos de Bush na Casa Branca. O presidente americano aumentou as sanções contra Cuba, como restrições a viagens ao país, e intensificou a pressão por reformas na ilha. Em um discurso na Casa Branca, em 2002, ele disse: "É importante para os americanos entenderem: sem reforma política, sem reforma econômica, comércio com Cuba vai apenas enriquecer Fidel Castro e seus companheiros." Numa fala na Assembleia Nacional, em Havana, em 2005, o líder cubano comparou Bush com o ex-presidente Richard Nixon, que renunciou em 1974. "Nixon não era pior que Bush. Comparado a Bush, Nixon era um santo. Bush é um fascista, um nazi-fascista, genocida." Em 2007, Bush afirmou: "Um dia, o bom Senhor levará Fidel Castro embora". Apesar de Bush, o início de um novo milênio não foi de todo ruim para o regime em Havana. Em dezembro de 2000, Cuba experimentou algo que não vivia desde os tempos do Muro de Berlim: a visita de um líder russo. Vladimir Putin, então o novo homem forte no Kremlin, esteve na ilha por quatro dias, algo que seu antecessor, Boris Yeltsin, nunca havia feito. A viagem foi uma clara sinalização de Putin de que gostaria de reaproximar Moscou de Havana e reparar parte dos danos causados pelo abandono de Cuba no colapso da União Soviética. Desde então, Putin manteve crescente contato com Fidel e seu irmão Raúl, e as relações políticas e comerciais entre Cuba e Rússia aumentariam significativamente nas duas décadas seguintes. Além de uma Rússia mais próxima, durante os anos de Bush na Casa Branca o líder cubano contou com crescente apoio regional. Na Venezuela, a chegada ao poder de Hugo Chávez, que implantou seu movimento socialista batizado de "bolivarianismo", reforçou a influência do regime de Cuba nas Américas. Era também uma época em que partidos e líderes de esquerda chegaram ao poder em nações importantes do continente. Em 2005, além da Venezuela, a esquerda era governo no Brasil, na Argentina, no Chile e no Uruguai - e em dezembro daquele ano venceria as eleições bolivianas, com Evo Morales. Fidel Castro, que em tempos de regimes militares era mal visto nesses países, era agora respeitado e admirado por presidentes como o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva e o argentino Néstor Kirchner. A relação mais próxima do cubano, no entanto, ocorreu com Hugo Chávez. Enquanto em Washington Bush pedia por democracia e impunha sanções, Castro e Chávez forjaram uma aliança nunca antes vista na região. O cubano passaria a considerar o venezuelano o "melhor amigo" de Cuba. A parceria entre os dois envolveria uma grande proximidade política e benefícios econômicos. A troca de petróleo por médicos, com a Venezuela fornecendo o combustível e Cuba lhe oferecendo profissionais de saúde, foi o principal símbolo da aliança. Segundo muitos analistas e o próprio governo americano, o regime em Havana também aproveitou a aliança para influenciar politicamente a Venezuela e impedir avanços democráticos no país. Após sua morte em 2013, Chávez foi substituído pelo vice, Nicolás Maduro, que presidiu um país em crescente colapso econômico e caos político, com violência nas ruas, a prisão de opositores e posteriormente a escolha de um governo paralelo reconhecido pelos Estados Unidos e outras nações - liderado por Juan Guaidó. Para os críticos do regime em Havana, a grave situação gerada na Venezuela era em parte responsabilidade do comunismo cubano. Admiradores de Cuba culpavam a interferência dos EUA na região. Renúncia e Obama A referência de Bush à inevitável morte de Fidel Castro baseava-se no fato de que, perto dos seus 80 anos, o cubano começava a demonstrar problemas físicos. Após anos de especulação sobre seu estado de saúde, em 2004 Castro sofreu uma queda diante de uma multidão - e da câmera da televisão cubana. Após concluir um discurso num evento na cidade de Santa Clara, ele desceu do palco e tropeçou num dos degraus. Quebrou o joelho esquerdo e o braço direito e foi hospitalizado. Dois anos depois, o problema foi mais sério. Em 31 de julho, duas semanas antes de completar 80 anos, ele foi internado para uma cirurgia devido a problemas estomacais. Pela primeira vez, Castro deixou de comandar o país, ao transferir os poderes da Presidência para seu irmão, Raúl, então ministro da Defesa. O gesto marcaria o início do fim da era de Fidel Castro à frente de Cuba. No dia seguinte à operação, uma declaração de Castro foi lida na televisão. Ele dizia estar "perfeitamente bem". Três dias depois, o presidente George W. Bush voltou a pedir uma mudança de regime em Cuba, afirmando que Washington apoiaria aqueles que buscassem "um governo transitório em Cuba comprometido com a democracia". Seu desejo não foi atendido. Não houve mudança de regime, mas sim uma lenta transferência de poder de Fidel para Raúl. Em 19 de fevereiro de 2008, o comandante da Revolução Cubana, à frente dos destinos do seu país por longos 49 anos, anunciou sua renúncia definitiva à Presidência. "Aos meus queridos compatriotas, que nos últimos dias me deram a imensa honra de me eleger como membro do Parlamento. Eu comunico a vocês que eu não vou aspirar ou aceitar - repito, não aspirar ou aceitar - as posições de Presidente do Conselho de Estado e de comandante-chefe", disse o líder cubano em um comunicado à nação publicado no jornal oficial, Granma. "Este não é o meu adeus. Eu devo continuar a escrever sob o título 'Reflexões do Camarada Fidel'. Talvez minha voz seja ouvida." Fidel Castro continuaria como primeiro-secretário do Partido Comunista. Os Estados Unidos pediram eleições livres em Cuba e afirmaram que o embargo econômico contra a ilha estava mantido. Em Cuba, um dos principais dissidentes no país, Oswaldo Payá, também tinha esperanças de que algo mudaria. "Este é um momento crucial. Cuba quer mudança, o povo quer mudança." A transferência de poder em Cuba não seria a única naquele ano. Nos Estados Unidos, haveria nova eleição presidencial em novembro de 2008, mas, diferentemente de Cuba, a oposição poderia vencer. O candidato de Bush, senador John McCain, tinha um discurso semelhante ao que havia vencido as eleições anteriores na Flórida: apoio à comunidade de exilados cubanos no Estado. Em fevereiro de 2008, McCain disse que os Estados Unidos só deveriam aliviar a pressão econômica sobre o regime castrista após mudanças concretas rumo à democracia. "Nós precisamos estar absolutamente confiantes de que a transição para uma democracia livre e aberta está sendo feita antes que nós forneçamos ajuda e assistência adicionais." Seus eleitores na Flórida concordavam. Muitos diziam temer o socialismo nos Estados Unidos caso o oponente de McCain, o senador democrata Barack Obama, saísse vencedor. O filho de emigrantes Michael García disse ao jornal britânico The Guardian temer as ideias de mais distribuição de renda por meio de impostos, propostas por Obama. "As coisas que Obama diz me assustam porque isso é tudo o que Fidel dizia. Essas coisas estão associadas na minha cabeça com cair no caminho do comunismo." Obama não defendia socialismo ou comunismo, mas pregava a melhoria das relações com Cuba, com mais engajamento com o regime, agora sob o comando de Raúl Castro. "É o momento de termos mais do que um discurso duro que nunca traz resultados. É hora de uma nova estratégia", dizia o senador democrata, que prometia liberar por completo viagens e envio de dinheiro para Cuba, eliminando restrições impostas por Bush. Segundo pesquisa da Florida International University divulgada na época, 65% dos cubanos nos EUA apoiavam a proposta de mais diálogo com Raúl Castro. O grupo cubano Mulheres em Branco, de esposas de dissidentes presos, também via com bons olhos as ideias de Obama e lhe escreveu oferecendo seu apoio. No dia da eleição, em novembro de 2008, Fidel Castro escreveu no Granma que Obama era "sem dúvida mais inteligente, culto e calmo que seu adversário republicano". Barack Obama venceu a disputa na Flórida e foi eleito presidente americano. Tempo de mudanças Desde 2007, quando já comandava o país, embora ainda interinamente, Raúl