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Lula desembarca em Cuba com missão de reaver empréstimo do BNDES para porto de Mariel
"Quando a União Soviética colapsou, no início dos anos 1990, foi um tombo enorme para Cuba. Agora, porém, é muito pior. É como se Cuba estivesse rolando uma escada cujo fim não se vislumbra." A definição foi dada à BBC News Brasil por um economista da Universidade de Havana que pediu anonimato pela sensibilidade política do assunto. A opinião, porém, está longe de ser polêmica entre analistas da economia cubana. Em 2023, eles dizem, o país está mergulhado na maior crise econômica desde a vitória da revolução comunista liderada por Fidel Castro e Ernesto Che Guevara, em 1959. E é neste contexto que o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva desembarcou em Havana nesta sexta-feira (15/09), às 18h25, no horário local, para uma visita de menos de 24 horas na ilha. Com o presidente, além de seu assessor internacional Celso Amorim e do chanceler Mauro Vieira, estavam as ministras da saúde, Nisia Trindade, e da tecnologia, Luciana Santos. Fim do Matérias recomendadas Neste sábado, Lula terá uma reunião bilateral com o líder cubano Miguel Díaz-Canel. O líder brasileiro também discursará no G77+China, um fórum de mais de cem países do chamado Sul Global que Havana sediará neste sábado. No mesmo dia viaja para Nova York, para, na semana que vem, abrir a Assembleia Geral da ONU pela oitava vez na vida - e a primeira em seu terceiro mandato. Cuba ser a anfitriã do evento do G77 no sábado veio a calhar para Lula, que aproveitará a passagem em Havana para reaquecer relações políticas que ficaram praticamente congeladas nos últimos anos e, especialmente, reabrir as negociações com os cubanos para que eles retomem o pagamento de uma dívida bilionária que têm com o Brasil pelo financiamento da obra do icônico Porto de Mariel. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A Cuba que Lula visita enfrenta uma espécie de tempestade perfeita que tem levado à insegurança alimentar de boa parte da população.  Produtos básicos, como um único limão, podem custar valores extorsivos para os habitantes da ilha, como o equivalente a R$ 2,50. “Antes, era difícil fazer o salário chegar ao final do mês. Mas isso era quando estávamos bem. Agora o salário acaba na primeira semana”, relatou à BBC News Brasil um cubano de Havana que prefere não ser identificado. Os desabafos sobre as duras condições financeiras no país se multiplicam quando a reportagem comenta o assunto em uma mesa de restaurante com alguns cubanos. “A população agora precisa escolher: ou vai comer, ou vai colocar gasolina ou vai pagar o SIM card com 4G”, diz um outro. O homem faz menção a uma das mudanças recentes no país, a popularização da conexão à internet via redes de celulares, que relegou ao passado as famosas cenas de centenas de cubanos aglomerados ao redor de hotéis para se conectar à web, usando os sinais que até meados dos anos 2010 eram quase exclusividade destes empreendimentos. Primeiro, Cuba enfrentou o recrudescimento de uma série de sanções americanas impostas pelo governo republicano de Donald Trump, que voltou a adotar a política de máxima pressão econômica sobre a ilha depois do maior relaxamento nas relações entre Estados Unidos e Cuba em décadas, na gestão do democrata Barack Obama.  Depois, a pandemia de covid-19 derrubou o turismo na ilha, uma das principais fontes do produto interno bruto cubano. Se, em 2019, 4,2 milhões de turistas visitaram o país, agora Cuba patina para atrair ao menos metade deste número de volta a seus resorts estatais. O governo da ilha adotou restrições duras e longas à entrada de estrangeiros no país por um longo período, algo parecido com o que faz a China, e agora enfrenta as dificuldades de retomar o ritmo na indústria hoteleira. E, mais recentemente, a guerra na Ucrânia fez explodir os custos de alimentos e de energia no mercado internacional - ao qual Cuba tem que recorrer,  já que sua produção local é insuficiente.  Diante da necessidade de capital de giro, o governo comunista de Miguel Diaz-Canel acaba de impor limite aos saques dos cubanos às suas contas bancárias, mesmo quando há dinheiro disponível. O resultado é que o dinheiro sumiu do sistema bancário: boa parte da população têm optado por guardar os recursos em casa. E o câmbio negro do dólar explodiu. Como resultado, a ilha viu um êxodo histórico: apenas em 2022, 306 mil cubanos foram encontrados por agentes de migração americanos atravessando a fronteira sul dos Estados Unidos com México - isso equivale a mais de 2% de toda a população de Cuba. Há dois meses, o ministro da Economia e Planejamento, Alejandro Gil, fez um discurso no qual não escondeu a situação. Lamentou o quanto a inflação “afeta o povo”, revelando que em maio a alta de preços tinha alcançado 45% em relação a maio de 2022. Também admitiu que a entrada de turistas era 20% menor que a esperada no primeiro semestre e que a projeção do PIB, de crescimento de 1,8% para 2023, era insuficiente porque a ilha ainda estava oito pontos percentuais abaixo do nível econômico pré-pandêmico. Em meio à escassez e as dificuldades, Cuba se viu recém-envolvida em um escândalo: uma rede russo-cubana estaria cooptando cubanos - radicados na Rússia ou não - para atuar como soldados mercenários na guerra da Ucrânia. O governo cubano reagiu com energia à revelação: há 6 dias, 17 pessoas foram presas na ilha por relação com o caso de tráfico de pessoas para o front. O governo de Diaz-Canel reafirmou que o país “não é parte do conflito bélico na Ucrânia” e acusou os operadores da ação de mancharem a imagem de Cuba. Isolada pelas sanções americanas e fortemente dependente da China e da Rússia, a Cuba de Diaz-Canel viu na realização da Cúpula do G77+China uma chance de atrair uma centena de delegações de países estrangeiros à ilha e projetar para o mundo uma agenda positiva em meio ao caos econômico. Nem o líder chinês Xi Jinping nem o líder russo Vladimir Putin são esperados no encontro, que durará dois dias. Além de Lula, confirmaram presença os presidentes da Colômbia, Gustavo Petro, da Argentina, Alberto Fernández, da Venezuela, Nicolas Maduro, de Angola, José Lourenço, da Mongólia, Khurelsukh Ukhnaa, entre outros líderes do chamado Sul Global. Também comparecerá o Secretário Geral da ONU, Antônio Guterres. Embora este seja um grupo antigo, criado nos anos 1960, e numeroso, com mais de cem países em desenvolvimento, o G77 não é tido como influente nos destinos da geopolítica mundial.  Mas para o projeto internacional de Lula, de liderar o Sul Global e propor reformas em mecanismos multilaterais, a participação no fórum fazia sentido. Segundo dois auxiliares do presidente, o G77 costuma funcionar como espaço de consenso entre países mais pobres para tentar influenciar em algumas áreas da ONU, como as discussões sobre mudança climática e meio ambiente, que interessam especialmente ao Brasil.  Além disso, para a diplomacia brasileira atual, depois de Lula sentar à mesa dos países ricos ao longo de todo o ano - como no encontro do G7, no Japão, do G20, na Índia, da Celac com a União Europeia, na França, e do próprio BRICS, na África do Sul, faltava ao presidente brasileiro fazer um aceno específico aos países mais à margem do poder. Para Lula também foi conveniente que Cuba fosse a anfitriã deste encontro. Depois de sete anos sem embaixador no país comunista, o Brasil voltou a ter um na ilha há dois meses e tenta reaquecer relações políticas e econômicas.  O Brasil já chegou a estar entre os três maiores parceiros comerciais de Cuba e o comércio bilateral entre os dois países atingiu o patamar dos 650 milhões de dólares no início dos anos 2010.  No início dos anos 2020, no entanto, o fluxo de trocas despencou para menos de um terço disso, em torno de 180 milhões de dólares.  Politicamente, as tensões também se acumularam. Cuba retirou às pressas milhares de médicos do Brasil no fim de 2018, quando o então presidente eleito Jair Bolsonaro condicionou a atuação dos profissionais cubanos no programa Mais Médicos a novas regras - como o fim da remessa salarial dos médicos ao governo de Cuba. O fim do contrato de prestação de serviços médicos com o Brasil representou um tombo equivalente à perda de toda exportação anual de charutos para o PIB cubano – mais de R$1 bilhão.  E ainda no governo Bolsonaro, pela primeira vez na história, o Brasil se posicionou favoravelmente ao embargo dos EUA em Cuba no âmbito da ONU - posição compartilhada apenas com os próprios americanos e com Israel. Mas o tema mais candente da reunião bilateral entre Lula e Diaz-Canel, a ser realizada neste sábado, 16, deve ser a reabertura de negociações para que Cuba volte a pagar as parcelas do financiamento de US$ 658 milhões dado pelo BNDES para a reformulação do Porto Mariel.  A obra, tocada pela empreiteira brasileira Odebrecht, prometia terminais portuários tão modernos quanto os do Canal do Panamá e uma zona capitalista especial para implantação de empresas nos moldes da adotada pela China. Parte do empresariado brasileiro se animou com a possibilidade de ter no porto um entreposto privilegiado para negócios com o Caribe e os Estados Unidos.  Até a Fiesp, federação da indústria paulista, chegou a apoiar publicamente o projeto, citando justamente o potencial de exportação do empreendimento. Mas, a partir do segundo semestre de 2018, Cuba deixou de pagar o empréstimo. O acumulado da dívida chega a estimados R$ 2 bilhões, segundo informações obtidas via lei de acesso pelo Estadão junto ao BNDES em 2021. A BBC News Brasil consultou o BNDES sobre a dívida, o banco se comprometeu a enviar uma resposta, mas não o fez até a publicação desta reportagem. Um novo cálculo da dívida terá que ser apresentado aos cubanos, que terão que concordar com o valor cobrado. O assunto virou um dos maiores pontos de disputa política entre esquerda e direita no Brasil nos últimos anos. Em postagens virais de internet, Lula foi acusado de - por afinidades ideológicas - optar por construir um porto em Cuba em vez de investir o dinheiro para “erguer 120 hospitais no Brasil”.  Em outubro de 2022, durante a campanha eleitoral presidencial, o então presidente Jair Bolsonaro disse que “em Belo Horizonte não tem metrô, mas dinheiro nosso do BNDES, Lula mandou para Caracas, capital da Venezuela, lá tem um metrô maravilhoso". Três auxiliares de Lula disseram à BBC News Brasil que o uso político pelos adversários da direita do tema dos empréstimos não pagos tornou a recuperação dos valores uma meta para Lula em seu terceiro mandato. Dos 15 países que contraíram empréstimos com o BNDES na gestão do petista, apenas Cuba, Venezuela e Moçambique não quitaram seus contratos.  No caso de Cuba, as condições especiais do contrato firmado - com o dobro de prazo para quitação em relação aos demais países contemplados  e a aceitação de garantias dadas em conta corrente cubana e em charutos - também geraram questionamentos sobre possíveis favorecimentos políticos ao regime cubano, o que o petista sempre negou. Agora, dizem integrantes do governo, Lula deve propor um reescalonamento da dívida, para que Cuba possa recomeçar a pagar seu débito aos poucos, com prazos mais elásticos, em parcelas mais suaves. Não se cogita do lado brasileiro, porém, um perdão financeiro aos cubanos.  Outra opção levantada por um diplomata brasileiro seria que o pagamento fosse feito por meio da cessão do controle ao Brasil de parte das operações do Porto Mariel. Um diplomata sênior que conhece de perto a história do terminal portuário afirma que depois de viabilizar o porto, cuja construção foi concluída em 2015, “o Brasil virou as costas e foi embora, e europeus e asiáticos são os que têm usufruído da infraestrutura criada com recursos brasileiros para fazer comércio na região”. Depois da visita presidencial, o Brasil espera inaugurar um diálogo técnico entre o Ministério da Fazenda brasileiro e o departamento financeiro de Cuba para avaliar condições e possibilidades de quitação do empréstimo. Mas, considerando a condição financeira de Cuba, não se espera um pagamento completo e rápido ao BNDES. O próprio governo brasileiro reconhece a dificuldade do momento e diz que não tomará qualquer ação draconiana em relação à Cuba. Para o governo Lula, no entanto, é preciso retomar espaços no país, incluindo as exportações, até para permitir que o país melhore de condições a ponto de pagar a dívida. Novas obras de infraestrutura estão descartadas, até porque o Brasil não poderia voltar a fazer financiamentos enquanto o governo cubano estiver inadimplente.
2023-09-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cyxd24kvqr0o
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Fernando Botero: pintor e escultor colombiano morre aos 91 anos
Fernando Botero, o mais renomado pintor e escultor colombiano da história, morreu aos 91 anos. Os meios de comunicação colombianos noticiaram nesta sexta-feira (15/9) que o artista morreu após sofrer de pneumonia e teve de ser tratado num hospital no norte de Itália, onde vivia há décadas. Sua esposa, a artista Sophia Vari, morreu há cinco meses. As obras de Botero, que foram leiloadas por até US$ 2 milhões (quase R$ 10 milhões), correram o mundo: suas pinturas, destacadas por grandes figuras, chegaram aos mais importantes museus e suas esculturas em aço foram colocadas em ruas e praças das grandes capitais. Personalidades como o presidente colombiano Gustavo Petro e o ex-presidente Juan Manuel Santos juntaram-se às mensagens de condolências vindas do mundo da arte internacional. Fim do Matérias recomendadas Botero nasceu em 19 de abril de 1932 em Medellín, segunda maior cidade da Colômbia. Seu pai, David, era um comerciante que morreu aos 40 anos. Sua mãe, Flora Angulo, morreu em 1972. Diferentes biografias do artista relatam que, embora não tenha sido criado em uma família religiosa, seu primeiro contato com a arte foi através da religião, faceta fundamental na sociedade colombiana da época. Em Medellín, na primeira metade do século 20, havia muito mais igrejas com vitrais e altares do que museus. De fato, hoje o Museu de Antioquia, o mais importante da cidade, dedica grande parte de seu acervo ao mestre Botero, que foi um dos mais importantes promotores da instituição. Depois de estudar alguns anos na escola comum, aos 12 anos, Botero ingressou numa escola de toureiros em Medellín, formação que marcou sua vida e sua obra. Aos 16 anos, ele vendeu sua primeira obra em um mercado de Medellín, com estética influenciada pelo universo das touradas. Segundo o artista, o adolescente Botero foi expulso do Ensino Médio por um artigo que escreveu sobre Picasso e por seus desenhos, que segundo os padres da escola eram pornográficos. Suas ilustrações foram publicadas pelo jornal El Colombiano, o mais importante da cidade, e com seu salário financiou o término do Ensino Médio e as primeiras viagens que o levaram à Europa e aos Estados Unidos. Na década de 1950, Botero chegou à capital Bogotá e começou a conviver com os artistas de vanguarda da época, cuja obra era marcada pelo indigenismo e nacionalismo. Fez duas exposições, um mural importante, ganhou um prêmio e assim obteve recursos para se mudar para Madrid, na Espanha, e depois para Paris, na França. No final da década de 1950, Botero retornou à Colômbia e casou-se com Gloria Zea, renomada gestora e colecionadora cultural com quem foi morar no México. A partir daí, Botero desenvolveu uma leitura crítica da arte nacionalista proposta pelos muralistas mexicanos, bem como da arte moderna que era ensinada na Europa. E começou a consolidar aquela que seria a linha que o tornaria conhecido em todo o mundo, marcada por naturezas mortas e volumes ampliados com cores muito vivas. "Na primeira vez que foi à Europa, Botero enlouqueceu com o Renascimento, não gostava de arte moderna e depois decidiu fazer uma fusão entre arte vanguardista e figurativa", afirma Jaime Cerón, curador e crítico de arte. "Lá ele desenvolve uma inovação cromática, que é que a pintura pode parecer vermelha, mas tem muito mais cores, conseguindo uma atmosfera que parece gerar uma harmonia invisível. Foi algo muito inovador para a época", afirma o especialista. Mas não foram só as cores: foi lá que Botero fez sua versão volumosa da Mona Lisa, por exemplo, uma ousadia transgressora. "Isso faz dele o ponta de lança da geração do seu tempo, porque procurava universalizar elementos da cultura antioquina [do departamento de Antioquia, na Colômbia] sem cair na glorificação nacionalista", diz Cerón.
2023-09-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c725yvydgg9o
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A vida nas 7 fronteiras mais perigosas do mundo para migrantes
O americano Bill Frelick não se impressiona facilmente: com 30 anos de experiência documentando agruras de refugiados em travessias perigosas pelo mundo, o representante da ONG Human Rights Watch achava já ter visto de tudo. “Achei que já não ficaria mais chocado ou horrorizado, mas me enganei”, ele conta. O motivo do choque são os relatos compilados por seus colegas na fronteira entre Arábia Saudita e Iêmen, onde imigrantes desarmados - incluindo crianças - dizem ter sido alvejados à queima-roupa pelas tropas sauditas, para impedir que entrassem no país. A BBC News Brasil entrevistou Frelick, que é diretor da divisão de refugiados e direitos migratórios na HRW, e Julia Black, integrante do Projeto de Imigrantes Desaparecidos da Organização Internacional para Migrações (OIM) da ONU, para mapear essa e outras seis das fronteiras marítimas e terrestres consideradas hoje extremamente perigosas para estrangeiros que tentam migrar sem documentos. São ambientes hostis, repletos de armadilhas naturais, muitas vezes controlados por traficantes humanos ou fortemente observados por guardas armados. Fim do Matérias recomendadas Mesmo com tantos riscos, muitos imigrantes enxergam essas travessias como a única forma de fugir de circunstâncias ainda piores de pobreza e violência em seus países de origem. Confira abaixo as sete fronteiras consideradas mais perigosas. Pouco monitorada por agências estrangeiras, a fronteira saudita-iemenita tem recebido um enorme fluxo de migrantes da Etiópia, um foco de pobreza e conflitos no Chifre da África. A jornada desses etíopes começa em outras fronteiras perigosas, com Djibouti, Eritreia e Somália. Daí eles fazem uma arriscada travessia pelo Golfo de Áden e atravessam um país em guerra civil, o Iêmen. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A BBC também conseguiu contato com sobreviventes: um deles, Mustafa Soufia Mohammed, 21, contou ter perdido uma perna, ao levar um tiro tentando cruzar a fronteira, um ano atrás: “Fomos alvejados enquanto caminhávamos. Imediatamente, deitamos no chão. Mas, quando tentei levantar e andar, parte da minha perna não estava mais lá”, relatou Mustafa. “Estamos falando de imigrantes facilmente identificáveis, que não são combatentes (extremistas vindos do Iêmen), que não estavam armados e não representavam ameaça alguma”, aponta Bill Frelick, da HRW, à BBC News Brasil. “E mesmo assim estão sendo alvejados com tanta violência, em um nível chocante mesmo para alguém já calejado como eu. (...) E o mais chocante é a sensação de impunidade, de que você pode simplesmente matar sem nenhuma preocupação em ser responsabilizado.” O relatório da HRW identificou 28 episódios de matanças entre março de 2022 e junho deste ano, com “no mínimo 655 mortes, mas é provável que elas estejam na casa dos milhares”. Segundo Nadia Hardman, autora do relatório, “demonstramos factualmente que os abusos são amplos e sistemáticos e podem representar crime contra a humanidade”. O governo da Arábia Saudita afirma que leva as acusações a sério, mas rejeita fortemente a alegação de que haja matanças sistemáticas e em larga escala. Em referência a acusações semelhantes feitas por investigadores da ONU, o governo saudita afirmou que “as autoridades do reino não encontraram informações nem evidências que confirmem ou sustentem essas alegações”. Uma selva inóspita, extremamente úmida, compacta e considerada quase intransponível. Trata-se da Passagem de Darién, na divisa entre Colômbia e Panamá, disputada por madeireiros ilegais, traficantes humanos e de drogas e guerrilheiros remanescentes do conflito colombiano. E onde moram tribos indígenas, que temem que essa disputa destrua suas terras ancestrais. E por ali passaram em 2022, segundo o governo panamenho, 248 mil migrantes - principalmente de Venezuela e Haiti - para começar a perigosa jornada a pé por toda a América Central, com a expectativa de chegar aos Estados Unidos. Corpos de 51 imigrantes foram identificados na selva em 2021, segundo a OIM, que estima que o número real de mortes deva ser muito maior - já que a maioria nunca é encontrada. Por conectar a América do Sul e o Caribe às Américas Central e Norte, a Passagem de Darién é uma das que Bill Frelick, da HRW, chama de “funis” do mundo: “Basta olhar o globo terrestre para identificar onde são as portas de entrada para os continentes - é onde haverá questões migratórias graves”, diz ele à BBC News Brasil. Outro país de posição geográfica e migratória igualmente complexa, por fazer a conexão entre diferentes continentes, é a Turquia. Um fluxo de migrantes que tem crescido em particular é o de afegãos, desde a tomada do governo do país pelo Talebã, em 2021. Eles atravessam uma perigosa rota na fronteira entre Irã e Turquia, com a intenção de chegar à Europa. São horas de caminhada em um terreno montanhoso e árido, sob a mira de forças de segurança e de gangues de sequestradores. Essas gangues prendem, abusam sexualmente e torturam afegãos - e registram em vídeo, para depois pedir resgate aos parentes das vítimas. "A quem estiver vendo este vídeo: fui sequestrado ontem, eles estão exigindo US$ 4 mil (cerca de R$ 19,5 mil) para cada um de nós. Eles nos espancam dia e noite sem parar", diz um homem, com o lábio ensanguentado e o rosto coberto de poeira. Outro vídeo mostra um grupo de homens completamente nus, rastejando na neve enquanto alguém os chicoteia por trás. Frelick diz que, em outras fronteiras da Turquia, distintos perigos também são enfrentados por quem tenta passar. Na fronteira com a Bulgária, a Human Rights Watch documentou no ano passado que “autoridades búlgaras batem, roubam os pertences, despem e usam cães policiais para atacar afegãos e outros solicitantes de refúgio e migrantes, para depois empurrá-los de volta para a Turquia”. Dez homens afirmaram que foram deixados descalços e só com a roupa de baixo sob temperaturas congelantes do inverno. A Bulgária não respondeu ao relatório, mas em outras ocasiões negou dar tratamento desumano aos imigrantes. Na Ásia, uma fronteira tem testemunhado a morte e a perseguição de centenas de milhares de pessoas do grupo étnico rohingya, que a ONU descreve como “a minoria mais perseguida do mundo”. O governo de Mianmar é acusado de ter lançado em 2017 uma mortal campanha militar perto da fronteira com Bangladesh. As autoridades negam, mas foram documentadas dezenas de aldeias rohingyas incendiadas, milhares de assassinatos e estupros e o êxodo forçado de 700 mil pessoas dessa minoria, principalmente para Bangladesh e Tailândia. A fuga era por terra, em áreas enlameadas e sujeitas a doenças infecciosas, ou por mar, em embarcações que muitas vezes não resistiam à viagem. Os conflitos na fronteira entre Mianmar e Bangladesh continuam. O Mar Mediterrâneo, que faz a fronteira marítima entre a Europa e países da África e do Oriente Médio, é considerado a travessia marítima mais mortal do mundo. Já foi chamado pelo papa Francisco de “o maior cemitério da Europa”. A OIM, a Organização Internacional de Migração da ONU, documentou 441 mortes ali só no primeiro trimestre de 2023. É o maior número desde 2017. As travessias são feitas em embarcações improvisadas e superlotadas, frequentemente pilotadas por gangues e traficantes de pessoas, e sob resistência de muitas autoridades europeias. Um dos episódios mais dramáticos aconteceu na costa da Grécia, onde um barco superlotado naufragou em junho. Cerca de 600 pessoas ficaram desaparecidas no mar, a maioria vinda de Paquistão, Síria e Egito. A Guarda Costeira grega é investigada não só por suposta omissão, mas sob suspeita de ter contribuído para a instabilidade do barco. As autoridades gregas negam - e dizem que a embarcação recusou ajuda antes de naufragar. “A persistente crise humanitária no Mediterrâneo é intolerável. Com mais de 20 mil pessoas mortas nessa rota desde 2014, temo que essas mortes tenham sido banalizadas. Os Estados precisam responder”, declarou recentemente Antonio Vitorino, chefe da OIM. E mesmo antes de chegar ao Mar Mediterrâneo, muitos migrantes africanos passam por duras jornadas pelo Saara, cruzando um deserto hostil e países instáveis. Várias fronteiras ali são perigosas, de países como Mauritânia, Argélia e Mali. Frelick, da Human Rights Watch, acha que é possível que o volume de mortes de migrantes nessa região seja semelhante ou até superior às registradas em travessias marítimas - mas não são documentadas. E, entre essas fronteiras, as da Líbia se destacam pelos relatos particularmente assustadores. “Fiz entrevistas muito tristes com pessoas que atravessaram a Líbia vindas da Somália e da Eritreia, passando pelo Saara, onde traficantes colocam gotas de gasolina na água para impedir as pessoas de se hidratarem”, afirma Frelick. “Daí eles prendem essas pessoas e pedem resgate para suas famílias. Quando não recebem o dinheiro, largam as pessoas para morrerem no deserto.” A ONU fez recentemente uma investigação na fronteira líbia com o Sudão. E descobriu que migrantes pegos ali estavam sendo levados por criminosos para armazéns, onde passavam por sessões de tortura e abusos sexuais e eram deixados sem comida. Os criminosos mandavam vídeos dessas pessoas para os parentes delas, com pedidos de resgate. As que não sobreviviam ao martírio eram enterradas em valas comuns no deserto. “O número representa quase metade das 1,4 mil mortes e desaparecimentos de migrantes documentadas no continente americano em 2022, o ano mais letal desde que o Projeto de Migrantes Desaparecidos da OIM começou suas atividades, em 2014”, afirma relatório da entidade. Os riscos são muitos: desde ficar à mercê da violência de gangues ou ser preso pelas autoridades, até levar picadas de cobra venenosa e padecer do calor ou do frio extremos. A lista acima é de fronteiras onde uma grande quantidade de abusos, riscos e mortes foi identificada e documentada recentemente, mas ela não chega perto de contemplar todas as fronteiras e travessias perigosas usadas por imigrantes. Frelick, da HRW, e Julia Black, da OIM, chamam a atenção também para: Ao mesmo tempo, Black ressalta que, em meio aos horrores da guerra na Ucrânia, o acolhimento dado pelos países europeus aos refugiados ucranianos é uma história de sucesso. “Todos os Estados europeus decretaram uma lei temporária de proteção que permite aos ucranianos cruzarem as fronteiras com segurança. E embora muitos milhões de pessoas tenham abandonado a Ucrânia, registramos cerca de uma dúzia de mortes”, afirma Black à BBC News Brasil. “Se você comparar isso com quase qualquer outro movimento em massa de refugiados, especialmente de Síria, Iraque, Etiópia, a escala de mortes é incomparável”. “A existência de formas legais para as pessoas se moverem, para pedirem refúgio e para chegarem onde querem chegar é algo que previne mortes e salva vidas”, prossegue Black. “Então quero enfatizar que a questão aqui não é que as pessoas estejam migrando, mas sim que elas não estão encontrando uma forma segura e legal de fazer isso.” Questionada pela reportagem se era possível traçar um panorama global da situação dos migrantes, ela respondeu: “É difícil ter certeza, porque não temos os dados sobre tantas rotas, não temos o quadro completo. Mas o cenário que temos não é bom. No ano passado, registramos um recorde de mortes nas Américas. Este ano caminha para ser o mais mortal de que se tem notícia no Mediterrâneo Central. Para mim, esses são alertas bastante sombrios.”
2023-09-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c9xgrzklpn4o
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Porto de Mariel: com área 50% vazia, cubanos esperam ajuda de 'irmão' Lula para atrair empresas brasileiras
Às vésperas de completar dez anos do início de sua operação, a Zona Especial do Porto de Mariel está ao menos 50% vazia. É o que afirmou à BBC News Brasil a diretora-geral da área de 465 km2, Ana Teresa Igarza Martínez. Com capacidade para mais de cem empresas, apenas 44 estão instaladas ali e atuando em 100% de sua capacidade. Outras 20, estariam em diferentes etapas do processo de implantação. Projetado para ancorar navios do tipo New Panamax, que transporta até 12,5 mil contêineres de 6 metros de comprimento por viagem, o Porto de Mariel jamais recebeu uma embarcação desta envergadura em mais de nove anos de operação. Historicamente um ponto de onde milhares de cubanos se lançaram ao mar em todo tipo de barcos e botes para tentar escapar do regime comunista e chegar aos Estados Unidos, Mariel se converteu na maior obra de infraestrutura da história de Cuba nos anos 2010. Sua construção, feita pela empreiteira brasileira Odebrecht, contou com o financiamento de US$ 638 milhões do BNDES. Em plena capacidade operacional, o local prometia funcionar como um motor capitalista a sustentar o regime comunista cubano. Mas até hoje o complexo portuário de Mariel segue sendo uma promessa jamais inteiramente realizada. Fim do Matérias recomendadas Agora, com o retorno ao poder do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a quem o governo cubano credita a viabilização da obra, Cuba estabeleceu a atração de empresários brasileiros para a zona especial de desenvolvimento de Mariel como uma estratégia primordial. Criada nos moldes das Zonas Econômicas Especiais da China, as ZEEs, a zona de Mariel prevê incentivos fiscais (como impostos zerados sobre mão de obra e sobre a produção nos dez primeiros anos), facilitações de infraestrutura, como o fornecimento de água e energia, e acesso fácil aos mercados do Caribe. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em 2016, no auge do entusiasmo com o empreendimento, havia lista de centenas de empresas interessadas em se instalar ali graças à proximidade com o mercado consumidor americano. Naquele período, até mesmo o então presidente dos EUA Barack Obama autorizou a instalação de uma planta em Mariel de uma fábrica de tratores. Boa parte do entusiasmo se reverteu depois que a administração de Donald Trump voltou a apertar os torniquetes das sanções à Cuba. Sem poder produzir visando o mercado americano, boa parte das empresas - incluindo as brasileiras- desistiu da instalação em Mariel. “Sempre tratamos o Brasil como prioridade”, diz Martínez. Segundo ela, no entanto, na esteira dos processos políticos que retiraram Dilma Rousseff do poder e, mais tarde, com a eleição presidencial de Jair Bolsonaro, tanto os políticos quanto a imprensa brasileira se tornaram “agressivos” à Cuba. Tempos que ela acredita estarem superados. Nesta semana, dois funcionários da Zona especial de Mariel desembarcaram em São Paulo, onde passarão alguns dias promovendo o Porto a empresários, especialmente os do setor agro-industrial, alimentar, petroleiro e energético. “Para o brasileiro, a decisão de investir agora se torna muito mais viável. Lembremos que há mais de cinco anos o BNDES não nos renova um empréstimo, que os financiamentos foram fechados, que os investimentos e as políticas mudaram, que houve maior controle sobre as saídas de capitais do Brasil e isso afeta a empresário brasileiro”, argumenta Martínez. De fato, desde o fim do governo Dilma, não houve renovação de empréstimos do banco de desenvolvimento brasileiro ao governo cubano. E a partir do segundo semestre de 2018, Cuba deixou de pagar as parcelas do financiamento conforme os contratos assinados entre 2009 e 2013. Por isso, a ilha foi incorporada a uma lista de inadimplentes, condição na qual o Conselho Cadastral do BNDES, responsável pela aprovação de crédito, tem por regra negar qualquer tipo de novo empréstimo. Segundo informado pelo BNDES à BBC News Brasil, a dívida atualizada de Cuba com o banco, contados os juros, chega a US$ 520 milhões - o equivalente a mais de R$ 2,5 bilhões. Questionada sobre as razões da inadimplência cubana, Martínez diz que o assunto foge ao seu escopo de atuação, mas demonstra esperança de que o banco brasileiro possa se tornar novamente uma fonte de recursos para o país. “Agora estamos em um momento melhor, com um amigo (Lula), até porque além de amigo ele é um irmão, alguém de quem gostamos, e há possibilidades dos empresários brasileiros retornarem a Cuba sem serem pressionados pelo governo em contrário. Acho que estamos no momento certo para fazer essa promoção, por isso nos esforçamos tanto no trabalho”, diz Martínez, enquanto avança os slides de uma apresentação de Power Point em língua portuguesa sobre o complexo de Mariel. Segundo ela, desde as eleições brasileiras de 2022, já repetiu a apresentação ao menos uma dezena de empresários brasileiros. Na semana passada, foi a vez do presidente da Apex, Jorge Viana, conhecer os slides. Questionado sobre qual o potencial de negócios e que empresários brasileiros estariam interessados em vir a Cuba, Viana não respondeu à BBC News Brasil até a publicação desta reportagem. Carlos Gabas, secretário-executivo do Consórcio Nordeste, foi outra das autoridades brasileiras que esteve recentemente em reunião com a diretora de Mariel. Martínez se nega a revelar os nomes dos empresários que disse ter recebido. Segundo ela, o embargo americano, que proíbe, por exemplo, que um navio atraque em qualquer porto nos EUA dentro de um período de 6 meses após atracar em Cuba, também inclui medidas de perseguição concorrencial às empresas que se instalam na ilha. Por isso, uma das cláusulas do contrato das empresas que se incorporam à zona de Mariel é o sigilo. O complexo não divulga as empresas que o compõem. Mas sabe-se que há ali a multinacional Unilever, a Nescor (associação da Nestlé com uma estatal cubana) e a espanhola Profood. O complexo divulga as nacionalidades das empresas que ali operam: são 17 espanholas, cinco vietnamitas, três italianas, três mexicanas. E somente uma, a BrasCuba, tem origem brasileira. Trata-se de uma associação entre a empresa de cigarros Souza Cruz e uma estatal cubana, a Tabacuba. Mas a Souza Cruz já atua em Cuba há 28 anos e apenas se transferiu para dentro da zona especial. Na prática, embora algumas companhias do Brasil tenham iniciado o processo de implantação, nenhuma nova empresa do país se instalou em Cuba após a conclusão do porto. Nos dias que antecederam a chegada de Lula ao país, nesta sexta, 16/9, veículos de imprensa cubanos ou hispânicos com circulação em Cuba, como a Rádio Havana e o Infobae, retrataram a expectativa de que a visita do presidente brasileiro represente uma nova leva de recursos a Cuba. Não há empresários na comitiva que parte hoje de Brasília. Mas assessores de Lula disseram à BBC News Brasil que o encontro com o líder cubano Miguel Diaz-Canel deve inaugurar uma renegociação da dívida com o BNDES. Não se trata de um perdão, mas de um “reescalonamento” para adequar o regime de pagamento a algo que Cuba possa cumprir. O país vive sua maior crise econômica desde a revolução comunista, de 1959, resultado do recrudescimento do embargo americano, da pandemia de COVID que derrubou o turismo na ilha, e da inflação de grãos e energia, que Cuba importa massivamente. “Aos cubanos interessa a renegociação e a retomada de pagamentos até para que possam pegar novos financiamentos”, disse à BBC News Brasil um diplomata brasileiro com conhecimento das negociações. Há dúvidas se uma mera formalização de renegociação entre os presidentes de Brasil e Cuba seria o suficiente para que o BNDES retirasse o governo cubano da condição de inadimplência e reabrisse linhas de crédito ao país. A BBC News Brasil consultou oficialmente o banco sobre isso, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem.
