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Nicolás Maduro: as acusações que pesam contra líder da Venezuela
Depois de oito anos e quatro meses de ausência, o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, está de volta ao Brasil. Acusado de graves violações de direitos humanos pela Organização das Nações Unidas (ONU) e de "narcoterrorismo" pelos Estados Unidos, Maduro aterrissou em Brasília para uma reunião dos chefes de Estado e de governo de 11 países latinoamericanos, a ser realizada na terça-feira (30/05). O venezuelano estava acompanhado da primeira-dama, Cilia Flores, quando subiu a rampa do Palácio do Planalto para uma reunião bilateral com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Maduro não vinha ao Brasil desde janeiro de 2015, quando esteve na posse da ex-presidente Dilma Rousseff, também do PT. Ao assumir o governo brasileiro em 2019, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) rompeu relações com o governo de Nicolás Maduro – que comanda de fato o país desde 2013 – e passou a reconhecer o opositor Juan Guaidó como presidente interino da Venezuela, embora este nunca tenha exercido o poder no país vizinho. Fim do Matérias recomendadas Em 2017, ainda no governo de Michel Temer (MDB), o então encarregado de negócios da Venezuela no Brasil, Gerardo Antonio Delgado Maldonado, foi considerado "persona non grata" no Brasil. A medida foi uma resposta à decisão de Caracas de fazer o mesmo com o embaixador brasileiro na Venezuela, o diplomata Ruy Pereira. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast E, em setembro de 2020, já sob Bolsonaro, o corpo diplomático venezuelano no Brasil também deixou de ser reconhecido pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE) – os profissionais não foram expulsos de Brasília, mas não tinham mais o status de representantes diplomáticos para o governo brasileiro. Sob o governo do ex-capitão, o Estado brasileiro passou a relacionar-se com representantes indicados por Guaidó. Na reunião desta segunda-feira, Lula e Maduro trataram da normalização das relações entre o governo brasileiro e o regime de Caracas. Segundo Lula, é "um prazer" receber Maduro novamente em Brasília. "É difícil conceber que tenham passado tantos anos sem que mantivessem diálogos com a autoridade de um país amazônico e vizinho, com quem compartilhamos uma extensa fronteira de 2.200 km", disse Lula após o encontro. O presidente brasileiro disse ainda que as acusações de autoritarismo contra a Venezuela são apenas "narrativas". "Você sabe a narrativa que se construiu contra a Venezuela. Da antidemocracia, do autoritarismo… Então eu acho que cabe à Venezuela mostrar a sua narrativa, para que possa efetivamente fazer as pessoas mudarem de opinião. (...) E eu acho que, por tudo que nós conversamos, a sua narrativa vai ser infinitamente melhor que a narrativa que eles têm contado contra você", disse Lula em entrevista no Palácio do Planalto, ao lado de Maduro. Na prática, o governo brasileiro já havia retomado as relações com o governo Maduro logo após a posse de Lula – na última quarta-feira (24/05), o petista recebeu as credenciais do novo embaixador da Venezuela no Brasil, Manuel Vicente Vadell Aquino. A cerimônia marcou o início dos trabalhos do embaixador em Brasília. Entidades como a Anistia Internacional, a Human Rights Watch e a Organização das Nações Unidas (ONU) acusam o governo comandado por Maduro de ser uma ditadura que usa da violência para manter o poder. Os métodos incluiriam execuções, sequestros, estupros e prisão de opositores. Iniciado por Hugo Chávez, o grupo político de Maduro - o chavismo - está no poder na Venezuela de forma ininterrupta desde 1999. Segundo as entidades, o governo usaria o aparato de inteligência civil e militar para vigiar a sociedade civil, inclusive sindicalistas e membros da imprensa. Em 2020, o governo dos Estados Unidos acusou Maduro de envolvimento com o tráfico de drogas e de "narcoterrorismo" contra a população americana – as acusações continuam em aberto, e há uma recompensa pela prisão do chefe de Estado venezuelano. Por fim, os principais índices que se propõem a medir o grau de democratização dos diferentes países ao redor do mundo são unânimes em considerar o atual regime venezuelano como uma ditadura. Para o índice V-Dem, baseado na Suécia, a Venezuela é hoje uma "autocracia eleitoral" – um regime autoritário, apesar das eleições. Maduro foi eleito presidente em 2013 e reeleito em 2018. A eleição vencida por ele em 2018, porém, foram colocadas sob suspeita por diversos outros países. Além disso, após ter sofrido uma derrota na eleição de 2015 para obter maioria na Assembleia Nacional - o Legislativo unicameral da Venezuela -, Maduro convocou uma Assembleia Nacional Constituinte. Na prática, o movimento serviu para esvaziar o Legislativo eleito e comandado pela oposição. As últimas acusações de violação de direitos humanos dirigidas contra o governo Maduro foram apresentadas em março deste ano pela Missão das Nações Unidas para Verificação de Fatos sobre a Venezuela (FFMV, na sigla em inglês). A missão relatou a existência de pelo menos 282 presos por razões políticas no país, e apontou a permanência de um clima generalizado de medo por parte da população. "Num contexto de impunidade generalizada de crimes sérios mencionados em nossos relatórios anteriores, os cidadãos que criticam ou se opõem ao governo se sentem ameaçados e desprotegidos. O medo da prisão e de torturas por parte do governo impedem as pessoas de se expressarem ou protestarem", disse Marta Valiñas, a chefe da FFMV. Em outro relatório, de setembro de 2020, a mesma missão da ONU detalhou a forma como o governo venezuelano usava agências de inteligência civis e militares para reprimir opositores. "Ao fazê-lo (o governo) comete crimes graves e violações de direitos humanos, incluindo atos de tortura e violência sexual. Estas práticas precisam parar imediatamente", disse Valiñas na ocasião. O relatório foi baseado em 245 entrevistas confidenciais com cidadãos venezuelanos, além de análise de documentos. No fim de março deste ano, a Anistia Internacional estimou entre 240 e 310 o número de presos políticos na Venezuela, além de destacar as dificuldades econômicas enfrentadas pela população. A maioria dos venezuelanos sofre com "severa insegurança alimentar e falta de acesso a cuidados médicos adequados", enquanto o Estado trata de forma repressiva "jornalistas, integrantes da mídia independente e defensores de direitos humanos", segundo a organização. A reportagem da BBC News Brasil procurou a embaixada venezuelana em Brasília por e-mail no começo da tarde desta segunda-feira para comentários sobre as acusações, mas até o momento não houve resposta. Em 2020, porém, o então embaixador da Venezuela na ONU, Jorge Valero, classificou a iniciativa das Nações Unidas como "hostil" e disse que a produção dos relatórios fazia parte de uma iniciativa dos Estados Unidos para atacar o governo de Caracas. A professora do curso de Relações Internacionais da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), Carol Pedroso, diz que o Brasil tem uma tradição de buscar relações com todos os países – mesmo os que são considerados ditaduras. "Existe uma tradição na diplomacia brasileira, consolidada no começo do século vinte, de que o Brasil não se posiciona contra governos. o Brasil (...) não faz críticas diretas à situação interna de outros Estados. O entendimento é de que se nós (Brasil) nos posicionamos contra questões domésticas de outro país, nós também nos colocamos em posição de receber críticas dos outros", diz ela. "E sendo o Nicolás Maduro o presidente de fato da Venezuela, aquele que governa realmente o país, que controla as instituições, ele deve ser recebida como chefe de Estado", diz. "Agora, tem a questão simbólica, com todo esse histórico recente. Há várias acusações graves de violação de direitos humanos por parte do governo Maduro, e até questionamentos de se a Venezuela seria de fato uma democracia", diz a pesquisadora à BBC News Brasil. "Nessa dimensão simbólica, a recepção do Maduro com honras de chefe de Estado pesa contra o Lula, sobretudo no âmbito interno (ao Brasil)", completa ela. Segundo Carol Pedroso, a aproximação de Lula com Maduro pode estar relacionada à tentativa do brasileiro de trazer o regime venezuelano de volta às negociações com a oposição. "O Lula pode (tentar) ganhar uma projeção internacional como mediador, assim como ele está tentando fazer no caso do conflito da Ucrânia. A gente sabe que ele pessoalmente tem uma capacidade de negociação grande, porém as condições atuais (na Venezuela) são muito diferentes daquelas dos dois primeiros governo dele", diz ela.
2023-05-29
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c997jjg7pveo
america_latina
A temida gangue da Venezuela que se espalha pela América Latina e teria laços com o PCC
Se o grupo criminoso conhecido como Trem de Aragua fosse um trem de verdade, sua estação central estaria na Venezuela e a linha passaria por Colômbia, Brasil, Peru, Equador, Bolívia, Chile e possivelmente Estados Unidos. A jornalista e investigadora venezuelana Ronna Rísquez usa essa alegoria para ilustrar o alcance das atividades criminosas do grupo em seu livro O Trem de Aragua: O Grupo que Revolucionou o Crime Organizado na América Latina. Como parte de sua investigação, Rísquez se fez passar por parente de um detento para entrar em Tocorón, prisão onde surgiu o grupo criminoso. O presídio fica em Aragua, Província localizada no centro-norte da Venezuela, a cerca de 60 quilômetros de Caracas. Nessa arriscada missão, Rísquez foi recebida por homens "famintos", "vestidos com camisas brancas de mangas compridas, gravatas vermelhas e jeans azuis ou brancos", uma espécie de comissão de boas-vindas mais parecida com personagens de teatro do que imagem de caos e pobreza geralmente associada às prisões venezuelanas. Durante a visita, a jornalista descobriu que Tocorón possui boate, piscina, playground, cassino, restaurantes com terraço, bares, lojas de bebidas, caixas eletrônicos e até um zoológico que exibe onças, pumas e avestruzes — privilégios financiados com dinheiro obtido pelos criminosos com suas atividades. Fim do Matérias recomendadas Os primeiros a serem extorquidos são os detentos. Estima-se que o presídio de Tocorón, conhecido pela população carcerária como "Casa Grande", abriga aproximadamente 5 mil detentos. Embora não se saiba quantos deles pertencem ao Trem de Aragua, Rísquez estima que a organização possa ter cerca de 3 mil membros. Se cada preso pagar uma taxa de extorsão semanal de US$ 15, conforme indicado por seus informantes em Tocorón, a quadrilha consegue arrecadar quase US$ 4 milhões anuais apenas dentro da prisão. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O Trem de Aragua foi fundado em 2014 por três criminosos que viveram em Tocorón entre 2007 e 2013, período em que se consolidou na Venezuela o "pranato", "uma forma de governança criminosa na qual os presos exercem o controle sobre um território (a prisão) sobre uma comunidade (a população carcerária) com o consentimento ou cumplicidade do Estado". Os chefes das prisões na Venezuela são conhecidos como "pranes". Segundo a investigação de Rísquez, o Trem de Aragua ampliou suas fontes de renda por meio de uma carteira de pelo menos 20 crimes, incluindo extorsão, sequestro, roubo, fraude, garimpo ilegal e contrabando de sucata, além de homicídios, tráfico e lavagem de dinheiro, tráfico de pessoas, contrabando de imigrantes e venda de armas a outros grupos criminosos da região. Em conversa com a BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, Rísquez explica como um grupo inicialmente dedicado à extorsão de empresários em Aragua se espalhou por boa parte da América Latina e é perseguido pelas autoridades de Chile, Colômbia e Peru, que denunciam a falta de colaboração do governo venezuelano. Confira a entrevista. BBC - Como o Trem de Aragua se tornou um grupo organizado enorme com atuação na América Latina? Rísquez - O Trem de Aragua saiu da Venezuela por vários motivos. Um deles é a complexa emergência humanitária que afeta os venezuelanos desde 2015. Ela estimulou muitos a emigrar, inclusive pessoas que pertenciam a grupos criminosos. Nesse processo, eles descobriram que havia formas ilegais de renda nas áreas de fronteira que poderiam ajudá-los a se sustentar em um momento em que não havia recursos nem alimentos. Eles foram até os confins do país, em direção à fronteira entre o Estado de Bolívar e o Brasil, entre Táchira e a Colômbia, ao litoral de Aruba, Curaçao e Bonaire e à fronteira com Trinidad e Tobago. Eles se envolveram em atividades como tráfico de drogas, contrabando de imigrantes, mineração ilegal e contrabando de mercadorias, incluindo gasolina. Quando perceberam que podiam controlar a passagem de mercadorias para as ilhas do Caribe, começaram a levar drogas, cobre, imigrantes e mulheres para exploração sexual. Primeiro foram para Trinidad, mas não tiveram a possibilidade de expandir porque o idioma e as máfias daquela ilha os limitavam. Em vez disso, o grupo que foi para a área de mineração no sul da Venezuela não só conseguiu se instalar no quarto depósito de ouro mais importante do mundo (Las Claritas), como também conseguiu uma saída muito fácil para o Brasil. Então eles começaram a vender armas para o PCC (Primeiro Comando da Capital), que é o grupo criminoso mais importante do Brasil. Naquela época, 2017 ou 2018, havia muitas armas circulando na Venezuela e não se sabia de onde vinham. Em alguns casos dizia-se que das próprias Forças Armadas ou do exterior. De qualquer forma, era muito fácil e barato conseguir armas na Venezuela e vendê-las no Brasil era um negócio interessante para os dois. Um fuzil AR-15 no Brasil custava US$ 20 mil, enquanto na Venezuela custava US$ 5 mil. Um relatório do Ministério Público Estadual de Roraima confirma que existe uma aliança entre o PCC e o Trem de Aragua. Mais tarde, vimos prisões de membros da organização na Colômbia e no Peru em 2018. Nessa data, eles já estavam em certas áreas de Bogotá e começaram a descer pelo Equador até o Chile. A partir de 2019, eles passam a controlar as trilhas (estradas irregulares) entre Venezuela e Colômbia, aproveitando o fechamento da fronteira e a passagem em massa de venezuelanos que fugiam da situação crítica no país. A quadrilha descobriu que ao controlar essas rotas, eles controlavam também a passagem de imigrantes, mercadorias ilícitas e drogas. BBC - Que impacto teve a imigração venezuelana na saída do Trem de Aragua para outros países? Rísquez - Fala-se muito que a migração ajudou na expansão desse grupo, mas não foi bem assim. Não é que o Trem de Aragua saia por causa da migração. É que já havia começado a se expandir em busca de renda ilegal, como outros grupos criminosos da região. O certo é que eles foram estratégicos ao identificar que suas principais vítimas, geradores de renda e divulgadores de sua marca como poderoso grupo criminoso seriam os próprios migrantes venezuelanos. Então começaram a vitimizá-los, sequestrá-los, subjugá-los, extorqui-los, movê-los de um lugar para outro e explorar sexualmente as mulheres. O que está acontecendo é que o crime organizado está se expandindo pela América Latina e atuando em alianças. O caso do promotor paraguaio Marcelo Pecci, assassinado em Cartagena, é o melhor exemplo. Ele foi ameaçado por uma organização que opera entre o Paraguai e o Uruguai e posteriormente foi assassinado na Colômbia com a participação de colombianos e venezuelanos ligados ao Trem de Aragua. É muito significativo que o Trem de Aragua tenha uma presença importante nas fronteiras entre Colômbia e Equador ou entre Chile, Peru e Bolívia. Encontrei depoimentos de pessoas que cruzaram as fronteiras do Peru ou do Chile sem um único documento de identidade, em viagens organizadas pelo povo do Trem de Aragua. Eles não são parados pela polícia. Não sendo uma gangue com poder militar como os cartéis mexicanos ou grupos colombianos, o Trem de Aragua conseguiu estabelecer alguma presença e controle em toda a América do Sul. Também no Panamá. E alguns de seus membros estão nos Estados Unidos. BBC - Como o Trem de Aragua é semelhante e diferente de outros grupos regionais do crime organizado? Rísquez - Investigações no Chile, Peru e Colômbia mostraram que o grupo é controlado a partir da prisão de Tocorón, onde as decisões são tomadas e as ordens são emitidas. Por isso a semelhança com o PCC (do Brasil) é muito forte. São dois grupos que nasceram em presídios e ali têm sua base de atuação. Outra semelhança com as organizações regionais é a estrutura mafiosa. O Trem de Aragua funciona como uma máfia que tem tentáculos nas instituições do poder político. E não é algo que eu digo. O próprio presidente Nicolás Maduro falou da ligação entre uma banda que pertencia ao Trem de Aragua e autoridades políticas no contexto da operação anticorrupção em que funcionários, prefeitos e governadores foram presos na Venezuela. Ele falou sobre ser uma estrutura da máfia. Por outro lado, há particularidades do Trem de Aragua que o diferenciam de outros grupos da região. Uma delas é o fato de ter um vasto portfólio de crimes. Contei mais de 20 e isso inclui "prestação de serviços" a outras organizações criminosas, como assassinos de aluguel. Além disso, eles têm outras atividades que geram renda, como a comercialização de alimentos na Venezuela ou a cobrança de cotas nas negociações para a assinatura dos contratos dos candidatos venezuelanos ao beisebol que vão para as ligas principais. De fato, as autoridades chilenas os identificam como um "grupo polivalente". É um elemento que os caracteriza e lhes dá uma certa vantagem, ao contrário de um cartel mexicano, as FARC ou o ELN, que concentram boa parte de sua atividade no contrabando ou narcotráfico. Outra diferença com esses grupos tradicionais é que o Trem de Aragua não precisa de um exército tão visível ou de uma massa de gente armada para se impor e controlar negócios e territórios. Além disso, sua capacidade de adaptação facilitou a entrada em outros países. Por exemplo, se não podem vender maconha, então vendem cetamina, que é o que estão levando para o Chile e o Peru. Se o contrabando de migrantes não é mais lucrativo, eles se envolvem no tráfico. Eles procuram oportunidades de negócios criminosos que possam gerar renda e que lhes permitam fazer alianças porque são muito bons negociadores. Eles conseguiram estabelecer práticas criminosas que não existiam na região. BBC - Qual a importância de manter o controle da Tocorón para essas operações internacionais? Rísquez - Esta prisão cumpre várias funções. Em primeiro lugar, é uma espécie de bunker para um dos cérebros da organização (Héctor Rusthenford Guerrero, conhecido como o "Niño Guerrero", que cumpre pena de mais de 17 anos por crimes que incluem homicídio e tráfico de drogas). Esse indivíduo, que é a figura mais visível, está protegido dentro de Tocorón e controla toda a operação de lá. E ainda há o fato de que a força de trabalho da organização vem principalmente de Tocorón. As pessoas que acabam trabalhando para eles são recrutadas dentro da prisão. BBC - Como é possível que isso aconteça em uma instituição estatal? Rísquez - Eu não posso responder a isso. O que posso dizer é que quando entrei em Tocorón, na entrada havia oficiais da Guarda Nacional encarregados da custódia externa. Porém, ao passar pela porta principal, os presos exibem as armas livremente. Eles vendem bebidas caras, há uma discoteca e um zoológico com animais de todos os tipos. E alguém diz: "Como isso pode ter entrado? A autoridade deve controlar isso. BBC - Há evidências de que altos funcionários do governo venezuelano estejam envolvidos nas atividades do Trem de Aragua? Rísquez - Não, não há provas. Mas na Venezuela existe um Ministério de Relações Interiores, um Ministério da Defesa, um Ministério do Serviço Penitenciário. De uma forma ou de outra, todos tiveram algum tipo de responsabilidade pelas prisões venezuelanas. BBC - No livro você explica que a quadrilha é pioneira na governança criminosa da Venezuela. O que você está falando? Rísquez - A governança criminal tem três componentes: o grupo armado que controla o território, a comunidade sujeita ao grupo e as autoridades. Nesse caso, não significa que o poder governamental esteja fazendo parte dessa estrutura, mas ao não fazer nada para impedir, permite que o círculo se feche. A primeira forma de governança criminosa visível que vimos na Venezuela ocorreu precisamente em 2015, quando o Trem de Aragua assumiu o controle de San Vicente, uma área urbana muito grande no Estado de Aragua que não fica tão perto de Tocorón. San Vicente está estrategicamente localizada com acesso a um lago, um aeroporto e acesso a uma rodovia principal que conecta a área com um porto muito importante na Venezuela. Embora esteja muito perto de uma área militar e haja autoridades como o prefeito ou o governador do Estado, em San Vicente quem manda são os membros do Trem de Aragua. Eles decidem se vão colocar enfeites nas fachadas das casas no Natal ou se devem colocar plantas para deixar o ambiente mais bonito. Eles controlam o transporte público, decidem se um aluno vai para um campus ou outro e resolvem disputas entre vizinhos. Muita gente foi embora, muitos comércios fecharam porque todo mundo tem que pagar 'vacuna' (extorsão), desde pequenos comerciantes até industriais. Se não pagam, são atacados com granadas ou armas. BBC - Quem são as vítimas do Trem de Aragua? Rísquez - Os habitantes das cidades são vítimas e têm de se submeter às suas regras. Isso acontece em Tocorón, San Vicente, zona mineira de Las Claritas e na fronteira com a Colômbia. Em Tocorón, por exemplo, alguns dos testemunhos que colhi indicam que pessoas com doenças como HIV ou tuberculose são confinadas em lugares onde depois morrem sem nenhum tipo de assistência. Na área de mineração, as pessoas que desrespeitam uma regra simplesmente desaparecem. Migrantes e mulheres também são vítimas. Neste momento, a operação de tráfico é muito forte e mulheres, meninas e adolescentes são vítimas claras. O recrutamento é constante e por diversos meios: concursos de beleza, agências de modelos, através de colegas de escola ou familiares que as convencem a viajar e acabam sendo exploradas sexualmente em outros países. Depois, há os comerciantes e empresários que são extorquidos pela organização para pagar pela vacina, mesmo no Peru, Colômbia e Equador. A maioria são venezuelanos. A exceção é o Chile, onde existe um quadro institucional e eles não conseguiram estabelecer a governança criminal. Apesar de operarem de forma diferente ali, as punições são semelhantes: subjugar uma pessoa, torturá-la e gravá-la para que fique como uma mensagem de alerta para quem descumprir suas regras. BBC - Você coletou depoimentos de mulheres que eram parceiras de membros de gangues e acabaram envolvidas em suas atividades. Que papel desempenham as mulheres no Trem de Aragua? Rísquez - Elas têm vários papéis. Elas cobram extorsão e fazem a administração das praças, ou seja, os locais onde a organização está instalada em outros países com atividades de tráfico, narcotráfico ou extorsão. As mulheres não dirigem esses negócios, mas são elas que mantêm as contas, recrutam mulheres que são exploradas sexualmente em outros países e as monitoram. BBC - Como funciona a cooperação entre as forças de segurança venezuelanas e de outros países para investigar e capturar os membros do Trem de Aragua? Rísquez - Não sei se isso mudou este ano, mas até o final de 2022 essa cooperação estava morta, não existia. Os relatórios da Interpol a que tive acesso para o livro mostram como Chile, Equador, Peru e outros países enviam repetidamente pedidos de informações sobre pessoas sob investigação e nunca recebem uma resposta. Um desses pedidos era sobre um dos chefes do Trem de Aragua que estava no Chile. (A polícia do) Chile enviou o pedido três vezes e nunca recebeu uma resposta. BBC - Qual foi a coisa mais comovente que você ouviu durante as entrevistas? Rísquez - As histórias de mulheres que foram vítimas do Trem de Aragua, que foram exploradas sexualmente e também escravizadas. São histórias muito dolorosas, principalmente porque se aproveitam de mulheres com filhos. Algumas confessaram que vieram ver como seus companheiros foram assassinados. Também os depoimentos de pessoas que foram vítimas de tráfico e migrantes que não tinham opções de trabalho ou documentos e a quadrilha se aproveitou disso. E também os depoimentos das pessoas que vivem nos territórios controlados pelo Trem de Aragua. Vim entrevistar professores que vivem em permanente medo e numa fortíssima condição de submissão. São pessoas que têm vocação e acham pior sair e deixar o pouco que podem fazer dentro desse sistema horrível. Um desses professores ficou muito emocionado porque disse quase em lágrimas: "Estou com medo, mas não sei o que fazer. Acho que não posso ir embora, vou todos os dias dar aulas para que os meninos possam continuar, mas está ficando cada vez mais difícil." As histórias de policiais que foram vítimas da quadrilha quando tentavam se estabelecer em Aragua e na Venezuela são muito cruéis. Seus integrantes atacaram quartéis policiais para demonstrar poder. São mortes que não ocorreram em confrontos. Eles os procuravam fora das operações ou ameaçavam suas famílias. Alguns morreram e o resto foi embora. Nem um único policial permaneceu em San Vicente. E se pergunta onde está o monopólio da força, que o Estado deveria possuir. BBC - A publicação deste livro afetou você pessoalmente? Rísquez - Eles me ameaçaram quando anunciamos que íamos publicar o livro. Embora se saiba que trabalhar com essas questões envolve riscos, nunca se está preparado para que isso aconteça. A dinâmica muda, é complicado. No entanto, sempre acreditei que essa era uma história que precisava ser contada porque não se trata apenas de um grupo armado ou de uma gangue venezuelana. É a história de um país marcado pela violência, impunidade, injustiça e falta de instituições. E acho que este livro também conta essa história.
2023-05-29
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3g9j0xjggeo
america_latina
Como China está expandindo influência do yuan na América Latina em meio a disputa global com EUA
Talvez você não veja isso nos preços de carros ou eletrodomésticos do país, mas o yuan, a moeda que a China promove como alternativa ao dólar, está abrindo um espaço crescente na América Latina. Alguns sinais disso surgiram nas últimas semanas. Na Argentina, o governo anunciou no mês passado que suas compras da China passariam a ser pagas em yuans em vez de dólares, para preservar suas enfraquecidas reservas internacionais. E aqui no Brasil, onde o yuan superou o euro como segunda maior moeda de reserva externa, o governo também anunciou um acordo para negociar com a China nas moedas dos dois países e evitar recorrer ao dólar. Essas mudanças em duas das maiores economias latino-americanas são apontadas pelo presidente boliviano, Luis Arce, como parte de uma "tendência" regional à qual seu país pode aderir. Mas também é visto por especialistas como reflexo do compromisso da China em tornar sua moeda mais internacional, em meio à luta cada vez mais intensa com os Estados Unidos. "Existem vários mecanismos que a China pode usar para introduzir sua moeda em diferentes mercados; é um fenômeno regional, não algo exclusivo do Brasil e da Argentina", diz Margaret Myers, diretora do programa da Ásia e América Latina do Diálogo Interamericano, um centro de análises regional com sede em Washington, nos Estados Unidos. No entanto, ela adverte em entrevista à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) que ainda não se sabe até onde chegará esse impulso da moeda asiática. Pequim demonstrou sua intenção de aumentar a presença do yuan na América Latina na última década, depois de se tornar um importante parceiro comercial na região e uma fonte de financiamento para alguns países. Em 2015, as autoridades chinesas assinaram acordos de investimento e câmbio com o Chile, onde anunciaram a abertura do primeiro banco de compensação de yuans na América Latina. Alguns meses depois, fizeram o mesmo na Argentina. O objetivo dessas instituições, também conhecidas como clearing houses – ou câmaras de compensação –, é facilitar as transações internacionais entre a moeda local e o yuan, sem a necessidade de passar pelo dólar, como costuma acontecer. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em fevereiro, após acordos de compensação de yuans em outras regiões, a China anunciou a mesma medida no Brasil, seu maior parceiro comercial na América Latina com uma troca bilateral que em 2022 atingiu um recorde de US$ 150 bilhões (cerca de R$ 750 bilhões). Operado pelo Banco Industrial e Comercial da China, um importante ator financeiro que garante aos empresários brasileiros a conversão imediata para reais dos negócios fechados em yuan, o mecanismo compensatório no Brasil processou sua primeira operação de liquidação internacional em moeda asiática em abril. Com um volume considerável de câmbio bilateral, esse mecanismo teoricamente pode tornar as operações em yuan mais atrativas porque evita a dupla conversão em dólar, explica Welber Barral, ex-secretário de Comércio Exterior do Brasil. "É uma estratégia chinesa tentar tornar sua moeda conversível e mais amplamente utilizada", declara Barral à BBC News Mundo. Mas ele destaca que mais de 90% do comércio exterior brasileiro ainda é feito em dólares. Embora o yuan possa ganhar mais peso como segunda moeda nas reservas internacionais do Brasil com acordos recentes, ainda é marginal em relação ao dólar (a moeda chinesa ocupava menos de 6% desse total em dezembro, e os EUA mais de 80%). O ministro da Economia argentino, Sergio Massa, anunciou em abril um acordo para deixar de pagar as importações da China em dólares e passar a adotar o yuan, após ativar um swap ou acordo de câmbio financeiro com o país asiático equivalente a US$ 5 bilhões. Desta forma, a Argentina calculou oficialmente que somente em maio suas empresas pagariam com yuans mais de US$ 1,04 bilhão por importações originárias da China (de eletrônicos a automóveis) e, depois, uma média de US$ 790 milhões por mês. O governo argentino buscou com esses acordos preservar as reservas internacionais do país, que caíram a níveis preocupantes em meio à crise econômica e à medida em que o Banco Central vendia dólares no mercado de câmbio para conter a desvalorização do peso. Na Bolívia, onde as reservas internacionais também diminuíram e os dólares rarearam, o presidente citou a nova utilização do yuan no comércio exterior da Argentina e do Brasil como um possível caminho a seguir. "As duas maiores economias da região já estão negociando em yuan em acordos com a China", disse Arce em entrevista coletiva neste mês. "A tendência na região vai ser essa”, acrescentou. Claro, os fatores geopolíticos também desempenham um papel em tudo isso. Diferentes analistas acreditam que a China redobrou seu desejo de internacionalizar sua moeda não apenas como uma forma de impulsionar o seu comércio exterior, mas também para corroer o poder que o dólar americano teve por décadas. As sanções internacionais à Rússia por invadir a Ucrânia pareciam abrir uma oportunidade para a valorização da moeda chinesa. O yuan desbancou o dólar como a moeda mais negociada na Rússia este ano, depois de representar 23% dos pagamentos de importações russas em 2022. E a China, pela primeira vez em março, usou mais yuan do que dólares para pagar suas transações internacionais, embora sua moeda tenha movimentado menos de 5% do comércio mundial. Alguns especialistas acreditam que, ao tentar reduzir a dependência do dólar, Pequim quer se proteger do risco de futuras sanções ao dólar. A China também fechou acordos recentes com outros parceiros comerciais – do Paquistão a empresas na França – para facilitar as trocas de yuans, desenvolveu sua própria moeda digital e uma alternativa à Swift, a rede global de mensagens interbancárias. Paralelamente, também surgiram questionamentos da América Latina sobre a primazia do dólar. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sugeriu a adoção de uma moeda diferente dos EUA para financiar o comércio entre os países do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). "Quem decidiu que o dólar deveria ser a moeda depois que o ouro desapareceu como paridade?", perguntou Lula durante visita à China em abril. "Precisamos ter uma moeda que transforme os países em uma situação um pouco mais tranquila", disse, "porque hoje um país precisa correr atrás do dólar para poder exportar". Mas, de acordo com especialistas, a chave aqui é que o dólar tende a atrair a demanda internacional por ativos seguros e é difícil para o yuan competir nesse aspecto sem que a China relaxe suas próprias restrições de capital. Myers considera improvável um aumento explosivo do uso do yuan na América Latina após os anúncios da Argentina e do Brasil, ainda que a moeda tenha maior presença na região. "Vemos um crescimento no uso (do yuan) e um esforço real da China para que isso aconteça", diz ele. "Mas o grau em que será usado como moeda global depende das próprias reformas internas da China e do quanto ela abrirá seus mercados financeiros. E isso não está ocorrendo."
2023-05-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c8vr3r7l4dmo
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Vulcão em erupção no México: por que Popocatépetl é um dos mais perigosos do mundo
Aeroportos temporariamente fechados, voos cancelados, aulas presenciais suspensas em escolas... O Popocatépetl está ativo. No entanto, isso não é novidade, pois a "montanha fumegante" – na língua náuatle – reiniciou sua atividade no final de 1994. Na verdade, essa é a sexta vez desde o ano 2000 que o alerta amarelo de precaução da fase 3 foi emitido. Por isso, cientistas pedem que as pessoas tenham calma e sigam as recomendações oficiais baseadas no monitoramento 24 horas do vulcão, também conhecido como "el Popo" ou "Don Goyo". "O comportamento atual do Popocatépetl é um pouco mais intenso do que em ocasiões anteriores, mas nada desproporcionalmente diferente. Está dentro do que observamos desde que se tornou ativo", diz Juan Manuel Espíndola, pesquisador do Instituto de Geofísica da Universidade Nacional Autônoma do México (Unam). Fim do Matérias recomendadas Com base em experiências anteriores, o especialista prevê que a atividade atual do vulcão continuaria na forma de lançamento de cinzas e explosões esporádicas, mas que a intensidade poderia diminuir gradualmente e “decair” nas próximas semanas. "É o equivalente a um paciente que está em terapia intensiva e está sendo monitorado. Pode ficar estável, pode entrar em uma fase perigosa ou pode receber alta", avalia. "Agora estamos na fase de observação e não há informações de que esteja passando para uma fase mais perigosa. Não há evidências disso", frisa. Com base nas informações de Espíndola, a BBC Mundo (serviço em espanhol da BBC), conta, a seguir, sete fatos sobre o Popocatépetl, um dos vulcões mais ativos do México e com o qual os habitantes daquela área convivem há milhares de anos. Popocatépetl é considerado um dos vulcões mais perigosos do planeta devido à sua proximidade com áreas densamente povoadas. O "Popo" está localizado no centro do México, entre os estados de Morelos, Puebla e o Estado do México, e a menos de 100 km da capital, Cidade do México. Por isso, estima-se que uma eventual grande erupção poderia afetar cerca de 25 milhões de pessoas que vivem em um raio de 100 quilômetros ao redor do vulcão, onde há escolas, hospitais e aeroportos. A cidade de Santiago Xalitzintla é a mais próxima, pois fica a apenas 12 km da cratera. Além disso, o Popocatépetl faz parte do chamado Círculo de Fogo do Pacífico, que faz fronteira com o oceano com uma extensão de cerca de 40.000 km. Este anel é considerado a maior e mais ativa região sísmica, sendo que 75% dos vulcões do mundo estão concentrados nele, que é o epicentro da maioria dos terremotos. O Popocatépetl não é o único vulcão que faz parte da chamada Sierra Nevada do México. Junto a ele existem outros grandes vulcões, como o Iztaccíhuatl, também conhecido como "A Mulher Adormecida" e com o qual, segundo uma lenda popular, foi jurado amor eterno. O que está comprovado é que, em seus mais de meio milhão de anos em que esteve ativo, apresentou vários estágios de crescimento que formaram pelo menos outros três vulcões anteriores a ele. Estes foram destruídos por grandes erupções: Nexpayantla há mais de 400.000 anos, Ventorrillo há cerca de 23.000 anos e El Fraile há cerca de 14.500 anos. O cone moderno de Popocatépetl é formado sobre os restos desses vulcões. Embora muitos acreditem que é agora que o Popocatépetl entrou em erupção, a verdade é que as imagens atuais são apenas um episódio dentro de um período, ou evento eruptivo, que começou no final de 1994. Antes disso, "Don Goyo" estava "adormecido" por cerca de 70 anos desde sua última atividade, na década de 1920. Isso levou alguns especialistas a apontarem para um tipo de padrão de comportamento em que o vulcão poderia reativar aproximadamente a cada sete décadas, depois ficar ativo por um tempo e voltar a dormir. Segundo Espíndola, “o problema é que a vida dos vulcões é muito longa e isso precisa ser estudado com mais detalhes por um longo período de tempo para ver se esse padrão se verifica”. “E, no caso dos vulcões, esse comportamento é vago, então os dados atuais não permitem chegar com certeza a essa conclusão de que ele será ativado a cada 70 anos”, aponta. Por tudo isto, o “Popo” é classificado como um estratovulcão. Em outras palavras, é composto de diferentes camadas que foram formadas em cada uma das muitas fases de sua longa vida eruptiva em milhares de anos. “Essas camadas são de diferentes tipos e podem ter sido formadas por derrames de lava, material piroclástico…”, explica Espíndola. “É assim que se forma o edifício vulcânico e é por isso que os estratovulcões são tão altos e grandes: porque foram construídos em diferentes estágios de emissões maciças”, acrescenta. Com uma cratera de 900 metros de diâmetro e uma altitude de 5.452 metros acima do nível do mar, Popocatépetl é o vulcão mais alto do México depois do pico Orizaba ou Citlaltépetl. Uma investigação da UNAM de 2013 colocou o Popocatépetl entre os cinco vulcões do mundo que mais emitem gases na atmosfera. Esse estudo estimou que 30 megatons de gases foram expelidos por "Don Goyo" entre 1994 e 2008. Suas emissões mais importantes são enxofre e dióxido de carbono, além do próprio vapor d'água. Longe do que pode parecer à primeira vista, especialistas dizem que a expulsão eficiente dos gases ajuda a evitar outros problemas mais graves e que sua ventilação contribui de alguma forma para “limpar” ou liberar os dutos internos do vulcão. "Isso desde que não haja mais material proveniente do interior do vulcão, porque isso seria perceptível numa sismicidade mais intensa", diz Espíndola. "Mas até agora nada disso foi notado”, acrescenta o especialista. A verdade é que o interior do Popocatépetl, como acontece com todos os vulcões, é um grande enigma. Sua grande dimensão e as dificuldades de acesso por ser ativo tornam sua estrutura interna muito pouco conhecida, uma vez que os modelos existentes para seu monitoramento se baseiam, por exemplo, em fatores como a sismicidade. Espíndola explica que a guia que se tem para saber algo de maneira mais indireta sobre ele é graças à localização dos terremotos, que permite supor a zona onde se encontra o conduto vulcânico (canal que liga a câmara subterrânea do magma à superfície). "Mas não há nenhum vulcão onde você possa ter informações exatas. Mesmo nos mais estudados, você só tem alguns dados sobre os condutos do edifício vulcânico, mas o magma vem de muitos quilômetros de profundidade... assim não há informação direta, a não ser situações que nos fornecem alguns dados, como os terremotos”, diz o especialista. Por tudo isso, não é de estranhar que o Popocatépetl seja o vulcão mais monitorado do México, com uma equipe de 13 cientistas de diferentes especialidades que vigiam sua atividade dia e noite. Atualmente, um grupo de câmeras, sensores sônicos, estações sísmicas e meteorológicas ajudam a monitorar sua atividade 24 horas por dia, enviando dados para um centro de controle localizado no sul da Cidade do México. "Participam desta comissão especialistas que estudam diversas áreas como a sismicidade, as emissões, a geoquímica… e toda essa informação é passada às autoridades, que têm levado a questão a sério e estão informando periodicamente a população sobre o que devem fazer", afirma Espíndola. “E isso é o importante: se manter informado”, conclui.
2023-05-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3g7804dd2vo
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Tumba de mais de mil anos descoberta no Peru revela vida luxuosa de 'senhor das águas'
Um grupo de arqueólogos peruanos descobriu o que parece ser uma tumba pré-incaica, de 1.200 a 1.400 anos atrás, de uma "personalidade da elite" provavelmente dedicada a "atividades marinhas". A tumba foi encontrada no vale de Chancay, a nordeste de Lima, e faz parte do que é conhecido como cemitério Matacón. A cultura Chancay se desenvolveu na costa central do país, nos vales de Fortaleza, Pativilca, Supe, Huaura, Chancay, Chillón, Rímac e Lurín. Os arqueólogos concluíram que a tumba recém-descoberta, a maior e mais antiga já encontrada na região, deve ter pertencido a uma pessoa de alto escalão na comunidade, pois foram encontrados os restos mortais dela com os de mais cinco pessoas — possivelmente parentes ou empregados que foram sacrificados, segundo disse à agência de notícias EFE o arqueólogo Pieter Van Dalen Luna. Também foram encontrados 25 recipientes que continham comida e os restos mortais de quatro lhamas. Fim do Matérias recomendadas Os arqueólogos dizem que ainda são necessárias mais evidências e mais análises sobre os achados na tumba para que se possa chegar mais perto da identidade do dono da tumba. Um remo foi encontrado. Segundo explicou o professor Van Dalen Luna à emissora da Universidade de San Marcos, este objeto não tinha sido encontrado em nenhuma das outras 80 tumbas que haviam sido escavadas anteriormente no cemitério. “Pode ter sido uma pessoa dedicada à atividade marítima, de repente pescando ou coletando mariscos”, diz Van Dalen. Esta cultura pré-incaica fez parte das chamadas populações aimarás. Elas povoaram áreas da Bolívia, do Peru e do Chile antes da expansão do império inca. Seu declínio coincidiu com a expansão de Tahuantinsuyo — que era como os incas se referiam à sua própria cultura. O cemitério está localizado perto de uma área residencial, ocupada atualmente. A cerca de 50 metros da escavação estão algumas casas que podem ter sido chave para que o túmulo não fosse saqueado. “Se é verdade, por um lado, (que) a instalação das casas ocupou parte da zona arqueológica, por outro lado também tem permitido que os saqueadores (de sítios arqueológicos) não cheguem aqui”, disse o professor. Ele destacou que são necessários recursos e apoio das autoridades para manter intacto esse tesouro arqueológico, que pode nos ajudar a entender melhor como os povos se estabeleceram nas Américas na antiguidade. "Por que não pensar que este vale foi povoado por populações aimarás antes do ano 0 e do início desta era?", sugere Van Dalen.
2023-05-23
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c04mln0zvpgo
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As impressionantes imagens da erupção do vulcão que deixa México em alerta
O vulcão Popocatépetl, no México, está em erupção. No domingo (21/05), as autoridades mexicanas elevaram o nível de alerta para o vulcão, localizado a cerca de 70 quilômetros da Cidade do México, que passou de "amarelo fase 2" para "amarelo fase 3". A cor amarela do chamado "Sinal de Alerta Vulcânico" significa "fique atento e prepare-se para uma possível retirada" — e a fase 3 é estabelecida quando há uma atividade considerada de média a alta. É um nível abaixo do alerta vermelho, que implica em risco de morte. Neste caso, "você e sua família devem estar prontos para se retirar". O Popocatépetl, que significa "monte fumegante" na língua náuatle, está localizado entre os estados do México Puebla e Morelos. Fim do Matérias recomendadas Popularmente conhecido como "Don Goyo", é considerado um dos vulcões mais perigosos do mundo porque em um raio de 100 quilômetros vivem cerca de 25 milhões de pessoas. A Secretaria de Defesa Nacional mobilizou 7.275 militares para fazer frente a uma eventual retirada em massa, caso seja necessário, afirmou o presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, na segunda-feira. Também determinou nove rotas de saída. "De acordo com os especialistas, ainda é um sinal amarelo fase 3. Eles conhecem bem, porque nasceram lá. Já conhecem o comportamento do vulcão", disse López Obrador. "Há quem afirme que quando há erupções é mais tranquilizador do que quando está em silêncio. Em todo caso, há vigilância 24 horas sobre o comportamento do vulcão", acrescentou. O Centro Nacional de Prevenção de Desastres informou na segunda-feira que nas últimas 24 horas foram detectadas "cinco exalações acompanhadas de vapor d'água, gases vulcânicos e cinzas". "Além disso, foram registrados 1.389 minutos de tremor e duas explosões", completou. Pediu ainda "para ninguém se aproximar do vulcão e sobretudo da cratera, devido ao risco de cair fragmentos balísticos". O Aeroporto Internacional Benito Juárez, na Cidade do México, anunciou a suspensão de cerca de 1,2 mil voos no fim de semana em decorrência das cinzas. O vulcão afetou cidades como Puebla, localizada a 130 quilômetros a sudeste da Cidade do México, onde nuvens de cinzas tomaram conta do ar e das ruas.
2023-05-23
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cqez3gmg7zyo
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O presidente 'linha-dura' de um pequeno país que se tornou ídolo nas redes na América Latina
De São Paulo, o enfermeiro Fábio da Silva, de 39 anos, acompanha atento a política de um país sobre o qual, até pouco tempo atrás, ele sabia pouca coisa: El Salvador. São mais de 6 mil quilômetros entre a maior cidade do Brasil e esse que é o menor país da América Latina em área territorial. Mas o interesse do brasileiro está a apenas alguns toques no celular: a atuação e as redes de Nayib Bukele, o polêmico presidente do país, eleito em 2019, aos 37 anos. "Ele foi algo novo, diferente, que apareceu na política", defende o seguidor brasileiro, que não se considera nem de direita, nem de esquerda. "É um fenômeno mundial". Silva não é o único a achar isso. Diariamente, as caixas de comentários nos perfis de Bukele nas redes sociais são inundadas por elogios de outros latino-americanos. Os comentários dos salvadorenhos chegam a ser secundários. "Queremos você em toda a América Latina"; "Falta um Bukele no Chile"; "Por favor, vem governar o Paraguai"; "Como fazer para ter clones seus?"... Fim do Matérias recomendadas Segundo um levantamento recente feito pela agência Digitips que circulou nas redes, Bukele é hoje o líder mundial mais seguido no TikTok. Em maio de 2023, eram mais de 5,7 milhões de seguidores, à frente de Lula (4,3 milhões) e do francês Emmanuel Macron (3,9 milhões). A população total de El Salvador é de cerca de 6,3 milhões de pessoas. No Instagram, Bukele, com 4,8 milhões de seguidores, só fica atrás de Lula entre os líderes latinos e está bem à frente de mandatários de países muito maiores, como o mexicano Andrés López Obrador e o argentino Alberto Fernandez. A BBC News Brasil entrou em contato com a Presidência de El Salvador para informações sobre a origem de seguidores estrangeiros de Bukele, mas não obteve resposta. O posicionamento ideológico de Bukele é considerado ambíguo, mas suas atitudes acabam atraindo mais eleitores de direita nas redes (leia mais abaixo). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Oscar Picardo, diretor do Centro de Estudios Ciudadanos da Universidade Francisco Gavidia (UFG), em El Salvador, e que acompanha de perto a popularidade de Bukele, avalia que a política "linha-dura" de segurança pública e a "máquina" de propaganda na internet estão por trás desse fenômeno, tanto nacionalmente quanto no exterior. De acordo com cálculos da agência Bloomberg, na época, El Salvador comprou 2.546 Bitcoins a um custo de aproximadamente US$ 108 milhões. Em 11 de maio de 2023, essas moedas valiam menos de US$ 70 milhões. O uso geral de Bitcoin pela população também não se popularizou como o previsto. Mesmo com esses resultados, a popularidade do político não foi abalada dentro do país. "Ele descobriu, como político, que, se melhorasse os índices de segurança, tinha metade da batalha ganha", avalia Picardo. A administração Bukele conseguiu reduzir os índices de homicídios de um país marcado pela violência (veja dados abaixo), segundo dados do governo, e a população de El Salvador vem relatando uma certa normalidade que há décadas não se via, quando se encontrava em meio aos conflitos entre gangues nas ruas – chamadas por lá de "pandillas". Ao mesmo tempo, há mais de um ano, o país vive um "regime de exceção" solicitado por um decreto de Bukele e aprovado pelo Congresso após a morte de 87 pessoas num único fim de semana em 2022. O regime é prorrogado pelo Congresso dominado por "bukelistas" a cada mês, desde março de 2022, e suspende uma série de garantias individuais aos salvadorenhos, como o direito de defesa e inviolabilidade da correspondência e a liberdade de associação e circulação. Também tornou possível o Estado interferir nas telecomunicações sem decisão judicial. Por outro lado, a "guerra" de Bukele deixa efeitos colaterais. Com as medidas aprovadas no Legislativo, foram estabelecidas uma série de regras que facilitam as prisões no país, como a não necessidade de ordem judicial ou de o preso passar por audiência com um juiz em até 72 horas. Além disso, o presidente, com apoio do Congresso, destituiu juízes e promotores não alinhados ao seu regime por todo o país e alterou a Suprema Corte ao destituir cinco magistrados. Em tom de ironia sobre as críticas, Bukele chegou a se autodeclarar nas redes como "o ditador mais cool (expressão em inglês para 'descolado') do mundo". A história política de Bukele começa dentro da esquerda salvadorenha, no tradicional partido Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FLMN). O grupo surgiu como um movimento de guerrilha nos anos 1980, durante a ditadura civil-militar apoiada pelos Estados Unidos que governava o país. A guerra civil entre os dois lados durou até 1992. De uma família de origem palestina, Bukele cresceu em torno de figuras importantes do meio político e empresarial de El Salvador. Seu pai era empresário e um proeminente líder muçulmano. O primeiro cargo para o qual foi eleito, pela FLMN, foi para prefeito da pequena Nuevo Cuscatlán, em 2012. Em seguida, se elegeu prefeito de San Salvador, a capital, antes de tentar virar presidente. Após embates com membros da FLMN, Bukele decide fundar o seu próprio partido, o Nuevas Ideas. Barrado pela Justiça eleitoral do país nas eleições de 2019, o político tentou fazer aliança com o Cambio Democrátio, um partido de centro-esquerda – mas que também acabou impedido de ter um candidato. Por fim, conseguiu se eleger com o apoio da conservadora Gran Alianza por la Unidad Nacional (Gana). No site oficial da Presidência de El Salvador, a biografia de Bukele aponta como um de seus êxitos o rompimento "com o bipartidarismo instaurado desde o pós-guerra", se referindo à própria FLMN e ao partido direitista Arena, que se dividiram no poder até 2019. Para o pesquisador Oscar Picardo, como mostram as alianças e sua origem política, "Bukele não tem uma postura muito bem definida em termos de ideologia política". Já do lado da esquerda, além da origem política na FLMN, quando chegou a dizer que era "esquerda radical", Bukele hoje tem em Pequim o seu maior aliado em projetos em El Salvador. "Ele atua conforme as oportunidades, é muito pragmático. Não responde a uma linha de pensamento de direita ou de esquerda. Se hoje é conveniente ser pró-LGBT, ele é. Se não, muda o discurso", diz Picardo. Na visão de Fábio da Silva, seguidor brasileiro de Bukele, a admiração pelas ações do presidente é também porque "ele está seguindo o caminho sozinho": "Ele toma decisões próprias, algumas bem polêmicas, mas que ele acreditou que fossem corretas". Apesar dessa dualidade, é perceptível, segundo o pesquisador salvadorenho, que a maioria de seguidores de Bukele de outros países da América Latina é de direita. "Ele é uma pessoa que antagoniza muito. É muito radical. E seu discurso acaba combinando mais com a direita, como nas críticas aos 'direitos humanos', que só as pessoas boas devem ter direitos humanos, e os maus não. Essa política 'linha-dura', a posição radical, coincide mais com movimentos fascistas em países como Colômbia e Brasil". Fábio da Silva acredita que o que une as pessoas em torno de Bukele é a decepção com a política tradicional, a corrupção nos governos tradicionais, a impunidade e a insegurança nos países latinos. "Tudo isso afeta todas as pessoas, independentemente da classe social. Cada vez mais as pessoas estão desacreditadas em órgãos de direitos humanos. Isso vai cansando todo mundo. Quando você vê algo novo e com resultados, aí une todo mundo", diz o enfermeiro. A falta de alinhamento ideológico de Bukele com figuras internacionais fica evidente em outras atitudes. Na pandemia, por exemplo, Bukele tomou medidas muito diferentes de líderes de direita como Trump e Jair Bolsonaro, ao tentar promover um rigoroso lockdown. Por outro lado, o presidente faz uma"guerra" contra os veículos de comunicação, contra críticos e defende a tomada de outros poderes, como o Judiciário. Em 2020, antes das eleições que lhe deram maioria no Congresso, ele invadiu a casa legislativa com militares armados para exigir liberação de recursos para combater as gangues. "Ou seja, não tem nenhum freio. Conseguiu em dois anos o que Daniel Ortega só conseguiu em 15", opina Picardo, se referindo ao presidente de esquerda da vizinha Nicarágua. Para admiradores que fazem coro nos comentários das redes, o controle sobre todas as instituições do país é válido. "Como acontece no Brasil, essas pessoas se enraízam no poder de alguma forma. Alguns métodos são polêmicos, mas o resultado é espetacular", diz Fábio da Silva. Antes de se tornar político, Bukele era publicitário e dono de uma agência, o que, segundo Picardo, inspirou a forma como ele se comunica com a população do país e fora dele. "A cada dia aparecem ao menos 100 vídeos no Youtube apoiando suas ideias. É uma maquinaria muito sofisticada e grande", conta o pesquisador. "Por isso, está chegando a muitos países e criadores de conteúdo, na Costa Rica, no México, na República Dominicana, na Colômbia. E obviamente eles maximizam muitas coisas que não são reais e criam uma imagem santa dele". O material audiovisual de Bukele inclui imagens aéreas bem produzidas de obras inauguradas, fotos com a família, reportagens internacionais que o mencionam, além de vídeos mostrando o encarceramento em massa em estilo cinematográfico. "É como se fosse um espetáculo", diz Picardo. "Ele se locomove com uma equipe gigante de comunicações. Acredito que não há no mundo um presidente que ande com uma caravana como a dele, com 14 carros". A BBC News Brasil questionou a Presidência de El Salvador sobre a estrutura da equipe de comunicação do presidente, mas também não obteve resposta. Para Oscar Picardo, os cinco anos de Bukele no poder, com essa intensa campanha de comunicação, gerou uma espécie de culto. "É quase uma religião. Qualquer pessoa que critica Bukele recebe uma onda de trolls, de gente a te insultar. É incrível. É como se ele tivesse a verdade em tudo". O próprio Picardo diz que abandonou o Twitter para ficar "mais tranquilo"e fazer seu trabalho com as pesquisas de opinião. Vanessa Matijascic, pesquisadora de relações internacionais da Universidade de São Paulo (USP) e que estuda a história de El Salvador, ressalta ainda que as redes de Bukele focam na divulgação das medidas de segurança pública. "As redes amparam um discurso contras as organizações de direitos humanos e contras as organizações internacionais que criticam as medidas do presidente. E disseminam que o único caminho para melhorar o país é pela militarização da segurança pública". Mas até quando essa relação de devoção à figura de Bukele em El Salvador e na América Latina deve durar? Pesquisadores do país vêm relatando uma "bomba-relógio" da política de encarceramento em massa, tanto pelos gastos de se manter a maior população carcerária do mundo quanto pelas consequências de se ter tantos homens reunidos num ambiente hostil como a prisão. "E a raiz do problema não foi resolvida, já que aqui há muitas crianças que deixam a escola, e são elas que nutrem as gangues", diz Oscar Picardo. No fim do ano passado, o governo salvadorenho anunciou o programa Mi Nueva Escuela, uma reforma educacional que pretende remodelar as escolas. A economia, como mostra o exemplo da medida envolvendo o Bitcoin, é também um "calcanhar de Aquiles". "Mesmo o projeto de criptomoeda ter sido um fracasso, não afetou a popularidade", diz Picardo. Apesar de El Salvador não ter a possibilidade de reeleição permitida na Constituição do país, Bukele já disse que vai tentar um novo mandato nas eleições de 2024. E, sem freios institucionais para impedi-lo de permanecer no poder, o país pode ter mais cinco anos de seu governo. "Creio que, para estas eleições, não haverá uma competição. Não há ninguém que vá causar dano a Bukele estatisticamente", adianta o pesquisador.
2023-05-22
https://www.bbc.com/portuguese/articles/clm9g01zkk9o
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4 fatores que explicam a nova desaceleração econômica na Venezuela
A economia da Venezuela não está recuperada. A ligeira retomada que o país experimentou a partir de 2021 estagnou nos primeiros meses deste ano e há temores de uma nova recessão. Entre 2014 e 2020, o país experimentou uma das maiores contrações que uma economia já enfrentou no mundo, perdendo 75,5% de seu Produto Interno Bruto (PIB). Até que, em 2021, a economia registrou uma ligeira recuperação, que se deveu à retomada da produção de petróleo e à alta do consumo. Após sete anos de números negativos, o país experimentou um crescimento que chegou a 13,3%, segundo o Observatório de Finanças da Venezuela (OVF). E alguns venezuelanos começaram a ver uma luz no fim do túnel. Fim do Matérias recomendadas "Em dezembro passado, vimos cenas que não víamos há muito tempo", disse Alexa Gómez, advogada que mora em Caracas, à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC). "Muita gente na rua. Mas, sobretudo, muita gente comprando. Havia uma certa calmaria, uma falsa crença de melhora." Essa miragem foi alimentada pela abertura de grandes lojas de roupas importadas e de carros de luxo, pela retomada de eventos culturais, pelo retorno de shows de artistas internacionais e pela abertura desenfreada de restaurantes de alto padrão. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas, a partir deste ano, esse sentimento de prosperidade desapareceu. “Agora, você vê pouco fluxo em Las Mercedes”, diz Gómez, que se refere a uma área no leste de Caracas caracterizada pela presença de bares, restaurantes e casas noturnas. "Bares e restaurantes vazios, lojas fazendo promoções. Muitas pessoas angustiadas e comerciantes desesperados", observa. Os números confirmam esse cenário. Em fevereiro, o FMI (Fundo Monetário Internacional) anunciou que o crescimento real do PIB da Venezuela em 2023 seria de 6,5%, projeção posteriormente corrigida para 5,0%. Dados do Observatório de Finanças da Venezuela (OVF) revelaram agora que, durante o primeiro trimestre de 2023, a atividade econômica registrou uma queda de 8,3% em relação ao período anterior. Segundo o FMI, a inflação deve fechar em 400%. O governo continua culpando as sanções dos EUA pelos problemas econômicos, mas o que está por trás dessa desaceleração econômica? Aqui explicamos quatro fatores que explicam esse cenário. As transações na Venezuela sempre foram feitas em bolívar, a moeda local. Mas a hiperinflação iniciada em 2017, e que durou quatro anos, diluiu tanto o valor do bolívar que as cédulas acabaram servindo mais para decoração do que para comprar. Em reação a isso, os venezuelanos começaram a usar o dólar para fazer pagamentos. Essas transações eram feitas de maneira informal, quase clandestina, devido à criminalização do uso de moeda estrangeira imposta pelo governo de Hugo Chávez. Até que o governo de Nicolás Maduro, em 2018, permitiu que as empresas anunciassem abertamente seus preços em dólares, o que abriu caminho para a dolarização de fato. O uso de uma moeda mais estável injetou um pouco de segurança no mercado, impulsionou a atividade do setor privado e deu fôlego até às classes mais baixas. No entanto, a ausência de regulamentação impediu que a dolarização fosse efetiva. “A dolarização na Venezuela foi um processo espontâneo. Não foi uma política econômica de Estado”, explica o economista Giordio Cunto. "Foi feita de forma desordenada e fora das instituições financeiras. Isso complicou ainda mais o sistema de pagamentos no país." Os clientes pagam com dólares em dinheiro, mas os comerciantes não têm notas de baixo valor para dar o troco. E as transações são feitas por meio de amigos ou parentes nos Estados Unidos, dada a impossibilidade dos venezuelanos de movimentar dólares entre contas em bancos locais. Em março de 2022, o governo aprovou uma reforma na Lei de Grandes Operações Financeiras (IGTF), que implantou um imposto de 3% sobre as operações em moeda estrangeira realizadas por pessoas físicas e jurídicas - uma medida que desestimulava o uso do dólar. “Depois de sete anos de recessão, a economia do país não estava preparada nem forte o suficiente para essa carga tributária”, diz o economista José Manuel Puentes. “Foi uma decisão econômica equivocada, que teve o impacto de esfriar a economia." Em sua opinião, o governo Maduro implementou a dolarização incorretamente e depois quis impor novamente o uso do bolívar. “Ele aplicou uma técnica de vai e vem, de vai e pára, que impactou as transações. No final, a falta de medidas de estabilização econômica do governo tornou a dolarização menos eficaz”. A recuperação da economia venezuelana foi limitada, pois foi alavancada em apenas um setor produtivo: comércio e serviços. Segundo dados publicados pela Bloomberg, 200 restaurantes foram inaugurados em Caracas no ano passado, o maior número em pelo menos uma década. Quase metade foi destinada a um público de alto poder aquisitivo, aquele com capacidade de pagar mais de US$ 50 por refeição. Mas o aumento da inflação, aliado à abrupta desvalorização de 25% ocorrida em agosto de 2022, desanimou o consumo. Os negócios começaram a esvaziar. “A revitalização da economia em que se baseou esta recuperação foi muito desequilibrada”, explica Cunto. “Não envolvia outros setores mais produtivos e de maior valor agregado como construção, mineração, manufatura, que ficavam para trás. Isso não era sustentável, porque era puxado pelo consumo. Como o consumo caiu, a recuperação ficou sem combustível”. O número revelado por Iván Puerta, presidente da Associação de Restaurantes, em entrevista publicada pela Bloomberg, dá a dimensão do desastre: cerca de 60% dos novos estabelecimentos alimentares da Venezuela fecharam após um excesso inicial de entusiasmo. Com isso, a contração das vendas comerciais em relação a janeiro do ano passado foi de 17%, segundo o economista Asdrúbal Oliveros. "Em termos econômicos é a pior contração dos últimos três anos", diz. Consequentemente, há outro fator que também afeta negativamente o consumo: a queda de 15% nas remessas de valores, fruto da crise pós-pandemia, o que significa que três em cada dez domicílios na Venezuela dependem do dinheiro enviado por familiares que vivem no exterior. Durante o primeiro semestre de 2022, a produção de petróleo da Venezuela registrou uma retomada, devido à recuperação da atividade da sua principal empresa estatal, a PDVSA. Depois de estar nos níveis mais baixos de sua história, a petrolífera estatal chegou a 735 mil barris por dia em maio daquele ano, segundo dados da Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo). Esse impulso foi um incentivo para o setor estratégico da economia venezuelana que havia sido afetado pelas sanções impostas pelo governo de Donald Trump, ex-presidente dos Estados Unidos, e pela perda do controle de ativos petrolíferos dos americanos. Em meio a esse cenário, a invasão da Ucrânia pela Rússia abriu a oportunidade para a Venezuela vender mais petróleo. No entanto, o país não conseguiu aproveitá-la ao máximo. "Este conflito teve um ‘efeito positivo’ na Venezuela porque é um país petrolífero, mas não conseguiu tirar mais proveito devido à sua atual incapacidade de aumentar sua produção", diz José Manuel Puentes, que lembra que a PDVSA no passado chegou a produzir três milhões de barris de petróleo por dia. Aliás, as sanções à Rússia interromperam a capacidade reduzida da Venezuela de comercializar seu petróleo. Uma circunstância que, aos olhos do governo, resultou em dificuldades na obtenção de mais divisas. Paralelamente, outro fator trabalhava contra eles: problemas de arrecadação. "A Venezuela vende seu petróleo em condições muito opacas", diz Cunto. "Nem todo o valor acaba chegando ao país, o que dificulta o acesso aos recursos com os quais o governo pode contar." Essa falta de liquidez, no final, impediu o governo Maduro de manter o mercado de câmbio sob controle, além das baixas reservas internacionais. E diante da queda da renda, incentivar o uso do bolívar acabou sendo a saída. A curta duração da recuperação econômica vivida pela Venezuela resulta, na opinião de especialistas, à persistência dos problemas estruturais do país. “Em uma economia com uma profunda crise estrutural como a da Venezuela, toda melhora tem um teto”, diz o economista Asdrúbal Oliveros. "Temos um Estado falido que não consegue gerar renda. Uma economia sancionada que mantém o país isolado. Sem possibilidade de crédito. Com problemas no serviço público... Nesse cenário, qualquer sinal de melhora se dilui", acrescenta. Muitos concordam em afirmar que a força da recuperação econômica foi muito tênue, pois não tinha uma base sólida. Oliveras acredita que o erro foi superestimar a recuperação, com base nas expectativas que ela gerava na população. “Temos uma economia muito improdutiva e pouco competitiva. Isso limita seu crescimento e diversificação." Mas o que esperar da economia da Venezuela nos próximos meses? O economista José Manuel Puentes não está muito otimista. "Se voltarmos a registrar números negativos no trimestre de abril, maio e junho, entraremos tecnicamente em recessão, pelos números extraoficiais. Isso é muito preocupante", diz. Já Oliveros acredita que, embora esteja em um cenário de desaceleração, o país não voltará à crise econômica vivida em 2017. "Agora temos uma economia dolarizada. Um setor privado que conquistou a independência e um governo mais pragmático. Teremos um segundo semestre menos ruim e poderemos fechar o ano com 5% de crescimento. Mas vai depender se começarmos a ver sinais de estabilização". Essa visão é partilhada por Cunto, que garante que o esfriamento da economia vai continuar a ser sentida, mas sem beirar um quadro crítico. "Ainda há muita vulnerabilidade na política monetária, já que ela não se movimenta sozinha, mas está atrelada ao Executivo. Assim, não vamos crescer mais do que 5% neste final de ano." Com essa perspectiva, ele sugere que o país seja mais conservador na magnitude da recuperação e explore atividades de maior produtividade. "É preciso ser mais ágil para se adaptar às condições desse ambiente altamente volátil. A verdade é que não podemos contar com um salto quântico."
2023-05-21
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw4p2lxdyzjo
america_latina
Brasil no G7: como crise argentina pode ajudar Lula a se fortalecer como líder regional e global
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) desembarcou na madrugada desta sexta-feira (19/5) em Hiroshima, no Japão, para participar da reunião do G7 — grupo composto por Canadá, Reino Unido, Japão, Estados Unidos, Itália, Alemanha e França. Será a primeira vez em 14 anos que um mandatário brasileiro participa das reuniões do G7. Neste ano, oito nações foram convidadas: Índia, Indonésia, Austrália, Ilhas Cook, Comores, Coreia do Sul, Vietnã, além do Brasil. Diante dos líderes das sete nações mais industrializadas do mundo, Lula pretende expor um problema histórico e bem conhecido dos brasileiros: a crise econômica da Argentina. O cenário catastrófico — em ano eleitoral — levou o presidente argentino Alberto Fernandez a uma visita emergencial a Brasília há duas semanas, para pedir socorro financeiro. Fim do Matérias recomendadas “Na verdade, neste momento, a Argentina já tem passivos de mais de US$1 bilhão, já está no vermelho. É evidente que a perda de receitas de exportação com a seca teve efeitos violentos, mas o problema já vinha de antes. É uma situação em que literalmente daqui a pouco o Banco Central argentino terá que se declarar incapaz de entregar dólares para bancar os serviços. É uma situação de moratória em semanas, meses. O que está acontecendo agora é muito parecido ao cenário de 2001”, afirma o economista Otaviano Canuto. Nessa fala, o ex-vice-presidente do Banco Mundial e membro-sênior do Centro de Políticas para o Novo Sul Global refere-se ao Corralito, a última grande crise do país vizinho que levou a um pacote de medidas para impedir corrida aos bancos. Diante do quadro, Lula elegeu como uma de suas prioridades nos encontros com os líderes do G7 tentar ajudar a Argentina a renegociar as condições do empréstimo de US$ 44,5 bilhões contraído com o Fundo Monetário Internacional (FMI) em 2018. Preocupados com temas como a disputa entre EUA e China, segurança alimentar, cadeias de produtivas, aquecimento climático e a Guerra da Ucrânia, os integrantes do G7 não têm na crise econômica argentina uma de suas prioridades. No entanto, segundo assessores de Lula, a lógica do presidente para tentar emplacar a pauta é simples: “se eles (G7) querem discutir Ucrânia, nós queremos discutir Argentina, são as prioridades”. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast À exceção do Canadá, os demais seis membros do G7 estão entre os dez maiores financiadores do FMI (o Brasil é atualmente o décimo maior cotista do banco, e a Índia, que também estará no evento, é a nona). Segundo fontes ouvidas pela BBC News Brasil no Ministério do Planejamento, na Fazenda e no Palácio do Planalto, os argentinos pediram e Lula topou levar aos líderes o pedido para que o FMI flexibilize as metas fiscais do acordo de empréstimo vigente — que a Argentina será incapaz de cumprir — e para que aceite adiantar repasses em torno de R$80 bilhões, que deveriam ser desembolsados até dezembro pelo Fundo caso as metas fossem cumpridas pelo governo Fernandez. "Os bancos têm de ter paciência. Se for preciso, renovar o acordo e colocar a palavra tolerância em cada renovação porque não cabe ao banco ficar asfixiando as economias dos países, como está fazendo agora com a Argentina o Fundo Monetário Internacional", disse Lula. Antes mesmo da chegada de Lula ao Japão, coube ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tratar do tema Argentina no G7 Financeiro com ao menos três de suas contrapartes, durante reuniões bilaterais. O ministro tentou “sensibilizar” a secretária do Tesouro dos EUA Janet Yellen, o ministro da economia do Japão, Yasutoshi Nishimura e a ministra das Finanças Indiana Nirmala Sitharaman. Haddad tem justificado a mediação a partir de interesses imediatos brasileiros: junto com a China, o Brasil é o maior parceiro comercial da Argentina e possui uma balança comercial superavitária com os vizinhos. Economistas avaliam, porém, que por pior que seja a crise dos argentinos, um “efeito contágio” na economia da região é improvável. Questionados sobre o tema pela BBC News Brasil, diplomatas americanos disseram conhecer “as críticas” de Lula aos bancos multilaterais em Washington, mas evitaram se posicionar sobre o novo pedido da Argentina — os EUA representam quase 17% do capital do FMI. Publicamente, o FMI diz que mantém “debates construtivos” com autoridades argentinas e não discute os termos do acordo, que são sigilosos. Mas no mercado financeiro, a percepção é de que há pouca simpatia pelo pleito argentino. Recentemente, o jornal argentino La Nación citou fontes do fundo que afirmam temer o uso eleitoral de um eventual adiantamento — Fernandez recém anunciou que não concorrerá à reeleição. No Ministério da Fazenda e no Planejamento do Brasil, o entendimento é de que a disposição do Fundo “não é das melhores”. Mas que a pressão do governo poderia desestabilizar o atual representante do Brasil na diretoria Executiva, Afonso Bevilaqua, no posto desde a gestão Bolsonaro. “Esse pedido da Argentina só seria possível se os grandes shareholders quisessem e decidissem dar fundos adicionais, sem garantias. Não vejo isso como justificável (o pedido da Argentina), como viável pelas regras do FMI. Legalmente, o FMI não pode rolar a dívida. No fundo, o que o governo da Argentina está tentando fazer é empurrar com a barriga uma situação insustentável ”, diz Canuto. Se tem pouca chance de sucesso para amenizar a situação financeira argentina, o fato de Lula encampar a causa do país junto aos líderes globais é mais uma tentativa de alavancar a estatura do Brasil tanto regionalmente quanto globalmente. Para os países do Cone Sul, sinalizaria o compromisso do país em usar seus espaços privilegiados na política global em defesa dos interesses regionais. Para os líderes globais, mostraria que o Brasil não fala apenas por si, mas representa um conjunto de nações que o enxergam como líder. A percepção no governo Lula, segundo assessores, é de que essa seria outra oportunidade de mostrar que “o Brasil voltou”. Segundo o professor de relações internacionais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Dawisson Belém Lopes, o governo Lula começou “acelerando” uma política externa que, na verdade, já adota há décadas. “Brasil e Argentina são aliados na diplomacia desde os anos 1970 e 1980 com Itaipu, passa pelo Mercosul e chega hoje a fóruns como o G20 e até o Conselho de Segurança da ONU que, agora que o Brasil é membro não permanente, abre espaço para a Argentina, o Chile, e outros aliados da América do Sul nesse esforço para galvanizar os apoios e para se tornar uma liderança da sua região, e, eventualmente, da América Latina e Caribe”, afirma Belém Lopes. “No âmbito do G20, o grande aliado brasileiro é a Argentina. Há uma composição de interesses ali cujo objetivo maior, naturalmente, é juntar forças para conseguir exercer uma pressão, para conseguir pautar as reuniões e proporcionar uma atenção maior às visões do Sul global.” Os quatro anos da gestão Bolsonaro representaram um hiato nessa política externa. Mas ainda em janeiro, ao fazer sua primeira visita oficial de mandato à Argentina e ao Uruguai, Lula demonstrou a intenção de reverter a direção e apostar mais uma vez no Mercosul. No Itamaraty, o entendimento é que esse tipo de pauta é importante também para deixar claro que o Brasil não se vê e nem deseja ser tratado apenas como uma liderança ambiental. O Brasil assumirá a presidência do G20 em dezembro próximo e, na condição de líder do bloco, convidou Paraguai e Uruguai, parceiros do Mercosul, a atuarem como membros convidados do bloco. Nesse contexto, uma ausência notável nas discussões propostas pelo Brasil no G7 deve ser a do acordo comercial Mercosul-União Europeia. Tratado como prioridade durante a campanha de Lula, que criticava Bolsonaro por não ter concluído o acerto por questões ambientais, o texto passou a ser motivo de cizânia dentro do governo petista. O teor de uma carta enviada pela União Europeia com exigências ambientais caiu mal para as lideranças da região. Na administração federal brasileira, pastas como a Fazenda, o Planejamento e o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços acreditam que é possível responder aos europeus no mesmo tom por vias diplomáticas, sem necessidade de reabrir os termos do acordo já aprovado. O outro lado, representado especialmente pela Casa Civil, vê nos termos da carta e do acordo em si condições inaceitáveis. Diante da queda de braço da gestão, Lula passou a evitar comentários muito assertivos em relação ao acordo Mercosul e União Europeia e uma posição final do presidente só deve ser tomada após o retorno dele no Japão. Durante o G7 Financeiro, Haddad não abordou o tema. Belém Lopes propõe uma possível explicação para o aparente paradoxo do silêncio brasileiro em relação ao acordo Mercosul-União Europeia em um fórum tão privilegiado. “Sem entrar no mérito de se é bom ou ruim, acho que dá para entender (a posição do governo Lula). O Brasil quer liderar sua região, está claro que retomar o protagonismo regional é uma prioridade. Uma iniciativa como o Acordo Bi-Regional União Europeia-Mercosul poderia eventualmente diluir essa capacidade brasileira de liderar sua própria região, especialmente se o acordo não é percebido como bom para o Brasil ou para setores da economia brasileira, da indústria brasileira. Por isso o governo passou a lidar com isso sem nenhuma pressa”, afirma Belém Lopes.
2023-05-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72z553dpz2o
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A busca por crianças desaparecidas após queda de avião na Colômbia
O presidente colombiano, Gustavo Petro, disse que não há confirmação de que quatro crianças que desapareceram depois que seu avião caiu na selva há mais de duas semanas tenham sido resgatadas. As equipes de busca encontraram itens que acreditam pertencer às crianças na selva, bem como um abrigo improvisado. Isso os levou a acreditar que as crianças estão vagando sozinhas pela floresta tropical desde o acidente. Mas Petro disse que as informações sobre o resgate não puderam ser verificadas. As crianças - com idades entre 13 anos e 11 meses - estavam a bordo de um pequeno avião junto com sua mãe, um piloto e um co-piloto quando a aeronave caiu no dia 1° de maio. Fim do Matérias recomendadas Todos os adultos morreram no acidente. Uma notícia sobre o suposto resgate das crianças foi divulgada pelo próprio presidente na tarde de quarta-feira, horário local, quando ele tuitou que elas foram encontradas "após árduos esforços de busca". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas, menos de 24 horas depois, ele deletou o tuíte e logo depois escreveu: "Decidi deletar o tuíte porque as informações fornecidas pelo ICBF (agência de bem-estar infantil da Colômbia) não puderam ser confirmadas. Lamento o ocorrido. As forças armadas e as comunidades indígenas continuarão em sua busca incansável para dar a notícia que o país tanto espera”. A agência de bem-estar infantil da Colômbia havia dito anteriormente que o tuíte (agora excluído) do presidente se baseava em informações fornecidas por ela. Ele disse em um comunicado que recebeu informações de que as crianças foram encontradas com boa saúde. Sua diretora, Astrid Cáceres, disse a uma rádio colombiana na manhã de quinta-feira (18/05) que a informação veio de "fontes confiáveis" e que as pessoas que as contataram descreveram a aparência das crianças, que correspondia às das crianças desaparecidas. No entanto, Cáceres disse que sua agência ainda não havia conseguido ver as crianças e até esse momento as buscas não seriam encerradas. A agência de bem-estar infantil não foi a única a dizer que recebeu informações de que as quatro crianças haviam sido resgatadas. Um piloto disse que também foi informado de que as crianças foram encontradas por indígenas no meio da floresta tropical. Os militares que participaram das buscas, no entanto, disseram que eles próprios ainda não conseguiram fazer contato com as crianças "devido às difíceis condições meteorológicas e ao difícil terreno". O avião leve Cessna 206 em que as crianças e a mãe estavam voava de Araracuara, no meio da selva amazônica, no sul da Colômbia, para San José del Guaviare, quando desapareceu na manhã de 1º de maio. Seu piloto já havia relatado problemas no motor. Depois de um grande esforço de busca envolvendo mais de cem soldados, o avião foi finalmente localizado na segunda-feira, duas semanas depois de ter desaparecido. Os corpos do piloto, do copiloto e de Magdalena Mucutuy, de 33 anos, mãe das quatro crianlas, foram encontrados no local do acidente, na província de Caquetá. Mas as crianças não foram encontradas em lugar nenhum. As equipes de busca, no entanto, encontraram pistas que indicam que as crianças, que são do grupo indígena Huitoto, sobreviveram ao acidente. Cães farejadores encontraram uma garrafa de bebida infantil, uma tesoura, um prendedor de cabelo e algumas frutas comidas pela metade. As equipes de busca também encontraram um abrigo improvisado feito de gravetos e galhos. "Pensamos que as crianças que estavam a bordo do avião estão vivas. Encontramos vestígios em um local diferente, longe do local do acidente, e um local onde podem ter se abrigado", disse o coronel Juan José López na quarta-feira. Temendo que as crianças estivessem vagando cada vez mais fundo na selva, os militares mobilizaram helicópteros que reproduziram uma mensagem gravada de sua avó na língua Huitoto, pedindo-lhes que ficassem parados. Relatos de avistamentos das crianças se espalharam na quarta-feira. A Avianline, uma operadora de avião local proprietária do avião acidentado, divulgou um comunicado dizendo que recebeu relatos de que as crianças foram encontradas. Um de seus pilotos que pousou em Cachiporro, uma comunidade próxima ao local do acidente, foi informado de que moradores locais foram contatados por rádio de um local remoto chamado Dumar e informados de que as crianças haviam sido encontradas e seriam levadas de barco para Cachiporro, disse. A empresa acrescentou que não tinha como confirmar se a informação estava correta, mas destacou que a chegada das crianças de barco pode ter sido atrasada pelas fortes chuvas, que tornaram o rio muito perigoso para navegar. Rádios indígenas também informaram na quarta-feira que as crianças foram encontradas por um morador local e estavam sendo transportadas por via fluvial até Cachiporro. O pai das crianças disse que não está perdendo as esperanças. Ele disse à Rádio Caracol que sua irmã uma vez se perdeu na floresta por um mês e conseguiu voltar. Acredita-se que o conhecimento do povo Huitoto sobre frutas e habilidades de sobrevivência na selva tenha dado às crianças uma chance melhor de sobreviver à provação.
2023-05-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c03727l39nxo
america_latina
As dicas de negociadores de paz para reconciliar Brasil polarizado
Nas últimas décadas, a mediação de conflitos virou uma espécie de ciência. Hoje há vários cursos universitários e pesquisadores dedicados ao tema, e técnicas desenvolvidas por eles já ajudaram a encerrar guerras em vários países. Esses métodos também vêm ganhando espaço em sistemas judiciais, onde são empregados como alternativas ao encarceramento e em conciliações entre vítimas e ofensores. Será que essas práticas poderiam ser úteis para uma sociedade brasileira tão polarizada? Mediadores experientes teriam dicas a compartilhar com brasileiros que brigaram com parentes ou amigos por causa da política? Apresentado pelo repórter João Fellet, o podcast trata de conflitos que dividem a sociedade brasileira. Os episódios vão ao ar às sexta-feiras. Ouça um trecho: Fim do Matérias recomendadas Afonso Celso Prazeres de Oliveira, de 83 anos, é um expert em mediação de conflitos, ainda que nunca tenha estudado o tema. Ele é síndico desde 1993 de um dos maiores edifícios do Brasil, o Copan, no centro de São Paulo. O Copan tem 1.160 apartamentos e cerca de 5 mil moradores — ou seja, é mais populoso do que muitas cidades brasileiras. Ele diz que o período mais difícil que enfrentou como síndico foram os anos 1990. Na época, o Copan era um grande ponto de tráfico de drogas e de prostituição. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Afonso diz que o combate às atividades lhe rendeu ameaças, e ele teve até que passar um tempo usando colete à prova de balas. Hoje, os problemas parecem ter sido superados, e o Copan se tornou um dos edifícios mais valorizados da região. Mas há outra explicação para o sucesso do síndico, segundo moradores ouvidos pelo podcast Brasil Partido: a forma como ele lida com brigas entre condôminos. “Aprendi ao longo do tempo a ouvir as pessoas. Quando é necessário o silêncio, ele permanece. Salvo o contrário, (faço) uma ou outra observação, nunca desfavorável”, afirma o síndico. “Tento sempre conversar com os dois lados, porque só ouvir uma parte você não vai fazer juízo do problema.” Ele diz que já viveu outros dois momentos de polarização intensa no Brasil: o segundo mandato de Getúlio Vargas (1951-1954) e a ditadura militar (1964–1985). Para ele, o conflito político atual “é uma repetição da história com personagens novos”. Segundo Afonso, Lula e Bolsonaro são reflexos “de um passado recente que não mudou e talvez tão cedo não vai mudar”. Mesmo sem jamais ter estudado mediação de conflitos, Afonso segue alguns preceitos dos especialistas nesse campo, como o de buscar ouvir, não fazer julgamentos sobre os interlocutores e jamais tomar partido numa disputa. Esses preceitos são alguns dos pilares de uma filosofia hoje usada para mediar conflitos em diferentes ambientes: a comunicação não violenta. Juliana Calderón é consultora em comunicação não violenta do Instituto Tiê, que dá treinamentos sobre esse tema em empresas. Ela diz que chegou a esse campo depois de ajudar a mediar a separação de seus pais. “Ali eu percebi essa minha aptidão para tentar conciliar”, conta. Mas foi só após se formar na faculdade de Comunicação que ela conheceu a obra do psicólogo americano Marshall Rosenberg, o principal teórico da comunicação não violenta. Morto em 2015, Rosenberg dizia que por trás de todo comportamento humano existe alguma necessidade: ser ouvido, respeitado, se sentir seguro, reconhecido, amado etc. Para ele, uma pessoa agride outra quando sente que alguma necessidade dela não foi atendida. Nesse caso, o que uma pessoa que usa a comunicação não violenta faz é buscar as razões que levaram o outro a ser agressivo, em vez de retribuir a agressão. Juliana conta que o emprego da comunicação não violenta numa discussão exige trocar julgamentos por fatos. Por exemplo: se uma pessoa está chateada com um amigo que não atendeu seus telefonemas quando ela precisava de ajuda, a pessoa deve evitar falas como “você não se importa comigo”, ou “você não tem consideração pelas pessoas”. Em vez disso, diz Juliana, a pessoa deve citar fatos: “Tentei te ligar X vezes, precisava muito da sua ajuda, mas você levou tantas horas para me atender”. Segundo Juliana, quando a conversa segue esses parâmetros, é mais fácil descobrir por que o amigo não atendeu os telefonemas e buscar uma conciliação que considere as necessidades das duas partes. Para ela, muitas brigas sobre política poderiam ser evitadas se as pessoas seguissem os princípios da comunicação não violenta. Juliana diz, inclusive, que a polarização política no Brasil é também um problema de comunicação. “A forma como a gente vê o mundo dessa maneira binária, dualista, está impregnada na nossa comunicação. Tem um conflito de ideias entre duas pessoas e a gente já está assim: ‘Quem é o certo, quem é o errado?’”, afirma. “Então a gente fica cada um na sua bolha, xingando a outra bolha e vivendo em realidades paralelas que não se afetam mutuamente.” A comunicação não violenta também tem sido usada para lidar com conflitos graves que chegam à Justiça. Joana Blaney e a Mariana Pasqual Marques trabalham no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular (CDHEP), uma ONG que funciona há décadas num casarão azul no Capão Redondo, na zona sul de São Paulo. A organização foi fundada em 1989 a partir de uma Comissão Pastoral da Arquidiocese de São Paulo. Joana e Mariana não são apenas mediadoras de conflitos: os métodos que elas empregam também buscam reparar os danos causados pela violência e reconciliar as pessoas envolvidas no caso. Depois de fazer Mestrado em Educação e de trabalhar como professora e diretora de escolas em Washington e na Filadélfia, Joana chegou ao Brasil no fim dos anos 90 como voluntária da Maryknoll, um dos principais órgãos missionários da Igreja Católica nos Estados Unidos. No início, ela trabalhou em favelas de São Paulo, ajudando comunidades a se organizarem. Alguns anos depois, Joana conheceu um projeto criado pelo padre colombiano Leonel Narvaez, as Escolas de Perdão e Reconciliação. Nessas escolas, vítimas da guerra civil na Colômbia — inclusive ex-combatentes — aprendiam a ler e escrever ao mesmo tempo em que eram estimuladas a falar sobre emoções. Muitos deles já eram adultos, mas nunca tinham se alfabetizado. As pessoas traziam para os encontros palavras que eram significativas para elas, como raiva, luta, medo e ódio. Então elas dialogavam sobre suas vidas e sobre os sentimentos que essas palavras despertavam. Depois, conforme aprendiam a escrever, as palavras podiam ser desconstruídas: as letras eram reposicionadas para formar outras palavras que remetessem a sentimentos menos dolorosos e mais pacíficos. As Escolas de Perdão e Reconciliação deram tão certo na Colômbia que se espalharam por vários outros países com altos índices de violência, incluindo o Brasil. “Fomos treinados para ser facilitadores e vimos como este curso ajudou muito as pessoas a se recompor dentro e ir para frente com sua vida, depois lidando com as dores e os traumas de uma maneira bem saudável”, diz Joana. A experiência com as Escolas de Perdão e Reconciliação aproximou a Joana de um campo em que ela se tornaria uma referência no Brasil: a Justiça Restaurativa. Trata-se de uma filosofia de resolução de conflitos não punitivista e em grande parte inspirada em práticas de diferentes povos indígenas e comunidades tradicionais. É o caso, por exemplo, dos Círculos de Construção de Paz, uma prática inspirada em tradições de povos indígenas canadenses. Nesses círculos, a pessoa que causou algum dano se reúne com as pessoas prejudicadas e outros membros da comunidade para debater sua ação e formas de remediá-la. Nesse modelo, o ofensor não é punido nem apartado da sociedade. O foco desse sistema é a reparação do dano, e o ofensor inclusive participa da construção de um acordo com esse objetivo. A reparação pode incluir trabalhos comunitários e uma indenização financeira às vítimas, além de demonstrações de remorso e arrependimento por parte do ofensor. “Tem bem menos reincidência, porque, comparado com mandar todo mundo para o presídio, a pessoa entende melhor o impacto (de seu ato) e já vai reparar o dano fazendo esse acordo com a própria vítima ou a família da vítima”, diz Joana. Segundo ela, como o ofensor não é preso, “tem condições de alugar um lugar para morar, de ter um emprego. Então, isso para mim é reabilitação”, afirma. Vários países têm incorporado práticas desse tipo em seus sistemas de Justiça, normalmente para lidar com crimes de menor gravidade — e desde que todas as partes do processo concordem. No Brasil, hoje pelo menos dez Estados têm tribunais com núcleos de Justiça Restaurativa onde atuam facilitadores formados pelo CDHEP. “Nossa ideia realmente é parar o encarceramento em massa que estamos vendo aqui no Brasil”, diz Joana. Para Mariana, no sistema de Justiça atual, que enfoca a punição, muitos infratores jamais têm de lidar com o impacto de suas ações nas vítimas. Ela conta que, ao trabalhar com Justiça Restaurativa em presídios de São Paulo, conheceu muitos detentos que nunca tinham refletido sobre as consequências de seus atos. “Claro, porque é um sistema de tanta reprodução da violência, que ele mesmo entra no lugar de vítima. Primeiro ele precisa ser reconhecido como vítima para depois ele entrar nesse processo de ‘olha, eu cometi um erro que não é aceitável e eu preciso reparar ele’. E aí alguns desses homens pediam para conversar com as suas vítimas”. É possível aplicar as técnicas que Joana e Mariana usam na Justiça Restaurativa para falar sobre política e reconciliar parentes que brigaram por causa desse tema? “É possível”, diz Joana. “O que me ajuda muito é lembrar que cada pessoa tem sua história, suas experiências e o direito de pensar e acreditar o que ela acredita, desde que não faça mal para a outra pessoa”. “Por que eu preciso convencer o outro que eu estou certa? Por que eu não posso tentar dialogar com o outro fazendo perguntas?”, questiona. Para Mariana, para que as pessoas saibam travar conversas difíceis, elas precisam aprender a nomear sentimentos. Segundo ela, porém, nas escolas, “a gente não tem nenhum tipo de letramento mais sentimental, de lidar com as coisas, de identificar — muito pelo contrário”. Mariana defende a construção de uma cultura de diálogo, o que envolve transformar instituições públicas como hospitais e escolas em espaços de diálogo. “Vai na unidade básica de saúde ser atendido para ver se é um espaço democrático. Você não vai falar nada”, critica. O Brasil não vive uma guerra civil, mas a história mostra que esse é um caminho possível quando uma sociedade se fragmenta. Foi o que aconteceu na Colômbia, onde décadas de conflitos entre guerrilhas e forças do governo provocaram cerca de 800 mil mortes, segundo a Comissão da Verdade da Colômbia. O conflito ficou mais próximo de um desfecho em 2016, quando a principal guerrilha colombiana, as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), assinou um acordo de paz com o governo do país. Negociado ao longo de quatro anos, o pacto mostrou que inimigos eram capazes de se sentar à mesa e chegar a um entendimento, mesmo depois de tantas mortes e tanta dor. O Brasil teria algo a aprender com esse processo? Sergio Jaramillo foi o chefe da delegação do governo colombiano que negociou o acordo de paz com as Farc. Ele cita ao podcast Brasil Partido três elementos que foram essenciais para o sucesso das negociações. O primeiro foi definir regras para as tratativas de paz que atendessem todos os lados, algo que ajudou a aproximar as partes. O segundo ponto foi estimular as partes, incluindo os militares colombianos, a reconhecer os impactos de suas ações e a lidar com as vítimas desses atos. Jaramillo diz que essa diretriz não é válida só para crimes de guerra: quando alguém reconhece seus erros, quem foi prejudicado por esse erro também se sente reconhecido. Por outro lado, quando uma parte se recusa a reconhecer as dores e necessidades da outra, o distanciamento entre elas tende a crescer até ficar intransponível. O último ponto foi criar espaços de encontro entre grupos que normalmente não conversam uns com os outros. Nas áreas da Colômbia mais afetadas pela guerra civil, sentavam-se à mesma mesa fazendeiros, sindicalistas e líderes religiosos — grupos com posições políticas diversas e muitas vezes antagônicas —, para debater formas de lidar com o conflito. Os encontros foram batizados de Diálogos Improváveis. A premissa era: não dava para encerrar o conflito por uma decisão de governo. As autoridades podiam ser facilitadoras, mas os diferentes segmentos da sociedade colombiana é que tinham de se entender. Apesar das dificuldades, Jaramillo diz que lentamente a paz vai criando raízes na Colômbia. Não por mérito das autoridades, mas porque “as pessoas nos territórios resolveram abrir espaços de diálogo, não se render às adversidades e tocar a paz adiante”.
2023-05-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/clk4jygg21po
america_latina
O que é 'morte cruzada', usada pelo presidente do Equador para evitar impeachment
O presidente do Equador, Guillermo Lasso, decretou nesta quarta-feira (17/5) a dissolução da Assembleia Nacional, de maioria oposicionista, e pediu a convocação de novas eleições. A "morte cruzada" é um mecanismo constitucional que permite ao chefe de Estado dissolver a Assembleia Nacional se considerar que ela está prejudicando a sua capacidade de governar. Ao fazer isso, porém, precisa também convocar novas eleições legislativas e presidenciais, nas quais corre o risco de perder o poder. Daí vem o termo "morte cruzada", já que tanto o presidente quanto a Assembleia Nacional perderiam seus poderes. É a primeira vez que esse procedimento é aplicado desde sua introdução na Constituição em 2008, no governo de Rafael Correa. Fim do Matérias recomendadas Lasso permanecerá no cargo, governando por decreto, enquanto as autoridades eleitorais marcam a data das eleições. O tribunal eleitoral do Equador deve decidir a data das novas eleições no prazo de sete dias após a dissolução da Assembleia Nacional. O presidente nega ter conhecimento de um suposto desvio de recursos públicos por parte de funcionários que teriam concedido fraudulentamente vários contratos de transporte de petróleo, principal ativo do Equador. Lasso sustenta que esses contratos foram assinados durante o governo anterior de Lenín Moreno (2017-2021) e que seu governo solicitou a revisão deles à Controladoria de Contas (Tribunal de Contas). O presidente exibiu o relatório da Comissão de Fiscalização — rejeitado pelo parlamento — que recomenda descartar o impeachment por falta de provas e alegou que esse processo é uma manobra política maliciosa para derrubá-lo. Lasso enfrentava uma possível destituição caso o Parlamento, dominado pela oposição, obtivesse uma maioria suficiente de mais de dois terços da Câmara — ou seja, pelo menos 92 do total de 137 membros da assembleia.