Castro iniciou um processo de reformas. No começo, falando em "racionalidade" e "eficiência", Raúl introduziu sistemas de gerenciamento mais modernos nas empresas estatais. A partir de 2008, quando se tornou presidente efetivo, o irmão mais novo de Fidel intensificou suas reformas que foram desde a descentralização na agricultura, no transporte de cargas e na construção civil ao acesso da população a equipamentos eletrônicos - computadores, telefones celulares, aparelhos de DVDs. Esse ambiente de lenta, mas constante, mudança em Cuba permitiu que Barack Obama cumprisse suas promessas de campanha em relação à ilha. Em abril de 2009, o novo presidente dos EUA anunciou a liberação de viagens ilimitadas a Cuba por cubanos-americanos e o fim de limites ao envio de dinheiro para familiares no país caribenho, revertendo sanções impostas por Bush. O anúncio marcou o início de negociações entre Washington e Havana nos anos seguintes, visando uma nova relação entre os dois países. O resultado veio em 14 de dezembro. Nesse dia, o americano Alan Gross, que estava preso em Cuba havia cinco anos, condenado a 15 anos de prisão por importar tecnologia proibida ao país e estabelecer uma rede clandestina de internet para judeus cubanos, foi libertado. Cuba libertou um agente americano que mantinha detido, enquanto Washington soltou três agentes cubanos. Horas depois, Barack Obama falou aos americanos. "Hoje os Estados Unidos da América estão mudando sua relação com o povo de Cuba." O presidente anunciou que Washington e Havana reestabeleceriam relações diplomáticas, o que incluiria a abertura de uma embaixada em Havana. Em abril de 2015, num momento histórico, Obama e Raúl Castro encontraram-se no Panamá, diante das câmeras, durante a Cúpula das Américas - os dois já haviam estado juntos, informalmente, em 2013, no funeral do sul-africano Nelson Mandela. Foi o primeiro encontro de alto escalão entre os dois países desde que Fidel Castro esteve com o então vice-presidente Richard Nixon, nos EUA, em 1959. O chamado "descongelamento" das relações entre Washington e Havana continuaria até que Obama deu um passo ainda mais significativo: em março de 2016, o presidente americano fez uma visita oficial a Cuba, selando anos de sua política de reaproximação com a ilha - o primeiro presidente americano em solo cubano em 88 anos. No país, Obama elogiou os avanços feitos por Raúl, mas cobrou progressos concretos na área de direitos humanos. O líder cubano, respondendo a jornalistas, rebateu: "Quantos países com todos os 61 direitos humanos? Você sabe? Eu sei. Nenhum. Nenhum", disse Castro, referindo-se a resoluções das Nações Unidas sobre o tema. Fidel Castro assistiu a todo esse processo sem aparentemente interferir, mas muitas vezes afirmando uma postura crítica ao processo e ao líder americano. Em janeiro de 2009, logo após a posse de Obama na Presidência, Castro escreveu que não duvidava da "honestidade" do novo ocupante da Casa Branca. "Mas, apesar de suas nobres intenções, ainda existem muitas questões que precisam ser respondidas." Em setembro de 2011, o ex-líder cubano chamou de "enrolação" um recente discurso de Obama na ONU e chamou o bombardeio da Líbia por potências ocidentais de "crime monstruoso". Logo após a visita de Obama a Cuba, no fim de março de 2016, o comandante escreveu que as palavras do americano eram um "xarope" e que Cuba não precisava de nenhum presidente do "império". Morte de uma lenda A crítica a Obama foi uma das últimas intervenções do comandante sobre os novos rumos que seu país tomava. Meses depois, em 25 de novembro de 2016, Fidel Castro morreu, aos 90 anos de idade. Um dos maiores nomes do século 20, cujas ações e ideias influenciaram diferentes gerações no mundo todo, saía definitivamente de cena em meio às transformações do século 21. Enquanto cubanos em seu país choravam a perda do líder que os acompanhara por mais de seis décadas e cubanos em Miami celebravam nas ruas, Barack Obama dizia que "a história julgará o enorme impacto" de Fidel Castro, em seu país e no mundo. A morte do comandante foi anunciada por Raúl Castro, num pronunciamento na televisão do país. "Querido povo de Cuba, com profunda dor, compareço para informar ao nosso povo e aos amigos de nossa América e do mundo que hoje, 25 de novembro de 2016, às 10 horas e 29 da noite, faleceu o comandante-chefe da Revolução Cubana, Fidel Castro Ruz." Ele anunciou que, segundo a vontade de seu irmão, os restos mortais seriam cremados no dia seguinte e repetiu o slogan revolucionário: "Até a vitória! Sempre!". Três dias depois, uma segunda-feira, milhares de pessoas faziam fila para prestar sua última homenagem ao ex-líder. O correspondente da BBC News, Will Grant, relatou o clima no local. "Médicos vestindo jalecos brancos, enfermeiras uniformizadas, soldados, estudantes e professores, todos falando no mesmo tom baixo, tomando cuidado para se comportar de forma digna sob os olhos atentos dos oficiais de segurança do Estado." Um deles, o engenheiro civil Javier Morales, disse a Grant: "Se você o amava ou o odiava, seja em Havana ou em Miami, todo mundo está sendo afetado hoje". A enfermeira Angela Suarez Narajo estava emocionada. "Ele me deu tudo o que eu tinha. Ele era como um pai para nós." A 368 quilômetros dali, em Miami, a morte de Fidel Castro foi celebrada nas ruas como se fosse um título de Copa do Mundo. "Olê, olê, olê, olê! Se fue! Se fue!" (Foi embora! Foi embora!), cantavam os integrantes da comunidade cubano-americana. Um deles disse: "O motivo pelo qual estamos dançando, cantando e tocando instrumentos é que, se estivéssemos em Cuba, nós não poderíamos celebrar, não teríamos a liberdade de expressão, a liberdade de se reunir, não teríamos essa liberdade que temos aqui para celebrar o que estamos sentindo". Elián González, o menino cuja custódia levou a disputa entre Estados Unidos de volta ao noticiário, tinha 22 anos quando Fidel Castro morreu. Em entrevista à televisão cubana, ele reagiu à perda do comandante de forma emocionada, tentando conter as lágrimas. "Fidel começou sendo um pai e se tornou um amigo. Esse pai era como meu papai, para quem eu queria mostrar a ele tudo o que eu fazia, queria que ele se sentisse orgulhoso de mim. E assim também era com Fidel." Como se não bastassem a visita de Obama a Havana e a morte de Fidel Castro, 2016 ainda traria outro fato significativo nas relações entre Estados Unidos e Cuba. Em novembro, o magnata populista conservador Donald Trump venceu a senadora democrata Hillary Clinton e recolocou o Partido Republicano na Casa Branca. Na Presidência, Trump retomou a política de adoção de novas sanções contra o regime comunista, como novas restrições a viagens e limitação a investimentos americanos na ilha. Em setembro de 2020, o presidente proibiu que americanos em visita a Cuba trouxessem do país charutos ou garrafas de rum, medida que Trump acreditava pudesse ajudá-lo na disputa eleitoral na Flórida. Ajudou: o presidente venceu a batalha pelo Estado que durante 20 anos sempre acabara nas mãos do candidato eleito. Trump, no entanto, perdeu a guerra. Apesar de vencer na Flórida, o presidente foi derrotado em nível nacional pelo senador democrata Joe Biden. Em Cuba, dois anos após a morte de Fidel Castro, foi a vez de seu irmão passar o bastão a uma nova geração. Em abril de 2018, Raúl entregou a Presidência ao seu então vice, Miguel Díaz-Canel, escolha confirmada pela Assembléia-Nacional. Era a primeira vez em 59 anos que a ilha caribenha não era governada por um integrante da família Castro. Para muitos, as reformas adotadas por Raúl foram tímidas, já que a essência do regime continuava a mesma. Mesmo sem Fidel presente e agora sem nenhum Castro no comando, a Revolução Cubana seguia no controle da ilha ainda comunista. Fidel Castro, porém, era passado. O presente continuava repleto de desafios e perguntas sem respostas, e o futuro de Cuba estava apenas começando a ser escrito. Este artigo é parte da série especial "21 Histórias que Marcaram o Século 21", da BBC News Brasil.