2023-09-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c80y2grzpnqo
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O país vizinho do Brasil que cresceu 66% em 2022
O presidente da Guiana, Irfaan Ali, declarou que "o tempo não está a nosso favor" ao falar sobre a luta do país sul-americano para aproveitar ao máximo a sua recém-descoberta riqueza petrolífera antes que seja muito tarde. Na última década, a Guiana encontrou enormes quantidades de petróleo e gás nas suas águas costeiras. Atualmente, o país possui reservas de cerca de 11 bilhões de barris. Isso coloca o país entre os 20 primeiros em termos de potencial, uma categoria que inclui países como a Noruega, o Brasil e a Argélia. O pequeno país, que faz fronteira com a Venezuela, o Brasil e o Suriname, no canto nordeste da América do Sul, possui atualmente a economia que mais cresce no mundo. Fim do Matérias recomendadas Mas as descobertas surgem num momento em que o planeta tenta se livrar dos combustíveis fósseis para enfrentar as alterações climáticas. Desde o Acordo de Paris de 2015, os países prometeram reduzir as suas emissões de gases com efeito estufa para zero até 2050. Isso significa tentar reduzir o uso de petróleo. Em entrevista à BBC na capital Georgetown, o presidente Ali também disse que mesmo que o mundo cumprisse as suas metas de zero emissões líquidas – algo que ele duvida que aconteça – ainda dependeria fortemente dos combustíveis fósseis, mesmo depois de 2050. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Enquanto falo com vocês, 53% do mix energético mundial vem do petróleo e do gás", disse Ali. "Mesmo que consigamos cumprir o compromisso total, estamos prevendo que 35% a 40% do mix energético mundial ainda provém do petróleo e do gás. Portanto, não vejo de forma realista um fim a médio prazo do petróleo e do gás." "Mesmo que acabemos numa situação em 2070 e mais além - onde, digamos, 40% do mix energético dependerão do petróleo e do gás - quem determina quem produz esses 40%? Estas são questões que devem ser respondidas, porque não é possível apenas decidir: 'Você está fora, você está dentro.' Isso é um modo diferente de colonialismo." A bonança do petróleo transformou a economia da Guiana. Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), cresceu 62% no ano passado e deverá somar mais 37% este ano. Essa é a taxa de crescimento mais rápida em qualquer lugar do mundo. E a riqueza será potencialmente partilhada entre um número relativamente pequeno de pessoas. Embora a Guiana seja do tamanho da Grã-Bretanha, tem uma população de apenas 800 mil pessoas. A maior parte do seu território é de floresta tropical. Portanto, o potencial de crescimento económico per capita é enorme. Já subiu acentuadamente. Em 2015, quando a grande petrolífera norte-americana Exxon fez a sua primeira descoberta em águas da Guiana, o produto interno bruto per capita era de 11 mil dólares ( cerca de R$ 55 mil). Este ano, o FMI prevê que ultrapassará os 60 mil dólares (cerca de R$ 300 mil). Ali disse que o seu país não tem planos de se juntar ao cartel petrolífero da OPEP e insistiu que o seu governo respeitará os contratos que o seu antecessor assinou com a Exxon – embora alguns ativistas tenham classificado esses acordos como excessivamente generosos. “O acordo poderia ter sido melhor para a Guiana”, disse Ali. “A Exxon teve um bom acordo assinado pelo último governo, mas, vejam, para nós, o cumprimento do contrato é muito importante. Não podemos voltar atrás e renegociar.” Ele disse estar confiante de que a Guiana vencerá sua disputa territorial com a Venezuela, que reivindica dois terços do território da Guiana como seu. A disputa começou no final do século XIX e tramita no Tribunal Internacional de Justiça (CIJ). “Temos muita clareza sobre onde estão as nossas fronteiras e estamos muito confiantes sobre o nosso caso”, disse Ali. “Já houve duas decisões e ambas foram a favor da Guiana. Incentivamos ativamente a Venezuela a participar neste processo e a respeitar o resultado da CIJ”.
2023-09-12
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgezlprlqnzo
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'Sopro da morte': as memórias do golpe no Chile por ex-assessor de Salvador Allende
De terno e gravata, o advogado Joan Garcés, de 79 anos, abre a porta de seu escritório com um sorriso. São 17h de um dia de setembro em Madri, capital da Espanha. Em sua mesa há uma fotografia onde ele aparece com o ex-presidente do Chile, Salvador Allende (1970-1973), e Óscar Agüero, ex-embaixador do Chile na Espanha. "Isso foi num fim de semana de 1972. Estávamos na casa de campo que [Allende] tinha nos arredores de Santiago", lembra ele, com certa nostalgia. Joan Garcés é uma testemunha privilegiada do que aconteceu no Chile em 11 de setembro de 1973, dia do golpe militar que depôs Allende. Fim do Matérias recomendadas O espanhol chegou ao país sul-americano alguns anos antes, atraído pela história de Allende, com quem estabeleceu uma forte amizade. Em 1970, quando Allende se tornou o primeiro presidente socialista do mundo a chegar ao poder por meios democráticos, Garcés se tornou seu conselheiro mais próximo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Três anos depois - e após meses de polarização e tentativas fracassadas de levantes militares - as Forças Armadas, lideradas por Augusto Pinochet, derrubaram o governo da Unidade Popular (UP), dando origem a um regime militar que durou 17 anos e deixou quase 40 mil vítimas, incluindo mais de 3.000 mortos ou desaparecidos. No dia do ataque, Joan Garcés estava no palácio presidencial com Allende. Ele permaneceu ao seu lado até que o presidente lhe ordenou que deixasse o La Moneda para que pudesse transmitir ao mundo o que ali havia acontecido. Allende morreria pouco depois. Garcés não só cumpriu a tarefa que lhe foi confiada, publicando livros como Allende e a experiência chilena. Ele também acabou se tornando o arquiteto da histórica prisão de Pinochet em Londres, em 1998. Relutante em dar entrevistas e, sobretudo, em revelar fragmentos de sua vida pessoal, Joan Garcés contou à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, detalhes inéditos sobre o 11 de setembro e os dias que se seguiram, como sua complexa fuga do Chile. Também deu especial ênfase à responsabilidade dos Estados Unidos na ruptura democrática no Chile e apela a uma condenação pública da Casa Branca, depois de a desclassificação de vários registos ter evidenciado o papel do país no golpe do Chile. Confira abaixo a entrevista que ele deu à BBC. BBC - Quero partir transportando você para 11 de setembro de 1973. O que você lembra daquele dia? Joan Garcés - Esse dia foi uma data importante porque ao meio-dia estava previsto que o presidente Allende fizesse um discurso anunciando medidas econômicas de emergência ao país, além da convocação de um referendo para que os cidadãos pudessem escolher o caminho a seguir: o oferecido pelo governo ou o da oposição. BBC - Pelo que entendi, naquele dia você chegou cedo ao palácio presidencial... Garcés - Na noite de 10 de setembro houve uma reunião que terminou à 1h30 da manhã com o presidente, o ministro da Defesa (Orlando Letelier), o ministro do Interior (Carlos Briones), o diretor da Televisão Nacional (Augusto Olivares ) e eu. Preparamos o discurso que Allende faria no dia seguinte. E passei a noite na residência do presidente porque a reunião de trabalho ia continuar de madrugada. Mas o diretor da Televisão Nacional, que também dormira lá, me acordou por volta das 7h15 da manhã contando que havia um levante da Marinha na zona portuária de Valparaíso (no litoral chileno, a 117 km da capital, Santiago). BBC - E então? Garcés - Depois fomos ao palácio presidencial, junto com o presidente. O presidente entrou com a informação de que o Exército era leal e assumiu seu posto de comando para dirigir a defesa do sistema constitucional. Com o passar da reunião, chegou a informação de que o golpe estava em andamento. Às 8h30 da manhã, o primeiro comando da junta pediu a Allende que entregasse a sua legitimidade como chefe de Estado à junta militar, algo que ele evidentemente se recusou a fazer. Por volta das 9h, o presidente fez seu último discurso e, quando terminou, começaram os ataques da infantaria, o ataque blindado e aéreo que durou até por volta das 13h30. O palácio estava em chamas, com fumaça, não dava para respirar. O presidente ordenou aos seus colaboradores que abandonassem o palácio porque era impossível continuar ali devido à fumaça e ao fogo. BBC - Você ficou ao lado do presidente Allende o tempo todo? Garcés - Sim, eu estava com ele. Fiquei ao seu lado durante toda a manhã até às 11h15, altura em que ele me disse para ir embora, o que salvou a minha vida. BBC - Como foi esse diálogo quando Salvador Allende ordenou que você saísse do Palácio La Moneda? Garcés - Foi no horário em que ele reuniu todos os seus colaboradores, por volta das 11h. Explicou que a sua obrigação e dever era defender o que representava como chefe de Estado e chefe das Forças Armadas. Mas não fazia sentido que o resto de nós morresse e ele nos liberou. Naquele momento ele se virou para mim, não sei por que, e me pediu para ir embora. E eu perguntei a ele a razão. E ele me deu motivos. Um deles era que alguém tinha que contar o que havia acontecido ali. "E só você pode fazer isso", ele me disse. Porque fui seu colaborador mais direto. Ele olhou para os outros colegas e todos assentiram. Ele me acompanhou até a porta e eu saí. É por isso que estou vivo. BBC - No momento em que estava na porta do La Moneda, hesitou em sair? Garcés - Hesitei, expressei minha discordância e por isso Allende me deu razões. Porque me opus à sua decisão. Mas evidentemente ele estava absolutamente certo. BBC - Você já se arrependeu de ter saído? Garcés - Não posso me arrepender, pois foi o que salvou minha vida. Vou te contar uma história. Dois dias após o golpe, o diretor-geral da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, pertencente à ONU), Enrique Iglesias, dirigiu-se ao almirante (Ismael) Huerta, que chefiava o Ministério das Relações Exteriores dos golpistas, para interceder por mim. Ele disse que se havia duas pessoas que queriam prender era o secretário-geral do Partido Socialista (Carlos Altamirano) e eu, conselheiro pessoal do presidente. E de fato, na ata secreta da reunião, no número dois, datada de 13 de setembro, há três linhas nas quais os participantes concordam em me prender se eu for localizado. Isto é, Allende salvou a minha vida. BBC - Voltando ao ataque ao La Moneda: você chegou a duvidar do que estava acontecendo? Pergunto isso por causa do número de tentativas de golpe que ocorreram antes do 11 de setembro... Garcés - Eu havia levado um pequeno rádio portátil e às 8h30 da manhã, quando ouvi o lado dos insurgentes pedindo a Allende a transmissão do comando. Naquele momento ficou muito claro para mim que as informações que tínhamos, de que o Exército era leal, estavam incorretas. Quando começou o ataque, que foi meu batismo de fogo, foi realmente impressionante. Quando você vê que eles estão metralhando, atacando com tiros de canhão... Nós, colaboradores do presidente, ficamos muito chocados com o que estava acontecendo. O que contrastava com a absoluta serenidade e tranquilidade do presidente. Naquele dia, ele estava muito sereno e controlado. BBC - E como você estava? Garcés - Eu senti que poderia morrer. Nesse momento você pensa na morte. Peguei um telefone e liguei para um amigo. Dei o endereço e o telefone dos meus pais na Espanha para que ele explicasse por que eu havia morrido. Eu estava me despedindo da vida. BBC - Vocês estava disposto a morrer ali? Garcés - Não só eu. Quando o presidente reuniu todos os seus colaboradores civis, dizendo-lhes que estavam livres para partir, nenhum deles saiu. Todos ficaram com ele. Após a agressão, todos foram presos, a maioria foi torturada, assassinada e alguns desapareceram. A equipe pessoal do presidente do Chile foi exterminada exatamente em 48 horas. BBC - O que mais você lembra daquele dia? Garcés - Me lembro que, naquela manhã, cheguei ao La Moneda com a minha pasta com os documentos de trabalho, com o discurso que estava previsto para esse dia. Quando eu ia sair, o presidente me acompanhou até a porta da frente e me perguntou: "O que você tem nessa pasta?" "Bem, os documentos com os quais estamos trabalhando." E ele me disse: "É melhor você deixar isso". Deixei a pasta com o assessor de imprensa dele, que se chamava Jorquera Negro porque era muito moreno. Mas notei que a tez do rosto dele estava verde… Ou seja, o sopro da morte foi soprado naquele momento dentro do Palácio. BBC - Durante o ataque ao La Moneda, você teve que portar armas em algum momento? Garcés - Não. O risco de um golpe de Estado já existia antes de Allende assumir o poder. Houve uma dezena de tentativas de golpe reprimidas pela hierarquia constitucionalista das Forças Armadas. Se Allende conseguiu assumir a Presidência em novembro de 1970, é porque nas Forças Armadas havia oficiais constitucionalistas, um Exército republicano. E isso esteve presente durante os primeiros três anos e foi o que sustentou o governo contra a conspiração promovida pelos Estados Unidos. Até o final de agosto de 1973 ocorreu a traição. Tal como o comandante-em-chefe (René Schneider), em outubro de 1970, se recusou a seguir as ordens de Washington e a executar o golpe, que lhe custou a vida*, o general que comandou o Exército no final de agosto (Augusto Pinochet) levou à traição. Consequentemente, desde outubro de 1970, Allende formou guarda-costas pessoais de jovens militantes do Partido Socialista que foram identificados com o programa de governo. E aqueles jovens, cerca de 15 ou 20 anos, estavam dentro do palácio (no dia 11 de setembro), eram seus guarda-costas pessoais, e todos tinham treinamento no manejo de armas. Foram eles que enfrentaram o ataque. Eles são os heróis, juntamente com o presidente, de uma batalha que militarmente não teve um resultado positivo. Para o presidente, foi uma batalha de natureza política e moral, diante da traição e de um ataque tão brutal às instituições do Estado. E Allende travou essa batalha pelo significado político. Ele era um político. E foi sua última batalha política. E se falamos desse dia hoje, 50 anos depois, é porque política e moralmente ele venceu essa batalha à custa da sua vida. BBC - Onde você se refugiou depois de sair do La Moneda? Garcés - Quando saí do La Moneda fui à residência de uma pessoa (Joaquín Leguina), amigo do meu irmão, com quem nunca estive e que não fazia parte do meu círculo pessoal e, embora estivessem me procurando, não me procuraram lá. BBC - E o que aconteceu lá? Garcés - Não podíamos sair porque havia toque de recolher. Ele (Leguina) é escritor e em um de seus livros conta sobre aquelas 72 horas em que estive na casa dele. Ele tremia... Pelo que significou naquele momento, no meio de uma ditadura brutal , onde assassinaram e mataram, onde seu nome está na televisão e no rádio... Ele sabia que se me encontrassem em sua casa, ele próprio poderia ser preso e assassinado. Naquele momento, a vida não valia nada. BBC - E você estava tremendo também? Garcés - Não, tenho um temperamento em que diante de um desafio me acalmo. Quando o toque de recolher acabou, recebi a informação de que os três corpos diplomáticos espanhóis, o núncio do Vaticano, o representante da Cepal e o embaixador (espanhol) me ofereceram a sua residência. Um gesto muito simpático. Depois de uma análise política e militar, decidi ir à residência de quem tinha um exército atrás dele, ou seja, o embaixador espanhol. E foi uma escolha decisiva. BBC - Como você saiu do Chile? Garcés - Na semana seguinte ao golpe, a Espanha enviou ao Chile um avião fretado, daqueles que são fornecidos em situações de catástrofe, com cobertores, medicamentos, etc. E a junta militar convocou o embaixador para agradecer a Espanha pelo gesto que fez ao enviar aquele avião. Naquele momento, numa situação em que o chefe da junta militar lhe agradecia, o embaixador pediu um favor: um salvo-conduto para Joan Garcés. "Mas como é possível que você, embaixador do general Francisco Franco (ditador que comandou a Espanha de 1936 a 1973), me peça salvo-conduto para um conselheiro pessoal socialista de Salvador Allende?", questionou ele. E o embaixador respondeu: "Na verdade, as ideias do general Franco são muito diferentes, mas ele é espanhol e está em território espanhol. E nessas questões a honra e a bandeira estão no meio. A Espanha não vai entregá-los a você". "Mas é uma decisão que não posso tomar, a diretoria já decidiu impedir." E então o embaixador falou: "Mas e se você for o chefe da junta?". "O comandante-em-chefe do Exército não tem autoridade para emitir um salvo-conduto?". O comandante era vaidoso. A conversa terminou com ele dizendo: "Bem, farei o que puder". E ele realmente levou o assunto para a junta militar e o general (Gustavo) Leigh (comandante-em-chefe da Aeronáutica) recusou, ele argumentou contra, dizendo que se eu saísse do país poderia causar muitos danos à junta, mas o chefe do conselho se comprometeu com o embaixador espanhol e o salvo-conduto foi aprovado. Então voltei no mesmo avião fretado, naturalmente vazio. Éramos quatro em um avião para 150 pessoas. Fui eu, meu irmão, um ex-ministro chamado Ernesto Torrealba, e outro cidadão espanhol cujo nome não lembro. BBC - Quando você descobriu que o presidente Salvador Allende havia morrido? Garcés - A rádio transmitia apenas música militar. Quando entrei na residência do embaixador, não sei se já tinha sido divulgado que ele havia morrido. Mas para mim não havia dúvida. Em seu último discurso, ele fez aquela reflexão: "pagarei com a vida". Ele disse aquele manifesto no rádio. E eu conhecia perfeitamente a mentalidade dele, sabia que ele ia morrer lutando. Sempre me perguntaram como o presidente morreu. Eu digo que não sei. Porque tenho duas versões, mas ambas as versões são indistintas para mim. A partir do momento em que ele se dispõe a morrer em combate, quem dispara a bala que o mata é irrelevante. O que importa é a sua decisão de lutar até a morte. BBC - Como você se lembra de Salvador Allende? Garcés - Sigmund Freud possui um segmento para classificar as pessoas entre dois extremos: o necrófilo e o biófilo. Allende estava claramente no extremo dos biófilos. Ele era um homem que amava a vida, as coisas boas e os prazeres da vida. Esse foi Allende. Era um homem afável, de diálogo fluente. Costumava fazer piadas e ao mesmo tempo era uma pessoa de convicções extraordinárias. (Em Allende houve) um pensamento e uma análise da realidade e dos valores que foram constantes em sua vida. Valores da Revolução Francesa liberal-democrata que começou no século do Iluminismo. Uma visão do socialismo que incorpora raízes de liberdades, racionalidade e humanidade. Allende era uma pessoa verdadeiramente humana. E no último dia de sua vida ele demonstrou isso quando sua preocupação era salvar vidas. BBC - Você conheceu Pinochet? Qual sua opinião sobre ele? Garcés - Conheci o general (Carlos) Prats. Pinochet assumiu o comando por acaso. Porque no momento em que o general Prats apresentou a sua demissão, o Allende perguntou: "Que outro general pode garantir a lealdade do Exército?" E Prats recomendou Pinochet ao seu chefe de gabinete. Se Prats tivesse recomendado outra pessoa, Pinochet teria se retirado silenciosamente e ninguém saberia de sua existência. Prats estava convencido de que ele era um homem leal. Caso contrário, eu não teria recomendado. E a tal ponto é a vilania desta pessoa (Pinochet), que um ano depois ordenou o assassinato de Prats, que estava refugiado em Buenos Aires, tendo sido seu superior e seu companheiro de armas. BBC - O que você sentiu no minuto em que Pinochet foi preso em Londres? Você sentiu uma espécie de acerto de contas com a história? Garcés - Bem, eu senti como se tivesse conseguido. Na Espanha, o juiz não pode ordenar a detenção de ninguém se o procurador ou o Ministério Público não o solicitar. O Ministério Público sempre foi a favor de Pinochet. O juiz não podia fazer nada a respeito. Só se o Ministério Público, que representei e com a minha assinatura, o pedisse. Em outras palavras, se Pinochet foi preso foi porque eu, com todas as provas que reuni das vítimas chilenas e não chilenas que representei, solicitei sua prisão. Quando ocorreu a prisão, eu estava muito tranquilo. E aí começou outra fase que foi a extradição e que termina com a decisão do juiz Roland Bartle, em outubro de 1999, onde concedeu a extradição para a Espanha. Tínhamos ganho o caso judicialmente, tanto em Espanha como no Reino Unido. O que vem a seguir são os enxágues políticos para neutralizar a ação da justiça. Mas como jurista, meu trabalho estava cumprido. *O ex-comandante-em-chefe do Exército, René Schneider, faleceu em 25 de outubro de 1970 após sofrer um atentado que buscava impedir a ratificação de Salvador Allende como presidente da República. Documentos desclassificados dos Estados Unidos, recolhidos pelo Arquivo de Segurança Nacional daquele país, provam que a CIA estava por trás da conspiração contra Schneider.
2023-09-11
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4n86m148m3o
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Áudio, Em áudio | O que antropóloga italiana aprendeu vivendo com seu bebê em comunidade na AmazôniaDuration, 21,48
'Não há a concepção de que o mundo é avassalador demais para as crianças', diz Francesca Mezzenzana sobre a diferente visão da comunidade runa quanto a criação dos filhos.
2023-09-11
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c9w0lk1e9x1o
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Em 4 pontos, o que explica grande impacto internacional de golpe no Chile há 50 anos
"Ocorreu no Chile, para desgraça dos chilenos, mas há de passar para a história como algo que aconteceu sem remédio a todos os homens deste tempo e que ficou em nossas vidas para sempre." A Bolívia era governada pelo general Hugo Banzer. O Brasil vivia há nove anos sob um regime militar que duraria 20 anos. No Uruguai, governava Juan María Bordaberry, que mais tarde seria preso por crimes contra a humanidade. Na Argentina, as Forças Armadas tomariam o poder em 1976. Por que, então, o evento no Chile ficou tão emblemático? Fim do Matérias recomendadas Na data que marca 50 anos do golpe de 11 de setembro de 1973, a BBC Mundo (serviço em espanhol da BBC) explica por que o episódio teve tanto impacto internacional. Salvador Allende não foi um líder qualquer. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O chileno foi o primeiro socialista a chegar ao poder pelo voto popular nas Américas, o que imediatamente o tornou uma figura global. Apesar das inegáveis ​​divisões que causou, e continua a causar, em seu próprio país, fora dele sua figura e seu projeto despertaram grande interesse. “Salvador Allende atraiu muita simpatia na Europa e no mundo. Ele não foi um revolucionário como Fidel Castro ou Che Guevara. Tampouco um populista. Ele era um político tradicional, que negociava, conversava”, diz David Lehmann, pesquisador da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e especialista em estudos latino-americanos, em entrevista à BBC Mundo. “Ao contrário do que aconteceu com outras forças latino-americanas como o peronismo, a aliança da Unidade Popular Chilena tinha ressonância e ligações com outros países”, continua. “Por isso, sua morte abrupta causou choque e grande decepção. O ataque a uma proposta pacífica como a dele, apesar das evidentes dificuldades que teve, foi muito chocante para muitos”, diz o especialista. Camila Vergara, doutora em teoria política e acadêmica pela Universidade de Essex, no Reino Unido, tem opinião semelhante. “Allende era uma pessoa respeitada, porque respeitava as regras do jogo. Lembremos que Che Guevara lhe deu um exemplar de seu livro e, na dedicatória, escreveu: 'Para alguém que por outros caminhos trata de obter o mesmo'", disse à BBC Mundo. Talvez um dos momentos que melhor reflete essa notoriedade seja o discurso que proferiu diante da Assembleia Geral das Nações Unidas, em setembro de 1972. “Nesse discurso, Allende denunciou o que estava acontecendo no Chile e a intromissão internacional na soberania do país; falou de como suas mãos estavam atadas na hora de fazer políticas públicas (...) É um discurso humano, erudito e verdadeiro que continua ressoando até hoje”, disse. Ao terminar, Allende foi aplaudido de pé, o que só se repetiu em 2013, quando Nelson Mandela ocupou o mesmo palanque. Segundo Vergara, o golpe contra Allende foi entendido como “o fim violento do movimento operário em todo o mundo”. "Era o fim de uma promessa de um verdadeiro governo popular, por isso foi tão sentido na Europa”, afirma. Os analistas concordam que, além disso, o Chile era visto como um país com longa tradição democrática. E a chegada ao poder, em 1970, de um líder de esquerda, que representou um desafio para os Estados Unidos em tempos vertiginosos, foi mais uma prova disso. Outra razão que explica o fato de o 11 de setembro de 1973 ainda ser considerado um marco são as inúmeras imagens que correram o mundo graças à ampla cobertura que o episódio teve na imprensa internacional. E elas se tornaram icônicas. “Podemos descrevê-lo como o primeiro golpe latino-americano que, desde as suas origens, passando pela sua execução até as suas consequências, foi coberto pela imprensa ocidental”, disse Kristian Gustafson, especialista em inteligência e segurança da Universidade Brunel, em Londres, em uma entrevista publicada pela BBC em 2013. “São imagens com um impacto enorme”, diz Michael Reid, escritor e jornalista britânico especializado em América Latina. “Especialmente o ataque ao La Moneda pela própria Força Aérea Chilena. Eles estavam bombardeando seu próprio palácio presidencial”, acrescenta. Para Camila Vergara, o ocorrido foi ainda mais chocante na Europa, já que algumas das ações realizadas pelos militares estavam relacionadas “à memória visual do movimento fascista alemão”. “Eu me refiro à queima de livros ou de centros de detenção. E isso foi muito forte”, diz a historiadora. A figura de Pinochet como líder do golpe também teve grande impacto internacional. Ao mesmo tempo em que seus seguidores consideravam que ele tinha salvado o Chile de um governo que arruinava o país, Pinochet tornou-se um dos ícones da violação dos direitos humanos no mundo. Pinochet esteve no poder por muitos anos (17, no total), em contraste com os generais que se sucederam nas ditaduras da Argentina e do Brasil, por exemplo. Para Alan Angell, acadêmico da Universidade de Oxford e especialista em política latino-americana, as fotografias distribuídas de Pinochet com seus óculos escuros representavam “quase uma paródia da imagem dos ditadores”. "Os militares chilenos foram mais eficazes em sua brutalidade. Eles atacaram militantes suspeitos com mais precisão. Eles tinham muito mais informações. E menos oposição", disse Angell à BBC Mundo em um artigo publicado em 2013. De acordo com diversas Comissões da Verdade, o número total de vítimas oficialmente classificadas no Chile é de 40.175 pessoas, incluindo execuções políticas, presos desaparecidos e vítimas de prisão política e tortura. O pesquisador David Lehmann aponta que outro ponto relevante é que “a partir do que aconteceu no Chile, os direitos humanos foram profissionalizados não só na América Latina, mas também no mundo”. “Houve muita solidariedade. Ao contrário da Argentina ou do Brasil, que também tiveram regimes militares, neste caso floresceram organizações de apoio às vítimas de perseguição. Muita militância internacional surgiu em torno do Chile porque era um país que repercutia e atraía (atenção)”, explica Lehmann. O especialista lembra que no Reino Unido, por exemplo, foi criado um programa de ajuda para resgatar acadêmicos e estudantes, e que isso se repetiu em outros países. “Governos abriram representações diplomáticas dando apoio oficial, algo muito raro, o que em outros casos não aconteceu. Aqueles que procuravam asilo foram reconhecidos. Foi uma loucura, embaixadas como a sueca ou a francesa estavam cheias de exilados”, afirma. “O golpe no Chile marca o início de um enfoque maior dos direitos humanos na integridade física, entendida como abuso ou tortura”, afirma Camila Vergara. “Surge um maior compromisso da Europa com os direitos humanos.” Michael Reid acrescenta que a prisão de Pinochet em Londres, em 1998, foi também um marco no debate jurídico. “Isso deu o tom para a jurisdição universal contra crimes contra a humanidade”, diz ele. O exílio político durante a ditadura de Pinochet representa o maior movimento migratório da história do Chile, totalizando mais de 200 mil pessoas forçadas a deixar o país. Esta expatriação em massa — rumo a países como Argentina, México, Cuba, Itália, Suécia e Alemanha — influenciou muitos estrangeiros a se solidarizarem com o que estava acontecendo devido ao regime militar. Mas talvez ainda mais importante do que o volume da migração foi o nível de organização política e cultural que esta diáspora tinha no mundo. “Muitos exilados foram educados tanto política como economicamente. E conseguiram se inserir na esquerda europeia e latino-americana com muita facilidade”, explica Michael Reid. Assim, os chilenos deixaram uma marca importante nos locais onde foram morar. E uma das áreas onde isso foi mais palpável é a música. Os exilados conseguiram criar e difundir hinos de protesto que ressoam até hoje em todo o mundo. “Muitos dos que saíram não eram apenas cantores, mas ativistas, que teriam dado a vida pela emancipação do povo”, explica Camila Vergara. “A repressão brutal não teve meios-tons. Formou-se então uma rede de solidariedade quase invisível, onde os estrangeiros partilhavam suas lutas, suas canções e seus hinos de protesto”, acrescenta. Muitos dos artistas da Nova Canção Chilena, movimento musical-social que nasceu na década de 1960, foram vítimas da ditadura, entre eles Víctor Jara, que foi torturado e assassinado no antigo Estádio Chile que hoje leva seu nome. Sua obra virou referência internacional em canções de protesto. Outros músicos sobreviventes levaram suas canções para o exílio. Inti Illimani manteve viva a chama do Chile na Itália, enquanto Patricio Manns o fez em Cuba e na França. O grupo Quilapayún se estabeleceu nesse mesmo país. Seu emblemático hino “O povo unido nunca será derrotado” permaneceu na memória global e se repete até hoje nas ruas de muitos lugares do mundo. E em diferentes idiomas, incluindo o português. *Com reportagem de Dalia Ventura, da BBC Mundo
2023-09-11
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EUA devem pedir desculpas pelo golpe de Pinochet no Chile?