2023-05-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1v09l09ewpo
america_latina
Como técnicas brasileiras de garimpo impulsionaram 'maior desastre ambiental' de região na Colômbia
Em grande parte da Colômbia, as primeiras referências que vem à mente quando o Brasil é mencionado são o samba e o futebol. No entanto, na região do Bajo Cauca, localizada ao norte do Departamento (Estado) de Antioquia, outro tema domina o imaginário sobre os brasileiros: o garimpo ilegal. O Bajo Cauca é composto por apenas seis munícipios, com uma população de aproximadamente 300 mil pessoas. Ainda assim, é responsável por mais de 50% da extração de ouro na Colômbia. Em 2005, dois brasileiros que haviam operado em Serra Pelada levaram uma série de equipamentos que impulsionaram a extração de ouro ilegalmente, assim como os impactos ambientais. Fim do Matérias recomendadas Em março deste ano, o governador de Antioquia, Aníbal Gavíria, afirmou que os danos causados pela mineração são responsáveis pelo "maior desastre ambiental" da história do Departamento. Antioquia perdeu mais de 500.000 hectares de floresta nos últimos 20 anos. Somente no Bajo Cauca já são 60.000 hectares desmatados e mais de 200.000 árvores derrubadas. Especialistas apontam o garimpo ilegal como um dos grandes responsáveis pelo cenário. Assim, o implemento de equipamentos como os chamados "dragões brasileiros" foi parte fundamental para a piora nas condições ambientais. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Além disso, há ainda o uso das chamadas "dragas", equipamentos metálicos feitos normalmente de maneira artesanal e que são utilizados nos rios da região, impulsionando o assoreamento. Em redes sociais, a BBC News Brasil encontrou perfis ensinando como produzir o material. O professor de negócios internacionais da Fundação Universitário CEIPA Daniel Bonilla Calle afirma que "os brasileiros são mais especializados no uso da maquinaria e das dragas. Antes, não havia tanta tecnologia na extração do ouro". Um pesquisador que estudou os impactos da mineração ilegal na região — e pediu para ter sua identidade preservada — também observou os equipamentos brasileiros agravando os danos na região. "Em 2005, comecei a escutar o tema dos dragões, que eram um tipo de reengenharia onde otimizavam a extração do mineral e não era tão necessária uma retroescavadeira. Assim, a extração ficou mais competitiva, já que se movia até 20 vezes mais quantidade de terra com um dragão que com uma retroescavadeira", apontou. Entre mais de 20 brasileiros presos nos últimos dez anos por conta da exploração ilegal de ouro no Bajo Cauca, dois haviam atuado no passado no garimpo histórico de Serra Pelada, no Pará. Eles foram apontados pela justiça colombiana como alguns dos grandes responsáveis pela implementação das novas técnicas de garimpo a partir de 2005. Em 2016, um deles foi preso e apontado pela polícia local como criador dos "dragões". Entre as acusações, estavam conspiração para cometer crime, contaminação ambiental, danos aos recursos naturais e violação de fronteiras para a exploração de recursos. Até o momento, ele segue detido. O segundo garimpeiro morreu de Covid-19 enquanto o processo contra ele, com acusações semelhantes, corria. Ambos também são acusados de intensificar a contaminação por mercúrio no Bajo Cauca. Bonilla Calle lembra que, a partir dos anos 2000, a alta das cotações internacionais do ouro deu forças à exploração. O metal vem de um avanço histórico nos preços, e opera perto das suas máximas atualmente, em cerca de US$ 2.000 a onça-troy cotada em Nova York. Em 2015, a cotação estava em cerca de US$ 1.000. Em algumas cidades da zona, a porcentagem da população que tem sua renda diretamente ligada à extração de ouro passa do 50%, aponta o professor. O relatório mais recente da Controladoria Geral da Nação na Colômbia apontou que cerca de 63% das 53 toneladas de ouro que o país explora anualmente são fruto de mineração ilegal. Como resultado, 85% das exportações do metal no país não possui origem lícita, de acordo com a publicação. A lucratividade da mineração ilegal chamou a atenção de grupos criminosos. Bonilla Calle aponta que o Bajo Cauca é uma região isolada, e que começou um controle violento dos negócios. Quem comanda hoje o garimpo é o chamado Clã do Golfo, uma organização paramilitar que exerce influências em uma série de negócios ilegais na Colômbia. "Há impacto limitado das ações do Estado. É uma região distante, que fica a seis horas de Medellín, por exemplo", afirmou o professor, mencionando a capital antioquenha. Alguns equipamentos utilizados no garimpo podem chegar a custar US$ 500 mil, e os recursos dos grupos criminosos são vistos como importantes para garantir acesso a tais meios. Além disso, Bonilla Calle afirma que grupos como o Clã do Golfo oferecem proteção aos mineradores ilegais. Normalmente, o grupo criminoso ganha parte da renda obtida com o ouro, incluindo frequentes extorsões. Em março deste ano, uma grande greve afetou a região do Bajo Cauca por semanas, movimento que o governo colombiano acusa de ter sido estimulado pelo Clã do Golfo. Manifestantes cobravam medidas para formalizar a mineração na região, um tema que conta com discussões antigas. Para o pesquisador que pediu para ter sua identidade preservada, existem atualmente mecanismos para buscar a legalização das extrações, mas o Estado falha na fiscalização do ouro que sai do Bajo Cauca. "Se o Estado não faz verificações e controles, desde o processo extrativo, é difícil que haja um controle, já que a exploração está praticamente dominada por grupos criminosos e ilegais. É necessário que haja a presença e verificação do Estado para todo esse processo" afirma. A relação entre brasileiros e colombianos nunca foi das mais fáceis. Wilmar Alexander Cano é professor da Universidade da Antioquia, e estuda tais movimentos no país. "Historicamente, as migrações para mineração têm gerado muitos conflitos. Os donos das terras são os locais, que têm o controle do território, e normalmente são buscados acordos para exploração", afirma ele. No entanto, com frequência algum tipo de acordo é firmado com os atores locais, e inclui contrapartidas para uma região com pouca presença do Estado. "Eles trazem renda para as cidades e, às vezes, infraestrutura, como escolas", aponta Cano. Em alguns pontos, o Bajo Cauca também teve alguma contenção dos danos relativos à mineração ilegal, e um dos mais notórios é o uso do mercúrio, que assolou a região por décadas. O pesquisador que pediu para ter sua identidade preservada destaca que, desde 2014, o governo implementou estratégias para reduzir o uso do material por empresas industriais e mineradores artesanais. "Tenho percebido que muitos já não usam mercúrio, eu vi que é uma prática que foi diminuindo pouco a pouco. Se começou a abordar o tema, e pode melhorar, mas não desaparecer da noite para a manhã. Há o resultado de anos e anos de descontrole", avalia. Para ele, a solução para o problema passa por maior investimento do estado. "Só há 15 anos se conseguiu ter um município no Bajo Cauca conectado a uma estrada nacional. É um processo de mudar esse paradigma de pensamento, é necessário maior investimento em educação e maior cobertura para famílias vulneráveis". Em sua visão, assim será possível que a população veja "a mineração como uma opção, mas não a única".
2023-05-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c894lpde888o
america_latina
O piloto cego que dirige carros de corrida a 180 km/h
O Toyota Corolla vermelho cruza a reta principal do circuito de La Chutana a 180 quilômetros por hora. O ronco do motor de escapamento aberto rompe o silêncio do meio-dia nesta região árida, localizada a 44 quilômetros ao sul de Lima, no Peru. Mais algumas voltas, e o carro estaciona nos boxes. O piloto retira o capacete e a balaclava. Suado, mas satisfeito, ele faz um sinal de joia para a câmera. "Sou Pacho Cantt e sou cego". Na verdade, ele também é surdo, conforme revelam os aparelhos auditivos acoplados a cada um de seus ouvidos. Fim do Matérias recomendadas Aos 48 anos, Cantt não vê nada. Só é capaz de perceber fontes intensas de luz. Nada mais. E ele sofre de surdez moderada a grave. Tudo isso é resultado de uma doença congênita chamada retinite pigmentosa, que gradualmente obscureceu sua visão até que ele ficou cego em 2005. Mas basta passar algum tempo com ele para perceber que a doença roubou sua visão, mas não sua energia. "Quando fiquei cego, decidi que isso não iria me deter", disse ele à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol, ainda vestido com o macacão. Ele teve que parar de dirigir na rua, o que ele lembra como "um golpe forte", mas seguiu em frente com sua vida, uma vida construída em torno de sua paixão. "Desde criança, eu amo carros", diz ele. De forma apaixonada, Pacho administra uma oficina em Lima e também se dedica à compra e venda de carros e caminhões. Em seu escritório, ele pula de um telefonema para outro, fechando negócios, procedimentos e serviços com a ajuda do assistente de voz do seu telefone. Mas a dúvida desaparece quando ele precisa entrar na área de trabalho dos mecânicos. Ele se move com a ajuda de Piero Polar, seu amigo do peito. Ele caminha segurando no ombro dele. Na verdade, o piloto originalmente era Piero. Quando ambos começaram a competir e vencer os "rallies" peruanos, Piero estava ao volante — enquanto Pacho e outras pessoas faziam parte da equipe que cuidava da mecânica, gestão, estratégia, etc. Pacho lembra como também acabou sentado ao volante. "Um dia, eu disse a Piero: 'Quero ir no seu carro'. Ele me disse: 'Claro, te dou carona quando você quiser'. Ele não tinha entendido. Tive que insistir: 'Piero, eu quero dirigir'." O que começou como uma ideia maluca se tornou realidade após alguns testes. Piero sempre viaja atento no banco do passageiro, como copiloto, dizendo a Pacho o que fazer em cada momento. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A partir de testes no circuito, ambos acabaram desenvolvendo uma linguagem de gestos, porque com a adrenalina a mil e o barulho do motor, Pacho muitas vezes não ouve as instruções. Então, por exemplo, quando Piero toca seu antebraço, Pacho sabe que deve frear. Se ele tocar duas vezes, deve frear com força. Há também recursos de emergência. "Quando ele bate insistentemente no meu braço significa 'para, maluco, vamos nos matar'", diz Pacho, rindo. Depois de muita prática, Pacho começou a fazer corridas de demonstração. "Meu objetivo era mostrar às pessoas que não existe dificuldade grande o suficiente, que você sempre pode se superar", afirma. De tanto percorrê-lo, Pacho conhece com a palma da mão o percurso de 2,3 quilômetros do circuito de La Chutana. O desafio seguinte foi completar uma de suas corridas de demonstração em um circuito desconhecido, o que finalmente aconteceu em uma visita recente ao Equador. "Havia muito público e foi uma experiência impressionante para mim”, diz Pacho. Sua volta mais rápida em La Chutana é de 1 minuto e 30 segundos. Embora, como ele diz, "não se trata de ir mais rápido, mas de transmitir às pessoas a mensagem de que você nunca deve parar, sempre pode seguir em frente". Pacho é empresário, fanático por carros e pai. A filha de 15 anos é, segundo ele, sua outra paixão. Ela mora com ele desde que se separou da mãe dela — e ela tinha 4 anos. Quando ela nasceu, Pacho já era cego. "É a primeira coisa que vou olhar se algum dia recuperar minha visão." Para realizar esse sonho um dia, Pacho precisa de um transplante de retina, um tratamento que ainda não está disponível. Ele não perde a esperança de que a ciência possa um dia restaurar sua visão, mas uma coisa é clara para ele: "Não vou parar. Então tento todos os dias ser um pai melhor, uma pessoa melhor e um empresário melhor". Por isso, mesmo sem ver o que está à sua frente, Pacho pisa fundo no acelerador.
2023-05-23
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c720v374nx7o
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As mudanças de vida na Argentina com inflação acima de 100% ao ano
Para Yanina, viver em um país com alta inflação não é novidade: quando ela abriu um minimercado há dez anos em um bairro popular da Grande Buenos Aires, a inflação anual ultrapassava 25%. Apesar de a taxa ter crescido ao longo dos anos até dobrar, as pessoas “manejavam” e ainda conseguiam se virar, diz ela. No entanto, desde que o aumento dos preços acelerou, passando de cerca de 50% para 95% ao ano em 2022 e indo para 108,8% ao ano em abril de 2023, os hábitos de seus clientes mudaram. Antes, de cada dez itens que eles compravam, cerca de quatro eram de necessidades básicas, diz ela. Hoje, milhões de argentinos não conseguem sequer satisfazer suas necessidades básicas. Segundo dados divulgados no fim de março pelo Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec), 4 em cada 10 argentinos são considerados pobres. E a situação é ainda mais dramática entre as crianças: mais da metade dos menores de 14 anos (54,2%) vive abaixo da linha da pobreza — quase 6 milhões de crianças. Fim do Matérias recomendadas Economistas projetam que a taxa continuará aumentando este ano, como resultado do novo impulso que a inflação tomou em março e abril, quando atingiu 7,7% e 8,4% ao mês, respectivamente, ponto mais alto desde a crise econômica de 2002, o pior ano da história do país. A Argentina superou a Venezuela pela primeira vez em décadas na inflação mensal, embora a cifra ano a ano da Venezuela ainda seja quase cinco vezes maior que a da Argentina. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A inflação afeta desproporcionalmente quem tem menor renda, já que os preços que mais sobem são os dos alimentos, que constituem a maior despesa das famílias trabalhadoras. Além disso, os setores de renda mais baixa ficam desprotegidos contra o aumento dos preços porque tendem a ter empregos informais, que não são cobertos por uma ferramenta que vem sendo utilizada nos últimos vinte anos para proteger a população contra a inflação: a paridade (acordos entre sindicatos, empresas e governo para ajustar salários à alta de preços). Na Argentina, no entanto, 35,5% da força de trabalho tem emprego informal (não registrado). Além disso, os autônomos foram o grupo que mais cresceu nos últimos anos. Em 2022, os dois grupos representavam mais de 50% da força de trabalho total. Nenhum deles tem paridade de salários com a inflação. De acordo com um estudo do Instituto de Estudos do Trabalho e Desenvolvimento Econômico (Ielde), com base em dados do Indec, 8 em cada 10 empregos criados após a pandemia do coronavírus eram cargos assalariados não-registrados ou pessoas trabalhando como autônomos não profissionais. Mas a verdade é que, atualmente, ser um funcionário registrado também não garante proteção contra a inflação na Argentina. Isso porque, embora haja trabalho — a taxa de desemprego é considerada baixa, de 6,3% segundo o Indec — os salários são muito baixos. O salário mínimo em abril era de cerca de US$ 170, o mais baixo da América do Sul depois da Venezuela. É um salário insuficiente para cobrir as despesas mínimas de uma família, já que a cesta básica de abril (que inclui o necessário para dois adultos e duas crianças) foi o equivalente a mais de dois salários mínimos. E isso nem inclui as despesas de moradia. Cinthia, de 37 anos, que entrou na loja de Yanina para comprar alguns biscoitos para o afilhado, conta à BBC Mundo (serviço em espanhol da BBC) que tem um emprego estável como administradora de uma maternidade e hospital infantil. No entanto, ela afirma que teve que voltar a morar com os pais porque não conseguia continuar pagando o aluguel, que aumentava acompanhando a inflação. "Eu não estava conseguindo me manter com meu salário. E meus pais também não conseguiam sobreviver com a aposentadoria", diz ela. Mesmo morando todos juntos, eles não têm mais o suficiente para fazer um churrasco no domingo, por exemplo. Agora comem carne uma vez por mês. Ela também não consegue comprar o doce favorito de seu afilhado quando ele a visita, porque "o preço disparou". “Sempre tivemos inflação na Argentina, mas antes os salários acompanhavam”, afirma. "Agora, mesmo trabalhando, você é pobre." Segundo a consultoria Labor Capital Growth (LCG), os trabalhadores com carteira de trabalho perderam cerca de 20% de seu poder de compra nos últimos cinco anos. E os sem carteira de trabalho perderam quase o dobro. Enquanto isso, a última pesquisa do Observatório da Dívida Social Argentina, publicada no final de 2022 pela Universidade Católica Argentina (UCA), mostrou que quase um terço de todos os trabalhadores são pobres. Em meio à escalada inflacionária, o Banco Central da Argentina (BCRA) anunciou o lançamento de um novo projeto de lei para criar uma nova nota de 2 mil pesos, que será a nota mais alta. Embora o anúncio tenha sido feito em fevereiro, ainda não está claro quando a nota entrará em circulação (fontes da Casa da Moeda disseram à imprensa local que ela estaria disponível “no meio do ano”). Para muitos argentinos, como Cinthia, a nova nota não é suficiente para refletir o aumento de preços. "Hoje, 2 mil pesos é o mínimo com que você sai de casa para comprar qualquer coisa. Com esses níveis de inflação, deveriam emitir notas de 5 mil ou 10 mil", diz. Ela também aponta que, com os preços disparados, é impossível ter uma ideia de quanto as coisas valem. "Não faço ideia de quanto vou pagar por esses biscoitos. Ontem estavam com um preço e talvez hoje estejam com outro", diz. Um relatório da consultoria Focus Market sobre a cédula que atualmente é a de maior valor nominal na Argentina (mil pesos) revelou quanto poder de compra ela perdeu desde que entrou em circulação, em novembro de 2017. Segundo o jornal, vale quase 18 vezes menos hoje do que quando foi lançada. Ou seja, algo que se comprava com 56 pesos em 2017 hoje custa mil pesos. Mesmo os argentinos com melhores salários (e a melhor paridade) sofrem com o aumento do custo de vida. Porque mesmo que seus salários subam em paridade ou até acima da inflação, os impostos sobre essa renda aumentam ainda mais. Isso se deve a uma distorção fiscal causada pelo efeito inflacionário: o governo eleva periodicamente o piso a partir do qual o imposto de renda é pago (para refletir os aumentos salariais acordados nas paridades), mas não modifica as tabelas, fazendo com que cada vez mais trabalhadores paguem a alíquota máxima, de 35%. Guillermo, um especialista em logística de 67 anos, que trabalhou três décadas como gerente de carga aérea e se aposentou há dois anos, decidiu continuar trabalhando como consultor, não só para manter seu padrão de vida, mas também para ajudar seus filhos, cada vez mais sufocados por essas dificuldades. “Este ano comecei a pagar a escola da minha neta, porque senão teriam que trocá-la. Comecei o ano pagando 25 mil pesos de mensalidade e em quatro meses já estou pagando 50 mil”, conta. Em entrevista à BBC Mundo em um hipermercado próximo ao bairro nobre de Nordelta, na zona norte de Buenos Aires, ele revelou que, mesmo com salário e pensão, teve que mudar alguns hábitos porque ficaram muito caros. "O bom é que não fumo mais. Antes fumava charutos, mas são importados e parei de comprar por causa do valor”, diz. A enorme desvalorização do peso em relação ao dólar é o outro lado da inflação. Cinco anos atrás, eram necessários 21 pesos para comprar US$ 1. Hoje, são necessários cerca de 470 no mercado paralelo, o único disponível para a maioria dos argentinos desde que foram impostos limites à venda de moeda norte-americana, para tentar preservar da inflação as poucas moedas que restam para o Banco Central. Para os argentinos com melhor posição econômica, seus salários medidos em dólares caíram 86% entre 2015 e 2022, segundo Focus Market. "Antes trocávamos de carro de vez em quando, mas agora é inatingível. Não temos essa possibilidade. E agora viajamos pela Argentina em vez de ir para outros países", diz Jesica, de 33 anos, psicóloga e mãe de dois filhos pequenos, sobre as mudanças que teve que fazer. Apesar dessas limitações, ela se considera "uma das sortudas" porque, como profissionais liberais, tanto ela quanto o marido podem ajustar seus honorários e ainda conseguem manter seu estilo de vida e também comprar alguns dólares por mês para guardar dinheiro. Jesica e os demais entrevistados disseram à BBC Mundo que acreditam que a situação econômica ficará ainda mais volátil neste ano eleitoral, repleto de incertezas políticas. O presidente Alberto Fernández, líder do peronismo, seu antecessor e rival, o centro-direita Mauricio Macri, e a atual vice-presidente Cristina Fernández de Kirchner, descartaram a possibilidade de ser candidatos. Apenas no final de junho haverá clareza sobre quem competirá nas primárias, abertas em agosto. Enquanto não se define quem assumirá as rédeas do país — as eleições serão em dezembro —, os argentinos torcem para conseguir chegar ao final do ano sem repetir nenhum dos grandes desastres que marcaram as últimas décadas, como a hiperinflação de 1989-1990 ou a crise econômica e social de 2001-2002.
2023-05-16
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgxlgdgzee0o
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'Morri em vida': a jornada de apresentadora de TV com câncer difícil de tratar
A vida da famosa apresentadora de TV e atriz chilena Claudia Conserva mudou drasticamente em 17 de junho de 2022. Naquele dia, a apresentadora, de 49 anos, fez uma mamografia, como era rotina a cada ano. No entanto, desta vez, os médicos disseram que ela tinha um câncer de mama triplo negativo — um dos cânceres mais agressivos e difíceis de tratar. Ele é chamado de triplo negativo porque as células cancerígenas não têm receptores de estrogênio ou progesterona e não produzem a proteína HER2. Segundo o Instituto Oncoguia, esse tumor é considerado agressivo porque tem "crescimento rápido, maior probabilidade de se disseminar no momento do diagnóstico e maior chance de recidiva após o tratamento do que outros tipos de câncer de mama". Fim do Matérias recomendadas A apresentadora afirma que o objetivo da publicação desse material é conscientizar sobre a importância dos exames de rotina para detectar o câncer de mama a tempo. “Quis compartilhar essa experiência íntima porque essa mensagem me parece urgente. Brava mostra que um diagnóstico oportuno pode ajudar a salvar sua vida”, diz ela no início do documentário, que não está disponível no Brasil. O programa tem causado todo tipo de reação no Chile, inclusive algumas críticas por não refletir como a doença é tratada na rede pública do país. Houve também quem tivesse acusado Claudia Conserva de supostamente "lucrar" com sua doença. A apresentadora junta-se a outras personalidades que quiseram dar visibilidade a seu tratamento contra o câncer. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Claudia Conserva iniciou sua carreira na televisão no Chile em 1990, quando tinha apenas 16 anos. Desde então, conduziu vários programas de televisão, desde matutinos a reality shows de sucesso, além de participar de várias novelas. Esses últimos 30 anos nas telas fizeram dela uma personalidade conhecida e amada no país. Assim, quando ela divulgou publicamente seu diagnóstico de câncer de mama por meio do Instagram, houve forte comoção. A apresentadora decidiu colocar a carreira televisiva em suspenso e, desde junho de 2022, não apareceu nem no seu programa, intitulado MILF, nem em qualquer outro. "Entendi que tinha que me dedicar exclusivamente à cura. E que tinha que deixar para trás minha antiga vida", explica ela no documentário, referindo-se ao excesso de trabalho e aos cigarros que fumava diariamente. Seu processo de recuperação foi especialmente complexo devido à pandemia de coronavírus. Sem poder sair de casa ou ver amigos e parentes, principalmente no início do tratamento, Claudia Conserva diz que gravar a si própria foi uma “terapia”. "Senti que era bom para mim", diz ela em Brava. Após ser diagnosticada pela primeira vez, a apresentadora teve que passar por vários exames, incluindo uma biópsia para saber a agressividade de seu câncer e uma tomografia conhecida como PET para determinar a extensão da doença no corpo. Este último exame mostrou que o tumor afetava apenas o seio direito, mas a biópsia confirmou que seu câncer era especialmente agressivo. Conserva diz que "o mundo desabou" naquele minuto. "Mesmo sabendo que não havia metástase, sabia que era um câncer agressivo e enlouqueci. Desapareci. Morri em vida", lembra a apresentadora no documentário, visivelmente emocionada. Para ela, uma das coisas mais difíceis nesse processo é ver sua família acompanhando-a na tristeza. "A dor de ver seus filhos sofrendo por você é de partir o coração. A dor de ver seu marido indefeso...", diz ela no documentário. Seu marido, Juan Carlos Valdivia, também um conhecido apresentador chileno, a acompanhou durante todo o tratamento, assim como sua irmã Francisca. Ela os agradeceu em uma postagem em outubro do ano passado no Instagram. "Como são importantes o apoio emocional, a empatia, a confiança, a paciência, a companhia, o carinho... O câncer é um drama que afeta todos nós (...) Um abraço apertado aos doentes e suas famílias. Esta doença não é fácil… Todos sofremos, o ambiente é afetado." Desde julho de 2022, a apresentadora passou por várias sessões de quimioterapia, que registrou em detalhes por meio de seu celular. Em Brava, ela aparece sendo atendida na clínica, cercada pelo cateter venoso e por especialistas, ou sendo levada de um lugar para outro em uma maca. “Esta é a primeira batalha desta guerra em que vou dar absolutamente tudo para matar o inimigo”, diz em uma das cenas. "Há uma escritora americana chamada Anne Boyer que, no seu livro Destroy, diz que aceitar fazer quimioterapia é como escolher pular de um prédio quando alguém está apontando uma arma para sua cabeça. Essa frase me gerou identificação. Quer dizer, não há saída." Após a primeira quimioterapia, Claudia Conserva conta que se sentiu feliz e aliviada por saber que estava tratando a doença. "Estou feliz", ela repete várias vezes na filmagem. Mais tarde, porém, o quadro mudou quando ela começou a sentir os efeitos do tratamento. "Agora me sinto mal. Estou enjoada. É incapacitante. Eu não conseguia dirigir", diz. "Ainda bem que fui eu. Não suportaria ver um filho passar por isso. Ainda bem que fui eu e não eles." Durante o tratamento, um dos processos mais difíceis para a apresentadora foi a queda de cabelo e, principalmente, o momento em que ela teve que raspá-lo. "Nunca pensei que ser completamente careca me afetaria tanto. E sim, algo aconteceu comigo", reconhece ela no documentário. "Tenho estado mais instável emocionalmente... o fato de ficar sem cabelo... você não tem mais como negar que está doente." A apresentadora desabafa que já não tem motivação e está triste e cansada. "Estou exausta, cansada de ter câncer", diz. Apesar de sua evolução ter sido boa, Claudia Conserva continua em recuperação e longe das telas. Entre as poucas declarações públicas que fez nos últimos meses, em março ela reforçou que não tem previsão de volta à televisão.
2023-05-16
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2q1lqy4evwo
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Por que bancos centrais estão comprando ouro no maior volume em 80 anos
Bancos centrais de todo o mundo estão usando os dólares de suas reservas para comprar ouro com o objetivo de reduzir sua dependência dos Estados Unidos. Segundo o Conselho Mundial do Ouro, organização dedicada ao desenvolvimento de mercado para o setor, as autoridades monetárias adicionaram em 2022 a maior quantidade de ouro às suas reservas desde 1950 (início da série histórica). E os dados deste ano indicam que essa tendência vai continuar. O dólar dominou o comércio mundial e serviu como moeda de reserva global desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Mas a invasão da Ucrânia pela Rússia vem mudando esse paradigma (entenda abaixo). Fim do Matérias recomendadas Analistas não acreditam que haverá uma transformação radical. Na visão deles, o dólar ainda tem anos de hegemonia. Mas bancos centrais de grandes economias como China, Índia ou Brasil, entre outros, estão comprando ouro para repor os dólares em suas reservas no ritmo mais rápido registrado desde o pós-guerra. Para alguns analistas, essa tendência começou antes mesmo da invasão da Ucrânia, mas a maioria aponta para a rapidez com que os Estados Unidos impuseram sanções à Rússia quando o conflito começou. "As nações ocidentais congelaram alguns dos ativos remanescentes devido à invasão da Ucrânia em 2022, que incentivou os bancos centrais de todo o mundo a aumentar ainda mais as participações em ouro fungível", explicam os analistas de commodities globais do Bank of America. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Segundo eles, a economia global parece estar caminhando para um mundo multipolar. Prova disso é que as reservas globais em dólar caíram de 70% para 58% em duas décadas. "A Rússia, país mais alvo de sanções hoje, é um bom exemplo porque está entre os maiores desdolarizadores e compradores de ouro nos últimos anos", acrescentam. Quando os Estados Unidos impuseram sanções a Moscou pela invasão à Ucrânia, congelando reservas de US$ 300 bilhões da Rússia, isso só foi possível porque elas estavam em dólar. "Depois das sanções dos EUA após a guerra na Ucrânia, os países tentaram reduzir sua exposição a possíveis sanções no futuro. Isso levou a uma valorização monetária tanto em ouro quanto em renminbi chinês", diz Omar Rachedi, professor adjunto do Departamento de Economia, Finanças e Contabilidade na faculdade de administração e negócios Esade, em Barcelona, na Espanha. Empresas privadas que negociam com a Rússia também são potencialmente vulneráveis a sanções dos EUA. Desde o início do ano, o ouro tem mostrado um desempenho estelar. Até agora neste ano, o valor em dólares do metal subiu mais de 10%. "Esperamos que as compras (de ouro) pelos bancos centrais permaneçam robustas em um mundo cada vez mais multipolar, mas não esperamos que o recorde de 2022 se mantenha", escreveu Carsten Menke, chefe de pesquisa da empresa de investimentos Julius Baer, em um relatório recente para investidores. "Não compartilhamos da visão da desdolarização, embora encaremos a compra de ouro pelos bancos centrais principalmente como uma declaração política contra o dólar americano", acrescentou ele. Os bancos centrais gostam do ouro pela expectativa de que mantenha seu valor em tempos turbulentos e, ao contrário de moedas e títulos, não dependa de nenhum emissor ou governo. O ouro também permite às autoridades monetárias diversificarem seu portfólio de ativos. "Os motivos pelos quais os bancos centrais estão acumulando ouro variam, mas provavelmente o principal é que eles precisam diversificar seus ativos de reserva", diz o professor Lawrence H. White, do Departamento de Economia da Universidade George Mason, nos Estados Unidos, à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC. "A China, por exemplo, tem comprado ouro e, ao mesmo tempo, vendido parte de sua grande carteira de títulos do Tesouro americano. Manter ativos em ouro em vez de dólares também é uma forma de reduzir a exposição ao risco de desvalorização do dólar”. Mas "o dólar continua sendo a moeda dominante para pagamentos internacionais, e nem o euro nem o yuan devem tomar seu lugar", acredita White. O aumento das taxas de juros por todo o mundo também influenciou a decisão de muitos países de se "desdolarizarem". "As necessidades de diversificação dos bancos centrais são ainda mais exacerbadas pelo fato de que seus títulos do Tesouro dos EUA perderam valor devido aos aumentos das taxas de juros pelo Federal Reserve (banco central americano)", diz Rachedi. Isso porque o preço do título possui uma relação inversa com a taxa de juros. Quando os juros sobem, o preço do título cai. Já uma redução nas taxas de juros tem o efeito contrário. Portanto, a mudança para ativos que não sejam a moeda americana — e especialmente os títulos do Tesouro dos EUA — tem sido um fator que também tem impulsionado a diversificação, explica o professor. Para qualquer economia latino-americana com dívida em dólares, o aumento dos juros também foi um revés. O presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva também falou recentemente sobre o predomínio do dólar. Em um discurso proferido durante sua recente viagem à China, o petista exortou os países do Brics — Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul — a desenvolver uma nova moeda e se afastar do dólar. "Por que não podemos negociar nossas próprias moedas?", perguntou ele. "Quem foi que decidiu que o dólar era a moeda após o desaparecimento do padrão-ouro?", acrescentou Lula, em alusão à substituição do ouro pelo dólar como sistema monetário até a Primeira Guerra Mundial. Falando no Novo Banco de Desenvolvimento de Xangai, comandado pela ex-presidente Dilma Rousseff, Lula pediu aos países do Brics que estabeleçam uma moeda comum com a qual possam fazer transações. A proposta surgiu poucos meses depois do anúncio de Brasil e Argentina de articular uma moeda comum chamada Sol. "É uma ambição antiga. Ninguém quer depender de uma moeda que não pode controlar, mas a realidade é que ninguém pode viver sem ela. A ampla hegemonia do dólar estará assegurada enquanto não houver rival de igual magnitude”, explica Gonzalo Toca, analista do think tank espanhol Esglobal. “Estamos falando da moeda da principal economia mundial e da moeda do principal fomentador da globalização e do sistema monetário internacional como o conhecemos. Por isso mesmo a arquitetura institucional a favorece”, lembra. "Dito isso, a hegemonia avassaladora de que desfrutava o dólar obviamente começou a enfraquecer com a valorização do euro e do yuan. E continuará enfraquecendo, nos próximos anos, à medida que eles ganharem peso como moeda de reserva e de pagamento", diz Toca. Nesse contexto, vale lembrar que as relações entre Washington e Pequim, por outro lado, embora não sejam boas, são agora menos tensas do que durante a "guerra comercial" que o ex-presidente dos EUA Donald Trump travou com a China. Para o professor Rachedi, o principal desafio ao domínio global do dólar americano pode vir do renminbi (ou yuan) chinês, já que a China começou a fechar contratos de petróleo com países do Golfo a preços em renminbi e não em dólares. Além disso, o grande esforço da Iniciativa do Cinturão e Rota (ou Nova Rota da Seda) vem com o desembolso de contratos entre a China e países da Ásia, África e América do Sul, que são cotados em renminbi e não em dólares. "No entanto, enquanto a China não fornecer um ambiente bem protegido para os investidores e permitir que o governo controle diretamente os mercados financeiros e possivelmente se apodere de quaisquer contas financeiras, o gigante asiático não vai conseguir desafiar a supremacia do dólar", diz ele. "Enquanto os Estados Unidos conseguirem manter mercados financeiros livres com uma taxa de inflação estável, seu domínio estará aqui para ficar na próxima década ou mais", acrescenta.
2023-05-14
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cge445px1pqo
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'Meu filho morreu após comer lixo': a tragédia que virou símbolo da miséria na Venezuela
O venezuelano Rudy Jose Arzolar Olivero está há semanas chorando inconsolavelmente pela morte de um de seus sete filhos. “Ele poderia ter sido salvo no hospital, mas ele não foi bem atendido. Não nos deram atenção”, lamenta o homem de 47 anos em sua casa na cidade no estado de Monagas, na Venezuela. Em 7 de abril, o filho dele de 12 anos, Manuel Arzolar, morreu após ingerir algo que coletou num lixão perto de sua casa. Como fazem muitos habitantes desta região do país, Rudy foi com sua família ao lixão local para coletar vidro, plástico e ferro para vender por alguns bolívares (moeda venezuelana) para sobreviver. Lá eles também procuram o que comer. “Aqui não tem trabalho”, diz Rudy em entrevista à BBC Mundo (serviço em espanhol da BBC). Fim do Matérias recomendadas “Depois de coletar lixo, vim para casa e meus filhos ficaram lá. Pouco depois, minha filha veio correndo e gritando: ‘Papai, acho que o Manuel está envenenado porque está no chão sem conseguir se mexer’”, contou. O caso de Manuel comoveu a Venezuela. A morte dele simboliza a pobreza extrema vivida por muitas famílias venezuelanas desde o começo da crise econômica que assola o país há uma década. Entre 2013 e 2021, a economia da Venezuela encolheu mais de 75% e ao menos 7 milhões de pessoas emigraram para outros países, uma cifra que representa um quarto da população total do país. “Antes, havia pobreza, mas nunca tinha visto gente comendo lixo”, comenta uma vizinha do menino que morreu. “A gente se mantinha com agricultura e com trabalho. Agora, na Venezuela atual, é mais rentável ir ao lixão e vender plástico do que trabalhar por um salário de 45 bolívares (US$ 2) por mês”, acrescenta. Rudy conta que há pouco tempo tentou um emprego na prefeitura, mas não aceitou ao se dar conta de que ganharia mais recolhendo lixo do que os US$ 2 (R$ 10) que ofereceram de salário. Embora a economia venezuelana tenha crescido no último ano, a melhora não chegou aos setores mais pobres da sociedade. Segundo economistas, o crescimento que se viu em 2022 não é sustentável e algumas cifras recentes embasam esse argumento. Segundo o Observatório Venezuelano de Finanças, a atividade econômica do país encolheu 8,3% no primeiro trimestre deste ano em relação ao mesmo período de 2022. Rudy e sua família dizem que têm sentido na pele o colapso econômico e se lembram de tempos melhores. “Eu tenho terras. Antes, eu plantava e às vezes comíamos o que colhíamos, mas agora não tenho nada. Não tenho dinheiro para comprar sementes nem fertilizantes”, diz Rudy. O ex-agricultor explica que agora está mais difícil manter sua família, porque ultimamente tem atuado como “pai e mãe” dos filhos, que têm entre 8 e 24 anos e também comem restos encontrados no lixão, como fez o menino Manuel. “Minha esposa, Katiuska, morreu há um ano e quatro meses por complicações na vesícula. Provavelmente, também morreu por culpa desse lixão”, afirma Rudy. Ana García, de 24 anos, é enteada de Rudy e se recorda que durante um tempo sua mãe trabalhou na colheita de alimentos, tinha um salário e sua família vivia melhor. “Mas a situação do país foi piorando, ela perdeu o trabalho e passamos a viver do lixão.” Depois da morte da mãe, Ana passou a ajudar a criar os irmãos mais novos. Foi Ana que encontrou Manuel passando mal no lixão e o levou ao Hospital de Caicara, onde fizeram uma lavagem estomacal no menino. Os médicos pediram a transferência dele ao Hospital Manuel Núñez Tovar de Maturín, com uma orientação médica para que fizessem outra lavagem estomacal “urgente”. Ele estava com batimentos fracos e em convulsão. “Pedi que fizessem outra lavagem e não fizeram, apesar de eu ter passado as orientações dos médicos. Só o puseram numa cama e ele morreu quatro horas depois”, relata a jovem. “Meu irmãozinho estaria vivo se o tivessem atendido (bem). Não foram rápidos”. Rudy também afirma que houve negligência médica. “Meu filho morreu após comer lixo, mas também porque os médicos o ignoraram”, diz. No hospital, disseram a Rudy que o menino morreu devido a uma intoxicação alimentar. A BBC Mundo contatou a Prefeitura de Maturín e o Hospital Manuel Núñez Tovar para saber se haviam investigado a morte de Manuel, mas até a publicação desta reportagem não recebeu resposta. Ana lembra de seu irmão como um menino alegre, com vontade de estudar e crescer na vida. “Manuel gostava de ir à escola. Lá ele podia brincar, apesar de às vezes ir sem comer.” Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Yolanda Pérez, vice-presidente da Fundação Cuidarte, uma organização que se dedica a ajudar crianças em situação de rua na Venezuela, garante que a pobreza extrema no país aumentou “enormemente” nos últimos quatro anos, quando a fundação foi fundada. “A pobreza extrema, especialmente na região de Las Delicias de Caicara de Maturín (onde vive a família de Rudy), é impressionante. Há uma rua inteira onde a maioria dos que moram lá vivem do lixão”, disse ela à BBC News Mundo. “As famílias vão ao lixão para coletar plástico e vidros. E um caminhão passa por lá para coletar o material. O caminhão vai embora e volta quinze dias depois para pagar o que deve às pessoas. Os coletores não recebem o dinheiro imediatamente.” O relatório “Panorama regional de segurança alimentar e nutricional da América Latina 2022”, publicado pela ONU no ano passado, destaca que ao menos 6,5 milhões de pessoas padecem de fome na Venezuela. Segundo a mesma fonte, 4,1% das crianças menores de cinco anos no país apresentam desnutrição aguda. Após a morte de seu filho, Rudy passou a contar com o apoio da Fundação Cuidarte e do governo local. A família diz que agora sua situação é melhor que a de algumas semanas atrás. Mas querem que a mudança seja duradoura para que a história de Manuel não se repita. “Agora queremos apoiar Rudy, conseguindo um emprego, para que ele possa se sustentar e manter seus filhos”, explica Yolanda Pérez. Ana também gostaria que o governo ajudasse o padrasto a cultivar suas terras para poder “pelo menos” cultivar alimentos que possam depois consumir e, assim, deixar de procurar restos de comida no lixão.
2023-05-11
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1688yxl77ko
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A acusação que leva presidente do Equador a enfrentar impeachment
A Assembleia Nacional do Equador votou na terça-feira (9/5) pela continuidade do processo de impeachment contra o presidente Guillermo Lasso. Acusado pela oposição de peculato (subtração ou desvio, por abuso de confiança, de dinheiro público), Lasso — que nega as acusações — pode ser obrigado a deixar o cargo ainda neste mês. Os apoiadores do presidente argumentam, no entanto, que a votação não tem validade (entenda mais abaixo). O parlamento aprovou a resolução com 88 votos dos 116 legisladores presentes, ultrapassando a metade mais um, patamar necessário para a tramitação avançar. Outros 23 votaram contra e 5 se abstiveram no pleito que partiu de uma moção da deputada Viviana Veloz, do movimento União pela Esperança (UNES), liderado pelo ex-presidente Rafael Correa. Além da UNES, a resolução contou com o apoio de diversos grupos políticos, como o Partido Social Cristão (PSC), o movimento indígena Pachakutik e outros independentes. Fim do Matérias recomendadas O julgamento político do presidente do Equador continuará na próxima sessão, na qual os acusadores e a defesa deverão apresentar suas provas. Segundo o artigo 2.º da resolução aprovada na terça, o presidente da Assembleia Nacional, Virgílio Saquicela, deve prosseguir “imediatamente” com a tramitação do processo de impeachment contra o presidente. Para isso, deve ser convocada, no prazo de cinco dias, uma sessão plenária para questionar Lasso. A votação pela possível destituição do presidente equatoriano está marcada para os dias 20 e 22 de maio. O eventual impeachment do presidente exigiria um mínimo de 92 votos de um total de 137 deputados. A oposição acusa Lasso de peculato por supostamente ter conhecimento de atos ilícitos de funcionários que concederam de maneira fraudulenta a terceiros vários contratos de transporte de petróleo, o principal ativo do Equador. A oposição comemorou a decisão do parlamento, enquanto os defensores do presidente argumentaram que a sessão de terça-feira foi ilegal por não ter ocorrido previamente a aprovação de um relatório pela Comissão de Fiscalização, responsável pelo processo. Essa comissão havia emitido um relatório que isentava Lasso de responsabilidades por falta de provas, mas a oposição, que controla esse colegiado, impediu a aprovação do documento. O presidente tem a opção de recorrer à chamada “morte cruzada”, recurso que lhe permitiria dissolver o Parlamento e antecipar eleições presidenciais e legislativas.
2023-05-10
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72111pre3do
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Por que eleição para Constituinte no Chile é 'paradoxo', segundo cientista política
O Chile, país que tem em Gabriel Boric seu presidente mais esquerdista em décadas, acaba de deixar a chave da reforma constitucional que tanto busca nas mãos da direita. O Partido Republicano de José Antonio Kast, líder da direita radical derrotado por Boric em 2021, obteve nas eleições de domingo 22 das 51 cadeiras do Conselho Constitucional que deve elaborar uma nova Carta Magna para o país. Com isso, o grupo de Kast garante o poder de veto dentro do órgão e a possibilidade de se aliar à tradicional direita chilena, que terá 11 assentos, para promover uma nova Constituição a ser submetida a referendo em dezembro. "É um paradoxo: eles sempre foram contra o processo constitucional e hoje têm a oportunidade de escrever a Constituição que quiserem", disse Claudia Heiss, chefe do programa de ciência política da Escola de Governo da Universidade do Chile, em entrevista à BBC News Mundo. E adverte que isso representa um grande desafio não só para o governo de Boric, cuja coalizão de esquerda obteve 17 vereadores (menos dos 21 que lhe dariam o poder de veto na Constituinte), mas para todo o sistema político chileno. Fim do Matérias recomendadas Confira a seguire os principais trechos da entrevista: BBC News Mundo - Qual leitura você faz da eleição do novo conselho constitucional do Chile no domingo? Claudia Heiss - Há uma leitura: que há um voto de uma reação muito dura contra as agendas de mudança, da incerteza que foi semeada do processo constituinte anterior, de um contexto de crise econômica, de crise de segurança pública, de crise migratória que veio junto com toda aquela forte onda reformista. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Tem havido um movimento pendular de busca de novos atores na política, mais na esquerda e nas organizações sociais, para uma mudança também para grupos vistos como externos ao sistema político, mas pertencentes à extrema direita. BBC - É um paradoxo que um setor cujo líder, José Antonio Kast, se opôs à mudança na Constituição possa agora ter a chave dessa mudança? Heiss - Sim, é um paradoxo: sempre foram contra o processo constituinte e hoje têm a oportunidade de fazer a Constituição que quiserem. Ou seja, apenas o Partido Republicano com seus 22 votos pode vetar as normas. Mas também, em aliança com os partidos de direita, eles poderiam realmente escrever uma Constituição quase como se fossem a Comissão Ortúzar (estabelecida durante o regime de Augusto Pinochet para criar o projeto da Constituição de 1980). Uma análise agora é que Kast e os republicanos sempre visaram deslegitimar todo o processo e, no entanto, hoje estão no comando do processo. Resta saber como se resolverá este paradoxo e se talvez tenham de pagar algum custo por estarem à frente deste novo processo constituinte. BBC - Isso significa que a próxima Constituição chilena será igual ou mais conservadora que a atual? Heiss - Eu diria que sim, é mais provável. Resta saber se haverá algum tipo de abertura, mas vejo como improvável dada a composição do corpo constituinte. Aqui a chave estará no plebiscito para finalmente sair: no dia 17 de dezembro se verá se o povo aprova uma nova Constituição igual ou mais neoliberal que a de Pinochet, ou a rejeita e fica como está. BBC - A forma como o Chile decidiu sair da crise com uma nova constituição foi vista como exemplar no exterior. A reforma constitucional passou a ser uma pedra no sapato para as mudanças que se buscavam, como limitar o atual modelo de livre mercado ou dar ao Estado um papel mais importante na redução da desigualdade? Heiss - Nunca esteve em discussão limitar o livre mercado. O que estava em questão era o Estado subsidiário, que é um sistema que impede certas políticas públicas redistributivas como existem em países de livre mercado como a Alemanha ou o Reino Unido. No Chile, com a Constituição de 1980 até hoje, é inconstitucional estabelecer um sistema nacional de saúde como existe no Reino Unido. Então, eu não diria que o projeto era antimercado. Era um projeto social-democrata que tinha alguns elementos mais reformistas do que a sociedade esperava, sobretudo em termos de avanços na plurinacionalidade e no reconhecimento dos povos indígenas, ou em questões de direitos sexuais e reprodutivos. O fato de nesta eleição os republicanos terem obtido este número impressionante de votos não diminui o fato de que 80% disseram que queriam uma nova Constituição. São momentos políticos, eleitorais, conjunturas que têm a ver com fatores supercomplexos. Talvez tenha havido uma interpretação exagerada do mandato da convenção constitucional anterior e seria um erro exagerar com o sinal contrário sobre este resultado eleitoral. BBC - A pergunta apontava se a saída que o Chile buscou hoje para sua crise se tornou um obstáculo para as mudanças que estão sendo buscadas... Heiss - Para o governo, isso tem sido um problema. Mas a mudança constitucional por meio de eleições democráticas era a saída certa. Tem fatores que tem feito não funcionar bem, falta de diálogo. Havia maximalismos na esquerda e hoje acho que vamos ver algo parecido na direita. A mudança constitucional é, a meu ver, condição necessária para a plena democratização do país. Talvez o processo pudesse ter sido feito de forma diferente. Talvez, se houvesse uma maior vontade de diálogo e capacidade de abrir o sistema político ao jogo democrático antes de chegar à explosão social, à convenção constitucional e a este novo conselho constitucional, todas estas idas e vindas políticas que estão polarizando a opinião pública. Temos uma situação muito inusitada. Temos o governo mais de esquerda desde o retorno à democracia, com um Congresso de direita e a convenção constitucional mais de direita que houve em qualquer órgão político do Chile em décadas. É uma desordem política que dificulta muito a leitura da vontade popular. BBC - Como você explica essa ida e vinda dos eleitores chilenos? Heiss - Acredito que há uma adesão programática muito fraca aos partidos políticos, que não representam alternativas claramente identificáveis. Então, há uma volatilidade eleitoral enorme, que tem mais a ver com a rejeição do adversário. Há muito mais voto de punição do que voto de apoio a projetos políticos. E o voto de punição depende de quem está no poder: para o presidente Boric são os republicanos, mas para o presidente Piñera foi a Frente Ampla. Isso dificulta muito a governança. É como uma doença do sistema político como um todo. BBC - Alguns especialistas atribuíram a rejeição do texto constitucional proposto em setembro ao fato de não ser representativo do amplo espectro político chileno, por se inclinar para a esquerda. Mas agora alguns senadores de esquerda antecipam que podem se opor ao novo texto constitucional se ele for muito conservador. Poderia novamente ganhar a rejeição no plebiscito de dezembro se a redação final for vista como altamente tendenciosa politicamente? Heiss - Eu acho que sim, que é uma certa possibilidade. Porque essa composição do conselho constitucional permite que um setor passe pelo rolo compressor, que é um pouco o que acontecia no processo anterior quando a direita, que tinha 20%, ficou de fora. E nesse processo a esquerda pode ficar de fora, porque os votos da extrema direita estarão com a direita. Ambos têm a característica de serem processos que não convergem no centro, não forçam a negociação com o adversário político. E, nesse sentido, não criam condições para o que uma constituição precisa, que é permitir o desenvolvimento de diferentes projetos políticos: um jogo político equitativo, um campo de jogo nivelado. Se a convenção anterior estava à esquerda do eleitor mediano, acredito que este novo conselho constitucional esteja à direita do eleitor mediano. E ambos os resultados eleitorais prejudicam a construção de um quadro comum que legitime o jogo democrático. BBC - Que consequências a falta de mudanças estruturais pode ter para o Chile a longo prazo? Heiss - Acho que isso perpetua a instabilidade política. Acho que existe um setor da direita, principalmente ligado ao empresariado, que apostava em uma mudança constitucional moderada com uma convenção constitucional mais centrista que fizesse algumas concessões à ideia de Estado social, que é bastante majoritária No Chile. Com essa composição, é improvável que isso aconteça e acho que vai perpetuar a instabilidade, infelizmente. É provável que, se o que sair for rejeitado, o problema constitucional seguirá. E se for aprovado, as reivindicações vão continuar, porque há muitas pesquisas que mostram uma demanda política muito transversal por um Estado mais robusto na proteção dos direitos sociais. BBC - É certo que os diferentes grupos da direita chilena atuarão juntos? Heiss - Não, de forma alguma. Acho que agora se inaugura um debate dentro da direita. E resta saber como será a discussão entre Republicanos e Chile Vamos. São grupos que possuem afinidade ideológica, mas são diferentes. O grupo Chile Vamos teve que atuar em dois governos e de alguma forma liderou a política desde a transição para a democracia, embora não tivesse os votos para a presidência: teve importante representação no Congresso e o poder de veto que a Constituição lhe deu de os 80. Em vez disso, os republicanos estão desafiando esse setor, dizendo que de alguma forma renunciou aos princípios do direito ao promover certos elementos sociais. A direita tentou se desassociar de seu passado Pinochet e das violações dos direitos humanos. Os republicanos não têm esse discurso, mas sim um discurso bastante duro em termos de direitos das mulheres, diversidade sexual, direitos sexuais e reprodutivos. Não acho que a maioria das pessoas no Chile compartilhe dessas noções sobre lei. Muita gente votou muito insatisfeita com o sistema político, muito chateada com o governo e seu desempenho em termos econômicos. E ele simplesmente fez um voto de punição. Não quero dizer que os republicanos não tenham um apoio ideológico real, mas não acho que seja dessa magnitude. BBC - Quanto esse voto de punição afeta o presidente Boric e seu governo? Heiss - Afeta todo o sistema político em termos de tornar os republicanos um jogador muito relevante. Já houve a surpresa de Kast quando foi para o segundo turno com a primeira maioria. Perdeu no segundo turno porque todo o centro votou em Boric para evitar a vitória da extrema direita. Eu diria que eles se tornam uma ameaça à democracia, ao sistema político. Você tem que ver o que vai acontecer. Talvez o Partido Republicano evolua para uma direita mais moderada. Mas sua força também está em ser extremo. E nesse extremismo de direita demonstraram um considerável desprezo pelas regras do jogo democrático, reivindicaram a figura de Pinochet, criticaram as organizações internacionais. Ou seja, tiveram o discurso típico da direita populista de todo o mundo. Isso é uma ameaça não só para o governo bórico, mas para a democracia em geral e também para a direita tradicional, porque disputa o eleitorado. BBC - Eu estava perguntando a ele sobre o governo Boric porque é o segundo revés duro que ele recebe em uma votação em menos de um ano. Você pode colocar seu cronograma de mudança de volta depois disso? Heiss - O governo de Boric já vem moderando sua agenda e seu programa político. Mas hoje esse tsunami republicano obriga toda a centro-esquerda a se unir. A Frente Ampla terá um incentivo significativo para formar pelo menos alianças com o centro e até mesmo com os democratas-cristãos. BBC - Nesta eleição houve uma porcentagem notavelmente alta de votos nulos e em branco, que segundo dados parciais ultrapassaria os 20%. De quem são esses votos? Heiss - A maioria são votos nulos, como 17%. E cerca de 4% em branco. O voto nulo é uma expressão de descontentamento. Algumas lideranças de esquerda pediram a anulação em rejeição ao processo. Acho que tem algo daquele voto da esquerda, que é parte das pessoas que defenderam o processo anterior. E tem gente chateada com o sistema político em geral. Este processo, ao contrário do anterior, foi visto como altamente controlado pela liderança do partido. E também tem gente que anulou porque é contra a obrigatoriedade do voto. Votamos voluntariamente há muitos anos e muitas pessoas já não se sentem obrigadas a votar: sentem que os partidos se subsidiam garantindo a legitimidade ao obrigar as pessoas a votar. Faz parte do antipartidarismo.
2023-05-08
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd14qzd8nkro
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Constituinte do Chile, nascida após protestos da esquerda, terá controle da direita
O grande vencedor das eleições deste domingo (7/5) para o Conselho Constituinte do Chile foi o Partido Republicano, da direita radical. Com isso, o partido contribuirá com 22 dos 51 deputados (50 representantes dos partidos políticos e um dos povos indígenas) que terão a tarefa de redigir uma nova Constituição ao longo do ano. A coalizão de esquerda de Boric, Unidade para o Chile, obteve 28% dos votos e 17 deputados, menos que os 21 que lhe dariam o direito de veto no processo de redação da Carta Magna. O grupo conservador Chile Seguro obteve 21,5% dos votos e garantiu os 11 deputados restantes, enquanto as alianças Todo por Chile e Partido de la Gente — centro-esquerda e liberal, respectivamente — permanecem sem representação. Fim do Matérias recomendadas As coligações de direita e centro-direita terão 33 deputados no total, o que lhes dá ampla autonomia para redigir a Carta Magna que será submetida a plebiscito em substituição à atual, aprovada em 1980. Além disso, a vitória do partido de direita radical é considerada especialmente simbólica, num momento em que a popularidade do governo de Boric está em baixa. A votação teve ainda grande número de votos nulos e brancos, que ultrapassou 2,2 milhões, mais de 21% do total. O pleito foi realizado em 38.665 seções eleitorais distribuídas em 2.932 locais de votação em todo o Chile. Os 51 membros do Conselho devem redigir uma nova proposta de Constituição para substituir a promulgada durante o regime militar do general Augusto Pinochet. Esta é a segunda tentativa, já que em setembro do ano passado os eleitores descartaram uma primeira proposta com 62% de votos contra. Esse texto constitucional havia sido redigido por uma comissão dominada por representantes de esquerda e independentes. A derrota desse grupo levou a uma reconsideração da estratégia para concretização de uma nova Carta Magna. Após a divulgação dos resultados, Kast discursou em Santiago do Chile diante de seus partidários, aos quais dedicou o "triunfo" de seu partido. Ele garantiu que a vitória deste domingo é "um sinal forte e claro do rumo que (os chilenos) querem para o nosso país". Apesar disso, destacou que "não há o que comemorar, porque o Chile não está bem" e aludiu aos problemas econômicos e de segurança que afetam o país. Boric, por sua vez, reconheceu a derrota que, garantiu, “foi marcada pela crise de segurança e de imigração que penetrou profundamente no espírito dos nossos compatriotas”. O presidente convidou os partidos de direita que liderarão o novo Conselho Constituinte a "conseguir grandes acordos para nossa pátria". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O Conselho eleito tem 50 membros distribuídos de forma igualitária: 25 homens e 25 mulheres, além de um representante indígena. Os 50 eleitos neste domingo devem redigir a proposta da Carta Magna a partir de um anteprojeto elaborado por uma comissão de especialistas, formada por 24 profissionais indicados pelos partidos políticos e que já trabalha em um texto que deve ser entregue no dia 7 de junho. Cerca de 12,5 milhões de cidadãos (82,7%) dos mais de 15,1 milhões foram às urnas. A participação nas eleições era obrigatória e quem não votou pode receber multas que variam de 31 mil a 189 mil pesos chilenos (R$ 190 a R$ 1.180). Mais de 100.000 chilenos apresentaram justificativas para não ir às urnas - por exemplo, estar longe do centro de votação — e evitar as multas, segundo a polícia. O dia da eleição transcorreu calmamente, embora alguns pequenos incidentes tenham sido registrados. Em uma estação da polícia na região de Araucanía, na região central, homens encapuzados dispararam quatro tiros durante a votação, mas não causaram ferimentos. Antes, no início da manhã, uma mulher que trabalhava como mesária em Galvarino (também em Araucanía) morreu repentinamente após sofrer uma parada respiratória.
2023-05-08
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy90j087v35o
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Por que brasileiros não são considerados latinos nos EUA
Em 2020, ao menos 416 mil brasileiros vivendo nos Estados Unidos se identificaram como "hispânicos ou latinos" na ACS (American Community Survey), maior pesquisa domiciliar americana. O número chamou a atenção porque, em 2019, apenas 14 mil brasileiros haviam sido classificados dessa forma. Em 2021, foram 16 mil. O salto registrado em 2020 foi fruto de um erro no processamento da ACS pelo Departamento do Censo dos Estados Unidos. O equívoco trouxe à luz uma desconexão entre a classificação oficial americana e a identidade dos brasileiros. Oficialmente, brasileiros não são considerados "hispânicos ou latinos" nos Estados Unidos. Fim do Matérias recomendadas A origem disso está numa lei aprovada em 1976 pelo Congresso Americano, que determinou a coleta de dados no país sobre um grupo étnico específico: "americanos de origem ou descendência espanhola". Essa legislação classificava esse grupo da seguinte maneira: “Americanos que se identificam como sendo de língua espanhola e traçam sua origem ou descendência no México, Porto Rico, Cuba, América Central e do Sul e outros países de língua espanhola.” Dessa forma, estavam incluídos na classificação 20 países falantes de espanhol na América Latina, mas não o Brasil, falante de português, ou outros países latinos, mas não hispânicos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em 1977, o Escritório de Administração e Orçamento dos EUA publicou então os padrões para a coleta de dados étnicos e raciais no país com cinco classificações: indígena americano ou nativo do Alasca; asiático ou ilhéu do Pacífico; negro; hispânico; ou branco. Pela definição de 1977, "hispânico" era considerado uma etnia, não uma raça — a raça dizia respeito a características físicas, herdadas entre gerações; enquanto a etnia dizia mais respeito à identidade cultural e linguística, nessa classificação. Assim, na coleta de dados americana, os hispânicos podem ser de qualquer raça. Vinte anos depois, no entanto, essa classificação foi revisada. E, em 1997, a categoria "hispânico" mudou para "hispânico ou latino". À época, o Escritório de Administração e Orçamento dos EUA justificou a mudança dizendo que o uso dos termos tinha variações regionais, com "hispânico" sendo mais usado no Leste do país e "latino" mais no Oeste. "Essa mudança pode contribuir para melhores taxas de resposta", argumentava o departamento americano. Aí criou-se a confusão para a classificação dos brasileiros. Porque, embora para o governo americano, a classificação "hispânico ou latino" diga respeito somente às pessoas de "cultura ou origem espanhola", para nós, o termo "latino" remete ao fato de sermos latino-americanos e falarmos uma língua latina, o português. Nos censos de 1980 e 1990 nos EUA, valia a autodeclaração. Então, em 1980, 18% dos brasileiros vivendo nos EUA foram contabilizados como hispânicos. Em 1990, foram 33%. Mas, a partir de 2000, o Departamento do Censo dos EUA passou a fazer uma recategorização posterior. Assim, quem dizia ser "hispânico ou latino", mas, ao mesmo tempo, informava ser brasileiro, era então reclassificado como "não hispânico ou latino". O mesmo acontecia com pessoas de outros países não falantes de espanhol, que porventura se declarassem latinos, como filipinos, portugueses e nativos de outros países centro-americanos e caribenhos não-hispânicos, como Belize, Haiti, Jamaica, Guiana, entre outros. Desde 2006, além do Censo decenal, os EUA passaram a contar também com a American Community Survey (ACS), uma contagem populacional anual. Com esse esquema de reclassificação em vigor, a parcela de brasileiros quantificados como "hispânicos ou latinos" caiu para 4% ou menos em quase todas as edições da ACS. Esse percentual residual de brasileiros contados como "hispânicos ou latinos", mesmo nos anos em que a reclassificação funcionou adequadamente, se explica porque, quando a pessoa responde ser hispânica "de outra origem", mas não preenche essa origem, o Departamento do Censo não faz a reclassificação. O Pew Reserach Center consegue identificar que são brasileiros olhando para dados de país de nascimento e ancestralidade, em outra parte do formulário da ACS, o que não é considerado pela autoridade censitária americana no processo de reclassificação. Mas por que dizemos que o percentual de brasileiros classificados como "hispânicos ou latinos" caiu para 4% ou menos em "quase" todas as edições da ACS? Porque, em 2020, foi diferente. Durante o processo de edição dos dados da ACS de 2020, o Departamento do Censo dos EUA cometeu um erro e deixou brasileiros e outros grupos sem esse processo de reclassificação. Com isso, o número de brasileiros que se identificaram como "hispânicos ou latinos" saltou de 14 mil em 2019, para 416 mil em 2020. Entre os filipinos, o número passou de 44 mil para 67 mil; entre belizenhos, de 4 mil para 19 mil; e entre pessoas de países caribenhos não-hispânicos, de 36 mil para 71 mil. Mesmo o fenômeno afetando outros grupos, o caso dos brasileiros se destaca, pois 70% da comunidade brasileira nos EUA contabilizada na ACS se declarou "hispânica ou latina", revelou o erro de pesquisa, comparado a 41% dos belizenhos, 3% dos filipinos e 3% dos caribenhos não-hispânicos. "O grande número de brasileiros que se identificam como hispânicos ou latinos destaca como a visão deles de sua própria identidade não necessariamente se alinha com as definições oficiais do governo", observam Jeffrey S. Passel e Jens Manuel Krogstad, autores do estudo publicado pelo Pew Research Center. "Também ressalta que ser hispânico ou latino significa coisas diferentes para pessoas diferentes", acrescentam os pesquisadores. Para o brasileiro Raphael Nishimura, diretor de amostragem do Survey Research Center na Universidade de Michigan, o caso serve para refletir sobre como pesquisas são feitas. "Metodologicamente, isso [o erro na ACS de 2020] é bastante interessante para ilustrar um dos aspectos do erro de mensuração em pesquisas: o impacto do entendimento da pergunta por parte do respondente no que se pretende mensurar", escreveu Nishimura, sobre o estudo do Pew Research Center. "Nesse caso, me parece que o U.S. Census Bureau [Departamento do Censo dos EUA] deveria deixar mais claro nessa questão o que é e o que não é considerado como latino, hispânico ou origem espanhola", defendeu o estatístico. Segundo Nishimura, apesar da desconexão entre classificação oficial e identidade dos brasileiros revelada pelo erro de pesquisa em 2020, parece improvável que o governo americano reveja essa classificação em algum momento próximo. Em junho de 2022, o governo anunciou uma revisão na coleta de dados sobre raça e etnia nos EUA, que poderá valer já para o Censo de 2030. Mas essa reavaliação parece estar mais focada nas comunidades do Oriente Médio e Norte da África, que podem ganhar uma classificação própria nas pesquisas demográficas americanas, separada da categoria "branco", observa o estatístico, que mora nos EUA há 13 anos. Se os brasileiros fossem oficialmente considerados "hispânicos ou latinos", seríamos o 14º maior grupo latino dos EUA, acima da Nicarágua (395 mil) e abaixo da Venezuela (619 mil). Ainda assim, a população hispânica é tão grande nos EUA (61,1 milhões), que a comunidade brasileira contabilizada (569 mil na ACS de 2021) não chegaria a 1% do total de latinos. "Aparentemente, apesar de sermos algo como a 14ª maior população latina nos EUA, mal contaríamos como uma casa decimal nessa população como um todo. Então não deve nem haver um incentivo para isso [mudar a classificação de 'hispânico ou latino' para incluir os brasileiros]. Mas quem sabe agora que temos um brasileiro no Congresso", brinca Nishimura, fazendo referência ao congressista republicano George Santos, filho de brasileiros, envolvido em diversas polêmicas nos últimos meses. A comunidade brasileira contabilizada na ACS pode, no entanto, estar subestimada. O Ministério das Relações Exteriores do Brasil calcula o número de brasileiros vivendo nos EUA em 1,9 milhão — trata-se da maior comunidade brasileira no exterior, segundo relatório de agosto de 2022 sobre o tema.
2023-05-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cx9nel14ekwo
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A história de como um carteiro transformou acidentalmente o abacate no mundo
Rudolph Hass estava prestes a extrair da terra um pequeno abacateiro que havia plantado em sua horta - e que não estava dando certo - quando foi convencido a não fazê-lo. Era final da década de 1920. Ele havia chegado a Pasadena, nos arredores de Los Angeles, em setembro de 1923 com a esposa Elizabeth e a filha de 18 meses, Betty. Parte da família, que já havia se estabelecido na área, os incentivou a se mudar para a região. Eles haviam percorrido 3,3 mil quilômetros partindo de sua terra natal, Milwaukee, no norte dos Estados Unidos, em uma viagem complicada a bordo de um velho Ford T que Rudolph comprou de um colega de trabalho em 1920 por US$ 75 e que chegou ao sudoeste do país sem o para-choque traseiro e com um pneu furado. Na Califórnia, Rudie, como era chamado, primeiro conseguiu um emprego em uma barraca de frutas e verduras, depois foi vendedor de um fabricante de meias, roupas íntimas e acessórios. Ele também vendeu máquinas de lavar e aspiradores de pó, até ser contratado como carteiro pelo correio de Pasadena. Isso aconteceu, segundo as anotações de sua esposa, em 1926. Mas o texto com essa data foi escrito décadas depois e outros dados nele incluídos não coincidem exatamente com a documentação que comprova o vínculo empregatício. Fim do Matérias recomendadas Um dia, enquanto entregava correspondências, Rudie viu um anúncio em uma revista de terrenos com abacateiros que tinham notas de dólares penduradas em seus galhos, segundo a versão de Elizabeth. GinaRose Kimball, historiadora do abacate hass, acredita que aquele anúncio provavelmente mostrava uma sacola com o símbolo de dólares e uma dessas frutas ao lado, em vez de uma árvore de dinheiro. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A Califórnia, que não teve plantações de abacate enquanto era território mexicano, começou timidamente a cultivá-los quando, na década de 1870, três mudas trazidas do México foram plantadas em Santa Bárbara; meio século depois, o cultivo de abacates passou a ser promovido como um promissor negócio no Estado. Rudie ficou entusiasmado e, quando conseguiu vender uma propriedade que tinha perto de Milwaukee, pegou o dinheiro, pediu outra parte emprestada a uma irmã e foi ao escritório do empresário de Los Angeles que havia feito o anúncio. Era Edwin Hart, que conheceu o abacate no México no final do século 19 e em 1919 comprou a fazenda La Habra, de cerca de 1.500 hectares nos arredores de Los Angeles e não muito longe de Pasadena, para plantar essa fruta e depois vender lotes. Rudie comprou um terreno de 7,8 mil m² que já tinha alguns abacateiros naquela área rural, rebatizada de La Habra Heights. Ele concordou em pagar US$ 3.800 em parcelas trimestrais. O depósito inicial foi de US$ 760. "Quando ele comprou, queria cultivar uma variedade diferente, possivelmente lyon", diz Kimball. É uma variedade guatemalteca – de tamanho grande e casca dura – que um homem chamado Lyon plantou em Hollywood no início dos anos 1900 e que em seus primeiros anos parecia a mais promissora. Na Califórnia era comum, naquela época, que os donos das plantações de abacate batizassem novas variedades da fruta com seus sobrenomes. Na época em que Rudie iniciou o negócio, a variedade mais comum era a fuerte, chamada assim por ter sobrevivido a uma forte geada ocorrida na Califórnia em 1913. Esse abacate é do tipo mexicano e se caracteriza por ter uma casca macia e lisa, fácil de descascar. O horticultor Albert Rideout tinha então um viveiro de mudas de abacate perto da La Habra Heights. Qualquer semente de abacate que encontrava, onde quer que fosse, ele plantava em busca de novas variedades. Rudie foi àquele viveiro e comprou um saco do que pensava ser abacate guatemalteco, que, ao contrário do mexicano, tem a casca dura. De volta à sua horta, Rudie pegou caixas de maçãs que encheu de serragem e plantou as sementes dentro. Ele as regou e regou até brotarem, e quando as hastes estavam com a espessura de um lápis, pouco mais de meia polegada, ele as levou para o solo e as protegeu com papelão. Logo, com a ajuda de um especialista chamado Caulkins, usou essas novas plantas para enxertar brotos retirados dos abacateiros fuerte e lyon. Essa técnica é utilizada para reproduzir plantas, mas não implica criar um híbrido do novo com o antigo; as misturas genéticas são formadas através da polinização. Em vez disso, esse método procura cultivar novas árvores da variedade da semente. No caso de Rudolph Hass, ele queria novas árvores de fort e lyon. Mas uma das novas plantas se negava a receber esses enxertos. Tentaram uma vez, não conseguiram. Uma segunda vez, nada. Para cada nova tentativa, eles tinham que esperar a época do ano em que isso deveria ser feito. Na terceira tentativa fracassada, Rudie se cansou e quis remover a nova árvore de sua horta. Caulkins sugeriu que ele não a matasse, que a deixasse lá. Em 1931 essa planta deu seus primeiros seis abacates. Para o ano seguinte foram 125. Eram escuros por fora, uma mistura de preto e roxo, com casca rugosa, e davam uma impressão desagradável, como se estivessem podres. Nada a ver com a casca verde brilhante dos abacates que comiam na Califórnia. Mas seus filhos experimentaram e gostaram muito. Por dentro eram cremosos, com alto teor de óleo e de boa consistência – não eram fibrosos. Ali Rudie notou a veia comercial do alimento. "Rudolph, além de trabalhar em tempo integral, era vendedor. Mandava os filhos para a esquina, West Road com Hacienda Road, com caixas de madeira para vender os abacates. Vendia onde podia: para os amigos, para seus colegas de trabalho no correio", diz Kimball. No começo foi difícil para ele pela aparência da fruta, mas aos poucos convenceu mais pessoas. "O senhor Carter, da empresa de abacates, veio e encorajou Rudie a fazer um teste. Ele enviou uma caixa para Chicago, ida e volta (...) e na volta eles ainda estavam sólidos", escreveu sua esposa no caderno de memórias da família. Isso o entusiasmou, pois até então o carregamento de abacates enviados para o nordeste do país chegava em mau estado, maduros demais ou com "machucados" que aceleravam a sua putrefação. Em 1935, Rudie decidiu patentear seu abacate como uma nova variedade e lhe deu seu sobrenome. Ele então fez parceria com Brokaw, tio de Rideout que tinha grandes plantações na área, para expandir a produção do abacate hass. Não foi um grande negócio. Em agosto de 1952, quando os direitos da patente expiraram, Rudie havia ganhado apenas cerca de US$ 4.800. "O nome pegou, mas o dinheiro nunca chegou", diz Jeff Hass, um de seus netos. Em junho de 1952, ele se aposentou de seu emprego no correio e seu chefes no correio de Pasadena anunciaram que lhe dariam um certificado de agradecimento pelo tempo trabalhado. O certificado chegou em novembro daquele ano, mas Rudie havia morrido um mês antes, vítima de um ataque cardíaco. Hoje, a variedade representa 95% dos abacates produzidos no mundo, segundo Peter Shore, vice-presidente de gerenciamento de produtos da Calavo, empresa fundada por produtores de abacate da Califórnia. E é uma indústria multibilionária. "Há milhões e milhões de abacateiros hass, e todos eles vieram daquela árvore original", afirma Shore. Rudie acreditava que seu abacate hass era do tipo guatemalteco, mas um estudo publicado em 2019 sobre seu genoma confirmou que a origem dessa fruta é 61% mexicana e 39% guatemalteca. "Os genes mexicanos permitem que o hass atinja a maturidade mais cedo do que os cultivos guatemaltecos puros e dão à árvore e à fruta mais tolerância ao frio, embora não tanto quanto o cultivo mexicano puro. Os genes guatemaltecos dão casca mais grossa à fruta, mas fina o suficiente para descascar facilmente", observa o livro Avocado Production in California. A Cultural Handbook for Growers, um manual para produtores que foi publicado pela Universidade da Califórnia e pela Sociedade de Produtores de Abacates da Califórnia. A árvore-mãe acabou adoecendo e em 2002 precisou ser derrubada.
2023-05-06
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51451pgzkxo
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Paraguai: 'Quero discutir com Lula próximos 50 anos de relação', diz presidente eleito
O presidente eleito do Paraguai, Santiago Peña, já planeja sua primeira conversa com o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (PT), após assumir o cargo a partir de 15 de agosto. A expectativa é grande porque os dois países precisam renegociar este ano o Tratado de Itaipu, que completou 50 anos em abril e define as condições de comercialização da energia gerada na hidrelétrica binacional. No Paraguai, o acordo de 1973 é considerado por parte da população como desfavorável ao país. Os críticos defendem que o Paraguai venda sua energia excedente livremente no mercado e não somente ao Brasil, sob preços regulados. "Meu maior desejo, além de conseguir mais recursos, é sentar com o presidente Lula do Brasil e que nós também possamos imaginar uma relação que dure pelos próximos 50 anos", disse Peña, em entrevista à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC. Peña, um economista de 44 anos e ex-ministro da Fazenda do governo do ex-presidente Horacio Cartes, venceu a eleição presidencial do Paraguai no domingo (30/4) com 43% dos votos, mais de 15 pontos à frente de seu oponente mais próximo, Efraín Alegre. Fim do Matérias recomendadas O conservador Partido Colorado, presidido por Cartes, conseguiu assim manter o poder que exerceu nos últimos 76 anos no país sul-americano, com exceção dos cinco anos de 2008 a 2013, e conquistar maioria no Congresso. Peña descarta romper os laços históricos do Paraguai com Taiwan para estabelecer relações diplomáticas com a China, uma reivindicação de setores importantes da economia paraguaia, como pecuaristas e grandes agricultores. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast E, apesar de seu perfil conservador, anuncia que vai restabelecer relações com a Venezuela, rompidas em 2019 pelo atual presidente Mario Abdo, também do Partido Colorado. "Hoje só há um presidente na Venezuela e esse presidente se chama Nicolás Maduro", diz o presidente eleito. "Portanto, temos que trabalhar com a Venezuela. E trabalhar com a Venezuela não deve impedir que tenhamos uma posição crítica." Confira os principais trechos da entrevista feita por telefone com o homem que se prepara para a assumir a presidência do Paraguai. BBC News Mundo - A que o senhor atribui seu triunfo eleitoral por uma diferença maior do que muitos esperavam, confirmando a hegemonia do Partido Colorado no poder no Paraguai? Santiago Peña - Acredito que minha candidatura representou uma renovação dentro da política paraguaia e dentro de um partido de 135 anos, que foi um dos grandes protagonistas da história. Esse protagonismo se deu porque consegui compreender os diferentes momentos da história do Paraguai. Hoje o Paraguai vive uma situação em que houve avanços em termos econômicos, mas há grandes dívidas em questões sociais. A qualidade da educação, o acesso à saúde pública, a infraestrutura, exigem uma visão mais moderna das políticas públicas. As pessoas precisam de mais e melhores serviços públicos, de empregos de melhor qualidade. Minha passagem pela administração pública como diretor do Banco Central, ministro da Fazenda, tendo sido uma figura nova na política que começou a falar de projetos, de como juntarmos os pontos no processo de desenvolvimento, chegou a um eleitorado que estava acostumado à troca de ofensas e encontrou um candidato que não respondia às ofensas, que apresentava propostas e que apontava um caminho para um Paraguai desenvolvido, onde os paraguaios possam estar em melhor situação. BBC News Mundo - Aos problemas que mencionou, pode-se acrescentar, por exemplo, uma economia com uma pobreza que castiga um quarto da população do Paraguai, ou crescentes desafios de segurança relacionados ao crime organizado. Como você planeja lidar com isso? Peña - Isso será enfrentado pela modernização das instituições de controle, uma burocracia pública que em alguns aspectos melhorou. Na gestão econômica, o Paraguai se destaca claramente como uma das economias mais estáveis e isso se deve ao mérito de duas instituições: o Banco Central, instituição eminentemente técnica e blindada pelas influências conjunturais de altos e baixos políticos, e o Ministério da Fazenda, que permitiu ao país desenvolver uma política econômica com visão de longo prazo. Temos que transferir esse êxito para o campo da segurança. O Ministério do Interior e a Polícia Nacional precisam ser fortalecidos. É necessário trabalhar na luta contra a corrupção e a impunidade. E o mesmo nas instituições responsáveis pela formação do capital humano. Então o Paraguai tem gerado alguns avanços e em outros, infelizmente, não temos tido sucesso. Minha intenção é acelerar esse processo de melhoria nos próximos anos. BBC News Mundo - O senhor acredita que as sanções que os EUA aplicaram ao ex-presidente Horacio Cartes por "corrupção significativa" influenciaram de alguma forma as eleições? [O Tesouro americano estabeleceu sanções contra Cartes em janeiro, acusando o padrinho político de Peña de corrupção e vínculos com o grupo islâmico Hezbollah.] Peña - Creio que não. A verdade é que seria muito difícil argumentar que sim, porque a diferença que tivemos [em votos] foi a maior da história democrática do Paraguai. Conquistamos maioria nas duas casas do Congresso e isso também é um fato histórico: não acontecia há 25 anos. Isso também representa um sinal muito importante. As pessoas entenderam que esse projeto político tem uma visão muito clara do que queremos para o Paraguai nos próximos anos: um país moderno, desenvolvido e que crie oportunidades para todos. BBC News Mundo - Pergunto por que, quando as sanções foram anunciadas, alguns pensaram que poderiam prejudicar seu Partido Colorado. Mas talvez o senhor acredite que ocorreu o contrário, levando em conta que a diferença a favor dos colorados foi maior do que nas eleições anteriores? Peña - Há argumentos nesse sentido: que os ataques que o Partido Colorado sofreu, tanto internos quanto externos, o que mais fizeram foi unir o sentimento nacionalista, que é de certa forma a bandeira do partido. É importante lembrar que o Partido Colorado foi criado após a Guerra da Tríplice Aliança [mais conhecida no Brasil como Guerra do Paraguai, que opôs o país a uma aliança formada por Brasil, Argentina e Uruguai, em meio à tentativa do Paraguai de anexar territórios dos países vizinhos], que quase levou o Paraguai à beira da extinção. E o grande objetivo do Partido Colorado em sua fundação era a reconstrução da pátria, a defesa do Paraguai e dos paraguaios. Isso ao longo dos anos gerou um sentimento de identidade nacional a partir do Partido Colorado, praticamente o único partido do mundo que tem 55% de todo o eleitorado nacional. Então, com uma base tão ampla de membros, podemos dizer que o Partido Colorado representa amplamente os sentimentos de todos os paraguaios. BBC News Mundo - Qual será o papel do ex-presidente Cartes no seu governo agora? Peña - O presidente Cartes por mandato popular é presidente do Partido Colorado, que tem sido o grande vencedor nas eleições porque, além da minha candidatura a presidente, também tem maioria nas duas casas do Congresso. Nas 17 províncias do Paraguai, em 15 candidatos colorados venceram. Ele [Cartes] tem uma grande responsabilidade de colocar em prática o que vem falando, de ter um partido a serviço de todos os paraguaios, independentemente de sua identidade política. Então ele vai ter que ser um grande apoio para o meu governo e acompanhar a partir do partido a agenda de mudanças que quero levar adiante. BBC News Mundo - Cartes é considerado seu padrinho político, no sentido de que o convocou para cargos de governo quando era presidente. Por esse motivo, uma pergunta que muitos se fazem é como o senhor vê essas sanções. O senhor acha que as sanções aplicadas pelos EUA por "corrupção significativa" ao ex-presidente Cartes foram injustas ou merecidas? Peña - Acho que elas não honram a experiência que temos. Acredito que o senhor Cartes não só tem direito à defesa, mas por ser uma figura pública é obrigado a se defender. É o que pedimos a ele é o que ele está fazendo. Desde que foi nomeado em julho do ano passado e novamente em janeiro deste ano, já com sanções econômicas, ele rejeitou essas acusações e colocou todos os recursos necessários para sentar-se para conversar com as autoridades americanas, que podem lhe mostrar quais são as provas que eles têm para que ele possa se defender dessas acusações. Acho que há uma responsabilidade política tremenda e que ele tem muita consciência de que, sendo uma figura pública que está à frente de um partido, tem a obrigação de provar que essas acusações não são verdadeiras. BBC News Mundo - E o que seu governo faria se chegasse um pedido dos EUA para extradição do ex-presidente Cartes? Peña - Em todo processo de extradição, o Paraguai tem um histórico de cumprimento desses pedidos. Eles são protegidos por tratados internacionais. Os pedidos de extradição são procedimentos na esfera judicial, fora do âmbito do poder Executivo. Portanto não é uma decisão do presidente da República permitir ou rejeitar uma extradição. Acredito que o Paraguai tem demonstrado uma enorme disposição em cumprir acordos e tratados internacionais, e isso não mudará sob minha presidência. BBC News Mundo - Como o senhor espera que seja a relação do seu governo com os EUA, dada esse precedente imediato de sanções contra ninguém menos que o presidente de seu partido e o homem que o apresentou à política e ao governo? Peña - Para esclarecer, antes de conhecer Horacio Cartes, antes de Horacio Cartes ser eleito Presidente da República, eu já era diretor do Banco Central, já tinha uma carreira internacional, tinha trabalhado no Fundo Monetário Internacional e era uma figura pública bem conhecida no Paraguai, mas mais no âmbito técnico. Ele [Cartes], com base na minha experiência e currículo, me nomeia Ministro da Fazenda. E pude construir uma carreira política. Fui candidato há cinco anos, perdi, e continuei atuando de forma independente dentro do Partido Colorado, construindo uma base eleitoral muito importante. No dia 18 de dezembro me tornei candidato pelo Partido Colorado e desde ontem [domingo], presidente de todos os paraguaios. Então está muito claro que eu posso ter participado de um governo, mas sou senhor de mim mesmo e tenho conhecimento e personalidade para enfrentar o desafio de ser presidente da República. Quanto à relação com os Estados Unidos ou com qualquer outro país, o Paraguai tem sido historicamente um bom amigo da comunidade internacional. Em geral, mantemos laços com todos os países do mundo e a relação bilateral com os EUA tem sido historicamente muito, muito boa. Isso não vai mudar sob a minha presidência. Entendo que os EUA aplicam sanções sob uma lei que os autoriza a fazê-lo. E claramente respeitamos essa estrutura legal. Só podemos pedir às pessoas que foram afetadas por essas sanções que, se sentirem que as designações não correspondem à realidade, entrem em contato para se defenderem dessas medidas. Este tipo de sanções também não afetou a relação do atual governo, tendo em vista que o atual vice-presidente da República também foi sancionado. Então eu não vejo que haverá nenhuma mudança nesse sentido. BBC News Mundo - Durante a campanha, o senhor defendeu a continuidade da relação do Paraguai com Taiwan. Você descarta completamente que seu país possa romper esse vínculo histórico nos próximos cinco anos para abrir relações diplomáticas com a China? Peña - Sim, descarto totalmente. BBC News Mundo - Pergunto por que existem setores muito importantes da economia paraguaia, como a pecuária e a agricultura, que demandam maior comércio com a China. Apontam, inclusive, que para isso é preciso ter relações diplomáticas, para evitar ter que vender por terceiros como é feito atualmente. É possível atender a essas reivindicações e ter mais comércio com a China sem relações diplomáticas? Peña - Sim, totalmente. Estou convencido de que sim. A China continental é o principal mercado de abastecimento do Paraguai. A China, por meio de uma empresa pública chinesa, é a maior compradora de soja do Paraguai: opera e tem investimentos no Paraguai, não há restrições de nenhum tipo. O Paraguai opera em mercados de commodities competitivos, que se movem em virtude da oferta e demanda internacional. Acredito que o Paraguai tem capacidade de entrar nos mercados mais competitivos do mundo, tem produtos da mais alta qualidade. A soja paraguaia é de melhor qualidade que a produzida em outros países da região, devido à carga calórica dos grãos. Então a China não vai comprar a carne nem a soja do Paraguai porque há um interesse diplomático; vai comprar porque o Paraguai tem carne de boa qualidade e soja a preços competitivos. Vou trabalhar nos próximos anos para fortalecer o setor produtivo e principalmente avançar em um processo de industrialização. O gigantismo da China, que oferece claramente uma grande oportunidade de acesso a um mercado de 1,4 bilhão de habitantes, representa também uma situação bastante desafiadora para um país que hoje é principalmente produtor de matérias-primas. Portanto, não podemos focar apenas na venda de matérias-primas; temos que avançar em um processo de geração de valor agregado às nossas exportações. Ou seja, um processo de industrialização. Acho que estaremos em uma posição melhor se nos integrarmos a mercados como Taiwan, Japão, Coreia e outros países do Sudeste Asiático do que à China continental, que tem custos de produção mais baixos para produtos manufaturados e [em relação a quem] sempre estaremos em desvantagem. Esta não é uma questão meramente diplomática ou emocional. É uma combinação de princípios e valores democráticos, mas também responde à lógica do momento do processo de desenvolvimento em que o Paraguai se encontra e para onde queremos avançar. BBC News Mundo - Este ano o Paraguai deve renegociar com o Brasil o acordo para a distribuição da energia gerada na barragem de fronteira de Itaipu. O senhor pretende exigir alguma coisa em particular nesta negociação? Peña - Mais do que exigir, [queremos] sentar com o Brasil e imaginar nossa relação pelos próximos 50 anos. Além das questões econômicas e financeiras, o fato a destacar é que, há 50 anos, paraguaios e brasileiros imaginaram a construção e a amortização de uma hidrelétrica que continua sendo uma das maiores produtoras de energia limpa e renovável do mundo. Esta é uma conquista magnífica de engenharia, diplomacia e relações bilaterais. Meu maior desejo, além de conseguir mais recursos, é sentar com o presidente Lula do Brasil e que nós também possamos imaginar uma relação que dure pelos próximos 50 anos. BBC News Mundo - Como o senhor bem sabe, muitos no Paraguai têm a ideia de que o acordo de 1973, que agora está expirando, foi prejudicial ao país. E alguns sugerem que o país deveria oferecer livremente o excedente de energia gerado na barragem ao mercado, em vez de entregá-lo ao Brasil a taxas reguladas, o que aumentaria a receita de seu governo. O que o senhor pensa sobre isso? Peña - Penso que Itaipu foi uma grande conquista para o Paraguai. Acredito que o Paraguai está muito melhor hoje com o Mercosul do que estaria se o acordo do Mercosul não tivesse sido assinado. A questão é se podemos conseguir mais. Estou convencido de que podemos fazer muito mais. Mas isso depende de nós, paraguaios, não de uma negociação. O Paraguai tem e desfruta da disponibilidade gratuita de seus 50%. O que é necessário? Investir em redes de transmissão e distribuição. Essa é uma decisão unilateral nossa; não temos que negociar com o Brasil. O que muitos falam há muito tempo sobre reivindicar a disponibilidade gratuita disso nada mais é do que simples retórica política. Temos 50%. O que temos que fazer é a capacidade de usá-la, que é o que eu quero planejar. Que possamos fazer uma revolução no emprego no Paraguai e que o investimento em linhas de transmissão e distribuição seja a grande estrada que permita que indústrias e empresas nacionais e estrangeiras cheguem ao país para gerar empregos e se beneficiar de energia limpa e renovável a preços muito competitivos. No outro ponto, que é a possibilidade de vender para países terceiros, também não há restrições. O problema é operacionalmente como fazemos isso. A infraestrutura para poder fazer isso necessariamente tem que passar pelas redes da Argentina e do Brasil para poder ir a mercados como Uruguai ou Chile. BBC News Mundo - O que vai fazer com as relações diplomáticas com a Venezuela, que o atual presidente paraguaio Mario Abdo rompeu em 2019 quando Nicolás Maduro assumiu um novo mandato que considerava ilegítimo? Peña - Muitos de nós vimos o processo eleitoral e a defesa dos direitos humanos na Venezuela por muitos anos com grande preocupação. Quando estávamos no governo tínhamos uma posição muito crítica quanto a isso e reconhecíamos o governo Maduro. Aconteceu o que aconteceu nas últimas eleições. Tentou-se estabelecer Juan Guaidó como presidente da Assembleia e que ele pudesse exercer a presidência da República. Essa tentativa não teve sucesso. E acredito claramente que o Paraguai deve restabelecer as relações com o povo venezuelano. Temos que avançar em um processo de integração e respeitar cada um dos países. Temos todo o direito de ser sempre uma voz firme em defesa dos direitos humanos e de pedir eleições justas, participativas e que não haja dúvidas sobre as autoridades que têm de julgar. Em termos concretos, quero restabelecer relações com a Venezuela, para que possamos aproximar nossos povos, e espero que o povo venezuelano consiga, pelo livre exercício da vontade popular, a eleição de suas autoridades. BBC News Mundo - Mas, para o senhor, o governo de Maduro é legítimo ou ilegítimo, conforme definido pelo presidente Abdo, que é membro do seu mesmo partido? Peña - Hoje só há um presidente na Venezuela e esse presidente se chama Nicolás Maduro. Não há alternativa. Portanto, temos que trabalhar com a Venezuela. E trabalhar com a Venezuela não deve impedir que tenhamos uma posição crítica, contra a falta de garantias. A resposta concreta é restabelecer as relações com a Venezuela, ter um embaixador em Caracas e dialogarmos com as autoridades daquele país. BBC News Mundo - Como o senhor se define ideologicamente? Peña - Eu me defino como uma pessoa que quer ver o progresso de nossos países sem prejuízo daqueles que possam ter uma visão mais enviesada para a direita ou para a esquerda. O que eu quero para o meu país é progredir. Eu acredito no estado de direito. Eu acredito no mercado livre. Mas também acredito numa presença forte do Estado naquelas áreas em que ele tem um papel indelegável: na prestação de serviços públicos como saúde, educação e segurança. Eu provavelmente poderia me identificar como uma pessoa de centro, com forte crença nas forças do mercado e uma enorme sensibilidade social. [Acredito] que em países como o nosso, que têm tanta riqueza, não há o direito de ter pessoas na pobreza.
2023-05-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c10qdz85311o
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Eleição no Paraguai: por que vitória de Santiago Peña é exceção entre 'ondas políticas' da América Latina
No domingo passado (30/4), a maioria do eleitorado paraguaio voltou a optar por um candidato à presidência do tradicional Partido Colorado, fundado no século 19, logo após a Guerra do Paraguai (1864-1870) e que está no poder, de forma quase ininterrupta, há quase 80 anos, desde 1946. Definido como "partido conservador de direita", o Partido Colorado foi a base fundamental para a eleição do ex-ministro da Fazenda, o economista Santiago Peña, de 44 anos, que recebeu 42,7% dos votos e tomará posse no dia 15 de agosto. O segundo colocado, Efraín Alegre, da coalizão opositora Concertación Nacional, teve 27,4% da votação. Alegre questionou o resultado e foram registrados protestos nas ruas de apoiadores do terceiro colocado na disputa, Paraguayo Cubas, conhecido como "Payo Cubas", de extrema-direita, que recebeu 23% dos votos. Analistas disseram que a distância de cerca de 15% na votação entre o candidato do Partido Colorado e o segundo colocado dificultaria os questionamentos opositores. Fim do Matérias recomendadas Mas por que a vitória de Santiago Peña é exceção entre as chamadas "ondas de esquerda" ou de "centro-esquerda" na América Latina? Analistas ouvidos pela BBC News Brasil disseram que o eleitor paraguaio possui o perfil predominantemente conservador. "As mudanças são difíceis para o paraguaio", disse Esteban Caballero, professor da Flacso, falando de Assunção. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na sua visão, o Paraguai é um país conservador. "Ao contrário do Chile, do Brasil, da Colômbia, de Honduras, não houve alternância e muito menos, digamos, uma guinada à esquerda. Em 2017, 2018, houve uma guinada (regional) à direita e agora dizem que existe uma guinada à esquerda. Mas não foi o caso do Paraguai. Não é o caso do Paraguai", disse. Uma oposição "desunida", na opinião do sociólogo paraguaio José Carlos Rodríguez, acabou contribuindo para a nova vitória dos "Colorados", como são chamados os que integram o Partido Colorado. "No Brasil, Lula reuniu vários setores, até adversários políticos, e assim venceu Bolsonaro. Aqui no Paraguai não foi assim. Se Paraguayo Cubas estivesse na Concertación (liderada por Efraín Alegre), a oposição teria vencido. Agora, o resultado de domingo, por mais que existam queixas, é inquestionável", disse Rodríguez. Nos últimos anos, a Bolívia elegeu o presidente Luis Arce (2020), os chilenos elegeram o presidente Gabriel Boric (2021), os peruanos elegeram Pedro Castillo (que assumiu em 2021 e não concluiu o mandato) e a Colômbia elegeu Gustavo Petro, o primeiro presidente de esquerda do país, no ano passado. No Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva saiu vitorioso na eleição com o ex-presidente Jair Bolsonaro. Mas o conservadorismo e a oposição "desunida" seriam apenas alguns dos motivos para o resultado do domingo, diferente das "ondas regionais". O Partido Colorado (Associação Nacional Republicana, ANR) é visto como “enraizado” em muitos setores do país e o fato de o Paraguai definir a eleição em um turno único, sem ter segundo turno, dificulta ainda mais a união da fragmentada oposição em torno de um único candidato. Além da eleição de Santiago Peña, os "Colorados" venceram em 15 dos 17 departamentos (Estados) do país e a maioria das cadeiras na Câmara dos Deputados e no Senado. "Chegamos a pensar que o Partido Colorado tinha se dividido, nas primárias de dezembro do ano passado, o que facilitaria uma vitória opositora. Mas a legenda conseguiu ficar unida. E quando o Partido Colorado se mantém unido é difícil vencê-los. Somente quando eles racham é que existe possibilidade de que surja um candidato alternativo. Foi o caso de (Fernando) Lugo em 2008", disse o analista político e professor da Faculdade de Ciências Sociais (Flacso) do Paraguai, Esteban Caballero. Ex-bispo católico, Lugo governou o país entre 2008 e 2012 e não chegou a concluir o mandato de cinco anos, após um "impeachment express", como foi chamado pelos apoiadores do ex-presidente, votado no Congresso Nacional. Caballero afirmou que no eleitorado paraguaio, de cerca de 4,8 milhōes de votantes, muitos não são do Partido Colorado. Mas os que votam nos ‘Colorados’ são fiéis ou dependem (financeiramente) da legenda. "O Paraguai tem cerca de 350 mil empregados públicos. A grande maioria é Colorado. E eles têm familiares. Faça as contas, são mais votos ainda no Colorado. O emprego é precário no país e o que paga melhor é o Estado. Ao mesmo tempo, estão os fornecedores (setor privado) que fazem negócios com o Estado e assim vai se formando um círculo de apoio ao Partido Colorado", disse Caballero. Num artigo publicado no jornal Ultima Hora, de Assunção, um dia antes da eleição, o analista Alfredo Boccia Paz escreveu que os paraguaios votariam entre o "cansaço e a máquina" do tradicional partido. "Não é saudável que um partido esteja há sete décadas no poder, à exceção do período de Lugo. No continente, esse fenômeno só é comparado ao Partido Revolucionário Institucional (PRI), que governou o México de 1930 a 2000", escreveu Boccia Paz. O sociólogo Rodríguez lembrou que a trajetória do Partido Colorado incluiu períodos ditatoriais (Alfredo Stroessner) e democráticos. O professor da Flacso notou que existem outros fatores que influenciam este eleitor da legenda, como a identidade. No Paraguai é comum ouvir a "família Colorada" – aquela leal ao partido. "Se o Partido Colorado colocar um Pato Donald para competir, ele vence entre estas famílias", disse Boccia Paz. O resultado da eleição de domingo não foi previsto pelas pesquisas de opinião. As "mais confiáveis" indicavam empate técnico com vantagem para o opositor Efraín Alegre, que liderou a Concertación Nacional, com cerca de 40 legendas. O Paraguai é um país, principalmente, católico e que "se uniu", afirmou o professor da Flacso, a um discurso "conservador, pró-família". País com cerca de sete milhões de habitantes, este vizinho do Brasil, que não tem mar, tem outra excentricidade, de acordo com os analistas. A presidência do Partido Colorado tem forte influência na gestão do presidente à frente do Palácio presidencial de López. O economista Santiago Peña, que trabalhou no Banco Central do Paraguai, no Fundo Monetário Internacional (FMI) e tem um mestrado na universidade de Columbia, nos Estados Unidos, de acordo com seu currículo, foi eleito com o apoio decisivo do presidente da legenda, o ex-presidente Horacio Cartes. Cartes foi acusado, em janeiro deste ano, de "significativamente corrupto" e de “corrupção que destrói as instituições democráticas” pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos. Cartes, definido como "padrinho político" de Peña, estava ao lado do presidente eleito no palanque, após o resultado, no domingo. "Só em países como Cuba ou China, a Presidência do partido é politicamente importante. O Partido Colorado ficou com essa ideia de ter o lugar de poder político diante do governo. Isso é muito estranho e raríssimo no mundo de hoje", disse o professor da Flacso. Na visão do sociólogo José Carlos Rodríguez, o Paraguai tem "uma democracia de má qualidade". Ele e o analista econômico Fernando Masi, do Centro de Análise e Difusão da Economia Paraguaia (Cadep), afirmam, porém, que os dados econômicos acabam contribuindo para a percepção de estabilidade, que atrai investimentos estrangeiros, apesar de o país manter índices altos de pobreza (cerca de 25%), desigualdade social, sistemas de saúde e de educação definidos como "frágeis" e oportunidades limitadas de empregos, fora do setor público. "Não existe uma administração desordenada. Mas sim oligarquia, com um populismo dissimulado e desigualdade social extrema", disse Rodríguez. Ele lembrou que a moeda paraguaia, o Guarani, data do início dos anos 1940 — outro símbolo que indica que o Paraguai tem uma história "muito própria", diferente da registrada nos seus vizinhos no continente.