2021-12-31
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-56004286
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Como a Argentina reagiu após Bolsonaro rejeitar ajuda para vítimas das enchentes na Bahia
A ajuda seria o envio de uma equipe de dez pessoas do organismo chamado Cascos Blancos (Capacetes Brancos), vinculado ao Ministério das Relações Exteriores do país, com especialização e longa trajetória de atuação em situações de tragédias internacionais. O governo brasileiro dispensou a ajuda, argumentando que já está trabalhando nesta situação e, caso necessário, aceitaria a oferta argentina. Mais tarde, o governador da Bahia, Rui Costa (PT), afirmou no Twitter que a Argentina ofereceu ajuda diretamente às cidades afetadas, apesar da negativa do governo Bolsonaro. "Me dirijo a todos os países do mundo: a Bahia aceitará diretamente, sem precisar passar pela diplomacia brasileira, qualquer tipo de ajuda neste momento", escreveu o petista. A dispensa brasileira foi destaque na imprensa do Brasil e da Argentina e noticiada também até em Portugal. "Bolsonaro rejeitou a ajuda argentina para socorrer os danificados pelas inundações e a oposição o acusa de politizar o desastre natural", publicou, nesta quinta-feira, o jornal argentino La Nación, de Buenos Aires. A agência portuguesa Lusa também fez eco da negação do presidente brasileiro à oferta do país vizinho, informando que a resposta do Brasil foi a de que "tem recursos suficientes" e que há dois anos apresentou o mesmo argumento "quando rejeitou apoio para combater incêndios na Amazônia". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Após a polêmica gerada, Bolsonaro disse, em suas redes sociais, nesta quinta-feira, que "o fraterno oferecimento" era "muito caro para o Brasil" e "aconteceu quando as Forças Armadas e a Defesa Civil já prestavam assistência local". Bolsonaro disse ainda que foi informado, através do Itamaraty, que a Chancelaria argentina tinha oferecido a ajuda "para trabalho de almoxarife e seleção de doações, montagem de barracas e assistência psicossocial à população afetada pelas enchentes na Bahia". Em suas redes sociais, na noite de quarta-feira, o governador da Bahia, Rui Costa, do Partido dos Trabalhadores (PT), chegou a agradecer "aos argentinos" e pediu "celeridade" ao governo federal para a "missão estrangeira". A ajuda, como Costa detalhou, consistiria no envio de profissionais especializados nas áreas de água e de saneamento, logística e apoio psicossocial para vítimas de desastre. "Isso inclui, por exemplo, a oferta de comprimidos para a potabilização de água", escreveu o governador baiano. A resposta do governo federal brasileiro ocorre num contexto de tragédia na Bahia, onde as chuvas que começaram no início do mês, já deixaram 24 pessoas mortas, 434 feridas, 630 mil pessoas afetadas e mais de 37 mil desabrigados, segundo dados da Superintendência de Proteção e Defesa Civil da Bahia. A dispensa à participação dos especialistas argentinos contribuiu para alimentar o ambiente de distanciamento político entre os dois presidentes. O presidente Alberto Fernández ratificou sua proximidade com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao recebê-lo como convidado especial para o ato público que marcou seus dois anos de gestão, no dia dez de dezembro passado, na Praça de Maio, que fica em frente à Casa Rosada. Em seu discurso, o ex-presidente brasileiro, principal opositor de Bolsonaro na provável disputa eleitoral de 2022, agradeceu a visita de Fernández em sua prisão em Curitiba, em julho de 2019. Naquela ocasião, Fernández realizava campanha política à Presidência. "Estou aqui para agradecer de coração a cada homem e mulher da Argentina que me deram sua solidariedade quando fui preso no Brasil. Quero agradecer ao meu companheiro Alberto Fernández", disse Lula diante da multidão. À BBC News Brasil, o embaixador da Argentina em Brasília, Daniel Scioli, descartou, porém, nesta quinta-feira, que a rejeição de Bolsonaro possa ter implicações políticas em relação ao seu país. "Há três dias oferecemos a ajuda humanitária com o envio de dez profissionais da comissão Cascos Blancos, que trabalha dentro da Chancelaria argentina. O Itamaraty respondeu de maneira muito elegante, como sempre ocorre com meu amigo França (Carlos Alberto Franco França), que a ajuda não era necessária no momento, mas que, se necessário, a aceitarão", disse Scioli. Quando perguntado sobre como a Argentina percebeu a resposta brasileira, o embaixador argentino disse: "Agradecemos e afirmamos que, se necessitarem, estamos à disposição". De acordo com o Itamaraty, conforme veiculado na imprensa brasileira, a situação "está sendo enfrentada com a mobilização interna de todos os recursos financeiros e de pessoal necessários" e que "na hipótese de agravamento da situação, requerendo-se necessidades suplementares de assistência, o governo brasileiro poderá vir a aceitar a oferta argentina de apoio da Comissão dos Capacetes Brancos, cujos trabalhos são amplamente reconhecidos". Mas e ao fato de o presidente Bolsonaro ter dito que a ajuda seria "muito cara"?, perguntamos. Ao que Scioli respondeu: "Tenho certeza que quando ele disse 'muito caro' se referia a sentimentos porque estaria muito agradecido e valorizando (a oferta de ajuda) e não se referindo de nenhuma maneira a muito caro porque Cascos Blancos assumem todos os gastos e representariam custo zero para o Brasil". De acordo com o embaixador, o único possível apoio à equipe argentina seria "talvez para alojamento". Ex-vice-presidente da Argentina, durante a gestão do ex-presidente Nestor Kirchner, entre 2003 e 2007, e ex-governandor da província de Buenos Aires, Scioli é conhecido, entre políticos da situação peronista e da oposição, como político habilidoso e que "trabalha para evitar os enfrentamentos", segundo fontes da Chancelaria argentina. Seu perfil teria sido decisivo para que fosse nomeado embaixador no Brasil, em meio a troca de farpas entre Bolsonaro e Fernández, na campanha presidencial e no início do governo argentino, e também de distanciamento inédito na história recente entre presidentes dos dois países. Nas recentes reuniões virtuais do Mercosul e do G20, Bolsonaro e Fernández fizeram declarações sobre a rivalidade no futebol. "Você ainda não me deu os parabéns", teria dito o argentino ao brasileiro, durante a reunião do G20, depois que a seleção argentina venceu a Copa América, de acordo com a agência de notícias Telám, de Buenos Aires. Logo depois, os dois tiraram fotos juntos e sorridentes no evento. Mas como em um ziguezague político, o clima teria voltado a ser menos afável, logo após o anúncio da visita de Lula para o ato do dia dez de dezembro, que marcou ainda o Dia da Democracia e dos Direitos Humanos, como informou a imprensa argentina. Causou surpresa, por exemplo, a declaração de Bolsonaro sobre a exigência de quarentena para passageiros desembarcando da Argentina no território brasileiro diante do avanço da variante ômicron do coronavírus. Naquele momento, no fim de novembro, esta cepa ainda não causava preocupação na Argentina, onde o índice de vacinação atinge a mais de 70% com as duas doses, segundo dados do Ministério da Saúde. De acordo com fontes do governo brasileiro, "a relação bilateral, envolvendo os vários ministérios e administrações corre seu curso normal e de forma fluída, apesar do distanciamento entre os dois presidentes".