O contato telefônico entre Richard Nixon (1913-1994) e Henry Kissinger naquele domingo de manhã começou quase como uma conversa entre amigos comentando uma partida de futebol que seria disputada logo mais. Na época, Nixon era o presidente dos Estados Unidos, enquanto Kissinger era seu conselheiro de Segurança Nacional. O diálogo logo se voltou para o golpe de Estado ocorrido no Chile cinco dias antes — em 11 de setembro de 1973 — e a ditadura militar que tinha início no país. “Aquilo do Chile está se consolidando”, informou Kissinger ao presidente, ignorando as críticas de parte da imprensa à derrubada do governo democraticamente eleito daquele país. “No tempo de Eisenhower [presidente dos EUA entre 1953 e 1961], seríamos heróis.” “Mas, neste caso, a nossa mão não aparece”, comentou Nixon. Ao que Kissinger respondeu: “Nós não fizemos. Quero dizer, nós ajudamos.” Fim do Matérias recomendadas Este diálogo é um dos diversos registros que perderam o status de confidencial ao longo dos anos em Washington. Ele é parte das evidências do papel desempenhado pelos Estados Unidos na deposição do presidente socialista do Chile Salvador Allende (1908-1973), e na ruptura social e institucional provocada pelo golpe militar de 1973 no país. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Com a chegada do 50º aniversário deste trágico episódio, uma pergunta formulada há décadas volta a ser discutida: os Estados Unidos deveriam pedir desculpas por terem propiciado o golpe militar no Chile? Fontes diplomáticas indicaram à BBC News Mundo — o serviço em espanhol da BBC — que membros do Congresso norte-americano, de fato, estão considerando a possibilidade de criar uma resolução que sugira algum tipo de mea culpa por parte de Washington. Consultado a respeito, o embaixador chileno nos Estados Unidos, Juan Gabriel Valdés, afirma que a preocupação de seu país é obter acesso aos arquivos norte-americanos sobre o golpe que ainda permanecem em confidencialidade. Mas ele diz que receberia com apreço um gesto de arrependimento ou pedido de desculpas de Washington, mesmo sem apresentar uma reivindicação formal. “Eu diria que, para nós, um gesto desta natureza seria algo que apreciaríamos profundamente e teria um valor enorme para nossas relações”, afirma Valdés. Meio século depois, a sociedade chilena ainda carrega opiniões divididas sobre o golpe de Estado liderado por Augusto Pinochet (1915-2006), que governou o país com mão de ferro entre 1973 e 1990. Alguns condenam o levante armado e as violações dos direitos humanos que se seguiram. Outros acreditam que a intervenção militar salvou o país do rumo tomado com a eleição de Allende. E existem sinais claros que as feridas causadas por este capítulo da história chilena permanecem abertas. Ao longo dos anos, esta tarefa vem sendo conduzida unicamente pelas famílias das vítimas e por grupos de defesa dos direitos humanos. Na mesma semana, sete ex-militares foram condenados pelo sequestro e brutal assassinato do cantor chileno Víctor Jara, em 16 de setembro de 1973 — mesmo dia da conversa entre Nixon e Kissinger — no Estádio Nacional do Chile, em Santiago, que foi transformado em centro de detenção e tortura após a deposição e morte de Salvador Allende. Em paralelo, os Estados Unidos continuam gradualmente a retirar confidencialidade e publicar documentos sigilosos que registram o que aconteceu no Chile e demonstram como seu próprio aparato oficial atuou durante os anos de Allende. O governo de Boric foi responsável por solicitar este material a Washington. “É natural que um país que sofreu um trauma desta natureza possa tratar de reconstituir como e por que este trauma aconteceu”, explica Valdés. O embaixador destaca que o governo americano — que ele classifica como “amigo” — respondeu que iria trabalhar para extinguir a confidencialidade do material sobre o período do golpe militar no Chile que permanece em segredo. “Queremos entender que, ao tornar públicos os documentos que nos serão entregues, os Estados Unidos estão declarando, na verdade, que isso nunca deveria ter acontecido”, afirma o diplomata. “Pois todos os documentos que estamos lendo são de uma intervenção totalmente indevida, muitas vezes brutal, nos assuntos internos do Chile.” Os arquivos revelados indicam que, no auge da Guerra Fria, a principal preocupação dos Estados Unidos sobre Allende era a possibilidade de que seu governo socialista (o primeiro a chegar ao poder pela via democrática) pudesse “consolidar-se e projetar ao mundo uma imagem de sucesso”, segundo explicou o próprio Nixon ao seu Conselho de Segurança Nacional, em novembro de 1970. Para impedir esta situação, os arquivos demonstram que Washington boicotou a presidência de Allende, desde sua eleição naquele ano. Os Estados Unidos realizaram então operações sigilosas, tentando evitar que o Congresso chileno ratificasse sua vitória. Por meio da CIA, sua agência de inteligência, Washington apoiou um plano fracassado de sequestrar o comandante-chefe do Exército chileno, René Schneider, que defendia o cumprimento da Constituição do país e acabou sendo assassinado. Após a posse de Allende, os Estados Unidos tentaram sufocar o governo, debilitando a economia chilena ou financiando sua oposição. A documentação disponível também indica que Kissinger foi importante para que os Estados Unidos apoiassem o regime de Pinochet nos seus primeiros anos, apesar das preocupações com suas graves violações dos direitos humanos que surgiam em todo o mundo, incluindo em alguns círculos políticos em Washington. Em resposta ao pedido chileno, o governo do presidente americano Joe Biden revelou, no final de agosto, mais dois arquivos secretos: os relatórios da CIA que foram recebidos por Nixon nos dias 8 e 11 de setembro de 1973. O primeiro relatório advertia o presidente sobre uma possível tentativa de golpe militar de Chile. Segundo a CIA, Allende acreditava que “a única solução é política”. O segundo relatório, recebido no mesmo dia do golpe, indicava que os militares chilenos estavam “decididos a restabelecer a ordem política e econômica”, embora talvez não contassem com “um plano coordenado e eficaz que aproveitasse a ampla oposição civil”. O Departamento de Estado dos Estados Unidos afirma que a divulgação destes documentos, além dos milhares de outros papéis revelados anteriormente, demonstra seu compromisso de colaboração com o Chile, de forma coerente com os “esforços conjuntos para promover a democracia e os direitos humanos”. Esta ação foi aplaudida pelos que defendem que Washington trate com mais abertura suas ações durante o golpe militar chileno, embora alguns considerem que ainda haja muito por fazer. Joaquín Castro é o congressista democrata que ocupa o mais alto posto no subcomitê de assuntos exteriores para o Hemisfério Ocidental da Câmara de Representantes dos Estados Unidos. Ele acredita que é preciso identificar e revelar os registros restantes sobre o episódio para reconhecer o que aconteceu. “Se os Estados Unidos quiserem ter relações honestas com a América Latina, precisamos ser honestos sobre nossa cumplicidade do passado e tomar medidas para não repetir nossos erros no futuro”, afirmou Castro à BBC. Recentemente, Joaquín Castro visitou Santiago com uma delegação de legisladores norte-americanos. O grupo incluiu a deputada Alexandria Ocasio-Cortez, que também pediu que Washington tire a confidencialidade dos documentos sobre o golpe de Estado no Chile e assuma “plena e publicamente a responsabilidade” pelo seu papel histórico na região. A questão sobre um possível pedido de desculpas de Washington pela derrubada da democracia chilena foi apresentada pela primeira vez pouco depois do golpe militar. Em 1977, o diplomata norte-americano Brady Tyson expressou, perante a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas em Genebra, na Suíça, o “mais profundo arrependimento” pelo papel do seu país na subversão do governo de Salvador Allende. Mas, horas depois, o então presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter, classificou a declaração como “inadequada”. E o Departamento de Estado americano afirmou que Tyson havia se pronunciado em caráter pessoal, sem aprovação prévia — e o chamou de volta para Washington. Este episódio demonstrou como o assunto era delicado para a Casa Branca. O próprio Carter, quando era candidato democrata à presidência, havia criticado o governo republicano que o precedeu por ter “derrubado um governo eleito e ajudado a estabelecer uma ditadura militar” no Chile. E, para justificar sua posição enquanto presidente, Carter mencionou uma investigação realizada por um comitê do Senado americano, em 1975, sobre as ações sigilosas dos Estados Unidos no Chile. Na ocasião, não foram encontradas provas do envolvimento direto de Washington no golpe militar. O especialista do Arquivo de Segurança Nacional de Washington Peter Kornbluh passou décadas investigando o episódio. Ele afirma que, embora “os documentos dos Estados Unidos não demonstrem papel direto do governo norte-americano e da CIA no golpe propriamente dito, eles evidenciam três anos de esforços para desestabilizar o Chile”. “Os registros desclassificados mostram que a intenção dessas operações era garantir o fracasso de Allende e criar condições para que ele pudesse ser derrubado”, diz Kornbluh à BBC News Mundo. E acrescenta que “nos três primeiros anos da ditadura de Pinochet, os mais sangrentos, os Estados Unidos forneceram ajuda econômica e militar”. Mas os tempos mudaram desde aquela época. E, recentemente, diversos países e instituições vêm se desculpando por suas ações do passado. Foi o caso de outro ex-presidente americano, Bill Clinton, que se desculpou em 1999 pelo apoio fornecido pelo seu país a forças militares e unidades de inteligência da Guatemala, que mataram dezenas de milhares de pessoas na guerra civil travada no país entre 1960 e 1996. Ele destacou que Washington “não deve repetir este erro”. Em 2010, já no governo Barack Obama, Washington também pediu desculpas à Guatemala por experimentos realizados na década de 1940. Na ocasião, cientistas dos Estados Unidos infectaram deliberadamente centenas de pessoas do país centro-americano com doenças venéreas, como parte de estudos médicos. Mas os Estados Unidos “nunca assumiram o custo” causado pela ruptura democrática no Chile, segundo a premiada jornalista chilena Mónica González, autora do livro La Conjura: los mil y un días del golpe (“A conspiração: os mil e um dias do golpe”, em tradução livre). “Qual foi o custo?”, pergunta González. “Não só os mais de 3.000 detidos, desaparecidos e executados. São os 250 mil exilados, famílias que encontramos todos os dias, atingidas por bombas de fragmentação, porque ficaram despedaçadas.” No ano 2000, o governo Clinton anunciou a liberação de milhares de documentos antes considerados confidenciais, defendendo que o público poderia “julgar por si mesmo até que ponto as ações dos Estados Unidos debilitaram a causa da democracia e dos direitos humanos no Chile”. “As ações aprovadas pelo governo dos Estados Unidos durante aquele período agravaram a polarização política e prejudicaram a longa tradição chilena de eleições democráticas e respeito pela ordem constitucional e pelo Estado de direito”, indicou a Casa Branca na ocasião. Quando Obama visitou Santiago em 2011, durante seu primeiro mandato presidencial, um jornalista perguntou se os Estados Unidos pediriam perdão pelo que fizeram no Chile nos anos 1970. O presidente americano respondeu que não podia “falar sobre todas as políticas do passado”. “É importante aprender com a nossa história, compreender a nossa história, mas sem nos deixarmos capturar por ela, pois temos muitos objetivos pela frente”, defendeu Obama. O conselheiro de Segurança Nacional de Barack Obama para a América Latina, Dan Restrepo, afirmou posteriormente aos jornalistas que algumas das ações norte-americanas na região foram “ruins”, mas evitou entrar em detalhes sobre o Chile. A BBC News Mundo tentou falar com o governo Joe Biden sobre o papel desempenhado pelos Estados Unidos no país sul-americano meio século atrás e sobre a possibilidade de apresentação de um pedido de desculpas pelo episódio. Mas a Casa Branca não respondeu até a publicação desta reportagem. “Os governos não gostam de se desculpar, nem de admitir erros”, afirma Kornbluh. “Certamente, há uma posição nacionalista [ou] legal.” Mas ele acrescenta que “50 anos depois, é o caso de expressar o profundo pesar pelas operações secretas para minar o processo constitucional no Chile” e “pelo papel dos Estados Unidos no apoio à estrutura de repressão” de Pinochet. “Acredito que estes dois fatos violam os valores do povo norte-americano e são relevantes hoje, pois muitos países, incluindo os próprios Estados Unidos, enfrentam a ameaça do autoritarismo e a perda de força das instituições democráticas”, conclui o analista.
2023-09-10
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw087x88lq5o
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Choquequirao: a 'outra Machu Picchu' menos conhecida e visitada do Peru
Se lhe perguntarem sobre o monumento mais conhecido do Peru, certamente o primeiro nome que lhe virá à mente é Machu Picchu. As ruínas dessa antiga cidadela inca são um símbolo do país, e todos os anos são visitadas por centenas de milhares de turistas de todo o mundo. Mas, apesar da crença generalizada, Machu Picchu não é o único monumento desse gênero. Em outro local do Departamento (Estado) de Cusco, também nas alturas andinas, fica o sítio arqueológico de Choquequirao, ruínas incas semelhantes, mas muito menos conhecidas e frequentadas. Alguns a chamam de "a outra Machu Picchu". Outros a descrevem como "a irmã mais nova de Machu Picchu". Nesse caso, ela ainda tem muito menos fama do que sua irmã mais velha. Fim do Matérias recomendadas Se as facilidades para chegar a Machu Picchu são tantas que se tornou um grande destino turístico, Choquequirao é muito mais exigente para o viajante que deseja conhecer seus segredos. Esta é a história do monumento. Escondida em uma área isolada da cordilheira dos Andes, a cidadela de Choquequirao exige tempo e esforço de quem deseja visitá-la. E todos os percursos até lá demoram pelo menos dois ou três dias a pé. Você tem que voar para Cusco e de lá dirigir várias horas de carro até a cidade de Capuliyoc. A maioria dos que se aventuram a conhecê-la inicia seu roteiro por lá. É necessária uma certa preparação física e mental, já que o percurso percorre a serra de Cusco, a mais de 3.000 metros acima do nível do mar, onde as temperaturas podem ser muito frias em determinadas épocas do ano, ao que se soma a possibilidade de episódios de soroche, como os peruanos conhecem o mal da altitude. O terreno acidentado, atravessado por obstáculos como o rio Apurímac ou o pico nevado Padreyoc, tornam esse percurso muito desejado pelos amantes das caminhadas, mas também um trajeto que torna alguns cuidados necessários para quem ousar realizá-lo. Alguns moradores oferecem serviços de guia para forasterios e mulas para carregar equipamentos durante a subida. Quem já fez isso garante que o esforço vale a pena. Guillaume Flor, um francês que visitou Choquequirao com a família, disse à BBC Mundo (serviço da BBC em espanhol) que "foi uma experiência extraordinária". "Choquequirao é um lugar mágico onde se pode admirar a arquitetura dos incas. É menor que Machu Picchu, mas a presença de tantos turistas por lá mata um pouco a magia. Quando fomos, não havia mais de dez pessoas em Choquequirao". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os arqueólogos estimam que o complexo Choquequirao foi construído por volta do ano 1450. Pieter Van Dalen, especialista em cultura inca da Universidad Nacional Mayor de San Marcos, disse à BBC Mundo que "foi construído no auge do poder inca, quando foram feitas tentativas de replicar em todos os territórios do império que os incas haviam estabelecido, subjugando outras cidades, assentamentos semelhantes ao de Cusco, que era a capital dos incas e o centro de seu mundo". Não se sabe qual era exatamente a função de Choquequirao, mas acredita-se que tivesse uma dimensão religiosa e especula-se que serviu para conectar Machu Picchu e outros locais estratégicos para os incas com a região amazônica. Seu difícil acesso também alimentou a teoria de que Choquequirao poderia ter sido um dos últimos redutos da resistência inca aos conquistadores espanhóis nas primeiras décadas do século 16. O que fica claro pela sua complexidade, proximidade com Cusco e dimensões, mais de 522.000 hectares, é que deve ter sido um local de importância para os incas. Van Dalen aponta que "Choquequirao poderia ter uma população de cerca de 2 mil pessoas, a maioria delas deslocadas de outros lugares do império inca para realizar tarefas agrícolas, administrativas ou outras". Com a conquista espanhola e o subsequente colapso do império inca, Choquequirao foi abandonada. Até que, em 1993, ali começaram a ser realizadas escavações arqueológicas que permitiram resgatá-la do esquecimento e, segundo o Ministério da Cultura do Peru, destacar 60% dos vestígios arquitetônicos encontrados. Hoje, o local é apresentado ao visitante dividido em doze setores, nos quais se encontram em bom estado as estruturas e edifícios deixados pelos incas. Dentre elas, destacam-se as chamadas Moradias dos Padres; as Casas Principais com acesso à sua praça, onde provavelmente residiam os notáveis ​​do local; ou os Terraços das Lhamas, estruturas escalonadas nas quais sobrevivem representações dos camelídeos tão característicos dos Andes peruanos. A três quilômetros do parque arqueológico encontra-se a aldeia de Marampata, o centro povoado mais próximo e onde residem cerca de 40 famílias que ali vivem do que cultivam e dos turistas que chegam ao local, cerca de 9.800 por ano, segundo dados oficiais. Só em 2022, Machu Picchu recebeu mais de um milhão de pessoas, o que tem encorajado vozes que questionam se a sua exploração turística não chegou ao ponto de comprometer a sua conservação. O turismo em torno de Choquequirao permanece, por enquanto, em pequena escala e nas mãos dos habitantes locais. Nancy Tapia é uma das que encontraram fonte de renda como guia turística. "Muitas pessoas chegam de outros lugares do Peru, mas também estrangeiros de todo o mundo", disse ela à BBC Mundo. Dados oficiais indicam que a maioria dos visitantes são franceses. Não importa de onde venham, diz Tapia, "eles tendem a ficar impressionados com a caminhada e o ambiente". E não são apenas as pedras e a solidão que fazem deste um lugar especial. A imponente paisagem que a rodeia e a sua solidão criam um ambiente muito apreciado pelos amantes do turismo de aventura e da fuga ao convencional. O governo de Dina Boluarte tem planos para facilitar a chegada de turistas a esse lugar remoto. Em abril passado, o presidente do Conselho de Ministros, Alberto Otárola, anunciou a intenção do Executivo de retomar um antigo projeto de construção de um teleférico que permita chegar confortavelmente a Choquequirao em cerca de 30 minutos, muito menos do que os vários dias de árdua caminhada necessários atualmente. A presidente declarou em agosto seu desejo de que o teleférico estivesse funcionando já em 2024. Facilitar a chegada de turistas poderia servir para impulsionar a economia em uma área rural e subdesenvolvida do Peru, mas o teleférico planejado gerou um conflito entre diferentes populações que exigem ser incluídas na rota para se beneficiarem do desenvolvimento e do fluxo de visitantes. A construção do teleférico englobaria os territórios dos Departamentos de Cusco e do vizinho Apurímac, mas o governador regional de Cusco, Werner Salcedo, expressou recentemente sua rejeição ao projeto atual. Num país habituado a conflitos sociais em torno da exploração dos seus recursos e da construção de infra-estruturas, será difícil que a iniciativa avance se não for alcançado um acordo entre todas as partes. Talvez sejam más notícias para as comunidades locais ansiosas por receber dinheiro do turismo; mas, para os fãs de explorar os caminhos menos percorridos, há a tranquilidade de que o destino ainda manterá seu romantismo original por algum tempo.
2023-09-09
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Chile: 50 anos após golpe militar, sociedade está desorientada, diz sociólogo
Dividido, tenso, polarizado: estes são alguns dos adjetivos ouvidos no Chile para descrever o clima político que antecedeu o marco de 50 anos do golpe militar que derrubou o presidente Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973. As tensões ficaram evidentes em todos os setores da sociedade, incluindo o governo e o poder legislativo. O Ministério da Cultura do país, encarregado das celebrações, teve três titulares e o assessor presidencial para o evento renunciou ao cargo em julho. No Congresso, as divergências chegaram ao auge em uma sessão realizada em agosto, quando a direita e a ultradireita saíram em apoio à declaração parlamentar de cinco décadas atrás, que acusou Allende (1908-1973) de romper a ordem constitucional – poucos dias antes da sua deposição e morte. Parte dos representantes do governo e da esquerda abandonou o salão durante o anúncio, enquanto outros exibiam fotos de pessoas desaparecidas na ditadura, pedindo “justiça, verdade, não à impunidade”. Fim do Matérias recomendadas As redes sociais também refletem o grande abismo que separa as pessoas que defendem o golpe liderado por Augusto Pinochet (1915-2006) dos seus detratores e milhares de vítimas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O que estará acontecendo no Chile, 50 anos depois do golpe militar? A BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC) conversou com Hugo Rojas, doutor em sociologia da Universidade de Oxford, no Reino Unido, e professor de Direitos Humanos da Universidade Alberto Hurtado, em Santiago do Chile. Para ele, “infelizmente, esta comemoração não está sendo aproveitada como um momento propício para refletir sobre a nossa história recente, nossas dores, aprendizados, lições, recomendações e propostas para o futuro”. Em 2004, Rojas colaborou com a “Comissão Valech”, criada pelo ex-presidente chileno Ricardo Lagos para identificar pessoas detidas e torturadas por agentes ou pessoas a serviço do Estado sob o regime militar. Ele também contribuiu sobre questões de probidade no primeiro governo da ex-presidente Michelle Bachelet, entre 2006 e 2010. Rojas é o autor do livro Past Human Rights Violations and the Question of Indifference: The Case of Chile (“Violações dos direitos humanos do passado e a questão da indiferença: o caso do Chile”, em tradução livre). Publicado em 2022, o livro é descrito pela editora britânica Palgrave MacMillan Cham como “a primeira análise científica sobre a indiferença ante as sistemáticas violações em massa dos direitos humanos em uma sociedade polarizada”. Confira abaixo a entrevista concedida pelo professor Hugo Rojas à BBC News Mundo. BBC News Mundo - Como o sr. observou os dias que antecederam a celebração dos 50 anos do golpe militar no Chile? Hugo Rojas - Pensei que este poderia ter sido um momento para nos observarmos enquanto sociedade e reconhecer as tragédias, as profundas feridas que temos no Chile e tratar de compreendê-las. Mas, como essas verdades, essas feridas, não são conhecidas por toda a sociedade, não foi possível nem aprender a respeito, nem formar um consenso. Acredito que o mais grave é que, na sociedade chilena, não existe uma cultura dos direitos humanos. Na minha tese de doutorado, estudei uma pesquisa nacional e concluí que, no país, apenas 38% das pessoas adultas têm compromisso com os direitos humanos e a justiça de transição [a forma como as Nações Unidas descrevem os processos e mecanismos para abordar as consequências de um passado de abusos em grande escala]. Por outro lado, existem 28% que são hostis a estes conceitos e, depois, temos outros dois grupos muito interessantes. Um grupo de 16% é claramente indiferente: não quer saber, falar os incomoda, não quer perguntar. E outros 18% são ambivalentes – eles prestam atenção em algumas coisas, interessam-se em saber que seus filhos recebam educação na escola sobre o que aconteceu na ditadura, por exemplo, mas não concordam em financiar uma lei de locais de memória. São pessoas que mantêm contradições. BBC - Quais são as consequências? Rojas - Isso explica por que demoramos tanto no Chile a acertar nossas contas com o passado e com o processo de justiça de transição. Tivemos conquistas importantes (como a reparação, memória, justiça e garantia de que não se repita), mas porque elas foram ocasionadas por um grupo da população que dá importância a elas. Mas diversos desafios importantes ainda permanecem. E, neste grupo, os mais comprometidos são as vítimas e seus familiares, que contaram com a colaboração de algumas pessoas mais sensíveis ou dirigentes políticos que apresentaram suas exigências para debate público. O que quero transmitir é que existem setores da nossa sociedade que estão incomodados com a celebração dos 50 anos, que acham muito problemático iniciar conversações, porque acreditam que existem muitas pessoas que poderiam se queixar, reclamar e considerar inadequado. Estas são as dificuldades habituais que enfrentamos ao tentar trabalhar pela justiça de transição no Chile. Às vezes, conseguimos convencer as pessoas, mas fracassamos na maior parte do tempo. BBC - O sr. também mencionou que falta conhecimento sobre o que aconteceu. Rojas - Observo que os processos de socialização sobre o que aconteceu na ditadura fracassaram. Porque você precisa convidar as pessoas para conhecer algo que é doloroso. E as pessoas, em um mecanismo de autodefesa e proteção, evitam estas informações que podem ser perturbadoras. A habilidade reside em encontrar os mecanismos para comunicar sobre estes temas. Também acredito que precisamos ser mais criativos. Este é um desafio para o cinema, a literatura e o jornalismo, pois também é preciso fazer com que estes temas entrem na cultura popular. Quando você fala com raiva, com denúncia, não atinge o objetivo esperado. É preciso encontrar formas de falar para os indiferentes e para os ambivalentes, sem que eles mudem de canal. E também falar para os nostálgicos da ditadura, sobretudo para seus filhos, filhas e netos. A Alemanha conseguiu fazer isso com sucesso. BBC - O que o sr. destacaria do trabalho desenvolvido na Alemanha? Rojas - Na Alemanha, depois da guerra, instalou-se a necessidade de refletir sobre o sentido da culpa, que o que havia acontecido não foi somente obra dos nazistas, mas sim algo que envolvia toda a sociedade. Que, sim, uma coisa eram os criminosos, mas outra coisa era a sociedade: o que aconteceu conosco? Esta é uma reflexão que não ocorreu no Chile. O que aconteceu conosco? Por que fracassamos, enquanto sociedade, com o rompimento da nossa democracia? Deixamos de viver sob o Estado de Direito por anos, sem reconhecer os direitos humanos. Esta é uma reflexão poderosa. Quando você reconhece a culpa, é preciso esclarecer o que aconteceu, fazer com que a verdade seja conhecida. É preciso que esta verdade esteja presente. Não temos estas coisas no Chile. Existem muito poucas exceções. BBC - Existem pessoas que irão se perguntar por que devem assumir a culpa de fatos dos quais não participaram, por fatos ocorridos antes mesmo que elas tivessem nascido... Rojas - Na Alemanha, este é um assunto público. E é considerado um tema intergeracional. Para nós, no Chile, este é um assunto privado, particular da vítima e do perpetrador. Esta é uma grande diferença. Porque, quando você considera o tema como assunto público, é preciso estudá-lo na escola, analisá-lo a sério, é preciso observar o que aconteceu – no caso da Alemanha, observar as origens do antissemitismo. Aqui no Chile, não existe ensino de reflexões culturais nas escolas. E também enfrentamos os tabus. BBC - Qual o peso da falta de informação sobre o que aconteceu? Rojas - Esta poderia ter sido uma discussão deste ano. Qual incentivo têm as pessoas para romper os pactos de silêncio? Nenhum. Na África do Sul, eles disseram: “muito bem, vamos anistiar você se você declarar em público, às claras, mostrar arrependimento, explicar os fatos, explicar sua participação, se pedir perdão às vítimas e aos povos da África do Sul, nós vamos perdoar você e não vamos colocar você na cadeia”. Eles optaram por este caminho, pois queriam que a verdade fosse conhecida e que as pessoas que cometeram os crimes pedissem perdão. Nós optamos por manter estes assuntos nos tribunais. E ali estão os juízes, que também precisam de mais recursos para resolver estas 2.040 causas de direitos humanos pendentes... Ou, caso contrário, a solução chilena seria de impunidade biológica, já que os acusados, os réus, irão morrer. E também irão morrer as vítimas e seus familiares mais diretos. No Chile, seria bom discutir, legal e politicamente, quais incentivos podem ser oferecidos para que as pessoas forneçam as informações que elas detêm. BBC - O que foi diferente nesta celebração dos 50 anos em relação aos aniversários anteriores? Rojas - Foi diferente. Na ocasião dos 30 anos, em 2003, o então presidente Ricardo Lagos deu um discurso chamado “Não existe amanhã sem ontem”. Ele defendeu um plano com metas concretas, anunciando a criação de uma comissão sobre prisões políticas e torturas. Ele reconheceu que, nos primeiros 13 anos da transição, o tema das vítimas de tortura não havia sido abordado pelo Estado. Não era algo simples. Pinochet estava sendo investigado pelo juiz [Juan] Guzmán. O cenário mudou em 2013, no governo do presidente Sebastián Piñera, para os 40 anos. Mas, embora a forma de refletir do Estado tenha sido fraca, houve muita atividade na sociedade civil. Houve importantes séries de televisão sobre o assunto, começaram a surgir publicações, investigações jornalísticas, mais sentenças foram publicadas e havia mais material. Eu pensei que, em 2023, continuaríamos nesta tendência. Já tínhamos o Museu da Memória e o Instituto Nacional de Direitos Humanos, mas, agora, estamos congelados. Estamos caminhando na ponta dos pés. BBC - O que o sr. quer dizer com isso? Fracassamos na primeira tentativa e não estou otimista quanto à segunda porque, hoje, as pesquisas demonstram que a maioria da população, neste momento, reprovaria a proposta de uma nova Constituição que ainda não conhecemos. Acredito que a sociedade chilena está desorientada, não temos um norte claro. Qual é o projeto de país, quais são as normas básicas que nos congregam? Estamos nocauteados. Estamos demorando a nos colocar de pé. Ficamos atordoados. E isso coincide com a comemoração dos 50 anos. Uma sociedade atordoada prefere não falar destes assuntos porque não está preparada. BBC - O sr. acredita que tenha sido uma espécie de “tempestade perfeita”? Rojas - Mais que uma tempestade perfeita, estamos em um redemoinho com diversas correntes que deixam os cidadãos perplexos. BBC - Uma pesquisa do CERC (Centro de Estudos da Realidade Contemporânea) e do instituto MORI indica que o percentual de pessoas que acreditam que houve uma razão para o golpe de Estado de 1973 caiu de 36% em 2003 para 16% em 2013, mas voltou para 36% em 2023. Como o sr. vê a figura de Pinochet depois de 50 anos? Rojas - Acredito que a figura de Pinochet seja cada vez mais rechaçada, porque estamos sabendo mais sobre o que ele fez. Na verdade, os setores pinochetistas são cada vez mais reduzidos. O apoio à sua figura não é majoritário e vem se reduzindo com os anos de transição. O apoio foi de 44% no plebiscito de 1988 e este percentual foi diminuindo. Outra coisa é que, quando estamos em uma sensação de desamparo, de estar frente a um turbilhão, as pessoas dizem que precisam de uma figura forte, autoritária, que estabeleça a ordem. Este sentimento pode estar crescendo e a figura de alguém com poder talvez esteja se tornando mais atraente. Não é possível fazer Pinochet renascer, mas pode ser que se procure alguém com perfil similar. Isso me preocupa. BBC - Definitivamente, existe mais divisão nos 50 anos ou esta é a divisão que sempre existiu? Rojas - Continuamos divididos entre aqueles que atribuem importância aos direitos humanos, os que preferem não conversar a respeito e aqueles que, infelizmente, oferecem justificativas ao que aconteceu na ditadura. BBC - Todos os anos de transição não conseguiram mudar isso? Rojas - Não. E a sociedade chilena continua se segmentando. Não é uma sociedade inclusiva. Ela está repleta de barreiras invisíveis onde não há conversas entre quem pensa diferente. Não aprendemos na escola a dialogar com respeito e tolerância em espaços onde há diferenças. Por isso, as pessoas semelhantes se congregam nas escolas, nas universidades e nas empresas. E os espaços que valorizam a diversidade e as diferenças estão diminuindo. BBC - Existe algum sinal de esperança? Rojas: Acredito que pode surgir esperança se conseguirmos um acordo transversal para redigir uma Constituição que faça sentido para a maioria dos cidadãos. Espero que se consiga elaborar um marco normativo com o qual a sociedade chilena esteja de acordo. Que um dos grupos não o imponha ao outro. BBC - O governo acaba de lançar o Plano Nacional de Busca de vítimas de desaparecimento forçado sob o regime Pinochet. Qual impacto o sr. acredita que o plano irá trazer ao ambiente da celebração? Rojas - Este anúncio é muito importante. E um dos pontos valiosos é que ele foi um trabalho participativo com as associações de familiares. Os familiares puderam opinar, foram realizadas reuniões em todo o país para fortalecer o plano. A busca é imprescindível para uma sociedade. Todos nós deveríamos apoiar para que os restos sejam encontrados. Todos os setores. BBC - O sr. acredita que será parte do legado do presidente Gabriel Boric? Rojas - Sim, e é muito importante. Será parte do seu legado, mas a eficácia do plano dependerá da vontade de todos os setores, contribuindo para que ele traga frutos. Este trabalho exige liderança política para convidar a sociedade civil a fazer parte, pois todos nós precisaremos olhar no espelho e perguntar: “Como estou colaborando para encontrar os restos desaparecidos?” Recebo o anúncio deste plano com aplausos.
2023-09-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cp3r4dyxzpgo
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Justiça do México descriminaliza aborto: o que acontece agora?
O aborto foi descriminalizado no México em nível nacional nesta quarta-feira (06/09), depois que a Suprema Corte do país declarou inconstitucional a proibição do procedimento. Em sentença proferida pela Primeira Turma do tribunal, os ministros afirmaram "que é inconstitucional o sistema jurídico que pune o aborto no Código Penal". Os juristas argumentaram que a criminalização "viola os direitos humanos das mulheres e das pessoas com possibilidade de gestar". Com esta decisão, a interrupção voluntária da gravidez não poderá ser punida se for praticada em instituições de saúde administradas pelo governo federal. Até o momento, 10 Estados mexicanos já permitiam em suas legislações o aborto — na maioria, até as 12 semanas de gestação. Fim do Matérias recomendadas A resolução da Primeira Turma torna efetivo o direito à não criminalização do aborto nacionalmente por ser uma decisão que não pode mais ser contestada em tribunais inferiores. A interrupção da gravidez por casos de estupro, malformações ou risco para a mãe já era permitidas por lei. A partir da resolução desta quarta-feira, o Congresso deverá regulamentar a prática para todos os outros casos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Entretanto, a decisão não invalida automaticamente as leis estaduais que ainda criminalizam o aborto. O que muda, por enquanto, é que os juízes de todas as instâncias deverão seguir a jurisprudência em casos que cheguem à Justiça. Os cinco ministros da Primeira Turma — quatro homens e uma mulher — analisaram uma ação apresentada pela organização feminista Grupo de Información en Reproducción Elegida (GIRE) sobre os artigos 330 a 334 do Código Penal, que previa pena de prisão para abortos feitos em instituições federais de saúde. A organização disse esperar que a decisão estimule outros Estados que ainda criminalizam a prática a alterarem suas legislações. Antes da decisão, organizações contrárias ao aborto haviam pedido que a Suprema Corte mantivesse o entendimento do aborto como um crime. As organizações Activate e Pasos Por la Vida haviam anunciado que entregaram "8.200 asssinaturas de cidadãos exigindo que se respeite e proteja o ser humano em gestação e a mulher grávida". Os ministros Alfredo Gutiérrez, Arturo Zaldívar e Juan Luis González Alcántara votaram a favor da descriminalização total na esfera federal, enquanto Margarita Ríos-Farjat e Jorge Pardo defenderam a decisão apenas para o caso particular em julgamento. Embora o Código Penal punisse anteriormente o aborto, na prática era incomum que o Ministério Público apresentasse denúncia pelo delito. Segundo contagem do jornal Reforma, entre 2001 e 2019, ocorreram apenas 14 acusações formais por aborto. Em setembro de 2021, o plenário da Suprema Corte do México já havia declarado constitucional o direito de interromper a gravidez, em uma decisão relativa à lei do Estado de Coahuila — que previa pena de prisão de 1 a 3 anos "à mulher que realiza voluntariamente aborto ou à pessoa que a faz abortar com consentimento". Na época, a decisão apenas obrigou Coahuila a modificar a lei e não pressupunha que o aborto fosse legalizado automaticamente em todo o México, ou que o Estados fossem obrigados a alterar suas leis. Na prática, a decisão de 2021 deu aos Estados margem para manter as punições contra o aborto, que foram combatidas caso a caso por ações judiciais, como uma movida pelo GIRE há algumas semanas contra a legislação do Estado de Aguascalientes. A Primeira Turma também havia decidido em 30 de agosto contra a punição por aborto nesse Estado.