2023-05-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/crgmzl9j9j7o
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Quem é Santiago Peña, novo presidente do Paraguai
O candidato Santiago Peña lidera a corrida à presidência do Paraguai com ampla vantagem, segundo resultados preliminares, e será o novo presidente do país. Com 95% dos votos processados, Peña, do conservador Partido Colorado, vencer seu opositor Efraín Alegre, do Partido Liberal Radical Autêntico, com quem dividia um empate técnico nas últimas pesquisas de intenção de voto. “Obrigado a quem nos deu seus sonhos, confiou neste projeto, depositou suas esperanças para que possamos ser melhores, e vamos ser melhores”, disse Peña, que assumirá o cargo no dia 15 de agosto. "Depois de anos de estagnação econômica, déficit fiscal elevado, taxa de desemprego elevada, aumento da pobreza extrema, não é só trabalho para uma pessoa ou um partido. Por isso apelo à união e ao consenso, à prosperidade sem exclusões", acrescentou. No Paraguai, as eleições são definidas em turno único, o voto é obrigatório e a reeleição não é permitida, por isso o atual presidente, Mario Abdo, não pôde concorrer a um novo mandato de cinco anos. Fim do Matérias recomendadas "Parabéns ao povo paraguaio por sua grande participação neste dia de eleição e ao presidente eleito Santiago Peña. Trabalharemos para iniciar uma transição ordenada e transparente que fortaleça nossas instituições e a democracia do país", escreveu Abdo no Twitter. Santiago Peña tem 44 anos e nasceu na capital do país, Assunção. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Até 2015, Peña era um estranho na política nacional. Economista pela Universidade Católica de Assunção, onde lecionou Teoria Financeira e Teoria Econômica, ele viajou para os Estados Unidos para fazer mestrado em Administração Pública na Columbia University, em Nova York, no ano de 2001. Ele integrou a equipe do FMI (Fundo Monetário Internacional) em Washington em 2009, onde dirigiu a ligação do órgão com a África. “Naqueles anos, o potencial que vi de fora para o meu país gerou um grande impacto em mim”, disse ele a repórteres antes das eleições internas do partido. Durante uma década, fez parte do Banco Central do Paraguai, primeiro na área de Pesquisas Econômicas e depois como diretor, mas teve que esperar até 2015 para começar a atuar na política nacional. "Peña é uma pessoa que se apresenta como um tecnocrata, um especialista em economia de alto nível, com estudos no exterior e credenciais que lhe dão força técnica. A questão é se isso pode compensar a falta de capital político", disse à BBC Mundo Magdalena López, PhD em Ciências Sociais e coordenador do Grupo de Estudos Sociais do Paraguai da Universidade de Buenos Aires. “Peña nasceu do fracasso do projeto de reeleição de Cartes”, disse José Duarte Penayo, doutor em Filosofia e filho do ex-presidente colorado Nicanor Duarte Frutos, à BBC Mundo, referindo-se à tentativa frustrada do ex-presidente em 2017 de modificar a Constituição para permitir a reeleição. Há seis anos, Peña disse que sentia que era hora de "descer à arena eleitoral para fazer mais" e renunciou ao Tesouro para se candidatar à presidência do Paraguai nos estágios partidários de 2017, eleições nas quais perdeu para Mario Abdo , a quem agora substituirá na presidência. Em 2018, encerrado o governo de Cartes, Peña teve sua primeira experiência no setor privado. Naquele ano, passou a integrar o conselho de administração do Banco Basa, do Grupo Cartes, conglomerado empresarial do ex-presidente que, segundo o próprio Peña, representa 2% do PIB nacional. Entre seus pontos fortes está a passagem pela gestão e a paciência de tecer um perfil de público mais abrangente nos últimos cinco anos. Para alguns, Peña é o "protegido" de Cartes. Para outros, é quem protegerá o ex-presidente nos próximos anos. Em seu discurso de comemoração neste domingo, Peña dedicou um agradecimento especial a Cartes, presidente do partido. "Sua contribuição, presidente, não se paga senão com a moeda do respeito e da admiração. Obrigado por esta vitória vermelha", disse Peña. A situação de seu principal aliado não é fácil. O Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos definiu Cartes em meados do ano passado como "significativamente corrupto". "Cartes se envolveu em atos de corrupção antes, durante e depois de seu mandato como presidente do Paraguai. A carreira política de Cartes foi baseada e continua dependendo da mídia corrupta para o sucesso", disse o comunicado do Departamento de Estado em janeiro passado. As sanções econômicas contra Cartes alteraram o mecanismo de financiamento da última campanha política, baseado na solicitação de empréstimos bancários. "Claro, saímos em busca de crédito e ninguém quis nos dar devido à situação do nosso presidente [do partido, Horacio Cartes, que assumiu em 10 de janeiro]", disse o congressista colorado Hugo Ramírez ao jornalista Federico Filártiga. Apesar das acusações dos Estados Unidos, Peña nunca se afastou de Cartes. “Estamos falando de um ex-presidente que fez da transparência e da boa gestão uma bandeira importante, e estou totalmente convencido de que foi esse o caso”, disse o presidente eleito algumas semanas após o anúncio das sanções de Washington. No entanto, Peña tenta se apresentar como um político sem compromisso. “Fui colaborador do governo de Horacio Cartes e posso dizer que em dois anos e meio atuei com total autonomia”, segundo declarações ao ABC Color. Da oposição não acreditam que o novo presidente possa governar sem a sombra de Cartes. "Ele é um candidato improvisado, que não tem experiência nem liderança política, é um acidente. Na verdade, ele é o credor de Horacio Cartes", disse Efraín Alegre na campanha, derrotada por Peña neste domingo. Para Marcos Pérez Talia, doutor em Ciência Política e autor do livro A mudança dos partidos políticos no Paraguai, o exercício do poder será "bicéfalo". "Diante de qualquer contingência, os candidatos se reúnem com Cartes, não com Peña. Naturalmente, o ex-presidente vai limitar severamente a autonomia de governo de Peña." As críticas ao novo presidente não partem apenas da oposição, mas do próprio partido. O último presidente, Mario Abdo, é um dos mais duros críticos do cartismo. "Cartes é um homem nefasto que quer o controle total", disse ele à Radio Concierto em dezembro passado. Mas as divisões internas não são novas. "Não é a primeira vez que isso acontece", disse Ana Couchonnal, PhD em Sociologia e pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas, à BBC Mundo. Em 2008, na única eleição em que a oposição venceu os colorados, o partido vivia uma de suas mais duras crises internas. Por isso, nesta eleição, apesar das profundas divergências, o candidato apoiado por Abdo, Arnoldo Wiens, aliou-se a Peña em um gesto que no poderoso Partido Colorado é conhecido como o "abraço republicano": aparecer unido para fora para preservar ou poder. “Os internos acabam se dissolvendo na necessidade prática de sustentar o poder, principalmente na forma como o poder é exercido”, diz Couchonnal. No entanto, para alguns analistas, o gesto não é garantia de coesão das diferentes facções uma vez no governo. "Peña terá que administrar a relação bastante desgastada com o partido governista do Colorado, liderado por Mario Abdo", diz Pérez Talia. Peña, cujo partido governou o país nas últimas sete décadas, com exceção de um breve período entre 2008 e 2013, prometeu "mais dinheiro no bolso dos paraguaios" com a geração de empregos e a formalização da economia. Entre os principais desafios que o novo presidente enfrentará, estão diferentes problemas econômicos e sociais, como a evasão fiscal, a informalidade do trabalho, o forte impacto da seca e a pobreza que atinge principalmente camponeses e indígenas. Durante a campanha, Peña prometeu acabar com a evasão fiscal e promover políticas para que mais pessoas trabalhem na economia formal. Ele também afirmou não ter o aumento de impostos como um de seus planos.
2023-04-30
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Eleições no Paraguai: 3 desafios que próximo presidente do país enfrentará
A economia do Paraguai foi elogiada no passado por organizações internacionais pelo crescimento, redução da pobreza e ordem nas finanças públicas. No entanto, o país apresenta uma série de problemas que são um desafio e devem cair no colo do próximo presidente, que será eleito neste domingo (30/4). O vencedor terá que enfrentar diversos desafios econômicos e sociais, como a evasão fiscal, a informalidade do trabalho, o forte impacto da seca e a pobreza que atinge principalmente camponeses e indígenas. Santiago Peña, candidato oficial do partido conservador, o Partido Colorado, enfrenta Efraín Alegre na disputa para assumir o comando da nação sul-americana pelos próximos cinco anos. Os resultados devem ser acirrados. No que diz respeito às finanças públicas, o novo presidente terá que arcar com um alto déficit fiscal (de 3% do Produto Interno Bruto, PIB) que diminui as possibilidades de investimento público em saúde, educação, habitação e em acesso a serviços básicos, como saneamento. Fim do Matérias recomendadas Tendo a agricultura e a pecuária como base de seu crescimento econômico, o Paraguai é atualmente o terceiro exportador mundial de soja e o oitavo de carne bovina, dois setores que definem os rumos econômicos do país há anos. Sendo um país com uma das menores cargas tributárias da região, as grandes empresas que produzem e exportam esses produtos costumam estar no centro de acalorados debates sobre os benefícios econômicos que trazem aos cofres públicos. Alegre, o candidato que lidera a aliança de centro-esquerda Concertación Nacional, disse que favorecerá a austeridade fiscal para cortar gastos do setor público em vez de aumentar os impostos sobre os agricultores do país. Peña, principal trunfo do partido governista, prometeu durante a campanha acabar com a evasão fiscal e promover políticas para que mais pessoas trabalhem na economia formal. Ele também não tem aumento de impostos em seus planos. Veja alguns dos problemas que revelam a precariedade do sistema econômico e social paraguaio, bem como os avanços que o país obteve nos últimos anos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As bases produtivas do país sul-americano, que faz fronteira com Brasil, Argentina e Bolívia, estão alicerçadas na riqueza da terra, já que quase não há indústria no país. A produção agropecuária, especialmente a soja, sofre com as fortes inundações que atingem o país de tempo em tempos, fazendo com que o crescimento econômico aumente e diminua muito rápido de um ano a outro, como se fosse uma montanha-russa. A queda abrupta do PIB em 2012, 2019 ou 2020, por exemplo, foi influenciada pela falta de chuva ou pela combinação de enchentes em algumas regiões e seca em outras. Isso também aconteceu em 2021, quando a safra de grãos caiu 66%, só que não foi tão perceptível no PIB porque o país vinha se recuperando da pandemia. E a história se repetiu no ano passado com uma nova seca. Assim, o fator climático afeta as lavouras e se torna um problema estrutural da economia paraguaia. No futuro, as estimativas sugerem que os fenômenos climáticos terão maior impacto na matriz produtiva, deixando o país sujeito a grande volatilidade econômica. Entre os principais produtos de exportação do Paraguai estão a soja e a carne bovina e, embora tenha havido esforços para diversificar as fontes de recursos do país, continua baixa a produção de bens de consumo com alto valor agregado. “Vivemos em um primitivismo produtivo”, diz Víctor Raúl Benítez, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV), à BBC Mundo. O país ainda tem escolaridade em média de apenas 9 anos de escolarização, uma grande barreira para que o país caminhe para uma "economia do conhecimento", aponta Benítez. Segundo o presidente paraguaio Mario Abdo, o país avança em seu processo de industrialização com um aumento "sem precedentes" da exportação de manufaturados, enquanto o investimento privado "duplicou nos últimos quatro anos". Focado em atrair mais investimentos para o país, o presidente abriu as portas do Paraguai para incentivar um maior fluxo de capitais, política reconhecida por seus partidários e criticada por seus detratores pela falta de regulamentação. Dois em cada três trabalhadores paraguaios estão no setor informal. Isto significa que as suas atividades não estão regulamentadas por lei e, por isso, não têm acesso a um contrato, nem a um salário mínimo, nem aos benefícios sociais associados a um trabalho regular. Habitualmente vivem o dia a dia, com sérias dificuldades para cobrir as suas necessidades básicas, sem poupança para a reforma Uma situação precária em que, diante de qualquer imprevisto, não tem como se defender de condições adversas, como uma doença grave. Entre os informais estão, por exemplo, vendedores ambulantes, empregados domésticos, autônomos sem salário fixo e muitos outros. Eles representam 64,2% da população economicamente ativa, índice bem acima da taxa média de trabalho informal na América Latina, que gira em torno de 50%, segundo estimativas da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Muitos desses trabalhadores paraguaios fazem parte da chamada “economia clandestina”, que inclui atividades legais e ilegais. A situação afeta especialmente os jovens e as mulheres nas áreas rurais. Junto com a Albânia, o Paraguai é o país produtor de eletricidade mais limpo do mundo, escreveu Silvia Morimoto, representante do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) no Paraguai. Além disso, está entre os países com maior produção global de hidroeletricidade per capita, que vem principalmente de suas grandes hidrelétricas binacionais: Itaipu e Yacyretá, que divide com seus vizinhos Brasil e Argentina respectivamente. Com grande oferta, o país exporta eletricidade limpa. Porém, nos últimos anos vem exportando cada vez menos energia hidrelétrica e importando cada vez mais derivados de petróleo, que são utilizados no transporte. De fato, 41% de seu consumo de energia vem de combustíveis fósseis. Verónica R. Prado, especialista em Energia do Banco Interamericano de Desenvolvimento no Paraguai, argumenta que o crescimento da frota de automóveis satura as estradas, diminui a qualidade do ar e aumenta "a dependência do país dos combustíveis fósseis". Essa situação, diz ela à BBC News Mundo, pode afetar negativamente sua segurança energética no futuro. Do outro lado da balança, está a quebra da exportação de energia hidroeléctrica, tendência que se explica por fatores como a procura interna crescente, a seca e a falta de investimento em infra-estruturas, acrescenta. No futuro, o consumo de energia elétrica deve continuar aumentando e, diante desse cenário, Prado diz que o país precisa de um plano para diversificar sua matriz energética e investir em infraestrutura que permita a transmissão e distribuição de energia elétrica. Ou seja, não basta gerar eletricidade, ela deve ser entregue nas residências. Manuel Ferreira, ex-ministro das Finanças e presidente da consultora MF Economía Inversiones, diz que o país tem dois caminhos para reduzir a dependência das importações de derivados de petróleo. Um deles é investir em eletromobilidade. "O Paraguai poderia substituir gradativamente parte de sua frota de veículos por carros elétricos", diz ele à BBC News Mundo. A outra é atrair indústrias que precisam de energia hidrelétrica para o seu funcionamento. Neste ano, Brasil e Paraguai iniciarão negociações para redefinir algumas cláusulas do tratado pelo qual os dois países construíram a hidrelétrica de Itaipu há 50 anos. O acordo alcançado pelos dois países será fundamental para os futuros planos de desenvolvimento energético do país. Embora um em cada quatro paraguaios viva na pobreza, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), e 20% das crianças indígenas sofram de desnutrição crônica, segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o país apresentou melhora em seus indicadores sociais. Nas últimas duas décadas, a pobreza total caiu de 58% para 25% e a pobreza rural de 70% para 34%. E, apesar da dependência do país da agroindústria, que o tornou mais vulnerável aos impactos das mudanças climáticas, organismos internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional elogiaram o aumento do PIB nas últimas duas décadas e a “solidez" das políticas macroeconômicas. Tanto que até 2018 o país era apresentado como modelo de sucesso entre os países latino-americanos. Em menos de duas décadas, o PIB dobrou e o crescimento econômico médio anual atingiu mais de 4%, enquanto as contas públicas estavam indo bem. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) ainda destacou que nos últimos 20 anos houve uma "tendência positiva" nos indicadores sociais. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Paraguai passou de um nível "médio" em 2001 para um nível "alto" em 2020, diz a agência. Outros indicadores mostram uma diminuição substancial na desnutrição infantil e menor desigualdade de renda do que em muitos países latino-americanos. Mas desde 2018 os indicadores já não são tão positivos e o país tem demorado a recuperar da pandemia que, juntamente com as mudanças climáticas, revelam problemas no modelo economico. Apesar da intensa polarização e das declarações radicais do “Bolsonaro paraguaio”, Payo Cubas, para crescer nas pesquisas, dados do Google mostram que a maior parte das buscas da população do país se concentram em temas mais cotidianos. Em primeiro lugar nas buscas relacionadas à eleição no país aparece o interesse por saber se haveria toque de recolher imposto neste domingo de votação. Segundo a cartilha divulgada pelo TSJE paraguaio, não há qualquer previsão do tipo. Outra dúvida que aparece em ascensão é relativa à lei seca – esta, sim, regulamentada pelas autoridades. Em todo o território paraguaio, a proibição da venda de bebidas alcoólicas foi iniciada na noite do sábado (29/04), às 19h, e durará até o final do domingo. Na comparação das buscas pelos principais candidatos, Payo Cubas se manteve entre os mais buscados. Apesar de ter conduzido uma campanha estridente – incluindo declarações afirmando que 100 mil dos brasileiros que vivem no Paraguai deveriam ser mortos -, Cubas teve dificuldade para transformar a curiosidade em relação a si mesmo em intenções de voto. Na pesquisa mais recente da Atlas Intel, Cuba havia avançado 8 pontos percentuais, para 23% da preferência. Apesar do avanço, ainda estava bem atrás dos dois líderes, Efraín Alegre (34,3%) e Santiago Peña (32,8%).
2023-04-30
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Eleições no Paraguai: o partido que só perdeu uma eleição em 76 anos e agora se vê ameaçado de nova derrota
Um dos partidos políticos mais fortes ​​da América Latina será colocado à prova neste domingo (30/4). O Partido Colorado, legenda conservadora que governa o Paraguai quase ininterruptamente desde 1947, enfrenta um grande desafio na eleição de turno único que coloca seu candidato presidencial, Santiago Peña, contra vários candidatos da oposição. Vencer nas urnas é uma especialidade dos colorados paraguaios: eles fazem isso há décadas. Seus apoiadores atribuem esse sucesso à popularidade do partido e às conquistas de seus governos. Já os críticos apontam que eles venceram suprimindo rivais por meio de um regime militar, fraudes ou usando o Estado para atrair votos. De fato, a única vez que o partido perdeu oficialmente uma eleição presidencial nos últimos 76 anos foi quando o ex-bispo Fernando Lugo foi eleito chefe de uma coalizão de oposição em 2008. Fim do Matérias recomendadas Lugo foi deposto quatro anos depois em um árduo julgamento político promovido pelo Partido Colorado, que retomou o poder nas eleições seguintes. Mas agora outra figura coloca em risco o domínio do Colorado, segundo analistas. Não se trata do líder da oposição, mas de alguém do próprio partido: o ex-presidente Horacio Cartes, que os Estados Unidos sancionaram por "corrupção excessiva que mina as instituições democráticas". Fundado em 1887 e também chamado de Associação Nacional Republicana (ANR), o Partido Colorado paraguaio é um dinossauro da política latino-americana. Em um momento em que outros partidos tradicionais da região estão perdendo força, os colorados no Paraguai ainda mantêm a Presidência sob o atual mandato de Mario Abdo e controlam o aparato de um Estado que permeia toda a sociedade. Uma chave nessa história foi o regime militar de Alfredo Stroessner, o general filiado ao partido que governou o país com mão de ferro entre 1954 e 1989. Stroessner tomou o poder após a guerra civil de 1947, quando os colorados retornaram ao governo que haviam perdido décadas antes e desencadearam uma série de conspirações e golpes arquitetados por homens do próprio partido. Durante seu governo de três décadas e meia, Stroessner organizou eleições fraudulentas a cada cinco anos, com partidos de oposição banidos, milhares de detidos ou torturados e centenas de desaparecidos. Assim, as fronteiras que separavam o partido do Estado tornaram-se cada vez mais tênues. A troca de cargos públicos por afiliações virou norma, segundo especialistas. "Na época de Stroessner, se você queria ir para a faculdade, tinha que entrar no Partido Colorado, se queria ser militar, tinha que entrar no Partido Colorado", disse o historiador paraguaio Fabián Chamorro à BBC News Mundo. “Se, por exemplo, seu pai ou sua mãe falecesse, você não recorria à ação social; recorria à seccional colorada: cargos políticos nos bairros que serviam para auxiliar os vizinhos”, diz. "Em outras palavras, a seccional colorada substituiu o Estado." Outra peculiaridade do Partido Colorado é que, apesar dos abusos e da corrupção desenfreada do regime militar, a legenda conseguiu se manter no poder após a derrubada de Stroessner em um golpe liderado em 1989 por seu cunhado e braço direito, o general Andrés Rodríguez, também "colorado". A afiliação ao partido foi transmitida das gerações mais velhas de colorados às mais novas, em um processo que alguns comparam à fidelidade familiar a um time de futebol. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "É por isso que o coloradismo é um fenômeno tão estranho", explica Chamorro. "Não importa quem é o candidato, não importa o currículo dele ou que seja delinquente (...) o voto de identidade vai passar pra lá, sem problema algum." O historiador, que é filiado ao Colorado e diz estar lutando para "mudar por dentro", acrescenta que a compra de votos continua até hoje, seja em áreas do interior rural do país ou em bairros pobres em terras sujeitas a inundações pelo rio Paraguai, na periferia de Assunção. “Eles te colocam no carro, te levam para votar, você vota e te dão dinheiro”, diz Chamorro. "Todos os movimentos fazem isso, mas o Partido Colorado é o que mais movimenta dinheiro por ter a estrutura do Estado a seu favor." O senador colorado Enrique Riera afirma que "existiu uma cultura patronal em todos os partidos durante o tempo em que estiveram no poder". "São resquícios da cultura da ditadura, porque os governos da oposição fazem o mesmo e os municípios fazem o mesmo. Não estou dizendo que está certo, pelo contrário, estamos lutando contra isso há muito tempo, mas não é uma exclusividade [colorada]", disse Riera à BBC Mundo. Ele destaca que também houve setores democráticos do partido perseguidos pelo regime de Stroessner e que desde 1989 as eleições no Paraguai foram "absolutamente democráticas". “O Partido Colorado é um partido popular, de massas e mais de 50% da população é filiada ou simpatizante dele”, diz o político, que também foi prefeito de Assunção e ministro da Educação do Paraguai. A derrota única do Colorado em 2008 é atribuída por muitos a uma amarga divisão que o partido tinha na época, e não a atos de corrupção ou clientelismo. E neste mês os colorados voltam às urnas com uma brecha interna que pode custar-lhes o poder, agora divididos em torno da polêmica figura de Cartes. A resistência de uma parte do Partido Colorado ao empresário bilionário que governou o Paraguai entre 2013 e 2018 está longe de ser novidade. “Cartes é uma figura muito autoritária e dominante, pois praticamente comprou suas eleições dentro do Partido Colorado para ser candidato em 2013”, diz Fernando Masi, sociólogo e economista que dirige o Centro de Análise e Difusão da Economia Paraguaia (Cadep). Ele acrescenta que, como presidente, Cartes começou a ganhar apoio no Congresso, no Judiciário e no Ministério Público, mas a rejeição à sua figura cresceu dentro do próprio partido. Por causa disso e de sua tentativa fracassada de reformar a Constituição para se reeleger, o que gerou fortes protestos nas ruas, os colorados escolheram Abdo (filho do secretário particular de Stroessner e símbolo da ala tradicional do partido) como candidato presidencial em 2018. Mas Cartes manteve controle interno e, nas primárias de dezembro, não só foi eleito líder do partido, como também assegurou para Peña, seu ex-ministro da Fazenda e afilhado político, a candidatura presidencial do Colorado. No mês seguinte, os EUA sustentaram que "a carreira política de Cartes foi baseada e continua dependendo da mídia corrupta para o sucesso" e o acusaram de ter laços com membros do Hezbollah, o grupo apoiado pelo Irã considerado terrorista por Washington. As sanções do Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros (OFAC) do Departamento do Tesouro implicam, entre outras coisas, que o ex-presidente seja impedido de usar o sistema financeiro norte-americano. Além disso, quatro empresas de Cartes e o vice-presidente paraguaio, Hugo Velázquez, foram sancionados. Foi um duro golpe para Cartes, que anunciou a dissolução de seu grupo empresarial e rejeitou as acusações contra ele. "Nego e rejeito o conteúdo das acusações, que considero infundadas e injustas", afirmou o ex-presidente em comunicado publicado em julho, quando os Estados Unidos o acusaram de corrupção antes de sancioná-lo. Em março, ele disse estar "confiante de que com o tempo a verdade virá à tona". O impacto que tudo isso terá nas eleições ainda é incerto. Masi destaca que as sanções dos EUA afetaram a campanha colorada, pois deixaram os bancos relutantes em conceder crédito a um partido cujo líder e gestor de gastos é Cartes. "Eles não podem usar os bancos e isso deixou os colorados muito nervosos, porque esse dinheiro é necessário não apenas para o candidato presidencial, mas para todas as outras candidaturas. Portanto, há pessoas que pedem [a Cartes] para renunciar [à liderança]", disse Masi à BBC Mundo. "Obviamente, se o Colorado vencer, ele poderá se firmar como seu presidente", avalia. "Mas se ele perder, será o momento em que vão exigir sua renúncia com muito mais força." As pesquisas de intenção de voto diferem muito entre si: algumas colocam à frente o governista Peña e outras o oposicionista Efraín Alegre, que tenta pela terceira vez a Presidência. Ex-ministro de Obras Públicas do governo de Lugo e presidente do Autêntico Partido Liberal Radical, Alegre lidera uma coalizão de forças de centro-direita e de esquerda chamada Concertação Nacional.
2023-04-29
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjj90jqd0zjo
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O que é o 'dólar blue' e por que seu alto valor abala a Argentina
Na Argentina, muita gente está se perguntando a mesma coisa há uma semana: a quanto vai chegar o dólar blue? Em um país com uma taxa anual de inflação que ultrapassa os 104% e uma das piores dívidas do mundo, a maior preocupação nos dias de hoje, tanto para economistas e políticos quanto para o público em geral, é a subida meteórica do "blue", que aumentou cerca de 20% em poucos dias. É o dólar paralelo, que, em outras partes do mundo, é mais conhecido como "dólar clandestino", por ser usado em mercado ilegal. Mas, na Argentina, onde as pessoas quase não têm acesso legal à moeda americana, e o peso perde valor a cada semana, o dólar blue virou uma das principais referências econômicas. Por isso, tantos argentinos compram o blue para economizar e se proteger da inflação. Ele é usado para comprar ou vender de tudo, desde casas e carros a computadores e celulares. É ele que determina o valor de muitos bens e serviços cobrados em pesos. Por isso, o aumento do preço do blue, que passou de cerca de 400 pesos para quase 500 em uma semana, antes de começar a cair nesta quarta-feira (26/4), causou pânico geral no país e ameaça aprofundar a crise econômica nos últimos meses do governo de Alberto Fernández. Fim do Matérias recomendadas A Argentina é famosa por ter várias cotações de dólares. Existe o "dólar oficial", que em outros países seria o único, cujo valor é determinado pelo Banco Central da República Argentina (BCRA). Ele tem o preço mais baixo: vale cerca de metade do blue. Mas apenas entidades financeiras ou de comércio exterior têm acesso a esse dólar. As outras pessoas têm que pagar mais pela moeda americana, já que o governo impôs uma série de taxas para sua aquisição. Há também uma cota para a compra do dólar oficial. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Se um argentino quiser comprar dólares legalmente, pode adquirir até US$ 200 por mês, pagando uma taxa de 75% (desde que cumpra os rígidos requisitos do BCRA, que excluem a maioria da população). Esse é o dólar ahorro" (ou "dólar da poupança"). Se você usar seu cartão de crédito para pagar mercadorias em dólares, terá essas mesmas taxas ("dólar cartão"). Se você usá-lo no exterior e gastar mais de US$ 300, você paga um acréscimo de 25% ("dólar turismo"). Por último, você tem a opção dos chamados dólares financeiros, que são adquiridos por meio da compra e venda de títulos. São aqueles usados pelas empresas e investidores mais sofisticados (ou com mais recursos). O "dólar bolsa" ou "MEP" é obtido comprando títulos em pesos e vendendo-os em dólares, e o "CCL" (ou "conta com liquidação") é semelhante, mas também permite a transferência de dólares para uma conta no exterior. Assim como o blue, esses dólares financeiros — que são legais — são cotados pelo mercado, e são considerados por muitos economistas como um índice mais sólido do valor da moeda norte-americana, já que não costumam ser tão sensíveis à especulação como ocorre com o paralelo. No entanto, no imaginário argentino, o blue é rei, e é por isso que para muitos —incluindo os comerciantes que remarcam seus produtos seguindo a cotação do dólar — é a referência que conta. Seu uso é tão popular e difundido que até mesmo os principais jornais do país trazem essa cotação ilegal em suas primeiras páginas. Há uma série de especulações sobre o que motivou essa alta do câmbio. O presidente Fernández, da coalizão peronista Frente de Todos, culpou ferozmente a oposição. "É uma prática permanente da direita argentina", disse ele na terça-feira (25/4), quando o blue atingiu a cotação recorde de 497 pesos. "Primeiro, instalam boatos pela manhã, operam ao longo do dia e no fim da tarde retiram sua rentabilidade do mercado de câmbio. Assim, prejudicam a poupança da maioria dos argentinos. Sempre fazem a mesma coisa", acusou ele, gerando a crítica de vários nomes da oposição, que acusam o governo de não se responsabilizar pela situação. Na mesma linha, o ministro da Economia, Sergio Massa, tuitou algumas horas depois: “Há vários dias vivemos uma situação atípica de boatos, versões, notícias falsas e seu consequente impacto nos instrumentos financeiros vinculados ao dólar”. “Vamos usar todas as ferramentas do Estado para ordenar esta situação”, afirmou. A estratégia parece ter funcionado, já que nesta quarta-feira (26/4) o blue iniciou uma queda notória (fechou em 476 pesos). No entanto, muitos economistas alertam que, por trás do aumento do blue, existem problemas macroeconômicos que persistem e que podem fazer com que o paralelo volte a subir. Uma delas é a baixa quantidade de reservas em dólares que o BCRA possui. Um problema recorrente em um país que demanda muita moeda estrangeira para a produção e poupança, mas gera pouco (e menos este ano devido à gravíssima seca que afetou o principal gerador de dólares do país: o campo). Segundo Fausto Spotorno, diretor da consultoria Orlando J Ferreres y Asociados, o país tem menos de US$ 2 bilhões em reservas líquidas. "Claramente pouco", esclarece à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC). Mas, além disso, há a inflação muito alta, que em março atingiu o maior nível desde a crise de 2001-2002 (7,7% ao mês), fazendo o peso valer cada vez menos e, consequentemente, levando as pessoas a comprarem dólares novamente no mercado. “Acredito que o mercado está se ajustando a uma nova realidade, com câmbio mais alto dada à baixa disponibilidade de moeda estrangeira”, diz o economista, que também dirige a Escola de Negócios da Universidad Argentina de la Empresa (UADE). Paradoxalmente, a escalada do blue coloca mais pressão na inflação em abril. Até a semana passada, várias consultorias calculavam que ela ficaria em torno de 8%, mas agora essas estimativas subiram, pois mais empresas aumentaram o custo de seus produtos em linha com o "blue". Além dos problemas econômicos, o contexto político que a Argentina atravessa não tem contribuído para a estabilidade. Na sexta-feira (21/4), o presidente Fernández anunciou que não buscará a reeleição nas eleições de outubro, o que, na essência, o transformou em um presidente sem muito poder. O anúncio, feito um dia depois de uma pesquisa da consultoria Poliarquía revelar que o presidente tem índices de desaprovação acima de 70%, também levantou dúvidas sobre o futuro da aliança que governa. Enquanto isso, a principal força da oposição, o Juntos pela Mudança, também se envolve em uma disputa de poder após a decisão de seu principal nome, o ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019), de não se candidatar novamente. Entre os dois, surge com cada vez com mais força a figura do "libertário" Javier Milei, que disse que se vencer fechará o Banco Central e dolarizará a economia argentina, provocando ansiedade em muitos setores. O panorama eleitoral ficará mais claro no final de junho, quando se saberá quem serão os pré-candidatos a cada cargo, e ficará ainda mais claro quando forem realizadas as primárias, em agosto. Mas o que muitos estão se perguntando agora é se a economia argentina, e particularmente o volátil dólar blue, resistirá à incerteza.
2023-04-27
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ckmz8m5zdy0o
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Eleições no Paraguai: como Brasil influencia os rumos do país vizinho
As eleições gerais que elegerão o próximo presidente do Paraguai ocorrem no dia 30 de abril. Diferentemente do Brasil, o país vizinho não conta com um segundo turno e não permite reeleição - o candidato que conseguir a maioria dos votos é eleito para um mandato único. A eleição de um novo chefe de Estado inicia um novo capítulo na história de cooperação bilateral entre Brasil e Paraguai, importante parceiro comercial do Brasil. Os especialistas entrevistados pela BBC News Brasil consideram que quem quer que seja o vencedor no dia 30 de abril, os rumos das relações não devem ser alterados, mas acreditam que a relação seja intensificada pela maior proximidade que a volta de Lula ao cargo de presidente do Brasil pode oferecer aos vizinhos. Fim do Matérias recomendadas A expectativa é que Lula possa ceder, ao menos parcialmente, a acordos econômicos que beneficiem o Paraguai, sobretudo na divisão da energia gerada pela usina hidrelétrica de Itaipu. A distribuição da energia elétrica produzida pela usina hidrelétrica de Itaipu entre os dois países é tema de debate constante por parte dos paraguaios. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Como o Paraguai tem uma economia muito menor que a brasileira, o país consome apenas uma parte da sua metade e vende o restante para o Brasil, por meio da Eletrobras. Por isso, o acordo atual estabelece que o Brasil receba 85% da energia gerada, enquanto o Paraguai fica com os 15% restantes. O preço que o Brasil paga pela energia excedente é considerado baixo em comparação com os valores praticados no mercado internacional de energia - e este é justamente um dos pontos centrais das eleições que ocorrem no fim de abril. “Os paraguaios falam em uma defasagem de 80% no preço. há muita conexão entre resolver Itaipu e melhorar saúde, educação e infraestrutura. Se faz uma conexão direta entre Itaipu e a capacidade do Estado paraguaio de prover bens públicos à população”, diz Pedro Feliú, professor da USP e especialista em política paraguaia. Em entrevista à rádio CBN, Peña disse que a intenção é arrecadar mais dinheiro para incrementar linhas de transmissão e distribuição e gerar empregos. “O mesmo que aconteceu no Brasil nas décadas de 70, 80 e 90 com a energia que Itaipu gerou para o Brasil. Agora o Paraguai quer o mesmo. E para isso o Paraguai tem que ter uma conversa com o Brasil, para ver como pode gerar recursos para que o Paraguai tenha força de se mover nos próximos cinco anos.” Efraín Alegre também já citou, em entrevistas, que não considera justa a divisão atual negociada com o Brasil. Pedro Feliú avalia que o episódio - e os interesses atuais do país vizinho - afastam os candidatos atuais à presidência de uma postura "entreguista". "Do ponto de vista eleitoral, tanto Efraín Alegre quanto Santi Peña não trazem um grande impacto em termos de posicionamentos nas negociações, mas não quer dizer que o resultado da negociação do Anexo C vá na direção desejada pelo Paraguai. O país precisa de investimento em linhas de transmissão em geradoras, para distribuição de energia… Então a soberania energética do Paraguai esbarra na própria infraestrutura do país." Em entrevista ao jornalista Jairo Eduardo, da CBN Cascavel, em fevereiro deste ano, o candidato Santiago Peña disse que Lula já demonstrou muita generosidade com o Paraguai no passado ao aumentar o preço da parcela cedida pelo Paraguai no acordo da usina de Itaipu - algo que, segundo ele, permitiu que os recursos fossem utilizados na educação. “A lembrança que o Paraguai tem do governo de Lula é muito boa. É com a mesma visão que nós olhamos o futuro da relação bilateral entre Paraguai e Brasil.” Pedro Brites, professor de relações internacionais da FGV (Faculdade Getúlio Vargas), aponta que é notável a predisposição que Lula teve em fazer acordos que deixaram os vizinhos satisfeitos no passado. “Nos dois primeiros mandatos, ele tentou construir relações não tão desiguais assim com o Paraguai e agora há expectativa que o Brasil reconheça que existe um abismo nas condições que o Paraguai tem para poder acessar a parte que lhe cabe dentro do acordo.” Na análise de Brites, mesmo que o Paraguai mantenha um governo mais conservador, como o do Partido Colorado, que está no poder há muito tempo e tem um viés mais de direita ou centro-direita, o país tem mais ganhos com o governo Lula, que oferece um avanço no nível de coordenação regional e no nível de integração regional. No governo Bolsonaro, lembra o professor, houveram poucas iniciativas e propostas econômicas novas que interessassem aos paraguaios, e o ex-presidente retirou o Brasil da Unasul (União de Nações Sul-Americanas), decisão que foi revertida por Lula. “Eu acho que isso também se manifesta na maneira como o Brasil vem tratando o próprio tema das eleições paraguaias e defendendo a ideia de que o Paraguai tem que continuar sendo autônomo, até porque o Brasil aposta muito na construção de um Mercosul revigorado com o retorno agora recente da Unasul. Como liderança regional, espera-se que o Brasil construa um espaço de diálogo efetivo com os vizinhos, principalmente os vizinhos mais pobres, que são geralmente aqueles com quem você vai precisar construir relações mais estruturadas em torno de cooperação ou de apoio ao desenvolvimento para tentar evitar que ele se afastem do processo de integração.” “Se olharmos nossas parcerias comerciais, o Paraguai é único país do mundo que poderíamos dizer que realmente depende do Brasil”, afirma Pedro Feliú. O Brasil é o principal destino das exportações paraguaias, que enviam produtos agrícolas para o vizinho, contribuindo para o abastecimento interno de alimentos e para a exportação desses produtos para outros países. Em contrapartida, alguns dos principais produtos exportados pelo Brasil para o Paraguai são: petróleo e seus derivados, produtos químicos, veículos, máquinas e equipamentos, produtos têxteis e alimentos como carne, açúcar e café. A relação comercial entre os dois países é beneficiada pela proximidade geográfica e pela integração regional, através do Mercosul. “O que eu tenho observado da postura dos candidatos é um objetivo comum em manter as relações com o Brasil em bases positivas. O Brasil é importante demais para a economia do país, portanto, seria muito arriscado tentar construir algum tipo de transformação nesse sentido que pudesse pôr em xeque essa relação especial”, aponta Brites. Na avaliação do professor da FGV, o governo Lula precisa observar com atenção o movimento de aproximação entre Paraguai e China. “Não acho que seja uma ameaça imediata, mas o temor é que isso afaste um pouco o país vizinho das relações comerciais com o Brasil e que isso atrapalhe o Mercosul.
2023-04-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1zly2gn2po
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A megaestrada que ligará Brasil e Chile cruzando 'inferno verde' no Paraguai
"É um novo Canal do Panamá". É assim que Egon Neufeld descreve o corredor bioceânico, um gigantesco projeto de infraestrutura que tentará ligar a costa do oceano Pacífico no Chile com a costa atlântica no Brasil. Neufeld, um rico proprietário de vastas terras no Paraguai, diz que a rodovia – que terá cerca de 2.200 quilômetros e cortará Argentina, Brasil, Chile e Paraguai – facilitará a vida dos fazendeiros e camponeses da região no transporte de gado e na exportação de produtos de exportação aos portos que estão no Atlântico e no Pacífico. Os governos de cada um dos países envolvidos no projeto manifestaram apoio, mas o presidente paraguaio, Mario Abdo, foi um de seus principais impulsores. "O Paraguai é o quarto maior exportador de soja do mundo. Para que a soja chegue ao Oceano Pacífico é preciso passar pelo Canal do Panamá. Com a nova rodovia pronta, haverá uma economia para todo o setor produtivo em cerca de 25% nos custos de logística", disse entusiasmado o presidente à BBC. Cerca de 525 quilômetros dessa nova rodovia passam pela região conhecida como Gran Chaco, uma das principais reservas ambientais do país, povoada por cerrados e zonas úmidas. Fim do Matérias recomendadas É o lar de onças, onças-pardas, tamanduás e milhares de espécies de plantas, um dos lugares de maior biodiversidade do planeta. Esse lugar nem sempre foi amado por aqueles que quiseram se estabelecer nessas terras. Quando os menonitas, uma comunidade cristã protestante, desembarcaram ali no início do século 20, eles o chamaram de "inferno verde". O avô de Neufeld foi um dos menonitas que se estabeleceram no Chaco em 1930, depois de escapar da perseguição na Ucrânia. Quase 100 anos depois, seu neto continua lutando contra o ambiente hostil. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O corredor bioceânico é um projeto de infraestrutura desenvolvido desde 2015 pelos governos da Argentina, Brasil, Paraguai e Chile para ligar quatro portos localizados no Oceano Pacífico – sendo eles Antofagasta, Mejillones, Tocopilla e Iquique – ao porto da cidade brasileira de Santos. Estima-se que a rodovia terá cerca de 2.200 quilômetros de extensão e o custo aproximado do investimento total é de US$ 10 bilhões. A rodovia cruzará as regiões do Mato Grosso do Sul no Brasil, Gran Chaco no Paraguai, as províncias de Salta e Jujuy na Argentina e as regiões de Antofagasta e Tarapacá no Chile. Cada país tem a responsabilidade de cumprir alguns trechos e prazos, porém não está claro qual é o prazo final para a conclusão do projeto. De fato, em janeiro deste ano, os presidentes do Brasil e do Chile, Lula e Gabriel Boric, confirmaram que iriam acelerar a construção dos trechos que correspondem aos seus territórios. Talvez um dos países que está mais avançado na execução dos projetos seja o Paraguai, que já tem um dos três trechos de seu território pronto. "O trecho um do corredor bioceânico, que está pronto, já permitiu um acesso muito mais fácil para os comércios, porque antes a estrada era de terra e quando chovia era difícil transitar. Agora você pode chegar facilmente às diferentes cidades menonitas e suas colônias", disse à BBC o engenheiro Alfredo Sánchez, porta-voz do governo para a questão do corredor. “Para nós, o maior problema é que temos que retirar o mato dos campos. Se você não cuidar, esse mato volta e toma conta de tudo”, explicou. Para Neufeld, a rodovia dará mais oportunidades de trabalho que atrairão pessoas de outras partes do Paraguai. Sua comunidade conseguiu se estabelecer com sucesso em algumas seções do "inferno verde", especialmente eles conseguiram construir uma lucrativa indústria de gado e laticínios, que agora são transportados em caminhões 4x4 e não em carroças puxadas por cavalos como em outras comunidades Mas o que para alguns é atrativo, para outros é preocupante. Taguide Picanerai, um jovem líder da comunidade indígena Ayoreo, uma das primeiras a habitar o Chaco, a comunidade já está sofrendo os efeitos do desmatamento, porque milhares de árvores foram derrubadas em razão da pecuária. Cerca de 20% da floresta do Gran Chaco, o equivalente à área do estado de Nova York, foi convertida em terras para pastagem de gado e produção agroindustrial desde 1985, segundo fotografias de satélite da NASA. “A nova rodovia vai significar mais criação de gado, o que leva a uma grande perda de biodiversidade”, diz Picanerai, acrescentando que também está preocupado com a perda de território dos Ayoreo. Ele explica que no passado os produtores se mudaram para os territórios ancestrais dos Ayoreo, impediram o acesso à água e restringiram o espaço de caça para as comunidades indígenas. A vida dos Ayoreo mudou significativamente em apenas uma geração. Os pais de Picanerai viviam na floresta impenetrável, onde caçavam javalis e tartarugas. A comunidade foi convencida por missionários americanos que vieram para o Paraguai na década de 1960 a abandonar a vida de caçadores, vestir roupas e se estabelecer com outras comunidades indígenas. E grande parte de suas terras foi vendida a fazendeiros e pecuaristas, o que levou a batalhas legais de anos para recuperar parte dessas terras para que a comunidade pudesse se restabelecer. "Esse território é vital para nós", declarou Picanerai. O presidente Abdo reconhece que a nova rodovia “aumentará a população no Chaco” e gerará “mais atividade comercial”. Mas ele acredita que, desde que as leis sejam cumpridas, o impacto será positivo. Ele disse à BBC que já existiam regras rígidas para os proprietários de terras, incluindo uma cláusula que estipulava que "o máximo que as pessoas podem desmatar no Chaco é 50% de seu latifúndio, e menos se a biodiversidade da área for considerada mais delicada”. Para o ambientalista Miguel Lovera, essas medidas não são suficientes. “A construção de novas estradas leva a um maior desmatamento e derrubada de florestas em pequenos trechos, o que coloca uma enorme pressão sobre o frágil ecossistema”, disse Lovera, que dirige uma organização que luta pela proteção de grupos indígenas no Chaco. Por outro lado, para Bianca Orqueda, jovem cantora e compositora do grupo indígena Nivaclé, a estrada tem alguns aspectos positivos. Orqueda, que dirige uma escola de música infantil na periferia da cidade menonita de Filadelfia, divide seu tempo entre sua comunidade e a capital do Paraguai, Assunção. E a rodovia a ajudará a encurtar os tempos de viagem. Ela não está convencida de que seja possível que sua comunidade continue vivendo isolada, acrescentando que os Nivaclé precisam "progresir", o que para alguns pode significar deixar o Chaco e seu modo de vida para trás. "Eu digo às crianças que, se quiserem ser médicas, arquitetas, dentistas ou musicistas, terão que sair assim que terminarem a escola e irem para outra cidade." "Aqui na Filadélfia não há universidades, não há nada a menos que você queira ir para a agricultura", disse Orqueda. Para Picanerai, a conservação do Chaco é mais do que apenas o modo de vida de sua comunidade indígena. “A rica biodiversidade do Chaco significa que é um problema global que deveria preocupar a todos”, comentou ele, acrescentando que está determinado a proteger sua terra dos recém-chegados que se mudarem para a região após o fim das obras da nova rodovia.
2023-04-23
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c6pz24dr843o
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Quem é a ex-enfermeira de Hugo Chávez condenada nos EUA a 15 anos de prisão
Claudia Patricia Díaz Guillén, ex-enfermeira do falecido presidente venezuelano Hugo Chávez, e o marido foram condenados na quarta-feira (19/04) a 15 anos de prisão e três anos de liberdade condicional por um tribunal da Flórida, nos Estados Unidos. A sentença estabelece que o casal deve devolver US$ 136 milhões em bens e dinheiro efetivo, equivalentes ao montante que obtiveram ao participar de um esquema de corrupção de lavagem de dinheiro que fez um rombo nos cofres do Estado venezuelano. Além disso, cada um deve pagar uma multa de US$ 75 mil. Em dezembro de 2022, Díaz Guillén havia sido considerada culpada de duas das três acusações de lavagem de dinheiro contra ela em um tribunal da Flórida. O marido dela, Adrián José Velásquez Figueroa, que foi chefe do Departamento de Segurança do palácio presidencial de Miraflores durante o governo de Chávez, foi considerado culpado das três acusações que pesavam contra ele. Fim do Matérias recomendadas A promotoria havia solicitado uma pena de 23 anos e 5 meses para ela, e de 19 anos e 5 meses para ele. Díaz Guillén foi membro da Guarda de Honra, órgão responsável pela segurança dos presidentes venezuelanos, e fez parte da equipe de médicos e enfermeiras que atendeu o falecido presidente, que acabou nomeando-a como tesoureira nacional, cargo no qual — de acordo com a promotoria dos EUA — conseguiu enriquecer por meio de um esquema de corrupção de lavagem de dinheiro. O julgamento dela foi a conclusão de um processo judicial que veio à tona em 2018, quando o casal foi detido em Madri, na Espanha, onde morava, devido a um pedido de extradição das autoridades venezuelanas que os acusava de lavagem de dinheiro e enriquecimento ilícito. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O pedido de Caracas não foi bem-sucedido, mas em 2022 as autoridades espanholas deram sinal verde a um pedido de extradição apresentado pelos Estados Unidos. Em entrevista à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, em dezembro de 2018, Díaz Guillén defendeu ter assumido esses cargos públicos por mérito próprio. Ela explicou que, paralelamente à sua carreira militar, estudou para se formar em enfermagem e direito na Universidade Central da Venezuela. Isso teria permitido a ela, depois de entrar para a Guarda de Honra em 2001, integrar a equipe de médicos e enfermeiros que cuidou de Chávez a partir de 2003. Embora tenha ressaltado que seu relacionamento com o então presidente era "puramente profissional", ela enfatizou na entrevista que "durante os oito anos em que trabalhou diretamente com ele nas funções de enfermagem, foi criada uma relação de respeito e amizade". Em 2011, ano em que Chávez foi diagnosticado com câncer, o presidente venezuelano nomeou Díaz Guillén como chefe do Tesouro Nacional e secretária-executiva do Fundo Nacional de Desenvolvimento (Fonden). Ela permaneceu no cargo até março de 2013, quando foi afastada por Nicolás Maduro. De acordo com a promotoria dos EUA, entre 2011 e 2013, Díaz Guillén recebeu pelo menos US$ 65 milhões em propina do empresário venezuelano Raúl Gorrín, dono do canal de notícias Globovisión, atualmente procurado pela Justiça americana. Supostamente, o pagamento desses recursos teria o objetivo de permitir que Gorrín realizasse operações de câmbio dentro do estrito sistema de controle cambial estabelecido por Chávez na Venezuela. Naquela época, dada a enorme diferença entre o preço oficial do dólar e a taxa não oficial, adquirir divisas ao preço preferencial fixado pelo governo e vendê-las no mercado paralelo era uma operação que podia gerar lucros substanciais. Díaz Guillén enfrentava acusações de conspiração para lavagem de dinheiro e de lavagem de dinheiro. As autoridades americanas veem o marido dela como uma peça fundamental para essas operações, já que parte da propina teria sido paga por meio de transferências em seu nome ou de empresas de sua propriedade. Diferentemente de muitos outros ex-funcionários do governo de Hugo Chávez que foram julgados nos Estados Unidos — como Alejandro Andrade, o tesoureiro nacional anterior —, Díaz Guillén não admitiu ser culpada dos crimes pelos quais foi acusada. Os advogados do casal dizem que eles pretendem recorrer da sentença.
2023-04-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn0677nll8vo
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Por que tantos brasileiros estão se mudando para o Paraguai
Quando tinha 17 anos, Felipe Monteiro soube na sua terra natal, a cidade de Mazagão, no Amapá, que um conterrâneo havia estudado Medicina no Paraguai e, hoje, exerce a profissão no Brasil. Agora, aos 24 anos, Monteiro cursa o quinto ano da faculdade de Medicina no país vizinho. Ele é um dos milhares de brasileiros que hoje se preparam para essa carreira no Paraguai. Os brasileiros são quase a totalidade entre os universitários de Medicina, de acordo com estimativas oficiais. “Na minha sala, somos 80 alunos e só 2 são paraguaios. Tem aluno de Santa Catarina, do Rio de Janeiro, de Rondônia, do Acre, do Amazonas”, conta Monteiro à reportagem. A carreira universitária é um dos vários exemplos da forte presença brasileira no Paraguai, onde os principais motores da economia - do agronegócio ao setor têxtil e de autopeças, entre outros - têm participação decisiva de investidores brasileiros, de acordo com autoridades do governo, empresários e analistas ouvidos pela BBC News Brasil. Fim do Matérias recomendadas E o que tem motivado essas mudanças? Estudantes relatam custos de estudo mais interessantes no Paraguai e empresários e investidores são atraídos pelo sistema de impostos, facilidades para exportação ao Brasil, oferta de energia elétrica e de mão de obra (leia mais relatos abaixo). A ampla presença brasileira hoje no Paraguai já não está restrita aos chamados “brasiguaios”, termo usado para se referir a brasileiros que se estabeleceram no país, principalmente, no setor da soja, explica o economista Fernando Masi, diretor do Centro de Análise e Difusão da Economia Paraguaia. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em 2021, segundo os dados mais recentes do Itamaraty, o Paraguai é o primeiro destino dos imigrantes brasileiros na América Latina, com cerca de 246 mil pessoas. O número representa quase 30 mil brasileiros a mais vivendo no país vizinho do que em 2016. Mas estimativas locais apontam que o número pode ser na realidade muito maior que o oficial, já que nem todos se registram nos consulados, que são a base para o levantamento do Itamaraty. A presença brasileira no Paraguai representa quase a metade do total de 596 mil brasileiros que moram em outros países da América do Sul. Com uma população de 6,7 milhões de habitantes, o Paraguai tem, por exemplo, praticamente o triplo de cidadãos do Brasil do que a Argentina, que tem quase 46 milhões de habitantes e, oficialmente, 90 mil brasileiros. No mundo, Paraguai é o terceiro país, depois dos Estados Unidos (1,9 milhão) e de Portugal (275 mil), com a maior comunidade brasileira. A maior concentração fica em Ciudad del Este, onde vivem 98 mil brasileiros, mais do que os 80 mil de Buenos Aires, segundo dados oficiais. O universitário Felipe Monteiro vive em Ciudad del Este, onde frequenta uma igreja evangélica fundada por brasileiros. Ele diz que se sente praticamente em casa. “Moro a dois quilômetros da Ponte da Amizade (que liga Ciudad del Este a Foz de Iguaçu, no Brasil), e, aqui, os paraguaios falam português”, afirma Monteiro, que pretende ser o primeiro médico da família. O preço da universidade e o custo de vida no Paraguai foram os motivos que o levaram a viver no país. “Tenho uma prima que estuda Medicina em uma universidade particular em Belém e paga mensalidade de R$ 8 mil reais. Aqui, comecei pagando R$ 1,2 mil e, agora, são R$ 1,9 mil, porque há um aumento anual à medida que passamos de ano. Mas é acessível”, diz. Seu colega no quinto ano de faculdade, o cearense Pedro Nogueira, de 38 anos, era formado e trabalhava como administrador de empresas quando vendeu o que tinha para estudar Medicina em outro país vizinho, a Argentina. Mas ele conta que a escalada inflacionária argentina o levou a pedir transferência para a na Universidade Integración de las Américas, no Paraguai. “Na Argentina, era inadmissível não falar espanhol na sala e nas provas orais. No Paraguai, é diferente. Todo mundo fala português. Hoje, agradeço a metodologia argentina. Mas ficou caro e pedi transferência para cá. Mesmo assim, está valendo muito a pena”, diz Nogueira. Ele calcula que, entre a mensalidade e os gastos cotidianos, incluindo aluguel, suas despesas giram em torno de R$ 3,5 mil. “Já vi gente no Brasil não disfarçar o preconceito quando contei que estudo Medicina no Paraguai. Mas meu plano é ser um médico como os outros que estudaram no Brasil ou em qualquer lugar. Tenho parentes médicos que estudaram na Bolívia, revalidaram o diploma e, hoje, exercem a profissão no Brasil”, afirma. O Conselho Nacional de Educação Superior (Cones), responsável pela educação universitária no Paraguai, estima que 30 mil estudantes cursem Medicina nas universidades públicas e privadas paraguaias, “dos quais 95% a 97% seriam de origem brasileira”. A maioria dos universitários brasileiros está concentrada, principalmente, nas universidades privadas, segundo a assessoria de imprensa do Cones. De acordo com o órgão paraguaio, houve um boom de novas instituições privadas de ensino superior no país entre 2006 e 2010, com a abertura de 28 universidades e 23 institutos superiores, a maioria na área da saúde. No âmbito empresarial e de investimentos, o Paraguai é visto como um “eldorado”, como define o diretor da Câmara de Comércio Paraguai Brasil, Junio Dantas, à BBC News Brasil. “É um país que oferece muitas oportunidades, principalmente para os Estados vizinhos, como o Paraná, Mato Grosso do Sul e também Santa Catarina. O Paraguai é um país que dá uma vantagem competitiva muito grande na parte fiscal.” Dantas, que tem uma empresa de tecnologia no país, diz que há brasileiros em todas as áreas, principalmente no agronegócio. “A mão de obra aqui é abundante. É muito bom trabalhar com os paraguaios. A energia elétrica é muito barata, porque é abundante. A proximidade com o Brasil ajuda bastante e o sistema de impostos torna o país atraente e competitivo para investimentos”, diz. O Paraguai compartilha a hidrelétrica de Itaipu com o Brasil e a de Yacyretá com a Argentina. O país possui leis de incentivo fiscal e de geração das chamadas maquilas, que fazem parte da cadeia produtiva entre os dois países, como explica à BBC News Brasil o vice-ministro de Indústria do Ministério da Indústria e Comércio, Francisco Ruiz Díaz. As maquilas paraguaias foram criadas para atrair investimentos e gerar empregos, diz Ruiz Díaz. Nesse regime, as empresas importam insumos que são usados em uma fábrica no Paraguai e os exportam transformados no produto final, sem pagar impostos e pagando apenas 1% como seguro da operação realizada, explica o vice-ministro. A inspiração para este modelo veio do sistema mexicano em sua aliança comercial com os Estados Unidos. “Setenta por cento das exportações do Paraguai para o Brasil são resultado da maquila. Um exemplo é o setor têxtil. As empresas brasileiras trazem a linha do Brasil, fabricam o tecido aqui e o enviam para as confecções no Brasil”, afirma. Os brasileiros, diz o vice-ministro, estão presentes nas áreas de bioetanol, de grãos e de carnes, por exemplo. “No caso da carne bovina, temos aqui frigoríficos brasileiros que exportam o produto para o Brasil e outros países”, afirma. Dantas, da Câmara de Comércio Paraguai Brasil, diz que a entidade estima que cerca de 400 mil brasileiros estejam presentes no Paraguai, principalmente na região da fronteira – número bem maior do que o contabilizado pelo Itamaraty. Mas por que esta forte presença brasileira no país vizinho? Ruiz Díaz diz que isso é resultado de um processo que se acelerou a partir de 2003-2004, com o boom das commodities. Ele lembra que, até os anos 1940, o Paraguai era um país dependente das exportações para a Argentina. Mas, nas décadas seguintes, sucessivos governos passaram a buscar maior aproximação com o Brasil, com a estratégia de aumentar a população na região de fronteira, com o estímulo da distribuição de terras. No entanto, com as dificuldades geradas pela falta de infraestrutura, muitos desistiram desses terrenos ou os venderam por preços baixos. Com o passar dos anos, esta região passou a prosperar, e leis criadas nos anos 1990, diz o vice-ministro, como as de incentivos fiscais e de maquila, passaram a ser aproveitadas nos anos 2000 – principalmente pelos investidores brasileiros, quando começaram a precisar de máquinas para desenvolver seus empreendimentos no território paraguaio. Ruiz Díaz acrescenta que as sucessivas crises econômicas argentinas acabaram complicando a aproximação e o intercâmbio com esse outro país vizinho. “Quando a gente olha para a história do Brasil e da Argentina, o Paraguai é, entre todos os países do Mercosul, o que mais demorou em se desenvolver”, diz. Para ele, seu país passou a ser atraente não só pela simplificação fiscal, mas pelas oportunidades que existem no país. “Quando olhamos os números...Em 2003, na área de maquila, as exportações eram de US$ 5 milhões (anuais) e, agora, superam US$ 1 bilhão. Vinte vezes mais”, disse. Para Ruiz Díaz, no caso das maquilas, ou maquiladoras, a guinada ocorreu a partir de 2013, com a instalação de empresas de autopeças no Paraguai que exportam o produto às montadoras no Brasil. “O Paraguai tem energia abundante e a mais barata da região, mão de obra farta, um sistema de impostos amigável, vantajoso. Isso permitiu que o Brasil se abastecesse de matéria-prima em condições muito competitivas.” O país conta hoje com a presença de empresas de vários países além do Brasil, como Japão, Alemanha e Estados Unidos. Além da maquila e do sistema de impostos, Ruiz Díaz aponta que as reformas econômicas, que incluíram metas inflacionárias e fiscais, foram realizadas nos anos 2000 e mantidas ao longo deste tempo, contribuindo para gerar confiança entre investidores estrangeiros. Fernando Masi, do Cadep, diz, porém, que o próximo governo, que será eleito no dia 30 de abril, deverá buscar alternativas para ampliar a arrecadação de impostos para os investimentos necessários em infraestrutura e na área social. “A arrecadação tributária é muito baixa no Paraguai. Mas seja quem for, o eleito manterá a mesma política de equilibro macroeconômico que vem sendo aplicada no país”, afirma. Segundo Masi, a expectativa é que a economia paraguaia cresça entre 4,5% e 5% em 2023, bem acima da previsão de 1,4% para o Brasil, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Um dos principais desafios do Paraguai, disse o analista, é combater a pobreza, que atinge 27% da população, e a desigualdade social. Masi acrescenta que a presença brasileira é hoje “muito mais visível” e diversificada do que até recentemente. “Antes, eram os chamados brasiguaios, que se dedicavam ao cultivo da soja. Hoje, são investidores em frigoríficos, em maquila, que está concentrada principalmente em autopeças, têxtil e plástico e gera muitos empregos no Paraguai. E, agora, estão também os estudantes, com uma forte presença em diferentes áreas, nos últimos dez anos”, diz o analista. Dantas, da Câmara de Comércio Paraguai Brasil, que já morou em países da África e em Portugal e se estabeleceu no país vizinho há 25 anos, observa que a presença brasileira está sendo decisiva para a industrialização do Paraguai. “São mais de 200 maquiladoras operando no país. Entre 70% e 80% são de origem brasileira, o que demonstra a força do empresariado brasileiro no Paraguai.”
2023-04-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c5181je4plvo
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A disputa entre China e EUA por lítio na América Latina
Mais da metade do lítio mundial está na Argentina, Bolívia e Chile, um triângulo que tem despertado o interesse de governos e investidores que querem entrar nesses mercados. Países como China e Estados Unidos não querem perder a oportunidade de contar com um metal fundamental para fabricar as baterias usadas nos carros elétricos, um mercado em expansão e no qual entram cada vez mais investidores. “As principais potências estão lutando para obter os minerais necessários para a transição energética e a América Latina é um importante campo de batalha”, diz Benjamin Gedan, diretor do Programa América Latina do centro de estudos Wilson Center, à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC). "Os Estados Unidos chegaram atrasados ​​à festa e Washington está claramente ansioso pela vantagem inicial da China", acrescenta. Empresas chinesas estão há anos procurando lugares para estocar o chamado ouro branco em diferentes partes do mundo, principalmente na América Latina, onde estão as maiores reservas mundiais do metal. Fim do Matérias recomendadas A Bolívia lidera a lista com reservas conhecidas estimadas em 21 milhões de toneladas, seguida pela Argentina (19,3 milhões) e Chile (9,6 milhões), segundo o Serviço Geológico dos Estados Unidos. E o México, embora tenha apenas 1,7 milhão de toneladas (nono lugar da lista), se tornou uma figura relevante na América do Norte, não só pela proximidade geográfica com os Estados Unidos e Canadá, mas também porque está se tornando um centro produtor para carros elétricos (principalmente após o recente anúncio de gigantes que instalarão fábricas em seu território, como Tesla e BMW). A general Laura Richardson, chefe do Comando Sul dos Estados Unidos, alertou que a China "continua a expandir sua influência econômica, diplomática, tecnológica, informativa e militar na América Latina e no Caribe", durante uma apresentação perante o Comitê de Serviços Armados da Câmara de Representantes em março. "Esta região está cheia de recursos e me preocupa a atividade maligna de nossos adversários se aproveitando disso. Parece que eles estão investindo quando na verdade estão extraindo", argumentou Richardson. Sobre o “triângulo de lítio” na América do Sul, formado por Argentina, Bolívia e Chile, ela disse que “a agressividade da China e seu jogo no terreno com o lítio é muito avançado e muito agressivo”. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Assim como os Estados Unidos e outros países embarcam em seu plano de recuperar parte de sua independência energética, a China também se prepara há vários anos de olho nos minerais mais cobiçados pelo comércio global, entre eles o lítio. "A China tem um alto grau de dependência externa de alguns recursos minerais importantes e, uma vez que a situação internacional mude, certamente afetará a segurança econômica ou mesmo a segurança nacional", disse o ministro de Recursos Naturais, Wang Guanghua, no início de janeiro. em uma entrevista à agência de notícias estatal Xinhua. O governo incluiu 24 minerais estratégicos em seu Plano Nacional de Recursos Minerais publicado em 2016. Entre eles estão metais como ferro, cobre, alumínio, ouro, níquel, cobalto, lítio e terras raras, além de recursos energéticos tradicionais como petróleo, gás natural, gás de xisto e carvão. O plano observa que os minerais são essenciais para "salvaguardar a segurança econômica nacional, a segurança da defesa nacional e o desenvolvimento de indústrias emergentes estratégicas". Enquanto as empresas chinesas avançam na América do Sul com gigantescos investimentos em mineração, os países do triângulo pretendem aproveitar a tecnologia e o capital das empresas chinesas com o objetivo de promover o desenvolvimento industrial local. Só nos primeiros três meses deste ano, empresas chinesas fecharam acordos ambiciosos para investir na Bolívia, Argentina e no Chile. Na Bolívia, as empresas chinesas CATL, BRUNP e CMOC comprometeram cerca de US$ 1 bilhão em projetos de lítio nos departamentos de Potosí e Oruro, segundo o centro de estudos Atlantic Council. Na Argentina, a Chery Automobile vai investir cerca de US$ 400 milhões na construção de uma fábrica para a produção de veículos elétricos, possivelmente em Rosário. E no Chile, as empresas Tsingshan Holding Group, Ruipu Energy, Battero Tech e FoxESS se comprometeram a investir em um parque industrial de lítio na cidade de Antofagasta, por um valor ainda desconhecido. A relação comercial entre Argentina e China está cada vez mais estreita na mineração de lítio, com o anúncio de pelo menos nove projetos de investimento só em 2022 nas áreas de Salta, Catamarca e Jujuy. De acordo com o diretor associado do centro de estudos Adrienne Arsht Latin America Center do Atlantic Council, Pepe Zhang, "os Estados Unidos estão buscando ativamente fortalecer sua posição nas cadeias globais de fornecimento de minerais críticos e tecnologias verdes". Nesse contexto, “o lítio está se mostrando uma área cada vez mais crítica na competição tecnológica e geopolítica entre os Estados Unidos e a China”, diz à BBC News Mundo. E a China vai com o pé no acelerador. Este ano, estima Zhang, será um período importante para os investimentos minerais do gigante asiático na região. As projeções indicam que os US$ 1,4 bilhão comprometidos para este ano superariam o investimento de US$ 1,1 bilhão em 2021 e 2020. "Só em janeiro, vimos três empresas chinesas se comprometerem com um investimento de US$ 1 bilhão na Bolívia", diz o pesquisador. A Casa Branca também estabeleceu explicitamente a garantia de uma cadeia de abastecimento mineral como uma de suas prioridades por razões estratégicas. “Minerais críticos fornecem os alicerces para muitas tecnologias modernas e são essenciais para nossa segurança nacional e prosperidade econômica”, disse o governo de Joe Biden em um comunicado no ano passado. Isso inclui minerais como lítio, cobalto e terras raras, utilizados em diversos produtos, desde computadores a eletrodomésticos, e que são insumos fundamentais para a produção de tecnologias como baterias e veículos elétricos, turbinas eólicas ou painéis solares. Enquanto parte do mundo tenta progredir na transição para uma energia mais limpa, a demanda global por esses minerais críticos "disparará entre 400% e 600% nas próximas décadas", diz o texto. E, acrescenta, para minerais como o lítio e o grafite, “a procura vai aumentar ainda mais, até cerca de 4.000%”. “A China leva vantagem pela disposição de Pequim de investir na produção de baterias na América Latina”, argumenta Gedan. Enquanto "os Estados Unidos estão focados principalmente na aquisição de matérias-primas para as empresas americanas construírem tecnologias ecológicas". Diante desse dilema, é provável que os países latino-americanos considerem a oferta asiática mais atrativa do que o modelo tradicional de exportação de suas commodities com muito pouco valor agregado. "Os Estados Unidos estão claramente ansiosos para recuperar o atraso", diz o especialista. "Não é de admirar que a América do Sul se encontre em um cabo de guerra entre Washington e Pequim."
2023-04-16
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0vz35p4pqgo
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A bebida de origem indígena banida na Colômbia
"Sabia que você está infringindo a lei bebendo isso?" Enquanto me provocava com a questão, minha guia de viagem Andrea Izquierdo colocava uma jarra cheia de uma bebida espumante, cor de pêssego claro, na mesa de degustação à nossa frente. Estamos na Casa Galeria, um restaurante no distrito da Candelária, em Bogotá – o centro histórico e colorido da capital colombiana. E a substância ilegal que ela estava pronta para me servir chama-se chicha, uma bebida indígena feita de milho fermentado, popular em boa parte da América Latina. Eu havia ouvido falar que a chicha era uma bebida non grata na Colômbia, mas achei que fosse brincadeira. "Metade dos lugares por aqui vende chicha, incluindo os vendedores nas ruas em todo canto", argumentei. "Como pode ser ilegal?" Izquierdo trouxe a jarra mais para perto, para que eu pudesse examinar a bebida com mais cuidado. Cheirei o líquido – o aroma lembra cerveja, kombucha e suco misturados, o mais inocente dos brindes. "Acredite ou não, a chicha foi proibida no final dos anos 1940 e, desde então, é ilegal na Colômbia", afirma Izquierdo. É claro que ela tinha razão. Parte das tradições indígenas, a bebida foi considerada vilã por mais de um século e oficialmente proibida em 1949. A alegação é que ela tornaria as pessoas violentas e ignorantes, devido a toxinas perigosas criadas durante a fermentação. Afirmava-se que ela causaria uma doença chamada chichismo, uma lenta deterioração do corpo e da mente. Por quase toda a segunda metade do século 20, sempre que as autoridades encontravam pessoas produzindo chicha, o equipamento era confiscado, os líquidos eram descartados e os produtores eram presos. Pessoas que fossem encontradas bebendo chicha também corriam risco de prisão. "As pessoas não passavam anos presas por essas infrações, mas eles podiam manter você na cadeia por seis meses a um ano", segundo Izquierdo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para entender como a bebida se tornou sinônimo de doença, é preciso conhecer, em primeiro lugar, como estava se desenvolvendo a sociedade colombiana, em diversos aspectos. Séculos antes da chegada dos europeus, o povo originário muisca habitava o alto planalto montanhoso onde hoje fica a cidade de Bogotá. Os muiscas produziam chicha usando seu processo tradicional. As mulheres mascavam o milho e cuspiam a mistura em uma tigela de argila para fermentar. O processo de fermentação era iniciado pela saliva. Elas então enterravam a tigela coberta no solo para que permanecesse fresca. E, depois de cerca de duas semanas, a tigela era desenterrada, já com a mistura amarelada espessa e levemente alcoólica. "É importante observar que nem todas as mulheres podiam mascar milho para produzir chicha", explica Izquierdo. "Somente as mulheres sábias da comunidade podiam fazê-lo, para passar para a chicha sua sabedoria, que seria ingerida por outras pessoas." Mascar grandes quantidades de milho exigia tempo e esforço. Por isso, a chicha era originariamente produzida em quantidades relativamente pequenas e reservada apenas para certas cerimônias ou celebrações especiais. "As mulheres se sentavam e simplesmente mascavam, mascavam e mascavam, muito conscientes do que estavam fazendo", explica Izquierdo. "Elas começavam pelo menos 15 dias antes da ocasião, para que pudessem mascar em quantidade suficiente." Quando a bebida estava pronta, a tigela de chicha comunitária era passada pelas pessoas e cada um tomava o seu gole. Posteriormente, as pessoas aprenderam a moer o milho em vez de mascar e começaram a produzir chicha em quantidades maiores. Ela acabou se tornando uma bebida comum, que as pessoas carregavam em cabaças para beber. Izquierdo explica que, depois de secas, as cabaças endurecem e podem ser usadas para guardar líquidos. Ela dispôs alguns copos pequenos feitos com cabaças e cordões sobre a mesa, oferecendo-me um deles. "Os viajantes colocavam esses copos em volta do pescoço e, quando chegavam a uma aldeia ou faziam uma parada para descanso, as pessoas podiam despejar um pouco de chicha para eles", conta. No século 19, a bebida era parte integrante da alimentação das pessoas na Colômbia. Os produtores a fabricavam comercialmente. Eles mergulhavam e moíam o milho, misturando caldo de cana – um ingrediente que, historicamente, não fazia parte do processo, mas intensificava a fermentação e a produção. Naquela época, a chicha era considerada uma bebida saudável, segundo o historiador Stefan Pohl-Valero, da Faculdade de Medicina e Ciências da Saúde da Universidade Del Rosario, em Bogotá. As pessoas acreditavam que ela fortalecia as pessoas. No final dos anos 1820, o professor de medicina José María Merizalde estudou as propriedades científicas da chicha e escreveu que o "vinho colombiano" definitivamente tinha um valor "nutritivo". "O vigor que os indígenas [andinos] adquirem com a chicha não é inferior ao que os europeus adquirem com o vinho e a cerveja", segundo Merizalde, citado por Pohl-Valero no seu estudo intitulado The Scientific Lives of Chicha (“As vidas científicas da chicha”, em tradução livre), de 2020. Além de vitaminas, a bebida contém alto teor de açúcares e carboidratos fornecedores de energia. "Pode não ser muito bom para nós hoje em dia, mas os trabalhadores que realizavam trabalho físico o dia inteiro precisavam dela", afirmou Pohl-Valero. A chicha, às vezes, era descrita como "pão líquido". Seguindo as instruções de Izquierdo, peguei uma das cabaças marrons arredondadas e a pendurei no pescoço como um pingente. Segurei o copo, que ela encheu, e tomei um gole. Levemente azeda e espumosa, a chicha poderia ser mais bem descrita como um gosto adquirido. E também é mais espessa – eu quase conseguia mastigá-la. De fato, é um pão líquido. "Mas por que ela foi transformada em vilã?", perguntei. Em 1889, o imigrante alemão Leo S. Kopp abriu em Bogotá a Cervejaria Bavaria, o primeiro grande fabricante de cerveja da Colômbia. E, coincidência ou não, no mesmo ano, o médico Liborio Zerda, que trabalhava no laboratório de química da faculdade de medicina de Bogotá, afirmou que a chicha era tóxica. Zerda havia sido aluno de Merizalde, mas sua visão sobre a chicha era diferente. Ele a considerava prejudicial devido aos "princípios tóxicos, alcaloides ou ácidos, que são produzidos durante a terrível fermentação do milho para a preparação da chicha", segundo Pohl-Valero, citando Zerda no seu estudo. Josué Gómez, colega de Zerda do Hospital da Caridade de Bogotá, uniu-se às críticas, cunhando o termo chichismo – uma doença causada pela chicha, caracterizada por "pigmentação da pele", "olhar triste, lânguido e estúpido" e cheiro "pútrido" do corpo. Os dois médicos anunciaram que os dependentes de chicha – os enchichados – perdiam sua energia e a vontade de trabalhar, desintegrando-se lentamente – um problema de proporções nacionais, segundo eles, levando à "degeneração racial" do povo colombiano. "Assim, a chicha foi patologizada", segundo Pohl-Valero. Não se sabe ao certo se a patologia foi sancionada pelo governo ou não, mas muitos colombianos acreditam que a Cervejaria Bavaria mantinha políticos no bolso. De qualquer forma, o apoio dos médicos certamente ajudou as campanhas publicitárias da Bavaria, incluindo cartazes que anunciavam “Chega de chincha, tome cerveja!”. As imagens mostravam adultos sadios e até crianças sorvendo a bebida dourada, fermentada sem saliva, nem toxinas, e de forma higiênica – em canecas ou garrafas individuais, no lugar das tigelas compartilhadas. A chicha, no entanto, sobreviveu ao assédio. Ela se manteve até o século 20, quando o candidato liberal à presidência da Colômbia Jorge Eliécer Gaitán foi assassinado em 1948, o que levou o país a um longo período de instabilidade civil. Alguns políticos culparam a "condição patológica dos pobres, resultante do consumo de chicha", pelo levante, segundo Pohl-Valero. O Escritório de Assuntos Interamericanos (agência norte-americana que promoveu o comércio pan-americano nos anos 1940) também participou da luta contra a chicha. "Eles produziram alguns cartazes muito famosos", afirma Pohl-Valero. "E, assim, a chicha foi criminalizada." Um cartaz dizia que "a chicha deixa você burro". "A chicha causa o crime!", dizia outro, mostrando uma faca coberta de sangue. "As prisões estão cheias de pessoas que tomam chicha!", dizia ainda um terceiro, mostrando um prisioneiro e uma mulher chorando. Um ano depois, o ministro da Higiene, Jorge Bejarano, sancionou uma lei proibindo a produção e a venda de chicha na Colômbia. Todas as chicherías – lugares que produziam ou serviam a bebida – desapareceram da noite para o dia. Estendi a mão com minha cabaça vazia e Izquierdo a encheu novamente. Enquanto eu tomava a bebida azeda, mantendo-a sob o meu palato, não conseguia imaginar como a tradição sobreviveu. "Como as pessoas conseguiram preservar a bebida?", perguntei. "Os produtores de chicha viraram clandestinos", explicou Izquierdo, da mesma forma que fizeram os contrabandistas durante a Lei Seca, nos Estados Unidos. As pessoas não podiam visitar as chicherías, mas iam às casas dos amigos e vizinhos. "E, é claro, todos conheciam os melhores produtores de chicha, de forma que as pessoas batiam à porta e perguntavam 'você tem chicha?', ela conta. Se os produtores conhecessem você, eles vendiam a bebida. Eles colocavam as garrafas em sacos de papel, como se fossem pães, para camuflá-las. "As grandes fábricas fecharam porque eram facilmente controladas, mas as famílias continuaram a produzir a bebida", acrescenta Pohl-Valero. "Paradoxalmente, o bairro de trabalhadores construído pela Cervejaria Bavaria [em volta dela] era onde acontecia a produção e consumo da chicha." E foi também nas vizinhanças da cervejaria que a chicha fez seu primeiro retorno oficial, cerca de 40 anos depois. "Em algum momento nos anos 1980, o bairro organizou um festival que servia chicha por um dia, em uma ocasião especial", conta Pohl-Valero. Ele destaca que nem todos ficaram felizes. Muitas pessoas acharam aquilo um retrocesso, após décadas de combate à substância perigosa. Mas a chicha retornou nos anos que se seguiram, estabelecendo lentamente seu retorno, gota a gota, à lista de bebidas aceitas na Colômbia. "Era preciso que acontecesse um dia", afirma Izquierdo. "Porque você não pode proibir as pessoas de comer o que quiserem, ou beber o que quiserem. Você simplesmente não pode proibir algo que é tão natural para as pessoas." A proibição segue em vigor, mas ela explica que é possível vender e consumir chicha no centro da capital hoje em dia. "Mas, como ainda é proibida, não podemos regulamentar sua produção." Por isso, não existem regulamentos oficiais para controlar o processo. As receitas são preservadas por gerações de famílias de produtores de chicha e podem variar de um parente para outro. Alguns produtores acrescentam maracujá, outros misturam mirtilos e ainda outros, abacaxi. E muitas chicherías ostentam uma série de garrafas variadas, com suas cores formando um arco-íris. "Se não há regulamentação, como saber se um lugar está servindo chicha adequadamente produzida?", perguntei. "Você precisa saber quem a produziu", responde Andrea Izquierdo. As diversas gerações de produtores que preservaram as receitas em décadas de opressão orgulham-se das suas tradições. Eles conduziram o processo em tempos sombrios. Eles protegeram a receita, apesar do risco de prisão se a usassem. As receitas passaram da avó para a mãe e, dela, para a filha. Depois de terem passado por tudo isso, podemos ter certeza de que hoje estão produzindo sua melhor chicha, segundo Izquierdo.
2023-04-14
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51gm08jdzmo
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Chile reduz jornada semanal para 40h: quanto se trabalha no Brasil e no resto do mundo?
O Congresso chileno aprovou nesta terça-feira a redução da semana de trabalho semanal de 45 para 40 horas, tornando aquele país a nação latino-americana com a menor jornada de trabalho junto com o Equador. No Brasil, a jornada definida pela CLT é de 44 horas. A proposta, que foi sancionada pela Câmara dos Deputados após aprovação unânime no Senado, reduz gradativamente a jornada de trabalho ao longo de cinco anos. Um ano após a sua aplicação, a jornada de trabalho será reduzida para 44 horas semanais. Após três anos o limite será de 42 horas e após cinco anos chegará a 40 horas, que é a jornada de trabalho recomendada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). A lei chilena prevê a possibilidade de trabalhar quatro dias e descansar três (ao contrário da legislação atual que exige um mínimo de cinco dias úteis) e contempla a possibilidade de fazer no máximo 5 horas extras por semana (hoje o permitido é até 12 horas extras). Fabio Bertranou, diretor do escritório regional da OIT em Santiago, disse à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, que a lei contempla um regime especial para setores que exigem jornada extraordinária, como mineração ou transporte. Fim do Matérias recomendadas Nesses casos, os funcionários poderão trabalhar em jornadas de até 52 horas semanais, desde que posteriormente tenham um número maior de dias de folga para compensar. "A lei contempla a possibilidade de que as 40 horas semanais sejam alcançadas fazendo-se uma média de quatro semanas. Então, se uma semana for trabalhada a mais, o importante é que a média dê 40", explicou. Com esta lei, o Chile torna-se o segundo país da América Latina, depois do Equador, a aprovar a semana de trabalho recomendada pela OIT. Neste mapa você pode ver o que a legislação trabalhista estabelece no restante da região. Após esta aprovação, o Chile está alinhado com a maioria dos outros 38 países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), onde também está em vigor a jornada de trabalho de 40 horas semanais. As únicas exceções são Austrália, Bélgica, Dinamarca, França e Holanda, onde se trabalha menos de 40 horas, e Alemanha, Colômbia, Costa Rica, Irlanda, Israel, México, Reino Unido, Suíça e Turquia, onde se trabalha mais. Mas o que a lei diz é uma coisa e o que a realidade diz é outra. Embora a regulamentação vigente no Chile permita trabalhar até 45 horas semanais - jornada que foi reduzida de 48 horas em 2005 - as estatísticas da OIT mostram que a média de horas trabalhadas é muito menor. Segundo dados de janeiro de 2023, no Chile as pessoas ocupadas trabalhavam em média 36,8 horas semanais. Como você pode ver abaixo, esta é uma das menores médias da região. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast De fato - como você deve ter observado - a média de horas trabalhadas em toda a América Latina está bem abaixo do limite estabelecido por lei. Se fizermos uma comparação global, a média de horas semanais trabalhadas na América Latina e Caribe (39,9 horas) é bem menor do que nos países árabes (44,6 horas), Ásia-Pacífico (47,4 horas), Leste Asiático (48,8 horas ) e Sul da Ásia (49 horas). Em vez disso, é maior que a da Europa Ocidental (37,2 horas), América do Norte (37,9) e África (38,8 horas), de acordo com dados de 2019 compilados pela OIT. Isso significa que na América Latina, e no Chile em particular, pouco se trabalha? "Não", responde a especialista em horas de trabalho Najati Ghosheh, que trabalha na sede da OIT em Genebra, na Suíça. “O que acontece é que em alguns países só se mede o tempo trabalhado no setor formal e não no marginal , onde há mais trabalhadores que só conseguem empregos por hora, o que baixa a média”, explicou à BBC Mundo. Segundo Bertranou, os dados fornecidos pelo Chile incluem o setor informal, que representa 27% dos trabalhadores. Da força de trabalho total, cerca de 45% trabalham uma semana de 45 horas , mas mais de 40% trabalham menos de 35 horas. Enquanto isso, 11% trabalham acima do máximo permitido por lei hoje, com jornadas que ultrapassam 49 horas semanais. Bertranou destacou que a reforma trabalhista chilena foi alcançada graças ao fato de que "foi aberto um espaço de diálogo com o setor empresarial" e houve um consenso na sociedade chilena sobre a importância de "liberar tempo para ter mais vida familiar e estar capaz de usufruir do espaço público”. Segundo a OIT, que aprovou sua convenção sobre a jornada de 40 horas em 1935, trabalhar mais aumenta o número de acidentes de trabalho e problemas de saúde , mas não garante mais produtividade, pois há mais cansaço. “A América Latina tem uma legislação atrasada em relação à jornada de trabalho e é imperativo que se faça uma revisão”, recomendou Bertranou.
2023-04-11
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1y59v4g5ko
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O que está em jogo para América Latina ao apoiar Rússia ou Ucrânia na guerra
A invasão da Ucrânia pela Rússia dividiu o mapa geopolítico do mundo. Como se fosse um jogo de xadrez, as duas forças envolvidas na guerra movem suas peças de maneira cautelosa para reunir o maior apoio possível. Nessa complexa equação, a América Latina não é exceção e despertou o interesse tanto de Moscou quanto de Kiev. O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, se reuniu virtualmente com alguns dos líderes da região, incluindo o presidente do Chile, Gabriel Boric, com quem conversou em 21 de março. Os dois discutiram a possibilidade de conseguir "maior consolidação" do apoio dos países latinos a seu país. Neste esforço, o líder ucraniano falou ao Congresso chileno, naquela que foi sua primeira intervenção perante um parlamento latino-americano. Fim do Matérias recomendadas Em julho de 2022, o único encontro pessoal de Zelensky com um presidente da região foi realizado em Kiev, quando ele conheceu seu colega Alejandro Giammattei, da Guatemala. Vladimir Putin, por sua vez, continuou estreitando laços com ex-aliados, como Venezuela, Nicarágua e Cuba, além de lançar uma campanha de comunicação a seu favor através da mídia estatal com presença em diferentes países da região. Apesar desses esforços, a posição da maioria dos países latino-americanos à Rússia ou à Ucrânia tem sido ambíguo, no mínimo. Especialistas em relações internacionais descreveram essa posição como "neutra", lembrando o longo histórico de "não-alinhamento" em grandes conflitos de poder. Ainda assim, é preciso reconhecer que houve alguns sinais importantes a favor de Kiev. Em fevereiro, a maior parte da região votou a favor da resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas que pedia o fim das hostilidades e exigia que a Rússia "retirasse imediata, completa e incondicionalmente suas forças militares do território da Ucrânia". Até agora, no entanto, nenhum país latino-americano foi além de declarações diplomáticas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Exemplo disso é a recusa de alguns países em enviar armas para a Ucrânia, apesar das pressões dos Estados Unidos e da Alemanha. Até o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, se ofereceu para substituir as armas militares dos países latino-americanos (fabricadas na Rússia) por um arsenal americano mais moderno. Mas a proposta não foi bem-sucedida. "Mesmo que elas acabem como sucata na Colômbia, não entregaremos as armas russas para serem levadas à Ucrânia para prolongar a guerra", respondeu Gustavo Petro, presidente da Colômbia. "Não estamos de nenhum lado. Somos pela paz", acrescentou. Resposta semelhante foi dada por outros presidentes, como o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e seu colega argentino Alberto Fernández, em decisão que foi interpretada por Moscou como um gesto simpático da região para seu país. Por outro lado, apesar de Zelensky ter pedido à América Latina que introduzisse sanções contra a Rússia, a grande maioria dos países não atendeu ao pedido. O que está por trás dessa suposta "neutralidade"? E o que está em jogo para os vários países latino-americanos quando se trata de apoiar a Rússia ou a Ucrânia no conflito? A BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, listou 4 pontos-chave que respondem a essas perguntas. Desde o início da guerra, o relacionamento da Rússia com a China tem sido fundamental para resistir a essa pressão. Pequim absorveu grande parte das exportações russas de hidrocarbonetos, amenizando assim o impacto das sanções ocidentais na economia do país euro-asiático. Segundo o governo dos Estados Unidos, Xi Jinping considera agora a possibilidade de enviar armas e munições para a Rússia, algo que o governo chinês nega categoricamente. Ainda que Xi Jinping se esforce para se posicionar como um facilitador da paz — e não como um forte aliado de Putin —, a verdade é que seus sinais amistosos ao Kremlin colocaram o mundo em alerta, inclusive a América Latina, que atualmente mantém estreitas relações comerciais com os chineses. Só nos últimos 20 anos — entre 2000 e 2020 — o comércio entre a região e a China aumentou 26 vezes, passando de US$ 12 bilhões para US$ 310 bilhões, segundo dados das Nações Unidas. Para vários países da América do Sul — como Chile, Peru, Colômbia, Brasil e Argentina —, a China é hoje um parceiro essencial para o qual se dirige grande parte das exportações, como minerais (incluindo cobre) ou alimentos (como soja). Por isso, os especialistas ouvidos pela BBC News Mundo concordam que a amizade de Xi Jinping com Putin deve ser acompanhada de perto pelas nações latino-americanas. "Dada a influência que a China tem em termos econômicos na América Latina, e especialmente na América do Sul, eles devem levar em conta essa situação e pensar em como o apoio a um ou outro país pode afetá-los", diz Margaret Myer, diretora do Departamento de Ásia e América Latina no Centro de Estudos do Diálogo Interamericano. “Acho que é parte das razões que explicam por que o Brasil não tem criticado fortemente o que está acontecendo com a guerra na Ucrânia”, acrescenta. Para Pamela Aróstica, diretora da Rede China e América Latina: Abordagens Multidisciplinares (Redcaem), não se pode ignorar que a invasão russa à Ucrânia ocorre em um contexto de guerra comercial entre Estados Unidos e China. “É uma questão muito mais profunda", diz. "Eles estão em uma competição para saber quem será a superpotência nos próximos anos. E é por isso que é tão importante para a China ter um bloco oriental. Ela precisa de aliados do calibre de países como a Rússia e regiões inteiras como a América Latina", diz. Doutora em Ciência Política, Aróstica acrescenta: "Já passou o tempo das sutilezas, agora é muito mais frontal. Somos amigos ou não? Estão comigo ou não? É por isso que muitos países latino-americanos mantiveram uma atitude ambivalente por medo das consequências". Aróstica diz que também é preciso ter em mente a crise econômica que atinge muitos países latino-americanos e o papel da China como fonte de empréstimos. "Os países precisam avaliar a irritação da China e as implicações que isso pode ter ao querer acessar, por exemplo, um empréstimo." Visão semelhante é compartilhada por John Griffiths, chefe de Estudos de Segurança e Defesa da Fundação AthenaLab, um think tank chileno focado em assuntos internacionais, segurança e defesa. "No campo estratégico, todo país latino-americano deve considerar sua relação com a China para realizar sua política de relações exteriores. E há alguns interesses que têm feito com que várias nações da região não condenem com mais veemência a agressão da Rússia contra a Ucrânia", afirma. Embora os laços comerciais diretos entre a Rússia e a América Latina não sejam tão difundidos - representa, por exemplo, apenas 0,6% das exportações da região -, existem alguns países e setores que podem sofrer um impacto maior em caso de rompimento das relações com Moscou. Manteiga, salmão, queijo e frutas como maçã, banana e pera, que são produzidas em lugares como Paraguai, Chile, Argentina, Equador, Brasil e Colômbia, têm a Rússia como um de seus principais destinos. Em relação às importações, embora a Rússia também tenha uma baixa participação global no continente, envia alguns produtos estratégicos para a produção. É o caso dos fertilizantes, fundamentais para produtores agrícolas como Argentina e Brasil. No ano passado, de fato, Putin garantiu ao então presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PL) que a Rússia estava "comprometida" em garantir o "fornecimento ininterrupto" de fertilizantes. O Brasil importa mais de 80% dos fertilizantes que utiliza e a Rússia é o principal fornecedor. Segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), a Rússia também é um "importante fornecedor de alguns insumos essenciais para a produção de conversores catalíticos e semicondutores". Portanto, a escassez pode pressionar ainda mais o setor automotivo, setor que já enfrenta restrições de insumos. Mas, para além do estritamente econômico e comercial, a verdade é que a Rússia também mantém relações políticas de longa data na região que não são fáceis de romper. Um pequeno, mas relevante grupo de países latino-americanos demonstrou simpatia direta e aberta pela posição da Rússia no conflito. A Venezuela é um deles, já que a Rússia é um pilar importante para política e questões militares do país. Cuba, Nicarágua e Bolívia também expressaram seu apoio a Putin em oposição aos Estados Unidos. Por outro lado, é importante notar que a guerra na Ucrânia coincide com a chegada de uma nova onda de presidentes de esquerda à América Latina, apoiados por coalizões que historicamente têm afinidade com a então União Soviética. Desde 2018, a presidência do México, Argentina, Bolívia, Peru, Honduras, Chile, Colômbia é ocupada por esses líderes. Já Lula, do PT, assumiu no início deste ano após derrotar Bolsonaro. “Muitos desses países historicamente estiveram alinhados com a Rússia. Portanto, não é tão fácil para os governos dizerem que são a favor da Ucrânia”, aponta Pamela Aróstica. Já Luis Beneduzi, especialista em questões latino-americanas da Universidade Ca' Foscari de Veneza, acredita que "para muitos líderes, estar com a Ucrânia é estar com os Estados Unidos". “A história do imperialismo estadunidense é muito importante para pensar na reação desses países que hoje vivem uma mudança progressiva”, acrescenta. O caso de Gabriel Boric, no Chile, talvez seja uma posição que quebra essa regra, já que desde o início do conflito ele foi enfático em condenar Putin pela invasão. Mas, segundo especialistas consultados pela BBC News Mundo, os demais líderes têm dado fracos sinais de apoio. Lula, por exemplo, agora se oferece como mediador pela paz. No entanto, segundo analistas internacionais, sua posição pode acabar favorecendo Moscou. "As tentativas de mediação provavelmente vão favorecer a Rússia. A Ucrânia precisa lutar para libertar seus cidadãos. Moscou pode concordar com um cessar-fogo para 'congelar' a linha de frente e manter o controle dos territórios ocupados, enquanto espera ganhar força e confiança suficientes para avançar", diz Keir Giles, consultor-sênior do Programa Rússia e Eurásia da Chatam House. Assim, apesar de muitos insistirem em chamar a América Latina de "quintal" dos Estados Unidos, a verdade é que a multiplicidade de posições em relação à invasão russa da Ucrânia mostra que Moscou ainda desperta simpatia no continente. Mas não é tão fácil para a América Latina virar as costas para a Ucrânia, fortemente apoiada pelos Estados Unidos e pelo Ocidente. Existem laços comerciais, políticos e militares profundos e duradouros com esses blocos. Em termos comerciais, por exemplo, 42% das exportações totais da região (equivalente a 8,5% do PIB regional) vão para os Estados Unidos, superando até a China. Segundo a Cepal, a União Europeia atrai 9% das exportações, e somente em 2022 aumentou 26% em relação ao ano anterior. Os principais parceiros comerciais dos Estados Unidos são México, Brasil, Chile, Colômbia e Peru. O México é especialmente importante nesse cenário porque, ao compartilhar uma fronteira de mais de 3 mil quilômetros com os Estados Unidos, possui um vínculo que vai muito além das relações diplomáticas e oficiais. Eles não só são parceiros comerciais estratégicos: de acordo com o Departamento de Estado dos EUA, em 2021, o comércio de bens e serviços entre os dois países ultrapassou US$ 720 bilhões, tornando o México o segundo maior parceiro comercial dos Estados Unidos. Por outro lado, os dois países vizinhos também precisam lidar com questões complexas, como a imigração e a cooperação em matéria de segurança. Embora o presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, não tenha cedido às pressões da Ucrânia para impor sanções econômicas e políticas à Rússia — e também não quis enviar armas a Kiev —, ele votou a favor da resolução da ONU que pedia à Rússia o fim da hostilidade contra a Ucrânia, em fevereiro. Desta forma, Obrador tem feito malabarismos para tentar permanecer o mais neutro possível, argumentando que seu país é pela "paz e diálogo". Por outro lado, um elemento importante que vários países latino-americanos devem levar em conta ao analisar seu apoio à Ucrânia é a forte relação do ponto de vista militar com o Ocidente. Essa é a opinião da cientista política e especialista em relações internacionais Paulina Astroza. “Há uma parte importante dos países latino-americanos que sempre vai acompanhar os Estados Unidos por uma questão de segurança. É o caso da Colômbia ou de muitos países da América Central que dependem militarmente dos Estados Unidos”, diz Astroza. Uma opinião semelhante é mantida por John Griffiths. “A Força Aérea do Chile, por exemplo, depende de sua aliança com os Estados Unidos, de sua frota de caças F16. A Marinha do Chile também é muito dependente do Ocidente, e o Exército tem uma frota blindada que é alemã. Peru, Brasil e Colômbia são mais ou menos parecidos. A Colômbia tem uma relação de décadas com os Estados Unidos, e não é porque hoje existe um governo ideologicamente de esquerda que essa relação desapareceu", diz. Os especialistas concordam que, apesar dos fortes laços que várias nações latino-americanas têm com países ocidentais, a Ucrânia e os líderes que a apoiam — como Joe Biden — ainda esperam um sinal mais claro de apoio da região. E essa pressão, acrescentam, só continuará a aumentar enquanto a guerra não acabar. Há outro elemento importante que os países latino-americanos devem avaliar ao apoiar a Rússia ou a Ucrânia: o que seus próprios cidadãos pensam sobre a guerra. Neste ponto, é fundamental ter em mente que, para muitos latino-americanos, este é um conflito distante, explica Juan Pablo Toro, membro do Royal United Service Institute (RUSI), instituição sediada no Reino Unido que reúne especialistas em defesa e segurança. "Dada a crise de segurança na América Latina, as pessoas se perguntam por que dar importância para uma guerra a milhares de quilômetros de distância se não podem sair às ruas por causa do domínio do narcotráfico. Em relação às questões de segurança, a prioridade começa pela interna", aponta. Assim, explica, há mais incentivos para adotar uma posição neutra diante do conflito. "Dizer às pessoas que o que está em jogo aqui é legalidade, soberania e um sistema internacional baseado em regras é muito difícil. Além disso, ninguém sabe o que vai acontecer e, no final das contas, apoiar a Ucrânia é se indispor com um inimigo que também é amigo de China", diz Toro, que também é diretor-executivo da AthenaLab. Por outro lado, os governos latino-americanos — muitos deles de esquerda — foram pressionados por suas próprias coalizões políticas. É o caso de Boric, que chegou ao poder pelas mãos do Partido Comunista Chileno (PC). Durante a invasão russa, em fevereiro de 2022, este partido condenou a Rússia, mas também os Estados Unidos e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) pelos seus “desejos expansionistas” que, segundo eles, “aumentaram o perigo de guerra”. Além disso, o partido se opôs ao discurso do líder ucraniano perante o parlamento chileno, criando um problema interno para Boric. "A decisão de Boric de apoiar a Ucrânia com tanta força gerou custos e intimidações de sua própria base de apoio", diz Paz Zárate, advogado chileno especializado em direito internacional público. "Boric assumiu um compromisso pessoal com os direitos humanos, independentemente do país. Talvez não sinta, como outros presidentes latino-americanos, uma identificação com os tempos soviéticos", acrescenta. Mais de um ano após a invasão russa da Ucrânia, analistas de política internacional concordam que a cada dia haverá mais pressão para que os países latino-americanos tomem uma posição definitiva sobre a guerra. Embora a neutralidade possa ser um bom aliado para muitos países da região, as grandes potências estão ansiosas para exibir seu apoio em um mundo cada vez mais polarizado e, às vezes, ao estilo da Guerra Fria.