2021-12-30
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59832832
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O drama dos órfãos da covid no Peru, país com mortalidade mais alta na pandemia
Em uma pequena casa nos arredores de Lima, a peruana Gabriela Zarate mora com o marido e oito filhos. Quatro são dela mesma. Os outros quatro, duas meninas de sete e 15 anos e dois meninos de nove e 12 anos, são filhos de sua irmã mais nova, Katherine. Não há espaço suficiente para todos eles. Os meninos dormem em par em uma cama beliche, enquanto as meninas dividem um minúsculo quarto nos fundos da casa. "Sempre foi uma luta colocar comida na mesa para minha família", diz Gabriela, "e com mais quatro filhos é ainda mais difícil". Em junho de 2020, quando o Peru já lutava para conter a pandemia de covid-19, Katherine foi infectada com o coronavírus. Os hospitais estavam superlotados, os suprimentos acabaram e parentes assistiram à morte de seus entes queridos, sem ter como ajudá-los. Quando Katherine não pôde ser internada, Gabriela não teve outra opção a não ser levá-la para casa. Ela ficou todo o tempo deitada em um colchão. Lutava para respirar, mas sua família não tinha dinheiro para comprar oxigênio. Katherine ficou cada vez mais fraca. Uma semana depois, ela morreu. Uma das últimas coisas que Katherine fez foi pedir a Gabriela que cuidasse de seus filhos. O pai nunca participou da vida das crianças; tem problemas de saúde e sofre de alcoolismo. Katherine não queria que seus filhos acabassem em um orfanato, então Gabriela concordou em cuidar deles. Não tem sido fácil. Quando o governo impôs um lockdown durante o pior momento da pandemia, Gabriela e o marido começaram a se perguntar o que fariam. "Dirigia uma moto-táxi e vendia doces na rua", conta Gabriela. "Mas então nos disseram para ficar em casa e eu fiquei preocupada: como é que íamos alimentar todos eles?" Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para ganhar algum dinheiro, seu marido passou a fazer e entregar quentinhas durante o lockdown, o que era ilegal. Foi quando ele também teve covid-19 e parou de trabalhar. "Estávamos com muito medo de que ele morresse", diz ela, "mas no final ele se recuperou." Nos piores momentos, quando nenhum dos dois podia sair para trabalhar, Gabriela pendurava uma bandeira branca do lado de fora de sua casa para mostrar que precisava de apoio. Os vizinhos começaram a trazer-lhe sacos de batatas e outros alimentos. O Peru foi duramente atingido pela covid-19, com mais de 200 mil mortes em uma população de menos de 33 milhões. É a pior taxa de mortalidade do mundo. Um dos efeitos mais trágicos da pandemia é o número de crianças órfãs. Existem pelo menos 93 mil delas, segundo a revista científica The Lancet. Mesmo que um dos pais ainda esteja vivo, elas são chamados de "órfãs da covid". No Brasil, esse número é ainda maior: 113 mil, segundo a publicação. Muitas enfrentam uma luta diária para sobreviver. Financeira e emocionalmente também. Os filhos de Katherine, como muitos outros, têm dificuldade de falar sobre a mãe. Sua filha de 15 anos a viu morrer e Gabriela diz que a menina está traumatizada. Ela não fala sobre o que aconteceu com ninguém. As crianças se lembram da mãe com saudade. "Sinto falta da minha mãe", diz o filho de nove anos de Katherine. "Ela costumava nos levar para as ruas para brincar conosco." Ajudar crianças como elas é uma tarefa a que profissionais como Andrea Ramos se dedicam. Ela é assistente social da prefeitura local em duas áreas pobres de Lima. Sua mesa está entulhada de papel, e ela conta com os moradores para entrar em contato via WhatsApp para alertar quem precisa de ajuda. A pobreza, diz, está piorando devido ao aumento do desemprego por causa da pandemia. Isso, por sua vez, está levando a mais frustração e violência em casa. "Temos muitas crianças com problemas de saúde mental que têm medo de sair de casa porque ficaram confinadas durante os piores momentos da pandemia", explica Andrea. Há workshops para ajudar as famílias a lidar com as crianças que ficam em casa o dia todo com aulas online e como resolver brigas e manter o temperamento sob controle. Para algumas famílias, a vida está melhorando aos poucos. Gabriela agora recebe um auxílio aprovado pelo governo para cada um de seus sobrinhos e sobrinhas. É apenas o equivalente a R$ 300 por mês por criança, mas isso significa que ela pode comprar mais comida para eles e imprimir o dever de casa. As crianças têm aulas online dois dias por semana e elas dividem o minúsculo espaço como podem. Apesar de sentir saudades da mãe, dizem gostar de morar com a tia. É divertido jogar futebol na rua com os primos, embora às vezes acabem discutindo, contam. Embora profissionais como Andrea estejam preocupados com os efeitos a longo prazo que a pandemia terá sobre os "órfãos da covid", os sobrinhos e sobrinhas de Gabriela têm ambições quanto ao futuro. A filha mais velha quer ser advogada, os dois meninos, policiais e a outra, médica.
2021-12-30
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59827925
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Perfis de países: Cuba
O regime comunista de Cuba, a ilha caribenha que se tornou símbolo de revolução, sobreviveu por mais de 50 anos a sanções dos Estados Unidos que visavam derrubar seu histórico líder, Fidel Castro. O governo em Havana também contrariou as previsões de que não sobreviveria ao fim da União Soviética, no início dos anos 1990. Mesmo depois da morte de Fidel, o regime cubano manteve sua essência, apesar das reformas parciais e pontuais em alguns elementos de sua economia e política. Desde a queda da ditadura de Fulgencio Batista, apoiado pelos EUA, em 1959, Cuba tem sido um Estado de partido único. Foi liderada por Fidel Castro até 2008, quando seu escolhido sucessor e irmão mais novo, Raúl, assumiu a chefia do governo. Fidel exerceu controle sobre praticamente todos os aspectos da vida em Cuba, por meio do Partido Comunista e suas afiliadas organizações de massa, a burocracia governamental e o aparato de segurança do Estado. Ao explorar o quadro da Guerra Fria, durante décadas Fidel foi capaz de se beneficiar do apoio da União Soviétia, incluindo subsídios anuais no valor de US$ 4 bilhões a US$ 5 bilhões. Com isso, o regime foi bem-sucedido em sua missão de construir sistemas de educação e saúde respeitados mundo afora. Em parte por causa dos efeitos das sanções comerciais americanas, porém, o regime cubano não conseguiu diversificar sua economia. Em 2014, durante o governo de Barack Obama em Washington, EUA e Cuba retomaram suas relações diplomáticas. Fora da política, Cuba é um valorizado destino turístico, com praias e hoteis oferecidos especialmente para o público estrangeiro. Cuba também é internacionamente reconhecido por sua música, que voltou a ser consumida em larga escala pelo público estrangeiro após a produção do filme Buena Vista Social Club, do diretor Wim Wenders, em 1999. FATOS Capital: Havana População11,3 milhões Área110.860 quilômetros quadrados Principal línguaEspanhol Principal religiãoCristianismo Expectativa de vida76,8 anos (homem), 80,8 anos (mulher) MoedaKwanza LÍDER Presidente: Miguel Díaz-Canel Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Miguel Díaz-Canel tornou-se presidente cubano em abril de 2018. A transferência de cargo, de Raúl Castro para Diaz-Canel, marcou o fim de seis décadas em que o poder em Cuba esteve nas mãos da família Castro. Diaz-Canel, que chegou à Presidência aos 57 anos de idade, é um ex-engenheiro nascido depois da Revolução Cubana de 1959. Ao ser formalmente escolhido pelo Parlamento como novo chefe de Estado e governo, ele prometeu manter o sistema de partido único da ilha. A chefia do Partido Comunista continuou nas mãos de Raúl Castro. MÍDIA O regime de partido único cubano não oferece um clima favorável ao trabalho da imprensa. Segundo a entidade americana Freedom House, Cuba tem o ambiente mais repressor para a mídia em todo o continente americano. Praticamente toda a mídia no país é controlada pelo Estado, e os jornalistas correm o risco de perseguição e detenção caso o regime considere sua cobertura crítica às autoridades ou ao sistema político. Granma é o jornal oficial da liderança do Partido Comunista. Em 2017, o Comitê de Proteção a Jornalistas identificou uma abertura gradual no cenário de mídia na ilha. A entidade citou uma cena de blogs vibrante, um aumento no número de sites de notícias na internet e uma "inovadora geração de repórteres independentes". Os Estados Unidos esforçam-se para alcançar o público cubano. A Rádio e TV Marti, financiada por Washington, diz oferecer aos habitantes da ilha um jornalismo equilibrado e sem censura. Segundo o site Internetworldstats.com, havia 4,4 milhões de usuários de internet cubanos em 2017 - cerca de 39% da população. A Freedom House afirma que o acesso à internet é rigorosamente controlado e extremamente caro. Segundo a entidade, a maioria dos usuários só pode acessar "uma intranet cubana monitorada de perto". O governo bloqueia o acesso a alguns sites jornalísticos independentes. Conteúdo online também é acessível por meio do "the Package", um arquivo externo colocado na entrada USB do computador com material atualizado regularmente e que é passo de mão em mão por usuários. RELAÇÕES COM O BRASIL As relações diplomática do Brasil com Cuba foram diretamente afetadas pela Guerra Fria e as tensões entre o regime comunista da ilha e os Estados Unidos. Depois de décadas com contatos diplomáticos com Havana, estabelecidos em 1906, o governo brasileiro reconheceu o governo revolucionário cubano em 1959. Em 1962, quando Cuba foi expulso da OEA, o Brasil absteve-se da votação. Em 1964, porém, com o início do regime militar em Brasília, as relações diplomáticas entre os dois países foram rompidas. A retomada ocorreu apenas em 1986, um ano depois que o Brasil voltou a ser governado por civis. Em 1989, Fidel Castro fez uma visita oficial ao Brasil, e em 2003 o presidente Luiz Inácio Lula da Silva visitou Cuba - país aonde voltou duas vezes em 2008. Raúl Castro visitou o Brasil no mesmo ano, e Dilma Rousseff manteve a alta frequência de viagens oficiais com visitas a Havana em 2012 e 2014. No governo de Dilma Rousseff (2011-16), Brasília e Havana aproximaram-se ainda mais por meio do programa brasileiro Mais Médicos, que contou com a grande participação de profissionais da saúde cubanos, que atuaram em várias partes do Brasil. Com a posse de Jair Bolsonaro na Presidência brasileira, em 2019, o Brasil distanciou-se de Cuba. Após sua eleição, mas antes mesmo do início do seu governo, Havana anunciou a retirada de seus médicos que atuavam em solo brasileiro, diante das críticas de Bolsonaro ao programa estabelecido com o governo Dilma. As relações comerciais, que em 2018 somaram US$ 377 milhões, são marcadas pelo domínio das exportações brasileiras - US$ 343 milhões naquele ano. LINHA DO TEMPO Datas importantes na história de Cuba: 1492 - O navegador Cristóvão Colombo reivindica a ilha de Cuba para a Espanha. 