2023-09-06
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3gl75ez5q0o
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A rede de tráfico humano que promete emprego a cubanos e os leva para lutar pela Rússia na Ucrânia
Cidadãos cubanos estão sendo convidados a viajar para a Rússia, mas acabam sendo obrigados a lutar na Ucrânia. A denúncia foi feita esta semana pelo governo cubano, que alegou ter desmantelado uma quadrilha de tráfico de pessoas que se dedicava a levar cubanos à Rússia para forçá-los a atuar como soldados na guerra na Ucrânia. "O Ministério do Interior detectou e está trabalhando para neutralizar e desmantelar uma rede de tráfico de humanos que opera a partir da Rússia para incorporar cidadãos cubanos que ali vivem, e mesmo alguns de Cuba, nas forças militares que participam em operações de guerra na Ucrânia", afirmou o Ministério das Relações Exteriores de Cuba. O governo indicou que não promove a participação de cubanos em ações militares no conflito entre a Ucrânia e a Rússia. "Cuba não faz parte do conflito de guerra na Ucrânia. Está agindo e atuará com vigor contra qualquer pessoa, do território nacional, que participe em qualquer forma de tráfico de pessoas para fins de recrutamento ou mercenarismo para que os cidadãos cubanos utilizem armas contra qualquer país", acrescenta a nota. Fim do Matérias recomendadas A declaração do governo cubano foi emitida depois que vários jovens cubanos denunciaram nas redes sociais que foram enganados e levados à Rússia para participarem no conflito. As denúncias, publicadas em diversos meios de comunicação locais e internacionais, estavam relacionadas com vídeos realizados pelos jovens Andorf Velázquez García e Alex Vegas Díaz. Os jovens relataram que foram levados de Cuba para a Rússia com a promessa de trabalhar como pedreiros, mas uma vez lá foram levados para áreas de recrutamento militar. "Nos fizeram assinar alguns documentos e prometeram salário e comida em troca de um emprego, mas a verdade é que nos levaram para trabalhar na zona de guerra", disse Velázquez à rede de televisão América TeVe. "Estamos numa cidade que não conhecemos, numa situação em que não queremos estar", disse o jovem. A BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, contatou Mario Velázquez, pai de Andorf Velázquez que mora no México, mas ele não quis dar entrevista. Até o momento não há informações oficiais do governo russo sobre a presença de soldados cubanos em suas tropas. Mas no mês de maio soube-se que vários cubanos residentes na Rússia se tinham alistado no Exército russo. O governo de Moscou ofereceu cidadania aos estrangeiros que se alistassem e às suas famílias. Como a Rússia não exige visto de turista para a entrada de cubanos, há uma comunidade crescente no país. Em 2019, entraram 28 mil cubanos no país, embora não se saiba quantos deles estão permanentemente em solo russo. Em maio, o portal de notícias russo Ryazan Gazette informou que os cubanos combatendo em território ucraniano. Segundo a imprensa russa, os cubanos iriam receber um pagamento único do governo de Moscou e da província de Ryazan, onde estavam os soldados, de cerca de US$ 5 mil. Ryazan está localizada a cerca de 230 quilômetros ao sul de Moscou e várias bases militares operam lá. No início desse mês, o presidente russo, Vladimir Putin, emitiu um decreto que concede rapidamente a cidadania russa a estrangeiros que participem da campanha militar na Ucrânia. O dispositivo presidencial estabelece que para adquirir a cidadania russa por via expressa os estrangeiros devem assinar um contrato de prestação de serviço militar por um ano. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas as denúncias feitas pelos jovens ganharam mais destaque nos últimos dias, sobretudo porque elas apontam que eles foram levados para a Rússia acreditando em mentiras. Velázquez destacou que, assim que chegaram à Rússia, foram submetidos a exames médicos para serem levados ao regimento militar. No entanto, como disseram familiares de Velázquez a diversos meios de comunicação, o jovem só não foi recrutado porque só possui um rim. Outros cubanos que acompanharam Velázquez na viagem, mas que não revelaram a sua identidade, disseram que foram enganados. Seus contratos eram para trabalhar na remoção de escombros em cidades russas afetadas pela guerra, mas eles acabaram recrutados para o Exército. Eles dizem que havia cerca de 18 cubanos na mesma situação. Familiares dos jovens cubanos indicaram que duas mulheres, uma delas de nacionalidade russa, convenceram os jovens a assinar o contrato — que não estava escrito em espanhol — e depois os obrigaram a viajar. "A mulher nunca realmente explicou o que seria o trabalho, e agora meu sobrinho não sabe o que fazer em uma cidade onde não conhece ninguém e onde não se fala a língua dele", disse Mayein Leyva, tia de Velázquez . "Meu filho foi enganado como muitos outros jovens que foram enviados pelo governo para a guerra", disse Mario Velázquez em 26 de agosto em sua página no Facebook. Este não é o primeiro caso conhecido de tentativa de recrutar combatentes estrangeiros para ajudar o exército russo na sua campanha na Ucrânia. Além do conhecido Grupo Wagner, que opera na Rússia como força paramilitar em algumas zonas da Ucrânia e noutras partes do mundo, também foi detectada a presença de unidades com soldados de outros países. Há também muitos soldados estrangeiros que lutam voluntariamente por Kiev. De acordo com uma reportagem do Serviço Russo da BBC, no ano passado descobriu-se que o Kremlin, por meio do Grupo Wagner, estava recrutando sírios para lutarem na Ucrânia. Dezenas de pessoas em toda a Síria — país que é devastado por guerra civil — manifestaram interesse em lutar do lado russo, informou a BBC Rússia. Segundo o Instituto Americano para o Estudo da Guerra (ISW), em março de 2022 o Kremlin tinha intenção de receber "16 mil combatentes do Oriente Médio" na Ucrânia. Em junho, foi noticiada a morte de um cidadão iraquiano que lutou como integrante do Grupo Wagner na Ucrânia. Até agora não se sabe se cidadãos de outros países latino-americanos foram recrutados para fazer parte da invasão russa da Ucrânia. No campo diplomático da América Latina, Moscou sempre identificou Cuba como "o seu grande aliado na região". No entanto, o governo de Havana tem sido mais cauteloso na forma como se refere à Rússia, principalmente em se tratando sobre o conflito com a Ucrânia. Nas diferentes sessões da ONU onde o tema foi discutido, por exemplo, Cuba se absteve de manifestar a sua posição.
2023-09-06
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ce9gwn02x6no
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Por que o Brasil continuou um só enquanto a América espanhola se dividiu em vários países?
*Esta reportagem foi publicada originalmente em 7 de setembro de 2018 Em 7 de setembro de 1822, o Brasil ganhava sua independência de Portugal. Mas por que a América portuguesa se tornou um único país, enquanto a América espanhola se fragmentou em outros tantos? Não há apenas uma única razão, mas várias, segundo historiadores com quem a BBC News Brasil conversou. E, para quem busca respostas fáceis, um alerta. Não há unanimidade nas conclusões. Uma das causas tem a ver com a distância geográfica entre as cidades das antigas colônias e a forma como as duas possessões eram administradas por suas respectivas metrópoles. Fim do Matérias recomendadas Ainda que a colônia portuguesa tivesse dimensões continentais, a maior parte da população se concentrava em cidades costeiras, enquanto o interior permanecia praticamente inexplorado, lembra à BBC News Brasil o historiador mexicano Alfredo Ávila Rueda, da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM). "É verdade que, hoje, o Brasil é um país enorme, com mais de 8 milhões de km². Mas, na prática, na época da independência, as principais cidades se concentravam no litoral. As distâncias entre as cidades eram, assim, menores do que na América Espanhola. O interior era praticamente território que não era controlado pela Coroa portuguesa", diz. Já a América Espanhola era formada por quatro grandes vice-reinados: Nova Espanha, Peru, Rio da Prata e Nova Granada, com poucos vínculos - senão comerciais - entre si. Cada um deles respondia à Coroa e tinha vida própria. Ou seja, eram administrados localmente. Além disso, foram criadas capitanias que tinham governos independentes desses vice-reinados, como as da Venezuela, Guatemala, Chile e Quito, acrescenta Ávila Rueda. "A administração espanhola se deu em torno de duas 'sub-metrópoles': México e Peru. Isso não aconteceu no Brasil, onde a administração era muito mais centralizada", explica o historiador mexicano. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Outra causa está relacionada à formação e à representatividade das elites nas duas colônias, na opinião do historiador brasileiro José Murilo de Carvalho. No Brasil, a elite era muito mais homogênea ideologicamente do que a espanhola, diz ele. Carvalho argumenta que isso se deveu à tradição burocrática portuguesa. Portugal nunca permitiu a criação de universidades em sua colônia. Escolas superiores só foram criadas após a chegada da corte, em 1808. Assim, os brasileiros que quisessem e pudessem ter formação universitária tinham que viajar a Portugal, sobretudo à cidade de Coimbra. "Diante de um pedido para se criar uma escola de Medicina em Minas Gerais, no século 18, a resposta da Corte foi: agora pedem uma faculdade de Medicina, daqui a pouco vão pedir uma faculdade de Direito e, em seguida, vão querer a independência", exemplifica o historiador brasileiro. Quando se formavam, esses ex-alunos voltavam ao Brasil e acabavam ocupando cargos importantes na administração da colônia. Ou seja, um desembargador em Pernambuco formado em Coimbra tinha grandes chances de conhecer um desembargador do Rio de Janeiro também diplomado na mesma universidade, ou de ter conhecidos em comum, o que, na opinião de Carvalho, favoreceu um sentimento de unidade na colônia. "Esses estudantes luso-brasileiros em Coimbra tinham organização própria. Envolveram-se no mesmo ensino que os portugueses e foram absorvidos pela burocracia da Corte, sendo enviados a todos os pontos do império português - do Brasil à África. Portugal tinha uma população muito pequena à época e não havia gente suficiente para administrar seu império. Acabou dependendo dos brasileiros treinados lá", diz. "Eles formaram grande parte da elite política brasileira até cerca de 1850, como ministros, conselheiros de Estado, deputados e senadores", acrescenta. Segundo Murilo de Carvalho, essa formação da elite brasileira em Portugal acabou por favorecer a obediência à figura real e a crença nas virtudes do poder centralizado. Entre 1772 e 1872, passaram pela Universidade de Coimbra 1.242 estudantes brasileiros. Por outro lado, na América Espanhola, durante esse mesmo período, 150 mil estudantes se formaram em universidades locais, diz Carvalho. Havia pelo menos 23 universidades na colônia, três delas apenas no México. Só a Universidade do México formou quase 40 mil estudantes. Dessa forma, argumenta o historiador, quando os movimentos de independência na América Espanhola começaram a ganhar força, no século 19, eles surgiram coincidentemente nos locais onde havia universidades. E praticamente todos esses locais com universidades acabaram dando origem a um país diferente. Ávila Rueda contesta, contudo, essa última hipótese. "Essas universidades eram, em sua maioria, reacionárias...aliadas à Coroa espanhola", diz. "A Universidade do México, por exemplo, era muito reacionária, a tal ponto que, em 1830 (após a independência do México), o governo mexicano decidiu fechá-la porque acreditava que não seria possível reformá-la", acrescenta. Neste sentido, o historiador mexicano diz acreditar que a livre circulação de impressos (jornais, livros e panfletos) na América espanhola, que não era permitida na América portuguesa (a proibição só foi revertida em 1808, com a chegada da corte portuguesa ao Brasil), teve papel muito mais importante na construção de identidades regionais do que propriamente as universidades. "Já na América portuguesa, tudo o que era consumido vinha de Portugal, o que gerava esse vínculo muito forte com a metrópole", lembra. Mas fato inconteste era que, na América espanhola, os nascidos na colônia, os chamados criollos, a elite local (grandes proprietários de terras, arrendatários de minas, comerciantes e pecuaristas) eram desprezados em relação aos nascidos na Espanha, os Peninsulares. Até 1700, quando a Espanha era governada pela dinastia dos Habsburgo, as colônias tinham bastante autonomia. Mas tudo mudou com as reformas borbônicas feitas pelo rei espanhol Carlos 3º. Naquele momento, a Espanha precisava aumentar a extração de riqueza de suas colônias para financiar a manutenção de seu império e guerras nas quais estava envolvido. Com isso, a Coroa decidiu expandir os privilégios dos peninsulares - colonos nascidos na Espanha -, que passaram a ocupar os cargos administrativos anteriormente destinados aos criollos. Ao mesmo tempo, as reformas realizadas pela Igreja Católica reduziram os papéis e os privilégios do baixo clero, que também era formado em sua maioria por criollos. Outro motivo que explica a manutenção da unidade do Brasil, senão o mais importante, foi a fuga da família real portuguesa para sua então maior colônia, de acordo com os historiadores. Em 1808, com a invasão de Portugal por Napoleão Bonaparte, o príncipe regente João fugiu para o Rio de Janeiro, transferindo não somente a corte, mas toda a burocracia do governo: arquivos, biblioteca real, tesouro público e cerca de 15 mil pessoas. O Rio de Janeiro virou, então, a sede político-administrativa do império. A presença do rei em território brasileiro serviu como fonte de legitimidade para que a colônia se mantivesse unida. "O rei era um herdeiro legítimo do poder. Temos dificuldade de entender a importância disso hoje, mas naquela época a figura de Dom João 6º como monarca tinha muita força", diz à BBC News Brasil o historiador americano Richard Graham, professor emérito da Universidade do Texas e considerado um dos maiores especialistas em história da América Latina nos Estados Unidos. Carvalho explica que a "transferência trouxe para o Brasil toda a burocracia portuguesa. Portugal passou a ser uma dependência. Desenvolveu-se, portanto, um foco de legitimidade política no país". "Se Dom João não tivesse vindo para o Brasil, o país teria se dividido em cinco ou seis países. Os lugares de maior desenvolvimento econômico, como Pernambuco e Rio de Janeiro, teriam conseguido sua independência", assinala. Na Espanha, contudo, essa fonte de legitimidade foi questionada após a invasão de Napoleão. Ele forçou o rei espanhol, Carlos 4º e seu filho, Fernando 7º, a abdicar do trono a favor de seu irmão, José Bonaparte (mais tarde José 1º da Espanha). Na colônia, a notícia caiu como uma bomba. Aqueles que viviam na América Espanhola já não sabiam mais a quem obedecer. Surgiram juntas administrativas, muitas das quais no começo governavam em nome de Fernando 7º, recusando-se a receber ordens de juntas semelhantes formadas na Espanha (após a invasão de Napoleão, o governo espanhol foi dividido em inúmeras juntas administrativas). Quando Napoleão foi derrotado, esses líderes locais já tinham experiência de autogoverno. Reconduzido ao trono em 1814, Fernando 7º não garantiu a autonomia deles e tentou usar a força para restabelecer a submissão das colônias. Esse fato aliado à política discriminatória por parte da Coroa Espanhola em relação aos nascidos nas Américas fez com que eles se rebelassem, inspirados pelos ideais iluministas espalhados pelas revoluções americana e francesa. Com o apoio de outras castas, eles travaram lutas sangrentas contra a Espanha por independência, entre 1809 a 1826. Por outro lado, quando Napoleão foi derrotado, Dom João 6º elevou o Brasil à condição de Reino Unido a Portugal. Também permaneceu no Rio de Janeiro até que as cortes exigissem seu retorno a Lisboa, em 1820, e aceitasse uma constituição liberal. Dom João 6º deixou seu filho, Pedro, como príncipe regente no Brasil, e em 1822, Pedro tornou o Brasil independente, coroando a si mesmo como Dom Pedro 1º. O Brasil ganhou então a independência como uma monarquia constitucional. Preocupações econômicas e sociais também contribuíram fortemente para assegurar a unidade do Brasil. Segundo Graham, fazendeiros e homens ricos das cidades acabaram aceitando uma autoridade central por dois motivos: a ameaça de desordem social e o apelo de uma monarquia legítima. Um possível desmembramento do Brasil em diferentes países poderia colocar em xeque o firme controle social desejado pelos proprietários de terras e escravocratas. Inicialmente, eles achavam que conseguiriam manter o respeito e a obediência, mas revoltas populares provaram o contrário, na prática. No Haiti, por exemplo, a independência significou o fim da escravidão. Embora o Brasil tenha conseguido sua independência de Portugal sem recorrer à luta militar generalizada, os líderes regionais procuravam maior liberdade em relação à capital, o Rio de Janeiro, diz Graham. Mas, com o tempo, eles perceberam que essa vontade de reivindicar um autogoverno regional ou a independência completa do governo centralizado poderia enfraquecer sua autoridade, não somente sobre os escravos, mas também sobre as classes inferiores em geral. Ou seja, temiam a desordem social. "É importante lembrar que o Brasil era um país de escravos. Eles compunham grande parte da população. Era muito perigoso que as classes dominantes começassem a brigar entre si e colocassem em risco sua legitimidade", destaca Graham. "Essa classe dominante temia que esses escravos pudessem aproveitar-se de suas divisões internas para se rebelar", acrescenta. Na América Espanhola, por outro lado, diz o historiador americano, "as elites (...) aprenderam que poderiam lidar muito bem com uma população irrequieta. Todos os países hispano-americanos tomaram medidas que objetivavam terminar com a escravidão, possivelmente para diminuir o perigo da revolta escrava. Mestiços (e alguns mulatos, como na Venezuela), tinham o comando de forças militares e eram frequentemente recompensados com posse de terras tomadas dos monarquistas", diz. Estatísticas sobre o comércio de escravos embasam tal hipótese. Entre 1500 e 1866, a América Espanhola recebeu 1,3 milhão de escravos trazidos da África. No mesmo período, desembarcaram no Brasil 4,9 milhões, segundo dados da The Trans-Atlantic Slave Trade Database, um esforço internacional de catalogação de dados sobre o tráfico de escravos - que inclui, entre outros, a Universidade de Harvard. O levantamento foi possível porque os escravos eram uma mercadoria, registrada na entrada e saída dos portos, sobre a qual incidia cobrança de impostos. Nenhum outro lugar do mundo recebeu tantos escravos. Mas por que as fronteiras dos países recém-independentes na América Espanhola não se mantiveram as mesmas das dos quatro vice-reinados? Ou seja, por que houve tanta fragmentação? Explica Ávila Rueda: "Na época colonial, o conceito de fronteira era distinto do dos Estados modernos. O que havia era um sistema de jurisdição, não de fronteiras. E as diferentes jurisdições às vezes se sobrepunham umas às outras". Ele cita o caso do vice-reinado de Nova Espanha (território que compreende parte dos Estados Unidos, México e América Central). "Em termos de governo, o vice-rei tinha controle sobre praticamente todo o território, salvo as regiões mais ao norte, que eram independentes neste sentido. Mas, a nível fiscal, o governo do México tinha controle sobre essas regiões. Já em relação a questões jurídicas, a gestão era totalmente diferente". "Assim, houve conflitos bélicos muito fortes para delimitar essas fronteiras no século 19, inclusive após a independência", acrescenta. Ávila Rueda lembra que, com a abdicação de Fernando 7º, ocorre um processo em que os territórios provinciais passam a lutar por "mais autonomia". "Julgamos o passado a partir do nosso ponto de vista atual. Achamos que o vice-reinado de Nova Espanha se manteve como um país unido, que é o México atual. Mas nos esquecemos que depois da independência, surgiu o império mexicano, que incluía a atual América Central. Posteriormente, com a dissolução do império mexicano, se estabeleceram a federação mexicana e a federação centro-americana, que mais tarde se desintegraria em outros países", diz. "Houve um processo de fragmentação na América Espanhola. Eventualmente, algumas dessas províncias formam confederações para ter força militar e se defender de outros inimigos. Ou são unidas à força, como fez Simón Bolívar", acrescenta. Graham concorda. "Se você vai se tornar independente da Espanha, por que continuaria a se submeter aos mandos e desmandos de Buenos Aires, por exemplo? A divisão por vice-reinos era burocrática. E as fronteiras atuais dos países da América Latina demoraram para ser consolidadas. Não era possível prevê-las antes de 1810, pois resultaram de disputas internas após a independência", explica. Mas é importante lembrar que também houve na América Espanhola planos de unificação, que não avançaram. Em 1822, Simón Bolívar e José de San Martín, duas das figuras mais importantes da descolonização da América Espanhola, reuniram-se na cidade de Guayaquil, no Equador, para discutir o futuro da América Espanhola. Enquanto Bolívar era partidário da unidade das ex-colônias (ele forçou a unificação da Colômbia e da Venezuela) e a formação de uma federação de repúblicas, San Martín defendia a restauração da monarquia, sob a forma de governos liderados por príncipes europeus. A ideia de Bolívar voltou a ser discutida no Congresso do Panamá, em 1826, mas acabou rejeitada. E se Fernando 7º tivesse feito o mesmo que D. João 6º e transferido a corte às Américas, o mapa da América Latina seria diferente do que é hoje? Em um artigo, o historiador americano William Spence Robertson, já falecido, cita a frase de um observador espanhol em 1821: "O México não aceitaria as leis que fossem sancionadas em Lima; nem Lima aceitaria as leis que fossem sancionadas no México". "A principal pergunta, portanto, é onde ele escolheria se estabelecer. Não acredito que o México permaneceria leal a um rei estabelecido em Lima e não em Madri", diz Graham. "Mas certamente (se Fernando 7º tivesse se transferido às Américas) haveria menos divisões do que, na verdade, ocorreu", acrescenta. Isso porque os reis oferecem legitimidade. Tanto é que, na Argentina, quando um congresso em 1816 declarou a independência das "Províncias Unidas", Juan Martin de Pueryrredón, nomeado diretor dessa entidade, tentou, nos três anos seguintes, em vão buscar alguém na Europa com vínculo real para se tornar rei das Províncias Unidades do Rio da Prata. "A própria mulher de Dom João, Dona Carlota Joaquina, tinha vontade de se tornar rainha do Prata", lembra Murilo de Carvalho. Já no México, quando as cortes espanholas se recusaram a reconhecer a independência mexicana e a permitir que um membro da realeza aceitasse o trono do império mexicano, Agustín Iturbide, um dos mentores da independência, forjou uma eleição ao fim da qual foi coroado imperador, como Agustín 1º. No Peru, também foi aventada a possibilidade de um príncipe espanhol liderar uma monarquia independente. Mas o processo de unificação territorial no Brasil tampouco foi totalmente pacífico. Houve movimentos de caráter emancipacionista em Minas Gerais (1789), na Bahia (1798), em Pernambuco (1817). No entanto, essas revoltas foram mais fomentadas por um sentimento de autonomia do que propriamente por um desejo de ruptura entre a colônia e a metrópole. Um exemplo emblemático disso foi a chamada Inconfidência Mineira, liderada por Tiradentes em Minas Gerais (1789). Não havia nessa conspiração antimetropolitana nenhum desejo de libertação de todo o território. Quando Dom Pedro 1º declarou a Independência do Brasil, em 1822, por exemplo, a maior parte das províncias do norte foram contra e permaneceram leais a Portugal, até defrontarem-se com uma força vinda do Rio de Janeiro. Ainda assim, como lembra Graham, "mesmos os grupos do sul que declaram sua aliança a D. Pedro 1º, em meados de 1822, não significavam o triunfo do nacionalismo. Ao contrário, eles simplesmente preferiam o domínio dele, com a promessa de autonomia local, ao domínio das cortes portuguesas, que ameaçava essa autonomia". Ávila Rueda acrescenta ainda que, "como na América portuguesa não houve uma guerra de independência e sim uma continuidade com a transferência da corte, o governo do Rio de Janeiro tinha mais força para suprimir essas rebeliões". "Em contrapartida, o governo do México não tinha força suficiente para evitar o desmembramento da América Central. Tampouco o governo de Buenos Aires em relação a Uruguai ou Paraguai", acrescenta. Segundo a historiadora brasileira Lilia Schwarcz, "a independência do Brasil foi uma solução de compromisso entre as elites, no sentido de primeiro evitar uma mudança estrutural na então colônia que se tornaria um país e evitar grandes conturbações sociais", diz. "Houve um ajuste entre as várias elites locais no sentido de preservar a escravidão, evitar o formato de uma revolução, inclusive sabendo do que havia ocorrido na América Espanhola e conseguir manter o país unificado", acrescenta. Graham concorda. "O governo central não foi imposto às pessoas influentes ou até mesmo "vendido" a eles. Eles (a elite brasileira) o escolheram", assinala. "Eles procuravam legitimidade porque, sem ela, sua autoridade local permanecia relativamente fraca. Eles desejavam fortalecer a hierarquia porque ela validaria a sua própria posição local predominante. Para alcançar esses objetivos, eles construíram um estado central, simbolizado no imperador. A monarquia tinha sua utilidade". "A presença do imperador foi fundamental. As elites pretendiam que o imperador fosse uma espécie de símbolo a unificar as diferentes províncias e que, de alguma maneira, ele fizesse uma passagem não tão convulsionada como no restante da América Espanhola. Sabemos que a história não foi bem assim, mas foi o que aconteceu no momento da independência", diz Schwarcz. Por fim, a opção por um governo central, além de afastar o espectro de uma anarquia social, também favorecia estender o poder dessas elites, uma vez que cabia a elas as indicações aos cargos públicos, como oficiais da Guarda Nacional, delegados de polícia e juízes. "Eles vieram a considerar o governo central como apropriado e útil para fins pessoais", diz Graham. Já no fim do século, com a unidade do Brasil já assegurada e a escravidão abolida, as elites já não precisavam mais "de um símbolo vivo do estado" para estabelecer sua legitimidade. O império acabou destronado pelo Exército, que proclamou a república quase sem disparar um único tiro. Com ilustrações de Cecilia Tombesi e Kako Abraham
2023-09-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3gjpmvkv5eo
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Quem foi Vasili Arkhipov, homem que 'salvou' o mundo de guerra nuclear
O dia era 27 de outubro de 1962. E o mundo estava à beira do abismo. A crise dos mísseis de Cuba, entre os Estados Unidos e a União Soviética, poderia escalar a qualquer momento e dar início a uma guerra nuclear. Washington exigia que Moscou retirasse seus mísseis nucleares instalados na ilha de Cuba, a pouco menos de 200 km do litoral americano. Em meio à crise, embarcações militares dos dois países estavam imersas em uma luta estratégica para manter o controle sobre suas áreas de influência ante um possível conflito mundial. A frota de submarinos soviética recebeu a missão de patrulhar a região em torno das águas cubanas para trabalhos de reconhecimento e controle. E alguns dos submarinos estavam equipados com torpedos que tinham ogivas nucleares. Foi no interior de um dos submarinos B-59 da frota soviética que ocorreu um episódio que poderia ter desencadeado um conflito atômico. O submarino perdeu a comunicação com o resto da frota e os tripulantes acharam que a guerra havia começado. Fim do Matérias recomendadas O protocolo da marinha soviética determinava que, em caso de ataque inimigo, para responder com um torpedo nuclear, seria necessária a aprovação unânime de três oficiais do mais alto escalão da embarcação. Dois deles defendiam o lançamento, mas um terceiro se negava a participar. Seu nome era Vasili Alexandrovich Arkhipov. “Este homem, de fato, salvou o mundo de um holocausto nuclear, sobretudo, porque não se deixou levar pelos impulsos e seguiu rigorosamente o protocolo estabelecido por Moscou”, declarou à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC) Edward Wilson, autor do livro The Midnight Swimmer (“O nadador da meia-noite”, em tradução livre), que detalha a história de Arkhipov. “Mas havia muitos fatores que impediam a realização do ataque e surpreende que Arkhipov não tenha recebido o reconhecimento merecido”, destaca Wilson. As homenagens ao oficial só começaram depois da sua morte, em 1998. Uma organização americana chegou a outorgar a ele, em 2018, o prêmio póstumo Future of Life (“Futuro da Vida”), pelas suas ações na prevenção do conflito nuclear. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No dia 22 de outubro de 1962, o mundo amanheceu em crise. O então presidente norte-americano John F. Kennedy (1917-1963) informou que havia sido descoberta uma base de mísseis nucleares soviéticos em Cuba. A base ainda não estava em funcionamento, mas poderia ficar pronta para um possível ataque a qualquer momento. E, a apenas 200 km de distância dos Estados Unidos, os mísseis poderiam atingir as principais cidades norte-americanas e destruí-las em questão de minutos. Na mesma mensagem, Kennedy anunciou medidas de defesa e o envio de tropas e embarcações em níveis raramente observados, incluindo o estabelecimento de um cerco naval em torno de Cuba para criar um bloqueio militar. O objetivo era impedir a chegada de material para dar prosseguimento à construção da base. Em resposta, Moscou pôs em alerta todo o seu Exército e as embarcações soviéticas presentes na região. Em 27 de outubro, segundo documentos fornecidos pelo Arquivo Nacional dos Estados Unidos e as memórias do capitão russo Vadim Orlov, que estava no submarino, a situação não podia ser pior no interior do B-59. O submarino foi especialmente criado para disparar torpedos nucleares. Mas foi projetado para navegar nas águas geladas do hemisfério norte e o Caribe era quente demais para aquela embarcação. Com isso, o sistema de ar condicionado entrou em colapso e a temperatura no seu interior era sufocante. Além disso, nas horas que antecederam o incidente, o submarino havia alcançado velocidade superior à das outras embarcações da frota e foi detectado por um encouraçado norte-americano. “O encouraçado, segundo o relatório do Pentágono, começou a disparar munição não letal, para fazer com que o submarino viesse à superfície”, explica Wilson. “Mas, dentro do B-59, com todas as tensões anteriores e sem comunicação, eles pensaram que a guerra havia começado.” O submarino era comandado pelo capitão soviético Valentin Savitsky. Diante do ataque do navio americano, ele convocou uma reunião entre os três oficiais de mais alta patente do submarino. Um desses oficiais era Arkhipov, o segundo comandante. O capitão, perturbado pela munição que chovia da superfície, afirmou que a melhor resposta seria disparando um dos torpedos nucleares. “Vamos destruí-los agora! Nós morreremos, mas afundaremos todos; não seremos a vergonha da frota”, gritou Savitsky, segundo o relato de Orlov. Wilson destaca que “os submarinos soviéticos daquela época não precisavam de aprovação ou ordem direta de Moscou para lançar um ataque nuclear. Era preciso apenas que os três comandantes estivessem de acordo, nada mais.” Mas Arkhipov desfrutava de certo prestígio entre os comandantes e se negou a apoiar a decisão do capitão. “Arkhipov foi o único que se negou”, segundo Wilson. “É claro que a reputação de Arkhipov foi um fator fundamental no debate na sala de controle. No ano anterior, o jovem oficial havia sido exposto a fortes radiações para salvar um submarino com reator superaquecido”, conta o escritor. Em um relatório entregue pelo próprio Arkhipov tempos depois, ele destacou os motivos que os levaram a não responder ao ataque. Segundo ele, embora houvesse uma “situação tensa” quando partiram da base, aquele incidente não configurava uma situação de confronto militar. “Graças a ele e ao capitão que se acalmou, após ter se exaltado pelo calor do submarino e a perseguição da marinha norte-americana, não ocorreu uma Terceira Guerra Mundial com consequências apocalípticas”, destaca Wilson. Na madrugada de 28 de outubro, os Estados Unidos e a União Soviética chegaram a um acordo para desmantelar a base de Cuba, em troca da desarticulação de uma base nuclear norte-americana na Turquia. A maior parte dos submarinos retornou aos seus portos de origem. Mas, quando se esperava que seus tripulantes fossem recebidos como heróis, o que ocorreu foi justamente o contrário. No documentário sobre o episódio, produzido pela PBS (a rede pública de rádio e TV dos Estados Unidos), a esposa de Arkhipov, Olga, afirma que seu marido ficou bastante decepcionado pela forma como foi avaliado por sua participação naquela decisão. Outra testemunha destaca que um dos altos oficiais de Moscou disse aos comandantes da brigada de submarinos que “teria sido melhor que eles tivessem morrido por lá” do que regressarem sem vitória. Arkhipov encerrou sua carreira militar e morreu em 1998, aos 72 anos de idade, sem receber reconhecimento algum por sua intervenção. Foi com o relato do oficial Vadim Orlov em 2000 que as coisas começaram a mudar. Ele destacou que foi graças a Arkhipov que os torpedos não foram disparados - e a contribuição do militar começou a ser reconhecida. Em 2007, o diretor do Arquivo de Segurança Nacional dos Estados Unidos, Tom Blanton, fez uma apresentação sobre o tema e concluiu: “este homem realmente salvou o mundo”. “Não sei o que teria acontecido se fosse realmente iniciada a guerra nuclear”, afirma Wilson. “O que talvez esteja mais claro é que a Europa teria sido mais prejudicada, já que a União Soviética não tinha mísseis com alcance para chegar aos Estados Unidos.” “Acredito que o papel de Arkhipov foi monumental e que, certamente, é preciso agradecer a ele por ter impedido uma guerra nuclear”, conclui o escritor.