2023-04-11
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c149zkkvp88o
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Em quais países latino-americanos o porte de armas é legal — e como isso afetou a violência
Em novembro de 2011, um criminoso colocou uma arma na cabeça de Eugenio Weigend Vargas para roubar seu carro e sua carteira, entre outros pertences, na cidade mexicana de Monterrey. Depois que Weigend relata a experiência traumática, algumas pessoas costumam perguntar o que teria acontecido se ele tivesse uma arma. "Eles provavelmente teriam me tirado a arma também", responde o especialista em prevenção de lesões por arma de fogo da Universidade de Michigan. Weigend afirma que muitos grupos que defendem a flexibilização do porte de armas de fogo tendem a vender o "mito" de que ela estabelece a igualdade entre o criminoso e o cidadão. O presidente equatoriano, Guillermo Lasso, parece pensar o contrário: no início de abril, o Equador se tornou um dos países latino-americanos com leis mais flexíveis em relação ao porte e posse de armas de fogo. Fim do Matérias recomendadas Em mensagem à nação, Lasso anunciou que estava autorizando "posse e porte de armas de uso civil para defesa pessoal de acordo com os requisitos da lei e dos regulamentos". Ele descreve a lei como uma "medida urgente" para combater o "inimigo comum" do Equador: "a delinquência, o narcotráfico e o crime organizado". O porte de armas no Equador está contemplado na legislação desde a década de 1980, mas em 2009, sob a presidência de Rafael Correa, o porte de armas foi suspenso por tempo indeterminado — mas não a posse de armas, que sempre foi mantida por exigências legais. Como funciona em outros países da região? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Há uma diferença importante entre possuir uma arma e portar uma. A posse consiste em ter uma arma para defesa pessoal ou para outras atividades como a caça. Normalmente, essa arma não pode ser removida de casa ou de um determinado local. Por outro lado, o conceito de porte de arma é utilizado para se referir à autorização que uma pessoa recebe para se movimentar com uma arma que adquiriu legalmente. O porte de armas por alguns cidadãos é garantido constitucionalmente — com muitas restrições e condições — na Guatemala, Haiti e México, enquanto em Honduras foi autorizado por uma lei aprovada no início do século. Na ilha de Porto Rico, que é um território não incorporado dos EUA, também é legal portar armas. Mas mesmo nesses locais o setor é estritamente regulamentado. Embora os mexicanos tenham o direito constitucional de possuir armas, há apenas uma loja que as vende no país, localizada na Cidade do México. Já no Haiti é praticamente impossível para um civil obter uma licença atualmente porque o sistema de licenciamento entrou em colapso há alguns anos. Na Colômbia, o governo de Gustavo Petro proibiu o porte de armas em dezembro do ano passado por meio de um decreto que foi prorrogado até 31 de dezembro deste ano. A Venezuela, uma das nações com mais homicídios do mundo, proibiu a venda privada de armas de fogo (com algumas exceções) em 2012, parou de emitir novas licenças de armas de fogo em 2013 e proibiu o porte de armas de fogo em locais públicos em 2017. No restante da América Latina, o porte de armas está limitado às forças e órgãos de segurança e aos cidadãos que alegam motivos de defesa pessoal e/ou para atividades desportivas ou de caça. Mas eles precisam adquirir uma licença que, em tese, é difícil de se obter. Argentina, Brasil, Chile, Costa Rica, Panamá, Paraguai, República Dominicana e Uruguai permitem a posse de armas por civis, mas é necessária uma licença. Outros países, como Bolívia, Colômbia, Cuba e Peru, também exigem uma justificativa plausível para se ter uma arma. "A América Latina é a região com a política de armas mais restritiva do mundo. É um setor com muitas limitações", disse à BBC News Mundo Carlos Pérez Ricart, pesquisador do Centro de Pesquisa e Ensino Econômico (CIDE), na Cidade do México. "Em geral, os países latino-americanos têm regras muito restritivas para a posse de armas, porque a região segue uma tradição de desarmamento desde meados do século passado, como resultado de várias guerras civis ocorridas na região", diz o especialista em segurança, crime organizado e tráfico de armas. "A questão de que as armas tinham que ser monopolizadas pelo exército e pela polícia foi internalizada." No entanto, segundo a ONU, 37% dos homicídios de todo o planeta estão concentrados no continente americano, onde vive apenas 8% da população mundial. Embora a maioria dos países latino-americanos mantenha medidas rígidas de controle de armas, esses esforços são prejudicados pelo fluxo ilícito de material que chega do exterior, especialmente dos EUA. Segundo dados do Departamento de Justiça dos Estados Unidos para o ano de 2017, pelo menos um terço das armas de fogo apreendidas no México, El Salvador, Honduras, Panamá e Nicarágua tinham origem nos EUA. Diversos casos mostraram como muitas armas compradas nos EUA acabam na América Latina. Em maio de 2022, um tribunal do Texas condenou Charles Anthony Lecara a mais de sete anos de prisão por liderar uma quadrilha de tráfico de armas com sede no Texas. Nos EUA, a rede era operada por pessoas que diziam comprar armas de fogo populares entre os cartéis e diziam que era para uso pessoal. Essas armas acabaram nas mãos de Lecara, que as enviava para cartéis do México. Em outro caso, em agosto de 2020, as autoridades do Estado americano da Flórida prenderam dois cidadãos venezuelanos após encontrarem um estoque de armas de fogo em um avião particular que havia declarado São Vicente e Granadinas (sul do Caribe) como destino, mas na verdade se dirigia para a Venezuela. Carlos Pérez Ricart, da CIDE, explica que inicialmente a "cultura de paz" promovida pelos governos latino-americanos em meados do século 20, que buscavam garantir que as pessoas não portassem armas, funcionou em alguns países. "Mas, infelizmente, durante a Guerra Fria e especialmente durante as guerras civis da América Central, um grande número de armas foi importado da Rússia, China e EUA, que acabou sendo vendido, uma vez que as guerras terminaram, para organizações e grupos guerrilheiros na Colômbia, Peru e outros países da América Latina." "Desde então, os homicídios na América Latina viraram uma constante e a região tornou-se a mais violenta do mundo." Eugenio Weigend, da Universidade de Michigan, alerta que dar acesso a armas de fogo à população civil também pode gerar um ciclo de violência. "Vamos supor que o cidadão consiga parar o criminoso e atirar nele. A violência não pode parar por aí. O criminoso faz parte da sociedade. Ele tem família, amigos e talvez pertença a uma quadrilha que possivelmente vai se vingar", diz. "Muitas vezes, nada disso é levado em consideração nas discussões legislativas e isso é perigoso." Pérez Ricart afirma que mais armas em um contexto urbano de narcotráfico estimula a violência. Essa é uma teoria que ele apoiou com o estudo Mais armas, mais violência? Evidências de uma relação complexa da América Latina, publicado no ano passado. "A equação 'mais armas é igual a mais violência' não é verdadeira em qualquer contexto, mas mais armas em lugares violentos como cidades latino-americanas levam a mais violência." O especialista da CIDE insiste que não há um único caso, em um contexto de "muito crime" como os centros urbanos latino-americanos, em que o aumento do número de armas tenha ajudado a reduzir a violência. Um caso recente que serve de exemplo fora da região são os EUA, diz Eugenio Weigend, da Universidade de Michigan. Nos EUA, as vendas de armas dispararam durante a pandemia de covid-19. De acordo com a Small Arms Analytic, os americanos compraram cerca de 23 milhões de armas de fogo em 2020, um aumento de 65% em relação a 2019. No mesmo período, foram registrados mais de 19,4 mil homicídios com armas de fogo, o que representou um aumento de 25%, segundo dados da organização norte-americana Gun Violence Archive (GVA). Pérez Ricart prevê que "muito provavelmente" o mesmo acontecerá no Equador. "As evidências mostram que a medida do governo equatoriano levará a um aumento significativo no número de homicídios, suicídios, acidentes e, em geral, mortes por armas de fogo."
2023-04-10
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cl46rv274l3o
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Por que 'Bolsonaro do Paraguai' tem dificuldade para crescer na disputa pela Presidência
O vídeo no Instagram mostra a imagem de um senador paraguaio arremessando água no rosto de um colega no meio de uma sessão da chamada Cámara Alta, o Senado do país. No fundo toca a música Rockstar, do fenômeno do trap argentino Duki: "¿Qué quién me creo que soy? / El mejor al menos en estos días / Cada liga tiene su Jordan" ("Quem acho que sou? / O melhor, pelo menos nesses dias / Cada liga tem seu [Michael] Jordan", em tradução literal). É assim que Paraguayo Cubas - ou Payo Cubas, como é conhecido -, de 61 anos, apresenta-se como candidato na disputa pela Presidência do Paraguai. A eleição acontece no próximo dia 30 de abril. Político veterano, Cubas se apresenta como candidato antissistema, rejeita as instituições tradicionais da política, tem um discurso centrado na intolerância, uma retórica de combate à corrupção e se comunica com seus eleitores principalmente por meio das redes sociais. Fim do Matérias recomendadas Características como essas o aproximam de figuras como o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro - mas ele possui uma série de particularidades, pontua Andrei Roman, do instituto de pesquisas Atlas Intel. "Existe uma certa ambiguidade em seu posicionamento político. Assim como, historicamente, o populismo latino-americano se vestiu de diversas formas, ele também tem essa tradição de ambiguidade do populismo do nosso continente", avalia. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Apesar de ter um discurso mais alinhado com a direita, o ex-senador já falou em legalizar a maconha no Paraguai e defendeu a reforma agrária, ainda que em uma versão bastante "desconexa e heterogênea", na definição de Pedro Feliú Ribeiro, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP). "Ele também não tem um vínculo com os militares, uma diferença central em relação a Bolsonaro. As Forças Armadas no Paraguai, aliás, têm um vínculo enorme com os colorados", diz ele, referindo-se ao Partido Colorado, que há anos governa o país de forma quase ininterrupta. O ditador Alfredo Stroessner, no poder entre 1954 e 1989, era filiado ao partido. Ao lado do Partido Liberal, o Colorado (conhecido também pela sigla ANR, de Asociación Nacional Republicana) está há mais de um século no centro da política paraguaia. E esta é, de certa forma, uma particularidade do país. Ao contrário do que acontece no Brasil - e em vários dos países da América do Sul -, no Paraguai há uma identificação forte da população com partidos políticos. Os filiados aos dois partidos, segundo ele, somam cerca de 75% dos quase 5 milhões de eleitores do país. "Quando você faz 16, 17 anos, a família inscreve no seu partido. É uma filiação afetiva." Não por acaso, os dois candidatos à frente nas pesquisas de intenção de voto são das duas legendas. Santiago Peña concorre pelo Colorado e Efraín Alegre, pelo Liberal. Cubas aparece com 14,5% no mais recente levantamento do Atlas, de 5 de abril, em terceiro lugar. Um desempenho que, na avaliação de cientistas políticos ouvidos pela reportagem, de um lado reflete as particularidades da estrutura político-partidária do Paraguai e, de outro, pode ser sintoma de crise no sistema político e da influência cada vez maior das redes sociais na comunicação e articulação política. Um cenário acompanhado de perto por observadores brasileiros, dada a importância crescente da relação entre os dois vizinhos. O próximo presidente paraguaio terá de lidar com a renegociação do acordo da hidrelétrica de Itaipu com o Brasil e com os problemas trazidos pela atuação de grupos brasileiros do crime organizado no país. "Ainda que jogue sozinho, Payo Cubas não é um outsider na política", diz o cientista político Marcos Pérez Talia, referindo-se ao currículo do candidato. Cubas foi deputado entre 1993 e 1998 e desde então se candidatou a diversos cargos políticos, de prefeito (intendente) de Ciudad del Este a governador do departamento de Alto Paraná - até conseguir se eleger senador em 2017 pelo recém-criado Movimento Cruzada Nacional (hoje Partido Cruzada Nacional). A essa altura, já era uma figura polêmica. Em 2016, fora detido depois de pichar a sede da promotoria de Justiça em Ciudad del Este em uma manifestação contra a corrupção e chegou a defecar na sala do juiz encarregado do caso em uma audiência. Nos meses seguintes, empreendeu o que chamou de “rallys de grafite”, em que pichava os muros das casas de autoridades supostamente envolvidas em corrupção. Uma vez eleito, não abandonou o estilo. Com frequência tirava o cinto da calça para batê-lo no chão como um chicote ou empunhá-lo como símbolo de uma suposta luta contra corruptos e bandidos. Ele também agredia verbalmente os colegas no Congresso. "No Senado, ele tentou fazer alguns acordos, mas logo quebrou com todo mundo, numa lógica absolutamente conflitiva", diz Pedro Feliú Ribeiro, do Instituto de Relações Internacionais da USP. "Ele não quis ou não soube construir pontes no Senado e, depois de algumas escaramuças, foi expulso do Congresso e perdeu o mandato", acrescenta Talia. Apesar de isolado politicamente e de não ter efetivamente um programa de governo, Cubas aparece em terceiro lugar na pesquisa da Atlas, com 14,5% da preferência dos eleitores. Essa parcela, segundo Roman, concentra homens jovens e com renda abaixo da média, público que se demonstra mais receptivo à retórica do candidato - um "discurso improvisado", mas que muitas vezes acaba entrando "em sintonia com um desejo de mudança entre setores da sociedade que se sentem marginalizados, que sentem que o sistema político no país favorece os segmentos mais privilegiados". Dentro do universo de insatisfeitos que o candidato parece aglutinar, o cientista político Marcos Pérez Talia destaca dois grupos: aqueles decepcionados com as legendas nas quais tradicionalmente votavam e os desencantados com a política. Ainda que a identificação com os partidos políticos permaneça como um traço da sociedade paraguaia, há um descontentamento crescente em relação à política tradicional, sentimento que é alimentado por denúncias de corrupção em diversas esferas da política, inclusive no alto escalão do governo. O atual presidente, Mario Abdo Benítez, que é do Partido Colorado, tem um nível de rejeição alto e quase sofreu impeachment em 2021. Seu antecessor e correligionário, Horácio Cartes, foi colocado em uma lista de corruptos elaborada pelo governo americano e virou réu em um dos desdobramentos da Operação Lava Jato no Brasil por suspeita de ter ajudado na fuga do doleiro Darío Messer. "Segundo a pesquisa da Atlas, o Partido Colorado tem por volta de 36% [das intenções de voto], quando em 2013 e 2018 superou 45%. Com a feroz crise interna e externa da qual padece a sigla, Payo Cubas também pode estar capitalizando o descontente colorado que não quer votar em Santiago Peña", diz Talia. Em outra frente, acrescenta, ele "também pode estar ativando melhor o eleitorado antissistema e o voto de protesto". "Nas últimas eleições gerais, em 2018, apenas 62% dos eleitores compareceram às urnas. Talvez [sua intenção de voto] se alimente daí", conclui. "Há um enorme descontentamento social", comenta. Alijado da estrutura político-partidária, Payo Cubas usa as redes sociais como instrumento preferencial para se comunicar com seu eleitorado. "Por uma questão de radicalismo, por ter chegado em situações muito extremas em alguns casos, com instalação de discursos de ódio, ataque político, nos últimos tempos ele foi marginalizado do debate público midiático e acabou encontrando uma via bastante livre nas redes sociais", diz Leonardo Gómez Berniga, advogado e membro da Tedic, organização dedicada a defender e promover direitos humanos nos meios digitais. Ele acrescenta que o discurso mais radical, os conteúdos que despertam polarização, os ataques de ódio e as informações tendenciosas - que por uma série de razões acabam gerando engajamento e tendo grande alcance nas redes sociais - têm estado mais presente nas plataformas de diversos candidatos paraguaios, mas particularmente de Cubas. E, ainda que o acesso à internet seja limitado no país, que tem uma grande parcela da população entre pobres e vulneráveis, redes como WhatsApp e Facebook acabam tendo uma grande penetração porque têm muitas vezes o uso gratuito dentro dos pacotes de dados vendidos pelas operadoras de celular. Nesse contexto, para Berniga, há hoje uma lacuna da legislação eleitoral paraguaia em relação às redes sociais e uma grande necessidade de discussão sobre gastos de políticos nas plataformas, mecanismos de controle e de transparência. Ainda que Cubas, segundo indicam as pesquisas, possa estar capitalizando parte da insatisfação do eleitorado, seu desempenho ainda é muito modesto quando comparado aos líderes Santiago Peña e Efraín Alegre, que têm 36,4% e 38,1% das intenções de voto, respectivamente, conforme o levantamento do Atlas Intel, empatados dentro da margem de erro que é de dois pontos percentuais. Uma das razões colocadas pelos especialistas é o fenômeno da identificação partidária, que é muito forte no Paraguai. E a maneira como o Partido Colorado se estruturou e cresceu com o passar das décadas, aglutinando grupos de diferentes matizes ideológicas, contribui para a manutenção, em alguma medida, dessa identificação, afirma Andrei Roman. Um exemplo ilustrativo, ele diz, aconteceu durante as eleições primárias da sigla, quando os políticos que postularam a vaga de candidato à presidência pelo partido tentaram se posicionar como alternativas de mudança ao atual presidente, Mario Abdo Benítez. Santiago Peña é aliado de Horacio Cartes, que, apesar de ser correligionário de Benítez, se tornou uma espécie de desafeto político do atual presidente. "Existe um discurso de renovação política por dentro do Partido Colorado." "Mesmo que isso tenha certos limites no quanto você consegue articular um discurso de mudança sendo do mesmo partido que o atual mandatário", ressalva. Outro fator relevante que limita o potencial de crescimento do candidato, e que pode reduzir significativamente seus votos nas urnas no dia 30, é o fato de que não há segundo turno na disputa para presidente no Paraguai - quem tem o maior número de votos vence o pleito, independentemente do percentual. Nesse contexto, o voto útil pode mudar muito o retrato trazido pelas pesquisas no decorrer da disputa. Caso os eleitores descontentes com o Partido Colorado, que governa o país, acreditem que o opositor Efraín Alegre tem chances reais de derrotá-lo, por exemplo, podem migrar seus votos para o candidato, ainda que não tivessem preferência por ele inicialmente. Na visão de Lachi, é muito difícil quebrar a hegemonia dos dois principais partidos do país - o que torna as chances de qualquer candidato fora desse eixo ganhar as eleições algo muito pouco provável. Talia concorda. Ele afirma que os partidos tradicionais paraguaios não estão em crise como outras siglas na região e ainda têm um enraizamento forte no eleitorado. "Por isso, uma candidatura fora das organizações partidárias, como a de Payo, não tem chance de competir com sucesso diante das de Santiago Peña e Efraín Alegre."
2023-04-09
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxep3nrj0m4o
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'Ser católico na Nicarágua é risco': como disputa entre governo e Igreja levou a veto a festas da Semana Santa
"Não mencione meu nome ou minha comunidade religiosa." Esta é a primeira coisa que pede Jaime, um nicaraguense que frequenta a Igreja Católica há 24 anos e que pede para ser identificado com um nome fictício. “Ser católico na Nicarágua, neste tempo de perseguição, é um risco”, diz ele à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC. A conversa, realizada por meio do aplicativo de mensagens Telegram por questões de segurança, acontece dias antes daquela que será a primeira Semana Santa na Nicarágua sem procissões religiosas em espaços públicos. Trata-se de mais um ato da disputa entre o governo do presidente Daniel Ortega e a Igreja Católica. Fim do Matérias recomendadas A proibição foi revelada pelo bispo da diocese nicaraguense de León e Chinandega, Sócrates René Sandigo, através de um áudio enviado aos sacerdotes e divulgado pela imprensa local há algumas semanas. "Muitos foram informados pela autoridade que a Via Sacra só pode ser feita internamente ou no átrio da igreja. Outros ainda não [foram informados]. Portanto, é preferível que todos façamos a Via Sacra dentro do templo ou no átrio em que mantemos essa comunhão", orientou Sandigo. A Via Sacra é uma reconstituição religiosa católica, feita para lembrar o sofrimento de Jesus Cristo, de sua condenação à morte, passando pela crucificação e o sepultamento de seu corpo. Uma fonte eclesiástica da Arquidiocese de Manágua disse ao jornal La Prensa que, depois da missa da Quarta-feira de Cinzas, em fevereiro, as autoridades policiais comunicaram "que não havia permissão para fazer a Via Sacra por motivos de segurança". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Poucos dias antes, Ortega – que está no poder há 14 anos – havia atacado o clero da Igreja Católica, dizendo tratar-se de uma "máfia" e uma organização antidemocrática. Suas palavras vieram em repúdio às declarações do Papa Francisco, que lamentou a sentença de 26 anos de prisão contra o bispo Rolando Álvarez e pediu uma "busca sincera" pela paz por parte dos atores políticos da Nicarágua. "Se vamos falar de democracia (...), o povo deveria primeiro eleger os padres da cidade, depois os bispos, os cardeais, e teria que haver uma votação entre o povo católico de todos os lugares para que o papa também seja eleito pelo voto direto do povo", disse Ortega. “Deixe o povo decidir e não a máfia que está organizada no Vaticano!”, enfatizou. A presença maciça de paroquianos nos últimos atos da Quarta-feira de Cinzas pode ter desencadeado a proibição. Naquele 22 de fevereiro, as principais igrejas estavam lotadas em um gesto de desagravo à prisão de Rolando Álvarez. "O regime pensou ter derrotado a Igreja Católica após a condenação contra monsenhor Álvarez. Mas naquele dia o povo saiu sem medo para ir à missa, numa demonstração de que a Igreja está mais forte do que nunca. Isso assustou o regime e por isso ele tomou a decisão de proibir as procissões", diz Jaime. Nesta mesma semana, a mídia nicaraguense noticiou o assédio sofrido por pessoas que queriam realizar a procissão de “Los Cirineos”, ou Cirineus, inspirada em Simão de Cirene, o homem que ajudou Jesus a carregar a cruz no caminho de Calvário. Tradicionalmente, a Semana Santa na Nicarágua é vivida como uma "grande festa da fé" que começa no Domingo de Ramos com a procissão da imagem de Cristo montado no burro. Inclui celebrações com crianças e jovens, a festa de renovação dos votos sacerdotais e se encerra com as festividades do Domingo de Páscoa. Agora, está proibida qualquer manifestação de fé fora das igrejas. "Não nos deixar manifestar nas procissões é algo difícil para as pessoas de fé, porque tem um grande significado espiritual. Para mim é uma violação da liberdade de crença. O que teremos agora será uma Semana Santa semelhante à que vivemos nos tempos da covid, onde as casas se tornaram templos. A fé é o único espaço de liberdade que nos resta na Nicarágua", diz Jaime. A tensão entre o governo Ortega e a Igreja Católica se exacerbou em 2018, quando o líder sandinista e a vice-presidente, sua esposa Rosario Murillo, solicitaram a mediação de membros do clero na revolta popular iniciada em 18 de abril daquele ano. O que começou como uma reivindicação contra reformas do sistema previdenciário desencadeou uma onda de protestos contra o governo de Ortega que durou seis meses e deixou mais de 300 mortos. Nesse período, várias organizações denunciaram excessos na repressão policial e a violação de direitos humanos por parte do governo, que por sua vez acusou a oposição de estar buscando um "golpe de Estado". No entanto, a instituição eclesiástica recusou-se a tomar partido do lado oficial. Em vez disso, pediu um diálogo nacional e rejeitou a violência nos protestos. Alguns padres chegaram a dar refúgio em suas igrejas a manifestantes que fugiam da repressão policial, ato que foi considerado por Ortega como uma traição. "Eu sei quem estava por trás das manobras, incentivando os crimes que, por princípio, como cristãos, como pastores, deveriam rejeitar totalmente", disse o presidente na época. "Eles não são nada cristãos e agem com mentalidade terrorista e criminosa, juntando-se alegremente ao golpe." O que aconteceu depois disso foi uma série de ataques que encurralou a Igreja. Foi ordenado o fechamento de oito emissoras católicas e três canais de televisão. O núncio apostólico, representante diplomático da Santa Sé no país, foi expulso. A personalidade jurídica da Associação das Missionárias da Caridade foi anulada, obrigando as freiras de Madre Teresa a deixar o país. Por fim, cerca de 60 religiosos fugiram ou foram expulsos da Nicarágua. "Por que Ortega tem tanto medo da Igreja? Por causa do impacto social que ela tem sobre os cidadãos", opina Jaime. "Desde a crise de 2018, tem sido a voz profética diante de tanta injustiça. A Igreja tem sido intermediária de ajuda material e espiritual e tem acompanhado os processos de violação dos direitos humanos. Não se curvou ao poder político." As tensões entre a Igreja Católica e o sandinismo liderado por Ortega são antigas. No início, as relações eram próximas, porque o clero serviu de mediador quando membros da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) derrubaram a ditadura de Anastasio Somoza em 1979 e conseguiram a libertação de presos políticos. Mas essa proximidade não durou muito. No início dos anos 1980, a Igreja Católica começou a denunciar a arbitrariedade da junta governamental presidida por Ortega. Então começaram os ataques. Alguns ainda se lembram da primeira visita do Papa João Paulo 2º à Nicarágua, em março de 1983, que acabou se tornando palco de confronto quando partidários do governo profanaram a missa celebrada pelo pontífice. "Os sandinistas sempre se sentiram marcados pela Igreja", diz Martha Patricia Molina, advogada e pesquisadora do relatório Nicarágua: uma igreja perseguida. "No entanto, existem algumas diferenças em relação a esses primeiros anos. Naquela época, os padres não eram criminalizados, não havia crimes forjados ou prisões. Muito menos sua nacionalidade era retirada", diz a pesquisadora, sobre a perda da cidadania ordenada contra opositores que foram enviados ao exílio em fevereiro. "O governo vem erradicando os espaços democráticos. A Igreja é o único bastião que resta, já que o clero não se dispôs a adulá-lo", diz Molina, crítica de Ortega. "Por isso insistem em dar mais um golpe para enfraquecê-la. Mas não vão eliminar a fé do povo." A Nicarágua é um país de maioria católica. Pelo menos 45% da população professa essa religião. Os demais se identificam como evangélicos e de outras crenças, segundo Molina. Além disso, a Igreja Católica aparece como uma das instituições de maior credibilidade entre os nicaraguenses, principalmente após os acontecimentos de 2018. É por isso que os paroquianos têm sido alvo de intimidação, diz Jaime. "Cada comunidade ou bairro tem seu CPC [Conselho do Poder Cidadão] que registra nomes e sobrenomes de católicos convictos. Estar nessas listas acarreta obstáculos para a realização de alguns processos civis, como tirar carteiras de habilitação, cédulas de identidade. Ou implica em riscos maiores, como prisão ou exílio", diz ele. Essa condenação atinge todos os que se relacionam com a Igreja Católica, diz Jaime. O governo chegou a proibir empresas privadas de prestar serviços a religiosos, segundo ele, sob pena de cassar suas licenças ou aplicar multas altas. "Algumas semanas atrás, fizemos uma atividade na igreja e ninguém quis nos alugar ônibus para transportar os participantes. Eles estão ameaçados", relata. Diante desta situação, o clima nas igrejas da Nicarágua deixou de ser de recolhimento. Já há algum tempo, se tornou tenso diante da presença de policiais à paisana que assistem a tudo para informar seus superiores sobre qualquer ato considerado subversivo. "Os padres estão proibidos de mencionar o nome de Rolando Álvarez nas homilias [preleção feita por um sacerdote durante uma missa]. Esses funcionários se encarregam de registrar o que é dito na cerimônia. E tiram fotos dos participantes para ter arquivos em caso de qualquer acusação." Essa pressão teve efeitos. Alguns paroquianos deixaram de ir à missa por medo, diz Jaime. E não há dúvida de que muitos vão preferir ficar em casa durante as festividades religiosas. Apesar do medo, Jaime decidiu viver a Semana Santa o quanto puder. "Vou participar das atividades dentro das igrejas, conforme a indicação dos padres", diz. A programação inclui a adoração da Santa Cruz na quinta-feira; a missa de crisma, onde os sacerdotes renovam seus votos; a via-crúcis penitencial; a leitura das sete palavras; o santo enterro na Sexta-feira Santa; a Vigília Pascal no sábado e a Missa de Páscoa no domingo. Alguns atos litúrgicos da Semana Santa podem ser cancelados no último minuto, especialmente depois que o governo decidiu romper relações com o Vaticano. Assim, Jaime planejou realizar algumas práticas em família, como ler a Bíblia, rezar o terço, jejuar e meditar. "Vou viver a Semana Santa com muita fé e esperança", afirma. "Eles tiraram meu último espaço de liberdade físico, mas não o espiritual ou mentalmente. Em tempos de perseguição, a igreja se fortalece. Para as pessoas de fé é um privilégio pertencer a uma organização que tem acompanhado seu povo de forma tão corajosa. Cada ataque contra a igreja representa, no fundo, uma derrota para este governo."
2023-04-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c137mplrl24o
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O que é a Unasul, que Lula quer 'reconstruir'
No discurso de abertura da reunião com os representantes dos países da América do Sul nesta terça-feira (30/5) em Brasília, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) falou em "voltar a olhar coletivamente para a nossa região". "Entendemos que a integração sul-americana é essencial para o fortalecimento da unidade da América Latina e do Caribe. Uma América do Sul forte, confiante e politicamente organizada amplia as possibilidades de afirmar, no plano internacional, uma verdadeira identidade latino-americana e caribenha", afirmou ele. Lula também lembrou da criação da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) em 2008 e disse que o órgão "permitiu que nos conhecêssemos melhor". Após criticar a postura diplomática brasileira em anos mais recentes, afirmando que o país "optou pelo isolamento do mundo e do seu entorno", o presidente falou em "reavivar o compromisso com a integração sul-americana". "A Unasul é um patrimônio coletivo. Lembremos que ela está em vigor. Sete países ainda são membros plenos. É importante retomar seu processo de construção", disse Lula. Fim do Matérias recomendadas O governo federal já havia anunciado em 7 de abril o retorno do Brasil à Unasul. Na prática, Lula reverteu uma decisão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que em 2019, retirou o Brasil, oficialmente, da instituição. Mas, afinal, o que é a Unasul e o que ela representa para a região? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A criação de um grupo que reunisse países da América do Sul começou a ser debatida em 2004, quando Lula estava em seu primeiro mandato. A Unasul só foi estabelecida, porém, quatro anos mais tarde, em 2008. O grupo foi inicialmente formado por doze países: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela. Sua sede fica em Quito, no Equador. De acordo com o seu tratado de criação, a Unasul tem como objetivos criar um espaço de "integração e união no âmbito cultural, social, econômico e político" entre seus países-membros e "com com vistas a eliminar a desigualdade socioeconômica" existente na região. A presidência do grupo é exercida por nomes indicados por seus países-membros em mandatos de um ano e trocados de forma rotativa seguindo a ordem alfabética dos nomes dos países. Entre as atribuições do grupo está a realização de reuniões entre chefes-de-Estado para debater questões que possam afetar a estabilidade da região e criar mecanismos que aumentem a integração econômica, financeira, política e social dos países-membros. Críticos, no entanto, argumentam que a Unasul tinha pouca efetividade e suas funções seriam pouco concretas e que alguns dos temas debatidos pelo grupo poderiam ser discutidos em outros fóruns já existentes. Nos últimos anos, diversos países suspenderam suas participações na Unasul ou deixaram a instituição. Até o anúncio do retorno do Brasil, a Unasul contava com apenas cinco dos 12 integrantes originais: Bolívia, Guiana, Suriname, Venezuela e Peru, que está suspenso. Em 2017, o grupo viveu um impasse depois que a Venezuela, com apoio da Bolívia, vetou o nome indicado pela Argentina para assumir a secretaria-geral da Unasul, paralisando, em parte, as atividades do organismo. Em meio à controvérsia, Brasil, Peru, Paraguai, Colômbia e Chile anunciaram a suspensão de suas participações na Unasul em meio a disputas sobre os rumos da instituição, em abril de 2018. O esvaziamento da Unasul aconteceu no mesmo momento em que houve uma mudança no perfil dos líderes de alguns dos países que compõem o grupo. À época em que foi criado, parte significativa dos países que compunham o órgão era comandada por políticos de esquerda ou centro-esquerda como Lula (Brasil), Michelle Bachellet (Chile), Hugo Chávez (Venezuela), Cristina Kirchner (Argentina), Evo Morales (Bolívia) e Rafael Correa (Equador). A partir de segunda metade da década do século 20, líderes de centro-esquerda foram substituídos por políticos de direita ou centro-direita. Foi o caso, por exemplo, de Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro, no Brasil, Maurício Macri, na Argentina e Sebastian Piñera, no Chile, em 2018. Em 2019, foi a vez do Equador se retirar do grupo. A situação ficou ainda mais sensível depois que o então presidente do país, Lenín Moreno, pediu a devolução do prédio onde funcionava a sede da Unasul e anunciou que não faria mais nenhuma contribuição financeira à instituição. Moreno era um político de centro-esquerda, mas era adversário político de seu antecessor, Rafael Correa, um dos fundadores da Unasul. A saída oficial do Brasil da Unasul aconteceu em 2019, durante o governo do então presidente Jair Bolsonaro. Ele retirou o país do grupo e endossou a adesão do Brasil a um outro organismo, o Fórum para o Progresso da América do Sul (Prosul). Ainda não está claro se, sob o governo Lula, o Brasil continuará a fazer parte do Prosul ou não. O retorno do Brasil à Unasul segue a mesma linha da política externa dos dois primeiros governos do presidente Lula. Nas últimas décadas, o petista frequentemente defendeu uma maior integração dos países sul-americanos como uma forma de trazer uma suposta autonomia da região em áreas como a economia, infraestrutura e estabilidade política. Em seu discurso de posse no Congresso Nacional, em janeiro deste ano, Lula já havia dado indicações de que o Brasil poderia retornar à Unasul. "Nosso protagonismo se concretizará pela retomada da integração sul-americana, a partir do Mercosul, da revitalização da Unasul e demais instâncias de articulação soberana da região", disse. Durante seus dois primeiros mandatos, por exemplo, o Brasil e outros países da região lançaram projetos para intensificar a criação de projetos de infraestrutura na região como a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IRSAA). No artigo "Autonomia, integração regional e política externa brasileira: Mercosul e Unasul", publicado em 2014, os professores e pesquisadores de Relações Internacionais Tullo Vigenani e Haroldo Ramanzini Júnior argumentam que o empenho do Brasil na formação da Unasul teria como um dos focos a criação de uma "polaridade sul-americana" que seja autônoma em relação a potências como os Estados Unidos. "O forte interesse brasileiro na formação da Unasul indica uma nova forma de compreender o que seja autonomia na política externa. No período 1986-1999 prevalecia a ideia de que a integração alavancaria a projeção conjunta, no mundo, da Argentina e do Brasil. Hoje, anos 2010, alguns objetivos estratégicos do país conectam-se com a cooperação na América do Sul, entre eles o de uma polaridade sul-americana, não subalterna, autônoma mas não antagônica aos países centrais, particularmente aos Estados Unidos", escreveram os pesquisadores. Os críticos da política externa do petista, no entanto, argumentam que a política externa do Brasil na época era marcada por um forte viés ideológico, uma vez que parte dos países da região eram comandados por líderes de esquerda. "Libertaremos o Brasil e o Itamaraty das relações internacionais com viés ideológico a que foram submetidos nos últimos anos. O Brasil deixará de estar apartado das nações mais desenvolvidas", disse Bolsonaro em um dos seus pronunciamentos logo após sua vitória no segundo turno das eleições de 2018. Além disso, há críticas sobre uma agenda marcada pela criação de fóruns multilaterais em um momento em que diversos países do mundo tentam dinamizar a integração regional a partir de acordos bilaterais. A política externa de Bolsonaro, no entanto, também foi criticada justamente pelo seu suposto componente ideológico. Durante sua gestão, o presidente mostrou um alinhamento forte com os Estados Unidos enquanto o país era comandado pelo republicano Donald Trump, além de demonstrar e receber apoio de líderes de direita europeus como o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbn. A expectativa nos meios diplomáticos, agora, é de que a eleição de novas lideranças alinhadas à centro-esquerda em países como o Brasil, Colômbia (com Gustavo Petro) e Chile (com Gabriel Boric) possa dar um novo impulso a iniciativas como a Unasul. Antes de o Brasil anunciar o seu retorno, a Argentina, no final de março deste ano, já havia anunciado que tomaria providências para regressar ao grupo.
2023-05-30
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cevn775q5z8o
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Em 10 anos no Brasil, chikungunya atingiu 60% das cidades e afetou mais as mulheres
Identificado pela primeira vez na Tanzânia na década de 1950, o vírus chikungunya chegou oficialmente ao Brasil a partir de 2013 — e causou o primeiro surto em meados de 2015 e 2016. Em uma década, o patógeno que também é transmitido pela picada do Aedes aegypti, assim como os seus "primos-irmãos" dengue e zika, se alastrou por 6 em cada 10 cidades brasileiras e causou sete grandes surtos. O virologista brasileiro William M. de Souza, um dos autores principais do trabalho e pesquisador do Centro Mundial de Referência de Vírus Emergentes e Arbovírus da University of Texas Medical Branch, nos Estados Unidos, avalia que o impacto do chikungunya na saúde pública do país ficou um tanto difuso, em meio às crises de dengue e zika. "O chikungunya foi introduzido no Brasil apenas um ano antes do zika, vírus que provocou aquela emergência por causa das doenças congênitas que causa em crianças pequenas", lembra o especialista. Fim do Matérias recomendadas "E a dengue, por sua vez, sempre esteve muito associada a casos graves e mortes." Vale lembrar que a infecção pelo chikungunya tem uma fase aguda, marcada por febre, dor no corpo e fadiga. Porém, numa parcela de pacientes, a doença evolui para a forma crônica, marcada por fortes dores nas articulações, que são incapacitantes e podem se prolongar por meses. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O próprio nome do vírus e da doença, aliás, vem do maconde, uma das línguas faladas na Tanzânia, onde a primeira epidemia foi registrada no ano de 1953. Neste idioma, a palavra chikungunya remete a "contorcer-se" ou "dobrar-se", numa referência direta aos fortes incômodos que afetam as articulações e os músculos e fazem os pacientes ficarem encolhidos e prostrados. "De forma geral as pessoas têm a noção errada de que o chikungunya causa dor, mas não mata", observa Souza. Portanto, no meio de tantos surtos e epidemias por zika e dengue e uma pretensa baixa gravidade, o chikungunya passou a ser encarado como uma questão de menor importância. Mas o estudo recém-publicado mostra que a história é bem mais complexa: nesses dez anos de circulação pelo país, o vírus causou sete surtos e teve casos confirmados em praticamente 60% das cidades brasileiras. Ele também afetou mais as mulheres do que os homens — e apresentou uma taxa de mortalidade maior do que se imaginava. Para fazer a pesquisa, o grupo de cientistas reuniu dados genômicos e epidemiológicos sobre a doença. Segundo o trabalho, entre 3 de março de 2013 e 4 de junho de 2022, foram confirmados 253,5 mil casos de chikungunya no Brasil. Nesse período, aconteceram sete ondas epidêmicas. Elas atingiram o pico nos primeiros meses do ano, principalmente na época das chuvas, e se repetiram entre 2016 e 2022. Essas infecções foram confirmadas em 3.316 dos 5.570 municípios do país, ou 59,5% das cidades. E é justamente aqui que a história começa a ficar ainda mais detalhada. Os especialistas resolveram analisar a fundo o que aconteceu nos Estados mais atingidos: Ceará, Pernambuco e Tocantins. Eles conduziram uma série de análises para entender porque esses locais concentraram a maior parte dos casos. No Ceará, por exemplo, ocorreram três grandes ondas nos anos de 2016, 2017 e 2022. "Nós sabemos que o chikungunya é um vírus que só se pega uma vez. Quando a pessoa tem a infecção, ela desenvolve uma imunidade por meio de células e anticorpos que muito provavelmente impede um segundo episódio da doença", diz Souza. Isso é diferente do que ocorre na dengue, que têm quatro tipos diferentes do mesmo vírus — ou seja, uma pessoa pode ter essa enfermidade até quatro vezes ao longo da vida. O time de acadêmicos até testou a hipótese de existirem novas variantes do chikungunya com capacidade de reinfectar as pessoas — e, embora eles tenham encontrado genótipos diferentes do patógeno, eles não eram diferentes o suficiente para escapar das células de defesa e causar novos episódios da doença em indivíduos que já a tiveram no passado. Como então um Estado teria surtos repetidos num curto espaço de tempo? A resposta está na distribuição geográfica dos surtos: no caso do Ceará, os casos de 2016 e 2017 se concentraram principalmente nos municípios localizados mais ao norte. Já em 2022, a onda epidêmica aconteceu nas cidades mais ao sul. Você pode ver a diferença no mapa a seguir — quanto mais fortes as cores com as quais as cidades estão pintadas, maior a incidência de casos de chikungunya em cada local. "Anteriormente, nós achávamos que o chikungunya iria chegar num Estado, causar uma explosão de casos e desaparecer", analisa Souza. "Porém, diferentemente da dengue, que se alastra por regiões maiores, este vírus afeta bolsões menores em cada surto", complementa. Outro achado do estudo foi o de que as mulheres são mais afetadas pelo chikungunya em comparação com os homens, especialmente na vida adulta. O risco de elas testarem positivo para essa doença é significativamente maior em relação a indivíduos do sexo masculino. Souza explica que os números de casos são relativamente parecidos nos extremos de idades — entre as crianças e os mais idosos. A diferença fica aparente, como é possível observar no gráfico em inglês a seguir, entre pessoas de 20 a 70 anos. As mulheres estão representadas pela cor verde e os homens, nas colunas em azul. Em algumas faixas etárias, as mulheres chegam a responder por mais da metade das infecções por esse vírus. Existem algumas hipóteses que ajudam a entender esse fenômeno. A principal delas tem a ver com o comportamento humano. "Nós sabemos que as infecções por dengue, zika e chikungunya acontecem principalmente no ambiente doméstico", contextualiza Souza. "A configuração da sociedade em muitos lugares do Brasil ainda segue aquela lógica de o homem sair para trabalhar enquanto a mulher cuida da casa e dos filhos", responde o virologista. Ou seja: como em muitos municípios a mulher adulta permanece mais no ambiente doméstico do que o homem, ela fica naturalmente exposta por um tempo maior às picadas do Aedes aegypti que podem carregar o chikungunya e outros vírus Essa tese é corroborada por estudos feitos no exterior e também pelo fato de as crianças e os idosos de ambos os sexos terem uma incidência de casos parecida, uma vez que eles tendem a ficar um tempo similar dentro ou fora de casa. Em trabalhos anteriores, dos quais Souza também participou, o time de cientistas chegou a outra conclusão relevante: aquela história de que chikungunya não mata também não corresponde à realidade. Em todos os óbitos, a principal suspeita eram as arboviroses (doenças provocadas por uma família de vírus da qual fazem parte dengue, zika e chikungunya). Os testes encontraram o chikungunya em 68 das vítimas (ou 52,9% do total). Em muitos desses indivíduos, o patógeno chegou a provocar danos no sistema nervoso central. Isso permitiu estabelecer uma taxa de 1,8 morte a cada mil casos da infecção naquele ano de 2017 no Ceará. "São números que parecem baixos, mas, quando temos dezenas ou centenas de milhares de infecções, eles ganham uma escala muito grande", aponta Souza. "No período dessa onda, é possível afirmar que a chikungunya chegou a provocar mais óbitos que a dengue na região", compara. "Ou seja, a frase correta para definir essa doença é 'a chikungunya causa muita dor — e também pode matar'", completa. A médica Claudia Marques, professora de reumatologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), viu na prática aquilo que foi descrito no trabalho recém-publicado. Ela conta que, no auge da crise do chikungunya em Recife no ano de 2016, a chegada de pacientes com queixas de dores na junta configurava um cenário "muito grave". "Naquela época, as pessoas faziam fila na porta do hospital. Elas estavam aflitas e sequer conseguiam andar direito", relata a médica, que não esteve envolvida na pesquisa publicada no The Lancet Microbe. "Depois desse período, não observamos mais ondas de casos por aqui. É como se o vírus 'esgotasse' um lugar e fosse para o outro", raciocina a especialista, que hoje recebe relatos parecidos ao que viveu em 2016 de colegas médicos que atuam em outras cidades, como Salvador e Fortaleza. "Eu mesma nem me lembro da última vez em que atendi um paciente com dores reumáticas relacionadas ao chikungunya por aqui", diz Marques, que também é gerente de ensino e pesquisa do Hospital das Clínicas da UFPE. A médica acrescenta que, com o passar do tempo, os próprios profissionais de saúde foram aprendendo a lidar com a fase crônica do chikungunya, quando a dor se prolonga por mais de três meses e impede o indivíduo de realizar as atividades diárias. "No início, pensávamos que a maioria dos acometidos tinha um quadro inflamatório e precisaria lidar com um tipo de artrite pelo resto da vida", pontua. "Hoje sabemos que a minoria vai desenvolver esses quadros inflamatórios, que exigem o uso de medicamentos imunossupressores." Segundo a reumatologista, metade dos pacientes infectados tem o quadro agudo de chikungunya, que dura 14 dias e depois melhora. Dos que continuam com sintomas após essas duas semanas, cerca de 30% evoluem para a forma crônica, em que os incômodos se prolongam por três meses ou mais. "Cerca de 95% desses pacientes com a forma crônica têm uma dor não inflamatória, que pode ser manejada por meio de alongamentos, fisioterapia e atividade física. Apesar do longo tempo de recuperação, que se estende por até dois ou três anos, é possível se recuperar", calcula Marques. Souza espera que a pesquisa sobre os dez anos do chikungunya no Brasil inspire mudanças nas políticas públicas para conter o vírus daqui em diante. Afinal, se casos de infecção foram confirmados em 60% dos municípios na última década, isso significa que o patógeno ainda pode se espalhar e causar surtos pelos outros 40% que estão livres até agora. "Provavelmente continuaremos a ver aquelas ondas epidêmicas nos próximos anos, que acometem pequenos bolsões de municípios dentro dos Estados", antevê o virologista. "Nossa ideia com esse trabalho foi justamente a de fornecer subsídios para que o governo possa determinar quais locais estão mais suscetíveis", complementa. Em outras palavras, a partir da análise de dados, as prefeituras, os governos Estaduais e até o Ministério da Saúde podem concentrar os esforços de prevenção, diagnóstico precoce e tratamento naqueles lugares que ainda não registraram surtos (e estão pintados de branco ou com cores claras nos mapas). Outra ação possível, segundo Souza, é criar estratégias públicas para proteger os mais vulneráveis, como as mulheres adultas. Já que elas são mais atingidas, será que não é possível criar uma campanha de conscientização para controlar o Aedes aegypti no ambiente doméstico voltado a esse público? Ao eliminar qualquer reservatório de água parada — que serve de criadouro para o mosquito — é possível diminuir o risco não apenas de chikungunya, mas também de dengue e zika. "O Brasil é o país das Américas mais afetado pelo chikungunya. Num cenário em que ainda não temos remédios ou vacinas à disposição, precisamos de políticas públicas para prevenir os casos", conclui o pesquisador.
2023-04-06
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51qkvkz49no
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Como a Argentina saiu da hiperinflação há 30 anos e qual a viabilidade de se repetir a fórmula
Viver com inflação alta não é novidade para os argentinos. Há 30 anos, a situação era muito pior. O Índice de Preços ao Consumidor (IPC) chegou a registrar uma taxa anual de 3.079% em 1989 e 2.314% em 1990. O país enfrentava uma grave crise financeira e altos níveis de pobreza entre a sua população. Mas, cinco anos depois, no segundo mandato do presidente Carlos Menem, o IPC caiu para 0%. O que fez a Argentina naquele momento para combater a hiperinflação? Essa mesma solução teria bons resultados hoje? No início da década de 1990, a espiral inflacionária que atingia a Argentina parecia incontrolável. Para enfrentar a crise financeira, o então ministro da Economia de Menem, Domingo Cavallo, realizou profundas mudanças na organização econômica do país, incluindo a famosa Lei da Convertibilidade. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A medida começou a valer em abril de 1991, depois de ser aprovada pelo Parlamento argentino. Ela estabeleceu a paridade fixa entre o peso argentino e o dólar norte-americano. Ou seja, um peso passou a valer um dólar. Os argentinos chamaram popularmente esse período de "uno a uno" (um por um). Para possibilitar a medida, o Banco Central da Argentina tornou-se virtualmente um "comitê monetário". Sua função era de garantir cada peso em circulação com um dólar americano. Com isso, a Argentina conseguiu, em pouco tempo, reduzir drasticamente a inflação e estabilizar a economia. O que se seguiu foi um longo período de estabilidade dos preços. "[A convertibilidade] colaborou para que o país estabilizasse seu déficit — embora não totalmente —, recebesse investimentos e aumentasse sua produtividade", explica o economista e acadêmico argentino Eduardo Levy-Yeyati à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC. Levy acrescenta que essa política econômica foi diretamente beneficiada pelo plano Brady, que reestruturou a dívida contraída pelos países em desenvolvimento — incluindo Argentina, Brasil, Equador, México e Venezuela — junto aos bancos comerciais norte-americanos. E ela também foi beneficiada por outras reformas lideradas pelo ministro Cavallo, como a abertura comercial e a privatização de empresas públicas, e pelo ciclo global do dólar. É preciso relembrar que, nessa época (início dos anos 1990), muitos países da América Latina estavam criando programas de estabilização da economia depois da crise da dívida dos anos 1980, considerada um dos "episódios econômicos mais traumáticos" para a região. A crise trouxe fortes consequências sociais, incluindo um aumento considerável da pobreza. Não foi por acaso que aquela época foi chamada de "a década perdida". Mas, segundo a economista e diretora da consultoria Eco Go, Marina Dal Poggetto, a Argentina foi o único país latino-americano a sobreviver àquele caos utilizando o dólar como "âncora rígida", com a paridade cambial. Esta, para ela, é uma das principais razões pelas quais a convertibilidade acabou sendo um fracasso, provocando um dos maiores colapsos econômicos, políticos e sociais da história da Argentina. "Passamos de uma economia fechada, altamente inflacionada e muito protegida, para uma economia aberta e com inflação muito baixa, mas que começou a ter problemas a partir de 1996”, explica Dal Poggetto. O que aconteceu então com o modelo de convertibilidade que parecia tão bem sucedido, mas que começou, pouco a pouco, a mostrar suas primeiras fissuras? As razões do colapso são várias, mas os economistas concordam que os "choques externos" tiveram papel fundamental — entre eles, o vigor do dólar. "O vigor do dólar, gerado pelo aumento da taxa de juros nos Estados Unidos, acabou provocando uma crise em países emergentes, como a Argentina", destaca Dal Poggetto. Ao mesmo tempo, a crise asiática, que se estendeu rapidamente para outras regiões do mundo, e a forte desvalorização do rublo (a moeda nacional da Rússia), também trouxeram fortes impactos ao sistema econômico do país sul-americano. Mas o golpe mais importante veio do Brasil, em 1999. Depois de uma forte crise marcada pela fuga de capitais e pela queda da atividade econômica, o país decidiu desvalorizar o real em relação ao dólar. A Argentina então viu suas exportações para o Brasil caírem, o que prejudicou profundamente diversos setores, como o de automóveis, tecidos, laticínios e calçados. "A desvalorização do real em 1999 foi a pá de cal da convertibilidade", segundo Dal Poggetto. "A Argentina deveria ter também desvalorizado sua moeda naquele mesmo ano, como fez o Brasil, mas não conseguiu devido ao regime rígido que estava em vigor." Nos dois anos seguintes, a crise financeira da Argentina foi se aprofundando cada vez mais. Os argentinos precisaram enfrentar uma forte recessão, com aumento recorde do desemprego. Três em cada 10 trabalhadores argentinos ficaram desempregados. Em 2001, a demanda por dólares havia superado enormemente a capacidade da Argentina de gerar divisas. Com a economia paralisada e sua moeda local, o peso, caro e pouco competitivo, a Argentina dependia cada vez mais do financiamento externo. O país chegou a ter 97% da sua dívida externa em dólares. Preocupados com a situação econômica asfixiante, muitos argentinos começaram a desconfiar da solidez do sistema e passaram a enviar seus dólares para contas no exterior, especialmente para o vizinho Uruguai. Com as reservas do Banco Central em queda, o governo do presidente Fernando de la Rúa pediu ajuda ao Fundo Monetário Internacional (FMI), negociando a reestruturação da sua dívida. Mas a crescente fuga de capitais e o descontrole econômico fizeram com que o FMI decidisse suspender seus desembolsos poucos meses depois, provocando uma corrida ainda maior aos bancos argentinos. Neste contexto, De la Rúa assinou, em 3 de dezembro de 2001, o decreto 1570. Ele foi idealizado pelo "pai da convertibilidade", Domingo Cavallo, para tentar estancar a sangria de dólares sofrida pelo país. Rapidamente apelidada de "corralito", a medida impôs restrições à retirada de depósitos bancários, asfixiando ainda mais a população, paralisando o comércio e deixando a enorme economia informal do país sem condições de sobreviver. A história que se seguiu é bem conhecida. Ocorreram saques e protestos da sociedade, que terminaram provocando a renúncia (e a fuga de helicóptero) do presidente De la Rúa. Estava aberta uma crise política e institucional sem precedentes no país. Frente a essa complexa situação, no início de 2002, a paridade entre o dólar e o peso foi extinta, bem como a "pesificação" dos depósitos em dólares. A medida causou uma forte desvalorização da moeda local, que fez com que a pobreza disparasse, chegando a atingir dois em cada três argentinos. O país também deixou de pagar sua dívida externa, declarando a maior moratória da história na época: US$ 144 bilhões (cerca de R$ 733 bilhões). O fim abrupto do modelo da convertibilidade faz com que seja difícil pensar nele como uma solução viável para a atual crise inflacionária que enfrenta a Argentina. Mas algumas pessoas trouxeram de volta essa discussão. Uma dessas pessoas é o economista Javier Milei, deputado da direita libertária que aspira à presidência do país. Milei afirmou que a paridade cambial foi um dos processos mais bem sucedidos para controlar as variáveis macroeconômicas e, por isso, seria fundamental desenvolver um modelo similar para alterar o rumo atual da economia argentina. "A convertibilidade foi introduzida em 1º de abril de 1991 e, em janeiro de 1993, éramos o país com a menor inflação do mundo", afirma Milei. "Proponho a livre concorrência entre as moedas e a reforma do sistema financeiro. Assim, o mais provável é que os argentinos escolham o dólar e, aí, você dolariza [a economia]." Mas os economistas consultados pela BBC News Mundo consideram que esta opção é pouco viável. "O regime cambial não resolve o problema", segundo Marina Dal Poggetto. "Se você não tiver a correção das contas fiscais e o ordenamento dos preços relativos, não irá impedir a inflação. Então, você precisa de um programa de estabilização." "Qual é o regime monetário cambial ideal? Para mim, não é uma espécie de câmbio fixo, não é o comitê monetário. A convertibilidade acabou mal porque o choque durou tanto tempo que não sobreviveu", afirma Dal Poggetto. Já para Eduardo Levy-Yeyati, em termos práticos, uma nova lei de convertibilidade "só seria possível se fossem acumuladas reservas internacionais com antecedência". "Se houver uma corrida, como a que vemos hoje com o Credit Suisse, não haveria forma de impedi-la, a não ser que o governo ou os bancos mantivessem reservas líquidas. Nos anos 90, tanto o Banco Central da Argentina quanto os bancos comerciais mantinham fundos de liquidez em dólares", explica Levy. Em termos econômicos, Levy-Yeyati afirma que "a convertibilidade comprovou que serve para estabilizar, mas não substitui a necessidade de equilíbrio fiscal e de políticas de desenvolvimento". "Pensar nela hoje como um atalho para a estabilidade me parece ingênuo", conclui o economista.
2023-04-01
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxwjp8yw89po
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Perfis de países: Paraguai
O Paraguai, um dos vizinhos do Brasil no Cone Sul, é um país sem acesso ao mar, cercado por Brasil, Bolívia e Argentina. Essa realidade geográfica acabou levando a choques de interesses com países vizinhos no século 19 e à chamada Guerra do Paraguai, em que o Paraguai foi derrotado pela aliança composta por Brasil, Argentina e Uruguai. O conflito definiu em grande medida o futuro do país. Desde que o Paraguai emergiu de 35 anos da ditadura do general Alfredo Stroessner, em 1989, crises políticas, corrupção e problemas econômicos marcaram sua frágil democracia. Cerca de um quarto dos paraguaios vive abaixo da linha de pobreza nacional, o que faz com que o país tenha grandes desafios sociais, entre eles moradia - quase a metade dos paraguaios vive em moradias inadequadas. Grande parte das terras no Paraguai pertence a um pequeno número de indivíduos, e sucessivos governos têm sido lentos em implementar uma reforma agrária. A economia é dependente da agricultura e da energia hidrelétrica. Diferentemente de seus vizinhos, o Paraguai não conta com uma significativa indústria turística, mas antigas construções de missões jesuítas atraem visitantes interessados na história da região. Ao lado de Brasil, Argentina e Uruguai, o país é sócio fundador do Mercosul, o bloco econômico da região. Fim do Matérias recomendadas A maioria da população é de ascendência mestiça, misturando origem espanhola e guarani, e fala tanto o espanhol como o guarani. A região da Tríplice Fronteira, onde o Paraguai encontra-se com a Argentina e o Brasil, tem uma longa história de tráfico de drogas e contrabando. FATOS Capital: Assunção População7 milhões Área406.752 quilômetros quadrados Principais línguasEspanhol e guarani Principal religiãoCristianismo Expectativa de vida71 anos (homem), 75 anos (mulher) MoedaGuarani LÍDER Presidente: Mario Abdo Benítez O ex-senador Mario Abdo Benítez, do Partido Colorado, assumiu a Presidência do Paraguai em agosto de 2018. Sua apertada vitória nas eleições ocorreu três meses antes, ajudada por sua promessa de manter as políticas de impostos baixos para atrair mais investimento estrangeiro. O resultado significou a manutenção no poder do Partido Colorado, que tem dominado a política paraguaia há décadas. Benítez é filho de um assessor do então ditador militar Alfredo Stroessner - e a defesa que o presidente fez do legado de Stroessner foi alvo de críticas. MÍDIA Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A mídia no Paraguai é composta tanto de veículos estatais como de empresas privadas. O rádio é um meio chave para a população. Grande grupos empresariais dominam o setor - segundo a entidade Repórteres Sem Fronteiras, a propriedade está concentrada nas mãos de poucos. Entre os principais jornais do país, estão ABC Color e La Nación. A Constituição paraguaia garante o funcionamento de uma imprensa livre, e a mídia opera com poucas limitações impostas pelas autoridades. Segundo a entidade Freedom House, a fronteira entre o Paraguai, Brasil e Argentina é particularmente perigosa para repórteres tentando cobrir assuntos envolvendo crime e corrupção. Em dezembro de 2018, segundo o InternetWorldStats.com, havia mais de 6,2 milhões de usuários de internet no Paraguai - quase 90% da população. O Facebook é a rede social mais usada no país. RELAÇÕES COM O BRASIL Os vizinhos Brasil e Paraguai, que compartilham uma fronteira de 1.339 quilômetros e são sócios fundadores do Mercosul, estabeleceram relações diplomáticas em 1844. Entretanto, 20 anos depois começaria o conflito que ficaria conhecido no Brasil como a Guerra do Paraguai. Maior guerra já ocorrida na América do Sul e a mais marcante da história brasileira, ela opôs os dois países entre 1864 e 1870. Sob o comando de Francisco Soláno Lopez desde 1862, o Paraguai buscava mais influência regional, particularmente com uma saída para o mar. Para isso, tinha uma aliança com o então governo uruguaio, dos "blancos", que travava uma disputa interna com os "colorados". Os interesses brasileiros estavam alinhados com os colorados, e Brasil interveio militarmente na disputa uruguaia ao lado do grupo. O Paraguai respondeu, iniciando a guerra, com o país de Soláno Lopez de um lado e do outro a chamada Tríplice Aliança - Brasil, Argentina e o Uruguai, agora sob o comando dos colorados. Após seis anos de conflito, em que entre 100 mil e 300 mil pessoas foram mortas, o Paraguai estava derrotado e destruído, com sua economia em ruínas. No Brasil, o Exército saiu fortalecido e ganhou prestígio, o que levaria à proclamação da República em 1889 - um golpe militar contra o imperador Dom Pedro II. Em 1965, foi inaugurada a Ponte da Amizade entre Brasil e Paraguai, obra que deu ao Paraguai um caminho rodoviário levando diretamente ao Oceano Atlântico, facilitando suas exportações. A construção conjunta da usina hidrelétrica de Itaipu - a Itaipu Binacional -, concluída em 1984, aproximou Brasil e Paraguai ainda mais e tornou-se um símbolo das relações entre os dois países. A usina é responsável por gerar cerca de 86% da energia consumida no Paraguai - no caso do Brasil, a fatia é de 15%. Apesar de consumir menos de 20% da energia gerada por Itaipu, o Paraguai é muito dependente da hidrelétrica. Uma negociação acerca do valor a ser pago por cada país por kilowat consumido quase gerou, em 2019, o impeachment do presidente Abdo Benítez. Os termos do acordo negociados pelo governo paraguaio foram considerados desvantajosos por acarretarem aumento das tarifas de energia pagas pela população. O acordo acabou renegociado o que garantiu a manutenção de Benítez no poder. Enquanto a energia gerada pela usina respondeu por 14,6% do mercado brasileiro em 2018, 90,7% da demanda paraguaia por energia é atendida por Itaipu. Se os conflitos entre as nações da região ficaram no passado, a fronteira entre Brasil e Paraguai passou a ser marcada pela ação de grupos criminosos, com intenso tráfico de armas e drogas. O problema agravou-se no século 21 e preocupa as autoridades dos dois países. O Brasil autorizou o exílio em seu território do ex-ditador paraguaio Alfredo Stroessner, que morreu no país, e permitiu a permanência do ex-general Lino Oviedo, que fugia da Justiça paraguaia. LINHA DO TEMPO Importantes datas na história do Paraguai: Século 16 - Futuro território paraguaio é originalmente ocupado pelo povo indígena guarani, antes da chegada dos primeiros colonos espanhóis. 1811 - O Paraguai declara a independência da Espanha e torna-se uma república. 1862 - Francisco Solano López assume a Presidência do Paraguai e busca mais influência regional para seu país. 1865-70 - Guerra do Paraguai - também conhecida como Guerra da Tríplice Aliança. O conflito opõe o país contra Brasil, Argentina e Uruguai. O Paraguai sai derrotado, com Solano López morto em combate, e perde dois terços de sua população masculina, além de parte de seu território. O governo começa a vender terras para pagar a dívida de guerra, o que leva grande parte do território nacional a pertencer a uma pequena elite. 1932-35 - Depois de décadas de estagnação econômica, o Paraguai obtém territórios da Bolívia na Guerra do Chaco. 1947 - Depois de uma breve guerra civil, o Partido Colorado-Republicano Nacional, de direita, governa o Paraguai como um regime de partido único e domina a política nacional pelos próximos 60 anos. 1954 - O chefe do Exército Alfredo Stroessner toma o poder num golpe militar - e governaria o país por 35 anos. 1984 - Inaugurada a usina hidrelétrica binacional de Itaipu, grande projeto realizado em parceria com o Brasil. 1989 - Alfredo Stroessner é derrubado pelo general Andrés Rodriguez, com apoio do general Lino Oviedo. Stroessner recebe asilo político no Brasil - onde morreria em 2006, aos 93 anos. 1992 - Uma nova Constituição abre caminho para eleições livres. 1996 - Tentativa de golpe, liderado pelo general Lino Oviedo, fracassa. 1998 - Raúl Cubas, do Partido Colorado, vence a disputa presidencial em meio a acusações de fraude eleitoral. 1999 - Protestos de rua violentos após o assassinato do vice-presidente Luis Maria Argaña, e o presidente Cubas renuncia. Acusado de manter matar Argaña, Oviedo foge do Paraguai e vai para a Argentina. 2000 - Uma nova tentativa de golpe militar fracassa, e o governo responsabiliza "forças antidemocráticas" que apoiavam o ex-general Oviedo, na época exilado no Brasil. 2004 - Ex-general Oviedo retorna do Brasil e é preso. 2008 - Um período de seis décadas do Partido Colorado no poder chega ao fim quando o ex-bispo católico Fernando Lugo é eleito presidente. 2013 - Candidato à Presidência, Lino Oviedo morre em queda de helicóptero durante sua campanha. O Partido Colorado retorna ao poder com a vitória do novato Horacio Cartes na eleição presidencial. 2017 - O presidente Cartes desiste de tentar buscar o direito de disputar a reeleição, depois que sua proposta de alterar a Constituição provoca protestos violentos. 2018 - O Paraguai segue os Estados Unidos e abre sua embaixada em Israel na cidade de Jerusalém - o terceiro país a tomar a polêmica medida, depois de EUA e Guatemala.
2023-03-28
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-56583607
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Como onda de calor recorde na Argentina pode afetar bolso do brasileiro
A recente onda de calor no verão argentino, que levou o país a registrar as maiores temperaturas da história, não só atingiu de maneira significativa a economia local, mas também vem impactando o vizinho Brasil, seu principal parceiro comercial há 20 anos. A seca gerou perdas "dramáticas" na agricultura, enquanto incêndios danificaram a infraestrutura nacional, o que chegou a deixar metade da Argentina sem energia. "As perspectivas de produção agrícola para a safra 2022/23 são dramáticas, e as estimativas podem ser revisadas para baixo nas próximas semanas", diz Santiago Manoukian, chefe de pesquisa da consultoria Ecolatina, à BBC News Brasil. Segundo ele, os três principais cultivos da Argentina — soja, trigo e milho — acumulam perdas de 40% em relação à última safra, com um prejuízo de cerca de US$ 20 bilhões na mesma comparação. "A queda abrupta da safra de trigo, em cerca de 43%, está afetando seriamente os volumes de exportação desse cereal para o Brasil. Em janeiro, as exportações de trigo da Argentina para o País caíram 41% em relação ao mesmo período de 2022", afirma Manoukian. Fim do Matérias recomendadas O Brasil é o maior comprador de trigo argentino. Em seu índice mais recente para os preços globais dos alimentos, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação (FAO) destacou a "piora das condições na Argentina" como um dos elementos que impulsionaram os preços dos cereais em fevereiro. No entanto, o presidente-executivo da Associação Brasileira do Trigo (Abitrigo), Rubens Barbosa, pondera os impactos dos preços ao consumidor final, avaliando que não deve haver aumento significativo nos preços da farinha. Segundo ele, importadores brasileiros conseguiram se mobilizar para obter a matéria-prima por outras fontes, com destaque para a Rússia. "O maior risco do conflito (com a Ucrânia) no momento foi superado. Não há restrições à produção russa, que está alcançando níveis recordes", assinala. Para além da agricultura, a indústria argentina sofre impactos da recente crise. Além de maiores dificuldades na produção, o menor ingresso de divisas estrangeiras reduziu a capacidade de importação local. Manoukian estima uma redução significativa na atividade do setor e avalia "com preocupação" a relação com o Brasil, uma vez que os dois países possuem uma série de cadeias produtivas integradas. Cerca de 40% das exportações de manufaturas de origem industrial da Argentina na última década tiveram o Brasil como destino, segundo a Ecolatina. Grande parte integra a indústria automotiva brasileira. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Christopher Callaha, professor do Departamento de Geografia da Universidade de Dartmouth, na Inglaterra, aponta em um artigo que a América Latina é uma das regiões potencialmente mais afetadas economicamente por ondas de calor. Em entrevista à BBC News Brasil, ele avalia que os fenômenos devem ser mais frequentes e que estão ligados às mudanças climáticas provocadas pelos humanos. "O aumento das temperaturas globais tornou muito mais provável que os recordes de calor sejam quebrados e que as ondas de calor sejam mais severas do que costumavam ser. Acredito que a recente seca e os danos à infraestrutura sejam devidos, pelo menos em parte, às emissões humanas de gases de efeito estufa", afirma. "Locais de renda mais alta geralmente são mais adequados para resistir a eventos climáticos extremos. Rendas mais altas estão associadas a uma menor dependência dos setores agrícolas vulneráveis da economia. Como resultado, espero que os mercados emergentes serão menos resilientes a esses eventos extremos." Analisando as últimas décadas, o estudo de Callaha constatou que as perdas com as ondas de calor chegam a 6,7% do Produto Interno Bruto (PIB) per capita por ano para regiões no decil de renda inferior, mas apenas 1,5% para regiões no decil de renda superior. O PIB é um indicador que mede a soma de bens e serviços produzidos por um país. "Espero que eventos climáticos extremos terão grandes efeitos sobre os principais produtores de alimentos. Sabe-se que as ondas de calor e as secas prejudicam as colheitas, e as perdas causadas pelo clima podem aumentar os preços dos alimentos em todo o mundo", diz Callaha, que projeta efeitos econômicos negativos em outros países sul-americanos das ondas de calor atuais e futuras na Argentina. Outra pesquisa, da Atribuição do Clima Mundial (WWA, na sigla em inglês), publicada no ano passado, revelou que as mudanças climáticas aumentaram em 60 vezes a probabilidade de temperaturas extremas na região, em dezembro de 2022. Foram analisados os níveis de chuva nos últimos três meses de 2022 em uma área que inclui grandes partes da Argentina, todo o Uruguai e uma pequena região no sul do Brasil.
2023-03-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cedyvp74324o
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O que se sabe sobre terremoto mais forte a atingir Equador desde 2016
Pelo menos 15 pessoas morreram e mais de 400 ficaram feridas depois que um terremoto de magnitude 6,7 atingiu a costa sul do Equador. O tremor ocorreu por volta do meio-dia, horário local (14h de Brasília), neste sábado (18/3). A província de El Oro, no sul, foi a mais afetada, com 12 mortes, informaram as autoridades. O norte do Peru também sentiu o sismo, e uma menina de 14 anos morreu em Tumbes, uma província na fronteira, quando sua casa desabou. No Equador, Machala e Cuenca estão entre as cidades com mais edifícios e veículos danificados. Fim do Matérias recomendadas O epicentro foi perto de Balao, a cerca de 80 km da segunda maior cidade do Equador, Guayaquil, onde vivem cerca de 3 milhões de pessoas. "Nós fugimos de casa", disse Exon Tobar, morador de Machala, à BBC. "O chão — foi uma explosão muito forte — tremeu e fez os cabos elétricos, as janelas, tudo se mexer. As pessoas estavam nas ruas rezando porque não parava." O presidente do Equador, Guillermo Lasso, pediu aos equatorianos que mantivessem a calma enquanto as autoridades avaliavam os danos. Lasso também visitou um hospital na cidade de Machala para se encontrar com alguns dos feridos. O governo disse que mais de 250 feridos foram tratados na cidade de Pasaje, em El Oro, e quase todos receberam alta. Várias estradas foram bloqueadas por deslizamentos de terra, enquanto casas, prédios educacionais e centros de saúde sofreram danos estruturais, informaram as autoridades. Uma pessoa morreu na cidade de Cuenca, na província de Azuay, depois que um muro desabou sobre seu carro, enquanto três outras morreram quando uma torre de câmeras de segurança caiu sobre elas na Ilha Jambelí, na província de El Oro. Também houve relatos de que o tremor foi sentido em várias outras cidades, incluindo Manabi, Manta e a capital, Quito. Foi o terremoto mais forte a atingir o Equador desde 2016, quando quase 700 pessoas morreram e milhares ficaram feridas.
2023-03-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn0q7w769z5o
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O que explica recorde histórico de produção de cocaína no mundo
A produção global de cocaína atingiu níveis recordes à medida que a demanda se recupera após restrições impostas devido à covid, segundo novo relatório. O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime informou que o cultivo de coca aumentou 35% entre 2020 e 2021, chegando a níveis recordes. Os resultados apontam que novos centros de tráfico surgiram na África Ocidental e Central. O relatório também diz que os traficantes estavam usando os serviços postais internacionais com mais frequência para enviar drogas aos consumidores. Fim do Matérias recomendadas O documento destaca um aumento nos países da África Ocidental no uso de "serviços postais bem estabelecidos e com operação global, bem como empresas de compras menores" usadas para contrabandear quantidades de cocaína para a Europa e outros locais. No geral, o relatório aponta que a Europa e a América do Norte são os maiores mercados de cocaína, seguidos pela América do Sul, Central e Caribe. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Embora o relatório diga que os mercados na África e na Ásia "ainda são limitados", Ghada Waly, da ONU, disse que o potencial de expansão desse mercado é uma realidade perigosa. O aumento da produção foi resultado de uma expansão no cultivo de coca, bem como de melhorias na conversão da coca em cocaína em pó, segundo o relatório. O documento aponta que o surto de covid-19 teve um efeito "perturbador" nos mercados de drogas, já que as viagens internacionais foram severamente reduzidas. A demanda por cocaína caiu quando boates e bares foram fechados durante os confinamentos. "No entanto, os dados mais recentes sugerem que essa queda teve pouco impacto nas tendências de longo prazo", diz o relatório. "A oferta global de cocaína está em níveis recordes." Sobre o Brasil, o relatório menciona que houve um aumento nas mortes relacionadas à cocaína durante a pandemia e diz que é possível que uma “mudança na dinâmica do tráfico tenha resultado em um aumento na disponibilidade de cocaína no país e intensificado os padrões de uso”. Segundo a ONU, a pandemia afetou o comércio da cocaína no Brasil, tanto do lado da oferta quanto da demanda. Diante de obstáculos logísticos, aponta o relatório, os traficantes recorreram cada vez mais a aeronaves para levar a cocaína para o Brasil, levando a um aumento geral nas quantidades que entram no país. Mas grupos criminosos parecem ter tido dificuldades para coordenar o trânsito da droga dentro do Brasil para portos no Atlântico, ainda de acordo com o relatório. E vários indicadores mostram que o nível de saída de cocaína do país caiu. Outras descobertas importantes divulgadas pela ONU incluem:
2023-03-16
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cpw9v8p6qz9o
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'Tranças da liberdade': como penteados ajudaram escravizados em fugas
A 50 km das águas do Caribe colombiano, na praça de um povoado isolado entre as montanhas, uma expressiva escultura homenageia a memória de um herói excepcional. Benkos Biohó é descrito como um homem "animado, valente e ousado" que, no final de 1599, comandou "uma revolta e retirada de certos negros fugitivos", segundo o cronista espanhol Fray Pedro Simón. A palavra “cimarrón” (fugitivo, em espanhol) usada pelo frade franciscano ao descrever Biohó já conta parte desta história. Segundo o Dicionário da Real Academia Espanhola: “Cimarrón: Diz-se do escravo ou do animal doméstico que foge para o campo e se torna selvagem.” A palavra evoca séculos de exploração cruel de milhões de africanos que foram arrancados de seus lares e levados para o outro lado do mundo para serem vendidos e tratados como objetos a serviço de seus senhores. Fim do Matérias recomendadas Mas também fala de rebeliões ousadas. Benkos Biohó – junto com sua esposa Wiwa, seus filhos e cerca de trinta homens e mulheres – liderou um desses levantes. Seu grupo fugiu de Cartagena das Índias, cidade portuária na costa caribenha da Colômbia, e derrotou guardas enviados para capturá-los. Na fuga, eles não pararam até chegar a esse lugar entre os Montes de María, que em 1714, após mais de um século de luta, foi legalizado, por decreto real, com o nome de San Basilio de Palenque – palenque é o termo em espanhol equivalente a “quilombo” em português. É aqui, na praça central, que se ergue atualmente o monumento em homenagem ao herói. "O palenque de San Basilio não foi o primeiro nem o único, mas é o mais conhecido por sua estratégia libertária e porque foi comandado pelo rei Biohó e, finalmente, porque se tornou a primeira cidade livre da América", explica Emilia Eneyda Valencia Murrain, fundadora da Associação de Mulheres Afro-Colombianas (Amafrocol), à BBC Mundo, serviço da BBC em espanhol. Enquanto outros palenques desapareceram com o tempo, San Basilio conservou uma parte importante do seu legado ancestral. Muito desse legado foi transmitido entre gerações através da tradição oral, que mantém viva a memória de que Benkos Biohó não esteve sozinho na sua façanha. E que sem a ajuda de sua esposa e outras mulheres teria sido muito mais difícil encontrar o caminho para a vitória. Foi a astúcia dessas mulheres que criou um sistema de codificação para mostrar aos escravizados os caminhos para a liberdade sem que seus subjugadores percebessem. Sequestrados e transportados, os africanos vieram para a América para deixar de ser e apenas servir. Mas, por mais que tentassem despojá-los de qualquer traço de humanidade, essa é uma qualidade obstinada que permanecia tanto na nostalgia do que lhes fora arrancado, quanto no desejo de escapar do inferno. Quando a única alternativa era fugir, em um lugar que lhes era tão alheio, como saber para onde ir? Na costa caribenha do chamado Novo Reino de Granada, mulheres escravizadas inventaram uma maneira discreta e genial de criar e esconder – ainda que à vista de todos – mapas de orientação para espaços de liberdade. As mulheres não despertavam tanta suspeita. Além disso, tendiam a sair mais de seus ambientes do que os homens devido às tarefas que lhes eram atribuídas. “Normalmente, o potencial, a sabedoria e a astúcia das mulheres são subestimados e é por isso que, no caso da Colômbia, elas conseguiram guardar muitos segredos, para depois usá-los a favor das comunidades: segredos de cura, culinária, plantação”, afirma Emilia Valencia. “Isso foi em parte o que aconteceu com esse processo libertário do palenque de San Basilio”, diz ela, que ouviu a história de palenqueras quando foi investigar “muitos, muitos anos atrás”. “Elas me contaram que o lugar nasceu porque, quando as mulheres iam de fazenda em fazenda, fosse para fazer uma tarefa ou qualquer outra coisa, elas prestavam atenção nas estradas e nos pontos-chave”, conta a fundadora da Amafrocol. "Então elas transmitiam isso aos homens e, juntos, eles traçavam a estratégia." "É preciso lembrar que os escravizados vinham de diferentes regiões da África, falavam línguas distintas, e no início era difícil para todos se entenderem." Mas havia uma linguagem comum que eles trouxeram de seu continente de origem. "O que chamamos de 'tranças de raiz', aquela que fica presa no couro cabeludo, que são próprias dos povos africanos." E essas tranças falavam: contavam histórias, declaravam a condição social de quem as usava, deixavam claro seu estado civil, a religião que professavam, identificavam-nas como membros de determinadas comunidades ou etnias. No Novo Mundo, elas começaram a falar sobre liberdade. "Após combinarem com os homens, elas concordaram que iam usar as tranças, os penteados, como um código secreto que indicava os caminhos por onde deveriam escapar.” As escravizadas tornaram-se cartógrafas sem lápis nem papel, criando e usando na cabeça mapas desenhados com cabelos. “Foi assim que elas desenharam o que é conhecido como os famosos mapas de fuga ou a rotas de liberdade”, diz Valencia. E não só isso. Nesses penteados, as mulheres também guardavam objetos valiosos que seriam úteis quando chegassem aos palenques, como fósforos, grãos de ouro ou sementes preciosas para o cultivo. Para planejar as fugas, as mulheres se reuniam em torno das cabeças das mais jovens, nas quais desenhavam seus mapas. "Elas desenhavam com tranças, por exemplo, uma trança enrolada indicava uma montanha; aquelas que eram como cobras, sinuosas, indicavam que havia uma fonte de água – um riacho ou um rio –; uma trança grossa indicava que naquela seção havia um destacamento de soldados”, explica Valência. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Os homens 'liam' os códigos que elas usavam em seus penteados, desde a testa, que demarcava o local onde se encontravam, até a nuca, que representava a montanha, o local para onde deveriam ir em sua fuga”, destacou no estudo Poética do penteado afro-colombiano (2003) a socióloga Lina María Vargas. Quem lhe contou foi Leocádia Mosquera, professora do departamento de Chocó, no oeste da Colômbia, que aprendeu o segredo dos penteados com sua avó. Ela revelou que não se tratava apenas de representar características geográficas ou alertar sobre a presença de postos de vigilância: com suas cabeças criptografadas elas deveriam comunicar a todos qual era a estratégia. As tranças também indicavam pontos de encontro, marcados com várias fileiras de tranças convergindo no mesmo local, cada uma representando um caminho possível. Nesses pontos eles se encontravam durante a fuga para saber como estavam e tomar decisões. O último ponto ficava na nuca. Segundo explicou Leocádia, se – por exemplo – iam se encontrar debaixo de uma árvore, arrematavam a trança na vertical e para cima, para que ficasse em pé; se fosse à margem de um rio, eles a aplainavam na direção das orelhas. Além disso, às vezes havia tranças de comprimentos diferentes ao longo dos mesmos caminhos, dizendo a grupos diferentes até onde deveriam ir, pois os mais forte tinham de proteger a retaguarda. Todas essas informações e muitas outras foram passadas pelas cidades e campos da Colômbia colonial à vista de todos, mas para compreensão de apenas alguns. Infelizmente, esses penteados de libertação com o tempo se tornaram uma fator de estigma. "Algo particular aconteceu", diz Valencia. “As palenqueras ajudaram a formar cidades com sua arte. Mas depois houve uma ruptura com os penteados”, afirma. "Por quê? Porque quando elas estavam aparentemente livres e começaram a se integrar à sociedade, foram obrigadas a abrir mão de seus penteados, aquilo que era sua tradição, sua cultura." Embora algumas descendentes tenham recebido esse legado graças a histórias passadas de geração em geração, muitas tiveram que mantê-lo na esfera privada, e muitas outras nunca descobriram sua própria história ancestral. “Houve uma demanda dos empregadores e da sociedade em geral para unificar um modelo hegemônico de estética, de beleza, então as mulheres negras eram obrigadas a alisar o cabelo.” Desde então, diz Valencia, “tudo passa pelo cabelo... a violência começa desde o jardim de infância”. “Tem sido difícil, mas estamos avançando, graças aos diálogos, aos fóruns, a todos os processos formativos e culturais”, diz ela. “Conseguimos descolonizar mentes e corpos e agora é maravilhoso ver como temos uma vice-presidente negra [Francia Elena Márquez Mina] e uma ministra [da Educação, Aurora Vergara Figueroa]”, comemora a ativista. "A ministra Aurora me ligou para agradecer 'por ter me ajudado no meu autorreconhecimento', segundo me disse, porque ela também era uma das que alisava o cabelo, e era difícil para ela. Mas agora, ela está muito feliz mostrando toda sua ‘pretitude’ – como chamamos a expressão máxima da negritude – em público.” "Para as mulheres negras, passar por esses procedimentos químicos de alisamento e outros, apenas para tentar se encaixar, acredite, é muito traumático e muito, muito doloroso", conclui Valencia.
2023-03-12
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cnkw9153nl7o
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10 anos da morte de Chávez: o que resta do seu legado na Venezuela de Maduro
Poucos momentos são lembrados com tanta exatidão na Venezuela. 16h25 do dia 5 de março de 2013 é um deles. O então vice-presidente Nicolás Maduro anunciou em cadeia nacional de televisão que Hugo Chávez havia morrido naquele exato momento, após dois anos lutando contra um câncer sobre o qual nenhuma informação detalhada foi divulgada. O medo e a incerteza se espalharam com a morte do homem que foi presidente por mais de 13 anos e que mudou o rumo do país. Chávez chegou ao poder em 1999 após vencer as eleições com 56,5% dos votos. Foi um dos políticos latino-americanos mais importantes do século 21. Ele colocou a Venezuela no mapa mundial, mudou a forma de fazer política e de como as pessoas participam dela. Incluiu aqueles que antes não tinham voz, dando-lhes assistência social e fazendo-os se sentirem necessários. Fim do Matérias recomendadas Mas também levou a um país altamente polarizado, confrontou o setor privado, fechou veículos de comunicação, foi descrito como autoritário por seus rivais e criou as bases de uma economia que entrou em colapso logo após sua morte. Com isso, o país entrou em uma crise sem precedentes que ainda persiste. Em seus longos discursos na televisão, depôs ministros, expropriou empresas, deu conselhos e entregou casas. Em sua última aparição, em dezembro de 2012, após anunciar que teria que passar por uma cirurgia devido à recidiva do câncer, lançou aquele que também foi seu último testamento político. Disse que, se algo lhe acontecesse, a sua opinião "firme, cheia, como a lua cheia" num cenário de novas eleições presidenciais era que Nicolás Maduro fosse eleito presidente da república. Maduro foi um homem fiel a Chávez desde o início. Sob seu manto, foi constituinte, deputado, chanceler e, por fim, vice-presidente. "Chávez o preparou, ele o escolheu", diz a historiadora Margarita López Maya. Dez anos após a morte de Chávez, Maduro continua à frente de um país que ainda sofre com uma crise econômica e política, que viu 7 milhões de cidadãos deixarem seu território e cujo governo é investigado pelo Tribunal Penal Internacional por supostos crimes de lesa humanidade. A BBC Mundo, serviço em espanhol da BBC, analisa o que resta do legado de Chávez. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A Venezuela conheceu Chávez em 4 de fevereiro de 1992. Naquela ocasião, após lançar uma fracassada tentativa de golpe de Estado, pela primeira vez, a mídia deu ao militar microfones, luzes e câmeras e ele falou ao país. Seis anos depois, mais da metade dos venezuelanos votaram nele, fartos da política tradicional, da corrupção, da exclusão social e da crise financeira, econômica e social que se arrastava sobre o país desde os anos 1980. Os eleitores o viam "como um deles". A outra metade da população não esqueceu da tentativa de golpe e olhava para ele com desconfiança. Assim, de 1999, ano em que foi eleito, até 2003, foram anos conturbados. Em abril de 2002, alguns setores militares e empresariais lançaram um golpe que o manteve fora do poder por 48 horas, seguido de uma greve no setor petrolífero, principal motor econômico do país. Com a popularidade em jogo e a possibilidade de um referendo revogatório que o tiraria do poder pelas urnas, em 2003 Chávez aprovou a primeira “missão”: Barrio Adentro, um programa social para levar atenção primária à saúde aos bairros graças a um convênio com Cuba que implicava a troca de barris de petróleo venezuelano por médicos da ilha. A partir daí, e com a ajuda do alto preço do petróleo, fez das missões – um conjunto de programas sociais – sua marca de governo. Entre 2003 e 2012, com picos no período eleitoral, lançou um total de 31 missões, em áreas como saúde, educação, alfabetização e habitação. Muitas consistiam em bônus, ajuda financeira direta. Em outros casos, cuidado ou treinamento. "Chávez me deu..." ou "Graças a Chávez eu tenho..." foram algumas das frases que mais ouvi nos bairros populares de Caracas, onde morei por mais de dez anos. Era raro alguém não ter se beneficiado de alguma missão. Para os críticos, as missões eram um instrumento populista de controle social e compra de opiniões e votos que desencadeava gastos sem controle ou controladoria e que não solucionava os problemas estruturais do país. O aumento incomum do preço mundial do barril de petróleo em uma economia dependente ajudou a empurrá-los para frente. E a pressionar Chávez politicamente. "A economia melhorou e começamos a inventar mais missões. E começamos a subir nas pesquisas, e as pesquisas não falham. Não há mágica aqui, é política", disse Chávez. Maduro continuou com as missões. Mas, como indica Luis Vicente León, presidente da consultoria Datanálisis, entre os dois "não há comparação, nem na execução, nem no uso da comunicação" A disponibilidade de recursos também não é a mesma. E isso fica evidente na transformação das missões e em como elas chegam às pessoas. Por exemplo, a Missão de Alimentos, criada em 2003 para dar "segurança alimentar" à população, foi uma das mais importantes e sofreu uma mudança drástica. Essa missão distribuía alimentos e itens básicas a preços regulados pelo governo por meio de uma rede de supermercados, mercados e armazéns em todo o país. O acesso era como em qualquer outro negócio: você entrava, escolhia, pagava e ia para casa. Mas, depois da festa da fartura do momento de alta dos preços do petróleo, veio a ressaca e a hora de pagar a conta com a queda do preço do barril. A partir de 2014, a economia entrou em recessão, a escassez de divisas agravou-se, o setor privado declinou, começaram os desabastecimentos nos mercados, a estocagem de alimentos e a especulação. Esse foi o lado econômico. O lado mais duro, o social, foi ver como as pessoas emagreciam drasticamente, trocavam farinha por leite em pó. Longas filas para conseguir alimentos básicos se formavam em uma nova modalidade de racionamento onde se comprava por número do RG, com a premissa de "só dois por pessoa". Pessoas peregrinavam por dias em busca de medicamentos. Nesse contexto, a Missão Alimentar derivou em 2016 na popularmente chamada “caixa CLAP” (Comitês de Abastecimento e Produção Local), um combo de alimentos básicos, entregues quinzenalmente aos domicílios previamente cadastrados. Embora tenha sido uma ajuda aos setores mais pobres, não é isento de críticas: distribuição irregular ou às vezes inexistente, uso para chantagem e controle político, denúncias de alimentos de má qualidade e casos de corrupção em grande escala se acumulam. "É uma transferência direta, muito útil do ponto de vista da popularidade e do controle social. Cria-se o medo de perdê-la. Quem distribui sabe como você se comporta, se vai a protestos ou manifestações. Cria dependência", diz Luís Vicente León. Ainda hoje, 40% dos domicílios recebem a caixa Clap, segundo o último relatório do Centro de Estudos Agroalimentares. Uma ajuda essencial em um país onde a vida está cada vez mais cara e o poder de compra está diminuindo. "Exproprie-se!" Chávez repetiu a máxima até enjoar. Cumpriu o prometido e combinou isso com um forte discurso contra os empresários, principalmente depois do golpe que o afastou temporariamente do poder em 2002. Ele e Maduro acusaram os empresários de estocar alimentos, escondê-los e "fazer uma guerra econômica contra o povo" com especulação de preços. Exemplo emblemático foram os ataques ao magnata Lorenzo Mendoza, rosto público das Empresas Polar, responsável por grande parte da produção de alimentos do país e sobre os quais pairava de vez em quando o temor de expropriação. Isso se traduziu principalmente em duas medidas econômicas. A primeira, o controle de divisas, algo criado na década de 1980, mas que Chávez retoma "para ficar". A segunda foi o controle de preços para conter a inflação e fazer a "transição para o socialismo". “O modelo econômico anterior [a 2003] não estimulava o investimento estrangeiro e promovia a saída de capitais, o que levava a um controle, em princípio administrável, quando havia preços altos do petróleo”, diz Tamara Herrera, economista e diretora da consultoria Síntesis Financiera. A combinação de expropriações, ameaças e controles trouxe o debacle do setor privado, com cada vez menos incentivos. Pouco resta dessas medidas tomadas para "derrotar os vícios do capitalismo", como disse Chávez, pelo menos na prática. "O controle cambial tornou-se insustentável e foi desmantelado em 2018", diz Herrera. Nos últimos anos, Maduro também mudou sua relação com os empresários, suspendeu o controle de preços e, hoje, o "dólar criminoso", como o presidente o descreveu, circula livremente em uma economia na prática dolarizada. À ruptura do tecido econômico nacional juntaram-se as sanções impostas pelos Estados Unidos a partir de 2017 que proíbem a Venezuela de emitir dívida ou fazer negócios com a PDVSA, a petroleira estatal. Washington considera que Maduro não é um presidente legítimo porque, nas eleições de 2018, grande parte da oposição não participou por falta de garantias eleitorais. Luis Vicente León, da Datanálisis, explica que, por não ter musculatura econômica nem capacidade de produzir ou comprar bens para abastecer o mercado nacional, isso obrigou o governo Maduro a buscar alternativas de abastecimento no setor privado e ajustar a política econômica. Se em 2015 não encontrei farinha, leite e açúcar, lembro-me de como em junho de 2019 vi, pela primeira vez em anos, os três alimentos na mesma prateleira. Claro, a preços incomuns e mais caros do que em outros países sem crise. Também me surpreendi à época com a naturalidade com que as pessoas começaram a manusear o dólar na rua e para qualquer transação enquanto, em 2010, quando cheguei ao país, o dólar era negociado com temor no mercado negro. Isso não significa, no entanto, mais bonança. Chávez conseguiu reduzir a pobreza em mais da metade, segundo dados da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, órgão das Nações Unidas), e reduzir a desigualdade. Mas essa tendência se inverteu, segundo dados da Pesquisa de Condições de Vida (Encovi), e a Venezuela é atualmente o país mais desigual da América Latina. Embora tenha havido alguma abertura econômica e crescimento, o dano à economia é grande e, segundo Tamara Herrera, da Síntesis Financiera, se não forem feitas mudanças profundas, ela continuará em risco. Como resultado da crise econômica e social, mais de 7,1 milhões de venezuelanos deixaram o país, segundo dados da ONU. "[De Chávez] O mais importante e que vai perdurar é a tentativa de empoderar uma parte importante da população, que os mais oprimidos tenham consciência de seu potencial político", diz Carlos Malamud, catedrático de história da América e principal pesquisador do centro de pesquisa espanhol Real Instituto Elcano. De origem humilde, Chávez contrastou com os políticos anteriores. E explorou essa diferença. Ele se conectou com a população que nunca se viu refletida em seus governantes e os incentivou a participar da política do país, da qual antes eram excluídos. Campanhas massivas para tirar documentos ou abrir conta bancária para quem nunca teve uns ou outra, ou a participação em unidades de base onde apresentavam seus pedidos ao governo foram alguns exemplos. E isso se traduziu em apoios e votos, algo que Maduro tentou manter ao longo dos anos graças ao alto nível de organização mantido pelo núcleo duro do chavismo. "É uma participação muito pobre, mais fictícia do que real, mas o discurso subjacente é a atenção social. E, na política agora na Venezuela, mesmo a oposição, para ter sucesso, precisa se conectar com essa base da população", afirma León. Nos bastidores, todos concordam que Chávez colocou a Venezuela no mapa. Seu caráter personalista e carismático, o interesse em criar alianças na região como um muro de contenção para o "império ianque", "realizando o sonho de Simón Bolívar" de unir a América Latina, junto com as dádivas do petróleo, combinaram-se a favor disso. Seu impulso foi fundamental para criar a Alba (Aliança Bolivariana para os Povos da América) em oposição à Alca (Área de Livre Comércio das Américas), bem como a Unasul (União de Nações Sul-Americanas) e a Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos). Essa política de relações internacionais foi chamada de "diplomacia do petrodólar". "Ele se tornou um líder hemisférico e regional. Era o primeiro a socorrer a região [do Caribe] se havia alguma catástrofe e ele dava dinheiro", observa a historiadora Margarita López Maya. "Essa liderança foi possível devido à associação com Fidel Castro e à enorme disponibilidade de recursos. Sem a PetroCaribe [aliança petrolífera dos países do Caribe com a Venezuela] e outras instâncias de cooperação, é muito difícil pensar que ele teria desempenhado esse papel", afirma Malamud. O panorama, porém, não é mais o mesmo. Se Chávez viajou quilômetros e fez alianças no mundo, com o governo Maduro perdeu-se boa parte disso. O isolamento internacional de Maduro ocorreu não só pela queda do poder aquisitivo, mudanças de sinal político na região ou pela comparação com Chávez. Com o aparecimento de Juan Guaidó em 2019, que se proclamou presidente interino da Venezuela após argumentar que o governo era ilegítimo depois das eleições de 2018 por não ter cumprido preceitos democráticos, Maduro perdeu o reconhecimento de mais de 60 países. Ele mantém ainda antigas alianças, como China, Rússia, Bielorrússia ou Turquia e recuperou outras, como a Colômbia, com a mudança de sinal político no país vizinho, após a eleição do esquerdista Gustavo Petro. Mas, na opinião de Malamud, do Real Instituto Elcano, a Venezuela se tornou "um problema para muitos países latino-americanos devido às violações dos direitos humanos, e políticos e até governantes de esquerda, como Gabriel Boric [Chile], a condenam abertamente". Atualmente, o governo Maduro enfrenta uma investigação no Tribunal Penal Internacional por crimes contra a humanidade. Embora recentemente tenha recuperado espaço no cenário internacional com a chegada de Petro ao poder na Colômbia e o retorno de Lula no Brasil, e com alguma distensão em Washington, o presidente mal sai de seu país e se concentra em vencer as eleições de 2024, nas quais o mundo vai olhar para a Venezuela novamente. Neste fim de semana houve homenagens do governo a Chávez pelos dez anos de sua morte. Apesar de ainda ser muito querido e adorado por parte da população, outros o culpam por ser a origem da crise que abala o país há anos. Enquanto isso, nas paredes de Caracas, os cartazes com o rosto do comandante estão desbotando. Os anos se passaram, o país mudou e seu legado também. Mas, segundo Margarita López Maya, "o maior legado de Chávez é o governo de Nicolás Maduro".