1511 - A conquista espanhola da região começa, sob a liderança de Diego Velázquez de Cuéllar, que estabelece Baracoa e outros assentamentos. 1526 - Início da importação de africanos escravizados como mão-de-obra. 1868-78 - A Guerra de Dez Anos, pela independência, termina com uma trégua, em que a Espanha promete reformas e uma maior autonomia à ilha - promessas que, em sua maioria, não são cumpridas. 1886 - A escravidão de negros é abolida. 1895-98 - José Martí lidera a segunda guerra pela independência. Os EUA declaram guerra contra a Espanha. 1898 - Os americanos derrotam os espanhóis, que abrem mão de qualquer reivindicação sobre Cuba, cedendo à ilha aos EUA. 1902 - Cuba torna-se independente, com Tomas Estrada Palma como seu presidente. A Emenda Platt, entretanto, mantém a iliha sob a proteção americana e dá aos EUA o direito de intervir nos assuntos internos de Cuba. 1906-09 - Estrada renuncia, e os EUA ocupam Cuba, após uma rebelião liderada por José Miguel Gómez. 1909 - Gómes torna-se presidente, após eleições supervisionadas pelos EUA, mas sua reputação logo é abalada devido a corrupção. 1924 - Gerardo Machado institui medidas duras e promove a mineração, a agricultura e obras públicas, mas em seguida estabelece uma ditadura brutal. 1925 - O Partido Socialista é fundado, formando a base para o Partido Comunista. 1933 - Machado é derrubado em um golpe de Estado liderado pelo sargento Fulgencio Batista. 1934 - Os EUA abandonam seu direito de intervir em assuntos internos de Cuba, revê a cota de açúcar da ilha e muda suas tarifas de importação em favor dos cubanos. 1944 - Batista abandona o governo e é sucedido pelo civil Ramón Grau San Martín. 1952 - Fulgencio Batista toma o poder novamente e lidera um regime repressor e corrupto. 1953 - Fidel Castro lidera uma fracassada revolta contra o regime de Batista. 1956 - Castro desembarca no leste da ilha, vindo do México, e toma as montanhas de Sierra Maestra, de onde, ajudado pelo argentino Ernesto "Che" Guevara, lança uma guerra de guerrilha. 1958 - Os EUA retiram a ajuda militar ao regime Batista. 1959 - Castro lidera um exército guerrilheiro de 9 mil combatentes e entra em Havana, forçando Batista a fugir. Fidel Castro assume o governo como primeiro-ministro, seu irmão, Raúl, assume como seu vice, e Guevara é o terceiro no comando do país. 1960 - Todos as empresas americanas em Cuba são nacionalizadas sem indenização. 1961 - Washington rompe as relações diplomáticas com Havana. Os EUA financiam uma invasão abortada de Cuba, na Baía dos Porco, com exilados cubanos. Castro declara que Cuba é agora um Estado comunista e se alia à União Soviética (URSS). 1962 - A crise dos mísseis de Cuba começa quando, temendo uma invasão americana, Castro concorda em permitir que a URSS instale mísseis nucleares na ilha. A crise é solucionada quando Moscou concorda em remover os mísseis em troca da retirada de mísseis americanos da Turquia. A OEA (Organização dos Estados Americanos) suspende Cuba devido a sua "incompatível" adesão ao marxismo-leninismo. 1976 - O Partido Comunista Cubano aprova uma nova Constituição, socialista. Castro é eleito presidente do país. 1976-81 - Cuba envia tropas para ajudar o grupo de esquerda MPLA em Angola contra um avanço militar do movimento Unita, a FNLA e a África do Sul. Depois, envia soldados para auxiliar o regime da Etiópia a derrotar a Eritreia e a Somália. 1980 - Cerca e 125 mil cubanos, muitos deles condenados por crimes comuns que haviam sido libertados pelo regime, fogem para os EUA. 1988 - Cuba concorda em retirar seus combatentes de Angola após um acordo com o regime da África do Sul. 1993 - Após o fim da URSS, os EUA reforçam seu embargo contra Cuba, que introduz algumas reformas liberalizantes para tentar conter a deterioração de sua economia. Elas incluem a legalização do dólar americano, a transformação de várias fazendas estatais em cooperativas semiautônomas e a legalização de empreendimentos privados, com limites. 1998 - O papa João Paulo II visita Cuba. 1998 - Os EUA aliviam as restrições ao envio de dinheiro a parentes em Cuba por cubanos vivendo em solo americano. 1999 - O menino cubano Elián González é recolhido no mar, próximo à costa da Flórida, depois que a embarcação em que estava com sua mãe, seu padrasto e outros naufragou, enquanto tentavam fugir para os EUA. Exilados cubanos em Miami iniciam uma campanha pela permanência de Elián em solo americano, com familiares. 2000 - Em junho, a Justiça americana decide que Elián deve ser entregue a seu pai, que vive em Cuba. Em outubro, a Câmara dos Representantes dos EUA aprova a venda de alimentos e medicamentos a Cuba. 2002 - Em janeiro, os EUA enviam para sua base em Guantánamo, em Cuba, prisioneiros tomados durante o conflito contra o Taliban no Afeganistão, para que sejam interrogados como suspeitos de pertencer à al-Qaeda. Em maio, Jimmy Carter torna-se o primeiro ex-presidente americano a visitar Cuba desde a revolução de 1959. 2003 - Em março e abril, uma ação do regime contra dissidentes gera condenações da comunidade internacional. Cuba prende 75 pessoas, condenadas a penas de até 28 anos, e três homens que haviam sequestrado uma balsa para tentar ir aos EUA são executados. 2005 - Havana anuncia a retomada de contatos diplomáticos com Washington, congelados em 2003 após a repressão contra dissidentes. 2006 - Julho - Fidel Castro passa por uma cirurgia gástrica e entrega, temporariamente, o governo a seu irmão, Raúl. 2007 - Em maio, Fidel deixa de participar do anual desfile do Primeiro de Maio. Dias depois, ele diz que passou por uma série de cirurgias. Em julho, pela primeira vez desde 1959 o Dia da Revolução é celebrado sem a presença de Fidel Castro. 2008 - Raúl Castro assume a Presidência de Cuba, dias depois de Fidel ter anunciado sua aposentadoria. Em maio, a proibição da propriedade de computadores e telefones celulares é abolida. 2008 - Em setembro, os furacões Gustav e Ike causam os maiores danos da história de Cuba. Cerca de 200 mil pessoas ficam sem moradia e com seus plantios agrícolas destruídos. 2009 - Empossado três meses antes, o presidente Barack Obama diz, em abril, que deseja um novo começo na relação entre os EUA e Cuba. Em junho, a OEA vota em favor do fim da proibição para que Cuba integre a entidade. Havana elogia a decisão, mas afirma não ter intenção de reintegrar a organização. 2010 - Em julho, Raúl Castro concorda com a libertação de 52 dissidentes, em um acordo mediado pela Igreja Católica e pela Espanha. Vários deles seguem para o exterior. 2011 - Em agosto, a Assembleia Nacional aprova reformas econômicas para encorajar o empreendedorismo privado e reduzir a burocracia estatal. Em novembro, Cuba aprova uma lei permitindo que indivíduos comprem e vendam propriedades privadas pela primeira vez em 50 anos. 2012 - O papa Bento XVI visita Cuba em março. Ele critica o embargo econômico ainda mantido pelos EUA e pede mais direitos para os cubanos. Em abril, a Sexta-Feira Santa é comemorada como feriado nacional pela primeira vez desde 1959. 2014 - Em julho, visitas dos presidentes da Rússia, Vladimir Putin, e da China, Xi Jinping. Putin anuncia o cancelamento de dívidas de bilhões de dólares de Cuba dos tempos da União Soviética, e Xi assina acordos bilaterais. 2014 - De forma surpreendente, Barack Obama e Raúl Castro anunciam passos para normalizar as relações diplomáticas entre EUA e Cuba, rompidas mais de 50 anos antes. 2015 - Em maio, Cuba estabelece ligações financeiras com os EUA, que retiram o país caribenho de sua lista que nações que patrocinam o terrorismo. Em maio, Washington e Havana reabrem suas embaixadas e trocam representantes diplomáticos. 2016 - Em março, Obama visita Cuba, na primeira visita de um presidente americano em 88 anos. Havana normaliza suas relações com a União Europeia. 2016 - Em novembro, Fidel Castro morre, aos 90 anos de idade. Cuba declara nove dias de luto oficial no país. 2017 - O novo presidente americano, o republicano Donald Trump, cancela alguns aspectos da política de Obama para Cuba. 2018 - Em abril, chega ao fim o domínio de seis décadas da família Castro no comando de Cuba, com a posse de Miguel Díaz-Canel na Presidência do país.