2023-09-03
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Eleição na Argentina: por que Javier Milei preocupa governo Lula
Quando perguntado a respeito da integração da Argentina ao Brics e sobre que relação uma eventual gestão sua teria com o atual governo socialista espanhol, Javier Milei, o candidato radical que lidera a corrida para as eleições presidenciais argentinas, respondeu com uma de suas frases conhecidas: “Os socialistas não são defensores da liberdade”. E se calou quando as repórteres brasileiras insistiram para que ele respondesse se fazia referência ao Brasil ou ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Foi na semana passada, no mesmo dia em que o economista, que se autodefine como libertário, já tinha usado, diante de empresários e diplomatas estrangeiros, outra de suas formulações públicas típicas - que “não fará acordo com comunistas” e que sua política exterior será com Estados Unidos e Israel, mas que o empresariado é “livre” para comercializar com quem quiser. Logo após as eleições primárias argentinas o apontarem como favorito, em 13 de agosto, Milei, da Liberdade Avança (LLA), repetiu que o Mercosul “deve ser eliminado” e que, se eleito, não permitirá que a Argentina seja incorporada ao Brics ampliado – o país acaba de ser convidado ao grupo formado por Brasil, China, Rússia, Índia e África do Sul “graças ao apoio decisivo de Lula”, como disse o chanceler argentino Santiago Cafiero. Se não surpreendem, o conjunto das declarações do presidenciável argentino são avaliadas como “preocupantes” e como merecedoras de “atenção” por setores do governo brasileiro, em Brasília, segundo fontes ouvidas pela BBC News Brasil em condição de anonimato. Empresários e analistas também ouvidos pela reportagem coincidiram que Milei tem potencial para se tornar uma dor de cabeça para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva caso eleito, ainda que todos avaliem que uma ruptura total entre Brasil e Argentina é pouco provável, dada a enorme interdependência entre os vizinhos. Fim do Matérias recomendadas Na Casa Rosada, se cumprir o que tem falado, o candidato pode turbinar o mal-estar já instalado no Mercosul, em meio a uma longa e complicada renegociação do acordo comercial do bloco com a União Europeia. Pode ainda frustrar os planos do governo Lula de ter a Argentina como uma aliada do Brasil no Brics ampliado, já que os dois países seriam os únicos da América Latina na nova configuração do grupo. “Tudo é meio imprevisto, em caso de vitória dele”, disse uma alta fonte do governo em Brasília. “Ele é o que gera o maior grau de incerteza”, disse outro funcionário da administração Lula na capital brasileira. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Procurado pela reportagem, o ex-chanceler e assessor especial da Presidência, Celso Amorim, respondeu por escrito que a relação entre os dois países é um "patrimônio". “Obviamente não podemos comentar assuntos internos da Argentina, mas a preservação do Mercosul é uma preocupação legítima. É um patrimônio de mais de trinta anos e é parte do patrimônio de paz e prosperidade que criamos e que queremos fortalecer", disse Amorim. O influente assessor diplomático direto de Lula também comentou a questão do Brics. “Da mesma forma, saudamos o ingresso da Argentina nos Brics, um reconhecimento da importância geopolítica dessa grande nação, que fortalece o poder de negociação de nossa região como um todo”, escreveu Amorim. Três fontes diplomáticas de Brasília complementaram as declarações do ex-chanceler, convergindo ao dizer que hoje já é feita “uma ginástica” para que o Uruguai não deixe o Mercosul. “Imagine se a Argentina também quiser sair, será complicado”, disse uma delas. O Brasil exerce a presidência rotativa do bloco sul-americano em meio a tensões abertas com o governo uruguaio, de centro-direita. O presidente uruguaio Luis Alberto Lacalle Pou defende abertamente a flexibilização do Mercosul e pressiona para ser autorizado a fazer acordos comerciais isolados com países como a China. Além da animosidade com Brics e Mercosul, Milei também retiraria fôlego de iniciativas que o governo Lula tenta retomar, como a Unasul, com os países da América do Sul, e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac). Em entrevista recente à agência de notícias Bloomberg, perguntado se poderia se aproximar do presidente Lula, Milei respondeu que não. “Na verdade, eu acho que é preciso eliminar o Mercosul porque é uma união aduaneira defeituosa que prejudica aos argentinos de bem. É um comércio administrado por Estados para favorecer a empresários que tiram vantagem (...). Onde o Estado se mete faz estragos”, disse Milei. Na mesma entrevista, Milei disse “que não fazemos pacto com comunistas” (em referência à China), mas que o país asiático pode ser sócio do setor privado. “Eu não promoveria a relação nem com China, nem com Cuba, nem com Venezuela, nem com Nicarágua e nem com a Coreia do Norte”. O Brasil e a China são os principais sócios comerciais da Argentina, enquanto Pequim é também um investidor direto de peso no país. Nos últimos dias, no entanto, enquanto o economista “mantém seu discurso radical”, como disse um empresário com negócios na Argentina ouvido pela reportagem, seus assessores tentam amenizar suas palavras à medida que aumentam suas chances de chegar à Casa Rosada. A economista Diana Mondino, apontada como provável ministra das Relações Exteriores em um eventual governo Milei, disse a interlocutores brasileiros que não se pretende sair do Mercosul, mas que ele seja reformulado e que a relação com o Brasil seria pragmática e entre as prioridades da suposta administração. “Na hora que ele sentar lá, na cadeira presidencial, caso seja eleito, verá que não poderá se desvencilhar do Brasil. O Brasil é o principal parceiro da Argentina. Ele não pode brigar com o Brasil, como tem sugerido”, disse um outro assessor de Lula, sob a condição do anonimato. Seja como for, o professor de Relações Internacionais da Universidade Torcuato Di Tella, Juan Gabriel Tokatlian, disse à reportagem que caso Milei seja eleito e não confirme a adesão da Argentina ao Brics será “uma bofetada no presidente Lula”. “E é preciso lembrar que o Brasil foi, é e será o sócio estratégico da Argentina”, disse Tokatlian. Para ele, pelo menos num primeiro momento, os dois países poderiam viver uma reedição do que foi a relação “azeda” entre Bolsonaro e Alberto Fernández - mas na mão inversa e no campo ideológico e das declarações. As referências de Milei a ‘socialistas’ e ‘comunistas’ e ao suposto giro para privilegiar Estados Unidos e Israel na política externa levaram analistas argentinos a recordarem a estratégia do ex-presidente Jair Bolsonaro. “Milei busca construir uma semelhança com Bolsonaro. Não que seja Bolsonaro, mas ele tenta construir essa semelhança”, disse o analista político argentino Raúl Timerman, do Grupo de Opinião Pública (GOP). Timerman e Tokatlian, da Universidade Torcuarto Di Tella, de Buenos Aires, observaram que é preciso “ficar atento também” ao papel que os setores de segurança pública, inteligência e Defesa (Forças Armadas) teriam em um eventual governo Milei – outra área em que ele poderia buscar ter associação com Bolsonaro, já que sua candidata a vice-presidente, Victoria Villarruel, não repudia os militares que atuaram na ditadura, questiona as políticas de direitos humanos e condena “os grupos guerrilheiros armados” naquele período. “Pela primeira vez temos uma pessoa na chapa presidencial que é tolerante com as ditaduras e que tem uma visão ideologizada sobre os direitos humanos. A vice-presidente (de Milei) quer reforçar o papel das Forças Armadas no combate ao narcotráfico. É preciso estar atento, acompanhar isso”, disse Tokatlian. Uma fonte do governo Lula em Brasília aponta diferenças “abismais” entre o contexto brasileiro e o argentino e entre Bolsonaro e Milei. As diferenças não descartam, porém, que uma vitória de Milei seja um terremoto para o sistema político argentino. Daí que não só o impacto externo como também as consequências das medidas internas de um futuro governo Milei estão no horizonte de preocupação da administração brasileira, diz uma fonte. Milei, à frente de um pequeno e novo movimento, disputará o primeiro turno da eleição presidencial em 22 de outubro com o ministro da Economia e candidato Sergio Massa, da União pela Pátria (peronismo/kircherismo), de vertente de centro-esquerda, e com a ex-ministra de Segurança do governo Macri, Patricia Bullrich, da coalizão Juntos pela Mudança (Juntos por el Cambio), tradicional oposição ao peronismo e que integrou o governo Mauricio Macri. Outros candidatos estão na corrida à Casa Rosada, mas Milei, Bullrich e Massa são os que teriam mais chances de ser eleitos, de acordo com os resultados oficiais das primárias. As pesquisas mais recentes, realizadas após as primárias, apontam o crescimento de Milei, com cerca de 32% a 35% das intenções de voto, Massa com cerca de 25% a 26%, e Bullrich com 20,9% e 23%, nos levantamentos das consultorias políticas Analogías e da Opinaia. No entanto, como os levantamentos não previram a possibilidade de Milei como favorito nas primárias, existe cautela em torno das previsões. Os resultados oficiais das primárias deram Milei à frente, mas com pouca diferença para Massa e Bullrich. Nesta reta final de campanha, o governo Lula tem feito acenos ao governismo de Massa e rebate os questionamentos sobre suposta intervenção na política interna do vizinho. Na segunda-feira (28/8), em Brasília, o presidente Lula e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, receberam Massa para falar de acordos comerciais e investimentos brasileiros. Ato seguido, a imprensa argentina deu destaque a declarações atribuídas ao presidente brasileiro sobre Milei. “Está mais louquinho que Bolsonaro”, teria dito Lula, segundo o jornal Página 12, de Buenos Aires, citando assessores de Massa que o acompanharam na reunião com o presidente brasileiro. As supostas declarações de Lula ganharam destaque também nas emissoras de televisão local, como na América TV, por exemplo, e a foto de Massa com o presidente brasileiro ilustrou o comunicado à imprensa sobre a reunião distribuído pelo Ministério da Economia argentino. Uma fonte do governo brasileiro evitou confirmar as declarações de Lula. “Observe que o presidente Lula não fez declarações públicas (como as atribuídas a ele na Argentina). Ele pode ter suas preferências, mas o governo brasileiro terá relação com qualquer um dos candidatos que chegue a ser eleito”, disse o alto funcionário. Além da política externa, as possíveis medidas no âmbito interno em um eventual governo Milei também têm sido acompanhadas não só pela gestão Lula como por governos e políticos da região, além de empresários e analistas. Entre os planos já ventilados por Milei estão o fim do Banco Central (que seria “dinamitado”), a eliminação de programas sociais, mudanças radicais na legislação trabalhista e nas áreas de saúde e de educação públicas, que deixariam de ser custeadas pelo Estado. O economista propõe um ajuste ainda maior do que o que é hoje exigido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) à Argentina e nega que exista uma crise climática. “Não é que Milei seja de direita, ele é louco”, disse o ex-presidente José ‘Pepe’ Mujica, um referente para a esquerda da região, à imprensa uruguaia. O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, também de esquerda, disse à imprensa colombiana que as declarações de Milei eram similares às de Hitler. Milei reagiu dizendo que “os socialistas não me surpreendem e são parte da decadência”. Os sinais de alerta não vem só à esquerda. A consultoria de risco global Eurasia Group escreveu aos clientes no mês passado: "Milei não tem um plano claro para atingir seus objetivos, e sua provável futura presidência vai ser altamente disruptiva". A Argentina é um país com ampla e forte estrutura sindical e de movimentos sociais e a preocupação, em relação aos efeitos internos, é sobre qual seria a reação caso os chamados direitos adquiridos sejam afetados pelo próximo governo. Perguntados se os planos internos de Milei geram inquietação, fontes do governo brasileiro disseram, sem entrar em detalhes: “É uma decisão dos argentinos, mas as declarações dele são preocupantes”. Um diretor executivo de uma empresa com negócios no Brasil e na Argentina e que está baseado em Buenos Aires disse que no meio empresarial existe preocupação sobre as “medidas radicais” de Milei. “Nós entendemos que, com a crise atual, o que as pessoas querem é esse discurso radical. E, em geral, os empresários ficam satisfeitos quando um político diz que a presença do Estado será mínima ou inexistente”, disse o empresário. “Mas Milei nos gera preocupação. O que ele planeja fazer, como a reforma trabalhista, precisa de apoio do Congresso. Hoje ele não tem esse apoio. E como ele faria diante da resistência dos sindicatos e movimentos sociais? E nosso temor é que as medidas econômicas que ele tente aplicar provoquem ainda mais inflação, ou hiperinflação”, seguiu. Segundo dados oficiais, nos últimos doze meses, entre julho do ano passado e julho deste ano, a inflação argentina foi de 113,4%. No âmbito empresarial, contou uma fonte da Bolsa de Comercio de Buenos Aires, a preferência seria por Bullrich, “que é pró-mercado, mas não radical como Milei”. Após as eleições primárias, a situação econômica ficou ainda mais turbulenta. O governo desvalorizou o peso em quase 20%, o dólar paralelo disparou e a expectativa é que a inflação de agosto possa chegar aos dois dígitos, de acordo com economistas. “Se Milei colocar em prática o que diz, como a reforma trabalhista e a privatização da saúde e da educação, haverá conflitos. E devemos notar que ele não contaria com votos do Congresso Nacional”, disse o analista Timerman. Neste caso, a preocupação, segue o analista, também é sobre como o setor de segurança poderia reagir diante dos possíveis protestos e manifestações – que costumam fazer parte da Argentina.
2023-09-03
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A agente dupla peruana que enganou nazistas e ajudou no sucesso do Dia D na 2ª Guerra Mundial
Numa madrugada de 1942, no Casino Crockford, em Londres, Elvira de la Fuente - ou Elvira Chaudoir - disse a alguns amigos que tinha encontrado um emprego bem remunerado, que estava aprendendo um código do serviço secreto britânico e que em breve ela seria enviada em missão à França. O livro Los Secretos de Elvira (Os segredos de Elvira, em tradução direta) do escritor peruano Hugo Coya, conta que um agente encarregado de monitorá-la registrou a “infidelidade” em seu arquivo, pois “a informação poderia chegar aos alemães”, inimigos dos britânicos na Segunda Guerra Mundial. O serviço secreto era o MI6 e Elvira foi "severamente" criticada pela imprudência e interrogada sobre os amigos a quem ela tinha contado o segredo. Felizmente, eles não tinham ligações com os nazistas. Elvira prometeu ser mais reservada a partir de então. Ela cumpriu a promessa e continuou a ser não apenas uma espiã dos britânicos, mas também uma agente dupla infiltrada nas fileiras alemãs por mais três anos, até maio de 1945, pouco antes do fim do conflito. A dificuldade inicial em guardar segredos não foi a única “fraqueza” que fez dela uma agente secreta improvável. Enquanto o imaginário popular retratava os agentes como reservados e discretos, Elvira ia a festas, bebia muito, desperdiçava dinheiro em jogos de azar, era popular e bissexual, o que era escandaloso na época. Fim do Matérias recomendadas Ou seja, a vida dela chamou atenção e deu o que falar. Como uma peruana com essa personalidade marcante ajudou os aliados a derrotar os nazistas? A história de Elvira era quase desconhecida até 1995, quando ela deu uma entrevista a um jornal. Uma década depois, o Reino Unido desclassificou seu arquivo, ou seja, ele deixou de ser confidencial. Esses documentos, vistos pela BBC News Mundo, (serviço em espanhol da BBC), são um relato detalhado de todas as cartas e telegramas que Elvira enviou e recebeu como espiã, das despesas relacionadas ao seu trabalho, dos pagamentos que recebeu dos alemães, dos debates sobre as informações que ela tinha que dar ou não, das pessoas com quem teve algum contato, dos seus familiares, das suas mudanças de endereço. Mas desde antes de entrar no mundo da espionagem, Elvira levava uma vida já bastante agitada. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Seu nascimento está registrado em dois locais: em Lima, em 1912; e em Paris, em 1911. Apesar dessa ambiguidade, “ela certamente era peruana, está registrada no consulado peruano em Paris”, diz Hugo Coya, autor de Os Segredos de Elvira, à BBC News Mundo. “A única dúvida é o lugar exato onde ela nasceu. Não há discussão sobre sua nacionalidade." Além disso, embora Elvira tenha crescido e estudado em Paris, sua educação “teve muitos laços com o Peru”, diz Coya, e ela se comunicava com sua família que morava em Arequipa, cidade ao sul de Lima. Ela era filha de Edmundo de la Fuente, diplomata peruano e rico importador de guano (composto produzido a partir de excrementos de pássaros). Sua mãe, Dolores Martínez, vinha de uma família de origem espanhola e cubana que possuía um império de tabaco. Desde criança, Elvira era popular e preocupada em estar sempre bem vestida. Formou-se em Ciência Política, era agnóstica e, desde a escola, questionava as ideias e costumes da época, como a obrigatoriedade das mulheres se casarem e terem filhos. Na verdade, ela rejeitou vários pretendentes, preferindo “se refugiar nos amigos, na leitura e na música”, diz Coya, que teve acesso aos diários da peruana para escrever seu livro. Além disso, já adulta, passava as noites em bares e cabarés. Até que em 1931 ela pareceu ceder à ideia de se apaixonar, quando conheceu o belga Jean Chaudoir, herdeiro de uma família que era dedicada à compra e venda de ouro. O casamento ocorreu em Paris em 1934 e, depois de uma lua de mel no Peru, o casal se mudou para Bruxelas. Mas o tédio começou a se instalar na vida de Elvira, com infidelidades de ambos os lados. O casamento acabou depois de quatro anos. A jovem regressou a Paris e depois se instalou em Cannes, no sul de França, onde se dedicou a ir a festas e a desperdiçar o seu dinheiro em casinos. Até que o início da Segunda Guerra Mundial a forçou a mudar de rumo. Diante da ocupação alemã na França, Elvir fugiu para Londres em setembro de 1939 e tentou levar a mesma vida de festas e jogos de azar que desfrutava em Cannes, segundo Coya. Os vizinhos de Elvira reclamaram das reuniões em seu apartamento e da presença de bêbados em sua casa na madrugada. A jovem incentivava fofocas sobre sua vida amorosa. Ela só queria se divertir. “Na verdade, ela dizia aos amigos: ‘Por que não aproveitar a vida se a morte nos persegue a cada passo?’”, conta o escritor peruano. Porém, era cada vez mais difícil para Elvira manter esse estilo de vida. Por causa da guerra, seus pais não podiam lhe enviar dinheiro, então ela ficou cada vez mais endividada. Em 1942, ela reclamava que não conseguia encontrar emprego porque era peruana, mas também não procurava trabalho. Coya conta em seu livro que uma noite, no Hamilton Club, em Londres, um oficial da Força Aérea Real ouviu Elvira reclamando e informou à inteligência militar britânica "sobre uma mulher de um país neutro, que fazia parte dos mais altos círculos sociais" e aparentemente "estava passando por algumas dificuldades econômicas”. Um homem identificado como "Masefield" entrou em contato com Elvira e a convidou para jantar no Connaught Hotel. Ele ofereceu um emprego que lhe permitiria manter o padrão de vida que tanto gostava. "Masefield" era Claude Edward Marjoribanks Dansey, vice-diretor do MI6, o serviço secreto de inteligência britânico. Ele disse a Elvira que ela tinha algo valioso na época: um passaporte peruano. Como o Peru era então um país neutro na guerra, Elvira poderia circular pela Europa com esse documento. No entanto, alguns oficiais do MI6 se opuseram ao seu recrutamento. “Eles argumentaram que incorporar uma pessoa com esse estilo de vida acarretava perigos: ela poderia ser vítima de chantagem ou cair em uma emboscada sexual”, escreve Coya. Mas “esse era precisamente o valor de De la Fuente, que ninguém acreditaria que ela era uma espiã”, disse Coya à BBC News Mundo. Depois de analisar as vantagens e desvantagens, o serviço secreto lhe confiou uma primeira missão. Para prepará-la, ela aprendeu a escrever cartas com tinta invisível e foi treinada para responder perguntas ou detectar quando alguém estava mentindo. Elvira De la Fuente passou alguns dias em Vichy, com os pais, no hotel Les Ambassadeurs, e depois foi para Cannes. O serviço secreto britânico ordenou que ela se hospedasse no Hotel Martínez — que, por dívidas do proprietário, havia sido deixado para uso gratuito dos nazistas — e que se dedicasse à vida social que sempre manteve. Mas várias semanas se passaram sem que ela conseguisse que o inimigo a recrutasse. Até que uma noite, num bar, o dono do hotel apresentou a peruana a "Bibi", que na verdade se chamava Helmut Bliel e que, segundo o que Elviraapurou, era agente de Hermann Goering, comandante da Luftwaffe, a força aérea nazista. “Bibi” a convidou várias vezes para jantar e aos poucos eles criaram uma relação de confiança. Numa reunião, o alemão afirmou que tinha alguns “amigos” que estavam procurando alguém que lhes enviasse informações de jornais econômicos da Grã-Bretanha, conta a própria espiã numa carta armazenada pelo Arquivo Nacional do Reino Unido. A jovem se voluntariou para fazer o trabalho, mas assim que começou, os “amigos” mudaram a natureza das informações que iriam pedir. Já não fariam perguntas sobre economia, e sim sobre questões bélicas. Elvira questionou "Bibi" sobre o rumo da missão, mas finalmente concordou em participar, com a condição de não enviar informações que poderiam machucar alguém, diz ela em sua carta. Os alemães criaram um pseudônimo para ela, Dorette, e pediram a ela que se comunicasse com eles através de cartas escritas com tinta invisível. Elas deveriam ser enviadas para um hotel em Mônaco ou para um banco em Lisboa. Elvira tinha conseguido se infiltrar entre os nazistas e, por isso, em outubro de 1942, os britânicos aceitaram que ela fizesse parte da Double Cross (dupla cruz, em tradução livre) ou Comité XX, “o projeto mais ambicioso e secreto de espionagem britânica até então”, escreve Coya. A inteligência britânica criou a equipe Double Cross de agentes para fornecer informações falsas às agências de inteligência alemãs. Além de Elvira, o grupo era composto por outros quatro espiões, de perfis diferentes, que desconheciam a existência dos outros, para evitar que algum deles revelasse informações sobre os colegas caso fossem descobertos, disse Coya. Elvira entrou “com a condição de que não a deixassem sozinha nem a perdessem de vista em nenhum momento”, escreve o autor, devido ao seu perfil atípico e à infidelidade que tinha cometido anteriormente. Mas depois “mudou de atitude e levou muito a sério o que fazia, percebeu a importância do seu papel, cumpriu rigorosamente as ordens que lhe foram dadas, o que permitiu que a sua colaboração se tornasse valiosa”, explica Coya à BBC. A peruana conseguiu um emprego de fachada na BBC e recebeu o pseudônimo de “Bronx” . Uma vez na Double Cross, a espiã cumpriu diversas missões importantes, segundo Coya. Em uma delas, levou a agência de inteligência alemã Abwehr a acreditar que os britânicos tinham armas químicas e poderiam, portanto, retaliar da mesma forma caso os alemães lançassem um ataque químico a Londres. Um oficial do serviço secreto britânico "acreditava que o relatório de Elvira ajudou a dissuadir os alemães de lançar um ataque com gás na cidade, possivelmente salvando muitas vidas e mostrando que 'podemos em alguns casos influenciar ou talvez mudar as intenções operacionais do inimigo'", detalha o livro Double Cross: a verdadeira história dos espiões do Dia D, do britânico Ben Macintyre, autor de diversas obras sobre a Segunda Guerra Mundial. Mais tarde, a missão mais importante de Elvira ajudou os aliados a vencerem a guerra. Os alemães confiaram em Elvira porque, ao contrário de outros espiões, ela enviava informações supostamente obtidas na alta sociedade britânica misturadas com dados militares, além de criar uma imagem de pessoa comum, mas bem informada, escreve Coya em seu livro. Em fevereiro de 1944, os nazistas sabiam que os Aliados planejavam desembarcar na França, mas não sabiam o local exato. Pediram então Elvira que descobrisse onde e quando aconteceria, e que enviasse a informação por telegrama para um banco de Lisboa onde havia uma conta para a qual o seu ex-marido enviava uma suposta pensão. O código acordado com os alemães era que no telegrama ela deveria pedir dinheiro para ir ao dentista. A quantia que ela precisava indicaria o código do local onde os Aliados desembarcariam. Em 27 de maio de 1944, Elvira enviou uma mensagem aos nazistas com uma informação propositalmente errada: pediu 50 libras, confirmando que Aliados chegariam no Golfo da Biscaia, no sudoeste da França. Toda uma divisão de tanques alemães (a 11ª Divisão Panzer) ficou ali, longe da Normandia, que fica no noroeste, onde realmente ocorreu o desembarque. Um oficial de serviço britânico disse que "o movimento de uma divisão Panzer em direção à área de Bordeaux (Golfo da Biscaia) poderia, até certo ponto, ser atribuído ao telegrama de 'Bronx'". O Dia D ou Desembarque na Normandia, em 6 de junho de 1944, marcou o início da derrota do Eixo, formado pela Alemanha, Itália e Japão. Os outros agentes da Double Cross também enviaram informações falsas sobre o desembarque, o que impediu – juntamente com outras operações aliadas – que os nazistas tivessem forças suficientes para se defenderem na Normandia. “Nunca se saberá até que ponto cada estratégia contribuiu para o resultado final. Porém, tudo junto fez com que os alemães desviassem até 19 divisões da Normandia naquele dia, o que deixou o local desprotegido o suficiente para os Aliados”, escreve Coya. Quando a guerra terminou, Elvirase aposentou com um pagamento único de 197 libras. Ficou um tempo em Londres, depois se estabeleceu no sul da França e viveu uma vida tranquila com Carmen, sua nova companheira. “Ela continuou a ser uma mulher feliz e divertida, embora sentisse que não tinha sido devidamente reconhecida por seu trabalho, pois arriscou a vida para ajudar a mudar o rumo da Segunda Guerra Mundial”, diz Coya à BBC News Mundo. Por meio de uma única entrevista concedida a um jornal em 1995, o MI6 soube que Elvira estava em dificuldades financeiras. O serviço enviou a ela 5 mil dólares em agradecimento pelo seu trabalho. Mas ela morreu apenas um mês depois. Apesar do reconhecimento ter sido insuficiente, Elvira De la Fuente sempre se lembrou da aventura - afirma Macintyre em seu livro - "como o período mais maravilhoso e intenso" de sua vida.
2023-09-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjrz20d2pg5o
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O plano do Chile para buscar desaparecidos do regime militar de Pinochet
Poucos dias antes do golpe de Augusto Pinochet no Chile completar 50 anos, o presidente Gabriel Boric assinou um decreto para formalizar o Plano Nacional de Busca de Vítimas de desaparecimento durante o regime militar. “Assumimos como Estado, não apenas como governo, a remoção de todas as barreiras para esclarecer as circunstâncias do desaparecimento e/ou morte das vítimas”, afirmou o presidente chileno durante uma cerimônia no Palácio de La Moneda, a sede da Presidência, na qual estava rodeado de políticos, ativistas dos direitos humanos e familiares das vítimas. Mais de 3.200 pessoas foram detidas, executadas ou desapareceram em um contexto político durante o período em que Pinochet governou, entre 1973 e 1990, segundo estimativas de comissões oficiais. Os restos mortais de cerca de 1.500 dessas vítimas ainda não foram encontrados. O plano foi lançado durante um evento do Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimentos Forçados, em 30 de agosto. Fim do Matérias recomendadas O objetivo do plano é “esclarecer as circunstâncias do desaparecimento e/ou morte das vítimas de desaparecimento forçado e seu paradeiro”. Esta busca – diz o site oficial do projeto – será realizada “de forma sistemática e permanente, de acordo com as obrigações do Estado do Chile e as normas internacionais”. Por meio de um comunicado, o governo chileno explicou que, além de tentar localizar as vítimas, o “Plano Nacional de Busca da Verdade e da Justiça” – seu nome completo – beneficiará os familiares das vítimas. Por um lado, garantindo-lhes “acesso à informação e participação” nos processos de busca. Mas também implementando “medidas de reparação” e oferecendo “garantias de não repetição da prática do crime de desaparecimento forçado”. “O plano traçará o percurso do desaparecimento das vítimas, colaborará com as investigações judiciais e ajudará a configurar a memória e a garantia de não repetição, sem prejuízo da apuração de responsabilidades penais”, esclareceu o governo. A administração de Boric salientou ainda que o plano terá “governança permanente e orçamento atribuído, e existirá como um instrumento de política pública que deve ser implementado, executado e respeitado por todos os governos”. O anúncio de Boric foi bem recebido pelos familiares e amigos dos desaparecidos. “Tínhamos a ilusão de que eles estavam vivos, mas ao longo dos anos percebemos que não estavam”, disse Juana Andreani, vítima de abusos e detida durante o governo Pinochet, à Reuters. “Mas, pelo menos, que nos contem o que aconteceu com eles, o que fizeram com eles. Não saber é o pior destes últimos 50 anos”, acrescentou. Carlos González, que também foi detido e torturado nesse período, considera inédito que o destino dos desaparecidos não seja conhecido. "Obviamente há uma responsabilidade do alto comando das Forças Armadas e dos 'velhos'; o que eles fizeram com os cadáveres", disse ele à Reuters. “Não é possível que não saibamos o que aconteceu com cerca de mil chilenos. Não é possível”, acrescentou.