2023-03-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c512nkx6d8yo
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'Esse feto poderia ter sido seu filho': os obstáculos que argentinas enfrentam para fazer aborto legal
Maria* tinha 23 anos quando decidiu fazer um aborto. No posto de saúde onde foi buscar atendimento, ela conta que ouviu um médico dizer a uma colega: "Quando essas meninas vão aprender a ficar com as pernas fechadas?". Maria mora em Salta, uma Província religiosamente conservadora no noroeste da Argentina, onde muitos profissionais de saúde ainda são contra o aborto. Ela acabou recebendo uma pílula para interromper a gravidez, mas ela diz que as enfermeiras relutaram em tratá-la e queriam fazê-la se sentir culpada: "Depois que expulsei o tecido da gravidez, pude ver o feto". "As enfermeiras colocaram em uma jarra para garantir que eu visse e me disseram: 'Pode ter sido seu filho'." A Argentina mudou sua lei sobre o aborto em 2020, permitindo que a mulher opte por interromper a gravidez nas primeiras 14 semanas. Anteriormente, era permitido apenas em caso de estupro ou se a vida ou a saúde da mulher estivesse em risco. O aborto é uma questão altamente controversa na Argentina, onde mais de 60% das pessoas são católicas e 15% são evangélicas, com a liderança de ambas as religiões se opondo à prática. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A nova lei permite que os profissionais de saúde se abstenham de realizar abortos. “Assim que a lei foi aprovada, declarei minha objeção de consciência”, diz o médico pediatra Carlos Franco, que trabalha na mesma região em que Maria vive. Ele estima que 90% dos profissionais de saúde do principal hospital público da Província tenham feito o mesmo. Franco diz que seus anos estudando embriologia o deixaram com a crença de que a vida começa na fertilização. “Meu dever, como médico, é cuidar e proteger a vida humana desde a fase embrionária”, acrescenta. Isso ajuda a explicar por que mulheres como Maria estão tendo tantos problemas para acessar o aborto legal. María havia passado inicialmente dois dias no centro de saúde esperando para ser atendida por um médico. Quando nenhum veio, ela procurou ajuda nas redes sociais e encontrou Mónica Rodriguez, uma ativista local, que a auxiliou a registrar uma reclamação no hospital e garantir uma consulta. Rodriguez diz que recebe cerca de cem telefonemas por mês de mulheres em Salta que estão tendo dificuldades semelhantes para obter acesso a abortos seguros. Ela disse à BBC que seu principal trabalho é simplesmente ouvir: "Embora eu não recomende o aborto, também não romantizo a maternidade". A campanha para expandir o direito ao aborto na Argentina levou décadas, mas Valeria Isla, diretora de saúde sexual e reprodutiva do Ministério Nacional da Saúde, diz que houve um progresso significativo. Ela cita números oficiais que mostram que o número de mães que morrem por aborto caiu 40% desde que a lei foi promulgada em 2021. O número de centros de saúde pública que oferecem abortos aumentou mais da metade no mesmo período, e o medicamento misoprostol, que induz abortos, agora está sendo fabricado no país, tornando-o mais amplamente disponível. Longas esperas por tratamento e o estigma social em torno do aborto podem tornar as mulheres vulneráveis a práticas corruptas. Houve casos relatados de mulheres sendo forçadas a pagar centenas de dólares por tratamentos que deveriam ser gratuitos em unidades de saúde pública. "Existe uma máfia", diz María Laura Lerma, psicóloga que mora em uma remota comunidade nas montanhas de Jujuy, no noroeste do país. "Em muitas áreas rurais da Argentina, alguns médicos que trabalham no hospital público levam os pacientes para suas clínicas particulares." O governo instou as mulheres a denunciar as acusações de corrupção, mas muitas mulheres nas áreas rurais têm muito medo de fazê-lo. Os médicos que concordam em realizar abortos têm sido alvo de medidas legais desonestas. Em setembro de 2021, um médico em Salta foi detido brevemente após a acusação da tia de uma paciente de 21 anos de que ela havia feito um "aborto ilegal". A acusação era falsa, mas levou um ano para que um tribunal encerrasse o caso. “Organizações antiaborto têm conexões históricas com juízes e pessoas no poder e as usam para gerar medo e colocar em risco a liberdade dos médicos que praticam abortos”, diz Rocío García Garro, advogada do grupo pró-aborto Católicas pelo Direito de Decidir. Ativistas antiaborto também estão usando os tribunais para tentar obter a declaração de inconstitucionalidade da lei do aborto. Cristina Fiore, deputada do parlamento local de Salta, é uma delas. "Acreditamos que a vida humana começa na concepção e somos contra essa cultura descartável", diz ela. Até agora, todos os questionamentos legais falharam. Maria deixa claro por que escolheu não continuar com a gravidez: "Nunca quis ser mãe... Meus pais me abandonaram, e esse é um trauma que levei anos para superar". Ela diz que quer que o treinamento seja aprimorado para enfermeiras e ginecologistas para evitar que outras sofram como ela. "Há muitas mulheres, especialmente nas pequenas cidades do interior, que são discriminadas como eu e nem todas se atrevem a falar." *O nome foi alterado para proteger a privacidade da entrevistada.
2023-03-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72xdzkzy84o
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O país que não existe, mas participou de reunião da ONU
Os Estados Unidos de Kailasa participaram de sessões de dois debates na Organização das Nações Unidas (ONU). À primeira vista, a informação não parece novidade, pois é o que se espera dos países membros do órgão internacional. O problema é que Kailasa nem faz parte da ONU e nem é um Estado oficial. O fato causou alvoroço e obrigou a ONU a garantir que ignorará as declarações feitas pelos representantes do país fictício perante duas de suas instâncias em Genebra (Suíça). Um funcionário garantiu que a participação dos representantes do Kailasa foi "irrelevante" e "tangencial" para os assuntos que estavam sendo discutidos. O autoproclamado guru hindu Nithyananda Paramashivam afirma ter fundado os Estados Unidos de Kailasa em 2019. Fim do Matérias recomendadas Onde? Supostamente em uma ilha que teria comprado do Equador, segundo afirmou o próprio Paramashivam em 2019. Naquele ano, o Equador negou que o guru estivesse em seu território ou tivesse dado asilo a ele. De acordo com o site Kailasa, o suposto Estado, que recebeu esse nome por conta de uma montanha do Himalaia que acreditam ser a morada do deus hindu Shiva, afirma contar com "dois bilhões de hindus praticantes" entre sua população. Ele também afirma ter uma bandeira, uma constituição, um banco central, um passaporte e um emblema. Em janeiro de 2023, o país imaginário também afirmou ter assinado um acordo com as autoridades da cidade americana de Denver,. O fato é apresentado como reconhecimento de sua existência. Mas, se não bastasse tudo isso, o suposto pai fundador do "primeiro Estado soberano dos hindus" é procurado pela Justiça indiana para responder a acusações de estupro e agressão sexual. Uma discípula do suposto líder religioso o acusou de estupro em 2010. Logo depois, ele foi detido brevemente pela polícia antes de ser libertado sob pagamento de fiança. Em 2018, ele foi acusado no tribunal. Dias antes de deixar a Índia, outra denúncia foi feita pelo sequestro e confinamento de crianças em seu ashram (mosteiro), localizado no Estado de Gujarat, também na Índia. Nithyananda, cujo paradeiro é desconhecido, negou as acusações contra ele. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A presença do país inexistente em duas sessões do comitê da ONU no final de fevereiro não passou despercebida na Índia, onde foi noticiada pela imprensa e viralizou nas redes sociais. O governo de Nova Delhi não comentou o incidente. Um funcionário da ONU admitiu à BBC por e-mail que "representantes de Kailasa participaram de duas sessões públicas em Genebra", relatou Meryl Sebastian. O primeiro evento em que as autoridades do Estado inexistente conseguiram se infiltrar foi um debate sobre a representação das mulheres nos sistemas de tomada de decisão, organizado pela Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (Cedaw, por sua sigla em inglês), no dia 22 de fevereiro. Dois dias depois, os supostos diplomatas também participaram de uma discussão sobre desenvolvimento sustentável, organizada pelo Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Ecosoc). Vivian Kwok, assessora de imprensa do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, atribuiu o incidente ao fato de que esses tipos de diálogo são reuniões públicas e abertas a qualquer pessoa interessada. A ONU é formada por 193 Estados membros, embora também permita a participação de alguns povos que não possuem Estado próprio, mas com a aprovação da maioria de seus membros, como é o caso dos territórios palestinos. No entanto, o fato representa um incidente embaraçoso que põe em questão o rigor dos protocolos das Nações Unidas. "Nem todos podem entrar para assistir a uma conferência, sessão ou discussão de um órgão da ONU, muito menos participar. É preciso se inscrever com antecedência", disse à BBC News Mundo Mercedes de Freitas, diretora da organização Transparência Venezuela. Há mais de uma década, ela vai às diferentes instâncias do sistema das Nações Unidas para apresentar questões do país latino-americano. “O processo de cadastramento não é fácil. Para as organizações da sociedade civil, por exemplo, é necessário ter uma organização já cadastrada na ONU”, explicou. Um vídeo da segunda sessão publicado no site da ONU mostra que, no momento que os participantes são convidados a fazer perguntas, uma mulher se apresenta como Vijayapriya Nithyananda, "a embaixadora permanente de Kailasa nos EUA" e diz que perguntará sobre "direitos indígenas e desenvolvimento sustentável". A interventora descreveu Kailasa como o "primeiro Estado soberano para os hindus" estabelecido por Nithyananda, o "supremo pontífice do hinduísmo". Ela também afirmou que o país tem tido "sucesso com o desenvolvimento sustentável" porque fornece necessidades básicas como alimentação, habitação e cuidados de saúde gratuitamente a todos os seus cidadãos. A suposta embaixadora aproveitou sua vez para solicitar medidas para "parar a perseguição" contra Nithyananda e o povo de Kailasa, relatou Meryl Sebastian. Nithyananda não aparece em público há três anos, embora vídeos de seus sermões sejam publicados regularmente em seus canais nas redes sociais. O jornal britânico The Guardian noticiou em 2022 que o representante de Nithyananda no Reino Unido compareceu a "uma glamourosa festa de Diwali na Câmara dos Lordes", a convite de dois membros do Partido Conservador. O requisitado guru publicou no Twitter uma foto de seu suposto embaixador participando do evento da ONU e depois apresentou, na mesma rede social, os representantes diplomáticos de seu suposto Estado em diversas partes do mundo, incluindo Reino Unido, Canadá e Caribe.
2023-03-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxex66yy0vno
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Os incríveis aquedutos que podem ajudar a explicar as famosas Linhas de Nazca
As Linhas de Nazca, no sul do Peru, são um enigma histórico que há décadas desperta a imaginação e a curiosidade de viajantes, historiadores e arqueólogos. Hoje, sabe-se que as gigantescas linhas e geoglifos foram obra dos habitantes da cultura nazca, que habitaram a região da cidade de Ica entre os séculos 1 e 7, no deserto costeiro no centro-sul do Peru. Mas ainda existem muitas incógnitas, que deram origem às mais diversas interpretações. Algumas atribuem a formação das linhas à ação de extraterrestres. Sabe-se também que nem a cultura nazca nem as linhas fabulosas teriam sido possíveis sem o extraordinário sistema de poços e canais subterrâneos de Nazca. Esses aquedutos permitiram que os campos de Nazca fossem irrigados e produzissem os alimentos necessários para o florescimento de uma cultura próspera em uma das áreas mais áridas e inóspitas do continente americano. Fim do Matérias recomendadas Eles foram batizados de “olhos de água", devido aos pontos de captação de água dos aquedutos e aos respiradouros em forma de espiral com cerca de sete metros de profundidade que permitem o acesso à água em alguns pontos da rede. Ana María Cogorno, presidente da Associação María Reiche, diz que "sem água não há vida, então, toda essa cultura única não teria sido possível sem os aquedutos". Cogorno faz parte de um projeto de conservação dos aquedutos, em colaboração com o Ministério da Cultura do Peru, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e a multinacional peruana de refrigerantes AJE Group. Muitos ainda são usados hoje ​​para fornecer água aos habitantes da região. Os aquedutos de Nazca são um sistema hídrico surpreendentemente avançado para a época. Segundo o Ministério da Cultura do Peru, a maioria foi construída entre os anos 300 e 500, entre os períodos conhecidos como Nazca Primitiva e Nazca Média. Estima-se que eles datem de uma época próxima à da construção das linhas e geoglifos. É um sistema de galerias filtrantes, com poços, reservatórios e canais (alguns subterrâneos e outros a céu aberto) escavados pelos nazca. Dessa maneira, foi possível extrair a água do lençol freático sob os terrenos desérticos. O sistema capta a água por filtração e a conduz por trechos subterrâneos e descobertos até ser armazenada em um reservatório de onde é posteriormente distribuída para lavouras. Os canais têm uma extensão de mais de 9,5 km e conseguem irrigar mais de 3 mil hectares de terra (o equivalente a cerca de 4,2 mil campos de futebol). Alberto Martorell, chefe da Diretoria Descentralizada de Cultura de Ica, destaca que eles "foram feitos com a água de infiltração e neve dos Andes, que passava pelo subsolo e, dali, era captada pelos aquedutos de uma área onde não há água na superfície durante a maior parte do ano. Quem estuda a cultura de Nazca também a admira por seu conhecimento de astronomia e matemática. Os canais são mais um exemplo da sabedoria deste mundo antigo e misterioso. Martorell indica, no entanto, que, embora a rede tivesse basicamente a finalidade de irrigação, "a proximidade de algumas nascentes com outras sugere que elas também tinham um uso cerimonial". A cultura nazca é uma das ricas civilizações pré-hispânicas, cujo legado enche de orgulho muitos peruanos. Os historiadores concordam que seu desenvolvimento desempenhou um papel fundamental na evolução humana no território do Peru. A maioria dos especialistas considera os aquedutos de Nazca uma das criações mais originais desta cultura e uma das mais decisivas para seu desenvolvimento. O arqueólogo Abdul Yalli destaca que “é um sistema hidráulico único no mundo andino”. Por isso, é protegido pelo Estado peruano como Bem Cultural da Nação desde 2006, e a Unesco colabora com os esforços de conservação. A continuidade de seu uso o converteu em uma questão vital para os habitantes da região, além de seu valor histórico e cultural. Os aquedutos melhor preservados ainda estão em operação, mas outros não foram conservados da mesma maneira. Yalli explica que “alguns aquedutos estão abandonados e alguns até desapareceram devido à expansão urbana de Ica”. Yalli foi um dos responsáveis ​​pelo projeto de reabilitação dos aquedutos de Ocongalla e Cantalloc. Em Ocongalla, foram removidos 500 metros de matagal e erguidos 120 metros de muros. O objetivo é continuar a médio prazo os trabalhos com outros aquedutos e criar um centro de interpretação arqueológica em Ocongalla que ajude a aprofundar o aprendizado do uso racional da água. Para Cogorno, que se dedica à recuperação do legado da cultura nazca, "as linhas e aquedutos formam uma obra espetacular e, por isso, é um local sagrado, onde se sente o valor de milhares de anos de história e que vale a pena preservar”.
2023-03-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4nj0gnrjgro
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Boliviano sobrevive 31 dias perdido na Amazônia comendo minhocas e insetos
Um homem boliviano contou como conseguiu sobreviver por 31 dias na selva amazônica depois de se perder. Jhonattan Acosta, de 30 anos, se separou de seus quatro amigos enquanto caçava no norte da Bolívia. Ele disse que bebia água da chuva coletada em seus sapatos e comia minhocas e insetos, enquanto se escondia de onças e queixadas, uma espécie de mamífero semelhante ao porco. Acosta foi finalmente encontrado por um grupo de busca formado por moradores e amigos um mês depois de seu desaparecimento. "É incrível, não acredito que as pessoas continuaram a busca por tanto tempo", afirmou ele em meio às lágrimas. Fim do Matérias recomendadas “Comi minhocas, comi insetos, nem vão acreditar em tudo o que tive de fazer para sobreviver todo este tempo”, disse à emissora Unitel TV. Jhonattan também comeu frutas silvestres semelhantes ao mamão, conhecidas localmente como gargateas. "Agradeço muito a Deus, porque ele me deu uma nova vida." Seus familiares disseram que ainda estavam tentando entender como Acosta se perdeu e conseguiu se manter vivo, mas que fariam perguntas aos poucos, porque ele ainda está psicologicamente abalado após a experiência. Jhonattan perdeu 17 kg, deslocou um tornozelo e ficou desidratado, mas ainda conseguia andar mancando, segundo os homens que o resgataram. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Meu irmão nos disse que quando deslocou o tornozelo no quarto dia, achou que ia morrer", disse Horacio Acosta, irmão mais novo de Jhonattan ao jornal Página Siete, da Bolívia. “Ele tinha apenas um cartucho na espingarda, e achava que ninguém mais o procuraria”, acrescentou. Jhonattan não tinha facão nem lanterna quando se perdeu e teve que usar as botas para recolher água da chuva para beber. Ele também disse a seus parentes que se deparou com animais selvagens, incluindo uma onça. Seu irmão mais novo contou que Jhonattan usou seu último cartucho para afugentar um bando de queixadas. Após 31 dias, ele avistou um grupo de busca a cerca de 300 metros de distância e mancou em direção a eles através de arbustos espinhosos, gritando para chamar a atenção. Horacio Acosta disse que seu irmão foi encontrado por quatro moradores. "Um homem veio correndo para nos dizer que encontraram meu irmão. É um milagre." Segundo ele, Jhonattan decidiu desistir da caça para sempre. "Ele vai tocar música para louvar a Deus. Ele prometeu isso a Deus, e acho que vai cumprir sua promessa", disse Horacio sobre seu irmão, que toca violão. Enquanto isso, a polícia afirmou que iria interrogar os quatro amigos do sobrevivente para entender como Jhonattan se separou deles.
2023-03-01
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0k7yww71xqo
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Por que cultivo legal de maconha não é tão rentável na América Latina
A maconha de cultivo clandestino alimentou uma das indústrias mais lucrativas do mundo no século 20 na América Latina. À medida que a legalização foi aprovada em alguns países nos últimos anos, contudo, o produto tem virado um negócio muito menos atraente na região. México, Colômbia e, anos depois, países como o Paraguai abrigaram vastas indústrias de produção ilícita de maconha, amplamente conhecidas tanto por sua violência quanto por seus lucros. Neste século 21, seguindo o exemplo inicial do Uruguai, que legalizou o cultivo em 2013, várias nações latino-americanas deram o passo para promover uma gradual legalização do setor. Hoje, a maconha para fins medicinais é legal em países como Argentina, Chile, Colômbia, México e Peru. Esse setor movimenta mais de US$ 170 milhões anualmente na região, segundo estimativas da consultoria Euromonitor. O que não tem sido observado, porém, são os grandes lucros que alguns esperavam com a legalização. Fim do Matérias recomendadas "A indústria da cannabis na Colômbia está concentrada no setor de cuidados intensivos", diz Miguel Samper à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC. Ele é chefe da associação de produtores legais de maconha no país, a Asolcolcanna. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A Colômbia foi, depois do México, um dos maiores produtores clandestinos de maconha no século 20, durante um período conhecido no país sul-americano como "bonanza marimbera". Essa fase antecedeu a ascensão dos grandes cartéis de cocaína, que em décadas posteriores originaram uma triste fama ao país. Os ventos da legalização chegaram à Colômbia em 2016, quando o então vice-ministro da Justiça, Miguel Samper, viu o país se tornar o quinto do mundo a tornar legal e regulamentar a maconha para fins medicinais. No entanto, depois de estar na vanguarda, "a Colômbia foi relegada a segundo plano" no desenvolvimento da indústria, diz Samper, que hoje é dirigente sindical. O país tem 57 mil hectares autorizados pelo governo para o cultivo legal de cannabis, mais do que qualquer outro país da América Latina. Segundo Samper, contudo, apenas cerca de 520 hectares desse total, ou cerca de 1%, estão realmente sob cultivo. Ele estima ainda que, até 2022, cerca de uma em cada três das 1,3 mil empresas oficialmente licenciadas para o cultivo se retiraram efetivamente do negócio. Em sua avaliação, um dos problemas do setor é que a produção local não encontra mercado na indústria farmacêutica. O governo não autorizou a fabricação em escala industrial de nenhum medicamento feito com a cannabis colombiana, diz ele. A Colômbia não é o único caso de expectativas frustradas na indústria da cannabis na região. A legalização parcial, afirma o analista sênior da consultoria Euromonitor Erwin Henriquez, não significou o fim iminente das atividades criminosas em torno do cultivo ilícito de maconha. "O mercado ilegal de cannabis ainda é significativamente maior do que qualquer mercado legal", ressalta. "Nossa estimativa é de que continue crescendo." Na América Latina, o consumo per capita de maconha mal chega a US$ 1 por ano, ante US$ 88 nos Estados Unidos, afirma Henriquez. Em conversa com a BBC News Mundo, ele também falou sobre o que considera falsas ideias criadas em torno da nova indústria em torno da legalização. Com o tempo, argumenta, o aspecto clandestino pode começar a desaparecer, apontando para o fato de que no Canadá, pela primeira vez, a indústria legal superou o cultivo ilegal de maconha. "A legalização da cannabis não é uma cura instantânea para a existência do mercado ilícito", opina. Outros acreditavam que com a legalização da maconha seriam abertas grandes oportunidades de exportação para os Estados Unidos. Mais uma vez, diz Henriquez, isso não acontece necessariamente na realidade. "Os Estados Unidos não são um grande mercado de exportação de cannabis para a América Latina." Uma das razões, segundo ele, se deve ao fato de que a indústria legal do país "tem capacidade para atender o mercado interno". Mercados como o Oriente Médio e a Ásia, por outro lado, poderiam ser mais atraentes, acrescenta. A imagem que os especialistas pintam dessa indústria na América Latina até o momento é de uma coleção de expectativas não atendidas. Esses mesmos especialistas avaliam, contudo, que essas frustrações podem mudar em breve. "Na indústria da cannabis, a América Latina deverá ser a região com maior crescimento em cinco anos. Em termos reais, crescerá bem próximo ao ritmo observado na Europa Ocidental", diz Erwin Henriquez. Muitos países latino-americanos têm vantagens competitivas naturais para o produto. Por causa da ausência de estações marcadas, podem obter até três colheitas por ano. A terra, a mão de obra e a energia elétrica são geralmente mais baratas do que em outras áreas da Europa ou da América do Norte. Pesquisadores apontam que muito do desenvolvimento dessa indústria dependerá da forma como se desenvolverá o debate sobre a futura regulamentação da indústria, e especialmente da maconha para uso recreativo, nos parlamentos das nações latino-americanas. México e Colômbia, dois dos grandes mercados potenciais, estão discutindo projetos legislativos que legalizam e regulamentam o "uso adulto" da maconha. Apenas dois países no mundo deram o passo completo para legalizar e regulamentar a cannabis para fins recreativos: Canadá e Uruguai. A Colômbia é, certamente, um dos países onde há expectativa sobre como essa discussão se desenvolve, sobretudo com a chegada de Gustavo Petro ao poder, em 2022, à frente de um novo governo, que, ao contrário do seu antecessor, parece olhar com bons olhos para a descriminalização e regulamentação da maconha recreativa. Samper disse à BBC News Mundo que agora "há ares de otimismo" na indústria da maconha colombiana, dada a "vontade política manifestada por Petro" de assumir "uma nova abordagem para a política de drogas". O presidente colombiano tem dito que quer uma abordagem menos repressiva nas ações antidrogas e garante que busca proteger os pequenos produtores. "A cannabis será o trem de pouso perfeito para a nova política de drogas, que é contrária à abordagem proibicionista que só deixou ondas de violência e décadas de sofrimento no país", diz Samper. O presidente colombiano diz que, apesar de a legislação colombiana exigir que todas as empresas participantes do mercado tenham sido legalmente constituídas no país, até agora várias das principais contaram com participação de capital estrangeiro. Petro se referiu a essa situação com apenas quatro dias de mandato, quando em 11 de agosto de 2022 disse em um discurso: "Será a multinacional canadense que fica com os dólares e faz as plantações de cannabis? Ou serão os produtores de cannabis (da região colombiana) de Cauca? Por que não podem?” Para Miguel Samper, a participação das multinacionais no mercado de cannabis medicinal é resultado dos altos investimentos necessários para atender aos altíssimos padrões de qualidade da indústria farmacêutica global. Ele afirma que, sem descuidar da saúde pública, um eventual mercado de maconha recreativa não precisaria ter barreiras de entrada tão altas e, portanto, haveria mais agricultores locais participando dos lucros, especialmente se o governo relaxar os requisitos existentes para se obter uma licença. Samper estima que cada hectare de cultivo legal de maconha em produção na Colômbia gere 20 empregos diretos e quase 18 indiretos. Se levarmos em conta que o país sul-americano já possui mais de 56 mil hectares autorizados, mas ainda não cultivados, o potencial de geração de empregos também seria bastante amplo. Apesar do que Petro propõe, a proposta de aprofundar a legalização da maconha para incluir o consumo recreativo tem fortes opositores políticos na Colômbia e em muitos outros países da região. "Os progressistas deveriam entender que a Colômbia rechaça a legalização da cannabis recreativa, que não é nada recreativa, apenas causa destruição da pessoa", escreveu no Twitter a senadora e líder da direita colombiana María Fernanda Cabal em novembro passado. Cabal citou em seu tuíte uma pesquisa da empresa colombiana Invamer que afirmava que 57% de seus compatriotas são contra a legalização da maconha para fins recreativos. No México, outro dos grandes mercados potenciais de expansão, a decisão final de legalizar o "uso adulto", já aprovada pela Câmara dos Deputados, está nas mãos do Senado do país. Em 19 de janeiro passado, o presidente da comissão de finanças do Senado mexicano, Alejandro Armenta, afirmou que a discussão seria retomada em fevereiro. Os anúncios em torno das liberações de leis contra a maconha na América Latina têm gerado mais expectativas do que resultados na última década. Resta saber se agora, com a legalização mais profunda, haverá uma nova bonança econômica na região.
2023-02-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cp096qmyvngo
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Como Maduro saiu do isolamento e reata relações com outros países
Esta reportagem foi atualizada em 30 de maio de 2023. Nicolás Maduro já conheceu tempos mais difíceis. Há pouco mais de quatro anos, quando assumiu um novo mandato em janeiro de 2019, após eleições que grande parte da comunidade internacional considerou fraudulentas, o governante venezuelano recebeu como resposta uma dura onda de rejeição internacional. Com a rejeição política, que em alguns países significou a expulsão dos embaixadores de Maduro, vieram as sanções petrolíferas impostas pelo então governo de Donald Trump, a perda do controle de ativos venezuelanos nos Estados Unidos e em alguns países europeus, bem como uma denúncia de narcotráfico do departamento de combate às drogas dos Estados Unidos (DEA, em inglês), que ofereceu recompensa de US$ 15 milhões para quem fornecesse informações que permitissem a captura do presidente venezuelano. Fim do Matérias recomendadas Enquanto ocorria essa crise diplomática, a Venezuela sofreu com uma hiperinflação, viu a sua capacidade de produção de petróleo despencar e causou a maior crise migratória que o continente americano conheceu em décadas. Nos últimos tempos, no entanto, as coisas parecem ter começado a mudar. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Quatro anos depois, algumas portas que haviam sido fechadas para Maduro começaram a ser abertas. Paulatinamente, aumenta o número de governos que o reconhecem e que passam a convidá-lo para eventos internacionais. Em setembro de 2021, o governante venezuelano participou da reunião da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) no México, a convite do presidente Andrés Manuel López Obrador. Ao longo de 2022, o governo dos Estados Unidos enviou delegações de alto nível a Caracas que negociaram a libertação de executivos americanos da empresa Citgo que estavam presos na Venezuela por acusações de corrupção. Em contrapartida, o presidente Joe Biden libertou os venezuelanos Franqui Flores e seu primo Efraín Castro Flores — sobrinhos da primeira-dama venezuelana, Cilia Flores —, que cumpriam pena de 18 anos de prisão nos Estados Unidos por narcotráfico. Em troca do governo Maduro sentar-se novamente para negociar no México com a oposição venezuelana, Biden também relaxou as sanções ao petróleo em novembro de 2022 para permitir que a empresa americana Chevron expandisse suas operações na Venezuela. Além disso, naquele mês, Gustavo Petro se tornou o primeiro presidente da Colômbia a visitar Maduro desde 2016. Poucas semanas depois, Maduro participou da Cúpula do Clima no Egito, onde teve um encontro em um corredor com o presidente francês, Emmanuel Macron, que apertou sua mão, o chamou de presidente e levantou a possibilidade de iniciar um trabalho bilateral em benefício da Venezuela. Ainda nessa mesma conferência, Maduro também apertou a mão do enviado especial de Biden para o clima, John Kerry, embora logo Washington tenha esclarecido que se tratou de um encontro casual. No fim de dezembro passado, o governo da Espanha — um dos que haviam reconhecido Guaidó — nomeou um novo embaixador em Caracas, cargo que estava vago desde 2020 devido às tensões com Maduro. E o ano de 2023 começou com um convite do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para que Maduro acompanhasse a posse do petista em Brasília, no início de janeiro. Para isso, o governo de Lula negociou com a equipe de transição do ex-presidente Jair Bolsonaro para derrubar as restrições que haviam sido impostas pelo governo anterior sobre a entrada de Maduro no país. O venezuelano não compareceu a Brasília naquela ocasião, mas viajou a Brasília para uma reunião dos chefes de Estado e de governo de 11 países latinoamericanos nesta terça-feira (30/5). O venezuelano estava acompanhado da primeira-dama, Cilia Flores, quando subiu a rampa do Palácio do Planalto para uma reunião bilateral com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Maduro não vinha ao Brasil desde janeiro de 2015, quando esteve na posse da ex-presidente Dilma Rousseff, também do PT. "Temos pressa de retomar as relações com a Venezuela e toda a América do Sul. Nossos ministros têm que conversar mais, empresários dos dois países devem conversar mais, universidades devem falar mais de ciência e tecnologia. É preciso que os empresários brasileiros voltem a investir na Venezuela e na América do Sul e restabelecer mecanismos auspiciosos de cooperação como já tivemos”, disse Lula ao receber o venezuelano. Mas, afinal, o que tornou possível essa nova inserção, ainda tímida, de Maduro no cenário internacional? Geoff Ramsey, diretor do programa da Venezuela no Washington Office for Latin America (WOLA), uma ONG americana focada em cuidados relacionados à América Latina), acredita que essa mudança é uma mostra de pragmatismo. A comunidade internacional, diz, está assumindo que a estratégia de "pressão máxima" aplicada por Trump sobre Maduro — por meio do reconhecimento de Guaidó e de ameaças e sanções — não foi capaz de gerar uma transição na Venezuela. "Estamos entrando em uma nova fase, na qual mais países da região reconhecem a realidade de que, embora Maduro não tenha um mandato democrático, ele é o poder de fato no país, por isso é necessário estabelecer ao menos níveis mínimos de comunicação com as autoridades de seu governo", diz Ramsey. Essas posturas pragmáticas foram reforçadas pelas transformações no ambiente regional e internacional. A internacionalista venezuelana Elsa Cardoso destaca que a América Latina enfrentou uma recente mudança na tendência política com as eleições de governos de esquerda em Honduras, Chile, Colômbia, Brasil, México, Argentina e Bolívia. “Isso define um quadro em que, particularmente na América Latina, há uma tendência crescente de deixar de lado questões de direitos humanos, questões sobre as características do regime político e um retorno à velha agenda mais do princípio da não intervenção nos assuntos de outros países", comenta. Isso pode favorecer Maduro ao reduzir o peso dado às denúncias de práticas antidemocráticas e violações de direitos humanos atribuídas a ele — que Caracas nega — e que foram fundamentadas, entre outros, pelo Gabinete do Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU. Benedicte Bull, professora de Ciência Política do Centro de Desenvolvimento Ambiental da Universidade de Oslo e diretora da Rede Norueguesa de Pesquisa sobre a América Latina, ressalta que Biden mantém contra Venezuela uma linha política diferente da de Trump, mas não vai dar uma guinada muito radical a esse respeito. "Devido à situação geopolítica do mundo, com a guerra na Ucrânia, os Estados Unidos já têm batalhas suficientes para assumir. Portanto, não faz muito sentido seguir uma linha tão dura em relação à Venezuela", disse Bull à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC). A especialista em relações internacionais Elsa Cardozo explica que o conflito ucraniano modificou as prioridades os Estados Unidos e da Europa e resultou em uma reavaliação estratégica do petróleo. Isso favorece Maduro, apesar de a Venezuela não ser mais um grande produtor e não ter condições — nem mesmo com o levantamento das sanções — de preencher no curto prazo o vácuo criado no mercado de energia pelas sanções contra Moscou. William Neuman, ex-correspondente do New York Times no país e autor de um livro recente sobre a Venezuela intitulado Things Are Never So Bad That They Can't Get Worse ("As coisas nunca estão tão ruins que não possam piorar") destaca especialmente a importância das mudanças ocorridas na Colômbia e no Brasil. “Esses países foram dois dos aliados mais importantes dos EUA que apoiavam a política de Trump de reconhecer Juan Guaidó e isolar Maduro. Faz sentido que eles mudem de posição agora que os presidentes aliados de Trump se foram. Isso, além da orientação à esquerda de Petro e Lula.” “Também faz sentido que, sendo vizinhos da Venezuela, tenham relações diplomáticas com o governo venezuelano, que é de Maduro”, ressalta. A BBC News Mundo enviou solicitações tanto ao Ministério das Relações Exteriores da Venezuela quanto ao Ministério de Comunicação e Informação do país para consultar o governo Maduro sobre o assunto, mas até o momento da publicação desta reportagem, em fevereiro de 2023, nenhuma resposta havia sido recebida. No entanto, o governante venezuelano já deixou claro em diversas ocasiões seu interesse em normalizar as relações com os Estados Unidos e tem defendido que Washington assuma políticas mais pragmáticas. "A Venezuela está preparada, totalmente preparada, para dar lugar a um processo de normalização das relações diplomáticas, consulares, políticas, com este governo dos Estados Unidos e com os governos que possam vir", disse no início de janeiro em entrevista transmitida pela rede Telesur. Embora Maduro tenha conseguido sobreviver à política de "pressão máxima" e a economia venezuela tenha conseguido sair recentemente da hiperinflação e iniciou um crescimento tímido, Geoff Ramsey adverte que o presidente venezuelano está em uma posição mais fraca do que pode parecer. “Maduro continua sendo visto como um presidente autocrático, sem mandato democrático e continua muito estigmatizado na região e no mundo, então não é tão fácil para ele”, diz. "É muito fácil superestimar a força do seu governo neste momento, mas Maduro ainda está em uma situação precária, com uma economia em crise e precisa de legitimidade internacional e de encontrar saídas para as sanções", acrescenta. Ele ressalta que o presidente chavista depende do apoio que recebe de militares e facções políticas de seu próprio partido, portanto, poder se reintegrar à comunidade internacional o ajudaria a demonstrar para suas próprias elites militares e políticas que está resolvendo a crise na Venezuela. Benedicte Bull concorda que as melhoras registradas pela economia venezuelana são temporárias e que as bases dessa recuperação são muito frágeis. “Agora dá para perceber que os números do crescimento estão voltando a cair e a inflação não está sob controle, embora tenha caído bastante”, diz a especialista. "O que temos visto é o resultado de uma liberalização muito aleatória para lidar com a crise, mas os fundamentos não melhoraram. Então, Maduro precisa desesperadamente de investimentos porque todos os serviços públicos ainda estão em péssimas condições e ele precisa de investimentos no setor de petróleo, obviamente", complementa. Legitimar-se e ganhar aceitação internacional permitiria a Maduro ter maior autonomia. "Isso significaria poder se movimentar internacionalmente sem medo [de ser preso e processado] e poder recuperar a capacidade de gestão econômica. Por isso ele insiste tanto na questão das sanções", diz Elsa Cardozo, que considera que o governante venezuelano busca um novo equilíbrio em que diminua a pressão penal e econômica sobre o seu governo. Mas quais são os limites desse processo? William Neuman adverte que o fato de haver países que restabelecem relações diplomáticas com a Venezuela ou que reconheçam Maduro como presidente não significa que o apoiem. "Uma coisa é conversar, ter relações, manter um comércio e outra coisa é apoiar. Ter relações diplomáticas não significa apoiar um governo. Relações são entre os países. Então, Maduro e sua política antidemocrática são os maiores obstáculos [para sua reinserção internacional]. Ele continua sendo um chefe de Estado autoritário que viola diariamente as normas democráticas de seu país", declara. Geoff Ramsey acredita que, enquanto ocorrerem violações massivas dos direitos humanos na Venezuela, será muito difícil para os países da região normalizar totalmente as relações com o governo de Maduro. Ele ressalta, porém, que às vezes a diplomacia privada pode ser muito eficaz para promover mudanças de comportamento. "Acredito que essa seja a aposta de vários governos da região, incluindo a administração de Petro. Vemos sinais de interesse de vários países latino-americanos em desempenhar um papel ativo na busca de uma solução pacífica e democrática para a crise venezuelana", aponta. Em todo caso, a reintegração completa da Venezuela na comunidade internacional está vinculada ao levantamento das sanções por parte dos Estados Unidos, o que – ao mesmo tempo – depende de um acordo entre o governo de Maduro e a oposição venezuelana para a realização de eleições livres e competitivas em 2024. “Se o mundo não vir sinais claros de que realmente há uma chance de uma eleição competitiva em 2024, não acho que Maduro conseguirá normalizar totalmente as relações”, diz Ramsey. “Este governo continua sendo um pária na América Latina, na Europa e para muitos outros governos no mundo e não há maior interesse em restabelecer relações diplomáticas com a Venezuela se não houver avanços concretos no processo de negociação no México”, acrescenta. Mas as eleições livres exigem o cumprimento de uma série de condições importantes, entre as quais a liberação dos chamados presos políticos, a plena autorização dos dirigentes da oposição legalmente impedidos de concorrer ou que vivam no exílio, a garantia de um corpo eleitoral imparcial e o acesso da oposição à mídia e observação internacional, entre outras medidas. Ao mesmo tempo, além do levantamento das sanções, para Maduro há outras questões a serem resolvidas, como o controle de ativos venezuelanos no exterior e as acusações feitas contra ele por narcotráfico e por crimes contra a humanidade perante o Tribunal Penal Internacional. "Difícil" e "complexo" são as palavras que Benedicte Bull usa quando questionada sobre a possibilidade de chegar a acordos sobre todos esses pontos. “Quem acompanhou a situação na Venezuela nos últimos 20 anos acha difícil acreditar que o governo vai permitir eleições livres, nas quais corre o risco de perder”, diz Bull. "Mas, ao mesmo tempo, vimos alguns elementos que pelo menos dão um pouco de esperança e acho que agora há fortes incentivos para isso", acrescenta. Ramsey indica que, embora nos últimos oito anos tenham ocorrido cinco processos de diálogo fracassados ​​na Venezuela, as coisas podem ser diferentes agora, já que Maduro enfrenta incentivos diferentes. "Maduro tem um grande problema de fluxo de caixa e sabe que não pode melhorar a economia venezuelana sem aliviar as sanções, então precisa voltar à mesa de negociações com a oposição." “Além disso, ele não governa sozinho, pois depende de algumas elites políticas e militares, muitas das quais estão interessadas em uma mudança no país e fazem pressão silenciosa dentro do chavismo para promover também esse processo de diálogo”, aponta. William Neuman, por sua vez, é cético. “Não acho que veremos eleições totalmente livres na Venezuela em 2024”, diz ele. Mas se não houver acordo sobre a possibilidade de que isso ocorra, também não haverá suspensão das sanções, de modo que a posição de Maduro pode voltar a ser tão comprometida internacionalmente quanto há quatro anos.
2023-05-30
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cj5yy00n5j8o
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Mais de 5 mil russas grávidas chegaram à Argentina em busca de cidadania, dizem autoridades
Mais de 5 mil mulheres russas grávidas entraram na Argentina nos últimos meses, incluindo 33 em um único voo na quinta-feira passada (9/2), segundo as autoridades do país. Elas estavam todas nas suas últimas semanas de gravidez, de acordo com a agência nacional de migração. Acredita-se que as mulheres estão tentando fazer com que seus bebês nasçam na Argentina para obter a cidadania argentina. O número de chegadas disparou recentemente. A imprensa argentina sugere que isso pode estar acontecendo por causa da guerra na Ucrânia. Fim do Matérias recomendadas Das 33 mulheres que chegaram à capital argentina em um voo na quinta-feira, três foram detidas por "problemas com a documentação". O mesmo já tinha acontecido com outras três mulheres que haviam chegado no dia anterior, disse ao jornal La Nacion a chefe da agência de migração, Florencia Carignano. As mulheres russas inicialmente alegaram que estavam na Argentina a turismo, disse Carignano. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast “Nestes casos foi detectado que elas não vieram para cá para exercer atividades turísticas. Elas próprias reconheceram isso”. Ela disse que as mulheres russas queriam que seus filhos tivessem cidadania argentina porque isso oferece mais liberdade de viajar no mundo do que um passaporte russo. "O problema é que elas vêm para a Argentina, registram seus filhos como argentinos e vão embora. Nosso passaporte é muito seguro em todo o mundo. Ele permite que [portadores de passaporte] entrem em 171 países sem visto", disse Carignano. Ter um filho argentino também agiliza o processo de cidadania dos pais. Atualmente, os russos podem viajar sem visto para apenas 87 países. Viajar para países ocidentais tornou-se mais difícil para os russos desde que começou a guerra na Ucrânia, no ano passado. Em setembro passado, o acordo de facilitação de vistos entre a União Europeia e a Rússia foi suspenso, resultando na necessidade de documentação adicional, aumento dos tempos de processamento e regras mais restritivas para a emissão de vistos. Vários países também suspenderam os vistos de turista para os russos, incluindo todos os Estados membros da UE que fazem fronteira com a Rússia. Um advogado das três mulheres detidas na quinta-feira disse que elas estão "presas sob falsas alegações", por serem suspeitas de serem "falsas turistas". Este é um termo "que não existe em nossa legislação", disse Christian Rubilar. “Essas mulheres que não cometeram crime, que não infringiram nenhuma lei migratória, estão sendo privadas ilegalmente de sua liberdade”, acrescentou. As mulheres já foram liberadas. O La Nacion atribuiu à guerra na Ucrânia o aumento repentino de chegadas de cidadãos russos. Segundo o jornal, "além de fugir da guerra e do serviço de saúde de seu país, [as mulheres russas] são atraídas por seu [direito de] entrada sem visto na Argentina, bem como pela medicina de alta qualidade e variedade de hospitais". O "turismo de nascimento" de cidadãos russos para a Argentina parece ser uma prática lucrativa e bem estabelecida. Um site em russo visto pela BBC oferece vários pacotes para gestantes que desejam dar à luz na Argentina. O site anuncia serviços como planos de parto personalizados, traslados de aeroportos, aulas de espanhol e descontos no custo de estadias nos "melhores hospitais da capital argentina". Os pacotes variam de "classe econômica", a partir de US$ 5 mil (cerca de R$ 25 mil), a "primeira classe", a partir de US$ 15 mil (cerca de R$ 75 mil). O site da empresa diz que está facilitando o turismo de nascimento desde 2015 e que oferece suporte à migração. A empresa diz ser "100% argentina". No sábado, o La Nación noticiou que a polícia argentina está realizando buscas como parte de uma investigação sobre um "negócio milionário e rede ilícita" que supostamente fornecia a mulheres russas grávidas e seus parceiros documentos falsos emitidos em tempo recorde para permitir que elas viessem morar na Argentina. A polícia disse que os criminosos cobravam até US$ 35 mil (cerca de R$ 175 mil) pelo serviço. Ninguém foi preso, mas a polícia teria apreendido laptops e tablets, bem como documentos de imigração e quantidades significativas de dinheiro.
2023-02-12
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c06zx6z7vr1o
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O que o Brasil tem a ganhar ou perder ao retomar relações com Venezuela de Maduro?
"O presidente também me instruiu que restabeleçamos as relações com a Venezuela, o que faremos a partir do dia 1º". O anúncio foi feito pelo agora ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, duas semanas antes da posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como presidente. A declaração foi o prenúncio de um novo momento nas relações entre os dois países, afastados diplomaticamente há quase cinco anos. Ao mesmo tempo, colocou sob os holofotes um dos pontos mais criticados da política externa petista: a proximidade com o regime bolivariano da Venezuela. Mas no momento em que o país se volta para a Venezuela após anos de distanciamento, as dúvidas que surgem são: o que o Brasil tem a ganhar com essa reaproximação? E o que tem a perder? Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que a retomada das relações com a Venezuela podem trazer ganhos econômicos, diplomáticos e ajudar a resolver problemas como a crise migratória que tem feito com que milhares de venezuelanos atravessem a fronteira em direção ao Brasil. Fim do Matérias recomendadas Por outro lado, eles afirmam que essa reaproximação pode trazer riscos por conta da instabilidade política e econômica venezuelana e pelo gerado pela associação do governo Lula a um governo acusado de violar direitos humanos pela comunidade internacional. A história de proximidade entre o Brasil e a Venezuela nos governos do PT começou com a posse de Lula em seu primeiro mandato, em 2003. Na época, o país vizinho era governado por Hugo Chávez. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os dois viraram interlocutores frequentes e o Brasil passou a intensificar sua presença comercial no exterior. Em quase duas décadas, o saldo da balança comercial entre os dois países tem sido marcadamente mais favorável ao Brasil. Dados do governo federal mostram, por exemplo, que entre 2003 e 2022, o Brasil exportou US$ 52,9 bilhões em produtos e serviços e importou US$ 10,5 bilhões, o que dá um saldo positivo de US$ 42,4 bilhões. O período em que esse fluxo comercial foi mais intenso ocorreu durante os anos em que o país foi governado pelo PT, entre 2003 e 2016. As exportações brasileiras para a Venezuela saíram de US$ 603 milhões em 2003 para um pico de US$ 5,1 bilhões em 2008, ainda durante o governo Lula. Nos anos seguintes, o volume de exportações brasileiras para a Venezuela se manteve acima dos US$ 3,5 bilhões até 2014. Naquele ano, o Brasil havia exportado US$ 4,5 bilhões. A partir de então, o volume de produtos e serviços brasileiros vendidos para o país vizinho despencou. Em 2019, foi de US$ 420 milhões e, em 2022, chegou a pouco mais de US$ 1,2 bilhão. A intensificação dos laços entre os dois países durante os governos petistas virou alvo da oposição e de políticos como o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Durante as eleições presidenciais de 2022, um dos argumentos mais frequentes contra Lula era o de que a vitória do petista faria com que o Brasil "virasse uma Venezuela", em uma referência às crises política e econômicas vividas pelo país vizinho. Outra parte da crítica a essa proximidade era de que o apoio do Brasil ao governo venezuelano ocorria apesar das constantes acusações de que o regime bolivariano vinha sendo responsável por graves violações de direitos humanos e desrespeito às normas democráticas. Um outro ponto frequentemente citado por opositores de Lula são as acusações de que empreiteiras brasileiras aproveitaram seus contatos com políticos do país e da Venezuela para firmarem contratos por meio do pagamento de propina. Investigações como a Operação Lava Jato mostraram a ligação entre executivos de grandes empreiteiras do país com agentes políticos, tanto do chavismo, que governava o país, quanto da oposição, que governavam municípios como o de Chacao, um dos que compõem a região metropolitana de Caracas. Delatores da Odebrecht disseram às autoridades americanas que pagaram US$ 98 milhões em propinas a agentes venezuelanos para obter contratos no país. Em 2016, com o impeachment da então presidente Dilma Rousseff (PT), as relações com a Venezuela sofreram o primeiro arranhão. Maduro chamou o afastamento de Dilma de golpe. Ao mesmo tempo, a situação política e econômica na Venezuela também se agravou mais, com elevadas taxas de inflação, aumento da pobreza e a realização de protestos e reações violentas por parte das forças de segurança bolivarianas. O estudo Encovi sobre condições de vida dos venezuelanos realizado em 2021 pela Universidade Católica Andrés Bello apontou que 24,8% dos venezuelanos estão em situação de extrema pobreza e que 60% da população vive com insegurança alimentar de moderada a grave. A vitória de Jair Bolsonaro na disputa pela Presidência, em 2018, marcou o afastamento sistemático entre os dois países. No dia 23 de janeiro de 2019, poucos dias depois de tomar posse, Bolsonaro reconheceu o líder da oposição a Maduro, Juan Guaidó, como presidente da Venezuela, acompanhando um movimento organizado por países do chamado Grupo de Lima, que defendia a mudança do governo venezuelano. Em agosto de 2019, Bolsonaro assinou uma portaria impedindo a entrada de altos funcionários do regime venezuelano, o que, na prática, proibiu o presidente Nicolás Maduro de ingressar no Brasil. A portaria só foi revogada no final de 2022. Em 2020, o governo brasileiro retirou diplomatas da Venezuela e fechou a embaixada que mantinha em Caracas. Enquanto isso, milhares de venezuelanos continuaram a entrar no Brasil pela fronteira seca entre os dois países, principalmente pelo Estado de Roraima. Nos últimos meses, porém, a posição de países como França e Estados Unidos em relação à Venezuela tem mudado, especialmente após a crise de energia gerada pela guerra entre Ucrânia e Rússia. Em novembro, por exemplo, os Estados Unidos aliviaram sanções aplicadas à Venezuela permitindo que petroleiras americanas voltem a atuar no país. No processo de reaproximação citado pelo chanceler Mauro Vieira, as primeiras etapas serão enviar um encarregado de negócios a Caracas, reativar as instalações diplomáticas e, futuramente, indicar um novo embaixador ou embaixadora para o país. Ainda não há previsão sobre um encontro entre Lula e Nicolás Maduro. Para a doutora em Relações Internacionais e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Carol Pedroso, apesar do contexto complexo, o Brasil tem muito a ganhar com a reaproximação com a Venezuela. Segundo ela, as vantagens são: reabrir canais para resolver eventuais novas crises, reduzir o impacto da crise migratória e aproveitar oportunidades econômicas. "Se surgirem novos problemas na Venezuela, nós já teremos canais abertos para ajudar a resolver e evitar que a crise chegue no ponto no qual ela já chegou", afirmou a professora. Em relação à crise migratória, a professora diz que reatar os laços com a Venezuela pode fazer com o Brasil se junte ao grupo de países que já está atuando para repatriar venezuelanos que emigraram para o Brasil. Ela pontua que, no plano econômico, também há vantagens. "Apesar de a Venezuela ter seus problemas, ela ainda é um país economicamente complementar ao Brasil. Isso significa que eles não produzem muitas das coisas que nós produzimos e isso representa uma oportunidade para nós", afirma. O professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Oliver Stuenkel pontua que, do ponto de vista econômico, as oportunidades são menores agora do que foram no passado. "A economia da Venezuela é menor do que era antes. Ainda está longe da realidade do início dos anos 2000", explica. Mesmo assim, o professor afirma que o movimento ensaiado pelo novo governo Lula é uma aposta no futuro. "Aos olhos do governo, essa é uma aposta no futuro. É um movimento que aposta em uma recuperação da economia venezuelana no futuro maior do que a vemos hoje", afirmou o professor. Estimativas da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU), apontam que a economia da Venezuela deverá ter crescido 12% em 2022. Se a previsão se confirmar, será o primeiro crescimento do produto interno bruto do país desde o período entre 2013 e 2014. O professor da Universidade de Brasília (Unb) Thiago Gehre Galvão estuda as relações entre o Brasil e a Venezuela há pelo menos 10 anos. Segundo ele, além dos aspectos econômicos e humanitários, a retomada dos diálogo com Caracas é uma oportunidade para o Brasil se reposicionar como líder regional na América do Sul e na América Latina. "A grande vantagem para o Brasil neste momento é que ele retome, novamente, uma posição de cuidado e liderança na região. Isso pode acontecer fortalecendo os fóruns que já existem ou mesmo retomando alguns que ficaram para trás como a Unasul (União de Nações Sul-Americanas)", disse. Galvão avalia que o Brasil tende a se beneficiar comercialmente dessa aproximação com a Venezuela. "A Venezuela é um grande mercado com uma renda oriunda do petróleo. Ou seja: há dinheiro e a indústria venezuelana é muito incipiente. Isso significa que há demanda por uma série de produtos que o Brasil pode vender", explica. Apesar de verem as vantagens dessa retomada nas relações diplomáticas entre Brasil e Venezuela, os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que há três grandes riscos nessa nova aproximação entre os dois países: desgaste político interno, novos calotes e instabilidade política venezuelana. "Acabamos de sair de uma eleição muito polarizada em que o suposto risco de 'venezuelização' foi muito citado. O Brasil ainda está muito polarizado e parte da população brasileira pode ter resistência a essa aproximação", disse Carol Pedroso, da Unifesp. "Existe algum risco interno. A oposição (ao governo Lula) certamente vai criticar qualquer tipo de aproximação e alegar que se trata de um alinhamento ideológico ao regime de Maduro", disse Oliver Stuenkel. O professor da FGV destaca outro ponto arriscado dessa reaproximação: a possibilidade de empresas brasileiras serem alvo de calote na Venezuela. "A Venezuela ainda é um lugar arriscado para se operar. Há um risco de calote para as empresas que queiram fazer negócios lá. Pode ser que empresas com conexões políticas possam minimizar essa possibilidade, mas ela existe", afirmou Stuenkel. Calotes da Venezuela também foram um dos pontos levantados pela oposição a Lula para criticar a proximidade com o país. Isso aconteceu porque, pelo menos desde 2020, o Brasil tenta receber parte de um empréstimo feito pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para a realização de obras de infraestrutura no país. Segundo a colunista Malu Gaspar, do jornal O Globo, o valor da dívida atualizado chega a R$ 6 bilhões. O professor Thiago Gehre Galvão, da UnB, pontua ainda que essa reaproximação pode colocar em foco o compromisso do novo governo Lula em relação à defesa da democracia. "Se você começar a aprofundar essa relação economicamente, sempre vai pairar uma espécie de névoa sobre um governo com problemas claros em relação à sua própria democracia. E isso vai acontecer em um contexto em que o novo governo se elegeu num contexto em que a própria democracia brasileira estava fragilizada", pontua Galvão. "A questão é entender o quanto o Brasil vai flexibilizar sua posição em relação à democracia para se aproximar da Venezuela", avalia o professor.
2023-02-12
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64193544
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Perfis de países: Venezuela
A Venezuela é um país de impressionante beleza natural e uma das nações mais urbanizadas da América Latina. É dono das maiores reservas comprovadas de petróleo do mundo, assim como enormes quantidades de carvão, minério de ferro, bauxita e ouro. Ainda assim, muitos venezuelanos vivem na pobreza, geralmente em favelas, muitas espalhadas nas colinas em torno da capital, Caracas. O país tem uma história de regimes autoritários desde o século 19, passou por uma ditadura militar nos anos 1950, mas a democracia foi instituída na década seguinte. A política, no entanto, seguia dominada por partidos ligados a interesses da elite econômica. Os anos 1990 foram uma fase de liberalização da economia, quadro que levou um grupo de militares esquerdistas a tentar um golpe de Estado, em fevereiro de 1992. Após o fracasso do golpe, Hugo Chávez Frias, líder do grupo por trás do levante, o Movimento Bolivariano Revolucionário, foi preso. O então presidente, Carlos Andrés Pérez, sofreria impeachment um ano depois, em um exemplo da outra fonte de insatisfação dos opositores ao governo: a corrupção. Hugo Chávez foi perdoado pelo presidente Rafael Caldera e libertado em 1994. Quatro anos depois, Chávez foi eleito presidente, iniciando em seguida o que chamou de "revolução bolivariana", com mudanças na Constituição e na estrutura do governo. Chávez, que morreu em 2013, apresentou-se como um defensor dos pobres durante os 14 anos em que esteve no comando do país - colocando bilhões de dólares da riqueza do petróleo em programas sociais. Fim do Matérias recomendadas O governo de seu sucessor, Nicolás Maduro, no entanto, enfrentou dificuldades com a queda dos preços do petróleo no mercado internacional, além de uma crise econômica e política que deixou a Venezuela próxima a um estado de colapso. Em meio à crise, entre 2015 e 2019 a população da Venezuela sofreu uma significativa queda, de 30 milhões para 28,5 milhões - 1,5 milhão de pessoas em quatro anos. Durante o embate político com a oposição, que levou o líder oposicionista Juan Guaidó a declarar-se presidente, Maduro promoveu uma revisão da Constituição, por meio de uma Assembleia Constituinte. No esporte, a Venezuela destaca-se na América do Sul por ter o beisebol como esporte mais popular. FATOS Capital: Caracas População28,5 milhões Área881.050 quilômetros quadrados Principais línguasEspanhol, línguas indígenas Principal religiãoCristianismo Expectativa de vida70 anos (homem), 79 anos (mulher) MoedaBolívar LÍDER Presidente: Nicolás Maduro Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O presidente Nicolás Maduro assumiu o governo da Venezuela em março de 2013, depois da morte de seu mentor político, Hugo Chávez. Em maio de 2018, ele foi reeleito para um segundo mandato de seis anos, num pleito marcado por um boicote da oposição e alegações de fraudes. Na época, a Venezuela estava no meio de uma crise econômica profunda, com inflação em disparada e falta de produtos de necessidade básica, apesar de o país ser dono das maiores reservas de petróleo do mundo. Sucateada pela falta de investimentos de reposição e modernização, a indústria petroleira venezuelana não consegue aumentar a produção para se beneficiar de uma demanda mundial crescente. Afetada pela queda brusca e acentuada nos preços do petróleo no mercado internacional e sob severas sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos, a economia da Venezuela se manteve em profunda depressão e os preços das mercadorias dispararam em meio a uma crise desabastecimento. Como resultado, a crise provocou um enorme êxodo de venezuelanos em direção aos países vizinhos, com a Colômbia recebendo o maior contingente. Maduro não realizou nenhuma reforma significativa na economia fortemente dependente do Estado e estabeleceu uma Assembleia Constituinte para evitar a Assembleia Nacional e fortalecer seu controle do país. No início de 2019, o líder oposicionista Juan Guaidó declarou-se presidente interino e apelou às Forças Armadas para que derrubassem Maduro. A União Europeia, os Estados Unidos e muitos países latino-americanos reconheceram Guaidó como presidente, deixando Maduro dependente do Exército e do apoio internacional recebido da Rússia e da China. MÍDIA A polarização política venezuelana reflete-se na mídia do país, num processo que começou durante o governo de Hugo Chávez (1999-2013), cujos críticos o acusavam de perseguir veículos críticos a ele. Opositores de Nicolás Maduro dizem que ele manteve as mesmas táticas, que também foram condenadas por grupos em defesa da liberdade de imprensa. A internet tornou-se um espaço para o surgimento de veículos de mídia contra o governo e também de exilados. Muitos jornalistas fugiram da Venezuela por causa de ameaças e riscos, diz a entidade Repórteres Sem Fronteiras (RSF). Segundo a RSF, o jornalismo impresso são geralmente prejudicados por "estranha escassez de papel jornal". Alguns jornais disseram ter sido forçados a parar de imprimir depois de ficarem sem acesso a moeda forte para comprar papel e tinta no exterior. O principal veículo de televisão usado pelo governo para transmitir sua mensagem é a Venezolana de Television (VTV), que transmite discursos de Maduro e divulga as atividades de seus ministros. Sua cobertura geralmente ignora a oposição. Os reguladores do setor de telecomunicações barraram muitos competidores da VTV que ficaram sem acesso às redes de TV a cabo. Globovision, veículo que foi crítico do regime, mudou sua linha editorial após ser vendida, em 2013. Seus novos proprietários tinha ligações com o governo. A Venezuela é o principal acionista da Telesur, uma rede de TV pan-americana baseada em Caracas. Os governos com uma participação na iniciativa são todos de esquerda ou de centro-esquerda. No final de 2020, segundo o InternetWorldStats.com, havia 23,6 milhões de usuários da internet na Venezuela. O governo e seus opositores usam as mídias sociais como um campo de batalha política. Tanto oficiais como os militares operam uma série de contas no Twitter, assim como o movimento de oposição. Durante a violência que explodiu nas ruas no início de 2019, a NetBlocks, uma organização de direitos digitais, documentou interrupções no acesso ao Twitter, ao Facebook e ao aplicativo de transmissão em vídeo Periscope. RELAÇÕES COM O BRASIL Brasil e Venezuela compartilham uma importante fronteira na região amazônica e uma história de boas relações, que no entanto se deterioraram a partir de 2016. Em 1826, a Grã-Colômbia, da qual fazia parte a Venezuela, reconheceu a independência brasileira. Quatro anos depois, porém, a Venezuela tornou-se um país independente, o que levou à necessidade de regularizar as relações com seu vizinho de maior porte. Em 1859, a fronteira entre Brasil e Venezuela foi definida, por meio do Tratado de Limites e Navegação Fluvial. A demarcação detalhada propriamente dita da fronteira, com 2.199 quilômetros, só ocorreria na década de 1970. Em 1964, a Venezuela desfrutava de um período democrático, após ter passado por uma década de regime militar. Com o golpe militar que levou os militares ao poder em Brasília, o governo venezuelano de Raúl Leoni rompeu relações com o Brasil - retomadas em 1966. Nos anos 1980, quando o Brasil voltou à democracia, os vizinhos continuaram com boas relações. Após a chegada ao poder de Hugo Chávez, o Brasil passou a exercer um papel de intermediador entre Caracas e Washington, devido à hostilidade existente entre o novo governo venezuelano e os Estados Unidos. Esse papel diplomático foi inicialmente exercido pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, que mantinha uma relação cordial com Chávez, e posteriormente assumido por Luiz Inácio Lula da Silva. Apesar de considerado um aliado ideológico de Chávez, Lula também tinha boas relações com os líderes americanos - tanto George W. Bush como Barack Obama - e muitas vezes servia de ponte entre EUA e Venezuela. Em 2016, após o impeachment da presidente Dilma Rousseff, o governo de Nicolás Maduro em Caracas chamou o processo de "golpe" e recusou-se a reconhecer o governo de Michel Temer. Tal dificuldade nas relações agravou-se com a vitória do conservador Jair Bolsonaro nas eleições brasileiras de 2018. Logo depois de tomar posse, ainda em janeiro de 2019, Bolsonaro anunciou que o Brasil passaria a reconhecer o oposicionista Juan Guaidó como o legítimo presidente da Venezuela. As relações deterioram-se ainda mais ao longo do ano, e no início de 2020 Brasília anunciou que retiraria seu corpo diplomático da Venezuela. Os últimos diplomatas brasileiros deixaram o país vizinho em abril de 2020. Em agosto, Caracas sinalizou a intenção de retomar o diálogo e as relações com o governo brasileiro. Em janeiro de 2023, após a posse de Lula para o seu terceiro mandato na Presidência, as relações com o governo de Nicolás Maduro foram restabelecidas. LINHA DO TEMPO Importantes datas na história da Venezuela: 1810 - Os venezuelanos aproveitam a invasão da Espanha por Napoleão para declarar sua independência. 1829-30 - A Venezuela se separa da Gran-Colômbia, nação que reunia os atuais Venezuela, Colômbia e Equador e foi governada pelo libertador Simón Bolívar. 1870-88 - O governante Antonio Guzmán Blanco atrai investimento estrangeiro, moderniza a infraestrutura e desenvolve a agricultura e a educação. 1902 - A Venezuela não consegue pagar suas dívidas. Seus portos são bloqueados por navios de guerra do Reino Unido, da Itália e da Alemanha. 1908-35 - O ditador Juan Vicente Gomez governa numa época em que a Venezuela torna-se o maior exportador de petróleo do mundo. 1945 - Um governo civil, liderado pelo presidente Rómulo Betancourt, é estabelecido após décadas de regime militar. 1948 - O presidente Romulo Gallegos, primeiro líder da Venezuela eleito democraticamente, é derrubado oito meses depois da posse num golpe liderado por Marcos Pérez Jiménez. 1958 - Pérez Jiménez é retirado do poder em meio a uma crise econômica. Pacto político coloca Rómulo Betancourt, presidente de 1945 a 1948, novamente no cargo. 1964 - A primeira transferência de poder de um governante civil para outro ocorre depois que Raul Leoni é eleito presidente. 1973 - A Venezuela beneficia-se da grande demanda por petróleo, e sua moeda nacional chega a seu mais alto valor em relação ao dólar americano. As indústrias de petróleo e aço são nacionalizadas. 1983-84 - Queda dos preços do petróleo no mercado internacional provoca protestos e cortes nos gastos com serviços sociais. 1989 - Carlos Andrés Pérez é eleito presidente em meio à depressão econômica e lança um programa de austeridade com empréstimo do FMI. O programa é seguido de violentas manifestações de rua, decretação de lei marcial e greve geral. Centenas de pessoas são mortas durante confrontos violentos nas ruas. 1992 - Tentativas de golpe lideradas por Hugo Chávez e seu grupo revolucionário bolivariano. Chávez é preso. 1998 - Quatro anos após ser perdoado, Chávez é eleito presidente em meio à decepção com os partidos tradicionais. O novo presidente lança sua chamada "Revolução Bolivariana" - com uma nova Constituição em 1999 e políticas econômicas e sociais socialistas e populistas, financiadas pelos altos preços do petróleo. A política externa do governo torna-se cada vez mais contrária aos Estados Unidos. 2013 - O presidente Chávez morre, aos 58 anos, depois de uma luta contra um câncer. Nicolás Maduro, escolhido por Chávez como seu sucessor, é eleito presidente por uma pequena margem e assume uma nação dividida e uma economia em processo de implosão. 2014 - Fevereiro-Março - Pelo menos 28 pessoas morrem durante a repressão de protestos contra o governo. 2014 - Novembro - O governo anuncia corte nos gastos públicos, com os preços do petróleo no mercado internacional atingindo o menor valor em quatro anos. 2015 - Dezembro - A coalizão União Democrática, de oposição, obtém uma maioria de dois terços nas eleições parlamentares, colocando um fim a 16 anos de controle pelo governista Partido Socialista Unido da Venezuela. 2016 - Setembro - Centenas de milhares de pessoas participam de um protesto em Caracas pedindo a remoção de Maduro do cargo, acusando o presidente de responsabilidade pela crise econômica. 2017 - Julho - A controversa Assembleia Constituinte, convocada por Maduro, é eleita em meio a um boicote da oposição e condenação internacional. 2018 - Maio - A oposição contesta a vitória oficial do presidente Maduro nas eleições presidenciais. 2018 - Agosto - A ONU diz que dois milhões de venezuelanos fugiram para países vizinhos desde 2014. 2019 - Janeiro/Fevereiro - O líder da oposição, Juan Guaidó, declara-se presidente interino e faz um apelo às Forças Armadas para que derrubem Maduro, sob a acusação de ter fraudado o pleito de 2018. A União Europeia, os Estados Unidos e países latino-americanos reconhecem Guaidó como presidente. O então presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, suspendeu relações diplomáticas com a Venezuela ao reconhecer Juan Guaidó como presidente venezuelano. 2020 - Dezembro - A oposição boicota as eleições legislativas, que são vencidas pelo partido de Maduro e seus aliados. 2023 - Ao tomar posse para seu terceiro mandato, o presidente Lula envia missão diplomática a Caracas com intuito de restabelecer as relações com a Venezuela, suspensas durante o governo Bolsonaro.
2023-02-08
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3 razões que explicam força da economia do Peru mesmo com democracia fragilizada no país
O Peru vive uma instabilidade política permanente. Desde 2017, o país teve seis presidentes. Pedro Castillo foi o último a cair, dando lugar a Dina Boluarte, a primeira mulher a comandar o país na história. A Economist Intelligence Unit (EIU), divisão de pesquisa e análise do grupo da revista The Economist, acaba de divulgar seu tradicional índice que avalia a "qualidade da democracia" pelo mundo e rebaixou o país sul-americano de "democracia com falhas" para a classificação "regime híbrido", ou seja, em que aparecem traços de autoritarismo. O Peru ficou na 75ª posição do ranking (o Brasil também teve queda em seu índice e está em 51° lugar). A EIU atribuiu a nova classificação para os peruanos à tentativa frustrada de golpe empreendida por Castillo em dezembro passado — que levou à sua saída de poder e posterior prisão. Isso tudo dentro de um ambiente político já bastante instável nas últimas décadas. Fim do Matérias recomendadas Mas em meio à grande turbulência política, a economia do Peru acumula quase 30 anos de uma trajetória de crescimento sustentado, com poucas interrupções, o que levou muitos especialistas a falar até de um "milagre econômico peruano". Os números são convincentes. De acordo com o Banco Mundial, o Produto Interno Bruto multiplicou seu valor por seis desde 1993. Em 2001, 20,3% dos peruanos viviam com menos de US$ 2,15 por dia em 2022; esse número foi reduzido para 5,8% da população. Embora haja descontentamento em amplos setores com a manutenção das desigualdades no país — muitas vozes apontam que os dados do PIB escondem a realidade social peruana —, os números macroeconômicos da história recente são citados como exemplo de sucesso mundo afora. "Em perspectiva, as últimas três décadas talvez tenham sido as melhores da história peruana. Nenhum país pode mostrar um histórico igual no declínio da pobreza", disse Waldo Mendoza, economista da Pontifícia Universidade Católica do Peru e ex-ministro da Economia, à BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC. Como a economia conseguiu progredir em meio à tempestade política permanente no Peru? Existem algumas razões. Especialistas afirmam que a independência do Banco Central de Reserva do Peru (BCRP) e sua gestão da política monetária têm sido um dos pilares do equilíbrio econômico peruano. Carolina Trivelli, pesquisadora do Instituto de Estudos Peruanos, disse à BBC Mundo que "a independência que a Constituição de 1993 deu ao BCRP permitiu que ele tivesse uma gestão muito técnica e profissional, totalmente independente do ciclo econômico e político". O conselho de administração da instituição, composto por sete membros, é eleito pelo governo e pelo Congresso, mas, uma vez nomeados, são totalmente independentes . Em um raro exemplo de continuidade nas instituições peruanas, o diretor do BCRP, Julio Velarde, está no cargo desde 2006 e já viu passar presidentes de diferentes denominações políticas. Quando Pedro Castillo o confirmou no cargo, os mercados viram na decisão um sinal de confiança na economia peruana, dadas as dúvidas que surgiram sobre a política econômica que o novo presidente poderia adotar. Assim, apesar das constantes mudanças de rumo no governo e no Congresso do país, seu banco central tem conseguido seguir uma política coerente com foco no equilíbrio fiscal, na contenção da inflação e na manutenção do valor do sol, a moeda peruana. O ex-ministro Mendoza destaca que “o banco central tem tido um papel tradicional no combate à inflação e continua a cumpri-lo agora em condições difíceis, já que existem pressões inflacionárias externas e o banco teve que reagir elevando fortemente a taxa de juros”. O modelo econômico aplicado no Peru nos últimos anos foi o consagrado em sua Constituição de 1993. Aprovada no governo de Alberto Fujimori e criticada por muitos, principalmente pela esquerda (que apontava deficiências democráticas), a Carta Magna lançou as bases para o crescimento que se seguiu à aprovação do texto constitucional e possibilitou a redução dos níveis de pobreza no país. O artigo 62 da Constituição impede que os contratos firmados sejam modificados por leis posteriores, o que tem significado forte proteção às empresas estrangeiras que investem no país, tendo assim a garantia de que as condições de suas operações não serão alteradas. Para alguns analistas, isso afastou o temor das habituais expropriações e nacionalizações em outros países latino-americanos, o que permitiu ao país atrair grandes volumes de investimentos. Mas os críticos apontam que lidar com multinacionais na exportação de matérias-primas, especialmente minerais, não ocorre de forma justa e exigem maior poder de barganha do Estado. Na campanha que o levou à presidência, Pedro Castillo fez da renegociação com empresas estrangeiras uma de suas bandeiras, mas seu governo não concretizou essas promessas. Outro ponto fundamental está no Artigo 79, que determina que o Congresso não tem iniciativa de criar ou aumentar gastos públicos, o que tem contribuído para o equilíbrio fiscal dos últimos anos. No entanto, uma recente decisão do Tribunal Constitucional propõe uma nova interpretação para limitar o seu alcance. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Waldo Mendoza ressaltou que, se observarmos o comportamento do câmbio na América Latina, o do Peru é um dos menos voláteis. Em outras palavras, a moeda peruana é uma das que menos vê seu valor flutuar em relação à moeda de referência, o dólar americano, e não apresenta tendência a desvalorizações acentuadas em momentos econômicos adversos típicos de outras economias da região. Apesar de todo o furacão político, o país terminou 2022 ainda com queda na cotação do dólar, e a moeda peruana ficou na quarta posição de um ranking da Bloomberg que classifica as principais divisas latino-americanas. Uma das razões para evitar desvalorizações acentuadas do sol é a política peruana de "flutuação suja", em que a taxa de câmbio oscila, mas com intervenções eventuais do banco central local (modelo que o Banco Central brasileiro também segue). O Peru conseguiu acumular mais de US$ 74 bilhões em reservas internacionais, algumas das mais altas da América Latina em relação ao PIB. Trata-se de uma quantidade bastante razoável de recursos que o Banco Central de Reserva do Peru pode mobilizar em um piscar de olhos para evitar uma depreciação excessiva de sua moeda. Mendoza afirma que "as reservas são uma espécie de seguro contra um 'câncer' e permitem atuar em circunstâncias complicadas que derrubariam qualquer país". Esse colchão financeiro também é uma das razões pelas quais o Peru é um dos países com a menor dívida pública da região. O progresso dos últimos anos não resolveu todos os problemas do país e não faltam vozes que apontam que os benefícios do crescimento não têm sido distribuídos de forma justa. Julieta Ayelen Almada, especialista em História Econômica da Universidade Nacional de Córdoba, na Argentina, disse à BBC Mundo que "o crescimento do PIB por si só não mostra toda a realidade social. No Peru, nos últimos anos, temos visto uma crescente desigualdade no acesso a serviços básicos como saúde ou educação". Carolina Trivelli, pesquisadora do Instituto de Estudos Peruanos, aponta que “muito tem sido feito para reduzir a pobreza monetária, mas muitas pessoas ainda estão longe de viver nas condições em que deveriam”. O próprio Velarde, diretor do banco central peruano, já declarou: "Temos renda para prestar serviços melhores". Foi uma crítica aos governantes em diversos níveis em um país em que a falta de capacidade de gestão dos órgãos públicos e os frequentes escândalos de corrupção tornaram-se as principais preocupações. Mas o crescimento das últimas décadas não serviu para corrigir as deficiências de infraestrutura, abastecimento de recursos essenciais como água ou serviços públicos de saúde, que ficaram especialmente evidentes durante a pandemia do coronavírus. O prognóstico para o futuro próximo não é muito otimista. O investimento em mineração, tradicional motor do crescimento, parece ter abrandado devido à incerteza e aos constantes conflitos sociais em torno das grandes explorações. E o contexto internacional, marcado pela inflação e pela guerra na Ucrânia, não convida ao otimismo para uma economia como a do Peru, que, por seu caráter aberto, é altamente permeável ao que ocorre no exterior. O BCRP espera um crescimento de 3% entre 2022 e 2023, abaixo do necessário para continuar reduzindo a pobreza. “Para continuar reduzindo a pobreza como fizemos nos últimos anos, precisamos crescer 4% ou 5% de forma sustentada”, diz Trivelli. Crescer mais e garantir que os benefícios cheguem a todos os peruanos será o desafio para manter vivo o "milagre peruano".
2023-02-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3gzlqgzyp7o
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'América Latina deveria ser região com menos fome no mundo', diz pesquisador
Por trás da sua última refeição, pode ter existido uma história de grandes interesses. Não se trata apenas de quem proporcionou o alimento, mas de uma série de fatores que vão desde a produção até sua chegada ao mercado. E, em cada uma dessas etapas, pode haver interesses em jogo entre países ou corporações, segundo Juan José Borrell, autor do livro Geopolítica y Alimentos: el Desafío de la Seguridad Alimentaria Frente a la Competencia Internacional por los Recursos Naturales (“Geopolítica e alimentos: o desafio da segurança alimentar frente à concorrência internacional pelos recursos naturais”, em tradução livre). “Os alimentos são um fator de poder”, afirma Borrell, que é professor e pesquisador de geopolítica da Universidade de Rosário e da Universidade da Defesa Nacional, na Argentina. Ele também foi assessor da delegação argentina no Comitê de Segurança Alimentar Mundial da FAO, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura. Borrell participou do Hay Festival Cartagena, promovido na Colômbia entre 26 e 29 de janeiro de 2023. A seguir, leia os principais pontos da sua conversa com a BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC. Fim do Matérias recomendadas BBC News Mundo: Como os alimentos se tornaram uma questão geopolítica? Juan José Borrell: Os alimentos sempre foram importantes. O ser humano estruturou sua existência em torno da busca pelo abastecimento alimentar desde antes do Neolítico. Mas podemos dizer que os alimentos se transformaram em assunto geopolítico depois da Segunda Guerra Mundial, com o grande salto dado pelos Estados Unidos no cenário internacional. No marco da doutrina da contenção, da ajuda humanitária e da criação de organismos como a ONU, temas como a fome e a pobreza - que giram em torno da produção de alimentos - adquiriram alcance internacional. Vivemos nas últimas décadas um interesse renovado por uma série de fenômenos geopolíticos que voltaram a colocar o tema do fornecimento de alimentos na agenda maior da política internacional. Por exemplo, o crescimento das novas economias, a concorrência pelos recursos, o aumento da população mundial ou os danos aos ecossistemas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast BBC: É uma questão de Estado ou de corporações que concorrem pelas suas posições no mercado? Borrell: É uma pergunta muito interessante porque geralmente se aborda a questão a partir de uma dicotomia entre o público e o privado. E não é assim. Por exemplo, um dos maiores produtores, comerciantes e consumidores de alimentos que surgiram nos últimos 20 anos é a China. E sabemos que a atividade do regime comunista chinês, que planeja a política econômica e exterior das corporações do país, pode ser equiparada à de qualquer empresa ocidental privada, como Cargill, Monsanto ou Unilever. Entidades, corporações e organismos internacionais fazem parte desta concorrência. Nas grandes potências, o setor privado trabalha de mãos dadas com o setor público. BBC: Quais são os países mais bem posicionados neste aspecto? Borrell: Quem cresceu de forma gigantesca nos últimos anos foi a China, com uma política eficiente de expansão que a levou a buscar novos recursos e melhorar a alimentação da sua população. O país mudou seus hábitos alimentares e consome mais proteína animal, aumentando a demanda nos países produtores do Cone Sul, por exemplo. Com relação às potências alimentares, os Estados Unidos são o centro de algumas das maiores corporações que impulsionaram a “revolução verde”, desde o fim da Segunda Guerra Mundial. E há também o Reino Unido. No que antes se chamava de Terceiro Mundo, podemos mencionar o Brasil e, em um ponto mais distante, a Argentina, que foi submetida a uma exploração intensiva e monocultura, com perda da biodiversidade. Casualmente, neste boom produtivo, os países da América Latina sofreram aumento da pobreza estrutural e da insegurança alimentar. É um paradoxo. BBC: Qual é o objetivo dos países nisso tudo? Garantir sua própria segurança alimentar ou ganhar influência político-econômica por meio dos alimentos? Borrell: Ambas. Os alimentos são um fator de poder. Produção, sementes, patentes, insumos, comércio, portos, frota, preços ou produtos nas gôndolas dos mercados são uma enorme fonte de poder, capacidade de influência e geração de riqueza. As grandes potências concorrem por espaços de mercado, para ganhar renda e ter maior autonomia alimentar. Outros países servem para extração de renda, como é o caso da Argentina. Não existe uma política alimentar estratégica que solucione o problema do acesso da população aos alimentos. O fato de um país dispor de um sistema de produção agrícola intensiva não garante que as necessidades alimentares da sua população sejam automaticamente satisfeitas. BBC: Segundo um relatório da ONU, no ano passado, o mundo retrocedeu nos seus esforços para acabar com a fome, a insegurança alimentar e a desnutrição. Por que existe cada vez mais fome se temos melhor tecnologia para produzir alimentos? Borrell: Existe um grande mito: o de que, graças à tecnologia, os rendimentos aumentarão e, consequentemente, maior quantidade de pessoas terá acesso a um maior fornecimento de alimentos. Ou, ao contrário, que existe fome onde faltam alimentos ou há excesso de população. O professor indiano Amartya Sen, ganhador do prêmio Nobel de Economia, demonstrou que, em muitas fomes históricas, havia fornecimento de alimentos, mas a população não tinha forma de adquiri-los. De fato, o sistema de produção intensiva não gera necessariamente alimentos. Ele gera uma matéria-prima que também pode ser empregada, por exemplo, para alimentação de animais ou fabricação de biocombustíveis. A Argentina é o maior produtor de biodiesel de soja do mundo e os Estados Unidos fabricam etanol com mais de um terço da sua colheita de milho. BBC: Ou seja, o problema da fome não se deve necessariamente à quantidade de alimentos disponíveis... Borrell: Exato. Tem a ver, como demonstra a FAO, com a questão do acesso. Mais de 85% da população mundial têm acesso aos alimentos disponíveis no mercado. Mas, se não tenho os meios econômicos para procurá-los, meu acesso será prejudicado. BBC: Que papel desempenha a América Latina no mapa agroalimentar global? Borrell: O que ocorre na América Latina e no Caribe representa um grande paradoxo. Dentre as regiões que eram consideradas em vias de desenvolvimento, nosso continente é o que tem a menor quantidade de pessoas que sofrem de fome crônica. Os últimos relatórios do Banco Mundial calculavam, em média, cerca de 55 milhões de pessoas. Mas, atualmente, a América Latina produz alimentos para 1,3 bilhão de pessoas e tem capacidade de produzir ainda mais. (Veja ao fim deste texto mais dados sobre a fome no mundo) A América Latina é um grande produtor de alimentos, mas parte da sua população não tem acesso ao abastecimento. A América Latina é o lugar onde deveria haver menos pessoas com fome no mundo. É talvez o continente mais rico em recursos, terras férteis, água potável, biodiversidade... BBC: Então, qual é o problema? Borrell: É a economia política, uma combinação de políticas extremamente liberais e políticas extremamente socialistas. Ambas geraram aumento da pobreza, retrocesso dos setores de classe média e mudanças do tipo de alimentação. Estamos observando um fenômeno que não existia meio século atrás. As pessoas que conseguem ter acesso ao abastecimento alimentar consomem alimentos com qualidade nutricional mais baixa. É um fenômeno que não fica circunscrito apenas à pobreza, mas também atinge a classe média. Os setores da classe média que dispõem de recursos, automóveis, boa moradia, celulares e bem-estar sofrem de excesso de peso, obesidade mórbida ou outros problemas, devido aos maus hábitos alimentares ou produtos industriais com baixa qualidade nutricional. BBC: O sr. vê a China como um ator que d maior liberdade de ação para a América Latina? Borrell: É uma pergunta delicada. A questão não é de liberdade. O que a China vem fazendo é ganhar mercados. Precisamos entender que o tipo de relações que a China estabelece também tem caráter assimétrico. A China se transforma em um grande comprador e, ao mesmo tempo, impõe condições que reduzem a margem de ação dos países da região. As potências nunca estabelecem relações entre iguais com países mais fracos, vulneráveis ou periféricos. BBC: A Argentina já foi considerada o “celeiro do mundo”, mas cerca de quatro em cada 10 pessoas do país vivem abaixo da linha da pobreza. Como se explica esta contradição? Borrell: O título de “celeiro do mundo” é um grande exagero. Não existe apenas um, mas sim diversos celeiros do mundo. Tem mais a ver com uma retórica nacional de um passado de grandeza que não é verdade. A Argentina é um país rico em recursos, mas tem uma política econômica deficiente, que é uma fábrica de geração de pobreza. Não será, de nenhuma forma, seu próprio celeiro, que dirá o celeiro do mundo. A Argentina tem todas as condições para ser um grande produtor de alimentos. Estimativas indicam que ela poderia produzir alimentos para 300 milhões de pessoas. Mas qual é o sentido de produzir para tantas pessoas se a metade dos menores de 14 anos da Argentina sofre de fome crônica? Toda uma geração está sendo privada de suas possibilidades de desenvolvimento, crescimento e trabalho, devido a uma série de políticas econômicas das últimas décadas, tanto pela direita quanto pela esquerda, que geraram aumento da pobreza da população. Atualmente, segundo a FAO, cerca de 828 milhões de pessoas passam fome no mundo. Esse índice seguia praticamente inalterado desde 2015, próximo de 8% da população global. Mas com a pandemia de covid-19 e a guerra na Ucrânia, o número saltou nos últimos anos. A situação é particularmente preocupante na Ásia, onde cerca de 20% da população enfrentou a fome em 2021 (os últimos dados disponibilizados pela ONU). No mesmo período, no continente africano, 9% da população sofria de fome, e na América Latina e Caribe, 8,6%.  No Brasil, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, conduzido pela Rede PENSSAN e divulgado em junho passado, 33,1 milhões de brasileiros vivem em situação de fome no país. No fim de 2020, eram 19,1 milhões. Esta reportagem é parte do Hay Festival Cartagena, um encontro de escritores e pensadores realizado na Colômbia entre 26 e 29 de janeiro de 2023.