2021-12-27
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57516846
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O povo da Colômbia que celebra o Natal em fevereiro e com um Menino Jesus negro
Os moradores da cidade de Quinamayó, na Colômbia, celebram o Natal em fevereiro com uma procissão que inclui o boneco de um Menino Jesus negro. Os afrodescendentes locais dizem que a tradição remonta aos tempos da escravidão, quando seus ancestrais eram proibidos de comemorar o Natal em 24 de dezembro. Eles escolheram, então, uma data em meados de fevereiro — o terceiro sábado do mês — um costume que se preservou desde então. As celebrações contam com apresentações teatrais, fantasias coloridas, fogos de artifício, música e dança. "As pessoas que nos escravizaram comemoraram o Natal em dezembro e não nos foi permitido ter aquele dia de folga, mas nos disseram para escolher outro", disse o coordenador do evento, Holmes Larrahondo. "Na nossa comunidade, acreditamos que uma mulher deve jejuar 45 dias após o parto, por isso celebramos o Natal não em dezembro, mas em fevereiro, para que Maria possa dançar conosco", acrescentou Larrahondo. Balmores Viáfara, professor de 54 anos, disse ao jornal local El Colombiano que, para ele, 24 de dezembro é "como qualquer outro dia" , enquanto as Adorações ao Menino Jesus, como são conhecidas as celebrações, são uma festa "em que nós negros celebramos adorando nosso Deus, à nossa maneira". Elas combinam as crenças católicas, fruto da evangelização europeia, com outras formas de expressão e rituais que os escravos trouxeram da África. São "celebrações de resistência", resumiu Viáfara ao El Colombiano. No âmbito das celebrações, os moradores vão de casa em casa em peregrinação "à procura" do Menino Jesus — representado por um boneco de madeira — cantando e dançando. Assim que é "encontrado", o boneco é carregado em procissão ao redor da cidade por participantes de todas as idades vestidos de anjos e soldados, que finalmente a colocam na manjedoura. Os dançarinos realizam uma dança chamada "la fuga", na qual os passos arrastados de escravos acorrentados são imitados. As festividades — que incluem recitações conhecidas como loas, dança e bebida — continuam até as primeiras horas da manhã. Durante o restante do ano, o boneco do Menino Jesus fica sob custódia na casa de um dos moradores. Essa responsabilidade recai sobre Mirna Rodríguez, uma parteira de 55 anos, que herdou de sua falecida mãe a tarefa de manter o boneco em perfeitas condições. "Todos participamos do evento desde pequenos (…) então acho que a tradição nunca vai acabar", disse Rodríguez ao El Colombiano.
2021-12-25
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59790905
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Os dólares de 'rosto pequeno' que 'valem menos' e são desprezados na Argentina
Assim como tantas outras pessoas ao redor do mundo, em 2020, quando países impuseram lockdowns devido à pandemia de Covid-19, os argentinos Antonella Spampinato e Mariano Agüero decidiram que queriam deixar seu apartamento na cidade e mudar-se com seu filho de quatro anos para os subúrbios da capital Buenos Aires. Durante anos, eles converteram suas economias em dólares, moeda usada nas transações imobiliárias na Argentina devido à fragilidade da moeda local, o peso, que sofre constantes desvalorizações. Não foi fácil encontrar um lugar na cobiçada zona norte da capital argentina. Mas quando eles finalmente o encontraram e era hora de pagar por sua nova propriedade, tiveram um problema inesperado. "Algumas das cédulas que tínhamos eram antigas e não foram aceitas", lembra Antonella à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC. "Tivemos que dar algumas para minha irmã, que estava viajando para o exterior e ela conseguiu trocá-las por notas novas. E depositamos as outras na conta em dólares da minha mãe e lhe pedimos que fizesse saques", acrescenta. Esse problema se tornou uma verdadeira dor de cabeça para os argentinos. Em uma economia extremamente dolarizada devido à sua instabilidade de longa data, muitos ainda guardam cédulas americanas mais antigas, impressas entre 1914 e 1996. Elas são conhecidas como cédulas de 'cara chica' ('rosto pequeno', em tradução livre) e se distinguem por ter em seu centro uma pequena efígie de um herói americano, dentro de uma moldura oval. No caso da nota mais emblemática, a de US$ 100, há o rosto de Benjamin Franklin (1706-1790), um dos fundadores dos Estados Unidos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na série de dólares impressos entre 1996 e 2003, os retratos são bem maiores e a moldura oval se estende até as margens da nota. E nos dólares impressos a partir de 2004 (conhecidos informalmente como "los azules" ("os azuis", em tradução livre), uma vez que as cédulas de US$ 100 têm uma marca de segurança dessa cor, a imagem, que inclui rosto e ombros, parece ainda maior. Embora os três tipos de cédulas sejam moeda legal, válida e aceita tanto nos Estados Unidos quanto em qualquer banco fora daquele país, incluindo a Argentina, para realizar transações privadas — como comprar uma casa, um carro ou às vezes até um telefone celular, ou computador — a maioria dos argentinos só aceita as duas últimas, chamadas de "cara ou cabeza grande" ("rosto ou cabeça grande", em tradução livre). O mesmo acontece na maioria das imobiliárias, concessionárias, agências de turismo ou qualquer empresa que aceite dólares. E principalmente nas chamadas "cavernas financeiras", que compram e vendem dólares ilegalmente, para onde vão muitos poupadores argentinos por conta das fortes restrições — ou "ações" — ao dólar oficial. Nesses mercados ilegais, quem tem dólares de "cara chica" recebe um preço entre 1% e 5% menor do que o valor de face das cédulas de "cara grande", embora, na realidade, tenham todas o mesmo valor. Um doleiro que trabalha em uma dessas cavernas (e pediu para ser identificado apenas como "Gonzalo") explica à BBC News Mundo que a rejeição à série mais antiga de cédulas americanas começou há cerca de seis ou sete anos. E, pelo que ele disse, tudo aconteceu devido a um mal-entendido. "Um artigo foi publicado em um jornal econômico dos Estados Unidos no qual um funcionário do Federal Reserve (Fed, banco central americano) disse que esta instituição não imprime cédulas de 'cara chica' há muitos anos", lembra. "Então, as pessoas presumiram que o Fed as tiraria de circulação." Apesar de a entidade que dirige a política monetária dos Estados Unidos ter reiterado em muitas declarações que não faz parte dos seus planos retirar de circulação nenhum dos três tipos de notas hoje utilizadas, as dúvidas persistem. Gonzalo esclareceu que a rejeição de modelos antigos não começou na Argentina. "Os primeiros a parar de receber esses dólares pequenos foram destinos turísticos como Aruba e as Filipinas", diz ele. Mas, nos últimos anos, essas cédulas perderam seu valor em quase toda a América Latina, acrescenta. A razão pela qual este é um problema particularmente incômodo na Argentina é que ela é considerada uma das nações