2023-09-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c03j45y4rl7o
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'Governo da Nicarágua tem ódio da Igreja e quer controlá-la', diz sacerdote
O sacerdote José María Tojeira sabe bem o que é trabalhar como jesuíta em condições extremas na América Central. Em uma madrugada de 1989, o religioso ouviu, a cerca de 40 metros de distância, os disparos de militares que massacraram seis padres jesuítas e duas mulheres na Universidade Centro-Americana (UCA) de El Salvador. Na época, Tojeira era o superior provincial dos jesuítas na América Central. E, desde então, ele pede justiça por aquela matança. Em 2020, um coronel aposentado foi condenado por aquela noite a 133 anos de prisão na Espanha. O julgamento sobre os autores intelectuais dos assassinatos continua em aberto. Mas, agora, o sacerdote tem outra missão difícil nas mãos. Ele foi designado porta-voz oficial da Companhia de Jesus para a crise enfrentada pela ordem – a mesma do papa Francisco – na Nicarágua. Fim do Matérias recomendadas O governo do presidente nicaraguense Daniel Ortega cancelou uma das pessoas jurídicas da ordem e confiscou vários dos seus bens, incluindo a UCA da capital do país, Manágua. Tojeira observa semelhanças entre a forma de ação do governo de Ortega e o governo salvadorenho em 1989, embora sejam governos de sinais ideológicos opostos e os contextos históricos sejam diferentes. “O modo violento” e “a mentira é um ponto de convergência impressionante”, compara Tojeira, em entrevista à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC. Você confere abaixo um resumo da conversa telefônica com o teólogo e ex-reitor da UCA de El Salvador, nascido na Espanha, José María Tojeira. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast BBC News Mundo - Quais são as consequências da decisão do governo nicaraguense de cancelar a ordem dos jesuítas no país e confiscar seus bens? José María Tojeira - Eles não cancelaram totalmente a ordem. Na verdade, eles cancelaram uma das diversas pessoas jurídicas da nossa ordem, que era proprietária de dois imóveis: um onde moravam os jesuítas que trabalhavam na UCA e uma casa para bolsistas que não tinham onde ficar. Essa pessoa jurídica também era usada para transferir dinheiro da cúria provincial da Nicarágua para atender jesuítas idosos na enfermaria. Já precisamos retirar alguns doentes da Nicarágua porque não conseguimos oferecer ali a atenção adequada. Isso é parte dos ataques sistemáticos à Igreja e aos setores da Igreja que se expressaram de forma crítica sobre o governo sandinista. BBC - Então, isso não significa o fechamento das operações da Companhia de Jesus e, com as outras pessoas jurídicas, os jesuítas podem continuar operando, por exemplo, os colégios jesuítas da Nicarágua? Tojeira - Exatamente. Temos dois colégios na Nicarágua: Centroamérica e Loyola. Cada um tem sua própria pessoa jurídica. Por isso, os jesuítas continuam trabalhando ali. O mesmo acontece com a cadeia de escolas primárias e secundárias populares Fe y Alegría, geralmente construídas em bairros da periferia e zonas rurais empobrecidas. Ela tem cerca de 20 escolas e institutos que continuam funcionando normalmente. BBC - Até que ponto os jesuítas estão dispostos a permanecer na Nicarágua neste contexto? Tojeira - Nossa decisão é de permanecer na Nicarágua, a menos que nos expulsem. Até agora, não houve ordem de expulsão. Acreditamos que temos uma forte demanda popular por apoio, evangelização, educação e ajuda no que pudermos fazer. E vamos prosseguir. BBC - O argumento do Ministério de Governo de Daniel Ortega para cancelar a pessoa jurídica no dia 23 de agosto foi que a Companhia de Jesus da Nicarágua não informou seus balanços dos últimos três anos. Qual é sua resposta? Tojeira - Inicialmente, isso sempre nos faz rir um pouco, porque era algo que nós já prevíamos. Todos os anos, nós apresentamos dentro do prazo as informações que precisamos apresentar. Mas, no caso desta pessoa jurídica, eles se negaram sistematicamente a receber as informações. E, quando pedíamos confirmação de que eles não queriam recebê-las ou o motivo da recusa, eles respondiam: “não vamos receber, ponto final”. Agora, eles saem dizendo que as informações não estavam em dia. É lógico, se eles não receberem, é impossível. Acredito que houve uma decisão tomada antecipadamente de manter nossas instituições em dúvida e vulnerabilidade. BBC - Quais medidas os jesuítas pretendem tomar frente aos confiscos do governo nicaraguense? Tojeira - Estamos estudando a possibilidade de prestar algum tipo de queixa junto a instituições internacionais, como a ONU na parte de Direitos Humanos ou a OEA, na América Latina. Para nós, foi uma medida arbitrária e irregular. Por isso, estamos estudando com os advogados a possibilidade de apresentar uma queixa internacional, pedindo a devolução do que foi confiscado. BBC - Vocês acreditam que uma queixa como esta pode ter sucesso? Tojeira - Os Estados muito autoritários, de forma geral, não dão importância à ONU, nem à OEA. Mas acreditamos que seja importante termos uma opinião fundamentada e independente sobre a forma do procedimento de confisco. Não pode haver uma violação de direitos ou ofensa a uma instituição com base em uma acusação falsa sem que nada aconteça. As instituições internacionais ajudam, pelo menos, a sacramentar a verdade. E, mais tarde, já que esta ditadura não será eterna, podem ser apresentadas ações sobre algo que tenha fundamento legal. BBC - O que significou o confisco da Universidade Centroamericana da Nicarágua para os jesuítas? Tojeira - Vínhamos trabalhando nessa universidade há mais de 60 anos. Ela significava muito esforço dos jesuítas, dos laicos e de pessoas interessadas em melhorar a cultura. Os grandes poetas contemporâneos da Nicarágua nasceram vinculados à UCA, dentro da grande tradição poética que existe no país, desde Rubén Darío [1867-1916]. É uma universidade que produziu conhecimento e criou cultura, muito aberta à responsabilidade social. Retirá-la assim, de repente, parece profundamente injusto. Para nós, é doloroso, principalmente porque acreditamos que estão fazendo mal para a Nicarágua. BBC - Nos últimos anos, principalmente a partir da crise de 2018, a UCA havia ocupado um lugar de destaque na Nicarágua em meio aos protestos, em defesa da liberdade de expressão. O governo de Ortega a acusou de “terrorismo”. Vocês esperavam uma medida deste tipo? Tojeira - Sempre pensamos nesta possibilidade porque não foi a primeira universidade que eles confiscaram. Eles já haviam confiscado da Igreja uma universidade agrária que havia em Estelí [noroeste do país]. A perseguição contra a Igreja era evidente. Ainda não havia chegado até nós porque a UCA tinha um simbolismo forte dentro do país, devido ao seu prestígio. Pensávamos que isso servia um pouco de proteção, mas que, a qualquer momento, [o confisco] poderia ocorrer. BBC - Os jesuítas tiveram vínculos históricos com os sandinistas. Quando esta relação começou a deteriorar-se e por quê? Tojeira - Começamos com alguns vínculos relativamente importantes porque colaboramos muito na reforma agrária feita pelo regime sandinista na Nicarágua e na campanha de alfabetização. Mas os problemas começaram na segunda etapa da Frente Sandinista, quando ela voltou a tomar o poder e, sobretudo, quando decidiu reeleger-se, já que a reeleição imediata de um mandato atrás do outro era proibida pela Constituição. Quando eles mudaram este ponto da Constituição, houve críticas da Universidade e começam a surgir más relações, que continuaram na segunda reeleição e, especialmente, a partir de 2018, devido à violenta repressão das manifestações populares. BBC - O sr. foi reitor da UCA de El Salvador. Lá, o sr. presenciou, em 1989, o assassinato de oito pessoas, incluindo seis padres jesuítas. Existe algum ponto de convergência entre o que ocorria naquele momento em El Salvador e o que acontece agora na Nicarágua? Tojeira - O ponto de convergência é o autoritarismo e o estilo incapaz de estabelecer diálogos e procurar soluções pacíficas. No caso salvadorenho, havia uma guerra civil. Mas a reação é sempre de eliminar a voz do dissidente, do que quer a paz, o diálogo e uma solução negociada do conflito. Na Nicarágua, quando houve as grandes manifestações de 2018, a UCA era partidária do diálogo e de garantir uma saída pacífica do regime porque a população estava cansada – que houvesse eleições livres, o que não aconteceu. Estas posições de diálogo e busca de soluções pacíficas para os conflitos irritavam profundamente os setores militares em El Salvador, que dirigiam a guerra, e os setores governamentais na Nicarágua, que também são os que dirigem a repressão. Este é o ponto de convergência, embora os contextos históricos sejam distintos. BBC - O sr. vê similaridade entre a forma de ação do governo de El Salvador naquele momento e a do governo de Daniel Ortega na Nicarágua? Tojeira - Claro que sim, o modo violento. Um tipo diferente de violência, mas o modo violento e também a forma de deturpar a verdade. Uma das coisas que conseguimos com muito esforço foi o reconhecimento de que o exército salvadorenho matou os jesuítas. A versão do governo era que a FMLN [Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional] havia cometido os assassinatos. Acredito que os sandinistas também mentem: eles dizem que não tínhamos em dia os dados da pessoa jurídica e acusam a UCA de terrorismo. Mas o que a Universidade fez, na verdade, foi, em um dado momento, proteger as pessoas que estavam recebendo tiros das forças militares e policiais, além de insistir na questão do diálogo e na solução pacífica dos conflitos. A mentira é um ponto de convergência impressionante nestes dois episódios. BBC - A Companhia de Jesus é a ordem a que pertence o papa Francisco. Vocês acreditam que o governo de Ortega também toma estas ações apontando para ele? Tojeira - A relação entre o governo de Ortega e o pontífice não é boa. Podemos ver isso em declarações das duas partes – o sr. Ortega chamando o Papa de ditador e o Papa dizendo que existe algo na mente de Ortega um pouquinho parecido com os nazistas. Por outro lado, a perseguição à Igreja é evidente. Ortega expulsou o núncio apostólico e ameaçou romper relações diplomáticas com o Vaticano. Este senhor não consegue deixar de responder a qualquer crítica que lhe façam, por mais bem intencionada que seja. O Papa estava preocupado, com toda razão, com a prisão totalmente arbitrária do bispo Rolando Álvarez. É uma prova evidente da perseguição à Igreja e é normal que o Papa se manifeste. As respostas de Ortega foram desrespeitosas e levaram o Papa a tirar conclusões bastante lógicas: que algo funciona mal no cérebro deste ditador centro-americano. BBC - Então o sr. acredita que estas medidas tomadas nas últimas semanas pelo governo de Ortega contra a Companhia de Jesus também são uma resposta ao Papa? Tojeira - Custa-me acreditar nisso enquanto não houver uma manifestação evidente. O que, sim, acredito é que existe perseguição contra a Igreja na Nicarágua, que inclui a Companhia de Jesus. Acho que essas pessoas, do governo da Nicarágua, têm um ódio generalizado da Igreja como força social e de pensamento que eles não conseguem controlar. E querem controlá-la de qualquer forma, sejam os bispos, a Companhia de Jesus ou qualquer sacerdote que tenha pensamento dissidente. Acredito que seja um ódio generalizado à Igreja, não tanto algo direto contra o Papa. Acredito que eles também odeiem o Papa, porque ele defendeu a Igreja. BBC - Por que o sr. acredita que, apesar de tudo, as relações diplomáticas entre a Nicarágua e o Vaticano seguem mantidas? Tojeira - Acredito que romper relações sempre causa desprestígio para o país que toma a decisão. Por isso, não quiseram rompê-las, mas estão totalmente suspensas. De fato, para tentar interceder pelo monsenhor Álvarez, o Papa precisa recorrer ao apoio de Lula ou de algum outro governo que tenha algum prestígio ou força moral sobre a ditadura nicaraguense. BBC - Vocês acham que receberam o respaldo necessário do papa Francisco e do Vaticano, de forma geral, frente às medidas do governo da Nicarágua? Tojeira - Acredito que sim. Claro, para mim, relembra um pouco o que Stalin respondia, segundo se conta, quando diziam a ele que não se metesse com a Igreja: “onde estão os tanques e aviões do Vaticano?” O Vaticano tem força moral, mas não tem mais do que isso. E, neste sentido, acredito que o Papa esteja fazendo todo o possível. Realmente, nossa força é fraca, pois a moralidade não é a força mais forte no mundo em que vivemos. BBC- Vocês veem algum sinal de que o governo de Ortega fique debilitado de algum lado? Ou, pelo contrário, estes são sinais de que ele assume controle ainda maior da Nicarágua? Tojeira - O controle é cada vez mais forte. O que acontece é que, nas relações sociais, quanto mais forte o controle, mais fácil é haver algum tipo de eclosão. Por isso, sim, acreditamos que um controle tão grande pode gerar eclosões internas, não tanto populares, mas dentro do próprio sistema. Existem pessoas na Nicarágua que, embora ocupem cargos no governo, percebem que este não é o caminho. Existe um mal-estar. Todos os comandantes do exército e da polícia precisam pedir permissão para poderem sair do país. É um controle ao qual eles não estavam acostumados, que foi crescendo demais. Por outro lado, Ortega não é igual à sua esposa. Atualmente, eles trabalham muito unidos, mas não têm o mesmo respaldo dos militares. Ortega tem 78 anos e este é outro fator que eu diria que irá forçar uma reorganização do poder interno em relativamente pouco tempo. Como vão fazer é outra questão. Então, acredito que existem algumas fissuras que irão fazer com que esta concentração tão grande do poder estoure de alguma forma. Tomara que seja uma eclosão pacífica e possa ser encontrada uma saída pacífica da situação atual.
2023-09-01
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cyd9n4d2d59o
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O experimento libertário que terminou em fracasso nos EUA
A pequena cidade de Grafton, no nordeste dos Estados Unidos, na fronteira com o Canadá, foi palco de uma experiência política sem precedentes no início dos anos 2000. No entanto, depois de alguns anos, o experimento terminou em fracasso: sem estrutura devido à deterioração dos serviços públicos, tomada pela violência e pelo crime, Grafton chegou à gota d’água com uma série de ataques de ursos-negros contra os moradores. “Em 2004, centenas de pessoas se mudaram para Grafton para fundar o que chamaram de Projeto Cidade Livre e demonstrar a viabilidade do libertarianismo, criando uma comunidade utópica”, diz o jornalista americano Matthew Hongoltz-Hetling, que em 2020 escreveu o livro A Libertarian Walks into a Bear ("Um libertário encontra um urso", em tradução livre), no qual conta a história da pequena cidade. O libertarianismo é uma corrente político-filosófica que coloca a “liberdade individual como o valor político supremo” e considera que cada pessoa tem o direito de viver a sua vida e de fazer com o seu corpo e bens o que julgar apropriado, desde que não interfira nos direitos de outros fazerem o mesmo, explica o cientista político venezuelano Luis Salamanca. Fim do Matérias recomendadas “Para o liberalismo clássico, o Estado deve ser mínimo. Isto é, aceita-se que o Estado exista, mas apenas como vigilante da atividade produtiva e regulador mínimo. Contudo, para os anarcocapitalistas, que são os libertários mais puros e radicais, isto é opressão. Para os anarcocapitalistas, o Estado é o inimigo e deve ser eliminado”, acrescenta Salamanca, ex-diretor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Central da Venezuela (UCV). O libertarianismo está profundamente enraizado nos Estados Unidos desde a sua fundação. “O melhor governo é aquele que menos governa”, disse Thomas Jefferson, um dos signatários da Declaração da Independência e terceiro presidente dos EUA, lembrou o professor de Teoria Política e História Americana Eric-Clifford Graf. Graf lembra que o Partido Republicano teve — e ainda tem — alas e pessoas que defendem estas ideias. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas por que Grafton? “Os libertários pesquisaram dezenas de cidades em New Hampshire antes de se decidirem por Grafton, mas ela atraiu por vários motivos. Lá, vivia um libertário chamado John Babiarz, que estava concorrendo a governador. Também tinha uma população pequena, de cerca de mil pessoas, o que significava que um número relativamente pequeno de eleitores libertários poderia exercer enorme influência na aprovação de decretos e impostos municipais”, explica o jornalista. “E, finalmente, Grafton tinha um profundo histórico de rebelião contra autoridades. No final do século 18, a cidade votou pela separação dos recém-constituídos Estados Unidos por razões fiscais. Muitos dos seus habitantes exerceram desobediência fiscal [não pagaram impostos].” Hongoltz-Hetling conta no livro que, em questão de meses, cerca de 200 libertários — a maior parte dos quais se conheceram na internet — se mudaram para a cidade para iniciar a experiência. Os novos moradores eram em sua maioria homens brancos, solteiros e defensores da posse de armas. Porém, do ponto de vista econômico, o perfil dos recém-chegados era mais variado. Alguns tinham bastante dinheiro, enquanto outros eram pobres e não tinham nada que os ligasse aos seus locais de origem. Com isso, aumentou significativamente o número de novos habitantes vivendo em casas provisórias ou tendas nas florestas rodeando a cidade. Os novos “graftonianos” logo começaram a ter sua presença sentida. “Eles foram muito ativos e envolvidos no processo político local, o que lhes permitiu impor muitas das suas ideias à comunidade”, lembra Hongoltz-Hetling. Embora eles tenham fracassado nas tentativas de retirar a cidade do Distrito Escolar, a autoridade responsável pela supervisão das escolas, ou de declarar a cidade uma "zona livre das Nações Unidas", os libertários convenceram seus vizinhos a cortar 30% do já pequeno orçamento municipal. Porém, a promessa de que o corte resultaria em menos impostos e mais dinheiro no bolso dos moradores acabou não se cumprindo. Por exemplo, em Canaan, uma cidade vizinha, os residentes pagaram, em média, apenas 70 centavos a mais em impostos do que os de Grafton e tinham ruas e estradas pavimentadas e iluminadas. Enquanto isso, em 2011, as estradas de Grafton estavam cheias de buracos, a iluminação pública e a coleta de lixo quase desapareceram, a biblioteca pública teve que reduzir o seu horário para apenas 3 horas por dia e a vigilância policial diminuiu, porque a polícia só tinha recursos para pagar uma agente em tempo integral. Além de ver um aumento na criminalidade, os habitantes de Grafton tiveram de lidar com um problema que não se via há um século: uma onda de ataques de ursos-negros, a partir de 2012. Foram os ataques desses animais que fizeram com que Hongoltz-Hetling voltasse sua atenção à cidade, onde constatou que a mistura entre desregulamentação, redução de impostos e ideias libertárias resultou em uma combinação perigosa. “Muitos dos libertários que viviam na floresta não seguiam as recomendações sobre a eliminação de resíduos, o que criou uma fonte fácil de alimento para os ursos. Em segundo lugar, alguns dos libertários começaram a alimentar ursos, da mesma forma que outros alimentam pássaros ou esquilos no seu quintal. Isso atraiu os animais para áreas residenciais", relata o jornalista. “Em terceiro lugar, a cidade se recusou a chamar as autoridades regionais para tentar realocar ou até abater os animais que estavam causando problemas. Em vez disso, as pessoas tentavam afastá-los [os ursos] de formas que não eram eficazes [usando fogos de artifício, por exemplo]. Com o tempo, os ursos se tornaram mais ousados ​​e mais interessados ​​nos seres humanos como fonte de alimento e até pararam de hibernar." Em 2016, o fracasso da experiência se tornou mais evidente e muitos dos libertários partiram. No entanto, pouco foi feito para reparar os danos causados, diz Hongoltz-Hetling. “O orçamento da cidade não aumentou para compensar os anos perdidos e os serviços municipais continuam a ser deficientes em comparação com cidades vizinhas. No entanto, o ambiente está mais calmo do que antes e não houve mais ataques de ursos, então talvez isso seja uma vitória." Mas como um grupo de recém-chegados conseguiu controlar quase totalmente uma cidade e desmantelá-la sem que ninguém tomasse providências? “Os libertários agiram dentro do Estado de Direito, portanto não havia razão para as autoridades estaduais ou federais intervirem”, respondeu o jornalista. “O fiasco de Grafton foi em parte o resultado de um processo democrático justo, no qual outros residentes não se organizaram de forma tão eficaz como os libertários." “Para mim, os libertários têm responsabilidade moral, mas não legal, pelo que aconteceu às pessoas que foram atacadas por ursos.” “Considero o Estado um inimigo”, declarou o polêmico candidato, que segundo pesquisas tem as maiores chances de vencer as eleições em outubro. Milei se declarou “libertário” e “anarcocapitalista”. Ele prometeu que, se vencer as eleições, “dinamitará” o Banco Central, reduzirá o número de ministérios e legalizará a posse de armas de fogo. Para o cientista político Luis Salamanca, a experiência em Grafton levanta dúvidas bastante razoáveis sobre a viabilidade do libertarianismo. “A experiência permitiu-nos ver os benefícios, mas sobretudo os problemas que a dispensa do Estado gera”, aponta. “O lixo é o exemplo mais patético e mostra que não se pode deixar tudo por conta do mercado. O mercado pode regular os preços, mas há outros aspectos da vida humana que ele não cobre. É aí que falha o modelo anarcocapitalista." “Em Grafton, a liberdade foi privilegiada em detrimento da ordem, mas a liberdade total leva à perda da ordem. E onde não há ordem, prevalece a força e a lei do mais forte”, diz o especialista. O professor Clifford Graf reconhece que as ideias libertárias são inspiradoras e podem ser muito atraentes para eleitores desencantados com os políticos tradicionais. Entretanto, o especialista considera que entregar o poder a defensores desta corrente política “é um risco de caos e a anarquia, o que pode nos levar de volta à tirania”.
2023-08-31
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ce9g774r5q5o
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'O lítio nos pertence': os indígenas que lutam contra exploração do 'ouro branco'
"Nossas terras estão secando e nossa água está poluída", diz Nati Machaca, uma das manifestantes que bloqueia uma estrada na vila de Purmamarca, no alto da Cordilheira dos Andes. Machaca é porta-voz dos grupos indígenas que vivem em Jujuy, uma Província no norte da Argentina. Jujuy está localizada no que ficou conhecido como o "triângulo do lítio", um trecho dos Andes que abrange a área da tríplice fronteira entre Argentina, Bolívia e Chile, e que detém as maiores reservas de lítio do mundo. O metal é usado para fabricar baterias recarregáveis para todo tipo de aplicação. Tornou-se especialmente demandado à medida que os carros elétricos, que também utilizam lítio nas suas baterias, estão se tornando cada vez mais populares. Fim do Matérias recomendadas A Argentina é o quarto maior produtor mundial de lítio (atrás de Austrália, Chile e China), mas alguns residentes de Jujuy dizem que não só não se beneficiam da indústria, como também seu modo de vida está ameaçado por ela. A extração de lítio requer enormes quantidades de água – cerca de 2 milhões de litros por tonelada. E moradores como Nati Machaca, que vivem da terra e criam gado nesta área predominantemente rural, temem que a atividade esteja secando o solo e poluindo a água local. "Se isso continuar, em breve passaremos fome e ficaremos doentes", alerta ela. A posição dos mais de 400 grupos indígenas que habitam estas montanhas é complicada pelo fato de muitos não terem títulos legais das terras onde vivem há séculos – muito antes da chegada dos conquistadores espanhóis no século 16. Machaca é um exemplo disso. Ela mora em um terreno que seu avô comprou do proprietário para quem ele trabalhava. "Naquela época eram todos acordos verbais", explica ela. "Mas não há provas." Ela e muitos outros, que não têm documentos legais para apoiar as suas reivindicações sobre a terra, podem agora enfrentar o despejo sob uma controversa reforma constitucional aprovada em junho pelo governador de Jujuy, Gerardo Morales. "[O governador] Morales vem atrás da terra porque sabe que é onde está o lítio", diz Machaca. A nova constituição também limita o direito de protesto, mas isso não dissuadiu as comunidades indígenas, que bloquearam as estradas para as minas de lítio. A polícia foi enviada para retirá-los, mas os manifestantes dizem que isso os tornou mais unidos e determinados. "Não vamos sair. A terra é nossa, o lítio nos pertence", insistiram. No total, existem 38 projetos de mineração de lítio no norte da Argentina, dos quais três já estão em funcionamento. Grande parte do lítio nesta área está localizado abaixo das salinas na forma de salmoura de lítio. Para chegar aos depósitos subterrâneos, as empresas primeiro precisam perfurar. A salmoura é então bombeada para a superfície em lagoas artificiais, onde parte do líquido evapora antes que o lítio seja extraído por meio de uma série de processos químicos. As comunidades locais alertam que o impacto da mineração de lítio no ambiente é considerável, tanto pela enorme quantidade de água que o processo requer, como pela poluição do ar e da água que os produtos químicos utilizados na extração podem causar. Marie-Pierre Lucesoli é gerente da câmara de mineração da vizinha Salta, província também rica em lítio, e afirma que os processos de obtenção de lítio "evoluem diariamente com o objetivo de se tornarem mais sustentáveis". Segundo Lucesoli, as empresas estão fazendo grandes esforços para otimizar o uso da água, bem como para reduzir o uso de combustíveis fósseis, com quase todas as usinas de mineração de lítio planejadas para funcionar com energia solar. Mas Néstor Jérez, chefe do povo indígena Ocloya, continua preocupado com o impacto que a atual mineração de lítio tem e que os projetos futuros poderão ter. Grupos indígenas como os Ocloya buscam viver em harmonia com a Pachamama (Mãe Terra), a quem veneram em cerimônias. É da Pachamama que Néstor Jérez diz que os povos indígenas tiram forças para se opor aos projetos minerários: "Ela é a fiadora da vida, por isso vamos defendê-la custe o que custar." Ele não se deixa influenciar pelo argumento apresentado por Lucesoli, que afirma que a mineração de lítio gera emprego local e que com isso surgem oportunidades de educação e formação. "A riqueza não tem a ver apenas com a melhoria econômica dos habitantes, mas também com a melhoria da qualidade de vida que durará muitas gerações", afirma. Sentindo que suas preocupações não estavam sendo atendidas, os grupos indígenas marcharam até a capital argentina, Buenos Aires, para que suas exigências fossem ouvidas pelo governo nacional. A marcha, chamada "Malón de la Paz" (Marcha pela Paz), segue o modelo de protestos indígenas semelhantes realizados em 1946 e 2006. Os participantes deste terceiro “Malón de la Paz” dizem estar determinados a não ceder até que a reforma constitucional apoiada pelo governador Morales seja revogada. Mas reforçam que sua luta é muito mais ampla do que pela terra onde vivem. "A mineração está prejudicando a biodiversidade e agravando a crise climática", disseram os que marcharam para a capital. Entretanto, Lucesoli argumenta que o lítio contribuirá para mitigar as alterações climáticas, uma vez que é um elemento-chave na produção das baterias necessárias para a troca de carros a gasolina e diesel para veículos eléctricos. Para ela, o mineral faz parte "da transformação energética para descarbonizar o mundo". Ela admite, porém, que "o setor empresarial precisa informar melhor a comunidade", a fim de conscientizar as pessoas que se opõem à mineração de lítio. Mas aqueles que controlam os bloqueios de estradas em Jujuy e muitos que marcharam para Buenos Aires insistem que não desistirão da sua resistência. "Isto não é só para nós: é para as gerações futuras e para o bem-estar de toda a humanidade." Todas as fotos por Natalia Favre e sujeitas a direitos autorais
2023-08-30
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cpv2ky6glylo
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Os limites e riscos do aceno de governo Lula à Argentina
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) recebeu nesta segunda-feira (28/8) o ministro da Economia da Argentina, Sergio Massa, no Palácio do Planalto. Além de homem forte do mandatário Alberto Fernández, Massa é o candidato governista nas eleições presidenciais marcadas para o fim de outubro. Na agenda do encontro, o ingresso argentino no Brics, a abertura do mercado brasileiro para produtos agrícolas do país vizinho e o financiamento de obras de infraestrutura e uma nova linha de créditos para o comércio bilateral. Mas com a proximidade do pleito, a reunião é vista por muitos como uma oportunidade de campanha para Massa e seu partido, que se beneficiam da relação próxima com o governo Lula. "Ter o apoio do Brasil e de Lula a seu programa político é muito importante para Sergio Massa. Ele sabe que ganha capital político internamente com isso", diz Karen Honório, professora da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Fim do Matérias recomendadas Mas segundo os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, o encontro também pode incomodar e render críticas de membros da oposição de ambos os países, mas em especial do líder nas pesquisas argentinas, Javier Milei. Economista de direita radical, o deputado foi o mais votado nas primárias realizadas em 13 de agosto e lidera as pesquisas de opinião, com 38,5% das intenções de votos válidos. Sergio Massa vem na sequência, com 32,3%, seguido de Patricia Bullrich, com 25,3%. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A maior preocupação, pelo lado brasileiro, é que os constantes acenos de Lula a Fernández e Massa possam prejudicar a relação no caso de um futuro governo Milei. Defensor da iniciativa privada e do livre mercado, o candidato rejeitou manter relações com os líderes de esquerda que comandam as principais economias da América Latina - entre eles, Lula. "Visitas desse tipo sempre serão usadas politicamente. Nessa caso podem provocar reações raivosas da oposição, especialmente de Milei e Bullrich", diz Javier Vadell, professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Além disso, também há quem aponte limites nos benefícios que essa associação com o Brasil podem trazer para a Argentina, especialmente em um momento de crise econômica para ambas as nações. "A relação mais próxima com o Brasil tem favorecido muito a Argentina, mas logicamente que não resolve todos os problemas do país, que tem desafios enormes", diz Vadell. A Argentina passa por uma turbulência política, além de uma crise econômica, com inflação acima de 100% na cifra anualizada, falta de moeda forte e desvalorização do peso argentino. Diante de tudo isso, o Brasil tem sido o principal aliado do governo local para encontrar saídas para o momento de desequilíbrio. Só em 2023, Lula e Fernández já se encontraram 6 vezes. O presidente brasileiro também usou diversas ocasiões para fazer apelos públicos por ajuda ao país vizinho. Entre os projetos mais importantes para ambos os países está a entrada da Argentina no Brics, anunciada oficialmente na semana passada, durante a 15ª Cúpula do Brics, em Joanesburgo, na África do Sul. O país, segundo negociadores brasileiros, corria por fora entre as demais nações que disputavam uma vaga no bloco, mas contou com forte apoio de Lula e seu governo. Estão em curso também negociações sobre o financiamento de obras de infraestrutura na Argentina. Em seu encontro com Lula nesta segunda, Massa deve discutir justamente o lançamento de uma licitação para a construção de uma nova etapa do gasoduto Néstor Kirchner, no sul do país, e que terá financiamento do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Também está na agenda comum dos países a negociação de uma linha de crédito rotativa do Banco do Brasil para o financiamento do comércio bilateral na ordem de US$ 140 milhões. Segundo o próprio governo argentino, o objetivo é usar a linha de crédito para pagar a importação de peças de carros que servirão como insumos para as exportações ao mercado automobilístico brasileiro. As exportações brasileiras à Argentina são cruciais para a economia vizinha não parar, apesar da escassez de dólares no Banco Central argentino. Há ainda expectativa de que o governo Lula - e agora os demais aliados do Brics - possam interceder a favor da Argentina em suas renegociações de dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI). O governo argentino pagou no final de julho cerca de US$ 2,7 bilhões (R$ 12,8 bilhões) como parte de uma reestruturação do passivo que mantém com o Fundo. A parcela foi quitada com um empréstimo do Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF, na sigla em espanhol) de US$ 1 bilhão (R$ 4,74 bilhões) e com yuans liberados por meio de uma operação de swap cambial com o Banco do Povo da China (PBoC). A medida fez parte da 5ª e da 6ª revisão do programa de empréstimo de US$ 44 bilhões, negociado em março do ano passado. Para especialistas consultados pela BBC News Brasil, a parceria estreita entre Argentina e Brasil - e mais especialmente entre os governos Lula e Fernández - pode dificultar as relações no futuro caso Milei seja eleito. Ainda assim, os analistas afirmam que o pragmatismo deve prevalecer, já que o contato entre as duas nações é muito importante para a economia e geopolítica de ambas. "Não necessariamente a relação vai ser maravilhosa - obviamente que com Massa haveria mais fluidez e diálogo. Mas passada a campanha e com o início do governo, o pragmatismo deve se impor", avalia Javier Vadell. Segundo o analista, em um caso como esse devemos ver um cenário muito semelhante ao que vigorou durante a maior parte do mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro, que apesar das diferenças e de uma retórica agressiva contra Fernández, manteve uma relação formal com o governo vizinho. Para Karen Honório, não há como nenhum dos lados se desviarem de uma parceria. "O Brasil tem um peso muito grande para a Argentina, especialmente diante das agendas comuns desenvolvidas nesse ano", diz. "Mas o Brasil também se beneficia dessa relação. E a relação com um país vizinho é para sempre, não tem como mudar de casa", completa Vadell. Ainda segundo a professora da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), o governo brasileiro tem se portado com cuidado para não ameaçar totalmente uma possível futura relação com Milei. "O governo brasileiro tem demonstrado cuidado para não declarar apoio enfático. Todos estão esperando o resultado da eleição", diz. Mas apesar de Sergio Massa fazer sua visita como ministro da Economia, segundo reportagem do jornal Valor Econômico, ao convidá-lo para vir ao Brasil, Lula disse que queria sua presença "como candidato". Especialistas afirmam que a atual situação argentina é complexa demais para ser resolvida apenas com os acenos brasileiros. Segundo analistas, além de barrar a inflação e combater a falta de divisas, um dos maiores desafios a longo prazo do país sul-americano está em renegociar a dívida com o FMI sem comprometer o crescimento interno. Uma seca histórica dificulta ainda mais a situação argentina, levando à menor produção de soja em 20 anos. Além disso, o Brasil não se encontra na situação econômica mais favorável para fazer promessas. "O contexto econômico atual, tanto do Brasil quanto da Argentina, é completamente diferente daquele do começo dos anos 2000, quando há um florescimento das relações durante os governos de Néstor Kirchner e Lula", diz Karen Honório. O limite na ajuda fornecida pelo Brasil foi admitido pelo próprio governo. Após um encontro com Fernández em maio, Lula lamentou não poder apoiar mais o argentino com empréstimos diretos. Em uma declaração que gerou polêmica em setores da imprensa argentina, o presidente brasileiro disse que Alberto Fernández "chegou aqui muito apreensivo, mas vai voltar mais tranquilo". "É verdade, sem dinheiro, mas com muita disposição política", disse. Argentino, o professor Javier Vadell afirma ainda que o apoio de países como os Estados Unidos seriam necessários para fazer grandes progressos na renegociação da dívida argentina com o FMI. "O Brasil e os demais integrantes dos Brics tem assentos e poder de voto no banco, o que ajuda a Argentina. Mas são os EUA quem têm poder de veto", diz. "Por isso Massa tem viajado tanto aos EUA e feito tanto esforço para negociar com os americanos."