2023-02-01
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgr08mvgjmzo
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'Brasil pode mostrar ao mundo como reagir a ataques contra a democracia', diz promotor de 'Argentina, 1985'
O jurista argentino Luis Moreno Ocampo, 70 anos, foi criticado até pela mãe quando assumiu o primeiro caso de sua carreira como promotor: levar a julgamento os nove ditadores militares que governaram a Argentina entre o golpe de Estado de 1976 e a redemocratização em 1983. A oposição da mãe virou anedota do filme Argentina, 1985, indicado ao prêmio de melhor filme internacional do Oscar 2023 e vencedor do Globo de Ouro na categoria melhor filme estrangeiro. Em entrevista à BBC News Brasil por Zoom, de seu apartamento em Malibu, na Califórnia, Ocampo afirmou que a história retratada no cinema e no streaming mostra às novas gerações a necessidade de punir responsáveis por crimes violentos do passado e a importância de realizar julgamentos justos até contra os torturadores mais cruéis. O filme recria um momento decisivo da história argentina. Mesmo com a retomada do poder pelos civis, não havia unanimidade no país sobre a conveniência de julgar militares responsáveis por crimes bárbaros. Pelo menos 30 mil pessoas desapareceram no país durante a ditadura, segundo estimativas de organizações de direitos humanos. Fim do Matérias recomendadas Mas o primeiro presidente da redemocratização, Raúl Alfonsín, tinha como bandeira de campanha levar a julgamento os responsáveis nas Forças Armadas pelos crimes da ditadura — venceu a eleição com 52%. Alfonsín revogou uma lei de "autoanistia" que os militares editaram antes de deixar o poder. E determinou por decreto que a promotoria abrisse investigações contra os comandantes da Marinha, da Aeronáutica e do Exército no período ditatorial. Assim nasceu o processo contra os nove comandantes militares. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O Brasil caminhou de maneira oposta. Nenhum presidente tomou a iniciativa de revogar a Lei da Anistia, sancionada pelo último ditador, João Figueiredo, em 1979. O Supremo Tribunal Federal (STF) manteve, em 2010, a validade da Lei da Anistia, e ainda não pautou o julgamento de um recurso da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que tenta reverter a decisão. A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) já mandou o Brasil reabrir investigações sobre responsáveis por assassinatos durante a ditadura brasileira, o que tem amparado decisões de juízes para retomar e avançar alguns casos. Para Ocampo, a anistia tornou o Brasil mais propenso à interferências das Forças Armadas na vida política. "A falta de clareza do que aconteceu no Brasil durante a ditadura ajuda pessoas a romantizar sobre serem protegidas por homens fortes, como minha mãe pensava que era protegida pelo general Jorge Videla (ditador que comandou a Argentina entre entre 1976 e 1981)", diz o ex-promotor. Mas, depois dos ataques de 8 de janeiro em Brasília — quando apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) destruíram patrimônio, mobiliário e edificações do Executivo, do Legislativo e do Judiciário contra a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) —, Ocampo avalia que o Brasil pode servir de modelo sobre como reagir a investidas contra a democracia. "Ainda que existam diferenças políticas, todos os políticos precisam concordar em proteger a democracia. O Brasil pode mostrar ao mundo como reagir politicamente a ataques contra a democracia. Por isso, acredito que o governo Lula tem que criar um consenso sobre isso. Sei que é difícil, porque as redes sociais estão tornando a sociedade muito fragmentada", pondera o jurista. "É um grande desafio político para Lula conseguir consenso para proteger a democracia e tirar vantagem desses ataques", acrescenta. Para ilustrar a importância não só de punir os ditadores argentinos, mas de fazer isso em um julgamento justo, Ocampo conta que sugeriu ao diretor do filme, Santiago Mitre, que incluísse essa ideia no roteiro, na fala de um dos juízes: "Vamos dar aos militares o que eles não deram às suas vítimas: um julgamento justo". Veja abaixo trechos da entrevista com Ocampo: BBC News Brasil - Ao contrário da Argentina, o Brasil aprovou uma Lei de Anistia para militares e não julgou os responsáveis por torturas e assassinatos durante a ditadura. Quais as consequências disso? Luis Moreno Ocampo - No livro The Justice Cascade: How Human Rights Prosecutions Are Changing World Politics, a professora Kathryn Sikkink mostrou que a falta de investigações no Brasil está ligada ao fato de ocorrerem mais casos de tortura do que em outros países. Países que investigam o passado têm menos problemas de tortura policial do que o Brasil. Isso é importante. Precisamos oferecer ao presidente Lula um bom projeto para investigar o crime organizado de maneira generalizada. A ideia de gerenciar a violência com meios pacíficos é crucial para nosso futuro, como a Argentina mostrou. BBC News Brasil - Essa anistia aos militares da ditadura tornou o Brasil mais propenso a interferências ou a problemas com os militares na atualidade? Ocampo - Sim. A falta de clareza do que aconteceu no Brasil durante a ditadura ajuda pessoas a romantizar sobre serem protegidas por homens fortes, como minha mãe pensava que era protegida por Videla. Não sei o suficiente sobre o Brasil, mas na Argentina a investigação do passado produziu rebeliões militares e conflitos. Só que as pessoas reagiram e defenderam a democracia. Essa foi a questão definidora. BBC News Brasil - Como o senhor observou os ataques contra os Três Poderes do Estado brasileiro no dia 8 de janeiro em Brasília? Ocampo - É incrível como os ataques de Brasília foram similares aos ataques contra o Congresso dos Estados Unidos. Acho que não estamos prestando atenção a isso. Nos Estados Unidos, condenaram os líderes dos ataques, mas ainda há políticos no Senado apoiando essa invasão. É muito importante o que Lula fez no Brasil no dia seguinte ao ataque, quando reuniu líderes políticos contra isso. Isso é crucialmente importante. Ainda que existam diferenças políticas, todos os políticos precisam concordar em proteger a democracia. O Brasil pode mostrar ao mundo como reagir politicamente a ataques contra a democracia. Por isso, acredito que o governo Lula tem que criar um consenso sobre isso. Sei que é difícil, porque as redes sociais estão tornando a sociedade muito fragmentada. É um grande desafio político para Lula conseguir consenso para proteger a democracia e tirar vantagem desses ataques. Especialistas acadêmicos precisam oferecer a Lula mecanismos eficientes para controlar o crime violento e as mudanças climáticas. Quando se é político, não se tem tempo de pensar nesse tipo de questão. Os acadêmicos não estão ocupando esse espaço. Especialistas precisam conceber novas ferramentas, incluindo ferramentas que usam inteligência artificial, para controlar o crime organizado. Isso é crucial. BBC News Brasil - Houve relatos no Brasil de que alguns militares teriam facilitado ou se omitido nos ataques de Brasília. Como as autoridades devem lidar com isso? Ocampo - Quando você vê o que aconteceu em Brasília, a falta de reação foi similar ao que aconteceu em Washington. A polícia e a Guarda Nacional não foram eficientes por horas. Não foi tão diferente. A polícia e o Exército seguem ordens. Não precisa prender todos os policiais ou todos os militares. Precisa dar ordens claras. Na Argentina, pessoas disseram que o responsável pela nossa segurança, durante o julgamento, tinha trabalhado em um centro de tortura, mas em 1985 o comissário de polícia não seguia ordens do general Jorge Videla. Até escoltou Videla como prisioneiro. Os policiais seguem ordens. BBC News Brasil - Por que o sr. acha que a reação de militares e policiais foi semelhante no Brasil e nos EUA? Ocampo - Nos Estados Unidos, a Guarda Nacional foi realmente lenta e dizem que há militares insubordinados nos baixos escalões das Forças Armadas. Mas acho que ninguém estava preparado para isso. Não é fácil matar pessoas protestando na frente do Congresso. É complicado. Não estavam preparados para lidar com o problema. Mas algumas pessoas no Brasil e nos EUA agiram bem para resolver a situação, sejam autoridades ou membros do Congresso. O Brasil virou exemplo de como a democracia sob ataque é um problema global. BBC News Brasil - Como as instituições devem reagir a ataques como os sofridos pelo Brasil? Ocampo - Os juízes reagiram muito bem, corretamente, garantindo que os criminosos sejam identificados. Realmente precisamos que os políticos deixem claro no Brasil que a democracia é um projeto comum. Depois podem debater a economia. Mas isso é crucial. BBC News Brasil - A ordem jurídica internacional está equipada para lidar com episódios como os ataques em Brasília? Ocampo - Não. Precisamos fazer mais. É um momento em que precisamos pensar como desenvolver a conexão entre instituições nacionais e internacionais. Alguns dizem que a Organização das Nações Unidas (ONU) não pode ser culpada pela falta de paz no mundo, porque a ONU é o prédio onde países soberanos se encontram. Culpar a ONU pela falta de segurança é como culpar o Madison Square Garden quando os Knicks jogam mal. O Tribunal Penal Internacional (TPI) foi a primeira instituição a intervir nos países-estado. Minha experiência lá transformou o meu entendimento. Precisa ter esse tipo de instituição internacional para constranger sistemas nacionais que pratiquem atos ilegais. É um modelo a ser desenvolvido, porque precisamos desenhar coisas novas. Precisamos de algo como um tribunal contra o crime organizado, que possa intervir quando crimes não são investigados. Precisamos de algo assim contra as mudanças climáticas e contra o crime organizado. Para o crime organizado, precisamos primeiro de uma organização regional investigando os crimes. A Europol é a maior organização policial, mas só para a Europa. E a Interpol não é operacional; é um sistema de troca de informações sobre fugitivos. Precisamos de uma polícia central para controlar o crime organizado. BBC News Brasil - Quase 40 anos depois, quais foram as consequências para a Argentina do julgamento dos comandantes militares pelos crimes praticados na ditadura? Ocampo - O presidente Raúl Alfonsín dizia que tínhamos que acabar com 50 anos de impunidade por golpes de Estado e proteger a democracia. Esse era o plano dele. Ele se elegeu para isso. É interessante porque naqueles dias professores de ciência política e de relações internacionais não queriam julgamentos ou investigações, porque a Espanha teve uma transição mais suave sem desafiar o ditador Francisco Franco. E o Brasil tinha seguido em frente sem investigar antigos ditadores. Alfonsín enfrentou rebeliões militares, mas as pessoas apoiaram a democracia e assim ela ficou mais forte. O filme é incrível, porque passou essa mensagem para novas gerações. O filme não é só importante para a Argentina, mas para o mundo todo, porque a democracia está sob ataque em todo o mundo. BBC News Brasil - Como foi superada a alegação defensiva dos comandantes argentinos de que não sabiam e não organizaram os assassinatos e as torturas? Ocampo - Esse foi o maior desafio para nós. No início, não sabíamos exatamente quem estava torturando ou matando as vítimas. Então escolhemos os casos mais graves da Comissão da Verdade. Tentamos mostrar diferentes anos e juntas militares, de diferentes partes do país. Juntamos 700 casos. Depois, começamos a ligar para os sobreviventes e a perguntar como foram sequestrados, se havia testemunhas, se algum familiar viu etc. Tentamos fortalecer os depoimentos das vítimas com outras testemunhas. Em seguida, buscamos outros documentos como habeas corpus ou queixas na justiça sobre a prisão da vítima. Depois, na parte importante de provar que comandantes sabiam, o fato é que em todos os casos depois do sequestro as pessoas eram torturadas em centros clandestinos em dependências das Forças Armadas ou da polícia. Era um sistema de tortura. Para quebrar o silêncio, eles torturavam sem limites para conseguir mais informações. Isso mostrava a responsabilidade do comando e que não era um incidente isolado ou grupos agindo por conta própria. A Comissão da Verdade chamava esses locais de tortura de "centros clandestinos". Mas os militares, na sua linguagem, chamavam de "local de encontro de prisioneiros". Quando perguntávamos aos generais quais eram os centros clandestinos na área sob sua responsabilidade, eles negavam. Mas quando perguntávamos se havia "locais de encontro de prisioneiros" nas suas áreas, eles reconheciam esses lugares. Eles admitiam que inspecionavam e prestavam informações aos comandantes. BBC News Brasil - Como se chegou a uma prova irrefutável contra os comandantes militares? Ocampo - Tivemos uma "smoking gun" (uma "arma fumegante", uma prova irrefutável). A melhor prova para mim foi um caso em que a Marinha disse que freiras francesas foram sequestradas pelo grupo guerrilheiro Montoneros. Mostraram fotos das freiras com a bandeira dos guerrilheiros atrás. Tivemos diferentes testemunhas dizendo que as fotos foram feitas em um quartel da Marinha. E a mais importante testemunha foi o ex-presidente da França, Valéry Giscard d'Estaing, porque ele contou que recebeu o almirante Emilio Massera na Europa, quando o militar argentino fazia um tour em busca de apoio para virar o novo presidente. O presidente francês perguntou a Massera sobre as freiras francesas. Massera deu um papel sem assinatura, mostrando que as freiras francesas, citadas pelo nome, foram mortas pelas Forças Armadas, não pelos guerrilheiros. Massera alegava que o Exército tinha matado as freiras, mas a verdade era que a Marinha tinha matado, então Massera estava escondendo isso. Isso foi uma grande evidência, uma "smoking gun". E o presidente francês testemunhou. Nenhum comandante matou com as próprias mãos. Eles davam ordens. Comandantes não atiram, traçam planos. As ordens formais nunca diziam para "torturar". As ordens diziam para fazer o que chamavam de "entrevistas táticas". Usavam palavras diferentes para esconder os crimes. Chamavam as vítimas de "alvo planejado" e "alvo oportuno". "Alvo planejado" era a pessoa que devia ser sequestrada. "Alvo oportuno" era a pessoa que devia ser torturada. Algumas ordens nós localizamos, mas tivemos de decodificar, porque foram escritas de maneira cifrada. O número de vítimas transformou o julgamento. Militares tentaram dizer que venceram a guerra contra os terroristas. Mas o que fizeram foi pior. A verdadeira questão é a seguinte: tratamos pessoas violentas como criminosos com direitos ou inimigos que podem ser mortos? Militares consideraram que os argentinos eram inimigos a matar. Diziam que defendiam a democracia e a liberdade. Como podem matar e torturar defendendo a democracia e a liberdade?
2023-01-30
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O que Brasil pode ganhar e perder com empréstimos do BNDES para obras no exterior
A indicação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), durante visita à Argentina, de que o Brasil deve voltar a financiar projetos de engenharia e desenvolvimento no exterior por meio do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) desencadeou uma série de críticas, discussões e a disseminação de informações falsas nas redes sociais nos últimos dias. Durante sua passagem por Buenos Aires, em sua primeira viagem internacional desde a posse, Lula afirmou que a intenção era "ajudar que os países vizinhos possam crescer e até vender o resultado desse crescimento para o Brasil". Pouco depois, ao lado de Alberto Fernández, na Casa Rosada, o presidente afirmou que irá criar condições para financiar o gasoduto Néstor Kirchner, na Argentina. A primeira fase do projeto já está concluída e o governo do país vizinho busca recursos para continuar a obra, com 500 quilômetros, ligando os campos de óleo e gás da região de Vaca Muerta até San Jerónimo, na província de Santa Fé. Há planos para que, em uma fase futura, o gasoduto se conecte com o Rio Grande do Sul, mas eles nunca saíram do papel. Lançado em 1998, o programa de financiamento à exportação de bens e serviços de engenharia brasileiros do BNDES foi paralisado nos últimos anos após a revelação de casos de corrupção envolvendo empreiteiras. Fim do Matérias recomendadas Nas redes sociais, os planos para reviver a plataforma geraram controvérsia, com autoridades e internautas se posicionando contra e a favor da ideia. Se de um lado alguns cidadãos relembraram os casos de corrupção e calote envolvendo os projetos financiados pelo BNDES, de outro muitos enfatizaram as benesses que esses esquemas representam para empresas brasileiras e geração de empregos no país. "BNDES irá emprestar dinheiro pra empresas NACIONAIS fazerem obras em outros países, mas a condição é, TODAS as peças são feitas no Brasil, gerando assim, milhões de empregos para nosso povo", escreveu o ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, no Twitter. "Obras em outros países? Por que não no Brasil?", questionou uma seguidora. "Cuba nos deu um calote (...) e nunca pagará. A conta ficou para o pobre povo brasileiro", comentou outro. (Veja abaixo os valores devidos por Cuba, Venezuela e Moçambique) Afinal, quais são os principais argumentos a favor e contra empréstimos do BNDES para obras no exterior? A BBC News Brasil conversou com especialistas da área para explicar como funciona e quais são os ganhos, desvantagens e riscos desse programa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O chamado programa de financiamentos à exportação dos bens e serviços de engenharia brasileiros consiste no aporte a empresas brasileiras para executarem serviços no exterior. Esses financiamentos são determinados pela administração direta do governo federal, que estabelece as operações, os países de destino das exportações, as principais condições contratuais do financiamento (como valor, prazo, equalização da taxa de juros e seguros) e os mitigadores de risco soberano do país que sedia a obra de engenharia. Diferente do que dizem muitos dos conteúdos sobre o tema que circula nas redes sociais, os empréstimos são feitos em reais e no Brasil, para as companhias nacionais. Portanto, quem recebe o dinheiro é a empresa brasileira que vende para fora e não o país. Mas os débitos são posteriormente pagos, de maneira parcelada, pelos países estrangeiros que receberam as obras. O pagamento é feito com uma taxa de juros anual definida por um acordo entre o governo federal brasileiro e a nação que receberá os empreendimentos. Ainda faz parte do processo o Fundo de Garantia à Exportação (FGE), de natureza contábil e vinculado ao Ministério da Fazenda. Ele foi criado em 1997 para servir como um seguro e, caso haja inadimplência do devedor, indeniza o financiador e busca recuperar o valor em atraso. O esquema gerou polêmica, especialmente durante as gestões petistas, devido ao registro de calotes e de financiamentos que beneficiaram empreiteiras citadas em casos de corrupção. A prática foi alvo de investigações da Operação Lava Jato e foi largamente criticada pela oposição e pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. Fontes do governo e do BNDES ouvidas pela BBC News Brasil sob condição de anonimato afirmam, no entanto, que a ideia atual é de que o banco possa atuar no projeto, mas não como fazia no passado, financiando serviços de engenharia realizados por empreiteiras brasileiras. Agora, segundo essas fontes, o banco se limitaria a financiar a compra de equipamentos e peças fabricadas no Brasil a serem usadas na obra. Oficialmente, porém, o banco afirmou à BBC News Brasil que não existe demanda ou previsão de financiar projeto de serviços de infraestrutura no exterior. "Qualquer alteração nessa política passará necessariamente por um entendimento com o TCU, uma vez que o presidente do Tribunal, Bruno Dantas, tem reforçado o papel de acompanhamento colaborativo das políticas públicas por parte da referida instituição", afirmou o BNDES em nota. Segundo o próprio BNDES, o financiamento da exportação de bens e de serviços produzidos no Brasil tem por objetivo o aumento da competitividade das empresas brasileiras, a geração de emprego e renda no país e a entrada de divisas. A ideia defendida pelos apoiadores do projeto é que, por meio do empréstimo, as companhias locais possam expandir seu mercado, exportar suas tecnologias e se desenvolver. O mecanismo, portanto, serviria como um "empurrão" às empresas brasileiras, especialmente as mais novas e que atuam em mercados mais difíceis e competitivos. Ao mesmo tempo, defende-se que os novos empreendimentos no exterior possam beneficiar de alguma forma o país. No caso específico do gasoduto argentino, a expectativa é que, no futuro, ele possa representar uma nova fonte de gás para o Brasil. "O programa pode beneficiar empresas brasileiras e gerar empregos porque os fornecedores seriam empresas brasileiras. Certamente também serão contratados trabalhadores na Argentina para realização desse tipo de obra, mas a fase de desenvolvimento pode ser toda realizada no Brasil", afirma Nelson Marconi, professor de Economia e Finanças Públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV). "Depende muito da forma como for desenhada a proposta", completa. O projeto, porém, tem despertado muitos questionamentos ambientais. Para a extração de petróleo e gás na região de Vaca Muerta é necessária uma técnica conhecida como fracking, que consiste em perfurar as rochas e introduzir água, areia e produtos químicos para aumentar a permeabilidade da pedra e fazer o produto escoar mais facilmente. A técnica, no entanto, pode gerar contaminação na água, na terra e no ar durante o processo de produção, armazenamento e transporte pela quantidade de água utilizada. Justamente por isso está proibida em muitos países. Ao todo, segundo o próprio BNDES, foram desembolsados cerca de US$ 10,5 bilhões, no período entre 1998 e 2017, para empreendimentos de financiamento em 15 países. Para o economista e professor do Insper Sérgio Lazzarini, um exemplo bem-sucedido do esquema é o financiamento da produção de aviões da Embraer. Os empréstimos acontecem desde o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) e, em novembro passado, foi aprovado um novo financiamento da ordem de R$ 2,2 bilhões para a produção e exportação de aeronaves comerciais. "O caso Embraer é bastante patente. Tratava-se de uma empresa que precisava de financiamento e atuava em um mercado difícil, mas oferecia um produto bom e de tecnologia, com possibilidade de ganho de conhecimento", diz Lazzarini. A possível entrada do BNDES em novos empreendimentos internacionais é considerada um ponto sensível para especialistas ouvidos pela BBC News Brasil. Isso acontece, em parte, por conta das dívidas e calotes acumulados por alguns dos países envolvidos. Segundo o próprio banco, estão atrasados pagamentos da Venezuela (US$ 681 milhões), de Moçambique (US$ 122 milhões) e de Cuba (US$ 226 milhões), em um valor total de US$ 1,03 bilhão acumulado até setembro de 2022. Outros US$ 573 milhões estão por vencer. Nesses casos, os empréstimos foram pagos pelo FGE, que é custeado pelo Tesouro. Para Lazzarini, o problema está justamente na avaliação de risco dos empreendimentos nesses países. O professor do Insper publicou, ao lado de outros pesquisadores, um estudo que analisou justamente o custo financeiro incorrido em algumas das operações realizadas entre 2007 e 2015. "As taxas de juros dos empréstimos estavam muito abaixo de um índice que incorporaria o risco de crédito daqueles países, até mesmo comparadas às próprias taxas de dívida daquelas nações", afirma o economista. Lazzarini vê ainda, no caso específico do projeto do gasoduto em Vaca Muerta, um certo risco relacionado à Argentina. O economista Luiz Carlos Mendonça de Barros, ex-presidente do BNDES no governo FHC, afirmou em entrevista ao portal Metrópoles que a Argentina não pode oferecer "garantias fortes" na atual conjuntura. Ele mencionou o fato de que o país vizinho passa por severa crise financeira, com inflação em torno de 95% ao ano. Já em uma entrevista ao jornal Valor Econômico, outra ex-presidente do BNDES, a economista Maria Silvia Bastos Marques, afirmou acreditar que o Brasil já pagou "preço alto" por usar o banco para financiar obras em países vizinhos sem os devidos parâmetros e planejamento. "O BNDES foi ressarcido com dinheiro do contribuinte porque fez um empréstimo e não tinha garantia, sendo que a grande justificativa para o empréstimo ter sido feito era ter garantia, então, é um círculo vicioso", disse a especialista, que comandou o banco entre 2016 e 2017. O próprio BNDES admite, em seu site, que novas regras podem ser aplicadas em novos projetos para evitar inadimplências. Mas para Nelson Marconi, da FGV, o banco "tem um corpo técnico muito competente para avaliar o risco de projetos". Há ainda quem defenda que os investimentos podem ser destinados a projetos mais vantajosos para o Brasil. Especialmente quando se trata da extração e transporte de gás, Marconi vê outras alternativas. "Estamos reinjetando gás do pré-sal por não conseguirmos ainda transportá-lo até o continente e será necessário construir toda uma rede de infraestrutura adicional para que o gás argentino chegue, porventura, nas localidades de maior demanda no Brasil", afirma. O especialista afirma que ainda não há uma infraestrutura pronta no país para que o gasoduto Néstor Kirchner se conecte com o Rio Grande do Sul. "E não se sabe a que custo a Argentina venderia este gás para o Brasil", diz. Para além das dúvidas sobre riscos e benefícios dos investimentos, outro tema que desperta críticas em relação ao programa é a falta de transparência e os casos de corrupção descobertos no passado. As suspeitas sobre obras no exterior financiadas pelo BNDES surgiram após o início das investigações da Lava Jato. Os principais alvos da operação foram algumas das maiores empreiteiras do Brasil como Odebrecht, Camargo Correa, OAS, Andrade Gutierrez e Queiroz Galvão. No caso da Odebrecht, por exemplo, executivos admitiram ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos que pagaram US$ 439 milhões em propina para obter obras em países como Angola, Argentina, Venezuela, Moçambique, entre outros. Em 2016, o BNDES suspendeu a liberação de recursos previstos para obras de empreiteiras investigadas na Lava Jato. Em janeiro de 2017, o banco retomou os repasses, liberando recursos para a Queiroz Galvão, que construía um corredor logístico em Honduras. Também em 2017, a Procuradoria-Geral da República (PGR) denunciou membros do PT como o presidente Lula e a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) por crimes como organização criminosa relacionada ao uso da Petrobras e do BNDES para arrecadação de propina. Em dezembro de 2019, porém, a Justiça Federal do Distrito Federal absolveu Lula e Dilma e outros integrantes do PT que haviam sido denunciados nesse caso. Para Sérgio Lazzarini, especialmente quando se trata de projetos envolvendo grandes construtoras, o processo de indicação e escolha das empresas nem sempre foi realizado da forma mais transparente. Em 2012, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), ao qual o BNDES era subordinado, decidiu classificar os contratos de financiamento à exportação de bens e serviços de engenharia para Cuba e Angola como "secretos", sob o argumento de que possuíam informações estratégicas. Em 2015, tal classificação foi cancelada pelo próprio MDIC. No mesmo ano, os extratos dos contratos, com as condições financeiras (valor, taxa de juros, prazo e garantias) passaram a ser disponibilizados no site do BNDES. O tópico da transparência foi extensamente explorado por Bolsonaro e seus apoiadores durante a campanha eleitoral de 2018, que se referiam a uma "caixa-preta" do BNDES, especialmente em casos envolvendo o grupo J&F, que controla a JBS. Durante seu governo, o ex-mandatário conferiu ao ex-presidente do BNDES indicado por ele, Gustavo Montezano, a missão de abrir a dita "caixa-preta" do banco. O objetivo era encontrar irregularidades em empréstimos destinados a países "comunistas", como Cuba e Venezuela. Mas em 2020, após um ano e 10 meses de investigação e um gasto de R$ 48 milhões com auditoria, o BNDES divulgou um relatório que não apontou nenhuma evidência direta de corrupção em oito operações com a JBS, o grupo Bertin e a Eldorado Brasil Celulose, realizadas entre 2005 e 2018.
2023-01-30
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64426697
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Quais são os 10 países mais ricos do mundo?
Responder à pergunta do título não é fácil. Pode-se ter alguma ideia de quais são, mas não muito precisa. E, afinal, de que tipo de riqueza estamos falando? Bom, a medida que costuma ser usada é o Produto Interno Bruto, ou PIB, que é a soma da produção de bens e serviços de um país em um determinado período e é tomado como indicador para refletir a riqueza de uma região. É um dos indicadores mais conhecidos e usados na economia e, entre outras coisas, ajuda os governos a saber quanto vão receber de impostos e, portanto, quanto podem gastar em serviços como saúde e educação. Então, embora muitos critiquem usar PIB como medida de riqueza, vamos com esse, pelo menos por enquanto, para matar a curiosidade. Fim do Matérias recomendadas Em contagem regressiva, com os dados de outubro de 2022 do Fundo Monetário Internacional e do site Visual Capitalist, aqui estão eles (veja se algum te surpreende): 10. Itália, com US$ 1,997 trilhão 9. Rússia, com US$ 2,113 trilhões 8. Canadá, com US$ 2,2 trilhões 7. França, com US$ 2,778 trilhões 6. Reino Unido, com US$ 3,199 trilhões 5. Índia, com US$ 3,469 trilhões 4. Alemanha, com US$ 4,031 trilhões 3. Japão, com US$ 4,301 trilhões E agora, um grande salto de US$ 14 trilhões e alguns bilhões! 2. China, com US$ 18,321 trilhões E o último, quase US$ 8 tri a mais! 1. Estados Unidos, com US$ 25.035 trilhões O Brasil, que já chegou a figurar como sétima maior economia do mundo em tamanho de PIB, hoje está fora do top 10. Algo, mas, de nenhuma maneira, tudo. Como apontam alguns dos críticos do PIB, a chave está na terceira palavra de seu nome. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Nem mesmo seu criador, o economista americano Simon Kuznets, se orgulhava dela. Sua intenção, na década de 1930, era encontrar uma forma de medir a economia como um todo para ter uma ferramenta que ajudasse países a sair da Grande Depressão. A ideia era avaliar o que realmente era produtivo, ou seja, encontrar o que realmente trazia bem-estar. Mas antes que conseguisse encontrar uma medida mais adequada que o PIB, estourou a Segunda Guerra Mundial e as prioridades mudaram: a questão urgente não era o bem-estar, mas a vida, e armas eram necessárias para defendê-la. Para o influente economista britânico John Maynard Keynes, era essencial saber o que a economia podia produzir e qual era o mínimo que as pessoas precisavam consumir, para saber quanto sobrava para financiar a guerra. Outro tipo de cálculo era necessário, então o foco dessa medida mudou. E assim ficou. Após a guerra, os Estados Unidos precisavam saber como estavam os beneficiários de sua ajuda à reconstrução, então todos começaram a usar o PIB. Foi então ampliado graças às Nações Unidas e tornou-se o padrão global. A medida de bem-estar econômico que Kuznets queria criar acabou sendo uma medida de atividade na economia. A diferença é que tem muita coisa que não é boa para a sociedade, mas é boa para a economia. Então produzir, por exemplo, algo que salve a vida de crianças conta tanto quanto produzir balas para armas que as matam. Também não mede qualidade, apenas quantidade. Quando você paga uma passagem de trem, por exemplo, que conta no cálculo do PIB, não conta se o trem que você está pegando está em ruínas, cheio de gente, com um serviço ruim e sujo. Ou se é um trem bala, que chegou no horário e está bem conservado. Além disso, também não diz nada sobre a distribuição da riqueza: um país pode ter um PIB alto, mas também muita desigualdade. Observe o quanto a lista muda se a medida for o PIB per capita, que mede a relação entre a renda nacional (via PIB em um determinado período) e o número de habitantes do local. Embora também não reflita a realidade, dá, segundo os especialistas, uma ideia mais próxima do bem-estar socioeconômico. Segundo o mapa atual do FMI (2023), os 10 mais ricos desse ranking são… 1. Luxemburgo 2. Singapura 3. Irlanda 4. Catar 5. Macau 6. Suíça 7. Noruega 8. Emirados Árabes Unidos 9. Brunei 10. Estados Unidos Nenhum dos países da primeira lista aparece nela, exceto os Estados Unidos, que, apesar de ter a maior economia do mundo, respondendo por cerca de 20% do PIB global, está em 10º lugar. Luxemburgo, um dos menores países do planeta, tanto em área quanto em população, é o país mais rico do mundo de acordo com esse ranking específico. É o maior centro bancário do mundo: mais de 200 bancos e 1.000 fundos de investimento operam em sua capital. Com uma das forças de trabalho mais educadas e entre as mais altamente qualificadas do mundo, atendendo às demandas de corporações multinacionais, Luxemburgo é enriquecido por uma mistura de indústrias e uma economia de importação e exportação baseada em serviços financeiros. Também possui pequenas e médias empresas, além de um pequeno, mas próspero setor agrícola. Seu alto desempenho se deve, em parte, pelo fato de que cidadãos de países vizinhos como França, Alemanha e Bélgica, trabalham no país, mas não moram nele. Portanto, contribuem para o crescimento do PIB, mas não são incluídos no cálculo per capita. Luxemburgo atrai empresários estrangeiros com impostos preferenciais. Segundo os jornais Le Monde e Süddeutsche Zeitung, 90% das empresas registradas no país são de propriedade de estrangeiros. E, para os funcionários, altos salários. Segundo o Instituto Nacional de Estatística e Pesquisa Econômica de Luxemburgo, o salário mínimo no país é de US$ 2.488 (R$ 12.648) mensais. Portanto, qualquer trabalhador não qualificado pode contar com esse valor. A hora de US$ 14,40 (R$ 73,26) é quase o dobro do salário mínimo federal de US$ 7,25 (R$ 36,89) nos EUA, o país que lidera a lista acima, e perde apenas para o salário mínimo da Austrália (US$ 14,54 por hora, ou R$ 73,98), o mais alto de 2022. O salário médio é de US$ 5.380 (R$ 27.370) por mês, mas especialistas que trabalham em bancos, seguradoras, setor de energia e tecnologia da informação ganham muito mais do que isso. Bem, você tem que descer um pouco nessas listas para encontrar um país da região da América Latina e Caribe. No PIB per capita, os primeiros a aparecer são a Guiana e a ilha caribenha de Aruba, seguidas - quatro posições depois - por Porto Rico. Panamá, Trinidad e Tobago, Chile e Uruguai aparecem posteriormente... Mas aí já estamos na posição 66. Entre as listas em que os países latino-americanos aparecem no top 10 estão as de "Os mais ricos em recursos naturais", com o Brasil e a Venezuela nas posições 7 e 10, respectivamente (com Rússia e Estados Unidos no topo). E, claro, muitas vezes nas listas de países mais bonitos. Esta reportagem foi inicialmente publicada em - https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64286109
2023-01-29
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64286109
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'Racismo foi inventado pelas elites da América Latina para substituir a escravidão', diz antropólogo
No período da construção das repúblicas da América Latina, após os processos de independência nacional, ninguém na região tinha um conceito tão claro do que deveria ser a igualdade ou a liberdade como as pessoas que tiveram esses direitos negados: os escravizados. Para o antropólogo colombiano José Antonio Figueroa, não só houve um bloqueio total da participação dos negros da construção dessas novas nações, como houve casos em que seus movimentos políticos foram sufocados até desaparecer. Para demonstrar essa premissa, Figueroa se aprofundou em dois eventos históricos: a guerra da Concha, no Equador, que terminou com a repressão violenta dos movimentos de afrodescendentes; e, em Cuba, a criação do Partido Independente de Cor e do jornal Previsión. Todos tiveram o mesmo destino: a repressão. O antropólogo resgatou esses movimentos e montou um retrato complexo do que chama de "republicanismo negro" no livro Republicanos negros: guerras por la igualdad, racismo y relativismo cultural (em tradução livre, "Republicanos negros: guerras por igualdade, racismo e relativismo cultural"). A BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, conversou com Figueroa durante o festival Hay Festival de Cartagena 2023, realizado na Colômbia entre 26 e 29 de janeiro. Fim do Matérias recomendadas BBC News Mundo - Vamos falar primeiro sobre a ideia de independência tal como foi construída no continente. Por que você acha que o Haiti conquistou sua independência em 1803 e os outros países latino-americanos apenas 20 anos depois, aproximadamente? José Antonio Figueroa - A questão do Haiti é fundamental na história política e cultural latino-americana, mas, ao mesmo tempo, é amplamente desconhecida e maltratada. A verdade é que a luta pela independência do Haiti também foi acompanhada de uma luta contra a escravidão. É aí que reside a diferença, porque houve uma articulação dessas demandas em uma luta militar que os permitiu derrotar nada mais nada menos que o exército francês. O que isso causou no resto da América? Pois bem, a imagem do medo do negro começou a ser fomentada. O que ocorreu nos Estados que estavam nascendo foi uma precoce criminalização da formidável ação militar realizada pelos haitianos. De fato, em termos práticos, o Haiti sofreu um dos mais brutais processos de isolamento e bloqueio naqueles anos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast E o que o Haiti nos ensinou — as ideias de igualdade, fraternidade e liberdade a partir da ruptura com a escravidão como ponta de um projeto de soberania nacional — poderia ter sido um grande legado, mas se tornou motivo de radicalização e de expansão do medo do preto. O que poderia ter sido realmente uma façanha reconhecida e valorizada foi totalmente rejeitada, até porque havia os interesses dos senhores de escravos, que viam aquela experiência com terror. E não esqueçamos toda a ajuda que Alexandre Pétion, o pai da pátria no Haiti, deu a (Simón) Bolívar em sua campanha de libertação, com a ideia de acabar com a escravidão. Mas este preferiu acabar apoiando a posição do senhores de escravos, que exigiam não perder suas vantagens econômicas. BBC News Mundo - Então, o que vemos é que a construção dessas repúblicas após a independência foi feita tendo o racismo como um de seus "valores"? Figueroa - No livro, toco nos casos de Cuba e do Equador. Com eles, podemos fazer uma leitura ampla do que aconteceu na América Latina. O caso da formação da República de Cuba foi excepcional para os pesquisadores, porque ocorreu no final do século 19. Há uma proliferação de fontes que nos permitem concluir o que você aponta: que o racismo já estava assumindo um caráter profundamente sistemático. Inclusive, o racismo havia se tornado uma espécie de credo científico, com ideias como as apresentadas por Joseph Arthur de Gobineau na França em Desigualdade biológica das raças. Essas ideias se infiltraram nas elites que construíam a República da Cuba naquela época. E não só Gobineau: havia também o racismo científico que proliferava nos Estados Unidos. Ou seja, havia uma infinidade de influências que penetravam no pensamento republicano da época. Essas ideias instalam nos novos países uma ideologia que agora nos permite concluir que o racismo foi um método inventado pelas elites da América Latina para substituir a escravidão. E o que faço em meu livro é mostrar como aquele racismo instalado na construção das repúblicas, no caso de Cuba e no caso do Equador, foi amplamente discutido e rechaçado por grupos intelectuais e militares que buscavam a igualdade e liberdade totais — e não parciais, como ocorreu em muitos países da região. BBC News Mundo - O foco do seu livro são os republicanos negros da época. O que é o republicanismo negro? Figueroa - Vamos começar do básico: a construção da república é o modelo que vai na contramão do modelo imperial ou do modelo mais baseado em premissas reais. E essa ideia se divide em duas: uma república baseada em valores aristocráticos de elite. Um republicanismo exclusivo. Essa é uma. Mas há também outra, que se apresenta desde a Antiguidade, que podemos chamar de popular — em que a república pode existir se e somente forem reconhecidos os direitos de igualdade para todos. Na época desses processos de independência, esse segundo conceito de republicanismo era muito atraente para a população negra, justamente pelas premissas de igualdade para todos. Então, esses grupos não só se apropriaram desse conceito, como também o radicalizaram. Isso fica evidente na revolta na Província de Esmeraldas, no Equador [na chamada "guerra da Concha"] e, claro, em movimentos de Cuba, onde houve uma luta direta contra os conceitos de racismo e desigualdade. Portanto, o republicanismo negro é baseado nesse conceito de igualdade, mas também está profundamente ancorado em uma crítica radical ao racismo e às heranças da escravidão que foram vividas nesses dois países. BBC News Mundo - Talvez nunca tenha havido na América Latina uma ideia tão profunda, que você chama de radical, sobre conceitos como liberdade e igualdade como a que tiveram os representantes desse republicanismo negro. Figueroa - Primeiro, cabe observar que não há material abundante, por razões óbvias, sobre o desenvolvimento intelectual desses movimentos, mas novamente voltamos ao ponto do Haiti, que promulga sua Constituição e declara que "somos todos negros". A partir daí, gerou-se uma corrente de escritores, pensadores e ativistas negros, como o cubano José Antonio Aponte, que imaginou um modelo de república igualitária — o que acabou lhe custando a vida. Acho que vale a pena mencionar aqui é o projeto do jornal Previsión, fundado em Cuba no início do século 20. Junto com o Partido Independente de Cor, o jornal foi a resposta desses intelectuais negros, todos eles veteranos da guerra da independência — visto que as promessas de igualdade promulgadas durante a independência cubana foram enterradas uma vez iniciada a construção da república. Eles não se apropriam das palavras republicanas, mas as tornam reais. Eles falam de suas realidades, muito além de um mero slogan. Daí a profundidade de seus conceitos de liberdade e igualdade. BBC News Mundo - Por que nunca quisemos negros na construção de nossas repúblicas? Figueroa - Em sentido estrito, o racismo, e os legados do racismo, existe na medida em que beneficia um setor e ajuda a construir o privilégio branco. Em outras palavras, permite que um setor da população tenha acesso à terra, à educação, e ajuda a consolidar as diferenças econômicas e políticas dentro de uma nação. Sabe-se que muitos republicanos em Cuba, favoráveis ​​aos processos de emancipação do país, também pensavam em quais deveriam ser as estratégias para evitar que a população afro-cubana continuasse existindo. Em outras palavras, eles pensaram em deportação, em genocídio. A miscigenação foi pensada como uma forma de eliminar gradativamente os afrodescendentes. Tudo sob a premissa de que o outro é marginalizado, que o outro é excluído, de forma a atrair ou manter benefícios econômicos para uma parte da população. BBC News Mundo - Essa negação traz impactos para a região atualmente? Figueroa - Não acho que a questão seja como os impactos foram causados, mas como essas estruturas continuam até hoje. As evidências apontam para uma situação preocupante: os níveis de criminalização, de deterioração de direitos, estão intimamente ligados a formas de discriminação racial. Em outras palavras, os setores radicalizados são os setores que continuam sofrendo hoje as consequências mais desastrosas da desigualdade. Mas vejo projetos vindos dessas comunidades nos quais alguém pode se interessar no futuro. Por exemplo, é louvável o que a vice-presidente da Colômbia, Francia Márquez, está fazendo com o Ministério da Igualdade. E, justamente, as ações políticas atuais devem ser voltadas para corrigir esses tremendos e desastrosos legados de uma longa tradição colonial, baseada na exclusão e negação do outro.
2023-01-28
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64421540
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‘Sem invasão do Capitólio, não haveria o 8 de janeiro’, diz cientista político americano
As cenas de invasão de bolsonaristas na Praça dos 3 poderes em Brasília e as imagens da insurgência de trumpistas no Capitólio em Washington D.C., dois anos antes, não são eventos desconectados. A primeira se forma a partir de "um efeito imitativo profundo" da segunda e em um contexto em que ao menos parte das direitas de Brasil e Estados Unidos desistiram da competição democrática e lançaram mão da violência política. Esta é a interpretação do cientista político americano Scott Mainwaring, da Universidade Notre Dame, no estado americano de Indiana. Segundo ambos, tanto a invasão aos prédios do governo federal brasileiro quanto os seis presidentes que o Peru teve em apenas cinco anos ou mesmo a intervenção autoritária do presidente salvadorenho na Suprema Corte do país são soluços críticos em uma região que, nas últimas décadas, foi incapaz de aprofundar seus processos democráticos. Para Mainwaring e Pérez-Liñan, a América Latina vive não apenas uma bem documentada estagnação econômica como uma estagnação democrática. "Essencialmente nenhum país da América Latina aprofundou a democracia nos últimos 20 anos", afirmou Mainwaring em entrevista à BBC News Brasil, feita por vídeo chamada. Desenvolvimento econômico e desenvolvimento democrático não são processos estanques. Mainwaring afirma que a população da região experimenta um descrédito em relação à uma forma de governo que falhou sistematicamente em reduzir as desigualdades sociais, raciais, econômicas e étnicas. Fim do Matérias recomendadas "Em algum momento as democracias precisam produzir (sucesso econômico). Os cidadãos podem e têm tolerado períodos em que as democracias não lhes deram benefícios materiais. Mas, pelo menos nas novas democracias, isso provavelmente se tornará um equilíbrio precário em algum momento", diz Mainwaring. Na visão do cientista político americano, os Estados latinos são hoje, na melhor das hipóteses, "semidemocracias", capturadas por grupos de interesse, desrespeitando sistematicamente os direitos humanos e entregando resultados muito aquém dos esperados pelas populações. Antes mesmo que se consolidassem, as democracias latinas estão enfraquecidas e com flancos abertos para a chegada ao poder de populistas autoritários, como Bolsonaro. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Leia a seguir os principais trechos da entrevista com Scott Mainwaring, editada por concisão e clareza. BBC News Brasil - Como avalia o que aconteceu em Brasília no dia 8 de janeiro e como esses eventos se comparam com o 6 de janeiro nos EUA? Scott Mainwaring - A direita brasileira, em um tempo surpreendentemente curto, se transformou de uma direita que aceitava majoritariamente a democracia para uma que é autoritária e não aceita a democracia. Houve um fenômeno bastante semelhante nos Estados Unidos. Em ambos os casos, a direita aceitou as derrotas eleitorais até há relativamente pouco tempo, e agora não mais. E em ambos os casos, a direita recorreu à violência. E em ambos os casos, a direita tentou derrubar uma eleição presidencial democrática. Eu acho que as semelhanças entre 6 e 8 de janeiro são grandes. Sem o 6 de janeiro, não haveria 8 de janeiro. Acho que houve um efeito imitativo muito profundo. É claro que há também diferenças. No 6 de janeiro, (o então presidente americano Donald) Trump ainda estava no poder e teve influência direta sobre o resultado (invasão do Capitólio). No caso de Bolsonaro, que estava fora do país, essa influência direta não está clara até agora. Mas uma outra semelhança muito importante é que o bolsonarismo está vivo no Brasil. Bolsonaro pode morrer amanhã, mas o bolsonarismo é uma força política poderosa, assim como o trumpismo nos EUA. Antes das eleições de meio de mandato, em novembro de 2022, era quase certo que Trump seria o candidato (à presidência em 2024). Trump tem seguidores mais fervorosos nos EUA do que qualquer outro republicano. E Bolsonaro perdeu em 30 de outubro, mas perdeu em uma eleição muito, muito apertada. E ele é um herói para dezenas de milhões de brasileiros. BBC News Brasil - O que explica essa mudança da direita nos dois países para uma versão não democrática? Mainwaring - É uma boa pergunta, pra qual temos apenas algumas respostas parciais. Uma delas é a ascensão da mídia social como uma força muito poderosa. Líderes autoritários sempre usaram mentiras como uma ferramenta política. (O líder soviético Joseph) Stálin, por exemplo, podia apagar (o revolucionário Leon) Trotsky das fotos com (o revolucionário Vladimir) Lenin porque já não havia ninguém para contestar, ele sufocou a liberdade de expressão, extinguiu a liberdade de imprensa. Mas hoje, essas mentiras deslavadas e teorias da conspiração são disseminadas com enorme facilidade mesmo nas democracias. As redes sociais tornaram mais fácil disseminar mentiras em grande escala na democracia. Não sabemos exatamente por que tantas pessoas compram essas teorias da conspiração e mentiras bizarras. Mas sabemos que elas compram. Outro elemento, e esse se aplica apenas ao Brasil e aos países da América Latina, é que as outras opções do establishment político falharam de maneiras muito importantes na década de 2010. O PT foi desacreditado por causa de uma combinação de escândalos de corrupção e da grande crise econômica dos anos 2010. E então o establishment de centro-direita foi desacreditado por causa da corrupção no governo (Michel) Temer e sua incapacidade de resolver a crise econômica. É uma história comum na América Latina: os partidos dominantes acabam desacreditados e os eleitores procurarão algo muito diferente, o que abre as portas para esses populistas autoritários anti-establishment. Poderíamos olhar para a eleição de Hugo Chávez na Venezuela em 1998 (que chega ao poder em cenário de terra arrasada na política e na economia do país). Eu acho que a eleição do Bolsonaro no Brasil em 2018 é muito parecida com a do Chávez. E quando elege um populista autoritário como presidente, essa população lhes dá uma plataforma, torna mais fácil para eles expandir esse universo de teorias da conspiração da direita política. Uma terceira coisa que acho que devemos mencionar é que, pelo menos desde 1917, vivemos em um mundo em que o que acontece em uma parte do globo afeta o que acontece em outras. E agora, estamos vivendo em uma era de autoritarismo populista. Se você olhar para os indicadores de democracia eles mostram uma tendência autoritária no mundo desde 2006 ou 2007. Se você pegar as quatro maiores democracias do mundo, Índia, Indonésia, Brasil e Estados Unidos, todas elas mostram declínios muito substanciais na democracia nos últimos 15 anos. Parte disso é causado pelas poderosas redes de direita, cujo grande exemplo é Steve Bannon incentivando o bolsonarismo no Brasil e dizendo que a eleição brasileira 'foi uma fraude'. Ainda pensando na América Latina, o fim do grande boom das commodities e os sérios problemas econômicos da última década certamente contribuíram para a insatisfação com a democracia, as altas desigualdades na região persistem. E tanto nos EUA como na América Latina surge uma série de questões culturais. O que Pippa Norris chamou de 'reação cultural' (em inglês, 'cultural backlash'). Em ambos os países houve muito movimento em direção a garantir novas oportunidades para as mulheres na sociedade e na política e não é por acaso que os homens no Brasil e nos EUA votam desproporcionalmente mais nos candidatos da 'reação cultural', Bolsonaro e Trump. BBC News Brasil - No mundo todo temos visto retrocessos na democracia. Vimos o ataque ao Capitólio, vimos planos para subjugar a democracia na Alemanha, um crescimento expressivo da extrema-direita na França. De que maneira o retrocesso na América Latina se assemelha do que tem acontecido nas democracias consolidadas? Mainwaring - O padrão mais comum na América Latina não é de erosão ou colapso democrático, mas de estagnação em níveis intermediários de democracia ou em níveis baixos de democracia que poderíamos chamar de semidemocracia. É razoável argumentar, por exemplo, que o Equador experimentou uma regressão a um 'autoritarismo competitivo' sob (Rafael) Correa, mas depois recuperou algum nível de democracia. Mas, novamente, é uma democracia com enormes lacunas. E estamos vendo isso no Peru hoje. A meu ver, o Congresso peruano acertou em cheio ao afastar Castillo depois que ele tentou um autogolpe. Isso era claramente inconstitucional, ilegal. Não simpatizo com os protestos violentos que ocorreram no Peru desde a remoção e prisão de Castillo, mas há algo que temos que reconhecer. No Peru, as divisões são geográficas, os Andes versus a Costa Marítima, e também são étnicas, os indígenas versus a população branca, em média, muito mais privilegiada. Não simpatizo com os manifestantes peruanos pela resposta violenta ou pela defesa de Castillo, mas sim pelo protesto contra um sistema que têm repetidamente os frustrado e falhado em melhorar suas vidas. Meia dúzia de países, pelo menos, melhoraram as desigualdades durante o boom das commodities. Isso foi extremamente importante, mas eles não conseguiram sustentar isso desde o fim do boom das commodities. Na verdade, houve uma regressão. É também o caso do Brasil, um país com enormes desigualdades de oportunidades e renda em termos raciais. Há grandes partes do Brasil onde você realmente não tem um estado de direito democrático. E isso inclui lugares como Nova Iguaçu, onde fiz uma parte da pesquisa pro meu doutorado, e que hoje está sob controle de milícias, um fenômeno que se espalhou por quase toda Grande Rio. Há partes bastante significativas da população brasileira que estão efetivamente sob regime autoritário. E você tem um tipo diferente de governo, quase autoritário, em partes da Amazônia, onde os direitos indígenas são violados o tempo todo. O Brasil tem muitos grandes atributos, mas em termos de desigualdade da democracia, lugares como Brasil e Peru se destacam. BBC News Brasil - O senhor diria que as democracias na América Latina frustraram a população da região antes mesmo que pudessem se consolidar? Mainwaring - Seria uma afirmação forte demais dizer que a democracia apenas frustrou a população latina. Houve momentos profundamente importantes de sucesso. Mas mesmo durante esses momentos de sucesso, a desigualdade da democracia no Brasil sempre foi maior do que nos países mais democráticos do mundo. Em 2010, a democracia brasileira era muito mais profunda do que era em 1985 ou 1988. Na década de 1980, no Nordeste, você ainda tinha no poder os tradicionais clãs políticos autoritários. Então houve realmente um processo muito exitoso de aprofundamento democrático e de expansão das oportunidades econômicas, grande redução da pobreza no Brasil e em vários países. Mas sempre foi um êxito um pouco mais precário, sempre houve mais desigualdade de direitos do que em lugares como Suécia, Noruega ou Suíça, ou mesmo Nova Zelândia e Austrália, para citar países mais democráticos. Em termos de economia, o mundo pós 2008 foi difícil para quase todo mundo, mas na América Latina significou mais pessoas voltando à pobreza, à precariedade. Acho que houve momentos em que a democracia fez o que precisava, mas está claro agora que era muito dependente do boom das commodities. BBC News Brasil - A América Latina vive uma década de baixíssimo crescimento e o senhor está relacionando o aprofundamento da democracia ao boom das commodities. É impossível desenvolver a democracia em cenários de recessão econômica ou baixo crescimento? Mainwaring - Acho que a democracia pode florescer sem crescimento econômico. E o Brasil de 1985 até cerca de 2003 foi um exemplo disso, com um aprofundamento democrático muito importante e resultados econômicos não muito bons. Mas em algum momento as democracias precisam produzir (sucesso econômico). Os cidadãos podem e têm tolerado períodos em que as democracias não lhes deram benefícios materiais. Mas, pelo menos nas novas democracias, isso provavelmente se tornará um equilíbrio precário em algum momento. Então, acho que seria errado dizer que é impossível aprofundar a democracia sem crescimento. Um dos momentos de um aprofundamento democrático bastante importante nos EUA foram os anos de Franklin Delano Roosevelt, de 1933 a 1945, na Grande Depressão. Então, sim, pode acontecer, mas é mais difícil. E se você ficar estagnado por muito tempo, estará em apuros. BBC News Brasil - Vimos o Peru, com seis presidentes em cinco anos, a insurreição popular no Brasil ou mesmo o Chile, considerado mais estável, que viveu uma forte onda de protestos e agora tem questões para aprovar uma nova constituição. Ainda assim, o senhor defende que há mais uma estagnação democrática do que um declínio na região. Por que? Mainwaring - Acho que o padrão mais comum é a estagnação. Mas você combina isso com casos de claro declínio. Se tomarmos o nível médio de democracia na América Latina, ele caiu sem dúvida. Mas isso combina muitos casos de estagnação e alguns casos de quedas muito importantes. Há 20 anos, o único regime autoritário claro na região era Cuba. Agora, Venezuela e Nicarágua se tornaram regimes muito repressivos e autoritários, e El Salvador também está seguindo esse caminho. Há ainda outros casos como o Brasil, onde monitores de nível de democracia mostram redução dos indicadores de democracia. Não sabemos quanto essas medidas são precisas, mas o que podemos dizer sem questionar é que o poder de forças autoritárias no Brasil hoje é muito maior do que há dez anos. Acho que quem fala sobre o declínio da democracia na América Latina está absolutamente correto. Eu concordo completamente com isso. Mas isso é desigual entre os países. Há alguns países com grande declínio, e muitos em estagnação. E essencialmente nenhum país da América Latina aprofundou a democracia nos últimos 20 anos. BBC News Brasil - O senhor diz que reformas das polícias e forças de segurança seriam importantes para o avanço da democracia na América Latina. Por que? Mainwaring - Um dos maiores problemas para os cidadãos da região é a segurança pública. E este é um problema que varia muito entre os países e dentro dos países. A segurança pública em alguns países da América Latina é muito boa, mas em muitos países é terrível. As democracias precisam de uma polícia e de um judiciário que possam efetivamente garantir a segurança pública e possam prender pessoas que estão violando a ordem pública, pessoas que estão cometendo homicídios e hoje isso é principalmente causado pelo crime organizado tanto no Brasil quanto no México e na América Central. Estamos falando de grandes negócios que movimentam bilhões e bilhões de dólares, uma ampla gama de atividades criminosas, desde o tráfico de pessoas até o tráfico de armas e drogas. A polícia tem um trabalho muito difícil: combater o crime de forma eficaz e dentro dos limites estabelecidos pelo Estado Democrático de Direito. Essa é uma tarefa muito difícil. E tanto no Brasil quanto no México, em maior medida, o Exército tem sido cada vez mais envolvido na segurança pública. Em uma primeira leitura, a lógica para recorrer aos militares parece sólida: a polícia não fez o trabalho e, em muitos lugares, foi muito corrompida. Freqüentemente, os policiais são coniventes com organizações criminosas, com esses grupos de milícias. Então há lógica em empregar o Exército, mas há também claros problemas. Um dos problemas é que, na melhor das hipóteses, os militares são bem treinados para defesa nacional, mas não são treinados para segurança pública. Essa não é a missão deles, não é o treinamento deles. No México, a militarização da segurança pública produziu resultados muito perversos. Na verdade, levou a um aumento enorme da violência e a um aumento enorme das violações dos direitos humanos. Portanto, essa política foi um fracasso completo. Se você tivesse me pedido para prever em 2006 (quando o então presidente do México Rafael Calderon empregou o Exército na segurança pública) se essa política seria um fracasso total, eu teria dito que não. Desejava-se apenas dois resultados: a derrota do crime organizado e a proteção dos direitos humanos. E a iniciativa mexicana foi um completo fracasso em ambas as dimensões. Eu sei que nem sempre é o caso. Algumas vezes, se você militarizar a batalha contra o crime organizado, você pode ter pelo menos algumas vitórias, mas ao custo consistente de violações dos direitos humanos. E, a maioria das pessoas, a maioria dos cidadãos, acho até compreensível, se você disser a eles 'vamos permitir que os militares se envolvam em violações grosseiras aos direitos humanos, mas isso resultará em segurança pública. Topam?'. A maioria das pessoas pensaria, 'tudo bem, tudo bem'. Os líderes políticos da América Latina sabem disso. É o que estamos vendo com a popularidade de Bukele em El Salvador. Mas o problema é que essa estratégia de militarização no combate ao crime muitas vezes simplesmente não funciona. No caso brasileiro, há ainda um problema adicional, que é trazer os militares de volta ao governo de uma forma muito proeminente. E vimos o risco disso quando Bolsonaro esperou que os militares o salvassem da derrota eleitoral. Sempre achei improvável que os militares interviriam (na democracia brasileira) porque, por um lado, isso teria provocado uma terrível reação internacional. Se (Donald) Trump ainda fosse presidente dos EUA, talvez Bolsonaro pudesse ter convidado uma intervenção militar maior sem uma reação negativa dos EUA. Mas com (Joe) Biden na Casa Branca, você sabe que internacionalmente isso teria sido uma jogada terrível para os militares brasileiros. Não sou especialista em militares brasileiros, mas minha impressão sobre eles é que são muito de direita, mas também muito profissionalizados. E essa profissionalização foi o que me deixou muito cético de que eles iriam intervir em uma eleição quando não há nenhuma evidência (de fraude) e o sistema de votação é muito seguro no Brasil. Minha percepção é que a maior parte dos militares brasileiros de mais alto nível não se deixaria envolver com estranhas teorias da conspiração. Seja a militarização da segurança pública ou trazer os militares de volta ao governo para a democracia, na maioria das vezes não é uma coisa boa para a democracia. BBC News Brasil - O quanto a saída militar/ autoritária ainda é uma opção no imaginário da população da América Latina? Mainwaring - Os dados que temos mostram muita variação entre os países. No extremo positivo do espectro, em lugares como Argentina, Uruguai, Costa Rica não parece haver muito apoio ao autoritarismo na opinião pública. Mas a tendência é preocupante. A pergunta que usei no artigo do Journal of Democracy era muito simples. E mesmo com essa pergunta tão simples, a linha de tendência dos últimos 10, 15 anos é muito ruim. Acho que isso reflete o fato de que a democracia está falhando em muitos lugares. Não devemos ser excessivamente simplistas, mas se a democracia falhar, a menos que haja um forte compromisso com a democracia entre os cidadãos e entre a elite política, as coisas podem sair mal. BBC News Brasil - E o que as lideranças democráticas na região podem fazer pra impedir isso? Mainwaring - É uma resposta simples, mas difícil de fazer: governar de forma eficaz. Isso significa promover o crescimento de forma a criar oportunidades para os cidadãos, melhorando a educação pública, a segurança pública. BBC News Brasil - E punir as pessoas que se envolvam em atos antidemocráticos, como a insurgência recente em Brasília? É uma medida importante para proteger a democracia ou não? Mainwaring - É absolutamente necessário punir as pessoas que tentam derrubar a democracia. Mesmo que fosse apenas uma pilhagem comum de espaços públicos sagrados como o Palácio do Planalto ou o prédio do Supremo Tribunal Federal ou do Congresso Nacional, mesmo que não houvesse motivação política, você teria que puni-los. Mas neste caso, e no caso dos EUA, isso foi parte de um esforço deliberado para derrubar a democracia, então você definitivamente precisa puni-los. Originalmente publicada em - https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64421108
2023-01-28
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64421108
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O 'Schindler da Bolívia' que salvou milhares de judeus do Holocausto
Na primeira metade do século 20, os homens mais poderosos da Bolívia — e talvez da América do Sul — eram empresários do setor de mineração: Simón Patiño, Carlos Aramayo e Moritz Hochschild. Durante anos, seus polêmicos métodos de acúmulo de riqueza fizeram os arquivos históricos classificarem esses três homens, conhecidos como os "barões do estanho", como "inimigos da Bolívia". Entre eles, destacava-se a figura de Hochschild, o único que não tinha cidadania boliviana. De origem alemã e fortes laços com o continente europeu, ele era constantemente chamado de "explorador". Mas a história se mostrou mais complexa. No final de 1999, os arquivos da Corporação Mineradora da Bolívia (Comibol) foram organizados — e os responsáveis pela tarefa encontraram documentos revelando que Hochschild, graças a seus contatos europeus, havia conseguido salvar milhares de judeus do regime nazista. "Ele era o que podemos chamar de homem de negócios da mineração, a quem o que importava eram os lucros e que explorava seus funcionários", diz o historiador boliviano Robert Brockmann à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC. Fim do Matérias recomendadas "Mas os papéis encontrados na Comibol mostraram o outro lado desse homem: uma espécie de Schindler que fez o possível para salvar os judeus do Holocausto nazista." O empresário industrial alemão Oskar Schindler, membro do partido nazista, é reconhecido por ter salvado a vida de mais de 1 mil pessoas, empregando-as nas suas fábricas para protegê-las das perseguições. Hochschild fez o mesmo na Bolívia. E, segundo os documentos encontrados, ele chegou a salvar entre 9 mil e 20 mil pessoas — muito mais que o próprio Schindler. Robert Brockmann escreveu uma biografia sobre o magnata da mineração, destacando seus esforços para resgatar a maior quantidade possível de judeus que viviam sob o regime nazista, pouco antes do início da Segunda Guerra Mundial, em 1939. "Hochschild conseguiu convencer o governo boliviano da época que era uma boa ideia abrir as fronteiras para os judeus, totalmente na contramão do que a maioria dos países da região estava fazendo", conta Brockmann à BBC News Mundo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Moritz Hochschild nasceu em fevereiro de 1881 na cidade de Biblis, no sudoeste da Alemanha. Ele era de uma família de judeus dedicados à mineração. "Estes dois aspectos — a mineração e o fato de que a maioria dos seus familiares e vizinhos era da etnia asquenaze [judeus que se estabeleceram na Europa central e oriental] — definiriam o que ele viria a fazer pelo resto da sua vida", diz o historiador. No início do século 20, Hochschild viajou para o exterior pela primeira vez. Ele começou então a fazer negócios de forma independente, primeiramente na Austrália e, depois, no Chile, onde manteria a sede das suas operações por muitos anos. "É no Chile que ele organiza sua empresa de mineração e, de forma quase implacável, começa a desenvolver os negócios que o levariam à Bolívia, onde revolucionaria a extração de minérios", explica Brockmann. Segundo não só o relato do historiador, como também outros documentos históricos, Hochschild buscou se apropriar de minas que estavam inativas ou abandonadas e torná-las rentáveis com novos métodos de extração. "O que aconteceu foi que aquelas minas que antes eram de prata foram abandonadas quando esse elemento se esgotou", afirma Brockmann. "Mas elas tinham outros metais, como o estanho ou zinco, que Hochschild sabia que poderia explorar." Mas Hochschild não foi o único. Este sistema de mineração na Bolívia também seria adotado por Patiño e Aramayo. Os três logo ficariam conhecidos como os "barões do estanho". "Com o início da Primeira Guerra Mundial, esses homens começaram a vender estanho para as grandes potências", conta Brockmann. "Ganharam muito dinheiro, mas à custa da exploração dos trabalhadores." Tudo estava indo bem para os poderosos barões da mineração nas décadas de 1920 e 1930, até que as mudanças de governo no início dos anos 1940 levaram ao fim do seu império. "Hochschild perdeu todos os seus privilégios. Foi preso em duas ocasiões, e suas minas começaram a ser tomadas pelo Estado", relata o historiador. Com o passar do tempo, especialmente durante a chamada Revolução de 1952 na Bolívia, vieram à tona detalhes dos métodos de exploração dos mineiros e da apropriação de minas em todo o país. E, pela narrativa estabelecida na época, os antigos barões do estanho passaram a ser considerados "vilões da Bolívia". "Esses documentos mencionam que Hochschild esteve a ponto de ser executado, mas acabou sendo libertado", acrescenta Brockmann. Em 1944, depois de recuperar sua liberdade, Hochschild abandonou a Bolívia e nunca mais voltou. Ele foi para o Chile, onde conseguiu retomar sua fortuna, concentrando-se novamente na mineração. E morreu em 1965, em um hotel de Paris. Mas uma das principais ações por trás dos seus negócios durante os anos que passou na Bolívia seria revelada quase 60 anos depois, em meio a arquivos que ninguém havia organizado antes. Em 1999, o governo boliviano encomendou a Edgar Ramírez — que esteve ligado ao campo de mineração por mais de 20 anos — a tarefa de organizar os documentos apreendidos junto aos três barões do estanho na década de 1950. Ramírez se pôs a trabalhar e, enquanto revisava as caixas que haviam pertencido à companhia mineradora de Hochschild, se deparou com diversas surpresas. Entre elas, que o empresário — chamado de "vilão" e que esteve a ponto de ser fuzilado — havia salvado milhares de judeus do Holocausto. "Este aspecto de Hochschild era desconhecido até descobrirmos esses papéis", afirmou Ramírez ao jornal britânico The Guardian, em 2020. "Ele era conhecido na Bolívia como o pior tipo de empresário. O pior!" O arquivo em questão agora é propriedade da Comibol e foi declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco em 2016. Os documentos revelaram detalhes de como esses judeus haviam viajado da Alemanha até os picos andinos da Bolívia. "O que os documentos nos mostram é que, devido às ações de Hochschild, muitos judeus provenientes da Alemanha, França, Polônia e até da Iugoslávia conseguiram obter visto e trabalho para recomeçar a vida", conta à BBC News Mundo Max Raúl Murillo, atual diretor do arquivo da Comibol. "Há comprovantes de trabalho, salários, vistos, cartas não só em espanhol, mas também em alemão e hebraico, que precisamos traduzir para saber como tudo havia acontecido", destaca Murillo. Segundo os documentos, foi graças à relação especial entre Hochschild e o então presidente boliviano Germán Busch Becerra (1937-1939) que ele conseguiu trazer de 9 mil a 20 mil judeus, principalmente de origem asquenaze. Nas biografias escritas sobre Hochschild, existe um aspecto que é mencionado repetidamente. Em 1933, quando o governo nazista declarou a perda da nacionalidade de todos os judeus alemães não residentes no país, o empresário da mineração percebeu que algo grave estava prestes a acontecer. "Era um homem que viajava o tempo todo, e esta situação o coloca em alerta sobre o que acontece no seu país, especialmente com a sua comunidade", destaca Brockmann. "Ele então sente que precisa fazer alguma coisa." Segundo o relato dos historiadores, sua primeira tentativa é viabilizar a entrada em países onde já existem comunidades judaicas bem estabelecidas, como os Estados Unidos e a Argentina, mas alcançou poucos resultados. Hochschild recorre então ao presidente Busch, que não estava muito de acordo com a ideia porque não via como fazer para que os judeus que chegassem à Bolívia não usassem o país simplesmente como trampolim para chegar a outros territórios. "Mas Hochschild o convence dizendo que os judeus poderiam trabalhar no campo e ajudar a desenvolver este setor da economia boliviana", diz Brockmann. Com isso, foram criadas a Sociedade Protetora dos Imigrantes e Israelitas (SOPRO) e a Sociedade Colonizadora da Bolívia (SOCOBO), com o propósito de legalizar a entrada desses imigrantes. "Essas entidades fazem o trâmite da documentação com base nas normas nacionais, como a promulgação dos Decretos Supremos de 1938, a Resolução Suprema de 14 de março de 1938, sobre a entrada de judeus no país, e a Circular de 24 de abril de 1938, que são requisitos exigidos dos imigrantes que desejam povoar terras vazias", explica Murillo. Mas as ações de Hochschild não se limitaram a convencer o governo boliviano. "Os arquivos mostram que ele dirigiu o trabalho de imigração até o final da Segunda Guerra Mundial. Ele criou creches, centros infantis, locais de recreação para crianças órfãs de origem judaica e contratou trabalhadores imigrantes judeus nas suas empresas de mineração." Murillo acrescenta que, "além disso, ele comprou as fazendas Santa Rosa, Chorobamba e Polo Polo nos Yungas [região de floresta no centro da Bolívia], onde desenvolveu atividades agrícolas com os próprios imigrantes, para gerar alimentos, trabalho e estabilidade econômica". Mas o que o presidente Busch não sabia é que a maioria dos judeus a quem o governo boliviano havia oferecido vistos para que pudessem entrar no país — e, assim, fugir da Alemanha — nunca havia trabalhado no campo. "Por diferentes razões históricas e religiosas, os judeus nunca tiveram grande participação na produção agrícola da Europa", diz o acadêmico. "Por esta razão, muito poucos ficaram na Bolívia. Muitos seguiram para a Argentina ou para outros países da região." De qualquer forma, com a ajuda de Busch, Hochschild viabiliza a saída dos judeus da Alemanha e sua chegada à Bolívia. Milhares de imigrantes saíam de diversos portos da Europa, atravessavam o Atlântico e chegavam ao porto de Arica, no norte do Chile. De lá, saía o chamado "Expresso dos Judeus", que cobria o último trecho da viagem — do porto chileno até a capital boliviana, La Paz. Documentos obtidos pelo historiador revelam que a maior parte das pessoas que ficaram na Alemanha e pertenciam à mesma comunidade do empresário da mineração não sobreviveu ao Holocausto. "Independentemente do seu comportamento como empresário, esta ação de Hochschild realmente salvou a vida daquelas pessoas", destaca Brockmann.
2023-01-27
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64225800
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Acordos comerciais, obras e dinheiro: como Lula tentou convencer Uruguai a desistir de acordo com a China
Em sua viagem ao Uruguai em meio a uma crise no Mercosul, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) prometeu acelerar as negociações do acordo do bloco com a União Europeia e disse estar aberto a conversar sobre um acordo entre o bloco e a China. A posição foi dada após reunião com o presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, nesta quarta-feira (25/1). "Eu disse ao presidente Lacalle e tenho dito aos meus ministros é que vamos intensificar as discussões com a União Europeia e vamos firmar esse acordo pra que a gente possa discutir um possível acordo China-Mercosul", disse Lula após a reunião Lacalle Pou. O acordo comercial com a União Europeia foi firmado em 2019, mas ainda não está em vigor porque precisa ser ratificado pelos parlamentos de todos os países envolvidos. Na Europa, países como a França fizeram críticas à política ambiental do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), travando o processo. Lula chegou ao Uruguai após participar da VII reunião da Comunidade dos Estados Latinoamericanos e Caribenhos (Celac). Ele desembarcou em solo uruguaio com a missão de convencer Lacalle Pou a desistir de um acordo de livre comércio com a China que vem sendo negociado há pelo menos dois anos. Para o governo brasileiro, o acordo poderia representar a "destruição" do Mercosul. Fontes do governo brasileiro ouvidas pela BBC News Brasil sob a condição de anonimato apontaram que o país ofereceria algumas contrapartidas ao Uruguai para tentar dissuadir Lacalle Pou de aderir ao acordo com os chineses. Fim do Matérias recomendadas No pacote, estavam três itens principais: a retomada de obras de infraestrutura que interligam ou beneficiam o Brasil e Uruguai como pontes, ferrovias e hidrovias; retorno das contribuições do Brasil para um fundo de fomento a projetos dentro do bloco; e a promessa que do Brasil não deverá mais fazer reduções unilaterais de tarifas de importação de produtos de fora do bloco. Depois de se encontrar com Lacalle Pou, Lula foi recebido pela intendente (equivalente a governadora) de Montevidéu, Carolina Cosse, em uma cerimônia que contou com a presença de centenas de apoiadores de Lula e do partido de centro-esquerda Frente Ampla, que convocou pessoas apoiadores para receber o presidente brasileiro. Após esse encontro, Lula foi à chácara do ex-presidente uruguaio José Mujica, na zona rural de Montevidéu. Os dois conversaram, mas Lula não deu declarações após o encontro. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O Uruguai, assim como o Brasil, Paraguai e Argentina, é um dos quatro membros fundadores do Mercosul, criado em 1991. A Venezuela foi integrada ao grupo em 2012, mas está suspensa desde 2016 por descumprir o protocolo de adesão. A Bolívia é um membro associado. O bloco tem como uma das suas principais regras a adoção de uma tarifa externa comum (TEC), uma espécie de imposto único a ser cobrado nos países do grupo, ainda que haja normas prevendo exceções. Outra regra considerada basilar do Mercosul é a que impediria os países-membros de firmarem acordos comerciais e alfandegários de forma isolada. A ideia é que a unidade do bloco não pode ser mantida se um dos seus membros desse condições comerciais mais vantajosas para um país de fora do grupo. É neste ponto que reside a principal controvérsia do grupo atualmente. Desde pelo menos 2021, o governo uruguaio comandado pelo político da direita tradicional do país, Lacalle Pou, negocia com a China a assinatura de um acordo de livre-comércio. Na prática, produtos chineses poderiam entrar no Uruguai pagando taxas de importação menores que as praticadas dentro do Mercosul, o que poderia prejudicar o funcionamento do bloco. Nos últimos anos, durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o Brasil evitou criticar publicamente a postura uruguaia. Em novembro do ano passado, porém, em uma nota conjunta, Brasil, Paraguai e Argentina anunciaram que tomariam as medidas jurídicas cabíveis caso o acordo avançasse. Com a mudança de gestão neste ano, a diplomacia brasileira começou a enviar novos sinais de que o acordo não seria bem-vindo. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo neste mês, o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, disse que o acordo poderia "destruir" o Mercosul. Apesar da manifestação do ministro brasileiro, Lacalle Pou reforçou, na tarde de quarta-feira (24/1) que a intenção do Uruguai é avançar com as negociações com a China. "A decisão uruguaia é avançar em um Tratado de Livre Comércio. Se for com o Mercosul é melhor, todo mundo sabe da força que Brasil, Uruguai, Paraguai e Argentina podem ter juntos. Se não for assim, o que fizemos até o momento é avançar em um estudo de factibilidade com a China que teve resultados positivos e estamos para começar a negociar bilateralmente", afirmou Lacalle Pou em entrevista coletiva durante a Celac. Horas depois, também em Buenos Aires, o ex-ministro das Relações Exteriores e atual assessor especial do presidente Lula, Celso Amorim, disse prezar pelas relações com o Uruguai, mas afirmou que o Mercosul precisaria ser "preservado". "A nossa posição é a seguinte: prezamos muito a relação com o Uruguai. Achamos que o [país] é exemplo de civilidade em muitos aspectos dentro da América Latina, que em muitas coisas eles estão muito avançados. Mas achamos que o Mercosul precisa ser preservado", disse. As fontes ouvidas pela BBC News Brasil detalharam parte do que foi colocado na mesa durante as conversas com o governo uruguaio. O ponto foi a retomada de obras de infraestrutura entre os dois países e que, segundo essas fontes, estariam paradas. Entre elas estão pontes, rodovias e hidrovias que aumentariam a integração física dos dois países. O segundo foi a regularização das contribuições do Brasil ao Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (Focem). Trata-se de um fundo mantido com recursos dos países-membros destinado a financiar obras e projetos na área do bloco. Pelas regras, os países com as maiores economias são os que mais devem contribuir e os que menos devem receber. A ideia era que o mecanismo ajudasse a reduzir as assimetrias entre os países do bloco. Dos US$ 100 milhões que devem ser fornecidos ao fundo todos os anos, o Brasil tem que contribuir com 70%, Argentina com 27%, Uruguai com 2% e Paraguai com 1%. O problema é que o Brasil tinha, até o final do ano passado, um passivo de pelo menos R$ 518 milhões com o fundo. A proposta brasileira é que os atrasados sejam pagos e as contribuições regulares sejam mantidas. Isso favorece o Uruguai porque apesar de contribuir com apenas 2% do total do fundo, o país pode receber até 32% dos recursos. O terceiro item da pauta brasileira foi o fim das reduções unilaterais de impostos de importação para países fora do bloco. As reduções unilaterais estão previstas nas regras do Mercosul como uma forma de atender demandas específicas de alguns produtos. O problema é que, nos últimos anos, essas reduções foram criando tensões entre os membros do bloco. Após a reunião, Lacalle Pou disse que deverá manter as negociações com a China, mas demonstrou estar aberto à entrada do Brasil e os outros países do bloco nessas conversas. "O peso econômico, o peso demográfico do Brasil é muito importante e seguramente, se há uma decisão do presidente Lula e do governo em avançar com a China, nós tranquilamente poderemos ver se isso realmente condiz com as necessidades dos nossos país", disse.
2023-01-25
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64408746
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O que Brasil quer oferecer ao Uruguai para impedir 'destruição' do Mercosul
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) faz uma visita oficial ao Uruguai nesta quarta-feira (25/1), em um clima que deverá ser diferente daquele que marcou sua passagem pela Argentina, no início da semana. Em Buenos Aires, Lula foi recebido com celebração pelo presidente e aliado político Alberto Fernández. Em Montevidéu, no entanto, a expectativa é de que o ambiente seja um pouco mais tenso. Após participar da VII reunião da Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac), o petista desembarca em solo uruguaio com a missão de convencer o presidente, Luiz Alberto Lacalle Pou, a desistir de um acordo de livre comércio com a China que vem sendo negociado há pelo menos dois anos. Para o governo brasileiro, o acordo poderia representar a "destruição" do Mercosul. Fontes do governo brasileiro ouvidas pela BBC News Brasil sob a condição de anonimato apontaram quais devem ser as contrapartidas que o governo brasileiro vai oferecer ao governo uruguaio para dissuadi-lo de aderir ao acordo com os chineses. No pacote, até agora, estão três itens principais: a retomada de obras de infraestrutura que interligam ou beneficiam o Brasil e Uruguai - como pontes, ferrovias e hidrovias; retorno das contribuições do Brasil para um fundo de fomento a projetos dentro do bloco; e a promessa que o Brasil não deverá mais fazer reduções unilaterais de tarifas de importação de produtos de fora do bloco. O Uruguai, assim como Brasil, Paraguai e Argentina, é um dos quatro membros fundadores do Mercosul, criado em 1991. A Venezuela foi integrada ao grupo em 2012, mas está suspensa desde 2016 por descumprir o protocolo de adesão. A Bolívia é um membro associado. Fim do Matérias recomendadas O bloco tem como uma das suas principais regras a adoção de uma tarifa externa comum (TEC), uma espécie de imposto único a ser cobrado nos países do grupo, ainda que haja normas prevendo exceções. Outra regra considerada basilar do Mercosul é a que impediria os países-membros a firmarem acordos comerciais e alfandegários de forma isolada. A ideia é que a unidade do bloco não pode ser mantida se um dos seus membros desse condições comerciais mais vantajosas para um país de fora do grupo. É neste ponto que reside a principal controvérsia do grupo atualmente. Desde pelo menos 2021, o governo uruguaio comandado pelo político da direita tradicional do país, Lacalle Pou, negocia com a China a assinatura de um acordo de livre-comércio. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na prática, produtos chineses poderiam entrar no Uruguai pagando taxas de importação menores que as praticadas dentro do Mercosul, o que poderia prejudicar o funcionamento do bloco. Nos últimos anos, durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o Brasil evitou criticar publicamente a postura uruguaia. Em novembro do ano passado, porém, em uma nota conjunta, Brasil, Paraguai e Argentina anunciaram que tomariam as medidas jurídicas cabíveis caso o acordo avançasse. Com a mudança de gestão neste ano, a diplomacia brasileira começou a enviar novos sinais de que o acordo não seria bem-vindo. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo neste mês, o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, disse que o acordo poderia "destruir" o Mercosul. Apesar da manifestação do ministro brasileiro, Lacalle Pou reforçou, na tarde de terça-feira (24/1), que a intenção do Uruguai é avançar com as negociações com a China. "A decisão uruguaia é avançar em um Tratado de Livre Comércio. Se for com o Mercosul é melhor, todo mundo sabe da força que Brasil, Uruguai, Paraguai e Argentina podem ter juntos. Se não for assim, o que fizemos até o momento é avançar em um estudo de factibilidade com a China que teve resultados positivos e estamos para começar a negociar bilateralmente", afirmou Lacalle Pou, em entrevista coletiva durante a Celac. Horas depois, também em Buenos Aires, o ex-ministro das Relações Exteriores e atual assessor especial do presidente Lula, Celso Amorim, disse prezar pelas relações com o Uruguai, mas afirmou que o Mercosul precisaria ser "preservado". "A nossa posição é a seguinte: prezamos muito a relação com o Uruguai. Achamos que o [país] é exemplo de civilidade em muitos aspectos dentro da América Latina, que em muitas coisas eles estão muito avançados. Mas achamos que o Mercosul precisa ser preservado", disse. As fontes ouvidas pela BBC News Brasil detalharam os pontos que deverão ser colocados na mesa durante as conversas com o governo uruguaio nesta quarta-feira. O primeiro deles é a retomada de obras de infraestrutura entre os dois países e que, segundo essas fontes, estariam paradas. Entre elas estão pontes, rodovias e hidrovias, que aumentariam a integração física dos dois países. O segundo ponto é a regularização das contribuições do Brasil ao Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (Focem). Trata-se de um fundo mantido com recursos dos países-membros destinado a financiar obras e projetos na área do bloco. Pelas regras, os países com as maiores economias são os que mais devem contribuir e os que menos devem receber. A ideia era que o mecanismo ajudasse a reduzir as assimetrias entre os países do bloco. Dos US$ 100 milhões que devem ser fornecidos ao fundo todos os anos, o Brasil tem que contribuir com 70%, Argentina com 27%, Uruguai com 2% e Paraguai com 1%. O problema é que o Brasil tinha, até o final do ano passado, um passivo de pelo menos R$ 518 milhões com o fundo. A proposta brasileira é que os atrasados sejam pagos e as contribuições regulares sejam mantidas. Isso favorece o Uruguai porque, apesar de contribuir com apenas 2% do total do fundo, o país pode receber até 32% dos recursos. O terceiro item da pauta brasileira é o fim das reduções unilaterais de impostos de importação para países fora do bloco. As reduções unilaterais estão previstas nas regras do Mercosul como uma forma de atender demandas específicas de alguns produtos. O problema é que, nos últimos anos, essas reduções foram criando tensões entre os membros do bloco. Nesta terça-feira, Celso Amorim chegou a mencionar, também, a possibilidade de que o Mercosul possa rever algumas de suas políticas para permitir que o Uruguai seja integrado ao complexo automobilístico da região, composto majoritariamente por Brasil e Argentina. A ideia, segundo Amorim, é que, da mesma forma que os dois maiores países do bloco atuam em conjunto na fabricação de automóveis, o Uruguai também possa fazer parte desse arranjo. A sugestão, porém, ainda não está formalizada. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, evitou um ataque frontal à postura uruguaia durante sua passagem por Buenos Aires, onde também participou da Celac. Ele também deverá participar da viagem de Lula a Montevidéu. "Não tenho conhecimento dos termos em que está sendo negociado o acordo da China com o Uruguai. Mas esse tipo de coisa não é nova. [Esta] é uma visita para fortalecer o Mercosul. Eu acredito que a América do Sul, o destino dela de sucesso, passa pelo bloco econômico. Quanto a isso, eu não tenho nenhuma dúvida", disse. A expectativa no governo brasileiro é de que o acordo entre China e Uruguai não seja concretizado. Entre outros fatores, isso poderia não acontecer para evitar um desgaste do país com os maiores parceiros comerciais da China na região: Brasil e Argentina. Segundo dados do Banco Mundial, o fluxo comercial (importações e exportações) entre Brasil e China em 2020 (último ano disponível na base da instituição) foi de US$ 103,7 bilhões. Enquanto isso, o fluxo entre China e Uruguai foi de apenas US$ 2,7 bilhões. Indagado sobre se o pleito uruguaio de negociar um acordo diretamente com a China era compatível com o Mercosul, Haddad disse que ainda não conhecia a proposta e que iria esperar a reunião com a equipe de Lacalle Pou para se manifestar. "Isso nós veremos amanhã", afirmou. Além de se reunir com Lacalle Pou, Lula também se encontrará com o ex-presidente e amigo pessoal José Mujica. O encontro será na chácara que o ex-presidente tem no interior do país.
2023-01-25
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64397105
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Invasão em Brasília não é problema só do Brasil, diz presidente da Colômbia
O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, disse nesta terça-feira (24/1) que os atos antidemocráticos registrados em Brasília no dia 8 de janeiro não são um problema restrito apenas ao Brasil, mas um fenômeno que acontece em escala global. Ele atribuiu a responsabilidade dos atos registrados no Brasil a grupos de extrema-direita. "O problema é que não é (um problema) só do Brasil. Há um problema internacional que são grupos de extrema-direita, em escala global e americana, que rompeu com o pacto democrático", disse Petro à BBC News Brasil após uma entrevista coletiva durante a VII reunião de chefes de Estado da Comunidade de Estados Latinoamericanos e Caribenhos (Celac), realizada nesta terça-feira (24/1), em Buenos Aires. Petro se referiu à invasão das sedes dos Três Poderes por militantes bolsonaristas que protestavam contra a vitória eleitoral do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) quando vândalos entraram no Palácio do Planalto, no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal (STF) e destruíram móveis, equipamentos e danificaram obras de arte. Petro disse que os grupos que atuaram no Brasil são inspirados em líderes fascistas como Adolf Hitler e Benito Mussolini e que atuam desrespeitando os resultados eleitorais e partindo para a ação direta. "Eles não aceitam vitórias dos seus adversários e não acreditam que devam esperar pelas eleições. Em vez disso, querem derrubar governos, dar golpes de vários tipos e passar à violência e à ação direta como proclamaram seus inspiradores nos dias de Hitler e Mussolini", disse Petro. Fim do Matérias recomendadas O presidente colombiano demonstrou preocupação com a possibilidade de que atos como os que ocorreram no Brasil possam acontecer em outros países. "Podem acontecer em qualquer parte. Esta é uma linha de conduta que tem sido ensinada por ideólogos internacionais. Ideólogos entre aspas porque, na realidade, são criminosos que têm um formato neste estilo para diversos países da América Latina", disse o presidente. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Petro não foi o único presidente a participar da Celac que reprovou os atos ocorridos no Brasil. Durante seu discurso no evento, o presidente Alberto Fernández classificou o episódio como uma "loucura". "Vimos, dias atrás, quando a loucura invadiu as ruas de Brasília, pouco tempo depois da posse do presidente Lula", disse Fernández. Lula está em Buenos Aires desde o domingo (22/1) em sua primeira viagem internacional desde assumiu a Presidência da República em seu terceiro mandato, no início do ano. Além de participar da Celac, Lula teve reuniões bilaterais com os presidentes Alberto Fernández e Miguel Díaz-Canel, de Cuba. Após o encontro do presidente com o líder cubano, o ex-chanceler e atual assessor especial de Lula, Celso Amorim, disse aos jornalistas que a questão dos direitos humanos na ilha não foi abordada ao longo do encontro. "Diretamente, não. Não fizemos nenhuma repreensão, não é papel do Brasil ficar fazendo repreensão", afirmou, perguntado pela reportagem da BBC News Brasil. Na quarta-feira (25/1), Lula embarca para Montevidéu para uma reunião com o presidente do país, Luis Alberto Lacalle Pou, e com o ex-presidente José Mujica.
2023-01-24
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64395132
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'Alugo meu útero': como negócio das barrigas de aluguel cresce na Colômbia
Encontrar uma barriga de aluguel na Colômbia é um processo simples. Trata-se de uma prática relativamente comum no país — com muitas mulheres jovens recorrendo a esse tipo de gestação para sobreviver. "Sou de Bogotá, alugo meu ventre", diz um anúncio em um grupo público do Facebook de uma jovem colombiana — e sua mensagem não é incomum. Mery — uma venezuelana de 22 anos que agora mora na Colômbia — é uma das milhares de mulheres que oferecem seu útero para futuros pais em toda a América do Sul há meses. Como a maioria das mulheres que anunciam nas plataformas, seu motivo é principalmente financeiro. Fim do Matérias recomendadas "Comecei quando me separei do meu marido. Ficamos juntos por quase cinco anos e temos dois filhos. Então, estou fazendo isso para ajudar um casal a conceber, mas mais para me ajudar a pagar as contas." Mery ouviu pela primeira vez sobre a barriga de aluguel em um podcast, mas não pensou muito nisso até que sua situação financeira mudou. Em meio ao aumento do custo de vida e com medo de não conseguir mais pagar as contas, ela passou a cogitar a possibilidade de alugar seu ventre. Algumas mulheres cobram o equivalente a R$ 60 mil e outras, um terço disso, cerca de R$ 20 mil. Mery não sabia quanto deveria cobrar. Ela viu anúncios que variavam entre R$ 40 mil e R$ 200 mil, então finalmente decidiu alugar sua barriga por R$ 50 mil a R$ 60 mil. "Esse dinheiro me ajudaria a criar meus filhos, agora que estou sozinha", conta. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Lucía Franco, uma jornalista colombiana que vem pesquisando a fundo esse mercado, diz ter ficado chocada ao descobrir como é fácil encontrar indivíduos alugando ou buscando uma barriga de aluguel no país. "Não sabia que funcionava tão abertamente. Foi muito chocante encontrar tantos anúncios em redes sociais como o Facebook. São mulheres muito pobres, que alugam seus úteros porque essa é a única maneira para elas de se sustentar. E por valores bem baixos", diz. A barriga de aluguel, termo popular para a "maternidade por substituição" ou "gestação de substituição", é uma prática legalizada na Colômbia, embora não seja regulamentada. No Brasil, ela é permitida, desde que não haja pagamento pela gestação ou oferecimento de qualquer vínculo comercial. Caso envolva dinheiro, a barriga de aluguel é considerada criminosa — o argumento é de que, constitucionalmente, é proibido no país trocar órgãos ou tecidos por dinheiro. A prática pode culminar em penas de três a oito anos de prisão, além de multa. As punições são aplicáveis aos pais ou à mulher que gerou a criança. No ano passado, o Conselho Federal de Medicina (CFM) flexibilizou algumas das regras, não sendo mais obrigatório, por exemplo, que a barriga solidária tenha grau de parentesco com o casal ou com a mulher que pretende ser mãe. Outras normas não foram alteradas: a mulher que cede o útero continua não podendo ser a doadora dos óvulos ou de embriões, entre outras. Em nota enviada à BBC, o Ministério da Saúde e Proteção Social da Colômbia admite haver um vazio legal. "O governo está atualmente trabalhando em um projeto de lei para controlar as barrigas de aluguel uterinas", informou o órgão. A pasta reconhece que as próprias clínicas de fertilidade acabam ditando as regras devido à ausência de um arcabouço regulatório. Não há, por exemplo, registros oficiais do número de barrigas de aluguel ou de quantas vezes o procedimento foi realizado. Franco diz que essa falta de regulamentação põe em risco tanto a mãe quanto o bebê — deixando as mulheres que oferecem barrigas de aluguel vulneráveis a abusos dos direitos humanos. Em declarações ao jornal El País, o ex-deputado Santiago Valencia disse que as barrigas de aluguel são muitas vezes maltratadas e trancadas em apartamentos alugados pelas agências para controlá-las durante toda a gravidez. A BBC entrou em contato com clínicas envolvidas na prática, mas não recebeu resposta de nenhuma delas. Proibida em muitos países europeus, a barriga de aluguel acaba movimentando um mercado de agências e clínicas na Colômbia; os principais clientes são estrangeiros muitas vezes interessados em alugar um ventre com a menor burocracia possível. Existem duas opções de barriga de aluguel na Colômbia. A mulher pode não ter relação genética com o embrião — carrega apenas o óvulo fertilizado — ou pode doar o próprio óvulo e gestar o embrião por meio de inseminação artificial. Quando uma mãe de aluguel dá à luz na Colômbia, seu nome deve constar na certidão de nascimento. No entanto, subornos são comuns. Clínicas e médicos acabam recebendo dinheiro para registrar os nomes dos pais que pagaram pelo procedimento. Dessa forma, o nome da mãe biológica não aparece na certidão de nascimento ou em qualquer registro. Questionado sobre as supostas lacunas burocráticas nos registros das certidões de nascimento, o Ministério da Saúde e da Proteção Social admitiu tratar-se de uma preocupação grande do governo. "Os dados que vão para a certidão de nascimento devem corresponder à pessoa que concluiu a gravidez e deu à luz, em coerência com o regulamento dos cuidados materno perinatal." Mery também está pensando em subornar a equipe médica. Isso torna o processo mais barato, fácil e rápido para o casal que decide alugar o ventre e levar o recém-nascido de volta para o seu país natal, pois não precisa passar pelo processo normal de adoção, aumentando, portanto, suas chances de encontrar clientes. Ela não se importa de onde são os pais, mas quer oferecer seus serviços de barriga de aluguel a um casal e "ajudar alguém que realmente quer e lutou por isso". Encontrar ofertas não é difícil; há muitas opções, com cada grupo do Facebook apresentando uma região ou solicitação específica. "Alugo meu ventre. 22 anos. Sem filhos". "Quero ajudar uma família a realizar seus sonhos, sou saudável, sem vícios". "Clientes do Equador, por favor, enviem-me uma mensagem inbox... de preferência se puderem viajar para os EUA." Estes são alguns dos anúncios com os quais a reportagem da BBC se deparou online. Algumas mulheres postam fotos de seus filhos para mostrar as características que os pais em potencial podem estar procurando: "Minha filha tem olhos azuis claros. Mais fotos disponíveis." Nos últimos anos, houve esforços para regulamentar esse setor. Membros do Congresso de diferentes partidos políticos, como o Centro Democrático, apresentaram um total de 16 projetos de lei ao Congresso para tornar a barriga de aluguel legal apenas quando não houver fins lucrativos — como no Brasil ou nos Estados Unidos. Nenhum dessas propostas avançou. Em setembro de 2022, o Tribunal Constitucional da Colômbia determinou que o Congresso regulamentasse a barriga de aluguel, dando ao Congresso um prazo de seis meses para isso. Até o momento, não houve progresso, embora um projeto de lei esteja em tramitação. O objetivo da lei "é definir os parâmetros que regulam a barriga de aluguel para gravidez, entre outros, o atendimento e o processo clínico, o tipo de acordo entre as partes, as relações filiais e a proteção da barriga de aluguel [...]". Franco argumenta que regular esse setor problemático é o primeiro e principal passo para lidar com seu crescimento acelerado. Em sua visão, a regulamentação também protegerá as mulheres vulneráveis que estão sendo encorajadas a alugar seu ventre. A prática não é restrita à Colômbia. Aqueles que buscam barrigas de aluguel em países onde a prática é ilegal enfrentam inúmeras barreiras, mas mesmo onde ela é legalizada, há desafios como levar o recém-nascido de volta para casa. Na Colômbia, esse processo é mais fácil, pois existem poucos impedimentos legais, e os nomes dos futuros pais costumam constar nas certidões de nascimento. A barriga de aluguel pode ser gratificante para mulheres que buscam ajudar pessoas incapazes de conceber seus próprios filhos. Muitas fazem isso para realização pessoal — e não visando dinheiro. Daniela, do Chile, por exemplo, diz estar alugando seu ventre "para ajudar uma família a realizar o sonho de ser mãe. A maternidade é muito especial e eu quero fazer parte disso". Mas na Colômbia, Mery, assim como milhares de mulheres, a barriga de aluguel se tornou sinônimo de sobrevivência financeira.
2023-01-24
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64348575
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Como visita de Lula a Buenos Aires pode ajudar presidente da Argentina em ano eleitoral
Em um auditório lotado de empresários, políticos e jornalistas brasileiros e argentinos, em Buenos Aires, na segunda-feira (23/1), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) toma o presidente Alberto Fernández pelo braço e dá o comando. "Stuckinha (apelido do fotógrafo presidencial Ricardo Stuckert)! Bate a foto aqui! Nós não estamos em campanha", tentou alertar Lula antes de posar para uma foto de braços dados com Fernández. Lula, de fato, não está em campanha. Assumiu o governo no início do ano após uma das eleições mais disputadas do país, em que venceu o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Fernández, por outro lado, poderá estar em franca corrida presidencial já nos próximos meses. A Argentina terá eleições presidenciais em outubro deste ano e Fernández, em seu primeiro mandato, deverá tentar a reeleição. Mas se Lula ainda vive o que se convencionou chamar de "lua de mel" do início de governo, Fernández vive um momento distinto. De acordo com pesquisa do instituto Management & Fit mencionada pelo jornal Clarín, o maior da Argentina, 68% da população desaprovava a gestão de Fernández em maio do ano passado. Em 2021, a coalizão de oposição conquistou a maioria dos assentos no Parlamento argentino. É em meio a esse cenário adverso para Fernández que especialistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que a visita de Lula pode ser vista como uma tentativa de "turbinar" a popularidade do presidente argentino com vistas às eleições de outubro. Fim do Matérias recomendadas Fernández é um político peronista (principal força política de centro-esquerda na Argentina) que se elegeu em 2019 vencendo o ex-presidente Maurício Macri, principal líder da centro-direita no país. Fernández é um dos principais nomes do peronismo, corrente político-ideológica fundada pelo ex-presidente argentino Juan Domingo Perón. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No início dos anos 2000, ele se aproximou do casal Néstor e Cristina Kirchner e foi chefe de gabinete dos dois quando ocuparam a presidência do país. Em 2008, ele se afastou de Cristina para se reaproximar nas eleições de 2019 e vencer Macri. Atualmente, Fernández e Cristina Kirchner têm uma relação estremecida em meio a disputas internas dentro do peronismo. Fernández foi eleito prometendo reverter medidas liberais adotadas pelo governo Macri, diminuir a taxa de desemprego e controlar a inflação. Quase quatro anos depois, porém, o país ainda vive uma crise econômica, dificuldades em obter divisas para financiar suas exportações e uma taxa de inflação que está entre as maiores da região. Dados do governo argentino mostram que, entre janeiro e novembro de 2022, a inflação oficial no país foi de 92%. Internamente, a vulnerabilidade do Peso Argentino faz com que seja normal, pelas ruas de Buenos Aires, fazer compras em outras moedas como o dólar ou mesmo o real. Para se viabilizar eleitoralmente, Fernández terá que enfrentar a disputa interna com Cristina Kirchner e superar os candidatos da centro-direita e da direita mais radical do país, com nomes que vão da opositora Patricia Bullrich, presidente do Partido Proposta Republicana, ao deputado e economista liberal Javier Miley. "Fernández provavelmente enfrentará grandes dificuldades para se reeleger, pois o contexto é marcado por obstáculos políticos e econômicos. Politicamente, cabe lembrar as fricções e os desentendimentos sobre a condução da política econômica entre ele e a vice-presidente, Cristina Kirchner [...] Do ponto de vista econômico, a Argentina enfrenta sérias dificuldades", explicou a professora de Relações Internacionais e pesquisadora Lívia Milani. Para o professor de Relações Internacionais da PUC de São Paulo, Arthur Murta, a passagem de Lula pela Argentina pode "potencializar" o grupo político de Fernández em um ano eleitoral. "O fato de Lula escolher a Argentina como a primeira viagem internacional do seu mandato sinaliza um prestígio para a opinião pública dos nossos vizinhos e isso pode, em alguma medida, impulsionar a coalizão de Fernández", disse o professor. Diante dessas dificuldades e com as eleições se aproximando, o governo argentino aproveitou a visita de Lula a Buenos Aires para fazer uma série de anúncios na área econômica antes mesmo da chegada da comitiva brasileira ao país. Entre eles estavam a possível liberação de recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para a construção de um trecho do gasoduto que poderá ligar a bacia de Vaca Muerta ao Brasil. O financiamento seria de pelo menos R$ 3 bilhões e marcaria a volta do banco aos empréstimos para obras no exterior. Em outra frente, autoridades argentinas chegaram a anunciar que os dois países estariam trabalhando na criação de uma moeda comum para transações comerciais bilaterais, driblando, assim, a necessidade da Argentina de obter dólares para financiar suas importações. No Brasil, a notícia gerou controvérsia em meio aos rumores de que o projeto poderia unificar o real e o peso argentino, ideia que foi rechaçada pelo ministro da Fazenda brasileiro, Fernando Haddad. Para Arthur Murta, as dificuldades eleitorais de Fernández ajudam a explicar a série de anúncios na área econômica feitos pelo governo argentino nos últimos dias. "Para a Argentina, ter o apoio do BNDES em projetos de desenvolvimento e a criação de um grupo de trabalho econômico-comercial conjunto, é um ganho enorme, principalmente em ano eleitoral e em um cenário de poucas opções para resolução da crise argentina", disse o professor. "Financiamento via BNDES e a criação de uma moeda comum que possibilite as transações comerciais sem o uso de dólar são iniciativas que podem ter efeitos relevantes para a economia argentina, o que é essencial para um governo em ano eleitoral", afirmou a professora Flávia Milani. Do lado brasileiro, apesar da foto e das declarações mútuas de apreço entre Lula a Fernández, o presidente brasileiro fez questão de manter pontes com Cristina Kirchner, que ainda é uma importante liderança do peronismo no país. Durante sua visita, havia a expectativa de que Lula pudesse ter uma reunião com a ex-presidente, o que ainda não ocorreu. Ele também não fez críticas públicas a Macri, antecessor de Fernández. Lula também foi cauteloso ao ser questionado pela imprensa argentina durante uma entrevista coletiva. Indagado sobre sua avaliação do cenário político local, Lula evitou declarar seu apoio a candidatos, mas alertou sobre o suposto risco de uma vitória da extrema-direita. "Eu não gosto de dar palpite sobre a política de outro país [...] A única coisa que eu posso dizer é que quando Alberto Fernandez ganhou as eleições, eu fiquei muito feliz. Não sei se ele será candidato ou não [...] A única coisa que eu espero é que a Argentina não permita que a extrema-direita ganhe as eleições aqui", disse Lula. A fala de Lula ocorreu após ele fazer críticas ao seu antecessor, Jair Bolsonaro, e Fernández comparar Bolsonaro a Mauricio Macri. "Pelo Brasil passou Bolsonaro e pela Argentina passou Macri", disse Fernández. Lula, porém, não criticou Macri em seu primeiro dia de viagem à Argentina. Para o professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Oliver Stuenkel, Lula evitou críticas a Macri, considerado um integrante da direita moderada, e focou na extrema-direita por entender que uma vitória de um representante desse segmento político traria prejuízos à integração da América Latina. "Acho que esse cenário da extrema-direita ganhando na Argentina preocupa (Lula) porque representaria um fechamento para pensar o futuro da cooperação na América Latina", disse o professor. "Mas se vencer alguém como (Horácio Rodriguez) Larreta, acho que isso não interessaria a Lula, mas não ao ponto de ele se indispor com a direita moderada argentina", disse o professor, em referência ao prefeito de Buenos Aires. Stuenkel pondera que essa aproximação de Fernández com um líder considerado popular como Lula normalmente é útil em anos eleitorais, mas tem efeito limitado. "Com a campanha se aproximando, certamente é útil estar perto de pessoas conhecidas internacionalmente para passar uma imagem de estadista. Ao mesmo tempo, o impacto disso não pode ser superestimado. Basta olhar para o caso do Brexit. Barack Obama foi ao Reino Unido falar contra o Brexit e isso teve pouco impacto", disse o professor.