mais "dolarizadas" do mundo, devido à desconfiança dos locais no peso constantemente desvalorizado, que fez com que o dólar se tornasse a moeda de reserva. Muitos dos que têm possibilidade de poupar, compram dólares e os guardam, seja em casa, seja nos bancos. Como essa prática já existe há décadas, é muito comum que entre essas poupanças existam cédulas de 'cara chica', como aconteceu com Antonella e Mariano. Diante desse cenário, os argentinos têm três opções. Uma — como diz Antonella — é aproveitar para trocar as cédulas antigas por novas durante uma viagem aos Estados Unidos. Outra opção, que ela e seu parceiro também usaram, é depositá-los em uma conta em dólares em um banco e, em seguida, sacar o dinheiro, presumindo que as notas retiradas sejam de séries mais recentes. Essa alternativa não está disponível para cerca de 40% dos argentinos que trabalham no setor informal. Mas essa não é uma aposta segura nem para aqueles que têm empregos fixos. Isso porque, dada a enorme demanda por notas de 'cara grande', os bancos nem sempre têm estoque suficiente e tiveram que publicar avisos explicando a seus clientes que todos os dólares são válidos. A BBC News Mundo contatou os maiores bancos do país, tanto do setor público como privado, para saber como estão lidando com esses problemas, mas não obteve resposta de nenhum deles. No entanto, embora os bancos esclareçam que qualquer cédula pode ser aceita, não é assim que funciona de fato. Carolina, uma portenha que queria se mudar para mais perto da escola de seus filhos, assinou em novembro passado um contrato de compra de uma casa que deixava claro que o preço seria em dólares e que cédulas de 'cara chica' não seriam aceitas como pagamento. "Fui ao banco e pedi ao meu gerente que me desse dólares 'de cara grande'. E lhe disse que se me entregasse cédulas antigas, eu continuaria a depositá-las até que pudesse sacar cédulas novas", conta ela à BBC News Mundo. Quem não quer se dar ao trabalho ou tem poupança não declarada fora dos bancos, e tampouco planeja viajar para o exterior, tem uma terceira opção: ir às cavernas. Nesses locais, é possível trocar notas antigas por novas, em troca de uma taxa de 1% a 5%. Isso gerou um novo negócio ilegal: os cambistas compram os dólares de "cara chica" a um preço menor e os trocam por notas mais novas com a cumplicidade de caixas ou outros funcionários de banco, que recebem uma comissão por isso. Gonzalo reconhece que as cavernas estão se beneficiando dessa rejeição generalizada dos argentinos à antiga série de dólares. Mas nega as reportagens que culpam os cambistas por terem iniciado esse problema, ao rejeitar as cédulas mais antigas por terem menos medidas de segurança. "Em toda a minha carreira, nunca vi um dólar de 'cara chica' falso", diz ele. "É simplesmente uma questão de mercado... ninguém quer esses dólares", conclui.
2021-12-24
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59771132
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Equador é o primeiro país da América Latina a adotar vacinação obrigatória
O Equador declarou obrigatória a vacinação contra Covid-19 devido ao aumento das infecções causadas pela variante ômicron, anunciou o Ministério da Saúde do país sul-americano. "Esta decisão foi tomada devido ao atual estado epidemiológico, ou seja, o aumento das infecções e a circulação de novas variantes preocupantes", informou o ministério em nota na quinta-feira (23/12). O estatuto começará "de forma imediata", disse Rafael Castillo, porta-voz do governo, à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, acrescentando que a ordem é destinada a toda pessoa com mais de cinco anos, embora haja uma "ênfase" na população com mais de 12 anos. O ministério afirmou ter as reservas necessárias para imunizar toda a população — e que a regulamentação se deve ao fato de a nova variante se propagar mais rapidamente do que suas predecessoras. Como parte da diretriz, o governo vai exigir que os estabelecimentos que oferecem serviços não essenciais à população, como restaurantes, cinemas e supermercados, solicitem o cartão de vacinação. O cartão de vacinação não será solicitado em postos de saúde, escolas e locais de trabalho. Pessoas que apresentem qualquer condição médica ou contra-indicação não precisarão ser vacinadas. Funcionários do ministério disseram à BBC News Mundo que a supervisão e as sanções pelo não cumprimento da ordem recairão sobre os governos regionais. Segundo o ministério, a Lei Orgânica da Saúde permite que a vacinação seja declarada como um requisito para "determinadas doenças, nos termos e condições que a realidade epidemiológica nacional e local exigir". "Nos baseamos nas leis para tomar estas medidas", afirmou a ministra da Saúde, Ximena Garzón. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "É porque queremos proteger a saúde de todos os equatorianos". A ministra disse ainda que estão avaliando dados sobre o possível contágio comunitário da variante ômicron no país. Até terça-feira (21/12), 12,4 milhões de pessoas haviam recebido doses completas da vacina no Equador, o que representa 77,2% de seus 16 milhões de habitantes. Os equatorianos têm quatro vacinas disponíveis: Astrazeneca, Cansino, Pfizer e Sinovac. Uma média de 510 casos diários foram notificados no Equador nos últimos sete dias, de acordo com a agência de notícias Reuters. O número é 22% superior às infecções registradas em maio, mês com a média mais alta de casos diários. Também houve um aumento na taxa de ocupação de leitos nos centros de saúde. Nas Unidades de Terapia Intensiva (UTIs), o percentual varia entre 24% e 77% de ocupação, informou o ministério. Desde o início da pandemia, o Equador registrou 537.032 casos de Covid-19 e 33.597 mortes. Antes da vacinação, o Equador enfrentou uma das piores ondas de covid na América Latina. Em 2020, foi o segundo país com maior número de mortes depois do Brasil, embora sua população seja menos de um décimo da brasileira. Também houve famílias que foram informadas erroneamente sobre supostos parentes mortos. Análise de Matías Zibell, colaboradora da BBC News Mundo no Equador A campanha de vacinação tem sido o principal êxito do governo do presidente Guillermo Lasso, que assumiu o poder em 24 de maio de 2021 e reverteu nos primeiros meses de mandato o fornecimento insuficiente de vacinas por parte do governo anterior. O presidente, em seus seis meses no cargo, teve que enfrentar uma grave crise de segurança, motins carcerários com centenas de mortos, protestos sociais e um constante embate com a Assembleia Nacional, mas poucos questionaram o trabalho realizado no combate à covid-19. Inclusive na área da saúde, houve reclamações sobre a falta de medicamentos para pacientes com doenças crônicas e graves, enquanto o fornecimento de doses para aliviar a pandemia não parava. A vacinação obrigatória será vista por alguns como parte do bom trabalho do governo, mas a medida não estará isenta de controvérsia em um país que fecha o ano com um clima social rarefeito e um presidente que já não tem a popularidade dos primeiros meses .