2023-08-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn37zl52vvpo
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Apolonia Flores, a menina de 12 anos torturada por ditadura no Paraguai por ser considerada 'guerrilheira'
“Quero saúde, quero educação. Não quero ver o meu povo morrer”, grita Apolonia Flores Rotela enquanto os camponeses acertam os últimos detalhes da viagem. O ano era 1980 e o grupo de homens se preparava para desembarcar em Assunção desde o interior paraguaio com uma reivindicação. Apolonia tinha 12 anos e, naquele momento, tomaria uma decisão que mudaria sua vida para sempre ao escolher acompanhá-los. "Se eu morrer, talvez se faça justiça e os companheiros não tenham mais fome. Vou com vocês", diz ela. Mas não muito longe dali, o plano para silenciar o protesto começava a tomar forma. Fim do Matérias recomendadas Apolonia foi uma das muitas vítimas do governo do general paraguaio Alfredo Stroessner, líder do governo militar mais longevo da história da América do Sul e que repreendeu violentamente o movimento pela reforma agrária e distribuição mais justa de terras. Hoje, aos 56 anos, ela relata sua história à BBC News Mundo, serviço em língua espanhola da BBC. Segundo a paraguaia, a luta pela terra entrou em sua vida quando tinha apenas 7 anos. Naquele momento, a roça que seus pais trabalhavam no departamento de Misiones, no Paraguai, já não era suficiente para a família. Como resultado da organização camponesa, conseguiram que o Instituto de Bem-Estar Rural (IBR) cedesse 500 hectares em Acaraymí, Alto Paraná, para famílias pertencentes às Ligas Agrárias Cristãs. A organização se fortaleceu nas décadas de 1960 e 1970 e suas bandeiras coletivistas incomodaram especialmente a Alfredo Stroessner, que governou de 1954 a 1989. Em 1975, sua família se mudou para Acaraymí. Apolonia era uma menina alegre que brincava no mato com as crianças de sua comunidade. Mas a calma dos dias no campo foi interrompida quando o general Leopoldo Ramos Giménez e sua esposa, Olga Mendoza de Ramos Giménez, conhecida como "Ña Muqui", passaram a reivindicar as terras onde a comunidade trabalhava. O casal também é acusado de dar as ordens para um grupo de soldados matar todos os animais das fazendas locais e promover um cerco à comunidade local. O cerco organizado pelos militares durou quatro anos. Três irmãos de Apolonia morreram no assentamento por falta de atendimento médico. Sem remédios nem comida, encurralados em uma espiral de perseguições e prisões, os camponeses decidiram lutar por suas reivindicações. Em 8 de março de 1980, aos 12 anos de idade, Apolonia e outros vinte adultos que faziam parte das Ligas Agrárias Cristãs se prepararam para viajar para a capital paraguaia. "Se você se levantar contra Stroessner, ele vai te matar. Você não pode ir embora!", implorou Genara Rotela, mãe de Apolonia, à filha. "Prefiro morrer a viver assim! Não quero mais continuar nessa miséria, mãe", desabafa Apolonia, que por fim parte em viagem com o grupo. No caminho, Mario Ruiz Díaz, um companheiro de viagem, tenta convencê-la mais uma vez a voltar. "Fique aqui na escola e amanhã você volta para casa", ele disse a ela, enquanto passavam pelo prédio onde Apolonia estudava. "Não insista. Vou com você até o fim!". Durante o caminho, os camponeses param um ônibus da empresa Rápido Caaguazú que viajava à noite para Assunção. Victoriano Centurión, líder do grupo, convence o motorista a levá-los à capital. Mas no meio da noite, balas começam a ser disparadas contra o veículo. Mulheres, crianças e idosos viajavam no veículo com os camponeses. O interior do ônibus fica coberto de vidro estilhaçado das janelas quebradas. Todos caem no chão. "Os militares estão chegando", Apolonia escuta. "Vamos todos morrer!", diz um passageiro, em meio a gritos desesperados. Os camponeses descem do ônibus e se abrigam na mata. Eles andam por horas, comendo milho cru e mandioca. Ninguém dorme naquela noite. Junto com integrantes do Exército e da Polícia Nacional, civis armados que respondem ao Partido Colorado do líder paraguaio participam da perseguição aos camponeses. A ordem é acabar com os "guerrilheiros" com sangue e fogo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No dia 12 de março, por volta das 4 da tarde, um dos camponeses sai do esconderijo onde se abrigaram após o acidente com o ônibus para buscar água. Na volta, alerta aos companheiros: "Os militares estão chegando, preparem-se camaradas, são muitos!". Os camponeses se dividem para fugir. O grupo de Apolonia caminhava sob um aguaceiro quando um tiro quebra o silêncio da noite. Apolonia cai no chão. Ela foi atingida por seis balas e tem as pernas machucadas. Cercada pela polícia, ela fecha os olhos. Prenda a respiração. "Senhor Todo Poderoso, se vou ser útil para meus irmãos, me ajude a encontrar uma saída", ela implora aos céus. "Essa menina está morta. Vamos revistá-la, ela já tem pelos", disse um dos policiais. Ele rasga as roupas dela. Ele quer apalpá-la. “Ninguém vai me tocar!”, grita Apolonia se levantando. Os policiais, que acreditavam que ela estava morta, se assustam. Eles dão alguns passos para trás. Eles perguntam por Victoriano Centurion, enquanto apontam suas armas contra a menina. "Matem-me, por favor, não toquem mais em mim!", exclama. "Não sou um animal, sou um ser humano como você." Os policiais riem e abusam sexualmente de Apolonia. Depois, arrastam seu corpo pelo mato. Um chefe de polícia intercede e a leva para o hospital Caaguazú. "O que vamos fazer se ela morrer?", murmura o motorista da ambulância. “Se a menina morrer, tenho ordens precisas: vamos jogá-la na estrada”, responde outro funcionário. Apolonia acorda quatro dias depois no Hospital Policial Rigoberto Caballero. Suas mãos e pés estão amarrados à cama. Stroessner entra na sala. "Você saiu da sua comunidade porque queria estudar. Trouxe uma proposta para você", anuncia El Rubio, apelido pelo qual o líder é conhecido. Apolonia olha para a parede. "Por que você não fala comigo? Ela engoliu a língua quando foi baleada?", pergunta o soldado a uma enfermeira. "Vocês são comunistas que se levantaram contra mim", disse ele à menina na segunda visita ao hospital. A terceira vez é mais contundente: "Se você não aceitar minha proposta, vai para o presídio Bom Pastor". A oferta - conta Apolônia à BBC Mundo - incluía abrir mão de sua comunidade, de sua família, para morar com as enfermeiras que cuidavam dela no hospital. "Por que, senhor presidente? Por que eu? Por que não oferece o mesmo aos meus colegas?", pergunta a moça. "Vou voltar para a minha comunidade", diz ela. Ofuscado pela tenacidade da menina, El Rubio sentenciou: “Na prisão você vai morrer com essas feridas, ninguém vai cuidar de você. E se voltar para a comunidade, vai ser picada por um mosquito. Todos vão morrer". Eles a transferem, por ordem de Stroessner, para o Departamento de Investigações da Polícia Nacional. Mais tarde, ela é enviada para a prisão Buen Pastor. "Lá vem a selvagem, a guerrilheira", ouve ao chegar à Penitenciária Nacional Feminina. Na prisão estudou culinária, corte de cabelos e redação. Durante a internação, foi atendida por membros da Comissão de Auxílio Emergencial das Igrejas (Cipae) e advogados. Por vezes, sua mãe a visitava. “Veio à minha procura?”, perguntou Apolenia, chorando, em uma das ocasiões. Genara a consolou, carregando um bebê de 3 meses nos braços. Era junho. "Tem que ficar para que tratem da sua perna", dizia Heriberto Alegre, advogado da Cipae. Os carcereiros matavam o tempo aos domingos fazendo-a fumar cigarros. Quando a forçavam a beber cerveja, ela vomitava. Eles não a deixavam dormir. Um dia, a levaram para testemunhar no Palácio da Justiça. Quando os fotógrafos ativam seus flashes, ela desmaiou: temia que a machuquem da mesma forma como fizeram quando ela foi presa. Ela foi libertada após prestar depoimento perante os juízes e seu pai a levou de volta a Acaraymí, onde organizou uma festa de boas-vindas. A celebração, no entanto, foi interrompida por policiais que entraram no local de forma violenta. Na operação de Caaguazú, que feriu Apolonia, outros dez manifestantes foram capturados e levados para a fazenda de um líder do Partido Colorado. Acredita-se que foram mortos e enterrados em algum lugar nas proximidades. Os camponeses das Ligas Agrárias Cristãs continuam desaparecidos até hoje. Desde 2017, o médico Rogelio Goiburú, chefe da Diretoria de Memória Histórica e Reparação do Ministério da Justiça do Paraguai, realizou quatro viagens de reconhecimento com sua equipe para encontrar o local onde estariam os restos mortais dos camponeses. Por meio de relatos de pessoas que conseguiram falar com os repressores, desenhou um mapa e, em outubro de 2022, um grupo de homens de sua confiança começou a cavar um terreno. Após 60 dias de buscas e oito espaços cavados, nenhum resto humano foi encontrado. Posteriormente, em 2009, a equipe de Goiburú recuperou os primeiros restos mortais dos desaparecidos no prédio do Grupo Especializado da Polícia Nacional, que funcionou como um centro de detenção durante o regime de Stroessner. Encontraram oito fossas coletivas “esvaziadas pelo general Galo Longino Escobar para ocultar os desaparecimentos forçados perpetrados por seu pai, o coronel Juan Ramón Escobar”, afirma o médico paraguaio. "Não é de todo incongruente que tenham retirado os corpos daqui para os levarem para outro local", diz Goiburú apontando para o terreno escavado. Com a coleta de novos testemunhos, outra área de buscas foi traçada, diz Goiburú à BBC Mundo, a sudeste do local onde começaram as escavações. “É um trabalho lento, mas necessário. O segredo está na nossa virtude de perseverança e paciência que vem das nossas raízes indígenas”, afirma o médico. Produto de anos de pesquisa, existem 30 locais demarcados para futuras buscas em todo o país. Não há militares, policiais ou civis no radar da Justiça pelos desaparecimentos forçados dos dez camponeses. "Tenho dez nomes de soldados que participaram do massacre. Três ou quatro deles morreram", explica Goiburú. Ele espera que, com base no trabalho realizado, a Justiça peça ao Executivo os nomes dos envolvidos na repressão. Dois mil soldados do exército permaneceram por dois anos na área onde os camponeses foram perseguidos. Os responsáveis pelas escavações montaram uma fileira de tendas para os familiares das vítimas se protegerem do calor diário e do orvalho noturno durante os dois meses de investigação. Goiburú assegura que a busca pela memória, verdade, justiça, reparação e garantias de não repetição dos crimes de 'stronismo' é uma fotografia dos últimos 200 anos do Paraguai. Caaguazú, que significa "selva grande" em guarani, é um oceano verde de soja que se move ao ritmo da agroindústria latifundiária e da monocultura, pontilhada por ocasionais plantações de cana-de-açúcar. Cerca de 450 desaparecimentos forçados foram registrados no Paraguai. Para Goiburú, na verdade são mais. Ele conta que alguns familiares não denunciaram por medo ou porque não tinham recursos. Também aponta para a falta de documentação dos povos originários. Menciona ainda o caso de meninas que foram convocadas para estudar e crescer com famílias ricas em Assunção, mas que supostamente foram recrutadas como escravas sexuais por Stroessner e seu círculo íntimo e nunca voltaram para casa. A Diretoria de Memória e Reparação Histórica realizou escavações em oito dos 17 departamentos paraguaios: Misiones, Itapúa, Ñeembucú, Cordilheira, Caazapá, Central, Assunção e Paraguarí. Segundo informações da Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF), 34 corpos foram recuperados em sete locais do país. Além disso, a EAAF mantém em seu banco de dados 227 amostras de sangue de parentes das vítimas, a maioria coletada pela Diretoria de Memória Histórica e Reparação do Paraguai. Jajoheka Jajotopa ("nos procuramos, nos encontramos", em guarani) é a campanha nacional que a organização dirigida por Goiburú promove com o objetivo de extrair amostras de sangue para o banco genético de familiares de vítimas do sstronismo. A ideia é comparar as amostras com a análise do perfil genético dos restos ósseos encontrados e, posteriormente, com o perfil genético da população. Goiburú também procura seu pai, Agustín Goiburú, sequestrado em 9 de fevereiro de 1977 no Paraná, em Entre Ríos, por agentes paraguaios, e transferido para o Departamento de Investigações Policiais de Assunção. Segundo Rosa Mercedes Palau, coordenadora do Centro-Museu da Justiça, o Arquivo do Terror guarda os registros de 394 meninas e meninos detidos com suas famílias durante o regime militar. Muitos acompanharam seus pais em marchas camponesas. Apolonia Flores, de 12 anos, está entre as detidas mais jovens da história do Paraguai. Ela foi confinada na prisão Buen Pastor por um ano e ainda tem em seus registros criminais uma passagem por assalto à mão armada. Embora o Instituto Nacional de Desenvolvimento Rural e Territorial (Indert) tenha lhe concedido o prêmio em 2017, ela não possui a titulação do lote que ocupa na comunidade Ko'e Rory, no estado do Alto Paraná. Aos 56 anos, Apolonia continua a lutar por um pedaço de terra para viver. Às vezes, a dor nas pernas impede que ela durma, ande ou fique em pé por muito tempo. Ela sonha com helicópteros, com policiais, com tortura. “Sou uma camponesa com muito orgulho e tenho esses buracos no corpo: é o mapa do que Alfredo Stroessner fez comigo”, diz ela. Embora carregue na pele a herança da violência do regime, seus olhos negros brilham com a lembrança dos companheiros. Apolonia se fortalece novamente, como naquela montanha onde foi cercada pela infâmia e enfrentou a morte. “Gostaria que os jovens se interessassem pela história para que soubessem o que aconteceu no Paraguai”, enfatiza.
2023-08-27
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cyx7349lndgo
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Por que número de peruanos que abandonam seu país quadruplicou
Seus pais, irmãos e tios já estavam nos Estados Unidos há pelo menos sete anos, mas JC permaneceu no Peru para ir à faculdade. Finalmente, ele foi convencido a se juntar aos familiares nos EUA, principalmente por conta da violência em Lima, a capital peruana. “A pandemia foi forte, muitos parentes meus foram embora, a situação não ficou boa por conta dos governos que iam e vinham. Além disso, meu bairro não era tranquilo”, diz JC, que prefere não se identificar, à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC). O jovem de 30 anos conta que já foi vítima de extorsão no Peru. "Como sabiam que minha família estava aqui [nos EUA], me ligavam de uma prisão para pedir dinheiro, eles achavam que eu tinha muito dinheiro. Então tomei a decisão de vir." Fim do Matérias recomendadas “Tive que largar o emprego e começar do zero.” Em 2022, ele viajou Lima ao México, pediu asilo na fronteira com os EUA e chegou a Paterson, Nova Jersey, na costa leste do país. JC foi um dos 401.740 peruanos que deixaram o país em 2022 e não retornaram, segundo dados enviados pela Superintendência Nacional de Migração do Peru à BBC News Mundo. Até junho de 2023, o número subiu para 415.393. Os números são quase quatro vezes maiores do que os de 2021, ano em que 110.185 peruanos deixaram seu país e não voltaram. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast “Trabalhei em diversas áreas: construção, colocação de teto, como garçom, como lavador de louças... Até que surgiu a oportunidade deste restaurante”, diz JC, referindo-se ao estabelecimento que administra em Paterson, aberto há alguns meses com parentes que já moravam na cidade. Alejandra, de 28 anos, também mora em Paterson. Ela saiu do Peru em 2022 “por motivos econômicos” e prefere não divulgar o sobrenome. “Estudei comunicação na faculdade. Mas eu estava passando por um momento ruim na minha carreira. Eu trabalhava em um canal conhecido no Peru, como repórter. Mas eu não tinha contrato fixo, apenas [trabalhos] esporádicos”, conta à BBC News Mundo. “Eu queria algo fixo. Mas vieram as greves, as manifestações. Além disso, os jornalistas estavam sendo agredidos, então não me via mais ali”, lembra a jovem. “Uma amiga disse que estava vindo [para os EUA], então eu disse: vou tentar e ver o que acontece”. Ela voou de Lima para a Cidade do México. Depois, pediu asilo na fronteira com os EUA e agora trabalha numa padaria. Desde que chegaram, JC e Alejandra não retornaram ao Peru e esperam regularizar sua situação migratória. Além dos EUA, os principais destinos dos peruanos são Espanha, Chile e México — embora isso não signifique que eles tenham necessariamente permanecido ou se estabelecido nesses locais. O fato de o México ser um dos destinos mais escolhidos fez analistas consultados pela BBC News Mundo suporem que a intenção de muitos peruanos é na verdade chegar à fronteira com os EUA e pedir asilo. Mas a que se deve esse aumento na saída de peruanos? Aqui estão quatro possíveis motivos, segundo entrevistados. A última onda de aumento da emigração peruana havia ocorrido em 2018, mas o fechamento das fronteiras devido à pandemia interrompeu a tendência em 2020, segundo dados da Superintendência Nacional de Migração. “Durante o boom econômico (2010-2017), poucos peruanos viram melhorias significativas nas suas vidas. Houve problemas que não foram resolvidos na educação, na saúde, no acesso à água. Isso é parte das razões pelas quais a emigração começou a aumentar em 2018”, diz Ulla Berg, autora de dois livros sobre a emigração peruana, à BBC News Mundo. Agora que as fronteiras estão novamente abertas, “a tendência está se recuperando”, diz a socióloga Tania Vásquez, especialista em demografia e migração do Instituto de Estudos Peruanos (IEP). Porque tal como a pandemia interrompeu a curva ascendente de emigração, agora os seus efeitos econômicos podem favorecê-la. Em 2020, a economia do Peru contraiu 11%, segundo o Banco Central de Reserva (BCR) do país. Enquanto isso, em 2022 a pobreza aumentou 1,6% em relação a 2021 e 7,3% em relação a 2019, de acordo com a última Pesquisa Nacional de Lares do Instituto Nacional de Estatística e Informática (INEI) do Peru. “O governo lidou muito mal com a pandemia. As pessoas tiveram que consumir as suas pequenas poupanças enquanto a economia estava paralisada”, critica Teófilo Altamirano, autor do livro Éxodo: Peruanos en el exterior. “A pobreza aumentou, o que gera insatisfação nas famílias... As crianças não têm acesso a uma boa educação, a uma boa saúde.” Para Altamirano, a crise política que atinge o país há pelo menos cinco anos — o Peru teve seis presidentes desde 2018— também traz dificuldades econômicas. “Isso cria uma grande instabilidade na economia para o investimento estrangeiro. Os investidores tiveram de recuar porque não conseguem planejar a longo prazo. Isso se traduz na estagnação, no declínio da economia peruana, do PIB”, acrescenta o autor. A combinação da crise econômica com a instabilidade política "fez com que as pessoas dissessem 'não há nada para nós aqui'", diz Ulla Berg, que acredita que agora "mais peruanos pensam que têm mais chances de receber asilo nos EUA do que na década passada, quando seu país era mais estável.” Nada menos que 80% dos peruanos dizem que se sentem muito inseguros ou algo inseguros nas ruas do país devido à delinquência e ao crime organizado, de acordo com a última pesquisa do IEP sobre o tema, de junho de 2023. “Quando entrevisto pessoas que agora estão emigrando, elas me dizem que uma parte importante [de sua decisão] é a preocupação com a segurança de suas famílias, como elas vão crescer neste país inseguro”, diz Vásquez. Altamirano também acredita que “há insatisfação em continuar morando no Peru devido à insegurança cotidiana dos cidadãos”. A violência no Peru piorou durante a pandemia, à medida que mais e mais pessoas ficaram desempregadas, diz Ulla Berg. Segundo a especialista, muitos dos peruanos que solicitam asilo denunciam que já sofreram extorsão, como é o caso de JC. “Muitas pessoas sentem que as suas vidas estão em perigo como resultado desta violência generalizada, mas também dirigida a pessoas com pequenos negócios ou famílias no estrangeiro”, diz Berg. A pesquisa do IEP afirma que 42% “relatam ter sido vítimas de crimes nos últimos três anos”. No último ano, 28% afirmam ter sofrido algum crime. Apesar da gravidade dos problemas apresentados anteriormente, Vásquez não acredita que eles necessariamente sejam os principais. Ela aponta outro fator que considera muito importante. "Uma das razões que considero fundamental é a 'causalidade cumulativa'", afirma. "Cada vez que um país experimenta a emigração, criam-se redes migratórias nos destinos para onde se vai. Quando essas redes existem, há sempre mais emigração." Desde as emigrações peruanas nas décadas de 1980 e 1990, provocadas por crises econômicas e conflitos armados internos, estas redes cresceram e diversificaram-se, segundo a socióloga. Em 1992, havia cerca de 1,5 milhão de peruanos no exterior, o triplo do que havia em 1981, segundo estudos de Altamirano. Entre 1990 e 2020, os peruanos no exterior totalizavam 3.309.635, 10,1% da população do país em 2020, segundo dados do INEI. “Há famílias mais móveis, mais transnacionais. Antes não tínhamos essas famílias no Peru. Há mais recursos para emigrar, mais experiências acumuladas, práticas de mobilidade que não tínhamos nos anos 1990”, explica Vásquez. Berg discorda dessa hipótese. “A causalidade cumulativa pode explicar a existência de uma infraestrutura migratória que ajuda as pessoas a sair, pedir dinheiro emprestado e se estabelecer no exterior, mas não pode explicar por que os peruanos partem em tão grande número dentro de tão poucos anos.” “A crise econômica e política, a violência e o crime como resultado de problemas sociais não resolvidos, e o impacto da pandemia são partes importantes da imagem que explica por que isto está acontecendo agora." Altamirano e Vásquez também defendem que o termo “emigrantes” seja evitado por enquanto. “A emigração é medida quando a pessoa sai por mais de um ano”, esclarece Altamirano. “Vamos esperar até 2024, 2025, para ver se são mesmo emigrantes no sentido estrito da palavra. Aí podemos dizer quantos são emigrantes e quantos não são. É preciso muito mais pesquisas para dizer que 400 mil peruanos emigraram em 2022. Vamos ver se isso vira padrão.” Vásquez acredita que “não seria correto dizer que estamos testemunhando um êxodo”. “Isso pode mudar em alguns anos porque esses peruanos podem retornar. Resta ver o real saldo migratório."
2023-08-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51rvn6z3l7o
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Governo Ortega dissolve ordem jesuíta na Nicarágua e confisca seus bens
O presidente Daniel Ortega deu seu último golpe nos jesuítas na Nicarágua, despojando a Companhia de Jesus no país do seu estatuto jurídico e dos seus bens, segundo um decreto publicado no La Gaceta, o jornal oficial do país. Ortega – que está no poder há 14 anos – ataca frequentemente o clero da Igreja Católica, dizendo tratar-se de uma "máfia" e uma organização antidemocrática. Nos últimos anos, diversas organizações religiosas foram fechadas e seus líderes presos ou exilados. Segundo informações oficiais, o governo alegou que ordenou a dissolução da ordem jesuíta por não reportar demonstrações financeiras de 2020, 2021 e 2022. Além disso, a administração afirmou não ter renovado o conselho de administração que expirou em 27 de março de 2020. Fim do Matérias recomendadas A medida também implica a transferência dos bens e imóveis da companhia religiosa para o Estado da Nicarágua, o que afetará as escolas jesuítas no país. A decisão foi divulgada apenas uma semana depois de o governo de Daniel Ortega ter ordenado o confisco da Universidade Centro-Americana (UCA), que era administrada pela ordem religiosa há mais de 60 anos e que agora se chamará Universidade Nacional Casimiro Sotelo Montenegro. Em resposta, a Associação de Universidades Confiadas à Companhia de Jesus na América Latina (AUSJAL) emitiu um comunicado para manifestar o seu repúdio por considerar que a UCA foi "caluniada e hostilizada". "A denúncia dos acontecimentos classificados como crimes contra a humanidade para o Grupo de Peritos em Direitos Humanos da Nicarágua, da Organização das Nações Unidas, tornou [a universidade] vítima de ataques múltiplos desde 2018", afirma o comunicado. "O confisco de fato dos bens da UCA é uma represália ao trabalho que esta instituição tem realizado na busca de uma sociedade mais justa, bem como ao seu compromisso de proteger a vida, a verdade e a liberdade do povo nicaraguense", diz. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em 15 de agosto, o governo Ortega abriu um processo criminal contra a UCA pelo crime político de "terrorismo". Professores e dirigentes estudantis viram a ação como uma retaliação pela participação da instituição na onde de manifestações de abril de 2018. Na época, protestos foram realizados em várias cidades da Nicarágua contra as reformas da seguridade social decretadas por Ortega. Os atos foram duramente reprimidos e centenas de pessoas morreram. "Fomos notificados da apreensão de imóveis, móveis, dinheiro em moeda nacional ou estrangeira de contas bancárias, produtos financeiros em moeda nacional ou estrangeira de propriedade da UCA", denunciaram as autoridades universitárias em comunicado. Quatro dias depois, foi dada ordem de confisco da residência Villa del Carmen, onde moram as freiras que trabalham na UCA. A polícia apareceu na residência para exigir que os jesuítas desocupassem o imóvel. Apesar de o imóvel não pertencer à universidade, os religiosos tiveram que sair. Conforme denunciado pela AUSJAL, foram negadas injustificadamente à UCA "certificações para cumprir a sua missão de educar, produzir conhecimento e laços sociais, como foi o caso de outros 27 centros de ensino superior cujos bens foram confiscados". Ao ser excluída destes órgãos, a UCA perdeu o acesso ao orçamento público, o que afetou os estudantes que necessitavam deste orçamento para financiar os seus estudos.
2023-08-24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw89pxj955do
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Expansão do Brics é 'sem critérios' e pode prejudicar Brasil, diz criador do termo
Criador do termo Bric (ainda sem a África do Sul), o economista britânico Jim O’Neill descreveu o anúncio de expansão do bloco que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul como "sem critério" e diz acreditar que o Brasil pode perder influência dentro do grupo. "Continuo sem saber o que os Brics pretendem alcançar, além de um simbolismo poderoso", disse O’Neill à BBC News Brasil. "Isso fica óbvio com a escolha do Irã, por exemplo. Diria que pode até tornar as coisas mais difíceis", complementou. Fim do Matérias recomendadas Os próprios países abraçaram o termo e começaram a realizar cúpulas em 2009. Depois, a África do Sul se juntou ao grupo, que passou a ser chamado Brics. Em entrevista coletiva concedida em Joanesburgo na noite desta quinta-feira, o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, voltou a minimizar o suposto teor ideológico do bloco apesar da presença, agora, de três países considerados hostis pelos Estados Unidos: Irã, Rússia e China. "São três países que não podem estar fora de qualquer agrupamento político que você queira fazer seja para discutir economia, seja pra discutir ciência e tecnologia, cultura. Essa gente tem que estar participando", disse Lula. Confira os principais trechos da entrevista de O’Neill concedida por telefone à BBC News Brasil. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast BBC News Brasil - Como o senhor vê o anúncio de expansão do Brics, que agora contará com mais seis países (Argentina, Egito, Etiópia, Irã, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita)? Jim O’Neill - Ligeiramente engraçado. Essa foi a minha reação inicial. Não me parece que haja nenhum critério objetivo usado para determinar quais países seriam convidados a aderir. A impressão é que os países que pediram primeiro e se mostraram mais empolgados (à possibilidade de adesão) foram admitidos. Mas quais foram os critérios usados para esse convite? Como economista, não vejo nenhum relacionado ao tamanho da população ou da economia. Não há nenhum denominador comum entre esses seis países convidados a aderir ao grupo. Na verdade, existe a suspeita — que é também decepcionante — de que a prioridade principal foi achar países que se irritam com facilidade com o Ocidente. Não me parece particularmente sensata (a expansão). BBC News Brasil - O senhor disse recentemente não saber exatamente o que o Brics pretendem alcançar além de um “simbolismo poderoso”. O senhor tem alguma expectativa de que isso mude? O’Neill - Continuo sem saber o que os Brics pretendem alcançar, além de um simbolismo poderoso. Isso fica óbvio com a escolha do Irã, por exemplo. Diria que pode até tornar as coisas mais difíceis. A menos que estejamos prestes a descobrir na semana que vem que o Irã passará por amplas reformas. E, obviamente, dado que o Irã está tão afastado das finanças globais ocidentais, imagino que possam existir alguns problemas. Então isso apenas fortalece esse simbolismo e deixa alguém como eu um pouco surpreso. Realmente não entendo o que eles estão fazendo. BBC News Brasil - Sendo assim, o senhor acha que essa expansão poderia de alguma forma dificultar os esforços do bloco para atingir seus objetivos? O’Neill - Não era óbvio para mim, antes, o que eles estavam tentando alcançar. E agora é simplesmente ainda mais difícil. Fiquei um pouco surpreso que a Índia, em particular, tenha concordado (com a expansão). Será que a Índia vai realmente apoiar o Irã? E a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos vão realmente começar a se tornar amigos do Irã? É um tiro no escuro. BBC News Brasil - Brasil e Índia tinham resistido à proposta da China de expandir o bloco. O senhor acredita que o Brasil pode sair prejudicado? O’Neill - Compartilho dessa preocupação. Por definição, ao mais do que dobrar o número de membros do bloco, isso claramente diminuirá o papel individual de qualquer um deles, exceto a China. E se você colocar isso em um contexto latino-americano, em relação ao que falei anteriormente, por que raios a Argentina e não o México, além do fato de que a Argentina é publicamente mais "rabugenta" com o Ocidente? Me parece que eles estão se enfraquecendo como um grupo coletivo. E não sei ao certo por qual propósito, além de puro simbolismo. BBC News Brasil - Pensando daqui para frente, o que o senhor acha que deve ser o foco do bloco? O’Neill - Não tenho certeza. Realmente não tenho certeza porque é um grupo de países muito, muito estranho. Se o critério de escolha dos novos membros fosse o tamanho da economia, os países emergentes mais óbvios a serem incluídos seriam os Mint (México, Indonésia, Nigéria e Turquia). Por isso falo de simbolismo. Ao adicionar esses seis países ao bloco, os Brics não estão aumentando a sua parcela no PIB global do agronegócio, porque a maioria deles é muito pequeno, com exceção da Arábia Saudita.
2023-08-24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2ed7d1vee2o
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Expansão do Brics: bloco anuncia 6 novos membros
O Brics, formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, anunciou nesta quinta-feira (24/8) um processo de expansão do bloco. Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Argentina, Egito, Irã e Etiópia foram "convidados" a entrar no grupo como membros plenos a partir de 1º de janeiro de 2024, segundo o anúncio do presidente da África do Sul, anfitrião da 15ª cúpula do bloco, que acontece em Joanesburgo. O termo "convite", segundo diplomatas, é uma formalidade técnica, uma vez que os países anunciados já haviam demonstrado interesse em entrar no bloco. Ainda não há definição se o nome do bloco, formado pelas iniciais dos atuais cinco membros, irá mudar com a sua expansão. Fim do Matérias recomendadas Analistas avaliam que a iniciativa tem como objetivo diminuir o isolamento dos dois países em relação aos Estados Unidos e à Europa Ocidental. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As relações dos dois países com norte-americanos e europeus ocidentais estão desgastadas por eventos como a guerra na Ucrânia e acusações de espionagem supostamente praticada pelos chineses, que Pequim nega. O Brasil, por outro lado, insistia oficialmente para que, em vez de uma expansão acelerada do grupo, que o Brics adotasse critérios a partir dos quais fosse feita a avaliação dos pedidos de adesão. A posição, no entanto, foi mudando ao longo dos últimos dias. Nesta semana, antes do anúncio oficial, membros do governo falavam que um grupo entre três e seis países poderia ser incluído no Brics. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) chegou a defender, publicamente, a entrada de alguns dos países que acabaram de entrar para o bloco — entre eles, a Argentina e Emirados Árabes Unidos. O processo de expansão e escolha dos futuros novos membros dos Brics envolveu meses de negociação e reuniões demoradas durante a cúpula em Joanesburgo. Em princípio, Brasil e Índia não eram favoráveis ao aumento do grupo, que era liderado, principalmente, pela China e pela Rússia. Diante da pressão pela expansão, diplomatas e membros do governo brasileiro passaram a negociar com os demais países do bloco os termos nos quais essa adesão aconteceria. Os negociadores brasileiros passaram a tentar incluir na declaração final da cúpula uma menção à pretensão do país de reformular o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) e virar um de seus membros permanentes (ainda que sem poder de veto), uma pauta histórica da diplomacia brasileira. O tema, no entanto, é particularmente sensível para os chineses, que são membros permanentes e não vinham demonstrando apoio à tentativa do Brasil de integrar o grupo hoje composto por chineses, Estados Unidos, Rússia, França e Reino Unido. Ao final, diplomatas brasileiros comemoraram a inclusão de uma menção à pretensão brasileira de ingressar no Conselho de Segurança da ONU na declaração final da cúpula. O texto, no entanto, não cita explicitamente a inclusão do Brasil como membro permanente. Ele diz o seguinte: "Apoiamos uma ampla reforma da ONU, incluindo o seu Conselho de Segurança com uma visão para torná-lo mais democrático, representativo, efetivo e eficiente e para incluir a representação de países em desenvolvimento entre os membros do conselho [...] e apoiamos as três legítimas aspirações de países emergentes e em desenvolvimento da África, Ásia e América Latina, incluindo Brasil, Índia e África do Sul, para desempenhar um papel maior em assuntos internacionais, nas Nações Unidas em particular, incluindo o seu Conselho de Segurança", diz um dos parágrafos da declaração. Diplomatas brasileiros ouvidos em caráter reservado afirmam que apesar de a menção ser aparentemente vaga, a inclusão da pretensão brasileira de integrar o conselho é vista como uma vitória diante da histórica resistência da China em relação ao assunto. A seguir, confira os perfis dos seis países anunciados: O Egito é um país de maioria muçulmana localizado no norte da África. Sua população está estimada em 110 milhões de habitantes. De acordo com o Banco Mundial, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita do país era de US$ 3,6 mil em 2021, ano do dado mais recente. A título de comparação, a renda per capita brasileira é de US$ 8,92 mil (R$ 44,5 mil). De acordo com o Banco Mundial, a economia egípcia cresceu 5,8% em 2022. O país é comandado desde 2013 pelo coronel do Exército Abdul Fatah Khalil Al-Sisi, que assumiu o poder após uma os militares tomarem o controle do país após uma série de manifestações ocorridas em países islâmicos que ficou conhecida como “Primavera Árabe”. O país é alvo de críticas de entidades que defendem os direitos humanos, como a Anistia Internacional. Em seu relatório mais recente, a entidade acusa o governo egípcio de desrespeitar os direitos de oposicionistas, promovendo prisões arbitrárias e julgamentos sumários que incluem a pena de morte. De acordo com a organização não-governamental Freedom House, que avalia o nível de liberdade de dezenas de países em todo o mundo, o Egito é considerado um país “não-livre”. Em uma escala que vai de 0 a 100, o país atinge 18 pontos. Nessa escala, 0 é indica o menor nível de liberdade e 100 o maior. A chegada do Egito como membro efetivo dos Brics acontece dois anos após o país ter sido aceito como integrante do “Banco do Brics”. Arábia Saudita era apontada como um dos países com mais chances de ingressar no Brics. O país tem 35 milhões de habitantes e uma renda per capita de US$ 23 mil (R$ 115 mil) por ano, segundo o Banco Mundial. A título de comparação, a renda per capita brasileira é de US$ 8,92 mil (R$ 44,5 mil). Dados oficiais apontam que a economia do país foi uma das que mais cresceu no mundo em 2022, com uma taxa de 7,3%. Ainda segundo o Banco Mundial, o crescimento foi fortemente ancorado nas receitas do petróleo, que tiveram alta ao longo do ano passado. A expectativa para este ano, no entanto, é de que o crescimento desacelere, também refletindo a queda nos preços do petróleo. O país tem o endosso da China e o fato de ser um dos países mais ricos em reservas de petróleo no mundo. O Brasil, oficialmente, não vetou a entrada de nenhum dos novos integrantes. De acordo com a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), a Arábia Saudita tem reservas estimadas em 267 bilhões de barris de petróleo, atrás apenas da Venezuela, com 303 bilhões. A Arábia Saudita é um dos principais parceiros dos Estados Unidos no Oriente Médio. Nesse contexto, uma aproximação do bloco com um parceiro americano estratégico poderia ser vista como um contraponto à hegemonia de Washington na região. O país é comandado pela família Saud há décadas. Nos últimos anos, o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman vem sendo apontado como o real líder do país. Ele vem sendo criticado internacionalmente por alegadas violações de direitos humanos e é apontado como um dos responsáveis pelo assassinato do jornalista saudita Jamal Khashoggi, em 2018. Ainda no campo dos direitos humanos, o país é alvo de críticas de entidades como a organização não-governamental Anistia Internacional. Em 2022, a entidade acusou o país de promover julgamentos sumários de oposicionistas e de desrespeitar direitos fundamentais de mulheres. Segundo o relatório, na Arábia Saudita, as mulheres precisam de uma autorização expressa de um homem para se casarem. Em agosto deste ano, guardas de fronteira sauditas foram acusados de assassinato em massa de migrantes ao longo da fronteira com o Iêmen, segundo um relatório divulgado pela Human Rights Watch. Relatos de extensos assassinatos perpetrados pelas forças de segurança sauditas ao longo da fronteira norte vieram à tona pela primeira vez em outubro passado, quando especialistas da ONU comunicaram isso ao governo do país. O governo saudita afirmou que leva as acusações a sério, mas rejeitou a descrição da ONU de que os assassinatos foram sistemáticos ou de grande proporção. De acordo com a Freedom House, o país é considerado um país “não-livre”, com uma pontuação de 8 em uma escala que vai de 0 a 100. O país tem uma população estimada de 9,35 milhões de habitantes e fica no Oriente Médio. A renda per capita é de US$ 44,3 mil (R$ 220,7 mil) por ano e era apontado como um dos favoritos a ingressar no grupo. O presidente do país, Mohammed bin Zayed Al Nahyan, é um dos mais de 40 líderes de fora do Brics que foi convidado a participar do encontro com chefes do bloco e que confirmou sua ida a Joanesburgo. Assim como a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos têm sua economia fortemente baseada nas receitas petrolíferas. A aproximação do país com o Brics começou há alguns anos. Em 2021, por exemplo, o país foi aceito como novo membro do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB, na senha em inglês), instituição criada pelo Brics em 2014 e que financia projetos nos países do bloco. Além dos cinco fundadores do bloco, o banco agora conta com a adesão dos Emirados Árabes, Bangladesh e Egito. O Uruguai também já pediu para fazer parte do banco. Negociadores ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que o país contava com o apoio da China. Segundo eles, o fato de o país já ser um membro do "banco do Brics" era um ponto favorável à candidatura do país. Segundo a Freedom House, o país árabe também é considerado “não-livre”, atingindo 18 pontos de 100 possíveis. Apesar da reticência do corpo diplomático brasileiro em relação à inclusão de novos membros no Brics, Lula defendeu o ingresso do país. "Obviamente eu não decido sozinho, precisa de todos os países decidindo isso", disse o presidente brasileiro em conversa com correspondentes estrangeiros. A Argentina é o único país da América Latina a ser admitido nessa rodada de novas adesões. O país tinha o apoio explícito do presidente Lula. A Argentina tem uma população estimada de 45 milhões de habitantes. O PIB per capita do país, segundo o Banco Mundial, é de US$ 10,6 mil. De acordo com a Freedom House, a Argentina é considerado um país “livre”. Com 85 pontos, o país tem a terceira maior pontuação na América do Sul. De acordo com o governo do país, a economia argentina cresceu 5,2% em 2022, o que coloca o país como um dos que mais cresceu na América do Sul. Apesar disso, a Argentina vive uma crise econômica há alguns anos com altas taxas de inflação. Em agosto deste ano, o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos da Argentina (Indec) anunciou que a inflação atingiu 113,4% no acumulado de 12 meses. O país é governado pelo peronista Alberto Fernández, de orientação política de centro-esquerda. A Argentina, segundo negociadores brasileiros, corria por fora entre os países que disputavam uma vaga no Brics. Um dos fatores que eram vistos como empecilho à adesão do país ao bloco era a incerteza sobre o futuro político da Argentina. O país terá eleições presidenciais em outubro deste ano e o atual presidente não disputa a reeleição. O Irã, localizado no Oriente Médio, tem aproximadamente 87 milhões de habitantes. A maioria da população é muçulmana da linha xiita. Segundo o Banco Mundial, a renda per capita do país é de US$ 4,9 mil. A economia do país é fortemente ancorada na renda petroleira. De acordo com o Banco Mundial, o PIB iraniano cresceu 2,7% em 2022 e a expectativa é de que ele cresça 2% neste ano. A desaceleração seria resultado da baixa nos preços do petróleo. O político mais poderoso do país é o aiatolá Ali Khamenei, líder supremo do Irã. Ele é, ao mesmo tempo, líder político e religioso do país. Abaixo dele, está o presidente Ebrahim Raisi, eleito em agosto de 2021. De acordo com a organização não-governamental Freedom House, o Irã é considerado um país “não livre”. No ranking que vai de 0 a 100, o país tem nota 12. Relatório da Anistia Internacional alega que o governo vem violando direitos humanos no país. Um dos exemplos teria sido o uso de munição letal contra manifestantes que protestavam por mais liberdade no país em 2022. O país também é alvo de sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos por conta da política nuclear do país. O governo norte-americano alega que o Irã mantém um programa nuclear que pode ser usado para a fabricação de armas de destruição em massa, o que o governo iraniano nega. Negociadores brasileiros com quem a BBC News Brasil conversou nos últimos dias apontam que o país não era considerado um dos favoritos a obter acesso ao Brics, mas que sua candidatura não sofreria veto do Brasil. A Etiópia é o segundo país mais populoso do continente africano, com 120 milhões de habitantes, atrás apenas da Nigéria. A chegada da Etiópia ao grupo aconteceu, segundo diplomatas, por conta do apoio da África do Sul. O país será a segunda nação da África Sub-Sahariana a participar do bloco. Segundo relatório do Banco Mundial, o país tem uma das taxas de crescimento econômico mais aceleradas do continente africano. Entre 2021 e 2022, a economia do país cresceu 6,4%. Apesar disso, ainda segundo o Banco Mundial, o PIB per capita do país ainda é considerado baixo: US$ 920,08. É o menor valor entre os membros do Brics. De acordo com a Freedom House, a Etiópia também é considerada um país “não-livre”, com uma pontuação de 21 em uma escala que vai de 0 a 100.