2023-01-24
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De moeda comum a militares: 4 recados de Lula após encontro com Fernández
A primeira declaração pública do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em sua viagem oficial à Argentina, nesta segunda-feira (23/1), enviou pelo menos quatro recados claros tanto sobre o que esperar da política externa do seu terceiro mandato quanto em relação à situação interna. Lula concedeu uma entrevista coletiva de pouco mais de 40 minutos na Casa Rosada, sede do governo argentino, ao lado do presidente do país, Alberto Fernández. Durante a entrevista, Lula mandou recados em direções diferentes: disse ser favorável à criação de uma moeda comum para transações comerciais entre Brasil e Argentina; disse que o Brasil deve voltar a usar o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para financiar obras no exterior; criticou as tentativas de isolar a Venezuela; disse que a comunidade internacional não deve se interferir em Cuba; e que militares brasileiros não devem se envolver na política. Confira o que Lula disse sobre cada um desses tópicos: A polêmica em torno da criação de uma moeda comum vinha dominando o debate às vésperas da chegada de Lula a Buenos Aires, onde vai participar da 7ª Reunião da Comunidade dos países Latino-americanos e Caribenhos (Celac). Fim do Matérias recomendadas A controvérsia começou no início do ano e, desde então, o governo brasileiro vem desmentindo rumores de que o projeto se trataria de criar uma moeda para substituir o real ou o peso argentino nos moldes do euro. Segundo as autoridades brasileiras, a ideia que está sendo estudada por técnicos dos dois países seria criar uma unidade de referência por meio da qual Brasil e Argentina possam fazer trocas comerciais sem recorrer ao dólar americano. A ideia é "driblar" a dificuldade da Argentina, que vive uma crise econômica com inflação alta, em obter dólares para suas importações. Perguntado sobre o assunto, Lula não citou a criação de uma moeda que substitua o real ou peso, mas disse ser favorável à criação de um mecanismo que permita as transações comerciais entre os países da região sem usar o dólar. "O que estamos tentando trabalhar agora é que nossos ministros da Fazenda, cada um com sua equipe econômica possam nos fazer uma proposta de comércio exterior e de transações entre os dois países que seja feito numa moeda comum a ser construída com muito debate e muitas reuniões", afirmou Lula. Lula admitiu que a ideia é que os países que aderirem fiquem menos dependentes do dólar. "Eu vou dizer o que eu penso: se dependesse de mim, a gente teria comércio exterior sempre nas moedas dos outros países para que a gente não precise ficar dependendo do dólar. Por que não tentar criar uma moeda comum entre os países do Mercosul? Por que não criar uma moeda comum nos Brics (grupo de países formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul)? Acho que com o tempo isso vai acontecer", disse Lula. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Lula também se posicionou sobre o seu desejo de que o BNDES volte a financiar obras em países estrangeiros. Durante seus dois primeiros governos, o banco estatal financiou serviços de engenharia em diversos países da América Latina e da África. Alguns desses empréstimos viraram alvo de investigações da Operação Lava Jato por suspeitas de que as empreiteiras que receberam os recursos pagaram propina a agentes políticos no Brasil e no exterior. Nesta segunda-feira, Lula mencionou a possibilidade de que o BNDES possa financiar parte da obra do gasoduto que vai ligar a bacia de gás natural de Vaca Muerta, na Argentina, até a fronteira com o Brasil. "Se há interesses dos empresários, se há interesse do governo, e temos um banco de desenvolvimento pra isso, eu quero dizer que vamos criar as condições para o financiamento que a gente puder fazer para ajudar o gasoduto argentino", afirmou. Em dezembro do ano passado, autoridades argentinas chegaram a afirmar que o BNDES já havia confirmado a liberação de pelo menos R$ 3 bilhões para o segundo trecho da obra, que levaria o gás até o Rio Grande do Sul. Na época, ainda na gestão de Jair Bolsonaro (PL), o banco emitiu uma nota informando que nenhum recurso havia sido liberado. Na semana passada, o BNDES enviou uma nota à BBC News Brasil informando que há "conversas em curso" sobre o assunto, mas não foi feita nenhuma menção ao financiamento de serviços de engenharia, como ocorria no passado. A nota mencionava apenas a exportação de bens para a obra. Lula, porém, disse ser favorável à retomada do financiamento de obras de engenharia como ocorreu durante seus dois primeiros governos. "De vez em quando, no Brasil, somos criticados por pura ignorância. Pessoas que acham que não pode haver financiamento de serviços de engenharia para outros países. Eu acho não só que pode como é necessário que o Brasil ajude a todos os seus parceiros. E é isso que vamos fazer dentro das possibilidades econômicas do nosso país", disse Lula. Lula também fez comentários sobre as situações políticas da Venezuela e de Cuba. Nos últimos dias, na Argentina, parte da imprensa local fez críticas à possibilidade de que o país recebesse os presidentes da Venezuela, Nicolás Maduro, e da ilha, Miguel Diáz-Canel. Os dois países são criticados por organismos internacionais por violações de direitos políticos e humanos. Maduro, no entanto, cancelou sua vinda à Argentina poucas horas antes de uma reunião bilateral que teria com Lula. Uma nota divulgada pelo governo venezuelano justificou o cancelamento da ida de Maduro a Buenos Aires mencionando um suposto "plano" de grupos de direita contra a comitiva venezuelana. Sobre a Venezuela, Lula criticou a decisão de países que reconheceram o líder da oposição venezuelana, Juan Guaidó, como presidente do país, a partir de 2019. Países e blocos como o Brasil e a União Europeia chegaram a reconhecer Guaidó como líder da Venezuela. "Esse cidadão (Guaidó) ficou vários meses exercendo o papel de presidente sem ser presidente. Até as reservas em ouro da Venezuela depositadas num banco inglês foi esse cara que foi dada a garantia desse dinheiro", disse Lula. O presidente brasileiro afirmou que o país pretende restabelecer sua embaixada em Caracas e que a Venezuela deverá retomar suas atividades diplomáticas no Brasil. Lula ignorou as críticas de defensores dos direitos humanos e disse que a crise política na Venezuela, com eleições frequentemente contestadas pela oposição e organismos internacionais, será resolvida com diálogo. "Pra resolver o problema da Venezuela, a gente vai resolver com diálogo e não com bloqueios. Vamos resolver com diálogo e não com ameaça de ocupação. Vamos resolver com diálogo e não com ofensas pessoais", disse Lula. Sobre Cuba, Lula também não mencionou as críticas de defensores de direitos humanos que inclui restrições à liberdade de imprensa e de expressão. Em contrapartida, ele afirmou que o povo cubano não quer o "modelo" brasileiro ou americano. "Espero que Cuba possa voltar a um processo de normalidade, que se acabe o bloqueio a Cuba que já dura mais de 60 anos sem nenhuma necessidade. Porque os cubanos não querem copiar o modelo do Brasil. Eles não querem copiar o modelo americano. Eles querem fazer o modelo deles. E quem é que tem alguma coisa a ver com isso?" Dois dias depois de trocar o comando do Exército, Lula aproveitou a viagem à Argentina para enviar mais um recado aos militares. O presidente demitiu o general Júlio César de Arruda, que havia tomado posse no início do ano, e nomeou o general Tomás Miguel Ribeiro de Paiva. A troca de comando aconteceu duas semanas depois da invasão das sedes dos Três Poderes, no dia 8 de janeiro. Após a invasão, Lula chegou a comentar que havia perdido a confiança nos militares, uma vez que os invasores encontraram facilidade para entrar no Palácio do Planalto, que deveria ser protegido por um batalhão do Exército. Sobre o assunto, Lula atacou Bolsonaro e disse que o ex-presidente havia conquistado o apoio de parte das Forças Armadas e de policiais militares. O presidente afirmou que os militares e outros integrantes de carreiras de Estado não devem se envolver com política. "Eu escolhi um comandante do Exército que não foi possível dar certo. Eu tirei e escolhi outro comandante. Tive uma boa conversa com o novo comandante pensa exatamente como tudo o que eu tenho falado na questão das Forças Armadas. As Forças Armadas não servem a um político. Ela não existe pra servir a um político", disse. "O que vou falar não é só para os militares. Penso que todas as certeiras de estado não podem se meter na política no exercício da sua função. Essa gente tem estabilidade. Essa gente não pertence a nenhum governo. Essa gente pertence ao Estado brasileiro e precisam aprender a conviver democraticamente com qualquer pessoa que vier a ocupar o governo. O Itamaraty não tem que servir o Lula e assim vale para os militares", afirmou o presidente.
2023-01-23
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64381268
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Com retração da indústria, Brasil exporta mais para o Oriente Médio do que para Argentina
No ano 2000, 59% do que o Brasil vendeu para o mundo foram produtos manufaturados pela indústria. Em duas décadas, essa participação caiu a menos da metade - 28% em 2022, conforme os dados compilados pela Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB). Soja, milho, petróleo, minério de ferro e carne responderam por cerca de metade de tudo o que o Brasil embarcou para o mundo no ano passado. A mudança de perfil da pauta de exportações acabou mexendo com a lista dos principais destinos de produtos brasileiros. Hoje, o Brasil vende mais para o Oriente Médio, por exemplo, do que para a vizinha Argentina, destino da primeira visita oficial do terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que desembarcou em Buenos Aires neste 22 de janeiro. A inversão é reflexo do avanço das commodities nas relações comerciais do Brasil com a comunidade internacional. Enquanto a Argentina é o principal destino dos bens manufaturados produzidos pela indústria brasileira, especialmente a automotiva, o Oriente Médio compra principalmente carnes de aves (17%), milho (16%), minério de ferro (14%), soja (11%), açúcares e melaços (10%) e carne bovina (5%). Uma das principais razões para a perda de espaço é a crise longa pela qual passa o país vizinho, avalia José Augusto de Castro, presidente-executivo da AEB. Fim do Matérias recomendadas "A Argentina tem um problema sério de falta de dólares", diz ele, referindo-se ao nível baixo de reservas cambiais, hoje em US$ 42,9 bilhões. Para efeito de comparação, o Brasil, por exemplo, soma US$ 324,7 bilhões em reservas internacionais. Para evitar a saída de dólares, o governo argentino com frequência impõe restrições às importações, o que afeta diretamente seus principais parceiros comerciais. Uma saída para tentar aumentar o fluxo de comércio entre Brasil e Argentina seria transacionar em uma moeda que não fosse o dólar - daí a ideia que circulou após a reunião entre o embaixador argentino, Daniel Scioli, e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, no dia 3 de janeiro em Brasília, e que acabou gerando ruído. Ao sair do encontro, Scioli falou sobre a possibilidade de criação de uma moeda comum para o Mercosul. Dias depois, Haddad se irritou ao ser questionado por um jornalista sobre a possibilidade de adoção de uma moeda única pelo bloco. A ideia, de fato, não seria criar uma moeda única (como o euro), mas uma moeda escritural que pudesse ser usada como mecanismo de compensação no comércio bilateral entre os dois países, diz Welber Barral, especialista em comércio internacional e sócio-fundador da consultoria BMJ. Ele lembra que o Brasil já conta com um Sistema de Pagamentos em Moeda Local, em que Argentina e Uruguai podem pagar em suas respectivas moedas, mas é preciso fazer uma compensação diária em dólares. "Na prática, [com esse sistema] persiste o problema das reservas cambiais." Para ele, a moeda comum poderia ser um mecanismo para contornar o problema, mas "haveria uma questão política a ser tratada com a Argentina sobre os riscos de calote". Castro, por sua vez, acha que a ideia é de difícil implementação. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A visita de Lula será a primeira de um presidente brasileiro ao líder argentino Alberto Fernández. Jair Bolsonaro (PL) viajou ao país em 2019, quando o rival de Fernández, Mauricio Macri, ainda estava na Casa Rosada. Desde que a Frente de Todos - a coalizão de partidos de esquerda peronistas e kirchneristas que ganhou as eleições - assumiu o poder, ele não foi mais à região. O primeiro encontro entre os dois aconteceu em junho de 2022, na Cúpula das Américas em Los Angeles. Na visão de Barral, o distanciamento na relação bilateral nos anos de Bolsonaro não chegou a afetar de forma significativa a relação comercial entre Brasil e Argentina, que ele considera muito estável. O especialista aponta, contudo, que algumas das políticas da gestão passada acabaram contribuindo para esfriar o fluxo de comércio entre os dois países, entre eles a interrupção do programa de financiamento às exportações pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Em sua avaliação, essa era uma política que deveria ser retomada. De forma mais ampla, Barral afirma que o Brasil "ficou muito isolado internacionalmente nos últimos anos" e que tem agora a oportunidade de "retomar o protagonismo internacional, principalmente considerando os vizinhos". "A Argentina vai continuar a ser um vizinho importante e o Brasil tem que melhorar o relacionamento com ela - então essa visita é importante." Os quadros do peronismo argentino têm proximidade com o Partido dos Trabalhadores (PT). Na noite em que Fernández venceu as eleições, em 27 de outubro de 2019, um grupo grande de petistas participou das comemorações em Buenos Aires. Entre militantes, integrantes da direção do partido, parlamentares e ex-parlamentares estavam o ex-senador e agora deputado Lindbergh Farias e o atual presidente do BNDES Aloizio Mercadante. O próprio presidente argentino é próximo de Lula. Ainda em campanha, em 2019, chegou a visitá-lo na prisão em Curitiba. O aumento dos embarques do Brasil para o Oriente Médio, por sua vez, é um retato da primarização da pauta de exportações brasileira. Nos últimos anos, o país tem vendido cada vez mais produtos básicos, muitos com um nível baixo de diferenciação. Tamer Mansour, secretário-geral da Câmara de Comércio Árabe-Brasileira, dá o exemplo concreto do café: o Brasil vende especialmente o grão in natura para os países árabes, quando poderia oferecer, por exemplo, café em pó, mais caro e com maior valor agregado. "Nós temos os achocolatados, sucos, óleo de soja, de milho... no caso desses produtos, infelizmente, a gente só exporta para os árabes as commodities", comenta. Para além da indústria alimentícia, ele diz, o Brasil teria o potencial para vender também produtos farmacêuticos, cosméticos e relacionados à moda à região. "Acho que o Brasil precisa se destacar um pouco mais, precisa entender que essa cúpula do mundo árabe, especialmente da parte do Golfo, tem como absorver produtos de maior valor agregado de origem brasileira." Os US$ 17,2 bilhões que o Brasil embarcou para a região em 2022 são o maior valor da série histórica da Secretaria de Comércio Exterior, que começa em 1997. O primeiro destino foi o Irã. Milho e soja responderam por 80% dos US$ 4.3 bilhões vendidos ao país persa. Entre os árabes, os principais mercados foram os Emirados Árabes Unidos (US$ 3,3 bilhões), que têm se tornado um hub de distribuição de produtos para a Ásia Central, e a Arábia Saudita (US$ 2,9 bilhões). Na avaliação de Mansour, parte do aumento das exportações para os países árabes se deve à valorização dos preços de commodities no ano passado e à Copa do Catar, que contribuiu para elevar a demanda por produtos básicos. A relação da gestão Bolsonaro com os países da região teve um início turbulento com a proposta, em 2019, de transferir a embaixada brasileira em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, cidade disputada por israelenses e palestinos. O governo recuou da ideia e, com o tempo, passou a acenar mais aos países da região, especialmente por meio do Ministério da Agricultura. "Isso nos causou um desconforto inicial. Eu acho que o governo - especialmente, naquela época, a Tereza Cristina (ministra da Agricultura) - conseguiu muito bem contornar a situação, absorver a importância do mundo árabe no agro brasileiro." Sobre o terceiro mandato de Lula, Mansour diz acreditar que a relação com a região deve se estreitar e cita a visita do presidente ao Egito antes de sua posse, em novembro, para participar da Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP 27). "Foi o presidente Lula que desenvolveu a Cúpula Aspa [Cúpula América do Sul - Países Árabes, inaugurada em 2005], então isso mostra como esse governo deve olhar com profundidade para os países árabes", acrescenta.
2023-01-23
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As descobertas sobre origem e história dos povos indígenas da América do Sul reveladas pela genética
Como os primeiros seres humanos chegaram ao continente americano? Como se expandiram por regiões tão diferentes, desde as geleiras canadenses ao litoral brasileiro? E qual era a relação entre os povos que dividiram territórios próximos, mas completamente distintos, como os Andes e a Amazônia? Muitas dessas perguntas começaram a ser respondidas com mais precisão na última década, graças ao avanço da genética e das técnicas que permitem avaliar e comparar a ancestralidade de duas ou mais pessoas. Mais especificamente na América do Sul, essas ferramentas de análise do DNA estão causando uma verdadeira revolução no conhecimento — e permitem entender melhor as origens e as histórias dos povos originários. Esse trabalho é liderado por um grupo de cientistas do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP). Nos últimos anos, a equipe coordenada pela geneticista Tábita Hünemeier publicou pelo menos três trabalhos que modificaram o que se sabia sobre as populações que já habitavam o continente bem antes da chegada dos europeus nos séculos 15 e 16. Fim do Matérias recomendadas "Graças à genética e à capacidade de processamento de dados pelos computadores, conseguimos hoje estudar essas populações de uma maneira muito mais profunda. A partir disso, detectamos mutações e traçamos a história desses indivíduos", resume Hünemeier. "Saber tudo isso é muito importante, porque temos praticamente um apagão da história indígena brasileira. Nas escolas, o estudo da época pré-colombiana não é obrigatório e, mesmo quando existem aulas sobre o tema, elas focam de forma superficial apenas nos incas, nos maias e nos astecas." "O DNA talvez seja a única maneira de reconstruir a história dessas populações", completa. Conheça a seguir as principais descobertas sobre o passado dos povos indígenas do Brasil e da América do Sul até agora — e o que ainda falta descobrir. Nas aulas de História na escola, aprendemos que a chegada dos primeiros indivíduos às Américas se deu pelo Estreito de Bering, um canal de gelo e terra firme que conectou a Sibéria, na Rússia, ao Alasca, nos Estados Unidos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast E esse trajeto continua a ser encarado como a principal — e talvez a única — porta de entrada para o continente. A partir dali, os grupos "desceram" até chegar à Patagônia, ao sul. "Mas nossos trabalhos mostram que o povoamento das Américas é muito mais complexo do que se imaginava", aponta Hünemeier. Um dos conceitos que caiu por terra a partir das pesquisas da USP é a ideia de uma entrada única — ou seja, a teoria de que houve apenas uma incursão de seres humanos pelo novo território, que deu origem a todas as populações ameríndias dali em diante. "Hoje em dia, vemos que foram vários fluxos migratórios. As populações vieram da Ásia e chegaram nessa região conhecida como Beríngia, que se conectava com as Américas. Mas elas permaneceram ali por cerca de 10 mil anos", calcula a pesquisadora. Depois, com a mudança nas condições climáticas locais — como a inundação desses territórios —, essas populações tiveram que sair da Beríngia e foram em direção ao que conhecemos hoje como Alasca e Canadá. Outra vantagem dessa mudança de território pode ter sido a maior quantidade de recursos em terras americanas. Embora a porção norte do continente seja tão fria quanto a Sibéria, ela apresenta uma umidade maior, o que facilita o desenvolvimento da fauna, com mais possibilidade de caça e alimentos. "Também vimos que essas ondas migratórias da Beríngia não aconteceram todas ao mesmo tempo. Elas ocorreram em levas, e grupos foram chegando aos poucos às Américas", explica Hünemeier. Outra descoberta interessante das pesquisas foi a de que algumas populações nativas da América do Sul, como os suruí, os karitiana, os xavante e os guarani-kaiowá, no Brasil, e os chotuna, no Peru, ainda trazem no genoma uma pequena, mas estável semelhança com povos da Austrália e da Oceania. Segundo o trabalho, eles compartilham 3% do genoma. Isso indica, segundo Hünemeier, que esses indivíduos seriam descendentes de uma daquelas primeiras levas que cruzaram a Beríngia há cerca de 15 mil anos. Esse grupo antepassado é conhecido entre os cientistas como população Y (a letra inicial de ypykuéra, ou "ancestral" em tupi). Que fique claro: não há nenhuma evidência de que povos da Oceania cruzaram o Pacífico e chegaram diretamente à América do Sul. O que muito provavelmente aconteceu, segundo os dados mais recentes, foi a migração deles para a Ásia e depois para a Beríngia. Ali, eles se relacionaram com as populações que já habitavam o local — e uma fração do DNA desses indivíduos se preservou até hoje. O biólogo Marcos Araújo Castro e Silva, que faz parte da equipe de Hünemeier, explica que, durante muito tempo, acreditava-se que as dinâmicas populacionais eram muito diferentes na América do Sul. "Por um lado, teríamos grandes populações conectadas nos Andes, que teriam dado origem a impérios, como os incas. Do outro, acreditava-se que os povos da Amazônia eram pequenos e isolados", contextualiza. Em tese, essa teoria poderia ser explicada pelo DNA. Se isso fosse de fato verdade, a tendência era que a diversidade genética dos andinos fosse vasta — já que eles estariam em maior número e com comunidades conectadas —, enquanto os amazônicos teriam uma menor variabilidade genômica — porque seriam poucos e sem muita relação entre os grupos. "Só que não foi isso o que vimos na prática. Com base na diversidade genética que encontramos entre os habitantes da Amazônia, podemos inferir que existiam grandes populações ali, com milhões de indivíduos", pontua Castro e Silva. Esse achado, aliás, vai ao encontro do que é observado em outras áreas do conhecimento. Em trabalhos publicados recentemente pelo arqueólogo Eduardo Góes Neves, também da USP, há estimativas de que a Amazônia teria abrigado entre 8 e 10 milhões de pessoas no passado, antes da chegada dos europeus. Outro mito que cai por terra a partir das últimas pesquisas é a chamada "divisão Andes-Amazônia". Segundo essa noção, existiria uma pretensa separação entre os povos que habitavam essas duas regiões, de modo que eles não se relacionavam. "As análises genéticas revelam que isso não acontecia, e essas populações tiveram trocas e contatos", afirma Hünemeier. "A expansão tupi é uma das maiores migrações da história da humanidade", diz a geneticista. "Em resumo, eles saíram do noroeste da Amazônia e andaram mais de 4 mil quilômetros para vários cantos da América do Sul. E isso tudo aconteceu em cerca de mil anos." De acordo com as pesquisas, essas populações tupi estavam em franco crescimento e foram margeando os rios ou a costa litorânea, em busca de terras férteis para a agricultura. Esse fenômeno começou mais ou menos há 2,1 mil anos e teria atingido o seu pico no ano 1000, quando a população tupi teria de 4 milhões a 5 milhões de indivíduos. "Antes, acreditava-se que essa onda migratória tinha acontecido por uma rota só", diz Hünemeier. Os trabalhos da USP mostram que a expansão se iniciou no noroeste amazônico e, já na origem, se desmembrou em três ramos principais. A primeira parte seguiu até a Ilha de Marajó, no Pará, e desceu pela costa do Atlântico até o litoral sul de São Paulo — no caminho, deu origem aos tupinambá, tupiniquim e tamoios, grupos que se tornaram os senhores da costa litorânea e fizeram os primeiros contatos com os portugueses. "Um segundo grupo foi em direção ao sul, na borda da Bolívia e Paraguai, e deu origem aos Guarani. O terceiro, por sua vez, seguiu para o oeste, na região da fronteira entre Brasil e Peru", completa. A pesquisadora entende que esse é um feito notável, já que falamos de uma sociedade que não tinha acesso a metalurgia ou exércitos organizados. "Os tupis se locomoveram em grupos grandes e, conforme encontravam outros indivíduos, lutavam ou desviavam o caminho", explica. Uma evidência dessa "dominação" vem da Amazônia peruana: lá, é possível encontrar o povo kokama, que há gerações fala tupi. Mas a análise do DNA de integrantes dessa população mostra que eles são muito mais semelhantes geneticamente aos chamicuro, que são seus vizinhos e falam a língua arawak. "Ou seja, eles adotaram a língua tupi, mas, geneticamente, são mais próximos de outro povo", explica Hünemeier. "Essa pode ter sido uma assimilação cultural que ocorreu a partir da expansão tupi, e corrobora algo que já foi sugerido por estudos de outras áreas." A ascensão tupi foi seguida por uma queda vertiginosa. "Tivemos o crescimento dessa população até chegar aos 5 milhões de indivíduos. Porém, um pouco antes da chegada dos portugueses, ela entra em declínio", observa. Ainda não se sabe muito bem os motivos disso — as principais suspeitas são mudanças climáticas ou uma tensão populacional por recursos cada vez mais escassos. "Quando os europeus se instalam, então, acontece um desastre. A partir dali, estimamos uma redução de 98% na população tupi, números semelhantes ao que foi observado entre os povos que habitavam o México e a América Central", calcula Hünemeier. Para fechar a lista de descobertas, o grupo da USP conseguiu restaurar por meio da genética a história e a origem dos tupiniquim. Hünemeier conta que essa população era considerada completamente desaparecida. "Eles não estão no censo do IBGE e eram declarados extintos desde o século 19", diz ela. Mesmo assim, alguns moradores de Aracruz, no Espírito Santo, sempre declararam pertencer à etnia tupiniquim. A análise genética feita pelo grupo da USP mostrou que, de fato, os tupiniquim nunca foram extintos, e os genes deles estão presentes nesses indivíduos até hoje. "Eles nos disseram que sempre lutaram muito para que fossem ouvidos. É claro que nós nunca duvidamos — se eles se consideram tupiniquins, são tupiniquins —, mas agora há um dado que corrobora e dá força ao que sempre defenderam", destaca a geneticista. Com isso, os indígenas tupiniquim de Aracruz se juntam aos tupinambá da Bahia e aos potiguara da Paraíba como os últimos remanescentes dos povos tupi que ocupavam o litoral na época das grandes navegações europeias. Ela conta que, depois de concluir o estudo, a equipe de cientistas foi mostrar os resultados aos participantes. "Daí, nós contamos que eles tinham vindo do norte, e não a partir dos guarani do sul, que chegaram a ser uma população de 100 mil pessoas e, hoje, são cerca de 3 mil", afirma. "E foi interessante ver os caciques dizendo que já sabiam daquilo tudo. Porque eles têm muito forte as questões da ancestralidade e da transmissão do conhecimento de geração em geração", complementa. Mas como é possível descobrir tanta coisa sobre o passado? Castro e Silva explica que nosso DNA é formado por 3 bilhões de letrinhas (ou pares de bases nitrogenadas, no jargão científico). Elas formam o genoma e definem basicamente todas as nossas características físicas e condições de saúde. "Dessas 3 bilhões, 99,9% são idênticas em todos os seres humanos. Mas há 0,1% que varia de pessoa para pessoa", calcula o cientista. Esse 0,1% pode até parecer pouco, mas, em um universo de 3 bilhões de bases nitrogenadas, representa um espaço para 3 milhões de "letrinhas" diferentes. "Ao comparar isso, conseguimos inferir qual a relação entre dois indivíduos, de acordo com as mutações compartilhadas ou não entre eles", diz o geneticista. Ao coletar amostras de DNA no sangue e na saliva das populações indígenas, os cientistas usam equipamentos para fazer o sequenciamento genético. Depois, todas essas informações são comparadas e classificadas por computadores muito potentes. E, embora o esforço de pesquisa já tenha encontrado algumas peças deste enorme quebra-cabeça, o trabalho está apenas começando. "Queremos montar uma espécie de fotografia de como era o Brasil em 1499, antes da chegada dos portugueses. A partir daí, poderemos voltar ou avançar no tempo para entender as dinâmicas populacionais e migratórias", avalia Hünemeier. "Os indígenas são a população menos estudada do ponto de vista genético, então, precisamos fazer praticamente tudo desde o início", pondera. E, considerando as características da América do Sul, a genética talvez seja a mais poderosa ferramenta para reconstituir esse passado remoto. "Na maioria das vezes, não encontramos registros por escrito, e o próprio clima dessa região dificulta a preservação de esqueletos de seres humanos ou animais", complementa Castro e Silva. "É claro que não andamos sozinhos e precisamos da antropologia, da arqueologia e da história, entre outras disciplinas", acrescenta Hünemeier. "Mas não há dúvidas de que estamos diante de um trabalho imenso, para o qual ainda temos mais perguntas do que respostas", conclui.
2023-01-21
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Argentina, Uruguai, China e EUA: a estratégia de Lula ao escolher destinos para visitas no início do mandato
Antes mesmo de tomar posse, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já havia anunciado sua intenção de escolher a Argentina como seu primeiro destino oficial no exterior. Lula deve desembarcar em Buenos Aires na segunda-feira (23/1) para participar da reunião de cúpula da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) na terça-feira (24/1). O Brasil voltou a integrar o bloco regional, composto por outros 32 países, após dois anos fora do grupo. Ele também tem encontro marcado com o presidente argentino, Alberto Fernández. Em seguida, Lula parte para Montevidéu, onde também já estão programadas reuniões bilaterais com o presidente do Uruguai, Luis Alberto Lacalle Pou, e outras autoridades locais. O ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, já anunciou que o petista deve visitar também, nos três primeiros meses de governo, Estados Unidos e China — os dois principais parceiros comerciais do Brasil atualmente. Fim do Matérias recomendadas Para a professora de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC Paulista (UFABC), Tatiana Berringer, as escolhas de destinos iniciais de um novo presidente costumam ser indicativas de sua estratégia de política externa. "Quando Lula anuncia seus primeiros destinos, ele já expõe ao mundo o que planeja para seu governo", diz. "E é importante lembrar que o Lula já tem uma viagem para Portugal sendo preparada para abril, ou seja, a Europa também está na lista de prioridades, assim como a negociação do acordo entre União Europeia e Mercosul." A BBC News Brasil conversou com especialistas em Relações Internacionais para tentar entender quais as estratégias por trás das escolhas de primeiros destinos do novo governo. É tradição que o país vizinho seja escolhido por novos presidentes para as primeiras viagens oficiais. Mas, segundo analistas, a decisão de Lula de estrear sua agenda internacional com a ida à Argentina simboliza antes de tudo uma clara mudança de rumo nas relações entre as duas nações — e entre Brasil e América do Sul de forma geral. "A escolha aponta para uma percepção do caráter estratégico das boas relações com os vizinhos e para a intenção de resgatar os laços — com a Argentina em especial, tendo em vista o relacionamento conflituoso entre o ex-presidente Jair Bolsonaro e [o presidente argentino] Alberto Fernández", diz Tatiana Berringer. A intenção de aprofundar os laços com os vizinhos já foi manifestada em diversos momentos por Lula e membros de sua equipe, e a própria decisão de reintegrar a Celac e usar a reunião de cúpula do grupo para uma viagem oficial à Argentina aponta nessa direção. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Há ainda um componente ideológico forte que aproxima os governos de Lula e Fernández. O argentino foi o primeiro chefe de Estado a visitar o petista após o anúncio do resultado das eleições, e a visita a Buenos Aires pode ser entendida também como uma retribuição da cortesia. Segundo a professora da UFABC, existe a intenção de mostrar antagonismo em relação ao governo anterior, quando os laços foram prejudicados. Para Feliciano Sá Guimarães, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP) e diretor acadêmico do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), o Brasil tem muito a ganhar economicamente com a reaproximação, já que a Argentina está entre os três principais destinos das exportações nacionais. "A sintonia entre Fernández e Lula pode dar mais força para negociar a fase final do acordo entre União Europeia e Mercosul", diz. "O fortalecimento dos laços também poderia impulsionar a reindustrialização mais uma vez, e, ao que parece, essa é uma das prioridades do governo Lula no momento de negociar os termos do acordo." Para os especialistas, os setores de exportações de manufaturados e outros produtos de grande valor agregado dependem especialmente de um Mercosul mais ativo para gerar crescimento econômico, empregos e desenvolvimento socioeconômico em geral. "Se não houver uma relação funcional entre os presidentes brasileiro e argentino, nenhuma grande iniciativa regional ou coordenação ampla pode avançar", afirma Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Especula-se ainda que Lula possa usar sua passagem por Buenos Aires e participação na reunião da Celac para reuniões bilaterais com outros líderes sul-americanos. Segundo fontes do governo, o presidente deve se reunir com os líderes de Cuba, Miguel Díaz-Canel, e da Venezuela, Nicolás Maduro. Assim como na viagem à Argentina, os especialistas consultados pela BBC News Brasil veem a visita ao Uruguai como parte de uma estratégia de reaproximação regional. "Há sempre uma demanda por garantir a permanência do Uruguai — assim como a do Paraguai — no Mercosul, porque são países mais voltados para a exportação agrícola e podem ser mais 'assediados' pelas grandes potências", diz Tatiana Berringer. Segundo a especialista, manter a coesão do bloco é especialmente importante em um momento em que ambas as nações possuem governos mais conservadores, que não estão no mesmo espectro político do governo brasileiro atual. "Uma visita ao Uruguai pode ser fundamental para manter essa coesão", diz a professora da UFABC. Já a escolha de China e Estados Unidos como prioridades simboliza a intenção do novo governo de manter relações produtivas e pragmáticas com ambas as potências, que atualmente travam uma disputa por influência política, econômica e militar em algumas regiões do globo. "Estamos cada vez mais atuando em um mundo bipolar, causado pela piora da relação entre Pequim e Washington. Então demonstrar logo no início que o Brasil manterá relações produtivas com os dois polos de poder me parece uma estratégia muito sensata", avalia Stuenkel, da FGV. "Isso me parece uma estratégia para engajar os dois simultaneamente: sempre que um país apertar ou pressionar o Brasil por algo, corremos para o outro para tentar uma posição melhor", afirma Sá Guimarães. "É uma política pendular." Para o diretor acadêmico do Cebri, esse estilo político pode abrir as portas para um intercâmbio interessante entre o Brasil de Lula e os Estados Unidos de Joe Biden. Segundo Sá Guimarães, temas que podem beneficiar os dois lados são meio ambiente e defesa da democracia — pautas que ambos os presidentes têm demonstrado interesse em desenvolver. "As relações do governo Bolsonaro com os Estados Unidos não eram das melhores desde que Joe Biden assumiu a Presidência. E é curioso notar que as últimas autoridades americanas que visitaram o Brasil antes do novo governo deram muita ênfase à necessidade de preservar a democracia e não questionar o resultado das eleições." Já quando se trata da China, existem setores poderosos absolutamente interessados na manutenção de boas relações com o país, como é o caso do agronegócio e da mineração. Para Tulio Cariello, diretor de conteúdo e pesquisa do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), o afastamento entre Brasília e Pequim durante o governo de Jair Bolsonaro "foi uma ação 'teatral' de uma minoria do governo passado", que não deve impactar em nada os laços daqui para frente. "Minha percepção sobre a relação com a China é que agora teremos maior interesse da parte brasileira em explorar novas formas de cooperação, inclusive em organismos multilaterais em que os dois países estão presentes, além de maior boa vontade em relação a projetos de tecnologia e infraestrutura", diz Cariello, que aposta também em uma ampliação do diálogo na área de meio ambiente. "Até mesmo parte da indústria (aquela que compra insumos importados) busca intensificar as relações com a China." Apesar do calendário inicial de viagens cheio, Lula decidiu não comparecer ao Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça. O presidente preferiu enviar os ministros do Meio Ambiente, Marina Silva (Rede), e da Fazenda, Fernando Haddad (PT), para representá-lo. Segundo interlocutores de seu governo, a ida à COP-27, a conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) que discute as mudanças climáticas, antes da posse, em novembro, já teria servido como uma boa interlocução com outras autoridades e uma vitrine para seus planos futuros. Mas, para Sá Guimarães, a decisão pode ter sido equivocada. "Só participar da COP-27 e falar sobre o meio ambiente, que é a pedra angular da política externa dele, não é suficiente. Ele precisa entrar mais no palco internacional", diz. Segundo o professor da USP, a reunião poderia servir como um pontapé inicial para as discussões levantadas pelo G20, grupo do qual o Brasil será o próximo presidente pelo período de um ano, a partir de novembro de 2023. "Presidir o G20 significa sediar centenas de encontros preparatórios para a reunião de cúpula que acontece em setembro de 2024. É uma grande oportunidade de política externa, mas também para as áreas de economia, finanças e meio ambiente."
2023-01-21
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Lula na Argentina: após Lava Jato, como BNDES pode voltar à cena em obra no país vizinho
Na semana que vem, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) dará início à sua primeira viagem internacional após a posse. Os destinos serão a Argentina e o Uruguai. A viagem é tratada pela diplomacia brasileira como um marco de um pretenso "retorno" do Brasil ao palco internacional. Mas, além de uma demonstração de prestígio internacional, Lula e sua equipe tratarão de temas considerados estratégicos. E entre eles está a integração energética entre o Brasil e a Argentina. E é aí que um antigo conhecido da política externa petista poderá voltar a entrar em cena: o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O governo argentino busca recursos para concluir a construção do gasoduto que poderá ligar o campo de Vaca Muerta, um dos maiores do mundo, até a divisa com o Rio Grande do Sul. Fim do Matérias recomendadas Em dezembro, já após a vitória de Lula nas eleições, autoridades argentinas chegaram a anunciar que o BNDES financiaria até US$ 689 milhões (o equivalente a R$ 3,5 bilhões em cotação atual) para o projeto. Na ocasião, o banco, à época ainda no governo de Jair Bolsonaro (PL), emitiu uma nota negando a operação. Com a mudança de governo, no entanto, a expectativa em torno da possível participação do banco no projeto é diferente. Isso acontece, em parte, pelo histórico recente dos governos do PT na utilização do banco para financiar obras em países na América Latina e na África. Essa prática foi alvo de investigações da Operação Lava Jato e foi largamente criticada pela oposição e por Bolsonaro. Fontes do governo e do BNDES ouvidas pela BBC News Brasil sob condição de anonimato afirmam, no entanto, que a ideia é de que o banco possa atuar no projeto, mas não como fazia no passado, financiando serviços de engenharia realizados por empreiteiras brasileiras. Agora, segundo essas fontes, o banco se limitaria a financiar a compra de equipamentos e peças fabricadas no Brasil a serem usadas na obra. A obra que poderá marcar o retorno do BNDES a projetos internacionais em um novo governo petista é uma das mais ambiciosas da Argentina. Trata-se de um gasoduto para transportar gás natural produzido no campo de Vaca Muerta, localizado na Província de Neuquén, a oeste da região da Patagônia, até os principais mercados consumidores. Estimativas apontam que esta seja a segunda maior jazida de gás de xisto do mundo e a quarta de petróleo não-convencional. O petróleo não-convencional é aquele que demanda mais energia para a sua extração. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Usualmente, para que seja extraído da terra são usadas técnicas como o fraturamento hidráulico - o "fracking" -, que é a injeção de uma mistura de água e areia que quebra as rochas nas quais o óleo está preso, facilitando sua retirada. A técnica é alvo de críticas de ambientalistas e povos originários por supostamente comprometer reservas de água e causar instabilidades geológicas onde é aplicada. O principal trecho da obra é o que leva o gás até Buenos Aires, mas um segundo trecho está previsto para chegar até a Província de Santa Fé, perto da fronteira com o Brasil. Para o Brasil, o plano é trazer gás ao país, diminuindo, assim, a dependência em relação a outras fontes do produto como a Bolívia. Em 2021, o gás natural era a segunda maior fonte de oferta de energia no Brasil, respondendo por 12,8%, atrás apenas das fontes hidráulicas, que correspondiam a 56,8%. Em junho de 2022, o ex-presidente Bolsonaro afirmou, em um evento da Confederação Nacional da Indústria (CNI), que havia negociações avançadas para que o gás argentino chegasse ao Brasil. Agora, a expectativa é que os presidentes Lula e Alberto Fernández assinem um memorando de entendimento sobre o tema energético entre os dois países. Os termos ainda não foram publicados. Indagado sobre a possibilidade de o Brasil firmar um acordo prevendo a participação brasileira na obra do gasoduto de Vaca Muerta, o secretário de Américas do Ministério das Relações Exteriores (MRE), Michel Arslanian Neto, não esclareceu se ela será tema de conversas entre os dois presidentes, mas afirmou que as equipes brasileira e argentina debaterão a integração energética entre os dois países. "O que há é um propósito muito claro das equipes dos dois países, com impulso no mais alto nível, para avançar em temas como integração energética. Claramente, a integração gasífera tem um grande potencial pra ser um dos eixos estratégicos da nossa relação", disse. Em notas enviadas à reportagem, o BNDES confirmou que há "conversas em curso" sobre o financiamento de exportações de bens produzidos no Brasil por empresas brasileiras para a obra do gasoduto, mas que não houve uma consulta formal sobre o financiamento. Segundo o banco, as potenciais empresas exportadoras ainda não estão habilitadas a operar com o BNDES. Ainda de acordo com o banco, uma das empresas interessadas em exportar para a obra e que procurou o BNDES não estaria apta para realizar operações com a instituição porque tem um restrições de contratação impostas pelo Tribunal de Contas da União (TCU). O BNDES não informou os nomes das empresas interessadas. A possível entrada do BNDES em um novo empreendimento internacional é considerada um ponto sensível para especialistas ouvidos pela BBC News Brasil. Isso acontece, em parte, porque durante a Operação Lava Jato os financiamentos feitos pelo banco a países estrangeiros foram alvo de investigações. Por outro lado, parte das críticas vão na direção de que o Brasil não deveria emprestar dinheiro para projetos fora do país. As suspeitas sobre obras no exterior financiadas pelo BNDES surgiram após o início das investigações da Lava Jato. Os principais alvos da operação foram algumas das maiores empreiteiras do Brasil como Odebrecht, Camargo Correa, OAS, Andrade Gutierrez e Queiroz Galvão. A maior parte delas mantinha contratos para realizar obras no exterior com financiamento via BNDES. No caso da Odebrecht, por exemplo, executivos admitiram ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos que pagaram US$ 439 milhões em propina para obter obras em países como Angola, Argentina, Venezuela, Moçambique, entre outros. Em 2016, o BNDES suspendeu a liberação de recursos previstos para obras de empreiteiras investigadas na Lava Jato. Em janeiro de 2017, o banco retomou os repasses, liberando recursos para a Queiroz Galvão, que construía um corredor logístico em Honduras. Também em 2017, a Procuradoria-Geral da República (PGR) denunciou membros do PT como o presidente Lula e a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) por crimes como organização criminosa relacionada ao uso da Petrobras e do BNDES para arrecadação de propina. Em dezembro de 2019, porém, a Justiça Federal do Distrito Federal absolveu Lula e Dilma e outros integrantes do PT que haviam sido denunciados. Outra crítica feita aos financiamentos está relacionada aos "calotes" dados por alguns dos países que receberam financiamento. De acordo com os dados mais recentes do BNDES, entre 1998 e 2022 foram liberados US$ 10,4 bilhões em financiamentos para serviços de engenharia no exterior. Entre prestações em atraso e aquelas que já foram indenizadas pelo seguro, o calote chega a US$ 1,03 bilhão, o equivalente a quase 10% do total. O país com a maior dívida atrasada é a Venezuela, que deve pouco mais de US$ 682 milhões. Para a professora de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Miriam Saraiva, os empréstimos a outros países são uma prática comum em diversas partes do mundo e são utilizados para ampliar mercados para empresas nacionais. Ela pontua que, apesar de fazer sentido emprestar dinheiro para outros países, o momento político do Brasil recomendaria mais cautela. "Emprestar recursos não é um problema em si, mas considerando o cálculo político, o momento pelo qual o governo está passando, eu faria isso mais tarde. O governo ainda está sendo formado e precisa enfrentar uma série de desafios deixados pela antiga gestão. Eu esperaria mais um pouco", disse a professora. Ela avalia que os riscos de a Argentina dar um calote no Brasil são baixos, apesar de o país viver uma crise econômica marcada por altas taxas de inflação. Os dados do BNDES que a Argentina é um dos países para os quais o banco deu financiamento e que não têm parcelas atrasadas. Para o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Dawisson Belém Lopes, não haveria consenso sobre se os empréstimos para empreendimentos fora do país são pertinentes. "Não é algo que seja pacífico. Já vi gente afirmando com boa técnica que os empréstimos do BNDES para outros países eram racionais e já vi gente dizendo que não. Não acho que seja um terreno pacífico", afirmou. Lopes pontuou que apesar dos eventuais riscos, um possível empréstimo do BNDES para o empreendimento na Argentina seria uma "aposta" na retomada das relações com um dos principais parceiros econômicos do Brasil. "Existe um risco político, e não econômico, dada a instabilidade argentina. Mas acho que é uma aposta na relação bilateral com a Argentina, uma vez que ela ficou paralisada nesse tempo todo (durante a gestão de Bolsonaro). É uma forma de mostrar simpatia", afirmou Lopes.
2023-01-20
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Como ex-estudante de medicina brasileiro acusado de estupro de irmãs e prima foi preso na Argentina
Atenção: esse texto contém relatos que podem ser perturbadores para alguns leitores Quando foi abordado por policiais federais argentinos, numa rua do balneário de Mar del Plata, um ex-estudante de medicina de 24 anos usou seu nome falso. Com esse nome falso, ele tinha morado num hostel e conseguido trabalho, primeiro, em um restaurante do badalado bairro de Palermo, em Buenos Aires, e depois, ainda em fuga da polícia do Brasil e da Interpol, como garçom em Mar del Plata. Nos seus dias na capital argentina, ele desfrutou dos parques da cidade e da conhecida Plaza Serrano, fez registros da sua nova vida nas redes sociais, deixando pistas para os investigadores, apesar do nome inventado. O ex-estudante de medicina já tinha sido procurado no Brasil, em Portugal e na Espanha, até que surgiram os "indícios cibernéticos" de que ele estaria em terras portenhas. "Fizemos diligência em ambiente cibernético (rede social), cruzamos informações e aí pegamos indícios de que ele poderia estar em Buenos Aires", contou o superintendente de Operações Integradas da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Piauí, Matheus Lima Zanatta. A investigação iniciada no Piauí incluiu a Interpol no Brasil e, na sequência, a Polícia Federal e a Interpol na Argentina. Na busca pelos rastros do ex-estudante, os policiais argentinos tinham encontrado, há dois meses, em Palermo, um brasileiro com as características que tinham sido enviadas do Brasil. Mas o nome do rapaz localizado era diferente - o nome falso que ele usava. Quando soube que tinha sido descoberto e que seu nome tinha aparecido na imprensa no Brasil, o ex-estudante fugiu para Mar del Plata. "Depois de Palermo, tivemos que recomeçar a investigação praticamente do zero", disse Zanatta. As investigações, incluindo o acompanhamento nas redes sociais, foram, então, intensificadas. Na tarde de terça-feira (17/01), ao ser abordado numa via pública, perto de um shopping de Mar del Plata, o ex-estudante de medicina insistiu em usar o nome falso. Mas até que "caiu em contradição", como contaram os policiais. Ele admitiu ter sido estudante de medicina em Manaus, no Brasil, e confessou seu nome verdadeiro, e disse que era ex-morador de Teresina, no Piauí. Cabeludo, mais magro e com a barba crescida, o ex-estudante foi preso e levado para a delegacia da Polícia Federal da cidade. Ele deverá continuar preso até ser extraditado para o Brasil e levado pelos policiais federais brasileiros para a capital piauiense. Ele não resistiu ao admitir ser quem de fato era e ao ser preso, segundo o delegado da Polícia Federal do balneário, Damián Stagliano. O delegado da Interpol Argentina, Diego Verdum, da divisão de fugitivos e extradições, disse que foram vários dias seguindo os passos do ex-estudante - e numa época em que Mar del Plata costuma estar lotada de turistas em busca de sol e de mar. Num comunicado da Interpol, afirma-se que ele foi preso a pedido das autoridades judiciais brasileiras por "abuso de menores". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A história que o envolve poderia até ter caído no esquecimento se "não fosse a decisão das mães das vítimas" de levar o caso adiante, como comentaram autoridades policiais do Piauí. Além da pressão quase diária pela solução do caso junto às autoridades de Segurança do Piauí, elas recorreram à imprensa do Estado e a veículos nacionais que informaram que o ex-estudante estava foragido. O ex-estudante foi acusado de estupro de vulneráveis (crianças) contra duas irmãs suas - por parte de seu pai - e contra uma prima delas. As três ainda eram pequenas quando os episódios teriam começado e foram revelados quando a mais velha das três, que é a prima, tentou o suicídio, segundo disse em entrevista telefônica o advogado assistente de acusação Rodrigo Araújo, falando de Teresina. "Ela, então, contou para a mãe que a primeira vez foi numa viagem da família ao Chile e que ela deveria ter cinco anos. Ela disse à mãe que sofreu os abusos durante mais de cinco anos. A mãe ligou [para o ex-estudante] em Manaus e ele respondeu no WhatsApp que era verdade e que se desculpava. Nós temos todas essas conversas", disse Araújo. Pouco depois, veio à tona que as irmãs dele - uma delas quase bebê - também foram abusadas. E, novamente, disse o advogado, [o ex-estudante] contou que tinha pedido desculpas e "que faria tudo para consertar o que fez". As crianças passaram por exames psicológicos que confirmaram os abusos. Os abusos incluíram uma criança de três anos de idade, disse o advogado. Os atos eram praticados nos encontros familiares, quando o ex-estudante ainda morava com o pai e a mulher dele (mãe das duas irmãs dele), ou em eventos da família. Ele foi condenado a 33 anos de prisão pelo abuso de uma das suas irmãs, que tinha nove anos quando a denúncia foi feita, e da prima, que tinha doze anos na época. "Ele foi condenado, mas em primeira instância. E está recorrendo e nós vamos recorrer também. Essa história ainda não terminou, até porque queremos levar adiante o caso da criança (irmã menor dele) que sofreu os abusos quando tinha três anos", disse. Em julho de 2021, as mães denunciaram o então estudante de medicina, que morava, na época em Manaus, na Delegacia de Proteção à Criança e à Adolescente (DPCA) do Piauí. Três meses depois, em outubro, a Justiça do Piauí determinou a prisão preventiva dele, após a ausência em várias audiências, segundo o superintendente de operações integradas da Secretaria de Segurança Pública do Piauí, Zanatta. Estima-se que, então, há pouco mais de um ano, ele tenha fugido logo depois e por terra, longe de controles limítrofes. "Nós, da nossa equipe, com Anchiêta Nery e Yan Rêgo Brayner (diretores das áreas de Inteligência da Secretaria de Segurança Pública do Piauí), rastreamos como ele poderia ter saído do Brasil. Como o nome dele não apareceu nos controles da Polícia Federal de saída do país, começamos a desconfiar que ele poderia ter saído pela fronteira seca, passando pelo Paraguai para chegar a Argentina", disse. Os passos seguintes foram "os indícios" que ele deixou nas redes sociais. Assim que saiu a informação, nesta quinta-feira, sobre a prisão do ex-estudante, os portais de notícias da Argentina, a partir dos detalhes dos comunicados da Polícia Federal e da Interpol, passaram a chamá-lo de "depredador" e "monstro" em seus títulos. Procurado pela reportagem, o advogado de defesa Samuel Castelo Branco disse que não poderia fazer comentários sobre a prisão do ex-estudante porque ainda não tinha entrado em contato com ele. "Qualquer declaração será após o encontro", disse.
2023-01-20
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64343867
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'Tomada de Lima': quem está por trás e o que pedem nos protestos com dezenas de mortos no Peru
A onda de protestos no Peru chegou à capital na quinta-feira (19/01). Até agora, a cidade de Lima não havia presenciado incidentes tão intensos e violentos como os ocorridos nas últimas semanas em outras partes do país, onde já há 52 mortos e mais de mil feridos. Mas a convocação para a "tomada de Lima", lançada por várias organizações e grupos que exigem a renúncia da presidente Dina Boluarte e eleições gerais para renovar o Executivo e o Congresso, gerou violentos protestos. Manifestantes entraram em confronto com as tropas de choque da polícia nas principais avenidas da capital. Os policiais dispararam gás lacrimogêneo e formaram cordões de isolamento para impedir o avanço dos manifestantes. A imprensa local informou que várias pessoas ficaram feridas, incluindo manifestantes e policiais. Fim do Matérias recomendadas O primeiro-ministro, Alberto Otálora, anunciou que o governo estendeu o estado de emergência para todo o país, incluindo Lima, o que restringe alguns direitos civis. Alguns manifestantes conseguiram chegar às ruas próximas ao palácio do governo e à sede do Congresso, dois pontos fortemente vigiados pelas forças de segurança. Dezenas de unidades do Corpo de Bombeiros foram acionadas para combater um grande incêndio em um prédio de três andares no centro de Lima, cuja origem é desconhecida. Não foram registrados mortos ou feridos, embora as imagens do incêndio sejam impactantes. A convocação para o protesto reuniu milhares de pessoas de diferentes partes do país na praça San Martín, na praça Dos de Mayo e no campus da Universidad Nacional Mayor de San Marcos, onde recebem abrigo, alimentação e outros tipos de assistência. O clima na cidade foi de tensão durante toda a manhã. As aulas nas universidades foram suspensas, e o governo recomendou às empresas que facilitassem o trabalho remoto ao longo do dia. O Ministério da Saúde colocou todos os postos de saúde do país em alerta vermelho, na expectativa de que os protestos na capital se repitam em outros lugares. O aparato policial na capital foi bastante extenso, com 11.800 agentes acionados para controlar possíveis distúrbios, "além de 120 caminhonetes e 49 viaturas militares, e também a participação das forças armadas", afirmou o chefe da Região Policial de Lima, general Víctor Zanabria. Nas cidades de Arequipa, Juliaca e Cusco, centenas de manifestantes tentaram entrar à força nos aeroportos. No caso de Arequipa, o terminal aéreo informou que havia suspendido suas operações por precaução. Os manifestantes, que atiraram pedras e derrubaram parte da cerca do aeroporto, entraram em confronto com a polícia, que usou gás lacrimogêneo para dispersá-los. O jornal La República noticiou a morte de um manifestante na cidade, citando como fonte autoridades de saúde. Em Cusco, o Aeroporto Internacional Alejandro Velasco Astete também suspendeu temporariamente suas operações. Na rede rodoviária, o trânsito está interrompido em 127 pontos em 18 das 25 regiões do país devido aos protestos, segundo informou o Ministério dos Transportes e Comunicações. A crise começou com a prisão e destituição de Pedro Castillo em 7 de dezembro do ano passado. O então presidente foi detido e, na sequência, destituído do cargo pelo Congresso após anunciar na televisão a dissolução do mesmo e o estabelecimento de um governo de emergência no Peru. Em conformidade com a Constituição, sua então vice-presidente, Dina Boluarte, assumiu o cargo — e logo surgiram manifestações de protesto. Vários departamentos (estados) do país, principalmente no sul, foram afetados por bloqueios de estradas e houve ataques a prédios públicos e tentativas de tomada de aeroportos. A violência se espalhou para o sul, especialmente no departamento de Puno, onde 19 pessoas morreram na cidade de Juliaca em 10 de janeiro. As denúncias de que a polícia teria usado munição letal indiscriminadamente contra os manifestantes aumentaram a indignação e fizeram com que muitos decidissem transferir os protestos para a capital, apesar de as autoridades alegarem ter agido em legítima defesa e de forma proporcional. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na verdade, o slogan "tomada de Lima" foi usado em outras ocasiões para promover mobilizações na capital peruana que acabaram não tendo muito impacto. Desta vez, foi levantado por diferentes grupos do sul do país que decidiram marchar até a capital para exigir a renúncia de Boluarte. O que inicialmente surgiu como uma iniciativa de comunidades indígenas e organizações comunitárias e estudantis do sul do país, contou posteriormente com a adesão de estudantes da Universidad Nacional Mayor de San Marcos e membros da Confederação Geral de Trabalhadores do Peru, um dos principais sindicatos do país, que convocou uma greve nacional na quinta-feira (19/01) para coincidir com a "tomada de Lima". Na quarta-feira (18/01), na sede do sindicato em Lima, onde já estavam reunidos inúmeros manifestantes, se juntaram dirigentes de organizações locais que haviam chegado dos departamentos de Huánuco, Ancash, Lambayeque, Tacna, La Libertad, Moquegua, Apurímac, el Vraem, Arequipa, Loreto, Cajamarca e Junín. Eles prometeram que não deixariam Lima até que tivessem alcançado seus objetivos: a renúncia da presidente, a dissolução do Congresso e a convocação de eleições. "O povo e as comunidades camponesas se mobilizam. Como é possível que tenhamos que vir a Lima para que entendam nossa reivindicação? Este governo está deslegitimado desde o primeiro dia", afirmou Leonela Labra, representante de Cusco. Caravanas com destino a Lima partiram de diferentes partes do país nos últimos dias, recebendo apoio em alguns pontos ao longo do caminho. Em uma mobilização tão heterogênea, há vários pedidos e reivindicações, mas o objetivo compartilhado por todos os que protestam é a renúncia da presidente, a dissolução do Congresso e a convocação imediata de eleições. Alguns também clamam por uma nova Constituição para o Peru e pela libertação do ex-presidente Castillo. Eles acusam o governo pelas mortes nos protestos e afirmam que a ação policial violou os direitos humanos. A presidente Boluarte tem reiterado que não pretende renunciar. "Meu compromisso é com o Peru, não com esse pequeno grupo que está fazendo a pátria sangrar", ela disse. Boluarte convidou os descontentes a se manifestarem em Lima, mas pediu que façam isso de forma pacífica. Também ofereceu a possibilidade de diálogo, mas excluiu explicitamente abordar questões como a dissolução do Congresso ou a reforma constitucional por estarem além dos poderes presidenciais. O governo prometeu que todas as mortes serão investigadas, e o Ministério Público abriu um processo preliminar contra a presidente e primeiro-ministro, Alberto Otárola. Pouco depois de suceder Castillo, Boluarte afirmou que seu plano era concluir o mandato de seu antecessor e permanecer no cargo até 2026. Mas após a primeira onda de protestos, ela propôs antecipar as eleições — e um acordo preliminar foi votado no Congresso para que sejam realizadas em abril de 2024.
2023-01-20
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64343731
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Protestos no Peru: o que reivindica a marcha 'tomada de Lima' contra o governo
Uma onda de protestos no Peru deve chegar à capital, Lima, nesta quinta-feira (19/01). Até agora, a cidade de Lima não teve incidentes tão intensos e violentos como os que ocorreram em outras partes do país, onde já há 52 mortos e mais de mil feridos. Mas isso pode mudar nesta quinta-feira com o apelo à "tomada de Lima", lançado por diversas organizações e grupos que exigem a renúncia da presidente Dina Boluarte e a convocação imediata de eleições para renovar o Executivo e o Congresso. Manifestantes de diferentes partes do país já estão se reunindo em diferentes partes de Lima, principalmente na praça San Martín, na praça Dos de Mayo e no campus da Universidad Nacional Mayor de San Marcos, onde recebem abrigo, alimentação e outras assistências. O clima na cidade é tenso e já na véspera houve confrontos entre a polícia e manifestantes no centro. Fim do Matérias recomendadas Aulas de muitas universidades foram suspensas e o governo recomendou às empresas que facilitem o trabalho remoto ao longo do dia. Além disso, o Ministério da Saúde colocou todos os postos de saúde do país em alerta vermelho, antecipando que os protestos na capital possam ser replicados em outras localidades. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A crise começou com a cassação e a prisão de Pedro Castillo em 7 de dezembro. O então presidente foi preso e posteriormente destituído pelo Congresso após anunciar na televisão sua dissolução e a instauração de um governo de emergência no Peru. Em conformidade com a Constituição, assumiu então sua vice-presidente, Dina Boluarte, e logo surgiram manifestações de protesto. Vários Departamentos (Estados) do país, principalmente no sul, foram afetados por bloqueios de estradas e houve ataques a prédios públicos e tentativas de tomada de aeroportos. A violência se espalhou para o sul, especialmente no Departamento de Puno, onde 19 pessoas foram mortas na cidade de Juliaca em 10 de janeiro. As denúncias de que a polícia teria usado munição letal indiscriminadamente contra os manifestantes aumentaram a indignação e fizeram com que muitos decidissem transferir o protesto para a capital, apesar de as autoridades alegarem ter agido em legítima defesa e de forma proporcional. Na verdade, o slogan da "tomada de Lima" foi usado em outras ocasiões para promover mobilizações na capital peruana que depois não tiveram muito impacto. Desta vez, foi levantada pelos diferentes grupos do sul do país que decidiram marchar até a capital para exigir a renúncia de Boluarte. O que inicialmente surgiu como uma iniciativa de comunidades indígenas, grupos de bairro e estudantis do sul do país, posteriormente se juntou a estudantes da Universidad Nacional Mayor de San Marcos e da Confederação Geral de Trabalhadores do Peru, um dos principais sindicatos do país, que convocou uma greve nacional nesta quinta-feira para coincidir com a "tomada de Lima". Nesta quarta-feira, na sede do sindicato em Lima, onde já se reuniram numerosos manifestantes, eles se apresentaram aos principais meios de comunicação de organizações locais que vieram dos departamentos de Huánuco, Ancash, Lambayeque, Tacna, La Libertad, Moquegua, Apurímac, o Vraem, Arequipa, Loreto, Cajamarca e Junín. Eles prometeram que não deixarão Lima até que tenham alcançado seus objetivos de conseguir a renúncia da presidente, dissolver o Congresso e convocar eleições. "O povo e as comunidades camponesas se mobilizam. Como é possível que tenhamos que vir a Lima para que entendam nossa agenda? Este governo está deslegitimado desde o primeiro dia", disse Leonela Labra, representante de Cusco. Caravanas de veículos com destino a Lima partiram de diferentes partes do país nos últimos dias, recebendo apoio em alguns pontos do caminho. Em uma mobilização tão heterogênea há vários pedidos e reivindicações, mas os objetivos comuns são a demissão da presidente, a dissolução do Congresso e a convocação imediata de eleições. Alguns também clamam por uma nova Constituição para o Peru e pela libertação do ex-presidente Castillo. Eles acusam o governo das mortes nos protestos e afirmam que a ação policial violou os direitos humanos. A presidente Boluarte reiterou que não pretende renunciar. "Meu compromisso é com o Peru, não com esse pequeno grupo que está fazendo o país sangrar", afirmou. Boluarte convidou os descontentes a se manifestarem em Lima, mas pediu que o façam de forma pacífica. Também ofereceu diálogo, mas excluiu explicitamente a abordagem de aspectos como a dissolução do Congresso ou a reforma constitucional por estarem fora dos poderes presidenciais. O governo prometeu que todas as mortes serão investigadas e o Ministério Público abriu um processo preliminar contra a presidente e seu primeiro-ministro, Alberto Otárola. Pouco depois de suceder a Castillo, Boluarte afirmou que seu plano era encerrar o mandato de seu antecessor e permanecer no cargo até 2026. Mas após a primeira onda de protestos, ela propôs antecipar as eleições e um acordo preliminar foi votado no Congresso para que elas sejam realizadas em abril de 2024.
2023-01-19
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64337958
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O argentino que salvou milhares de vidas na 2ª Guerra graças ao talento de falsificador
A tinta Waterman azul. O grande problema era a tinta Waterman azul. Não havia forma de apagá-la. Os papéis escritos com tinta da marca Waterman da cor azul não podiam ser alterados. Era impossível falsificá-los. A resistência francesa já havia tentado de tudo, mas a tinta Waterman azul usada pela prefeitura condenava os judeus aos campos de extermínio. Até que um jovem aprendiz de tintureiro, que havia acabado de completar 18 anos, exclamou: "Eu sei apagar. Tudo pode ser apagado." E, de fato, o ácido láctico apagava a tinta. E, com ela, um nome. O nome apagava uma origem que era considerada um pecado mortal na França ocupada pelos nazistas: ser judeu. Fim do Matérias recomendadas O jovem foi então convidado a trabalhar com a resistência. Quem era ele? Era o mês de março de 1944 e a vida de Adolfo Kaminsky sofreu uma reviravolta. Seus conhecimentos de química valeram a ele um lugar na "Sexta" - uma pequena célula clandestina da resistência francesa. Em um sótão do bairro parisiense de Saint-Germain-des-Prés, ele falsificou passaportes, certidões de nascimento, carnês de racionamento, salvo-condutos e qualquer outro documento que caísse em suas mãos e pudesse evitar a morte dos seus proprietários. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os pedidos chegavam de toda parte - eram até 500 por semana. Eles apagavam sem descanso as letras em vermelho, "JUIF" ou "JUIVE" ("judeu" ou "judia"), alteravam nomes judeus como Isaac por Jean Pierre, Meyer por Dubois ou Hanna por Marie-Hélène. Antes de completar 19 anos, com o nome falso de Julien Keller, aquele jovem havia conseguido salvar a vida de milhares de pessoas, graças ao seu talento como falsificador. A sua própria vida chegou a ser salva pelo seu passaporte argentino. Adolfo Kaminsky nasceu em 1925 na capital argentina, Buenos Aires, em uma família judia de origem russa. Sua história parece ter saído de um filme de espionagem em preto e branco, com esconderijos, códigos secretos, duplas identidades e portas esmurradas no meio da noite. Kaminsky morreu em Paris no último dia 9 de janeiro, aos 97 anos. Certa vez, a "Sexta" recebeu a missão de falsificar os documentos de 300 crianças judias internadas em centros do Estado, que seriam deportadas. Seria necessário criar 900 documentos novos, incluindo certidões de nascimento, de batismo e carnês de racionamento. Mas havia um problema: tudo precisaria ser feito em três dias. Kaminsky trabalhou dia e noite, sem descanso, até cair no chão, desmaiado de exaustão. Sua grande obsessão era terminar o trabalho. "Manter-se acordado. O maior tempo possível. Lutar contra o sono. O cálculo era simples. Em uma hora, consigo fabricar 30 documentos. Se dormir uma hora, 30 pessoas irão morrer", recorda ele, em sua biografia Adolfo Kaminsky, Une Vie de Faussaire ("Adolfo Kaminsky, uma vida de falsificador", em tradução livre), escrita por sua filha Sarah. O laboratório era pequeno, mas tinha tudo o que era necessário. Usando a técnica da fotogravura, Kaminsky havia conseguido fabricar carimbos e suas almofadas, timbres e marcas d'água. Com uma roda de bicicleta, ele criou uma centrifugadora para envelhecer os documentos. Todos os cinco que trabalhavam na Rue des Saints-Pères n° 17 eram estudantes de ciências ou de belas artes, exceto Kaminsky. Eles se faziam passar por artistas. Para os vizinhos, os odores das substâncias químicas eram solventes de tintas e o carteiro sempre os elogiava pelas suas obras - os quadros que eles expunham bem à vista de todos, para ocultar o verdadeiro trabalho que era feito no sótão. A equipe trabalhava de forma voluntária, sem receber pagamento e arriscando sua vida caso fosse descoberta. Eles conseguiram preparar os documentos das 300 crianças a tempo, mas o peso da responsabilidade e o esforço extenuante do trabalho cobraram sua conta. Kaminsky perdeu a visão de um dos olhos devido ao trabalho intenso daqueles anos. Seus companheiros, que tinham nomes como "Lontra", "Lótus" e "Pinguim", acabaram suicidando-se nos anos após a guerra, segundo relatado por ele próprio em um curto documentário produzido pelo jornal americano The New York Times em 2016, chamado The Forger ("O falsificador", em tradução livre). Depois da guerra e sempre na clandestinidade, Kaminsky continuou falsificando documentos para diferentes movimentos até os anos 1970. Ele deixou sua marca em conflitos como a guerra da Argélia, a luta contra o apartheid na África do Sul, contra os ditadores Franco, na Espanha, e Salazar, em Portugal, e para diversos grupos revolucionários da América Latina. Segundo cálculos dele próprio, só em 1967, Kaminsky enviou documentos falsos para 15 países diferentes. Ele chegou a falsificar documentos para desertores americanos que não queriam participar da Guerra do Vietnã. Kaminsky pôs fim a essa vida clandestina em 1971 e trabalhou como fotógrafo e professor pelo resto dos seus dias. Mas sua intensa vida de falsificador não custou apenas a visão de um dos olhos. Sua família não podia saber de nada sobre esse submundo secreto e ilegal e acabou pagando o preço. Seu primeiro casamento, que lhe deu dois filhos que Kaminsky não pôde ver por longos períodos de tempo, terminou em divórcio em 1950. Sua filha Sarah nasceu de um segundo relacionamento. Ela começou a entrever sinais daquele passado quase uma década depois de Kaminsky abandonar a falsificação. Certo dia, Sarah falsificou a assinatura da mãe no boletim escolar. Seu pai, em vez de brigar com ela, soltou uma gargalhada. "Sarah, você poderia ter tido um pouco mais de cuidado", disse ele. "Veja como a letra está pequena demais!" A história da família Kaminsky foi sempre marcada pelas fronteiras. Talvez por isso ele tenha sonhado com um mundo sem divisões, onde as pessoas pudessem movimentar-se livremente. Sua mãe chegou à França no início do século 20, fugindo das perseguições aos judeus na Rússia. Lá, ela conheceu seu pai, outro judeu russo que trabalhava para uma publicação marxista. Quando os bolcheviques chegaram ao poder, a França, com receio dos simpatizantes do novo regime, expulsou-os do país, o que fez a família emigrar para a Argentina. Ali, Adolfo nasceu e viveu seus cinco primeiros anos de vida, até que os Kaminsky pudessem voltar para a França e reunir-se com o restante da família. Eles levaram para a Europa algo que seria vital para eles mais à frente: passaportes argentinos. Os Kaminsky se instalaram na cidade francesa de Vire, na Normandia, onde Adolfo precisou trabalhar desde muito cedo para ajudar nas finanças da família. Quando tinha 13 anos de idade, Kaminsky conseguiu um emprego na fábrica da cidade. "E, um dia, eles chegaram." Em junho de 1940, os nazistas invadiram a França e todos os judeus da fábrica - ele e seu irmão Pablo - foram demitidos. Kaminsky encontrou então um emprego como aprendiz de tintureiro, em um lugar que tingia de cores "civis" os uniformes remanescentes da Primeira Guerra Mundial. Ali, ele aprendeu a eliminar manchas e ficou fascinado por aquela alquimia. Seu chefe era engenheiro químico e ensinou a ele todos os segredos sobre como alterar ou apagar cores e manchas. Kaminsky montou então um laboratório caseiro, inicialmente na cozinha de casa. Mas, depois de várias explosões e do consequente desagrado da sua mãe, ele mudou o laboratório para uma cabana no lado externo. Foi assim que ele conseguiu fazer experiências sobre tudo o que aprendia no trabalho. Para ajudar os vizinhos, Kaminsky passou a produzir sabão e velas, além de descontaminar sal. Os alemães havia misturado óxido de ferro no sal para evitar que os camponeses franceses preservassem e escondessem carne de porco sem precisar enviar todos os seus animais para a Alemanha, como haviam sido obrigados a fazer. Sua paixão o levou a trabalhar como químico em uma fábrica de produtos lácteos nos fins de semana. Lá, ele aprendeu um truque aparentemente banal que mudaria sua vida. Kaminsky descobriu que para saber o teor de gordura do leite trazido pelos criadores bastava introduzir um pouco de azul de metileno em uma amostra e esperar que o ácido láctico o dissolvesse. O azul de metileno era a substância usada na fabricação da tinta Waterman. A vida dos judeus era cada vez mais difícil na França. Depois que os oficiais alemães quiseram transformar a casa do seu tio em um bordel, ele fugiu para se esconder em Paris. Sua mãe, ao retornar de uma viagem para a capital francesa para ver seu irmão ("vou e volto", disse ela ao sair), morreu em circunstâncias suspeitas. As autoridades disseram que ela caiu do trem em movimento quando confundiu a porta traseira com a do banheiro. Mas Kaminsky passou a vida certo de que ela foi assassinada. Consumido pela dor e pela raiva, o então adolescente encontrou uma forma de sentir-se menos impotente. "Eu não queria chorar meus mortos sem fazer nada", diz ele na sua biografia. Ele entrou em contato com a resistência pela primeira vez, através do farmacêutico da cidade. Kaminsky então aprendeu a fabricar pequenos detonadores e produtos corrosivos para sabotar as linhas de trem alemãs. "Eu tinha pelo menos o sentimento de que os estava vingando. Estava orgulhoso. Era um resistente", contava ele. Apenas judeus ficaram em Vire, até que, no verão de 1943, a família foi detida e transferida para o campo de concentração de Drancy, nas redondezas de Paris. Calcula-se que, durante a ocupação alemã, mais de 67 mil judeus tenham sido enviados para campos de extermínio a partir de Drancy. Em um momento de lucidez, seu irmão maior escreveu cartas dirigidas ao consulado argentino em Paris. Ele as entregou para trabalhadores das ferrovias e chegou até a lançar algumas pelas janelas do trem que os transportou para o campo, com a esperança de que alguma delas chegasse ao seu destino. "Só podíamos esperar que uma boa alma pagasse o selo e as enviasse", relembra Kaminsky. A Argentina havia se declarado neutra no conflito e, até aquela data, a França ocupada havia respeitado essa neutralidade. "Éramos milhares. Quarenta em cada quarto. Homens e mulheres separados à noite. Um formigueiro. Ninguém ficava em Drancy. Ali eles faziam a seleção, antes de enviar os comboios para diferentes campos da Europa", recorda Kaminsky. Ele relatou que, na noite anterior às partidas, era possível ouvir "o eco do choro dos que acabavam de ser raspados e ficavam nas escadas à espera do nascer do sol, já que não havia mais camas nos quartos". Mas houve um milagre para a família Kaminsky. Uma das cartas chegou às mãos do cônsul da Argentina. "Devíamos nossa sobrevivência à covardia diplomática de um governo que, para se manter próximo da poderosa América do Norte sem romper os acordos econômicos que o vinculavam à Alemanha nazista, havia optado pode declarar-se neutro", relata Kaminsky em sua biografia. Adolfo Kaminsky teve claro ao longo de toda a vida que "a neutralidade não existe. Não fazer nada, não dizer nada, já é ser cúmplice". Dez dias depois da liberação, a família foi enviada de volta para Drancy devido à ruptura dos acordos entre a Argentina e a Alemanha. Mas, por erro de comunicação entre a polícia francesa e a administração do campo de concentração, os Kaminskys acabaram sendo libertados. De volta a Paris, seu pai, que ainda mantinha amizade com os russos da revista marxista onde trabalhou, concluiu com muita clareza que eles precisavam de documentos falsos. Adolfo Kaminsky foi encarregado de fornecer aos falsificadores as fotografias e os dados necessários. Para isso, ele precisava encontrar-se com o contato chamado "Pinguim". E, quando soube que Kaminsky havia sido aprendiz de tintureiro, o jovem contato contou os problemas que eles estavam enfrentando com a tinta Waterman azul. Ao que Kaminsky respondeu: "Eu sei apagá-la".
2023-01-18
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64315972
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Dez anos depois: desaparecimento de brasileiro no Peru segue como mistério
Há uma década, a família de Artur Paschoali convive com a saudade e a incerteza sobre o que aconteceu com ele. O jovem, que morava em Brasília e sonhava em viajar pelo mundo, desapareceu no Peru em dezembro de 2012, enquanto fazia um mochilão no país. O caso nunca foi esclarecido. Mãe de Artur, a arquiteta Susana Paschoali, de 62 anos, afirma que até hoje espera algum tipo de resposta sobre o caso. "Nunca perdi essa esperança (de descobrir o que aconteceu com Artur). É uma possibilidade muito pequena, mas gostaria que isso ocorresse", diz à BBC News Brasil. Ao longo desses 10 anos, os familiares receberam diversas informações desencontradas sobre Artur. Fim do Matérias recomendadas Os pais do jovem fizeram investigações por conta própria e gastaram mais de R$ 200 mil com as buscas - pequena parte disso por meio de campanha de doações -, mas nada foi suficiente para esclarecer o caso. Susana acredita que o filho morreu. "Desde o primeiro instante achei que tinham matado o Artur." "Não considero que sou melhor nem pior que ninguém, então se ocorreu dessa forma é porque era para ser", diz a arquiteta. "Se fosse pra ser diferente, teria sido e já teríamos uma resposta, porque muitas pessoas desaparecem e são achadas, ou seus corpos são encontrados logo em seguida." Já o pai de Artur, o representante comercial Wanderlan Vieira, de 52 anos, — ele e Susana são separados —, acredita que ainda pode encontrar o filho vivo. "É complicado porque fica tudo no campo do achismo. Mas o que eu acho é que, passado todo esse tempo, o Artur tenha sido vítima de um cartel na região do Peru e possa estar vivo", afirma. Artur tinha 19 anos quando viajou com um grupo de brasileiros para o Peru no fim de setembro de 2012. A viagem era uma oportunidade para ele, que era apaixonado por artes, conhecer mais sobre a cultura local. A princípio, o jovem passaria apenas algumas semanas na região de Cuzco, mas se encantou pelo lugar e estendeu o período. Na época, ele comunicou aos pais que queria ficar por mais cerca de seis meses no local e depois planejava seguir para a Bolívia, antes de retornar ao Brasil. Durante a viagem, ele se comunicava com os pais somente por meio de mensagens no Facebook. Segundo Susana, o jovem se recusava a receber ajuda financeira da família. Em razão disso, trabalhou como recepcionista em hostels e em um bar para que pudesse ter moradia e alimentação. No início de dezembro de 2012, ele se mudou de Cuzco para Águas Calientes, também nas proximidades de Machu Picchu, a cidade perdida dos Incas. Foi nesse período que começou o drama da família. Dias depois da chegada dele a Águas Calientes, o jovem mandou uma mensagem que causou preocupação. Segundo Susana, ele disse que bebeu demais e teve problemas com o patrão. Preocupada, a mãe pediu que Artur a mantivesse informada. Cerca de uma semana depois, segundo Susana, ele enviou uma mensagem dizendo que estava no distrito peruano de Santa Teresa. Foi o último contato dele. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Depois do Natal de 2012, os familiares acenderam um alerta porque Artur não mandou mensagem. Os familiares conseguiram o contato de um hostel em Santa Tereza e descobriram que um turista brasileiro havia desaparecido, mas não receberam confirmação se era Artur. Desesperados, Susana e Wanderlan procuraram por autoridades brasileiras ou peruanas que pudessem ajudá-los. Mas, segundo eles, não conseguiram apoio naquele momento. Compraram passagens aéreas para 31 de dezembro e embarcaram para o Peru. Em Lima, descobriram que o jovem desaparecido era Artur. A partir de então teve início a busca pelo jovem, que reuniu autoridades peruanas e brasileiras e teve grande repercussão na mídia. Além da investigação oficial, Susana e Wanderlan começaram a apurar o caso por conta própria. Eles descobriram que o filho desapareceu em uma região tomada pelo narcotráfico e com uma população com intenso medo de passar informações. Os pais de Artur ficaram no Peru por quatro meses logo após o desaparecimento do jovem. Eles dizem que chegaram a sofrer ameaças de morte, mas não desistiram da busca. As informações que receberam eram passadas anonimamente por pessoas que moravam na região. A polícia peruana passou a investigar o caso como crime, não mais somente como desaparecimento, após insistência dos pais do brasileiro. Uma das suspeitas na época, com base em informações colhidas pelos pais do jovem, era de que o dono do bar em que ele trabalhava antes de desaparecer poderia ter envolvimento com o caso. Uma testemunha relatou ter ouvido gritos de Artur sendo agredido e pedindo para não apanhar em uma residência que pertencia ao dono do bar. No local foram encontradas marcas de sangue. No entanto, segundo a investigação policial, uma análise apontou que o sangue não era do jovem. Na época, apesar de apontarem alguns suspeitos, ninguém foi preso porque as autoridades alegavam que não havia sequer a comprovação de que Artur havia sido morto. Para os pais do jovem, muitas provas foram destruídas ou desprezadas durante as investigações e isso prejudicou o esclarecimento do caso. Segundo a família, por se tratar de uma região de tráfico intenso, as autoridades tiveram receio em apurar o desaparecimento a fundo. Susana retornou ao Peru uma vez após a primeira ida ao país, enquanto Wanderlan voltou outras vezes, sendo a última delas em 2016, para investigar o sumiço do filho. Para o pai de Artur, o filho pode ter sido escravizado e ainda pode estar vivo. "Em uma das minhas viagens ao Peru, uma testemunha me disse que viu o Artur em um local de tratamento por meio de ervas da Amazônia. Isso foi um tempo depois do desaparecimento dele. Ele estaria escravizado lá, em um pequeno cômodo dentro da selva." Segundo o pai do jovem, naquela época Artur estaria sendo obrigado a trabalhar como tradutor, porque sabia inglês e espanhol. Essa informação, porém, nunca foi confirmada. "Foi a última informação que considerei confiável (sobre a possibilidade de ele estar escravizado). Desde então, não recebi mais nenhuma informação que considero confiável sobre o meu filho, só boatos", diz Wanderlan. Uma década depois, enquanto vive com a certeza de que o filho morreu, Susana ainda espera descobrir o que ocorreu com ele. Uma das possibilidades que ela acredita é de que, com o passar dos anos, alguma testemunha ou até mesmo pessoa que possa estar envolvida no desaparecimento a procure e dê detalhes que possam levar ao desfecho do caso. Caso o filho realmente tenha sido assassinado, ela diz que já perdoou a pessoa responsável pelo crime. "Há uns cinco anos, eu estava muito mal com tudo isso e fiz um propósito de perdoar. Eu entrava no banho e ficava pedindo que Deus aliviasse esse peso. Não queria mais que a pessoa fosse presa, não queria que nenhum mal acontecesse a essa pessoa e isso deu leveza à minha vida", conta a arquiteta. "Mais cedo ou mais tarde, acredito que essa pessoa vai ter o retorno sobre isso que fez. O que interessa é o meu filho, que eu acredito que morreu, não me interessa mais essa situação (de punição a quem possa ter cometido um crime contra o jovem)", acrescenta a arquiteta. Já Wanderlan acredita que um dia conseguirá recursos financeiros para voltar ao Peru e buscar novamente por respostas sobre o filho. "Não acredito que vou obter novas informações assim, do nada. Mas acredito que um dia conseguirei reabrir a investigação extraoficialmente." "Enquanto eu estiver vivo, vou trabalhar para desvendar esse mistério para saber o que realmente aconteceu", acrescenta. Em nota à BBC News Brasil, o Itamaraty não detalha sobre o caso de Artur, pois afirma que não fornece dados sobre "casos individuais de assistência consular a cidadãos brasileiros." "Tais informações poderão ser repassadas somente mediante autorização dos envolvidos ou de seus familiares diretos", diz o comunicado enviado pelo Itamaraty à reportagem no início deste mês. Em 2020, o Itamaraty informou à BBC News Brasil que a investigação sobre o caso estava suspensa desde 2017. Os familiares de Artur confirmaram à reportagem que desde então não houve mais nenhum tipo de apuração sobre o desaparecimento.
2023-01-17
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64167755
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O que se sabe sobre queda de avião que deixou dezenas de mortos no Nepal
As autoridades do Nepal disseram que não têm mais esperanças de encontrar sobreviventes do avião que caiu perto de um aeroporto no centro do país neste domingo (15/1). O voo da companhia Yeti Airlines ia de Katmandu para a cidade turística de Pokhara. O voo decolou com 68 passageiros a bordo (incluindo 15 estrangeiros), além de quatro tripulantes. Pelo menos 68 corpos foram resgatados, segundo autoridades. A caixa-preta do avião também foi resgatada. Ainda não se sabe o motivo da queda do avião. Nesta segunda-feira (16/1), uma equipe de resgate com mais de 300 pessoas ainda vasculhava o local do acidente. Este foi o acidente aéreo com maior número de vítimas do Nepal dos últimos 30 anos. O governo do Nepal decretou luto oficial e criou uma comissão para investigar o acidente. Fim do Matérias recomendadas Vídeos postados nas redes sociais mostram uma aeronave voando baixo sobre uma área povoada antes de girar bruscamente. Pessoas gravemente feridas sobreviveram ao desastre e foram levadas às pressas para o hospital, segundo relatos locais, embora isso ainda não tenha sido confirmado por autoridades. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A moradora local Deeveta Kal descreveu à BBC como ela correu para o local do acidente depois de ver a aeronave cair do céu pouco no fim da manhã do horário local (madrugada no horário de Brasília). "No momento em que cheguei, o local do acidente já estava lotado. Havia uma enorme fumaça saindo das chamas do avião. E então os helicópteros chegaram rapidamente", disse. "O piloto fez o possível para não atingir qualquer casa", acrescentou Deevta Kal. "Havia um pequeno espaço ao lado do rio Seti e o voo atingiu o solo naquele pequeno espaço." Centenas de soldados nepaleses estão envolvidos na operação no local do acidente nas proximidades do rio Seti, a apenas um quilômetro e meio do aeroporto. Vídeo feito no local onde o avião caiu mostra uma espessa fumaça negra e destroços em chamas. "Esperamos recuperar mais corpos", disse um porta-voz do Exército à agência de notícias Reuters, dizendo que o avião "se partiu em pedaços". O primeiro-ministro Pushpa Kamal Dahal convocou uma reunião de emergência de seu gabinete e pediu às agências estatais que trabalhem nas operações de resgate. Uma investigação sobre a causa do acidente foi instalada. Dos passageiros, 53 seriam nepaleses. Havia cinco indianos, quatro russos e dois coreanos no avião. Havia também passageiros da Irlanda, Austrália, Argentina e França, entre outros países. Acidentes de avião não são incomuns no Nepal, muitas vezes devido às suas pistas remotas e mudanças climáticas repentinas, que podem criar condições perigosas. Um avião da Tara Air caiu em maio de 2022 no distrito de Mustang, no norte do Nepal, matando 22 pessoas. No início de 2018, 51 pessoas morreram quando um voo da companhia US-Bangla, que viajava de Dhaka, em Bangladesh, pegou fogo ao pousar em Katmandu.
2023-01-16
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64281377
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Crise no Peru: governo decreta estado de emergência em Lima por 30 dias
O governo do Peru decretou estado de emergência na capital, Lima, devido aos protestos contra a presidente Dina Boluarte, que causaram pelo menos 42 mortes nas últimas semanas. A medida, que entrou em vigor neste domingo (15/1), valerá por 30 dias e autoriza o Exército a intervir para manter a ordem. O decreto emitido na noite de sábado também declarou estado de emergência nas regiões de Cusco e Puno, bem como no porto de Callao, próximo à capital. Também há restrições nas províncias de Andahuaylas, Tampopara e Tahuamanu, Mariscal Nieto e no distrito de Torata, e em cinco rodovias nacionais. Além disso, foi decretada "imobilização social obrigatória" na região de Puno por 10 dias, o que significa que os habitantes dessa área devem ficar confinados em suas casas entre 20h e 4h da manhã. Fim do Matérias recomendadas Apoiadores do presidente deposto Pedro Castillo marcharam e ergueram barricadas em grande parte do país sul-americano desde dezembro, após sua deposição devido à tentativa de dissolver o Congresso para governar por decreto. Os manifestantes exigem novas eleições gerais este ano e a destituição de Boluarte. A presidente fez um discurso televisionado na noite de sexta-feira (13/1), no qual se recusou a renunciar: "Meu compromisso é com o Peru". Nesta onda de protestos no Peru, pelo menos 42 pessoas morreram, das quais 17 perderam a vida em confrontos ocorridos na região de Puno há uma semana, naquele que foi o dia mais violento já registrado. Neste sábado (14/1), continuaram os protestos que bloquearam estradas em todo o Peru, especialmente no sul, epicentro dos distúrbios, e nos arredores de Lima, segundo a AFP. O aeroporto de Cusco, porta de entrada para o famoso Machu Picchu, reabriu no sábado depois de ser fechado por uma onda de protestos. As autoridades suspenderam as operações na quinta-feira como medida preventiva. Em dezembro, ele foi parado por cinco dias. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em 7 de dezembro, Castillo, então presidente, anunciou em uma mensagem pela televisão sua intenção de dissolver o Congresso e estabelecer um governo de emergência que, segundo ele, governaria por decreto. Sua decisão foi rejeitada por inúmeras instituições do país e inclusive gerou várias renúncias em seu gabinete de governo naquele mesmo dia. O ex-presidente está em prisão preventiva por um período de 18 meses enquanto responde a processo judicial pelo suposto crime de rebelião. Poucas horas depois, Castillo foi destituído pelo Congresso por meio de moção de vacância presidencial por "incapacidade moral" e foi preso e colocado à disposição da justiça. Essas decisões, no entanto, geraram uma onda de indignação entre os partidários de Castillo que, desde então, protestam para exigir sua libertação, bem como a renúncia de Boluarte, novas eleições e a mudança da Constituição. As manifestações foram duramente reprimidas pelas forças de segurança, que foram questionadas por grupos de direitos humanos por não terem feito uso proporcional da força. Por sua vez, o Exército acusou os manifestantes de usar armas caseiras e explosivos. O Peru vem enfrentando instabilidade política nos últimos anos, com Boluarte sendo a sexta pessoa a ocupar a presidência em cinco anos.