2021-12-24
https://www.bbc.com/portuguese/geral-59772714
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O que a eleição no Chile significa para a esquerda da América Latina
A eleição mais polarizada das últimas décadas no Chile terminou no último domingo com a vitória do esquerdista Gabriel Boric, que derrotou por 55,8% a 44,1% o adversário José Antonio Kast, de direita e, aos 35 anos, vai se tornar o mais jovem presidente da história do país — e também o mais votado. Sua vitória e sua agenda jogam os holofotes na esquerda latino-americana, que havia ascendido ao poder em grande parte do continente no início do milênio, mas minguado na última década. Mas o quanto essa esquerda — que agora engloba desde Boric a líderes considerados autoritários, como o venezuelano Nicolás Maduro e o nicaraguense Daniel Ortega — é coesa, ou mesmo igual à de duas décadas atrás? E existe, de fato, uma nova "onda vermelha" no continente? "É de fato uma questão da maior relevância, porque há um efeito contágio. O que acontece nos vizinhos acaba influenciando o jogo político aqui no Brasil. Há muito dessas dinâmicas transnacionais", diz à BBC News Brasil Dawisson Belém Lopes, professor de política internacional e comparada na UFMG e pesquisador sênior do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri). "No fim dos anos 2000, o mapa da América Latina era tingido de vermelho. O engraçado é que, no fim da década de 2010, ficou ao contrário: (Mauricio) Macri ganhou na Argentina em 2015, houve o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 e em sequência, com algumas outras vitórias, o mapa passou a ser azul", prossegue o estudioso. "Me parece que a gente está num momento de aparente reversão desse fluxo, mas com muito equilíbrio ainda. Não acho que dê para falar de uma onda vermelha. Mas certamente a virada à direita estancou", opina. Agora, diz Belém Lopes, o continente está dividido entre países no momento governados pela direita — em países como Brasil, Colômbia, Uruguai, Paraguai e Equador — e os de esquerda, como México, Argentina, Peru, Bolívia, Venezuela, Nicarágua e outros. Mas, no ano que vem, esse equilíbrio de forças terá dois momentos decisivos: as eleições presidenciais do Brasil e da Colômbia. Na Colômbia, cujo governo atual, de Iván Duque (direita), tem baixos índices de popularidade, o favoritismo no pleito de maio de 2022 até agora é do esquerdista Gustavo Petro. Essas eleições, em especial a brasileira, serão "o fiel da balança", diz Belém Lopes. "Se aqui no Brasil a esquerda voltar ao poder, aí sim a balança pende para a esquerda — afinal, o Brasil sozinho é um terço da América Latina, e no momento está nas mãos da direita. A radiografia atualmente é de uma divisão de forças." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da FGV-SP, a crise econômica provocada pela pandemia de covid-19 no continente abre uma brecha para a esquerda, "mas é uma esquerda com profundas diferenças entre si e em sua visão de mundo", diz à BBC News Brasil. "Obviamente existem semelhanças, como a ênfase na desigualdade, nos serviços públicos e em um Estado mais forte. Mas, se você sai do campo econômico e vai para o social, as diferenças são grandes", prossegue Stuenkel. Ele cita como exemplo as diferenças entre Boric — que durante a campanha no Chile levantou bandeiras como a do casamento gay e da legalização do aborto — e outro líder esquerdista a vencer recentemente: o peruano Pedro Castillo, de posições conservadoras em temas ligados aos direitos reprodutivos das mulheres ou causas LGBT. "Nesse quesito, há muito pouco que une esses personagens", aponta Stuenkel. "As diferenças são profundas, mas a esquerda está se renovando. Nesse sentido, uma outra leitura é a de que o Chile está um pouco na frente. (...) Muito vai depender de como Boric vai governar. Ele representa uma nova esquerda, mas, se fracassar, essa nova esquerda pode sumir." Boric, um ex-líder estudantil, tem em sua coalizão o Partido Comunista, mas, na disputa de segundo turno pela Presidência precisou fazer acenos a (e alianças com) figuras ao centro da política chilena para abocanhar mais votos. Agora, em meio ao processo de construção de uma nova Constituição no Chile, Boric terá grandes desafios para pôr em prática seu programa de governo — que inclui aumento nos impostos da população mais rica e das grandes empresas, o fim do atual sistema de aposentadorias e criação de um fundo universal de financiamento da saúde pública e privada —, sem ter maioria no Congresso e em um país ainda bastante dividido. Isso representa também um pouco dos obstáculos de outros líderes à esquerda no continente. "É uma esquerda de articulação mais frágil — não tem aquela coesão do início dos anos 2000, em que parecia que de fato era uma novidade", analisa Dawisson Belém Lopes. "Alguns filósofos falavam (na época) de um 'socialismo do século 21', de um movimento novo. Agora, não. É uma volta das composições amplas, da social-democracia. (...) Boric teve que fazer esse esforço também: não é mais o líder estudantil de outros tempos, é outra figura. Teve que compor com o centro da política chilena. É uma esquerda que chega com menos impacto. Tende a ser mais institucional, convencional, não tão transformadora com o início dos anos 2000", avalia. Além disso, Boric faz esforços para se diferenciar da esquerda bolivariana representada por Nicolás Maduro, que comanda um regime acusado de prisões arbitrárias e supressão da oposição. Em maio, quando Maduro celebrou, no Twitter, o resultado das eleições locais chilenas (para cargos de constituintes, governadores e prefeitos) como uma "contundente rejeição ao neoliberalismo selvagem", Boric retuitou dizendo: "E também um mandato de respeito irrestrito aos direitos humanos. Algo em que tanto (o presidente chileno Sebastián) Piñera e o senhor não têm estado à altura." Nesse sentido, a esquerda latino-americana é hoje "um balaio de muitos gatos", afirma Belém Lopes. "Há muitas tendências hoje. A esquerda que competiu com o (Guillermo) Lasso, presidente do Equador (que governa desde maio deste ano), tinha argumentos indigenistas, ambientalistas, assim como Boric tem argumentos ligados à economia verde. Tem uma nova esquerda aí, talvez mais liberal nos costumes, que preza mais pelas liberdades individuais, de imprensa, expressão. As perspectivas coletivistas são deixadas de lado, ao contrário da Venezuela. E os direitos civis têm um peso muito grande." Ao mesmo tempo, a esquerda que já está no poder hoje enfrenta críticas e desafios diversos. No Peru, o atual presidente Pedro Castillo, um professor com raízes no sindicalismo, assumiu o país em julho, depois de uma série de convulsões sociais e políticas, e chegou a ser alvo de um pedido de impeachment que não prosperou no Congresso. Na visão da revista britânica The Economist, em reportagem de outubro, Castillo tem uma gestão até agora "definida por inexperiência política e indecisão, pelo extremismo e brigas internas de seus aliados e por um mandato fraco". Na Argentina, o governo de Alberto Fernández sofreu uma dura derrota nas eleições legislativas de novembro e, pela primeira vez desde 1983, o peronismo perdeu o controle do Senado do país. Na avaliação de Belém Lopes, a fragilização desses governos não se deve ao fato de serem de esquerda: "A questão de fundo é a pandemia, que dilapidou o capital político no espectro todo, da esquerda à direita", analisa o pesquisador. "De modo geral, a gestão da pandemia na nossa região é considerada das mais desastrosas, não só no Brasil. A média de contágio e de fatalidades é muito grande. Nossos números são muito ruins. E todos os políticos vêm sendo punidos pela gestão ruim que fizeram da pandemia e de seus efeitos." Além disso, existem os movimentos de rejeição a o que é visto como a "política tradicional". "Conversei com dois polítólogos chilenos muito importantes recentemente, e a perplexidade mais ou menos generalizada era com o fato de que, pela primeira vez desde a redemocratização do Chile, nos anos 1990, as tradicionais coalizões de direita e esquerda não tiveram nenhum protagonismo no processo (eleitoral)", ressalta Belém Lopes. "A turma encabeçada pela (ex-presidente) Michelle Bachelet e a turma encabeçada pelo (atual presidente) Sebastián Piñera ficaram completamente à margem. Quem ascendeu foi uma ultradireita militarista, pinochetista, e uma esquerda insurrecional na sua origem, das revoltas estudantis de 2011." Embora ambos os lados tenham se aproximado do centro para ampliar seu eleitorado, "são candidaturas que, na sua origem, desafiavam o sistema político eleitoral. Mas a tendência agora, naturalmente, é de normalização. Dentro dessa lógica, o (direitista) Kast está pensando (nas eleições) de 2025". "As expectativas são gigantescas. Mas o Chile é uma democracia superconsolidada, a mais resiliente da América Latina, junto com o Uruguai, o que facilita o trabalho de Boric. É um país com uma capacidade de discussão pública de muito alto nível. (...) O que diferencia uma democracia de qualidade é a maior capacidade de resolver seus problemas de forma construtiva e sua cultura de debate (para cargos de constituintes, governadores e prefeitos) — e o Chile tem esse espírito, apesar de sua desigualdade."
2021-12-21
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59736445