2023-01-15
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64281379
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O bairro de Caracas que virou epicentro do boom de luxo e capitalismo da Venezuela
Cai a noite na capital venezuelana e uma roleta com centenas de dólares em fichas gira velozmente em um hotel de luxo na zona leste de Caracas. Os rostos dominados pela ansiedade acompanham a roleta, imóveis por alguns segundos, até que ela para de girar e um jovem solta um grito de alegria: ele acaba de ganhar US$ 500 (cerca de R$ 2,6 mil). No outro lado da mesa, uma mulher elegante com cerca de 50 anos de idade franze rapidamente o nariz, hesita por dois segundos e aposta mais US$ 200 (cerca de R$ 1,03 mil). Boa parte da capital venezuelana já descansa, protegendo-se da insegurança de Caracas. Mas a noite no bairro de Las Mercedes está apenas no começo. Depois de muitos anos de decadência, devido à forte crise econômica do país, a agitada vida noturna desta região tranquila da capital conseguiu renascer, em parte, graças à liberalização e à economia que, na prática, foi dolarizada e volta a permitir os investimentos privados, ainda que ampliando as desigualdades do país. Fim do Matérias recomendadas "Las Mercedes era uma bolha dentro de uma bolha", afirma Darwin González, político de oposição ao governo do presidente Nicolás Maduro e prefeito de Baruta, o município de Caracas onde fica Las Mercedes. "Ela se tornou uma região privilegiada que não se parece em nada com o resto da Venezuela. Algumas pessoas vão a Las Mercedes e sentem uma distorção da realidade venezuelana", admite ele à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC. O prefeito chegou a afirmar que há "vários anos" não recebe relatos de criminalidade na região. Caracas é conhecida por ser uma das cidades mais violentas do mundo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Há mais de uma década, a Venezuela está mergulhada em uma crise social e econômica, que fez com que o seu Produto Interno Bruto (PIB) fosse reduzido em mais de 75% entre 2013 e 2021. A crise levou mais de sete milhões de venezuelanos ao exterior, em busca de um futuro melhor. Mas, em Las Mercedes, é possível observar sinais da nova situação econômica do país. Com a dolarização extraoficial, voltaram a surgir restaurantes de luxo e inúmeras lojas com marcas internacionais que estavam ausentes do país apenas quatro ou cinco anos atrás. E vários edifícios empresariais e residenciais de luxo continuam sendo construídos em diversos pontos do bairro. "Las Mercedes tornou-se o epicentro cultural, econômico e financeiro dos caraquenhos e da Venezuela", afirma o prefeito. No início do século 20, Las Mercedes era um bairro residencial, formado principalmente por sobrados. Mas, desde o final dos anos 1990, as casas foram progressivamente dando lugar a lojas e restaurantes. Outras modificações posteriores da legislação permitiram aumentar a altura das construções e a densidade populacional. Estas medidas fizeram com que, pouco a pouco, Las Mercedes fosse consolidando-se como uma "zona rosa" da capital, com sedes de empresas, centros comerciais e locais de diversão. Embora a crise tenha também afetado esta região, foram construídos em Las Mercedes na última década cerca de dez projetos arquitetônicos, como a Torre Sena, com 19 andares de "escritórios de luxo", e o colossal Centro Financeiro Madrid, com área total de 30 mil m². E, nos últimos tempos, tudo se acelerou. No andar térreo da Torre Jalisco, foi aberta em 2021 uma concessionária de carros da marca Ferrari. Seus encarregados não quiseram falar de preços, nem dar entrevistas. Também foi inaugurada, em novembro de 2022, a Galeria Avanti, uma loja de departamentos de seis andares, com um grande telão no alto do prédio, oferecendo produtos das marcas Balenciaga, Dolce & Gabbana, Versace, Gucci e de outras marcas de alta costura. Dois dias depois da sua inauguração, encontrei diversos clientes aproximando-se para dar uma olhada, mas muitos deram meia volta discretamente ao observar os preços. A oferta é variada e os preços são similares aos encontrados em outras capitais latino-americanas. Bolsas custam milhares de dólares e sapatos superam os US$ 500 (cerca de R$ 2,6 mil). São preços inacessíveis para a maioria dos venezuelanos. O salário mínimo no setor público da Venezuela - o maior empregador do país - é de 130 bolívares mensais (cerca de US$ 10, ou R$ 52). Em março de 2022, o valor equivalia a US$ 30 (cerca de R$ 155). "É muito bonito, parece que você está em outro país e consegue de tudo", afirma a cliente Yessica Villamizar. "Existem coisas acessíveis, como produtos de beleza e de cuidados pessoais, mas também há coisas muito caras que nem todos podem pagar", diz Villamizar, que mora em Caracas e comprou dois artigos de maquiagem. O diretor de comunicações da Avanti, Oswaldo Malpica, afirma que a procura por produtos de luxo aumentou exponencialmente no último ano, paralelamente ao crescimento econômico vivido pelo país depois que a economia chegou ao fundo do poço durante a pandemia de covid-19. "O caso de Las Mercedes é emblemático por ter se firmado como a zona rosa de Caracas. Agora, todos os negócios voltados ao luxo querem ter presença aqui, seja de roupas, restaurantes ou casas noturnas", afirma ele à BBC News Mundo. Os arranha-céus não param de brotar em toda a região e muitos serão inaugurados nos próximos anos. Existem edifícios em construção com mais de 20 andares, como as torres Nest, Haya e Victoria. Mas o projeto mais ambicioso talvez seja o Skypark, um arranha-céu inovador de 38 andares. Ele irá abrigar um hotel, pontos comerciais, apartamentos de luxo e um telão externo de publicidade, similar ao da Times Square de Nova York, nos Estados Unidos. Sua construção é um reflexo da recuperação econômica, em contraste com a situação de grande parte do país. A Pesquisa de Condições de Vida (ENCOVI, na sigla em espanhol), publicada em novembro de 2022 pela Universidade Católica Andrés Bello, de Caracas, revelou que a pobreza multidimensional diminuiu na Venezuela pela primeira vez em sete anos, mas 58% da população ainda vivia em condições precárias em 2022. Ao mesmo tempo, a desigualdade aumentou, fazendo da Venezuela o país "mais desigual" da região. Segundo a pesquisa, a diferença de renda entre o segmento da população mais pobre e o mais rico agora é de 70 vezes. E 40% dos lares de renda mais alta estão em Caracas, que concentra apenas 16% das residências do país. Adrián Pérez Craig é diretor da imobiliária Peraig, que trabalha com alguns dos projetos de Las Mercedes. Ele afirma que muitos dos edifícios recém-inaugurados estão "quase 100% vendidos e apresentam ocupação de quase 80%". Mas outras pessoas que trabalham nos prédios ou nas redondezas garantem que muitos escritórios permanecem desocupados. O especialista em imóveis explica que muitos empresários compram escritórios como investimento, para proteger seu dinheiro da inflação galopante, à espera de que os preços dos imóveis aumentem, depois da queda violenta durante a pandemia. Segundo os números do Observatório Venezuelano das Finanças (OVF) de novembro de 2022, a inflação anual venezuelana foi de mais de 200% - uma das mais altas do mundo. Pérez Craig afirma que, em 2022, os preços deixaram de cair violentamente, como ocorreu por muitos anos. A queda do setor foi tão grande que um apartamento que, há dez anos, valia mais de US$ 1 milhão (cerca de R$ 5,2 milhões) hoje é oferecido pela metade do preço. Mas o renascimento do bairro fez voltar o apelido que antes era empregado por vários empresários venezuelanos: "Las Mercedes é como a pequena Manhattan de Caracas". Sua vida noturna vibrante e suas numerosas construções, agregadas ao apogeu do luxo e capitalismo evidente nas suas ruas, assim o demonstram. "Estão sendo construídos edifícios altos", afirma Pérez Craig. "Não tão altos quanto os de Nova York, é claro, mas, para a Venezuela, é bastante, especialmente devido à situação atual." "Tivemos anos muito difíceis, que fizeram com que os preços por metro quadrado caíssem significativamente", afirma o prefeito de Baruta, Darwin González. "Isso representou uma boa oportunidade de negócios, pois muitas pessoas sabiam que, cedo ou tarde, a crise econômica terminaria e eles teriam lucro." "Boa parte de Las Mercedes é um grande investimento de longo prazo", defende Darwin González. O economista venezuelano Luis Vicente León, presidente da consultora Datanálisis, afirma que o boom atual de Las Mercedes ocorreu por diversos fatores. "Alguns setores da economia melhoraram no ano passado, como o comércio e a construção", explica ele. "Além disso, o aumento das exportações de petróleo fez com que houvesse mais dinheiro nas ruas." "Outro ponto que muitas pessoas não entendem é que a classe alta da Venezuela continua sendo relativamente grande e ainda tem muito dinheiro", segundo León. Um relatório recente da Datanálisis estima que a classe alta venezuelana representa cerca de 2% da população total do país, enquanto a classe média alta totaliza 4%. "São quase dois milhões de pessoas, mais que a população da região metropolitana da cidade do Panamá, por exemplo", explica o economista. No Brasil, dois milhões de pessoas correspondem à população aproximada da cidade de Curitiba (PR) ou da região metropolitana de Vitória, no Espírito Santo. León destaca que, entre os venezuelanos com alto poder aquisitivo que frequentam Las Mercedes, existem pessoas que gastam "dinheiro ganho honestamente há décadas" porque têm medo de que seus recursos sejam congelados, além de empresários e políticos vinculados ao governo que sofreram sanções e não podem gastar suas fortunas no exterior. Mas existe também dinheiro proveniente de corrupção. "O que não é certo é acusar todos os que compram em Las Mercedes de serem corruptos", explica o economista. "Não podemos colocar no mesmo saco os corruptos e os que ganharam dinheiro honestamente." Segundo o índice de percepção da corrupção da Transparência Internacional publicado em 2021, a Venezuela é o quarto país mais corrupto do mundo, entre as 180 nações pesquisadas. O prefeito de Baruta gosta do apelido de "pequena Manhattan". Ele afirma que se sente "orgulhoso" por ter uma região que pode ser considerada "um exemplo" para o restante do país. "O município conta com segurança jurídica, planejamento e apoio aos investidores. Por isso, conseguiu certo grau de desenvolvimento", acrescenta ele. Las Mercedes também foi beneficiada, em 2021, por uma reforma do governo de Maduro, autorizando a abertura de dezenas de cassinos no país - vários deles, neste bairro da capital. O jogo era ilegal na Venezuela há uma década. O ex-presidente venezuelano Hugo Chávez (1954-2013) havia proibido os cassinos em todo o país, afirmando que eles contribuíam para a deterioração da sociedade. Chávez os comparava com a prostituição e o consumo de drogas. Além de enriquecer a vida noturna, os cassinos trouxeram mais dinheiro para Las Mercedes. O prefeito afirma que esse dinheiro é usado para investir em setores desfavorecidos do município, alguns deles a poucos quilômetros do bairro. À meia-noite, alguns dos clientes dos restaurantes de Las Mercedes começam a ir para os bares próximos, misturando-se com o público mais jovem que sai para comemorar. O bairro também passou a ser um ponto central da vida noturna de Caracas, que permaneceu decadente por muitos anos devido à crise e à insegurança. A caminho das discotecas e dos bares da moda, os caraquenhos mais abastados exibem seus carros esportivos e caminhonetes de último modelo. Pela avenida principal de Las Mercedes, passam Ferraris e Maseratis, roncando seus motores e misturando-se com outros veículos muito mais modestos, alguns do início do século 21. Parte da diversão noturna concentra-se nos cassinos. Em uma máquina caça-níqueis do cassino do hotel Tamanaco (um estabelecimento cinco estrelas no ponto mais alto de Las Mercedes), um jovem de 21 anos chegou de um bairro pobre no oeste de Caracas com US$ 50 (cerca de R$ 260) e continua apostando, mesmo depois de ganhar US$ 100 (cerca de R$ 520). "Não havia comida em casa porque minha mãe perdeu o emprego recentemente, por isso vim tentar a sorte", afirma ele, com os olhos fixos na roleta eletrônica. "Costumo vir aqui e, às vezes, ganho, mas muitas vezes também perco", prossegue ele, acrescentando que está tratando de "não se viciar". "No oeste de Caracas, também existem cassinos", ele conta, "mas gosto mais de Las Mercedes porque aqui, na zona leste, cada um cuida de si e a experiência e o serviço são mil vezes melhores. É como estar em outro país."
2023-01-15
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64252530
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Inflação de quase 100%: preços praticamente dobraram na Argentina em 2022
A Argentina viu os preços quase dobrarem no ano passado, quando a taxa de inflação anual do país atingiu seu nível mais alto em mais de 30 anos. Dados oficiais mostram que os preços ao consumidor subiram 94,8% nos 12 meses encerrados em dezembro. Foi o ritmo de inflação mais acelerado do país desde 1991. No ano passado, o banco central da Argentina elevou sua principal taxa de juros para 75% enquanto tenta conter o aumento do custo de vida. Em uma base mensal, a taxa de inflação mensal da Argentina ficou em 5,1% em dezembro. Fim do Matérias recomendadas O valor mensal foi uma pequena vitória para o governo do presidente Alberto Fernandez, já que a taxa de inflação mensal segue permanece abaixo do pico de 7,4% em julho. Os políticos argentinos também podem se consolar com o fato de a taxa anual não ter atingido três dígitos em 2022. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os aumentos de preços em dezembro foram liderados pelo aumento de custos em áreas como restaurantes, hotéis, bebidas alcoólicas e tabaco, que subiram mais de 7%. Como a maioria dos países ao redor do mundo, a Argentina viu os preços subirem fortemente à medida que o custo das commodities, incluindo a energia, subiu. Na Argentina, a alta dos preços é atribuída à elevada emissão de moeda pelo Banco Central e à guerra na Ucrânia. Em dezembro, o Fundo Monetário Internacional (FMI) aprovou mais US$ 6 bilhões dentro de um pacote de resgate para a Argentina, que é a segunda maior economia da América do Sul. Esse foi o mais recente pagamento para a Argentina em um programa de 30 meses que deve atingir um total de US$ 44 bilhões. No ano passado, o país teve três ministros da Economia em apenas quatro semanas. Sergio Massa está no cargo desde agosto e implementou políticas duras na tentativa de conter a inflação desenfreada.
2023-01-13
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64260461
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Bolsonaristas já ganharam autonomia em relação a Bolsonaro, aponta antropóloga
Com pesquisas sobre a extrema direita brasileira há mais de uma década, a antropóloga Isabela Kalil alertou em dezembro de 2022 que seguidores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) buscavam instigar o caos, num processo de radicalização. Os fatos deram razão à especialista, que coordena o Observatório da Extrema Direita no Brasil. Ao invadir as sedes dos três Poderes em Brasília, no domingo (8/1), milhares de militantes radicais bolsonaristas demonstraram uma capacidade de ação ao emular grupos extremistas nos Estados Unidos, apontou Kalil em entrevista à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC para a América Latina. Ela diz que as semelhanças entre o que aconteceu em Brasília e o ataque ao Capitólio, em Washington por seguidores do então presidente americano Donald Trump, em 6 de janeiro de 2021, estão longe de ser mera coincidência. A antropóloga também indica que há o risco de que atos semelhantes se repitam em outros países da América Latina. Fim do Matérias recomendadas Confira a seguir os principais trechos da entrevsta com Kalil, que também é professora e pesquisadora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. BBC News Mundo - Qual o significado da invasão dos três Poderes do Estado do Brasil por milhares de bolsonaristas no domingo? Isabela Kalil - Há duas dimensões: a gravidade deste ato em nível nacional e transnacional. Ou seja, como esse ato coloca a extrema direita brasileira em sintonia com a extrema direita global, principalmente dos Estados Unidos. Eu diria que o ato é representativo não só para o Brasil, mas para a relação entre diferentes grupos extremistas no Brasil e nos EUA, pelo fato de eles terem quase replicado a invasão do Capitólio. BBC News Mundo - Qual o objetivo dos extremistas com esses tipos de ataques? Kalil - Foi um ataque aos três Poderes, mas muito mais virulento contra o Supremo Tribunal Federal (STF). Esses grupos já esperavam há alguns meses e exigiam que Bolsonaro fizesse algum tipo de intervenção, como eles chamam. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Como isso não aconteceu, eles foram para a frente dos quartéis, esperando que as Forças Armadas brasileiras respondessem, tomassem o que chamam de posição e fizessem uma intervenção. Isso também não aconteceu. E aí esses grupos, não de forma institucionalizada, mas com a participação de militares reformados e pessoas das forças de segurança pública que lá estavam na qualidade de civis, acabaram por realizar esses atos. Então, no fundo, acho que fica uma mensagem: eles demonstraram que conseguem se mobilizar, independentemente de terem instituições ou uma liderança política direcionando esses atos com mais clareza. BBC News Mundo - Quase 1,2 mil bolsonaristas foram detidos nas últimas horas. Os acampamentos que tinham no Distrito Federal e em diferentes Estados do Brasil foram desmantelados na segunda-feira (9/1). Isso pode marcar o fim dessas mobilizações extremistas? Kalil - É importante notar que as instituições brasileiras toleraram muito. Após o anúncio da vitória de Lula (PT) e da derrota de Bolsonaro, essas mobilizações começaram. E, desde então, não se desmobilizaram. Eles continuaram nas portas dos quartéis após se mobilizarem nas rodovias. Acho que agora há realmente uma desmobilização. Isso não exclui que possam ocorrer atos isolados de extremismo e terrorismo, não com o mesmo nível de pessoas ou de mobilização. BBC News Mundo - Esses grupos têm uma estratégia predeterminada? Kalil - No caso do Brasil, eles foram mobilizados por muito tempo em torno de um ato semelhante a este. Então, do ponto de vista dos dirigentes, não havia como desmobilizá-los, mesmo que fosse por um ato que eles considerariam mais simbólico. Porque o ato foi muito grave, mas não havia atores políticos dentro dos prédios públicos. Eles não atacaram uma pessoa específica. Eles poderiam ter feito um ataque no momento de uma sessão do Congresso Nacional ou de uma atividade do STF com os juízes reunidos, mas não fizeram. Acho que foi uma tentativa de marcar aquela mobilização, e talvez leve anos para chegar a um novo ato como esse. Segundo o que acompanhamos desses grupos, desde o final de 2019 e o início de 2020 eles estão fazendo apelos desse tipo. BBC News Mundo - Eles têm líderes? Kalil - Os atos têm diferentes lideranças. Mas é difícil nomeá-los, porque há uma mobilização digital muito forte que também utiliza robôs e aplicativos de mensagens instantâneas. Bolsonaro passou anos mobilizando seus apoiadores para isso. Mesmo que ele não tenha dado uma ordem direta agora, acredito que ele seja o responsável por organizar aquele exército de pessoas. BBC News Mundo - Que nível de organização eles têm? Kalil - O primeiro estudo que nos ajudou a entender esses grupos mostrou uma forte segmentação. Há grupos de mulheres mobilizadas em torno de questões de gênero, grupos de homens mais jovens, grupos mobilizados em torno de uma agenda militar... E pode haver uma relação mais ligada ao contexto religioso conservador. O que torna esses grupos tão difíceis de desmobilizar é que eles não têm uma agenda única. São diferentes grupos mobilizados em torno de agendas distintas. BBC News Mundo - Então isso vai além de Bolsonaro, mesmo que o ex-presidente seja o líder? Kalil - Exato. Em determinado momento, esses grupos tiveram uma dependência maior da figura de Bolsonaro para se mobilizarem. Bolsonaro ainda é o principal líder, um líder importante, e deve ser responsabilizado até por esses atos, mesmo que tenha agido indiretamente. Mas, de certa forma, os atos mostram que esses grupos ganharam autonomia. BBC News Mundo - Por que ninguém conseguiu impedir o que aconteceu no domingo em Brasília? Kalil - Há uma combinação de fatores. Há uma certa clemência de certos agentes de segurança pública, que têm muita simpatia por Bolsonaro. Isso significa que, mesmo quando o comando de determinadas forças policiais pode dar ordem para reprimir, muitas vezes os próprios agentes apoiam os atos. Portanto, há uma forte penetração do bolsonarismo nas forças de segurança. Há questões institucionais relacionadas até mesmo à atuação das autoridades do Distrito Federal. Mas há outra questão: o fato de Bolsonaro ter feito aquela retirada estratégica e viajado para os EUA foi como se ele tivesse tirado a extrema direita de cena. E isso não é verdade. Houve um erro de cálculo. Como eu disse, é um relacionamento complexo. Mesmo que Bolsonaro dê ou não uma ordem mais explícita, eles podem agir. BBC News Mundo - Você acha que a extrema direita está infiltrada até nas forças de segurança brasileiras? Kalil - Não, existem agentes de segurança que simpatizam com esses grupos. Eles apoiam o bolsonarismo e o Bolsonaro. BBC News Mundo - Mas então o governo Lula e todo o Estado brasileiro vão ter que enfrentar não só esses grupos nas ruas, como também essa simpatia nas Forças Armadas? Kalil - Exatamente, nas Forças Armadas e nas forças de segurança como a polícia militar, a polícia rodoviária... Esse é o desafio: atuar do ponto de vista da sociedade civil, mas também institucional, dos agentes do Estado. BBC News Mundo - Muitos notam as semelhanças entre o que aconteceu em Brasília no domingo e o atentado ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021. São coincidências? Kalil - Eu não acho que é uma coincidência. Existe uma hashtag, #BrazilianSpring, que começou a ser compartilhada por Steve Bannon [ex-estrategista de Trump]. Na verdade, houve uma espécie de performance para colocar a extrema direita do Brasil em sintonia com a dos EUA, e de certa forma emular a invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021 por aqui. BBC News Mundo - Isso significa que a extrema direita está compartilhando forças, ideias e estratégias no continente? Kalil - Pelo menos há uma tentativa. Não podemos dizer que isso acontecerá em outros países. Mas existe uma estratégia da extrema direita transnacional que é tentar fazer isso na América Latina. Se ela vai conseguir ou não, isso vai depender muito da mobilização das forças democráticas dos países, das instituições e da capacidade de conter esses grupos. Há um objetivo de tornar essas estratégias transnacionais e compartilhar diferentes repertórios e táticas. No caso do Brasil, isso não é exatamente novo. Com minha equipe de pesquisa, já publicamos um artigo que comparou a mobilização da extrema direita no Brasil e nos EUA após a pandemia de covid-19. Mas, com os acontecimentos de domingo, se consolida a transnacionalização da extrema direita no Brasil. BBC News Mundo - Existe uma conexão orgânica entre movimentos de extrema-direita nos EUA, Brasil e outras partes do mundo? Kalil - O que acontece é que existem diferentes lideranças brasileiras que seguem e acompanham certos porta-vozes da extrema direita nos EUA e, de certa forma, fazem uma tradução disso para o Brasil. Tanto que existem líderes bolsonaristas que, quando têm problemas com a lei, saem do Brasil e vão para os EUA. Um importante ator da extrema direita brasileira foi Olavo de Carvalho, já falecido, que de certa forma fez aquela espécie de tradução para o Brasil do que acontecia nos Estados Unidos, com a mobilização da extrema direita e outros elementos mais radicais. Ele criou uma ponte, e tem alunos do Olavo de Carvalho que começaram a consumir essas influências e materiais da extrema direita dos EUA. BBC News Mundo - Os países da região devem estar atentos a essa vocação transnacional da extrema direita? Kalil - É preciso evitar as tentativas de replicar a invasão de prédios públicos. O Brasil copiou isso dos EUA. Há risco de tentativas de invasão de prédios públicos de outros países da região. O Brasil é estratégico no continente, porque a vitória de Lula sinaliza que teremos a consolidação de uma segunda onda de partidos de esquerda e centro-esquerda, e como isso vai se vincular às questões socioambientais e de diversidade, como a luta contra o racismo, as questões de gênero, etc. O Brasil é estratégico porque, de certa forma, tem uma influência importante na região do ponto de vista político. Portanto, é preciso estar atento para que não haja tentativas em outros países da região, como o que ocorreu nos Estados Unidos e agora no Brasil.
2023-01-11
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64234271
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Protestos que pedem eleição e soltura de ex-presidente deixam 17 mortos no Peru
Pelo menos 17 pessoas morreram na segunda-feira (9/1) no Peru, durante confrontos entre a polícia e manifestantes, que exigiam a convocação de novas eleições e a libertação do ex-presidente deposto Pedro Castillo. As mortes ocorreram nas proximidades do aeroporto da cidade de Juliaca, localizada no departamento de Puno. Inicialmente, a Ouvidoria do Peru registrou 9 mortes. Horas depois, as autoridades atualizaram o número para 17. Com os últimos desdobramentos, o número de mortes durante os protestos no Peru aumentou para 39 desde que Castillo foi deposto. O ex-presidente segue em prisão preventiva por 18 meses enquanto espera por um julgamento pelo crime de rebelião. Além disso, segundo os dados oficiais, desde o início da onda de protestos, outras sete pessoas morreram em acidentes de trânsito ligados a bloqueios de estradas durante as manifestações. Fim do Matérias recomendadas Esta segunda-feira foi, de longe, o pior dia da atual crise, pelo menos do ponto de vista do número de vítimas mortais. Em comunicado divulgado poucas horas depois dos acontecimentos, o primeiro-ministro Alberto Otárola lamentou as mortes ocorridas em Puno, mas destacou que cerca de 2 mil manifestantes tentaram tomar o aeroporto de Juliaca e agrediram policiais e integrantes das Forças Armadas. "Foi um ataque organizado e sistemático de vandalismo, com atividades violentas contra instituições em Puno", disse. Otárola anunciou que uma delegação de alto nível viajará a Puno nesta terça-feira (10) para conversar com os manifestantes. Embora as mortes relatadas tenham ocorrido em Juliaca, os protestos têm um alcance muito maior e, segundo a imprensa local, outras cinco regiões do país registraram bloqueios de estradas: Apurímac, Cusco, Madre de Dios, Amazonas e Arequipa. Castillo foi destituído pelo Congresso peruano em 7 de dezembro por meio de uma moção de vacância presidencial por "incapacidade moral". Horas antes de sua saída do cargo, o então presidente havia decretado a dissolução do Congresso e a instalação de um governo de emergência que, conforme anunciou em pronunciamento televisionado, seria governado por decreto. "Pedimos às forças de ordem que façam um uso legal, necessário e proporcional da força e instamos a @FiscaliaPeru [o Ministério Público do Peru] a realizar uma investigação rápida para esclarecer os fatos", escreveu a Defensoria Pública peruana em uma mensagem no Twitter. Posteriormente, a Defensoria informou que o número de mortes ocorridas na segunda-feira durante os protestos havia subido para 17. Além disso, segundo o Ministério da Saúde do país, foram mais de 60 feridos durante os confrontos. Desde o início dos protestos, grupos de direitos humanos acusam as forças de segurança de usar armas de fogo para enfrentar os manifestantes, além de lançar bombas de fumaça de helicópteros. Por sua vez, o Exército acusou os manifestantes de usar armas caseiras e explosivos. A remoção de Castillo provocou uma onda de protestos que diminuíram durante as semanas festivas de dezembro, mas recomeçaram após o início de 2023. Entre as reivindicações, os manifestantes pedem a renúncia da nova presidente, Dina Boluarte, o fechamento do Congresso e mudanças na Constituição.
2023-01-10
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64221106
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Como mensagem oculta em canção colombiana deu esperança a sequestrados pelas Farc
Com sua melodia cativante e sua letra intensa, a música Mejores Días (Dias Melhores) estourou nas rádios colombianas no verão de 2010. Mas a música continha uma mensagem oculta, que seus criadores só puderam revelar depois que arquivos secretos sobre o seu verdadeiro significado foram abertos ao público. Essa mensagem oculta ofereceu conforto e esperança a centenas de pessoas sequestradas e mantidas presas por grupos guerrilheiros, no período em que o país esteva mergulhado em uma guerra civil entre o governo e grupos rebeldes. Durante os 50 anos de intensos conflitos armados na Colômbia, os dois lados cometeram sérias atrocidades. No início dos anos 2000, os sequestros tornaram-se uma importante estratégia de financiamento das Farc. O tribunal de justiça de transição da Colômbia estima que 21.396 pessoas tenham sido sequestradas ao longo do conflito. Os principais alvos costumavam ser policiais e soldados do Exército. Acorrentados em acampamentos secretos na floresta colombiana, as condições enfrentadas pelos sequestrados podiam fazer qualquer pessoa perder a esperança. Fim do Matérias recomendadas As missões de resgate eram perigosas, devido ao terreno montanhoso. E houve reféns, como o hoje major-general aposentado Luis Herlindo Mendieta Ovalle, que passaram anos em cativeiro. Ele foi mantido refém das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) entre 1998 e 2010. "A malária era um problema", ele relembra. "Os carrapatos estavam em toda parte. Quando você se sentava ou tentava dormir, as formigas andavam em cima de você." "Havia também os fungos", segundo ele. "Com a umidade, os fungos cresciam nas suas partes íntimas e não tínhamos remédios para o tratamento." Na época, o coronel José Espejo era oficial de comunicações do Exército colombiano. Ele sabia como a motivação das tropas era importante para o sucesso de uma operação de resgate. "Queríamos desesperadamente oferecer aos reféns militares algo que pudesse apoiá-los, uma mensagem de esperança que mantivesse seu espírito e resistência, para que eles pudessem considerar a possibilidade de escapar, se houvesse oportunidade", afirma ele. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para enviar essa mensagem, ele decidiu abandonar as regras e entrar em contato com o CEO (diretor-executivo) de uma agência de publicidade, Juan Carlos Ortíz. A campanha antidrogas de Ortíz, financiada pelo governo colombiano, havia recebido um prêmio pela sua inovação - mas também atraiu a atenção das Farc, que tinham o comércio de cocaína como uma lucrativa fonte de renda. Ortíz recebeu ameaças de morte das guerrilhas e precisou fugir para os Estados Unidos com sua família para começar uma nova vida. Mas ele e sua equipe decidiram enfrentar o desafio de idealizar uma forma de levar uma mensagem de esperança para os reféns. E foi em uma reunião com representantes do Exército que surgiu a ideia. "Eles nos disseram que os soldados colombianos aprendem código Morse no seu treinamento inicial", ele conta. "Nós pensamos, 'muito bem, como podemos nos comunicar com eles por código Morse?' Foi um momento verdadeiramente iluminado." Com o cativeiro no meio da floresta e as comunicações com o mundo exterior quase impossíveis, o diretor de criação da agência, Alfonso Díaz, afirma que eles só poderiam fazer contato com os reféns pelo rádio. "Naquela época, um jornalista chamado Herbin Hoyos, que ajudou vários reféns, havia criado um programa [de rádio] chamado Voces del Secuestro (Vozes do Sequestro)", ele conta, "para ajudar a reduzir a sensação de isolamento e transmitir mensagens dos entes queridos para as pessoas no cativeiro." Hoyos também havia sido sequestrado pelas Farc e morreu de covid-19 em 2021, aos 53 anos de idade. Seu programa foi transmitido por anos e serviu de conforto para muitas pessoas. Parecia o local perfeito para começar a transmissão da mensagem. Díaz conta que eles pensaram em incluir o código Morse em uma brincadeira. Os pontos e traços pareceriam encobrir palavrões, mas isso foi considerado inadequado. Foi quando ele teve a ideia de usar uma música. O produtor de áudio Carlos Portela conta que, inicialmente, eles pensaram em usar um animado ritmo local - o vallenato - ou uma salsa, mas perceberam que isso poderia fazer "a mente do ouvinte divagar". Eles então decidiram usar uma música sentimental, com letra emotiva, para ajudar os reféns a fazer a ligação entre a música e a mensagem em código Morse oculta na canção. Díaz e Portela foram os autores da letra. "A letra de Mejores Días fala de coração, da resiliência e da resistência que os sequestrados devem ter para conseguir seguir adiante e não se desesperar quando estiverem sozinhos", explica Díaz. Eles contaram com o apoio do cantor de rock Angelo, que havia ficado conhecido pela sua participação na versão colombiana do programa de TV The X Factor, e da cantora e atriz Natalia Gutiérrez. Portela e o compositor, produtor e engenheiro de som Amaury Hernández fizeram pesquisas sobre o código Morse, incluindo a quantidade de palavras que uma pessoa pode decodificar por minuto. Eles decidiram, então, usar um sintetizador na gravação para ajudar a camuflar os sinais de telegrafia. Uma simples mensagem escolhida pela equipe foi inserida em três pontos diferentes da música: "19 pessoas resgatadas. Você é o próximo. Não perca a esperança." Em 2010, depois de oito meses, a música estava pronta para ser transmitida pelo programa de Hoyos. Ela ultrapassou a fronteira das emissoras comerciais e foi executada em mais de 130 estações de rádio rurais em toda a Colômbia. "Milhões de pessoas ouviram a música Mejores Días, mas não era este o nosso objetivo", explica Ortíz. "O sucesso para nós estava em números pequenos e específicos. Eram os poucos escolhidos que a ouvissem e a compreendessem." O general Mendieta havia sido resgatado no mesmo ano e ajudou na missão. Ele compareceu a programas de TV ao vivo, pedindo aos rebeldes que as pessoas sequestradas tivessem acesso ao rádio, para servir de companhia. "Alguém disse certa vez que 'quem tem um livro não está sozinho'", ele conta. "No nosso caso, era 'quem tem um rádio não está sozinho'." A execução da música no rádio, entretanto, trazia o risco de que as Farc também decodificassem a mensagem escondida. Mas, "se você considerar que os reféns enfrentavam a possibilidade de morrer na floresta, longe das suas famílias, correr o risco na área da comunicação era válido e importante", afirma o coronel Espejo. Somente quando os reféns começaram a ser libertados nos meses e anos seguintes, foi possível ter retorno sobre o sucesso da música. O coronel Espejo conta que um refém resgatado disse, em avaliação psicológica, ter ouvido a mensagem em código Morse e repassado seu significado para os colegas sequestrados. "Quando chegou a notícia de que a música tinha funcionado, comecei a andar pela rua com uma sensação de alegria tão grande que não conseguia parar de sorrir", conta Portela. Grande parte da equipe de produção só divulgou seu envolvimento na produção da música pouco tempo atrás. "Você acredita que minha família não sabia?", conta Gutiérrez. "Nunca disse nada a eles por anos devido à cláusula de confidencialidade." A música também rendeu um prêmio de prestígio para sua equipe de criação: o Leão de Ouro do Festival de Cannes, na França. Desde que Mejores Días foi ao ar pela primeira vez, o cenário político na Colômbia sofreu mudanças significativas. As Farc assinaram um acordo de paz histórico com o governo colombiano em 2016. Milhares de antigos rebeldes foram desmilitarizados. Mas o país ainda enfrenta a violência de outros grupos armados e a disseminação do tráfico de drogas. A Colômbia ainda tem um longo caminho pela frente para enfrentar muitas das atrocidades cometidas durante o conflito armado, inclusive pelo Exército. Por isso, para o agora aposentado coronel Espejo, a música tem também um sabor amargo. Mejores Días, enraizada no passado, segue também sendo um hino para o futuro.
2023-01-09
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64162286
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Áudio, Ouça canção colombiana com mensagem oculta dirigida a pessoas sequestradas pelas FarcDuration, 3,59
Com seu refrão cativante e letras poderosas, a canção pop Mejores Días estourou na Colômbia no verão de 2010. Mas a música continha uma mensagem oculta que seus criadores só puderam revelar depois que os arquivos secretos sobre seu verdadeiro significado foram abertos. Escondida em Dias Melhores estava uma mensagem secreta de militares colombianos destinada exclusivamente aos ouvidos dos reféns militares sequestrados pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Crédito: Angelo - Cantor Natalia Gutiérrez - Backing vocal Carlos Portela - Produtor Alfonso Díaz/Amaury Hernández/Carlos Portela - Autores
2023-01-09
https://www.bbc.com/portuguese/media-64162287
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Como migrantes venezuelanos estão melhorando a economia dos países que os recebem
Quando você ouve a frase "crise migratória venezuelana", que imagens vêm à sua mente? Se você pesquisar essa frase no Google, as fotos que você verá mostram longas filas de pessoas carregando mochilas ou arrastando malas enquanto tentam ou esperam para cruzar uma fronteira. Ou pais carregando filhos pequenos, abraços de partir o coração, acampamento e rostos exaustos. A onda migratória da Venezuela é consequência de um enorme colapso econômico que ocorreu entre os anos de 2013 e 2021, reduziu o PIB do país em mais de 75% e causou a saída até o momento de 7 milhões de pessoas. Dessas, cerca de 6 milhões estão em países da América Latina e do Caribe. Essa chegada massiva de imigrantes venezuelanos, que em muitos casos necessitam de atenção imediata, - incluindo as questões mais básicas como alimentação, abrigo, remédios, vacinas, educação para as crianças - teve um impacto significativo nos países receptores. Isso ocorreu porque essas nações tiveram que fazer um esforço significativo para receber os recém-chegados. Cálculos das autoridades da Colômbia - que recebeu o maior número de venezuelanos (cerca de 2,5 milhões até dezembro de 2022) - indicam que em 2019 o país destinou cerca de US$ 600 (R$ 3.171) para cada migrante. Isso se traduz em gastos de US$ 1,3 bilhão (R$ 6,8 bilhões) na assistência aos recém-chegados, o equivalente a 0,5% do PIB colombiano. Fim do Matérias recomendadas Mas há duas boas notícias. Espera-se que este seja o custo máximo de atendimento dos venezuelanos em todos os países da região e que, de fato, esse impacto diminua com o tempo, à medida que esses migrantes se integram à economia local. Essa integração não apenas ajuda a compensar os gastos causados, mas estima-se que possa gerar um crescimento do PIB de até 4,5% até 2030. Tudo isso, de acordo com um novo estudo de economistas do Fundo Monetário Internacional (FMI) intitulado "Regional Spillovers from the Venezuelan Crisis" (Efeitos Colaterais Regionais da Crise Venezuelana, em tradução livre). Segundo a pesquisa, os gastos para atender às necessidades dos migrantes venezuelanos variam entre 0,1% e 0,5% do PIB, dependendo do país. Estima-se que entre 2020 e 2025 ficará em torno de 0,4% no caso da Colômbia; em 0,25% para Equador e Peru e 0,1%, para o Chile. A chegada massiva de migrantes também tem impacto no mercado de trabalho que, inicialmente, é misto. "À medida que a maioria dos migrantes consegue um emprego (mesmo que não corresponda às suas qualificações), o emprego total aumenta e os salários reais caem. Salários mais baixos desencorajam alguns trabalhadores locais de participar do mercado de trabalho. Enquanto o desemprego geral aumenta ligeiramente, a taxa de desemprego dos imigrantes excede a de trabalhadores locais", afirma o relatório. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Apesar desses efeitos, a renda global do trabalho aumenta em consonância com o crescimento do emprego global. Para as empresas, salários reais mais baixos se traduzem em menores custos de produção e maiores lucros", acrescenta. Jaime Guajardo, principal autor do estudo do FMI, aponta que é difícil avaliar a contribuição da migração venezuelana para o PIB dos países receptores até agora devido ao fato de que esses efeitos são demorados e às limitações na disponibilidade de dados recentes sobre os índices de emprego ou o tipo de trabalho dos imigrantes, em parte devido à pandemia. Apesar disso, no estudo fizeram estimativas de aumentos do PIB desses países entre 2016 e 2030, tomando dois cenários diferentes: um sem imigrantes e outro com eles. Para calcular este último, eles assumiram como premissas que, a princípio, a maioria dos migrantes conseguiria empregos não qualificados na economia informal e que, nos anos seguintes, apenas uma fração deles ingressaria no setor formal com empregos compatíveis com seu capital humano. Isso aumentaria a produtividade da economia a médio prazo. "Segundo essas estimativas, o PIB da Colômbia, Chile, Equador e Peru - países que receberam 69% dos migrantes venezuelanos - teria aumentado entre 1,5% e 2,5% em relação a um cenário sem migração, entre 2016 e 2022. E espera-se que ele aumente entre 2,5% e 4,5% até 2030", disse Guajardo à BBC News Mundo em entrevista por e-mail. O estudo do FMI levou em consideração inúmeros fatores em seus cálculos: desde o impacto dos fluxos migratórios no emprego e na produtividade, passando pela proporção de imigrantes em idade ativa e o nível educacional deles. Também levou em conta as condições do mercado de trabalho, o clima, quanto tempo leva para os migrantes conseguirem um emprego, de que tipo e em que setor da economia. Segundo esta análise, o país em que a migração venezuelana terá maior impacto no crescimento do PIB até 2030 será o Peru (4,4%), seguido da Colômbia (3,7%), Equador (3,5%), Chile (2,6%), Panamá (1,9%), República Dominicana (1,1%), Costa Rica (0,6%) e Uruguai (0,6%). Guajardo indica que o impacto no PIB é maior nos países que receberam os maiores fluxos migratórios em idade produtiva e onde os migrantes são mais qualificados em relação à população local. "Dada a sua proximidade com a Venezuela, a Colômbia recebeu uma proporção maior de migrantes fora da idade produtiva (crianças ou idosos) e uma proporção maior de migrantes com menos anos de escolaridade, muitos dos quais não podem pagar transporte para países mais distantes da região. Isso explica porque o impacto no PIB da Colômbia é menor do que no PIB do Peru, apesar de a Colômbia ter recebido fluxos migratórios maiores em relação à sua população", destaca. Deve-se destacar que essas projeções até 2030 partem da premissa de que a migração venezuelana continuará crescendo até atingir 8,4 milhões de pessoas em 2025, o equivalente a mais de 25% da população que a Venezuela tinha em 2015. Isso exigirá que os Estados receptores mantenham as políticas de acolhimento e o apoio aos recém-chegados, com ajuda humanitária e acesso à educação, saúde e serviços básicos. Mas o que esses países podem fazer para maximizar o impacto em seu PIB da chegada de imigrantes venezuelanos? Guajardo recomenda que facilitem a integração dos migrantes no mercado de trabalho formal, concedendo autorizações de trabalho e validando estudos e títulos acadêmicos. "Isso permite que os migrantes encontrem empregos compatíveis com seu nível de educação e, assim, aumentem a produtividade da economia. Também reduziria o custo para os governos de fornecer ajuda humanitária e acesso à educação, saúde e serviços básicos, já que os migrantes poderiam pagar algumas dessas despesas sozinhos e pagariam impostos", diz. "Dessa forma, os custos fiscais incorridos inicialmente seriam mais do que compensados ​​a médio prazo", conclui. - Essa reportagem foi originalmente publicada em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64130969
2023-01-08
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64130969
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O que se sabe sobre operação que prendeu filho de El Chapo e deixou 29 mortos no México
Ela foi realizada na cidade de Culiacán, no Estado de Sinaloa. A operação deixou um rastro de violência: 10 soldados e 19 suspeitos morreram. Outras 35 pessoas ficaram feridas e 21 foram detidas, segundo o governo mexicano. A prisão de "El Ratón", como López é conhecido, desencadeou uma onda de violência comandada por traficantes de drogas que integram um dos cartéis mais poderosos do México. O crime organizado respondeu à operação com tiroteios, bloqueios de estradas e incêndios de veículos. Depois, Ovidio foi transferido para a prisão de segurança máxima de El Altiplano. Fim do Matérias recomendadas O governo afirmou que será mantida a presença de agentes do Ministério da Defesa e da Guarda Nacional na região. Policiais estaduais também ficarão na área "para que não haja prejuízos à população civil". Segundo as autoridades, a operação "agiu com responsabilidade para proteger" os agentes e civis. Nesta reportagem, a BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, contou o que se sabe sobre a operação que prendeu o narcotraficante Ovidio Guzmán López. A operação para capturar o filho de El Chapo começou na madrugada de quinta-feira (5/1) quando agentes da Guarda Nacional, apoiados à distância pelo Exército, identificaram que havia pessoas armadas em caminhonetes no noroeste da cidade. Alguns dos veículos tinham blindagem caseira, recurso normalmente utilizado por grupos do crime organizado, explicou Luis Cresencio Sandoval, secretário de Defesa Nacional do México, em entrevista coletiva à imprensa. Ao detectar essa situação, os agentes cercaram a área para evitar uma possível fuga e abordaram os veículos. "Uma vez que o bloqueio foi estabelecido, as autoridades persuadiram os ocupantes dos veículos a sair para serem revistados. Nesse momento, os criminosos reagiram, atirando nos guardas nacionais", disse Sandoval. Após a troca de tiros, os agentes da Guarda Nacional conseguiram controlar a situação e identificaram Ovidio Guzmán como um dos indivíduos que estavam nos veículos. Ovidio foi preso às 6h20 da manhã, horário local, segundo o Registro Nacional de Detenções do México. Segundo Luis Cresencio Sandoval, ele trazia consigo armas de uso exclusivo do Exército e da Força Aérea mexicanos. "Momentos após a detenção, integrantes de seu grupo criminoso realizaram 19 bloqueios e ataques armados em diferentes pontos da cidade de Culiacán, entre os quais se destacam o Aeroporto Internacional Federal de Culiacán e a base aérea militar número 10", informou o secretário. "Da mesma forma, todos os acessos à cidade de Culiacán foram bloqueados", acrescentou. Ovidio Guzmán foi transferido para a Procuradoria do Crime Organizado na Cidade do México em uma aeronave da Força Aérea Mexicana. "Esta prisão representa um duro golpe para a liderança do cartel de Sinaloa", disse Sandoval. A operação, disse o secretário de Defesa, foi resultado de seis meses de trabalho de vigilância na área de influência do grupo criminoso liderado por Guzmán. Nesta sexta-feira, Sandoval informou que a polícia apreendeu dezenas de armas de fogo de vários calibres, carregadores, cartuchos e equipamentos táticos durante a operação. Dezenas de veículos também foram apreendidos. O filho de El Chapo, de 32 anos, é identificado como o líder do cartel Los Menores (também conhecido como Chapitos), relacionado ao cartel de Sinaloa — que tinha liderança de seu pai até ele ser preso. Ovidio chegou a ser preso em 2019, mas foi rapidamente libertado diante de uma violenta guerra desencadeada por grupos criminosos em Sinaloa. O traficante também era procurado pelos Estados Unidos, que ofereciam até US$ 5 milhões (cerca de R$ 26 milhões) por qualquer pista ou informação que levasse à sua prisão. Segundo o governo americano, Ovidio Guzmán e seu irmão Joaquín ocupam cargos de alto escalão no cartel de Sinaloa e são considerados os responsáveis ​​por supervisionar mais de dez laboratórios de metanfetamina em Sinaloa. "Outras fontes de informação indicam que Ovidio Guzmán López ordenou o assassinato de informantes, de um narcotraficante e de um popular cantor mexicano que se recusou a cantar em seu casamento", diz o Departamento de Estado dos Estados Unidos em seu site. Em 2018, os dois irmãos foram indiciados por um grande júri federal dos Estados Unidos por montar um esquema para distribuir cocaína, metanfetamina e maconha.
2023-01-06
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64193849
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'Acabou. Me libertei!': escritora celebra condenação de tio após relatar abuso sexual em livro
Quando era criança, Belén López Peiró passava as férias de verão com seus tios na cidade de Santa Lucía, uma antiga colônia agrícola no norte da província de Buenos Aires, na Argentina, onde sua mãe havia crescido. Enquanto seus pais, que eram separados, trabalhavam na cidade, ela se divertia com suas primas e amigas. Mas por trás dessas visitas aparentemente idílicas havia uma realidade terrível: desde os 13 anos, seu tio — um policial que era marido da irmã de sua mãe — começou a abusar sexualmente dela. Ela sofreu abusos ao longo de três anos, até que um parente ficou sabendo da situação. López Peiró escreveu sobre essas experiências angustiantes em seu primeiro romance Por que Você Voltava Todo Verão?, publicado em 2018 (o livro foi lançado no Brasil pela Editora Elefante). Fim do Matérias recomendadas Nesta semana, ela anunciou que, após uma batalha judicial de nove anos, seu agressor foi finalmente condenado a dez anos de prisão. "Terminou. É isso. Acabou. C'est fini. Eu me libertei", disse a escritora de 30 anos em uma coluna de opinião publicada na terça-feira (3/1) no jornal espanhol El País. "Depois de nove anos e uma denúncia. Depoimentos, exames psicológicos, idas e vindas a delegacias, promotores, tribunais. Um arquivo: 500 páginas. Dois advogados. Uma promotora. Uma comissão de justiça. Terapia por 15 anos. Metade da minha vida! Minha família inteira dividida em duas. Uma cidade encobrindo o agressor. Sete anos de oficinas de redação. Dois livros publicados (...) Enfim. Finalmente, em 19 de dezembro, chegou a audiência do julgamento. E cinco dias depois, a sentença", escreveu a autora. "Agora eu falo tudo, com todos os nomes que não pude dizer uma vez: Claudio Sarlo, ex-comissário da província de Buenos Aires, tio político, pai de família, abusou sexualmente de mim quando eu era menina", disse ela, citando o crime da sentença. "Abuso sexual agravado por ser o autor do crime tutor e por ter sido cometido contra menor de 18 anos." Em declarações à BBC Mundo (serviço em espanhol da BBC), López Peiró disse que a sentença lhe trouxe "em primeiro lugar, sem dúvida, um alívio", embora tenha dito que o que a tranquilizou ainda mais foi poder escrever a coluna e "localizar todas aquelas emoções em um lugar". "Com a diferença de que, quando escrevi Por que Você Voltava Todo Verão? a palavra fluía, era uma necessidade muito profunda. Era como uma cachoeira arrasadora, mas eu deixava fluir. Nesse caso, a coluna me custou cada palavra, como se fosse a última coisa que tivesse a dizer", revelou. Sua intenção foi de "voltar a escrever para virar a página. Voltar para onde encontrei reparação". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em entrevista à BBC em 2018, quando foi publicado seu primeiro romance, a autora havia dito que passou por três estados durante seu processo de cura: primeiro, reconhecer-se como vítima, depois sair daquele lugar de vítima e, por último, encontrar o empoderamento que lhe permitiu superar a experiência. Ela diz ter conseguido atingir o último estado quando entrou em uma oficina de literatura, onde descobriu "que poderia transformar o abuso em uma obra de arte". López Peiró não só escreveu — cruamente — sobre ser estuprada. Ela também contou como sofreu durante sua longa jornada em busca de reparação e justiça, e sobre como foi questionada por aqueles que deveriam cuidar dela — de familiares a médicos e oficiais de justiça. Ela precisava constantemente explicar por que não havia dito nada antes, por que voltava todo verão e por que estava fazendo tudo isso com sua família. Sua resposta foi contar tudo e tornar visível o que muitos não queriam ver. Em 2021 publicou o seu segundo romance, Onde Não Dou Pé, que fala sobre as dificuldades que as vítimas de abuso sexual infantil enfrentam quando decidem denunciar e iniciar um processo judicial. A autora diz que seus dois romances são "também para que pessoas — para um pai, uma mãe, um irmão, um amigo — possam acompanhar melhor as pessoas que passam por uma situação como esta". Durante o longo processo que levou à condenação de seu tio, López Peiró não fala apenas do apoio do seu núcleo familiar mais próximo. Ele também menciona um ponto de virada importante no caso. "Quando consegui uma advogada feminista que é Luciana Sánchez, ela fez a gente trabalhar no processo judicial de uma forma mais coletiva. De alguma forma ela fez com que a gente envolvesse outras advogadas, outras jornalistas, que fôssemos a associações, para que tudo isso não ficasse só nas minhas costas ou nas costas dela,", explica a autora. Em sua coluna de opinião no jornal El País, López Peiró diz que "não sabia se era necessário ou não escrever isso". Mas que ela fez isso "por todas as que não podiam falar ou denunciar. Por mim". Sua última frase é um anúncio: "A partir de agora me dedico a escrever outras coisas". Perguntada sobre esse projeto futuro, ela revela que está trabalhando em seu terceiro romance. "É muito cedo para antecipar algo, mas acho que agora que posso ficar um pouco mais leve. Vou poder ter uma possibilidade que antes não tinha, que é criar outros mundos. Que minha cabeça, que meu lado emocional tenham espaço suficiente para mergulhar em outros universos possíveis."
2023-01-06
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64189095
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A vida nas colônias fundadas por alemães e austríacos no meio da selva peruana
O pequeno povoado de Pozuzo fica em plena floresta do Peru, mas a mensagem de boas vindas na entrada da cidade está escrita em alemão. "Willkommen", diz o aviso no arco comumente fotografado pelos turistas que chegam ali. Não é o único indicativo de que esse é um lugar peculiar do Peru: Pozuzo tem um bairro separado chamado Prússia, e a arquitetura das casas remete mais à Alemanha ou à Áustria do que a uma região que fica no meio do caminho entre os picos frios dos Andes e a quente espessura da Amazônia peruana. Ali se comem linguiças e saladas de batata; se dança a polca e outras danças típicas europeias. É que, como afirma o aviso na entrada, Pozuzo se gaba de ser "a única colônia austro-alemã do mundo", e essa cultura europeia marca essa região bem no meio do Peru, na província de Oxapampa, que se tornou um dos mais peculiares - e pouco conhecidos - destinos turísticos do país. Fim do Matérias recomendadas Além disso, depois da pandemia de covid-19, a região virou um ímã para forasteiros em busca de tranquilidade e atraídos pela exuberância das paisagens. Para chegar ali é preciso fazer uma viagem de ao menos 12 horas a partir de Lima pela perigosa Rodovia Central, uma via com uma faixa em cada sentido, compartilhada por fileiras de caminhões carregados que rumam lentamente para a cordilheira dos Andes. Entre os obstáculos no caminho está o Ticlio, a 4.818 metros acima do nível do mar, o ponto mais alto da rodovia e onde fica o entroncamento ferroviário mais alto do mundo. "Até hoje não temos uma boa estrada, o que fez com que este lugar permanecesse meio que congelado no tempo por mais de cem anos", diz à BBC Mundo (serviço em espanhol da BBC) Berenice Alas Richle, promotora de turismo de Pozuzo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas se o trajeto parece exigente agora, foi muito mais desafiador para os primeiros colonos europeus que chegaram a Pozuzo, por volta de 1857. Foi Ramón Castilla (1797-1867), presidente do Peru em diferentes momentos do século 19, que quis atrair imigrantes europeus ao país. Castilla valorizava o conhecimento europeu sobre técnicas agrícolas especializadas e queria incentivar a produção em áreas florestais peruanas. Segundo relata Karen Abregú em seu livro Oxapampa, o governo de Castilla firmou com o barão alemão Kuno Damian Schütz von Holzhausen um contrato para criar uma colônia europeia na floresta peruana. O aristocrata alemão conseguiu atrair ao projeto camponeses e artesãos das regiões austríacas Tirol e Vorarlberg e alemãs Renânia, Hesse Nassau, que haviam sofrido com o estrago de uma grave crise econômica da época, acompanhada de conflitos sociais e colheitas ruins. Eles se convenceram de que no distante Peru poderiam ganhar a vida honradamente e em paz. Em 1857, depois de vários adiamentos, um grupo de 304 imigrantes chegou ao porto de El Callao, após uma longa e penosa jornada cruzando o Atlântico até a Terra do Fogo e subindo a costa oeste da América do Sul pelo Pacífico. Já no Peru, se depararam com promessas não cumpridas de ajuda oficial e tiveram que abrir caminho por conta própria pelos Andes e pela selva. Eles sofreram com os rigores de uma terra que lhes era estranha. Muitos adoeceram, outros sofreram com a altitude, e a maioria foi alvo de insetos que nunca haviam visto antes. Armando Schlaefli, descendente dos colonos e fundador de uma casa-museu dedicada à imigração europeia em Oxapampa, disse à BBC que "aqui eles ganharam a vida à base de trabalho e coragem, dedicando-se à criação de gado e à exploração da madeira". A cultura resultante é uma exótica mescla entre as tradições europeias importadas pelos colonos e a realidade imposta pela região que acabariam chamando de lar. Por exemplo, o strudel, típico doce de maçã alemão, ali é comido com plátano (uma fruta irmã da banana), abundante na região. Mas o povoado de Pozuzo, encravado em uma área serrana, não tinha espaço para todos. Assim, em 1891, um grupo de 32 famílias se dispôs a fundar uma nova colônia em um vale fértil ao sul, a 80 km. "O caminho até (onde fica hoje a cidade de) Oxapampa (capital da província de mesmo nome) também foi uma odisseia pela floresta, e eles tiveram que recorrer a alianças com os moradores nativos yanesha para poderem se estabelecer ali", conta Schlaefli. Em Pozuzo, o reconhecimento ao legado dos primeiros colonos se faz presente nas ruas e praças. Uma das principais tem uma réplica do cargueiro Norton, embarcação que trouxe à América do Sul os primeiros imigrantes de Pozuzo. As recordações também sobrevivem entre os habitantes. "Somos peruanos, mas também temos raízes europeias e contamos nossa história com orgulho porque sabemos tudo o que passaram os que se instalaram aqui primeiro", diz Berenice Alas Richle. Ela, como muitos outros jovens, pertence a um dos grupos que mantêm vivas as danças trazidas pelos antepassados e que hoje alegram encontros em restaurantes e festivais como o Oktoberfest, a festa alemã da cerveja que também tem uma edição ali. Tanto ali quanto em Oxapampa, essas tradições também ajudam a alimentar o turismo. Especialmente ativa é a Associação de Descendentes de Colonos Austro-Alemães e Outros de Origem Europeia, cujos membros se reúnem semanalmente para compartilhar comidas típicas e lembranças de família e discutir iniciativas para manter viva as tradições culturais da comunidade em Oxapampa — que, maior e menos isolada que Pozuzo, perdeu parte de suas características originais. Vilma Gustavson Hassinger de Loeschle é uma das integrantes. Ela comanda um restaurante onde, como relata satisfeita, ainda é preparada a carne a lenha, como faziam seus antepassados, e a cerveja é artesanal, de fabricação própria. Sobre o que mais tem orgulho, ela diz: "Nos ensinaram o valor de cada palavra dita. Meu avô cedia terrenos sem assinar contrato porque, para ele, nenhum [papel] valia mais que a sua palavra". E os esforços para atrair visitantes parecem ter sucesso. "Depois da pandemia, o turismo cresceu exponencialmente", conta Juan Carlos La Torre, prefeito de Oxapampa. "Muitos se apaixonam pelo lugar e acabam procurando terrenos para comprar e se instalar aqui. São estrangeiros mas também pessoas que vêm de outros lugares do Peru." O último Censo, de 2017, não abarca o período pós-pandemia nem detecta nenhum aumento expressivo da população, mas todos em Oxapampa falam da chegada de novos vizinhos. O prefeito diz que a frota municipal de caminhões de coleta de lixo já não está dando conta da demanda. O agente imobiliário Max Heidinger confirma que "faz dois anos que Oxapampa está na moda", e há um interesse crescente em morar ali. "O custo de um lote de 1.000 metros construídos pode rondar os 240 mil soles (R$ 335 mil)", diz Heidinger. Embora os preços estejam em alta por causa do aumento da demanda, são cifras bem abaixo das do mercado imobiliário de Lima ou de outras cidades europeias, de onde vêm muitos compradores. Manfred Einsiedler é um dos que recentemente se instalaram em Oxapampa. Sem parentesco com nenhum dos colonos originais, ele é, aos 72 anos, um novo tipo de imigrante alemão. Para chegar à casa de madeira que construiu, com uma ladeira verde e frondosa, com vista para os Andes, é preciso andar bastante por uma via não asfaltada, que só os veículos 4x4 sobem com facilidade. "Na Alemanha eu nunca poderia ter uma casa assim. Ali tenho amigos que pagaram muito mais por um pequeno apartamento de cidade", ele conta à BBC Mundo. "Nem sei quantos metros quadrados tem a minha casa. A vejo mais como um ponto de observação, e o importante para mim é o que a rodeia: uma natureza linda e o maravilhoso clima da região." Para ele também a pandemia trouxe uma espécie de oportunidade catártica. O distanciamento social provocado pela covid-19 fez ruir sua empresa de organização de eventos, e ele decidiu reinventar a vida longe de tudo. Agora, se dedica a aproveitar seu entorno, a cultivar café e abacate, entre outras coisas, apenas com a companhia de um grupo de cachorros que encontrou ali. A mais fiel e barulhenta ele batizou de Kusi — que quer dizer alegria em quéchua, idioma indígena peruano.
2023-01-04
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64134529
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'Pelé é o melhor jogador da história. Não houve, não há e não haverá igual', diz ex-técnico da seleção argentina
Quando saíam do campo e se encontravam no vestiário, após um jogo do time do Santos, o então jogador argentino César Luis Menotti dizia ao amigo Pelé: "Você não é desse planeta. Você não é da Terra. Ninguém é igual. Pelé, você é tão bom, tão bom jogador que chega a ser sobrenatural". O ex-jogador brasileiro sorria. Na época, em 1968, Menotti era reserva do "rei do futebol", morto na última quinta-feira (29), vítima de complicações resultantes de um câncer no colón. Assim que atendeu à ligação da BBC News Brasil para esta reportagem, nesta sexta-feira, Menotti disse: "Estou triste, muito triste. Estou assistindo as reprises de Pelé em campo e penso como ele é mágico, único". Menotti jogou no Santos e no Juventus, de São Paulo, e foi técnico da seleção argentina campeã da Copa do Mundo de 1978. "Por favor, escreva em letras bem grandes: 'Não houve, não há e não haverá nenhum jogador igual a Pelé. Jamais'". Fim do Matérias recomendadas A declaração remete a um tango do poeta e compositor argentino Homero Manzi (1907-1951) chamado Ninguna (Nenhuma) e ainda hoje referência no gênero musical. Para ele, Pelé é incomparável e por isso deve ser excluído das listas de comparações — mesmo quando se fala em Maradona, Neymar ou Messi. "Todos são muito bons jogadores. Mas Pelé é superior a todos. É o melhor jogador da história do futebol. Desde que ele deixou os campos, ninguém chegou perto do que ele fez." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para Menotti, se Pelé estivesse jogando com as regras atuais do mundo do futebol teria feito "5.000" e "não mil gols". O argentino disse que sua admiração por Pelé é infinita e por isso chegou a duvidar quando alguém lhe disse que a doença do ex-atleta brasileiro seria incurável. "Quando eu soube da doença dele, pensei que Pelé era imbatível e superaria qualquer problema de saúde. Ninguém tem o físico dele. Ele poderia ter sido campeão do mundo até de boxe, de atletismo. Tecnicamente ele é o melhor, é superdotado. Ele acrescenta às suas condições físicas a técnica futebolística. Ele tinha uma visão completa do jogo. Estava sempre à frente. Perfeito", disse. Para Menotti, os dribles, que podiam ser com o pé esquerdo ou pé direito, o jogo em equipe, a velocidade e os freios de Pelé justificam o adjetivo que usou várias vezes na entrevista: "único". O diferencial de Pelé incluía também o fato de o "rei" jogar cada partida como se fosse uma decisão, com toda a sua garra e talento. Diretor geral das seleções nacionais na Associação de Futebol Argentino (AFA) e ex-comentarista esportivo, Menotti, de 83 anos, cresceu em um ambiente ligado à música e chegou a estudar piano durante dois anos na infância. Talvez por isso suas afirmações entrelaçam o futebol e a cultura musical. Na entrevista, em uma das poucas frases em que se referiu a Pelé no passado, ele o comparou com "imortais" da música clássica. "Pelé era como Beethoven ou Bach. Esses personagens grandiosos que marcam para sempre", disse, em uma das poucas frases em que se referiu ao amigo com o verbo no passado. Acima do piano que tem em sua casa em Buenos Aires, Menotti mantém há anos uma foto que tirou com Pelé, quando os dois já estavam longe dos campos e mantinham uma sólida amizade. Uma vez, recordou Menotti, quando passavam férias juntos no balneário uruguaio de Punta del Este, o argentino comentou com Pelé que um amigo tinha uma quadra de padel. Pelé ficou curioso pelo jogo e queria experimentá-lo. "Me disse: 'Vamos lá, César. Quero ver como é esse jogo'. Resultado: ele não tinha pego jamais numa raquete de padel e foi o melhor de todos. Muito melhor. É como te digo, único", afirmou Menotti. Por terem representado uma mesma marca internacional de chuteiras, os dois ex-atletas realizaram várias viagens internacionais juntos para a Alemanha e para a Itália, entre outros países. O tempo que compartilharam longe dos campos fortaleceu ainda mais a amizade, que deixava de lado as rixas costumeiras do futebol entre o Brasil e a Argentina. "Com a gente isso não existia. E eu sempre fui admirador do futebol brasileiro", disse Menotti. Quando Pelé jogava no New York Cosmos, nos Estados Unidos, nos anos 1970, foi barrado em uma discoteca badalada de Nova York por ser negro, contou Menotti. "Éramos vários atletas do futebol. Entramos todos e, na hora de Pelé entrar, não deixaram. Porque era negro. E fizemos um escândalo. E [Ramón] Mifflin, jogador peruano que falava muito bem inglês, protestou, argumentou e Pelé entrou. E quando Pelé entrou, ele foi reconhecido e rodeado pelos fãs e pelas modelos e gente famosa. Ele era o mais famoso de todos que estavam lá dentro." Pelé era saudável e com uma energia e físico jovens. Fisicamente, ele era jovem. E eu não podia acreditar que ele faleceria", disse o ex-jogador e ex-técnico argentino. Na imprensa argentina, a morte do "rei do futebol" foi lamentada. "Pelé, rei e lenda do futebol", publicou o Clarín em sua manchete desta sexta-feira. Já o La Nación informou, também com amplo destaque na primeira página: "Pelé, o rei inesquecível". Portais, rádios e emissoras de televisão informaram sobre a morte do "símbolo supremo" do futebol. Menotti é reconhecido na Argentina por ter jogado nos clubes da sua terra natal, Rosario, na província de Santa Fé, que é a mesma de Messi. E também por ter sido o técnico da seleção de 1978 e defendido o nome de Lionel Scaloni como técnico da seleção argentina que venceu a Copa do Mundo do Catar de 2022. Ao ser perguntado sobre o fato de a seleção argentina ter sido campeã em 1978 durante a ditadura militar (1976-1985), ele respondeu que o futebol é "um fato cultural" que pertence ao povo e que a política não deve entrar nesse jogo. E que é uma "estupidez" achar que os ditadores se envolveram na Copa. Ele lembrou que a seleção brasileira também ganhou a Copa do Mundo de 1970, em plena ditadura no Brasil. "O que os jogadores têm a ver com isso? O que Pelé tem a ver com isso? Os jogadores jogam para seu público, para as pessoas", disse. Menotti, que aborda o assunto no livro Fútbol sin trampa ("Futebol sem Armadilhas, em tradução livre). "Uma bola pode fazer feliz a grandes grupos de crianças. E por isso os grandes ídolos do futebol devem ser respeitados. Quem, aos 15 anos de idade, não gostaria de ser Pelé?", disse. Ele afirma que não era uma tarefa fácil ser o rei do futebol como Pelé. "Se Pelé tem uma namorada, diziam que ele tinha 15 [namoradas]. E muitas namoradas eram mentira. Uma vez eu disse a ele: se você quer ser feliz vai precisar deixar de ser Pelé. Falar de futebol e pronto, preservando sua vida pessoal". Para Menotti, aquele time formado por Gerson, Rivelino, Tostão, Jairzinho, Clodoaldo e Pelé, entre outros, que conquistou a Copa do Mundo de 1970, mostrou a grandeza do futebol brasileiro. "Aquela seleção também foi única. E Pelé se destacava também entre eles, excelentes jogadores", disse.
2022-12-30
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64131483
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Se latinos nos EUA fossem um país, seriam 5ª economia do mundo — e outros dados que mostram seu peso econômico
Atualmente, um em cada cinco americanos é de origem latina, segundo o Censo dos Estados Unidos. Em 2060, espera-se que os latinos sejam um em cada quatro, totalizando 119 milhões. Não há dúvidas, portanto, de que essa comunidade desempenha um papel fundamental na economia da maior potência mundial. E os números não mentem. Por exemplo: os latinos nos EUA injetam US$ 2,8 trilhões (cerca de R$ 15 trilhões) na economia por ano, o equivalente à soma dos PIBs (Produto Interno Bruto, ou a soma de bens e serviços produzidos em um país) do Brasil e do México. "Se fosse um país independente, seria a quinta maior economia do mundo, com um Produto Interno Bruto (PIB) maior que o do Reino Unido, Índia ou França", diz Sol Trujillo, cofundador e presidente do conselho do Latino Donor Collaborative (LDC), uma organização independente e autofinanciada cujo objetivo é destacar o papel socioeconômico desse grupo étnico. Fim do Matérias recomendadas Essa é a conclusão a que chegou um relatório recentemente publicado que sua entidade encarregou a especialistas de duas universidades californianas. E trata-se de um número semelhante ao da Câmara de Comércio Hispânica dos Estados Unidos (USHCC, na sigla em inglês), outra organização com sede em Washington, e de consultorias como McKinsey ou o think tank Pew Research Center. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O PIB é um indicador básico da economia: é usado para indicar quanta riqueza um país gera e o tamanho e a composição de sua economia. Ele mede o valor monetário de todos os bens e serviços finais (aqueles adquiridos pelo usuário final) produzidos dentro de um país, por nacionais e estrangeiros. Mas como fazer esse cálculo quando falamos de um determinado grupo populacional? "Não foi uma tarefa fácil", disse à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC, Dan Hamilton, diretor de Economia do Centro de Pesquisas e Previsões da Universidade Luterana da Califórnia e principal autor do 2022 LDC U.S. Latino GDP Report, relatório mencionado no início desta reportagem. "Os dados usados para medir o PIB geralmente não são divididos por etnia ou raça, então tivemos que cruzá-los com dados oficiais do governo americano por etnia", explica. "Temos que analisar grandes volumes de dados, criamos mapas a partir de conjuntos de dados, que cruzamos com outros conjuntos de dados e assim por diante, até que possamos calcular a parcela correspondente dos vários componentes do PIB para os latinos." E assim chegou-se à estimativa de que o "PIB latino" em 2020 foi de US$ 2,8 trilhões, enquanto o de 2015 foi de US$ 2,1 trilhões e o de 2010 foi de US$ 1,7 trilhão. "Se pensarmos no PIB de um país, só os EUA, a China, o Japão e a Alemanha tiveram um PIB superior em 2020", destaca o economista. O estudo constatou ainda que o "PIB latino" contraiu durante a pandemia, mas menos que o de outros grupos étnicos, como brancos não-latinos: 0,8%, contra 4,4%. Mas não foi a única conclusão que eles tiraram ao cruzar os dados. Os especialistas também constataram que, se considerássemos o "PIB latino" como um país, foi o terceiro que mais cresceu na última década, atrás apenas da China e da Índia. "Mas o sucesso econômico dos latinos está de muitas maneiras ligado ao sucesso econômico dos EUA, e vice-versa. Eles estão inevitavelmente interligados", diz Mark Hugo López, diretor de Pesquisa sobre Raça e Etnia do think tank Pew Research Center. López frisa, como todos os especialistas entrevistados para esta reportagem, que o impacto crescente desse grupo na economia se deve, em parte, ao seu grande crescimento populacional. "Não há nada de inesperado ou mágico nisso: os latinos são uma população em rápido crescimento e, como resultado, seu impacto econômico também está crescendo rapidamente." Na última década, a população latina nos Estados Unidos aumentou 19% — de 50,5 milhões em 2010 para 62,5 milhões no ano passado —, enquanto a do país como um todo aumentou apenas 7%. Além disso, os hispânicos tiveram um papel importante no crescimento populacional dos Estados Unidos naquele período: a população americana cresceu em 23,1 milhões, 52% deles latinos; e especificamente entre 2019 e 2020, eles representaram 65% do aumento da população do país. "Os latinos também são uma população jovem, o que contribui para que representem uma proporção maior da força de trabalho do país", diz à BBC News Mundo Lucy Pérez, sócia da consultoria McKinsey e coautora do relatório The Economic State of Latinos in the US: Determined to Thrive ("A situação econômica dos latinos nos EUA: determinados a prosperar", em tradução livre), publicado em novembro. Hoje, 25% dos jovens americanos são latinos, segundo dados do Pew Research Center. Da mesma forma, cada vez mais pessoas desse grupo têm ensino superior. "O crescimento acadêmico é de cinco pontos percentuais na última década, um crescimento muito alto", assinala Pérez. "Isso lhes dá acesso a empregos melhores, com salários mais altos e mais benefícios, e tudo isso ajuda a acelerar o crescimento econômico". A perspectiva para os latinos no mercado de trabalho também vem mudando com as várias ondas de imigração e o aumento dos nascidos nos EUA (de 59,9% em 2000 para 67,3% em 2019). E, ao longo de uma década, os latinos que trabalham em negócios, finanças ou como chefes aumentaram de 6,7% para 8%. O poder aquisitivo dos latinos também está aumentando e como consumidores já constituem um mercado de US$ 1,8 trilhão. "Os latinos nos EUA representam um mercado consumidor maior do que a economia total de nações como Canadá e Coreia do Sul", diz o relatório do LDC. Mesmo assim, seus gastos não condizem com o percentual da população que representam. Em parte, porque há uma diferença salarial significativa em relação, por exemplo, a trabalhadores brancos não-latinos, observa Lucy Pérez, da McKinsey. "Eles são 19% da população, mas gastam proporcionalmente a 13%. Se essa lacuna fosse superada, eles poderiam contribuir com até US$ 550 bilhões a mais para a economia." Outro indicador do peso dessa comunidade na economia americana, segundo concordam todos os entrevistados, é o aumento do número de latinos com casa própria. A taxa está crescendo em um ritmo recorde, impulsionada principalmente por jovens compradores, e está mudando o cenário imobiliário em muitas partes do país. Segundo dados mais recentes da Associação Nacional de Profissionais Imobiliários Hispânicos (NAHREP, na sigla em inglês), em 2021, 48,4% dos latinos possuíam uma casa, em comparação com 47,5% em 2019. "Ter uma casa própria, em vez de alugar, é importante porque permite começar a gerar riqueza familiar, além da renda", diz Hamilton. "É um aspecto importante da vitalidade econômica de longo prazo de uma família." Além disso, "os latinos são o grupo mais empreendedor", diz Pérez, da McKinsey. "Um em cada 200 latinos abre um negócio todo mês. É muito rápido." Existem 4,7 milhões de empresas no país pertencentes a latinos. Elas geram mais de US$ 800 bilhões por ano, segundo os números mais recentes da Câmara Hispânica de Comércio. No entanto, a falta de acesso ao crédito bancário continua a ser um dos maiores entraves para os empresários latinos, diz à BBC News Mundo o presidente e diretor dessa entidade, Ramiro Cavazos. A mesma reflexão consta do relatório da McKinsey, que calcula que, se as empresas latinas tivessem acesso ao capital e aumentassem sua representatividade em setores de crescimento, contribuiriam com US$ 2,3 trilhões adicionais em receita para a economia americana. Também criariam 750 mil novas empresas, o que geraria mais de 6 milhões de empregos, acrescenta. Seja como for, todos esses cálculos são baseados naqueles que se autoidentificam como latinos ou hispânicos, e isso inclui aqueles nascidos nos Estados Unidos de ascendência latina e imigrantes, tanto aqueles com status legal quanto aqueles em situação irregular. "Pode haver uma certa população que não estamos contando, que não está nas estatísticas ou que não se identifica como latina apesar de sua ascendência", reconhece Mark Hugo López, do Pew. "Nesse caso, os números seriam ainda maiores", acrescenta. "Se houver algum viés, algum erro de medição, é porque estamos falando de números muito conservadores", concorda Hamilton.
2022-12-29
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64111432
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Por que governador do Estado mais rico da Bolívia foi preso
O Ministério Público da Bolívia confirmou nesta quarta-feira (28/12) a prisão do político de direita Luis Fernando Camacho, governador do departamento de Santa Cruz, o mais rico do país, desde 2021 e forte opositor do atual presidente, Luis Arce. Camacho foi transferido para a capital do país, La Paz, após sua prisão em Santa Cruz de la Sierra. O governador está sendo investigado por seu suposto envolvimento em uma suposta conspiração durante os protestos de 2019 que forçaram o então presidente Evo Morales a renunciar. Morales disse no Twitter que, depois de três anos, Camacho finalmente "responderá pelo golpe que levou a roubos, perseguições, prisões e massacres do governo de fato". O ex-presidente é considerado um mentor do atual presidente Arce, ambos pertencem ao partido de esquerda MAS, enquanto Camacho lidera a aliança de oposição de direita Creemos. Fim do Matérias recomendadas A equipe do governador Camacho divulgou um comunicado dizendo que as redes sociais serão usadas para fornecer "informações oficiais" e passou a usar a hashtag #liberenaCamacho. A imprensa local noticiou protestos em Santa Cruz pela prisão de Camacho, que geraram confrontos entre a polícia e os manifestantes. Os apoiadores de Camacho descreveram a prisão como um sequestro; enquanto isso, o procurador-geral boliviano afirmou que o detido sabia das acusações contra ele há várias semanas, segundo informações da imprensa local. O Departamento de Santa Cruz, onde fica a cidade de Santa Cruz de la Sierra, a maior e populosa da Bolívia, é o motor econômico do país. Em 2020, respondeu por cerca de 30% do PIB boliviano (Produto Interno Bruto, ou soma de bens e serviços produzidos no país). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em novembro daquele ano, o então presidente Evo Morales passou de se declarar vencedor das eleições a denunciar um golpe e renunciar à presidência boliviana em menos de três semanas. O país enfrentava uma profunda crise política que teve seu estopim em 20 de outubro nas eleições presidenciais, nas quais Morales esperava ser reeleito pela terceira vez. Naquela noite, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) suspendeu inesperadamente a contagem rápida com 83% apurados e com tendência que apontava para um segundo turno entre o ex-presidente boliviano e o candidato da oposição, Carlos Mesa. No dia seguinte, a apuração, chamada de Transmissão Rápida de Resultados Preliminares (TREP), foi reativada com 95% das urnas apuradas e com Morales vencendo no primeiro turno por estreita margem. As suspeitas levantadas pelas estranhas movimentações do TSE levaram a oposição a alegar "fraude flagrante". Até as missões de observação da Organização dos Estados Americanos (OEA) e da União Europeia pediram por um segundo turno. Mas Morales insistiu que havia vencido a eleição e, em resposta aos protestos da oposição, convocou seus partidários a "defender a democracia" nas ruas e impedir um "golpe". Claro, ele também aceitou que a OEA auditasse o escrutínio. A OEA determinou que era estatisticamente improvável que Morales tivesse vencido pela margem de 10% necessária para evitar um segundo turno nas eleições. A organização também garantiu que encontrou registros físicos com alterações e assinaturas falsificadas. Em um relatório de 13 páginas, a OEA apontou que em muitos casos a cadeia de custódia dos registros não foi respeitada e que houve manipulação de dados. Morales respondeu com uma declaração à imprensa na qual, sem mencionar a OEA e sem indicar a data, convocou novas eleições. Mas poucas horas depois, e com a pressão das Forças Armadas contra ele, renunciou e deixou o país. Jeanine Áñez, advogada e militante do então partido de oposição Plan Progreso para Bolivia Convergencia Nacional, assumiu a presidência interina. Um ano depois, eleições foram convocadas e o atual presidente, Luis Arce, eleito. Em junho deste ano, Áñez foi condenada a 10 anos de prisão após ser considerada culpada pelos crimes de "descumprimento de deveres" e "resoluções contrárias à Constituição".
2022-12-29
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64116072
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Como 2022 mostrou a importância do 'centro' político em países das Américas
Esqueça por um momento da tão falada polarização dos últimos tempos. Este ano, 2022, mostrou a importância do centro na política em boa parte da América. A mensagem veio das urnas em países onde o ambiente político ficou mais acirrado nos últimos tempos. Nas eleições realizadas este ano em duas das três maiores democracias latino-americanas, Brasil e a Colômbia, eleitores e políticos de centro tiveram papéis decisivos. Embora candidatos de esquerda como Luiz Inácio Lula da Silva e Gustavo Petro tenham triunfado em ambos os países, eles o fizeram após apelar para a moderação contra rivais considerados mais ao extremo do espectro político. No Chile, foi amplamente rejeitada uma mudança na Constituição que, segundo a análise de especialistas, era radical em relação às posições políticas mais moderadas dominantes no eleitorado do país. Mesmo nas eleições de meio de mandato dos EUA em novembro, em Estados decisivos, os políticos moderados venceram candidatos controversos e extremistas apoiados pelo ex-presidente Donald Trump. Fim do Matérias recomendadas "Há um desencanto com a política tradicional, mas ao mesmo tempo, as pessoas não estão dispostas a ir a extremos", avalia Michael Shifter, ex-presidente do Diálogo Interamericano, um centro de pesquisas baseado em Washington (EUA). Pesquisas realizadas na América Latina mostram que de 40% a 50% da população na região têm maior afinidade com o centro do espectro político, enquanto o restante se inclina para a esquerda ou para a direita. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Este panorama permaneceu inalterado, apesar do colapso nos últimos anos de partidos e candidaturas de centro em vários países. "A população está no centro, mas não encontra partidos políticos que a representem", observa Shifter, também professor de estudos latino-americanos da Universidade de Georgetown. "No Brasil, na Colômbia e no Chile, as pessoas não se identificam mais com os partidos tradicionais de centro-esquerda ou centro-direita." Diante desse fenômeno, Lula apostou em formar alianças além de seu Partido dos Trabalhadores (PT,), que incluiu a escolha de seu ex-rival de centro-direita Geraldo Alckmin (PSB) como candidato à vice-presidência. No segundo turno, em outubro, Lula recebeu o apoio de Simone Tebet (MDB) e do ex-presidente tucano Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que via no presidente Jair Bolsonaro (PL) uma ameaça à democracia. Com o apoio de eleitores e políticos identificados como centristas, Lula derrotou Bolsonaro por uma pequena diferença (50,9% contra 49,1%) e se prepara para voltar à presidência em 1º de janeiro. "Lula nunca foi um radical no sentido estrito do termo. Ele foi e é um desatador de nós", disse o ex-presidente uruguaio José Mujica à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) na noite em que seu amigo foi reeleito presidente do Brasil. Na Colômbia, o ex-guerrilheiro e economista Gustavo Petro se tornou o primeiro presidente de esquerda da história do país. Foi a sua terceira tentativa de se eleger ao cargo, e a vitória veio quatro anos depois de expressivas derrotas nas eleições anteriores. Para isso, Petro também mirou o centro: ele moderou seu discurso, formou uma coalizão com forças diversas, garantiu que evitaria o destino da vizinha Venezuela (chegando a associar o presidente venezuelano Nicolás Maduro a uma "política da morte") e antecipou que nomearia o centrista José Antonio Ocampo como ministro da Fazenda. Assim, o ex-prefeito de Bogotá conseguiu juntar mais 2,7 milhões de votos em relação ao primeiro turno, derrotando o direitista Rodolfo Hernández — que muitos viam como imprevisível e menos preparado para governar. São histórias parecidas que se repetem com frequência na região desde que vários países resgataram a democracia há cerca de 35 anos. "Foram pouco mais de 100 eleições desde a transição (de regimes autoritários para democracias) na América Latina. Se olharmos para todas, percebemos que na realidade tanto a direita quanto a esquerda, que são as que polarizam e conduzem as pautas, sempre precisaram do centro político para serem eleitas", diz Marta Lagos, diretora do centro de pesquisas Latinobarômetro. "Como eles se tornaram menos radicais, tiveram a anuência do centro." Nos últimos anos, a crise de representação abriu espaço para a ascensão ao poder de outsiders — pessoas com pouca ou nenhuma experiência na política. Isso ainda ficou evidente em outra eleição realizada este ano no continente. Na Costa Rica, o pouco conhecido economista Rodrigo Chaves foi eleito presidente em abril com um discurso anti-establishment. O cenário em toda a região é propício para o surgimento de populistas "disfarçados de centristas e moderados", alerta Lagos, para quem o colapso dos sistemas partidários deixou o eleitorado mais volátil — e inclusive mais difícil de ser captado por pesquisas de opinião. "Antes era possível identificar de que lado estava o centro. Agora, isso não acontece mais porque o centro não busca uma ideologia ou pauta de valores, mas sim a solução de problemas", diz a analista. E a paciência dos eleitores com seus governantes também parece ter diminuído. Em 2022, a regra na América Latina continuou sendo a alternância de poder. Nas últimas 14 eleições presidenciais livres realizadas na região desde 2019, o voto mudou os partidos no poder. Por ora, isso produziu uma onda de vitórias de tendências esquerdistas na região, mas a durabilidade desta tendência é incerta. A imprevisibilidade do eleitorado latino-americano se refletiu no Chile em setembro, quando 62% dos eleitores rejeitaram o texto de uma nova Constituição apoiado pelo presidente Gabriel Boric, esquerdista que assumiu o cargo apenas seis meses antes. Portanto, houve muitos eleitores de Boric que se opuseram às propostas de mudança na Constituição e sentiram que elas "não eram para todos e haviam ultrapassado limites", segundo analisa Lagos. Em seguida, Boric anunciou mudanças no seu governo, com maior participação da centro-esquerda tradicional. O presidente chileno pediu a abertura de outro processo constituinte no Congresso, onde já há um acordo básico aceito por 14 partidos. O objetivo é realizar um novo plebiscito sobre mudanças na Constituição em novembro de 2023. Para o próximo ano, estão marcadas eleições presidenciais em três países da região: Paraguai (abril), Guatemala (junho) e Argentina (outubro). As perguntas já estão surgindo: os triunfos da esquerda na região se repetirão nesses lugares, ou haverá uma nova guinada à direita? Independente do lado vitorioso, o "centro" deve estar por perto como fiador.
2022-12-28
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64105813
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Muito além do chester: quais são os pratos tradicionais de Natal dos nossos vizinhos latino-americanos
Este texto foi originalmente publicado em dezembro de 2021 e republicado após atualização. Quando se fala em ceia de Natal no Brasil, o mais comum é pensar no peru, chester, tender — e na discussão sobre se pratos como o arroz e a farofa devem ou não levar uva-passa Mas o que se come nesta época em outros países da América Latina e de onde vem essa tradição? Alguns dos exemplos dos pratos típicos das festas de fim de ano são romeritos no México, vitel toné na Argentina, pão de presunto na Venezuela. A BBC News Mundo (serviço de notícias em espanhol da BBC) perguntou aos leitores, no início de dezembro de 2021, quais os pratos e bebidas tradicionais de seus países. Fim do Matérias recomendadas As respostas foram variadas e deliciosas. Também houve muitas coincidências, como suspeitávamos: carne de porco e tamales abundam nos cardápios. Mas de onde vêm essas tradições? A BBC News Mundo ouviu quatro historiadores gastronômicos da região. Romeritos, pozole, peru, porco, tamales, bacalhau... e não se esqueça do ponche de tequila e da salada de maçã. Os leitores da BBC News Mundo fizeram uma longa lista das receitas de Natal do México. As evidências mostram que é muito diversificada e varia de acordo com a região do país de que estamos falando. No entanto, duas refeições se repetem em quase todo o território: peru e porco, principalmente o pernil marinado e recheado. Na área central do México é onde o menu de Natal parece ser mais extenso. Existem os romeritos, que pertencem ao grupo dos quelites — que seriam erva comestível e não devem ser confundidos com o tempero de alecrim. O prato é uma caçarola que contém romeritos, toupeira e pó de camarão seco. "Aparentemente, os romeritos são consumidos desde os tempos pré-hispânicos", diz Yolanda García González, doutora em História e especialista em alimentação dos séculos 16 e 17 no México. No centro do país também se come bacalhau a la vizcaína (molho típico da região basca espanhola), embora com intervenção mexicana. "É bacalhau a la vizcaína mexicanizado. Aqui adicionamos batatas, azeitonas, alcaparras, amêndoas, dependendo também da região onde o preparamos", diz García González à BBC News Mundo. E por que bacalhau? "Essa comida entra pelo golfo, por Veracruz, onde chega o carregamento de bacalhau e se distribui por todo o território. Nos bares e cantinas da Cidade do México é comum encontrar bolinhos de bacalhau nesta época", diz. A historiadora explica que o cardápio natalino no México está profundamente ligado à chegada dos costumes espanhóis e, principalmente, ao que a religião ditava sobre o que comer ou não comer. "Produtos como pernil de porco e cortes de vaca são encontrados nos livros de registros de despesas dos conventos do século 16, principalmente nas festas de dezembro", diz García González, que é diretora do Cocina, um site que aborda as origens da culinária mexicana na história, arte e ciência. "Tamales e porco assado não faltam em Honduras", escreveu um leitor no Instagram. "Pão com peru em El Salvador", publicou outro. "Na Costa Rica, costeletas de porco e tamales", disse um terceiro. Com nuances em cada um, os ingredientes do cardápio natalino da Guatemala, Honduras, El Salvador, Nicarágua, Costa Rica, Panamá, Cuba, República Dominicana e Porto Rico tendem a coincidir. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Os pratos se repetem porque os ingredientes são os mesmos. O que muda é a forma de prepará-los e os nomes de acordo com as culturas indígenas, sua língua e quem povoou após a conquista, como o caso africano", explica Cruz Miguel. Ortiz Cuadra, historiador portorriquenho e autor de vários livros e ensaios sobre a história da alimentação no Caribe. Entre esses ingredientes comuns estão banana, arroz e carne de porco. Ortiz Cuadra confirma que o porco predomina no cardápio natalino dos países latino-americanos devido aos espanhóis — e precisamente o primeiro a chegar: Cristóvão Colombo. "Os primeiros porcos são trazidos por Cristóvão Colombo em 1493, em sua segunda viagem. Ele os traz da ilha de La Gomera, nas Ilhas Canárias. Estrategicamente traz oito porcas prenhas. Essa era uma tática dos conquistadores europeus para reproduzir os animais assim que chegavam aqui", detalha Ortiz Cuadra, que é professor da Universidade de Porto Rico. Para o espanhol daquela época, o porco era muito significativo porque em sua visão seu consumo estimulava o sangue e tinha um grande valor nutricional. Mas também era um símbolo religioso: quem comia carne de porco era cristão e diferia dos muçulmanos e judeus que eram fortemente perseguidos na época. O animal começa a se reproduzir no Caribe com muita facilidade. "Os porcos se movem por todo o Caribe e são pratos de Natal consagrados e muito fixos", diz Ortiz Cuadra à BBC News Mundo. Embora o porco tenha começado a dominar o cardápio, não se abatia um animal todos os dias. Comer um porco inteiro era para datas especiais, como o Natal. O historiador diz que é provável que a partir dessa época tenha surgido o ditado "lo tienen como lechoncito para Navidad", o que significa que estão criando e engordando o porco para abatê-lo. Outro ingrediente que não pode faltar no cardápio de Natal caribenho é o arroz. "Eu os chamo de arroz composto porque têm vários ingredientes que variam de acordo com o país", diz Ortiz Cuadra. "Na ceia de Natal em Porto Rico sempre haverá arroz com feijão bóer e porco", afirma. Curiosamente, o feijão bóer é uma leguminosa originária da Índia que chegou à África através do comércio português no século 16 e posteriormente foi transferida para a América pelos escravos. O arroz aparece no Caribe pelos espanhóis, e por sua vez chega à Península Ibérica pelos árabes. Segundo os leitores da BBC News Mundo, esse prato também é comido durante o Natal no Panamá. Um prato típico de Natal que nossos seguidores venezuelanos destacaram é o Hallacas. É uma massa de fubá temperada com caldo de galinha e colorida com colorau. Pode ser recheada com carne de vaca, porco ou frango. Tudo isso embrulhado em folha de bananeira. Segundo o professor Ortiz Cuadra, esse prato também é encontrado em Porto Rico e na República Dominicana, mas com outro nome e variações nos ingredientes. No caso dominicano são chamados de bolos de folha e, no portorriquenho, simplesmente bolos. E também no cardápio natalino de muitos países da região estão os tamales. "Os tamales envoltos em palha de milho são originários da Mesoamérica. Mas os índios do Caribe também usavam o milho moído para embrulhar e fervê-lo, como em Porto Rico são chamados de guanimes", diz Ortiz Cuadra. E alguns países até têm tamales com nome próprio, como nacatamales da Nicarágua, que podem ser feitos com carne, verduras e arroz embrulhado em folhas de bananeira. Outro prato que não pode faltar na mesa venezuelana é o pão de presunto. Como o próprio nome indica, é um pão com presunto, toucinho fumado, passas e azeitonas verdes. Segundo o jornalista gastronômico venezuelano Miro Popié, a receita foi inventada em 1905 em uma padaria de Caracas e sua aceitação foi imediata. Nossos leitores da Colômbia deixaram vários comentários na chamada sobre as comidas típicas de Natal. "Bolinhos, bolinhos, bolinhos e bolinhos", escreveu uma leitora. Outros colombianos listaram natilla, hojuelas ou hojaldras (uma massa frita polvilhada com açúcar ou limão) e arroz doce. Ah! "e muito aguardente", escreveu um leitor. "Os pratos típicos da Colômbia são produtos mestiços", diz Cecilia Restrepo, pesquisadora da Academia Colombiana de Gastronomia. E os bolinhos colombianos são um exemplo claro disso, pois se trata de uma massa de milho — ingrediente originário da América — com o queijo que foi trazido pelos espanhóis. E depois é adicionado xarope de açúcar. Segundo a especialista em história da alimentação, na maioria dos casos, a origem dos pratos não é contada nos documentos históricos. "Mas há muitos alimentos espanhóis que têm influência árabe e que chegaram aqui, como esses bolinhos ou almojábanas", que é um pãozinho doce, acrescenta. Restrepo cita também outro doce natalino muito importante que se consome em Popayán, no Vale do Cauca, que se chama desamargado e é preparado com cascas de limão e xarope. E do lado salgado, na mesa do natal colombiano estão tamales — com ingredientes variados dependendo da região —, ajiaco — um ensopado feito com carne, batata, cebola e legumes — e empanadas. Alguns leitores do Peru nos contaram que no Natal costuma-se comer peru, porco, tamales e panetone — o famoso pão doce recheado com passas e frutas cristalizadas, embora existam versões com chocolate. Este último — muito conhecido pelos brasileiros — também é muito comum no Equador. Lá também nos contaram sobre os pristiños, uma massa frita e doce. No Paraguai, o porco se repete como o cardápio estrela do Natal, acompanhado de sopa paraguaia ou um chipá (espécie de biscoito de polvinho) e com uma cidra bem gelada. E na Bolívia você come picanha, leitão, peru e bolinhos fritos com uma xícara de chocolate. No Cone Sul, os cardápios de Natal são compostos por carnes assadas e pratos agridoces. "O churrasco, para qualquer tipo de festa, é o que se come mais no Chile", escreveu um leitor da BBC News Mundo no Instagram. Outro nos contou sobre "rabo de macaco", bebida alcoólica feita com leite, pisco ou conhaque. Na Argentina e no Uruguai também existe o vitel toné, carne bovina coberta com molho de peixe. "Vitel toné é como dizemos no Río de La Plata, mas é vitello tonnato em italiano. Vitello é vaca e Tonnato é 'atum'. E obviamente vem da imigração italiana", detalha o antropólogo uruguaio especializado em alimentação Gustavo Laborde. "É o único prato em que os crioulos do sul aceitam misturar carne de vaca e peixe. Em nenhuma outra ocasião aceitaríamos comer essa mistura", analisa. Também aparece no cardápio dos países do sul o leitão acompanhado da chamada salada russa — que contém batata, cenoura e ervilha, tudo misturado com maionese. Também existe uma tradição de comer cordeiro assado. Mas Laborde afirma que as combinações agridoces se destacam nas festas de final de ano, como o carré de porco acompanhado de purê de maçã ou a entrada de presunto cru com melão. "O presunto com melão é um prato de origem medieval e era receita médica. Eles entendiam que a fruta se decompunha rapidamente no corpo, então para equilibrar era preciso acrescentar algo seco e frio que era o presunto ", descreve Laborde. Mas todos os especialistas concordam em uma coisa: há muita comida no cardápio de Natal. "Abundância é prosperidade. Gasta-se para comer ricamente e para que se possa receber o ano inteiro", diz a historiadora mexicana Yolanda García González. "As festas são particulares do ponto de vista antropológico porque emergem elementos do passado. Tanto o champanhe quanto o açúcar, que eram produtos de luxo na antiguidade, ainda estão associados a essas comemorações", analisa Laborde. "Talvez não haja tantos preparos sofisticados, mas são abundantes", acrescenta.
2022-12-24
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59780124
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Fifa investigará 'acesso indevido' do chef do 'bife de ouro' e outros ao campo da final da Copa
A Fifa abriu uma investigação para apurar como o chef-celebridade Salt Bae e outras pessoas tiveram acesso ao campo após a final da Copa do Mundo do Catar disputada entre Argentina e França. O chef turco, cujo nome verdadeiro é Nusret Gokce, foi fotografado segurando e beijando a taça da Copa enquanto comemorava com jogadores da Argentina o título de campeã mundial. Segundo as regras da Fifa, apenas um grupo seleto de pessoas, entre elas os jogadores campeões do torneio, podem tocar a taça. Em um comunicado à BBC Sport, um porta-voz da Fifa disse que "após uma revisão, Fifa vem apurando como alguns indivíduos obtiveram acesso ao campo após a cerimônia de encerramento no estádio Lusail em 18 de dezembro". "Medidas apropriadas internas serão tomadas." Salt Bae é dono de uma rede de churrascarias e se tornou famoso após sua técnica de preparar e salgar a carne viralizou na internet em 2017. Fim do Matérias recomendadas Grandes astros do futebol, incluindo Lionel Messi, Cristiano Ronaldo e David Beckham, são clientes de Salt Bae. Em novembro, durante a Copa do Mundo, Salt Bae postou uma foto ao lado do presidente da Fifa, Gianni Infantino, e depois apareceu junto aos astros brasileiros Ronaldo, Roberto Carlos e Cafu. Chamou a atenção que um dos pratos era uma carne (prime-rib) coberta com folha de ouro. O consumo dos jogadores no local gerou críticas. Uma delas foi feita pelo padre Julio Lancellotti, que escreveu: "Enquanto milhões pelo mundo passam fome nos chega um vídeo deste, acintoso, e que causa indignação e tristeza" em uma postagem com quase 12 mil comentários no Instagram.
2022-12-22
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64072258
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Post de Messi no Instagram após vitória na Copa bate recorde com maior número de curtidas da história
Uma galeria de fotos de Lionel Messi celebrando a vitória da Argentina na Copa do Mundo se tornou o post mais curtido no Instagram de todos os tempos. O jogador de futebol — que levou seu time ao primeiro triunfo na Copa do Mundo em 36 anos — recebeu mais de 68 milhões de curtidas pelas fotos que postou em sua conta na rede social. A Argentina derrotou a França nos pênaltis na final da Copa do Mundo no Catar, no domingo (18/12). O recorde anterior era detido por... uma simples foto de um ovo. Inicialmente, parecia ser algum tipo de voto de protesto contra as celebridades — os usuários foram encorajados a curtir a foto, postada em janeiro de 2019, para superar o então post mais curtido do Instagram, uma foto da socialite, influenciadora e empresária Kylie Jenner com sua bebê Stormi. Fim do Matérias recomendadas A imagem, em que a socialite americana segura a mãe de sua filha recém-nascida, havia sido postada em 2018 e tinha 18 milhões de curtidas até o ovo aparecer. Ela foi a primeira mulher a conseguir 300 milhões de seguidores na rede social — marca também alcançada por Messi. Sempre houve muita especulação sobre quem estava por trás da conta do Instagram @world_record_egg e como ela conseguiu atrair tantas curtidas tão rapidamente. Alguns disseram que foi uma jogada de marketing de uma grande empresa que comprou seguidores — mas o executivo de publicidade britânico Chris Godfrey confessou estar por trás da ideia, junto com outras duas pessoas, e que seu único objetivo era obter o máximo de curtidas possível. Mas, apesar de o ovo ter ultrapassado o recorde de Jenner — totalizando 57,7 milhões de curtidas no momento da publicação desta reportagem, acabou superado por um rival com vários recordes mundiais: o argentino Lionel Messi. Após a final da Copa do Mundo, o Guinness World Records postou uma série de recordes quebrados pelo vencedor, destacando que Messi ultrapassou o alemão Lothar Matthäus como o jogador que mais disputou partidas de um Mundial: 26, ao todo — além de outros quatro recordes. São eles: 11 — premiado como Melhor jogador em Campo em uma Copa do Mundo 19 — mais aparições em Copas do Mundo como capitão 5 — mais aparições em torneios da Copa do Mundo por um jogador do sexo masculino Primeira pessoa a dar uma assistência (um gol) em cinco Copas do Mundo diferentes
2022-12-21
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64039518