2023-08-24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3gz5nzlny5o
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Expansão do Brics: 'Você escolhe os países e depois define os critérios', diz Amorim
Ex-ministro das Relações Exteriores e atual assessor especial da Presidência da República, Celso Amorim descartou a necessidade de critérios objetivos para escolher novos integrantes para o Brics. "Você escolhe os países e aí depois define os critérios", disse Amorim a jornalistas em Joanesburgo, na África do Sul, onde acontece a 15ª Cúpula do Brics, grupo que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. A declaração de Amorim vai na contramão do que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e membros da diplomacia brasileira vinham dizendo publicamente sobre o possível aumento no número de membros do grupo. Na terça-feira (22/8), por exemplo, Lula disse que seria necessário estabelecer regras para a adesão de novos integrantes. Fim do Matérias recomendadas "Temos que ter critério para manter o que reuniu o grupo em primeiro lugar: países em desenvolvimento de distintas regiões do mundo que não encontravam, nas instituições globais do pós-guerra, o espaço correspondente que seria proporcional ao tamanho de suas economias e populações. É essencial que os novos países membros estejam de acordo com esta questão para uma governança global mais representativa e equilibrada", disse Lula em entrevista concedida ao jornal sul-africano Sunday Times publicada no domingo (20/8). Na semana passada, integrantes do Ministério das Relações Exteriores disseram a jornalistas em Brasília que o Brasil negociava o estabelecimento de critérios específicos a partir dos quais os pedidos de adesão ao bloco seriam avaliadas. Entre esses critérios, estaria a necessidade de que os novos membros fossem favoráveis à reforma do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, uma pauta histórica da diplomacia brasileira. "Nessa ampliação, é importante que se fortaleça o ímpeto reformista do Brics, inclusive em matéria de reforma do conselho de segurança", disse o secretário para as regiões da Ásia e Oceano Pacífico do Ministério das Relações Exteriores, Eduardo Saboia, em conversa com jornalistas na semana passada à qual a BBC News Brasil esteve presente. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O movimento de expansão do Brics vem sendo liderado pela China e pela Rússia. Especialistas avaliam que a iniciativa é uma forma de os dois países evitarem o isolamento gerado pelo tensionamento das suas relações com os Estados Unidos e com a Europa Ocidental. Os chineses são acusados pelos americanos de práticas comerciais predatórias e espionagem, o que o governo chinês nega. A Rússia vem sendo alvo de sanções impostas por países da Europa Ocidental e pelos Estados Unidos por conta da invasão russa à Ucrânia, iniciada em 2022. Inicialmente, o Brasil e a Índia vinham apresentando resistência à expansão desejada por russos e chineses, mas nos últimos dias, o governo Lula passou a dar demonstrações de que não vetaria a entrada de novos integrantes. Fontes ligadas às negociações para a expansão do grupo com quem a BBC News Brasil conversou em caráter reservado nos últimos dois dias apontam a expectativa de que cinco países devem ser anunciados como novos membros do bloco: Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Egito, Argentina e Irã. A Indonésia, que era apontada como uma das favoritas a entrar no bloco, entraria em um segundo momento, segundo esse entendimento. Os líderes do bloco terão mais reuniões sobre o assunto nesta quarta-feira (23/8), segundo dia da cúpula.
2023-08-23
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51r41y33v9o
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Equador: o resultado da votação histórica que impacta no futuro da exploração de petróleo na Amazônia
Os equatorianos foram às urnas no último domingo (20/8) para escolher um novo presidente, mas também para ganhar voz nas políticas ambientais de seu país, em meio a um pleito marcado por violência política. Além de escolher entre oito candidatos que concorrem à Presidência, elegendo Luisa González e Daniel Noboa para o segundo turno, os eleitores votaram sobre o futuro de uma polêmica operação de perfuração de petróleo na floresta amazônica. O plebiscito era sobre o destino do "Bloco 43", um grupo de campos de exploração de petróleo localizados no Parque Nacional Yasuni, uma das áreas ambientais mais ricas do mundo. Segundo o Conselho Nacional Eleitoral, 59% das pessoas responderam "Sim" para acabar com a exploração no Bloco 43. O Yasuni cobre mais de 1 milhão de hectares e abriga pelo menos 2 mil espécies de árvores e arbustos, 204 espécies de mamíferos, 610 espécies de pássaros, 121 espécies de répteis, 150 espécies de anfíbios e 250 espécies de peixes. Fim do Matérias recomendadas É também o lar de várias populações indígenas — incluindo pelo menos duas das últimas tribos "isoladas" do mundo — aqueles que voluntariamente recusaram a interação com o mundo exterior. A perfuração ocorre no 'Bloco 43' desde 2016. Isso ocorreu após a tentativa fracassada do presidente Rafael Correa de garantir um pacote de compensação global para manter o petróleo no solo. Segundo estimativas do governo, o 'Bloco 43' fornece 12% dos 466 mil barris de petróleo produzidos por dia pelo Equador. Um em cada quatro equatorianos vive na pobreza, segundo dados do Banco Mundial. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast E não foi a única consulta ambiental realizada naquele dia. Os cidadãos da cidde de Quito expressaram sua discordância com o avanço da exploração mineral em uma área de grande importância devido à sua biodiversidade: o Chocó Andino. Localizada a cerca de 40 quilômetros do centro da cidade, esta região é uma rica reserva ecológica e, ao mesmo tempo, contém depósitos minerais como ouro e cobre. Por essa razão, ao longo dos últimos anos, ativistas do coletivo "Quito sem mineração" têm impulsionado uma consulta popular com quatro questões para que os moradores da área pudessem indicar se concordavam em proibir a exploração mineral em âmbito artesanal, de pequena, média e grande escala. A resposta nesta consulta regional foi mais contundente: 67% dos eleitores se declararam a favor da proibição. “Conseguimos o maior consenso nacional. Ou seja, o que os políticos nos dividem, conseguimos unir na natureza", disse à BBC Mundo Pedro Bermeo, um dos líderes da iniciativa cidadã. “Não se trata de acabar com a exploração de petróleo. É uma mensagem de que as comunidades têm o direito de decidir o que acontece em seus ambientes. No caso, os indígenas", afirmou. O governo do atual presidente Guillermo Lasso, que desencadeou uma eleição antecipada em maio em uma tentativa de evitar processos de impeachment, diz que o fechamento das operações custará ao país US$ 1,2 bilhão (R$ 6 bilhões) por ano em receitas perdidas. Mas organizações ambientais e de direitos indígenas dizem ser um pequeno preço a pagar. Para a líder indígena Alicia Cahuiya, da tribo Waorani, um dos povos indígenas que vivem em Yasuni, a reserva natural desempenha um papel crucial no combate às mudanças climáticas, ajudando a capturar o dióxido de carbono (CO2) da atmosfera. "O Yasuni tem sido como uma mãe para o mundo... Precisamos levantar nossas vozes e mãos para que nossa mãe se recupere, para que não se machuque, não seja espancada", disse ela à agência de notícias AFP. Os cientistas também alertaram que a destruição da Amazônia, que se estende por oito países sul-americanos, inclusive o Brasil, está comprometendo sua capacidade de atuar como um "sumidouro de carbono", absorvendo mais carbono do que liberando. Luisa Gonzalez, a favorita na corrida presidencial, evitou tocar na polêmica durante a maior parte de sua campanha, mas quebrou o silêncio no início de agosto com uma declaração que deixou o campo anti-petróleo preocupado. "Por que você não pede aos países que mais poluem que depositem US$ 1,2 bilhão em um fundo para nós?", tuitou ela, antes de sugerir que aqueles que propuseram o plebiscito deveriam oferecer alternativas para gerar renda para o país. Embora a violência sofrida pelo país tenha atraído mais atenção durante a campanha eleitoral, o futuro dessas regiões ganhou importância dentro e fora do país. A mídia internacional lembrou que esta consulta foi a conclusão de uma iniciativa antiga. Em 2007, o então presidente Rafael Correa lançou uma proposta inédita para a época: não extrair cerca de 850 milhões de barris de petróleo em troca de uma compensação financeira. No entanto, seis anos depois, a iniciativa foi cancelada porque o dinheiro esperado não foi arrecadado. O governo então autorizou o início da exploração do campo. Contudo, naquele período, um grupo de ativistas deu início a um processo para permitir que os cidadãos decidissem sobre a viabilidade da exploração. Um esforço que demandou uma década. Com a vitória do "Sim", conforme anunciado pelo Conselho Nacional Eleitoral e confirmado pela Corte Constitucional ao aprovar a consulta em maio deste ano, o governo equatoriano não estará autorizado a celebrar mais contratos de exploração de petróleo nessa região. Ademais, o governo terá um prazo de um ano para proceder à remoção gradual e organizada das infraestruturas petrolíferas localizadas no parque nacional. "Para nós, ficou cristalino que a riqueza desse território transcende o aspecto material: reside em sua população e em sua biodiversidade", expressou Bermeo. Quanto ao Chocó Andino, a aprovação do "Sim" não possui efeitos retroativos. Ela simplesmente determina que o governo equatoriano não pode emitir novas licenças de mineração nessa região. "Essa é uma mensagem para o governo, indicando que desejamos progredir de maneira distinta: uma economia fundamentada na biodiversidade e não na exploração de recursos naturais", comunicou à BBC Mundo Inti Arcos, um dos líderes do movimento "Quito sem mineração".
2023-08-21
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3gw919zev7o
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Guatemala elege Bernardo Arévalo, 1º presidente progressista após 40 anos de governos conservadores
Ele foi a grande surpresa no primeiro turno e repetiu o feito na votação final das eleições presidenciais na Guatemala. Bernardo Arévalo, candidato progressista que rompe com o histórico conservador dos últimos governos — e que se apresenta como “o candidato anticorrupção” que vai deixar para trás a classe política tradicional —, venceu confortavelmente as eleições de domingo (20/8), com 58% dos votos. Sua rival, a ex-primeira-dama Sandra Torres, chegou perto da presidência pela terceira vez consecutiva, com 37% dos votos à frente da UNE, uma frente criada como social-democrata, mas que se voltou para um conservadorismo intenso e representava continuidade ao atual governo. Milhares de pessoas foram às ruas para comemorar os resultados, cansadas das múltiplas denúncias de corrupção no governo. Os eleitores afirmam ver em Arévalo uma esperança de mudança frente aos últimos anos de deterioração institucional e crescente autoritarismo no governo guatemalteco. "O que o povo está gritando é 'basta de tanta corrupção' (...). Vamos trabalhar para garantir instituições que mereçam sua confiança (...). Esta vitória é do povo e agora, unidos como povo de Guatemala, vamos lutar contra a corrupção", disse Arévalo em sua primeira aparição após saber da vitória. Fim do Matérias recomendadas Em sua fala, ele se referiu ao futuro mandato como "o governo da nova primavera". "Parabenizo Bernardo Arévalo e faço o convite para iniciarmos uma transição ordeira, um dia após a oficialização dos resultados", tuitou o atual presidente, Alejandro Giammattei. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Arévalo chegou à vitória neste domingo em meio a questionamentos sobre ele poder ou não realmente concorrer e assumir a presidência em 14 de janeiro de 2024. O motivo é que, após sua surpreendente eleição para o segundo turno, seu partido Movimento Semilla (Movimento Semente) foi alvo de investigações por supostas irregularidades em sua criação por autoridades guatemaltecas, incluindo juízes que fazem parte de uma lista de "funcionários corruptos e antidemocráticos" dos Estados Unidos. Embora o Tribunal Constitucional já tivesse derrubado uma ordem de suspensão do partido, o chefe da Promotoria Especial contra a Impunidade, Rafael Curruchiche, insistiu na quinta-feira passada sobre a existência de provas pelas quais "a partir de 20 de agosto será necessário registrar a suspensão o partido". Arévalo respondeu neste domingo dizendo-se “tranquilo” diante do que chamou de “perseguição política por parte de juízes cooptados corruptamente” com a intenção de “intimidar” a sua candidatura. "Queremos pensar que a contundência desta vitória vai deixar claro que as tentativas de descarrilar o processo eleitoral não triunfarão", afirmou. Sociólogo e ex-diplomata de 64 anos, Arévalo é filho de Juan José Arévalo, o primeiro presidente eleito em voto popular na Guatemala após a Revolução de 1944. Seu pai foi para o exílio quando o ex-presidente Jacobo Árbenz foi derrubado, em 1954, após intervenção militar dos Estados Unidos. Bernardo Arévalo acabou nascendo no Uruguai — algo usado contra ele por seu rival durante a campanha eleitoral — e voltou com a família para a Guatemala na adolescência. Em sua carreira, ocupou cargos como cônsul em Israel, vice-ministro de Relações Exteriores em seu país e embaixador na Espanha. Atualmente é deputado no Congresso pelo Movimento Semente, partido que surgiu após os protestos de 2015 que levaram à renúncia do então presidente Otto Pérez Molina, marcado por escândalos de corrupção pelos quais acabou condenado. Arévalo foi o primeiro candidato a presidente da coligação, já que a candidatura em 2019 da ex-procuradora-geral Thelma Aldana não foi autorizada pelas autoridades eleitorais. "Ele não é a primeira pessoa de esquerda a chegar ao poder na fase democrática: o social-democrata Álvaro Colom, ironicamente ex-marido de Sandra Torres, já o fez. O que Arévalo tem é uma posição muito mais progressista devido às origens de seu partido", diz Jahir Dabroy, da Associação de Pesquisa e Estudos Sociais (ASIES) da Guatemala. Sua ideologia já foi rejeitada pela elite econômica e por grupos que tradicionalmente detêm o poder no país. Muitos de seus opositores qualificaram Arévalo de "comunista" e garantiram que, se ele se tornasse presidente, acabaria expropriando terras dos mais ricos (algo que ele nunca disse). Uma de suas principais bandeiras na campanha é o combate à corrupção no Estado a partir de um gabinete anticorrupção específico e de uma comissão de fiscalização, com autonomia do governo, criada com o mesmo objetivo. Embora não pretenda trazê-la de volta, elogiou o trabalho da Comissão Internacional contra a Impunidade na Guatemala (Cicig), expulsa do país em 2019. Ele adiantou que vai pedir a renúncia da procuradora-geral do país, Consuelo Porras, descrita como “corrupta” pelos EUA e responsável pela investigação de dezenas de jornalistas e juízes anticorrupção que acabaram por partir para o exílio. Embora tenha esclarecido que não pode interferir nesse sentido por se tratarem de casos legais, Arévalo expressou desejo de que eles possam retornar à Guatemala. Ele também declarou que protegerá os direitos da população LGBT e que seu governo não permitirá discriminação contra este grupo, algo que seus oponentes usaram para afirmar que ele buscava legalizar o casamento igualitário e promover o aborto. Arévalo negou. O principal desafio para o próximo presidente da Guatemala será melhorar as condições de vida e oportunidades para mais da metade da população, que vive abaixo da linha da pobreza, e metade das crianças, que sofrem de desnutrição crônica. Considerada a maior economia da América Central, o país também registra uma das maiores desigualdades da América Latina. Isso se reflete em uma crise migratória que continua aumentando e na ausência de serviços básicos de saúde e educação suficientes, especialmente em áreas rurais. Um desafio particular para Arévalo será tentar cumprir sua principal promessa eleitoral de acabar com a corrupção que, segundo analistas e organizações internacionais, mantém o Estado cooptado há anos. "Vai ser complicado porque o que conhecemos como 'pacto corrupto' existe no país há 20 anos e será difícil desfazê-lo em quatro anos de governo. São muitos interesses envolvidos e não será fácil negociar com atores que há tanto tempo mantêm privilégios no Estado", diz a cientista política guatemalteca Gabriela Carrera. Outras das suas propostas incluem o controle das prisões e fortalecimento da Polícia Nacional Civil, além da geração de empregos por meio da construção de estradas e infraestruturas com investimento público, a inauguração de mais de 400 novos postos de saúde e a oferta de bolsas de estudo para estudantes. Alvo de grandes expectativas com tantas promessas de mudanças, o novo partido Semilla tem pouquíssimos aliados. Entre eles estão alguns atores sociais, autoridades indígenas e grupos urbanos e juvenis, cujo apoio já foi decisivo para o seu sucesso após o primeiro turno, graças a uma forte mobilização nas redes sociais. Mas ele certamente enfrentará a rejeição de agentes que têm enorme peso e influência no país: grandes empresas e a elite econômica tradicional, a Igreja evangélica e o setor militar. “Uma de suas desvantagens é que temos uma classe política que tem articulado poderes do Estado em torno de uma forma não muito nobre de fazer política, intimamente ligada a casos de corrupção, e isso pode ser um obstáculo para seu governo", diz o analista Dabroy. As dificuldades de Arévalo também incluem um Congresso de ampla maioria conservadora, onde o Semilla tem 23 deputados de um total de 160, atrás do governista Vamos e da UNE, de Torres, que já mostraram no passado sua capacidade de formar alianças. Mas, segundo Carrera, diretora de Ação Pública da Universidade Rafael Landívar (Guatemala), “se existe algo no perfil de Arévalo, é sua capacidade de mediar. Há esperança que negociações entre diferentes atores do país possam dar certo. Ele é um bom negociador e isso pode ser uma grande vantagem em seu futuro governo." No entanto, as investigações sobre o Semilla seguem em andamento e há um longo intervalo até a posse de Arévalo, em janeiro. "Parece que isso não encerrará com a eleição de domingo e provavelmente continuaremos a ver atores tentando manipular o processo eleitoral", diz Dabroy. “Não podemos descartar mais surpresas porque elas acontecem desde o primeiro dia deste processo eleitoral. Independentemente de quem tenha vencido, tenho certeza de que haverá muita gente insatisfeita e as perspectivas podem ser complicadas”, concordou Carrera.
2023-08-21
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Eleição no Equador: quem são a advogada esquerdista e o empresário de 35 anos que disputarão presidência no 2º turno
Os candidatos Luisa González e Daniel Noboa vão disputar o segundo turno das eleições para a presidência do Equador em 15 de outubro. González e Noboa foram os candidatos mais votados no domingo (20/8), segundo o resultado do Conselho Nacional Eleitoral (CNE) do país. Com mais de 85% dos votos apurados, González, que era favorita nas pesquisas, liderou a disputa entre os oito candidatos, com 33% dos votos. Ela é herdeira política do ex-presidente esquerdista Rafael Correa (2007-2017), um dos principais aliados políticos do presidente Luís Inácio Lula da Silva na América do Sul. Em seguida vem Noboa, com 24%, a grande surpresa deste primeiro turno. Aos 35 anos, ele é filho do empresário e político Álvaro Noboa, que em 2006 perdeu no segundo turno para Correa. Os demais candidatos admitiram suas derrotas. Fim do Matérias recomendadas Para se eleger já no primeiro turno, os candidatos precisariam ter obtido mais de 50% dos votos válidos, ou 40% mais 10 pontos à frente do rival mais próximo. “Este Equador corajoso, este Equador com sentimento de pátria, mobilizou-se, quebrou o medo e votou numa mulher. É a primeira vez que uma mulher consegue um percentual tão alto no primeiro turno”, disse González, que almeja ser a primeira presidente do país. Noboa, por sua vez, distanciou-se de uma batalha correísmo versus anti-correísmo no segundo turno e negou planos de formar uma coligação contra o correísmo. “Não sou a favor da amarração, mas de um novo projeto”, disse. Alguns dos candidatos derrotados já manifestaram seu apoio a Noboa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os equatorianos votaram neste domingo para eleger um substituto para o atual presidente Guillermo Lasso e membros para uma nova Assembleia Nacional. O nome e a foto de Villavicencio apareciam nas cédulas de votação, que foram impressas antes de seu assassinato em 9 de agosto. Christian Zurita, candidato presidencial que o substituiu, foi o terceiro mais votado, com 16% dos votos. A aliança Gente Buena - Construye, que tinha Villavicencio como líder, foi o segundo movimento político mais votado para a Assembleia, atrás da Revolución Ciudadana, partido de Correa. Com relação às consultas populares sobre o futuro do Parque Nacional Yasuní e da região do Chocó Andino, a maioria dos equatorianos votou pela não-exploração dos recursos naturais dessas áreas do país com tanta biodiversidade. Cerca de 100 mil policiais e militares fizeram guarda nos locais de votação e nenhum ato de violência foi registrado. Em 17 de maio, Lasso, que não era candidato nesta eleição, assinou o decreto de dissolução da Assembleia, que por sua vez preparava-se para votar a possível destituição do então presidente. Por se tratar de uma eleição antecipada, o presidente e os deputados eleitos neste novo processo eleitoral permanecerão no cargo até 23 de maio de 2025, data final prevista para o governo Lasso. Mas, quem são González e Noboa, que disputarão a presidência em 15 de outubro? A advogada Luisa González, única mulher na disputa presidencial no Equador, tem 45 anos, é mestre em Economia Internacional e Desenvolvimento pela Universidade Complutense de Madri e teve diversas experiências em administração pública durante o governo do ex-presidente Correa. Ocupou os cargos de secretária nacional da Superintendência de Empresas, vice-cônsul do Equador em Madri e vice-ministra de gestão do turismo. “Meu principal assessor será Rafael Correa, claro”, disse ela durante a campanha, orgulhosa do legado econômico deixado pelo ex-presidente. Conta a seu favor o fato de o ex-presidente Correa se identificar como opositor de Lasso, o atual presidente, cuja taxa de aceitação é baixíssima. Ela também conta com a estrutura eleitoral do chamado correísmo e o núcleo duro de fiéis eleitores do movimento. Ao mesmo tempo, sua clara associação com Correa, que também sofre forte resistência de um setor da população, pode jogar contra ela. Seu último cargo público foi o de membro da assembleia do movimento UNES, que reunia movimentos e organizações relacionadas com o correísmo. González aspira ser a primeira mulher eleita presidente do Equador pelo Revolución Ciudadana, que se identifica com o que chama de socialismo do século 21. Caso atinja o objetivo, o seu triunfo marcaria também a volta do correísmo à presidência, movimento político que governou durante mais de uma década até 2017. Atualmente, Correa vive como asilado político na Bélgica. Ele foi condenado a oito anos de prisão no Equador pelo caso "Subornos 2012-2016", motivo pelo qual não pode regressar ao país. Durante sua gestão como deputada pela província de Manabí, González, que é mãe solteira, se opôs à legalização do aborto em caso de estupro. A prática foi descriminalizada pela Corte Constitucional em 2021 e gerou intenso debate no país. O plano de governo de González baseia-se em referências às conquistas do movimento Revolución Ciudadana de Correa quando ele estava no poder. Promete linha dura contra o crime e fortalecer forças armadas e sistemas de inteligência. Diz, ainda, que o Equador é um Estado falido e que as instituições de segurança não funcionam. No seu discurso, garantiu que se chegar à presidência, vai lutar contra a corrupção, sobretudo no sistema de saúde, vai conceder empréstimos às famílias endividadas e ao sector agrícola, além de subsidiar o preço dos combustíveis. Daniel Noboa é filho de dois políticos conhecidos no Equador: Alvaro Noboa, um dos homens mais ricos do país e candidato presidencial em várias ocasiões, e Anabella Azín, médica, deputada e legisladora da última constituinte de 2007 no Equador. Aos 35 anos, Noboa, empresário e ex-legislador, é formado em Ciências pela New York University e em Administração de Empresas. Seu último cargo público foi de deputado, quando também foi presidente da Comissão de Desenvolvimento Econômico e Produtivo, onde tramitam leis nas áreas tributária e de investimentos. É a primeira vez que concorre como candidato presidencial em uma eleição e o faz com a Alianza Acción Democrática Nacional (ADN), que inclui grupos como o PID (Pueblo, Igualdad y Democracia) e o Mover, que reunem ex-membros do correísta Alianza País, após a ruptura entre Correa e Lenin Moreno. Ele negou que represente a direita e garante que seu voto é de esquerda e centro-esquerda. Noboa propõe contas públicas ordenadas e responsabilidade fiscal. Ele afirma que acredita na livre iniciativa, mas ao mesmo tempo na responsabilidade social. Sua principal vantagem é que, no segundo turno, ele pode atrair votos de Zurita-Villavicencio, terceira maior força do primeiro turno e que se colocou em clara oposição ao correísmo, bem como de outros candidatos minoritários. Apresenta-se como um candidato jovem, novo no sistema político, que ambiciona superar rótulos de anos anteriores como correísmo e anticorreísmo e centrado em preocupações econômicas. Sua companheira de chapa e candidata à vice-presidência é Verónica Abad, fundadora da Rede de Mulheres Dirigentes e membro da Fundação Internacional El Sebrador, onde trabalha com mulheres e crianças vulneráveis ​​e famílias afetadas pela violência e pelas drogas. Noboa propõe a realização de um referendo para introduzir reformas à atual Constituição em temas ligados à justiça. Também propõe uma reforma policial para combater a insegurança e dar proteção aos juízes. Ele afirma que seu governo fará uma reforma tributária para que quem tem mais pague mais. Durante sua passagem como legislador em 2022, foi criticado por organizar e financiar uma viagem à Rússia junto com outros parlamentares, para estreitar os laços com aquele país em meio à guerra na Ucrânia.
2023-08-21
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O plano para transformar a Grã-Colômbia em monarquia (e o que fez Simón Bolívar)
A coroa era digna de um soberano. E, em um dia jubiloso, ela foi oferecida de presente a Simón Bolívar na antiga capital do império inca – a cidade de Cusco, no Peru. Elaborada com 47 folhas de louro feitas de ouro, 49 pérolas barrocas, 9 diamantes grandes e 274 diamantes menores, ela era conhecida como a grinalda cívica. É considerada uma “joia esplêndida”, que poderia muito bem adornar a cabeça de grandes imperadores, como Júlio César ou Napoleão Bonaparte. Em junho de 1825, Simón Bolívar (1783-1830) estava no auge da sua glória. O Libertador era presidente da então chamada Grã-Colômbia – uma república formada pelo território hoje ocupado pela Colômbia, Venezuela, Equador e Panamá. E, poucos meses antes, ele havia também consolidado a independência do Peru. Por isso, a chegada de Simón Bolívar a Cusco foi uma espécie de “marcha triunfal”. “Ao longo do caminho até a capital, as populações mais importantes e os casarios humildes competiam nas suas demonstrações de alegria ao ver seu Libertador, mas nada pode ser comparado com a magnificência apresentada pela antiga capital dos incas, quando [Bolívar] nela entrou em 25 de junho”, contou, em suas memórias, o diplomata e militar irlandês Daniel Florencio O’Leary (1800-1854). Fim do Matérias recomendadas “Podia-se dizer que a cidade havia sofrido muito pouco ao longo da revolução, tamanha era a riqueza ostentada naquele dia”, prossegue O’Leary, que foi amigo pessoal de Bolívar e participou das guerras da independência na América espanhola. Foi em Cusco que o Libertador recebeu a coroa cívica preparada em sua honra. Mas ele não a conservou para si. Na verdade, Bolívar a entregou ao marechal Antonio José de Sucre (1795-1830), que foi comandante das forças militares na decisiva batalha de Ayacucho, no Peru. Sucre, por sua vez, presenteou a coroa ao Congresso Nacional da Colômbia. Aquela não foi a primeira vez em que Bolívar se recusou a usar uma coroa. Anos antes, ele havia tomado a mesma decisão com uma coroa de louros entregue a ele na capital colombiana, Bogotá, em 1819. Essas coroas, na verdade, não eram investidas de nenhum poder. Mas houve diversas tentativas nomear Bolívar como rei – e até uma proposta concreta de torná-lo presidente vitalício, em 1829. Após a sua morte, seria estabelecida na Grã-Colômbia uma monarquia constitucional, governada por um príncipe europeu. Mas no que consistia essa proposta? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em 3 de setembro de 1829, Bolívar estava no sul do continente e o poder na Grã-Colômbia estava a cargo do Conselho de Governo. Este Conselho autorizou o Ministério de Relações Exteriores a realizar negociações diplomáticas secretas com a Inglaterra e a França, manifestando “a necessidade da Colômbia de organizar-se definitivamente para alterar sua forma de governo, decretando uma monarquia constitucional” – e saber se, quando chegasse a hora, aqueles países estariam dispostos a dar o seu consentimento. A proposta contemplava a ideia de que “o Libertador governasse enquanto vivesse com este título e, depois da sua morte, começaria a reinar o príncipe que fosse escolhido, de alguma das dinastias europeias”. Além disso, prevendo o alarido ou a oposição que esta mudança poderia gerar nos Estados Unidos e em outras repúblicas americanas, o Conselho também consultava sobre a possibilidade de contar com “a poderosa e eficaz intervenção da Grã-Bretanha e da França, de forma que a Colômbia não se perturbasse, nem se inquietasse, de nenhuma forma, por ter usado o direito inalienável que a ela assistia, de estabelecer a forma de governo que melhor lhe conviesse.” O Conselho de Ministros também instruiu seus representantes diplomáticos a explicar ao governo da França, sem assumir nenhum compromisso, que “no caso de ser escolhido algum ramo das casas reais europeias, era a opinião do Conselho de que conviria à Colômbia escolher um príncipe francês, que seria da nossa mesma religião e, em cujo favor, convergiriam muitas outras razões de política e de conveniência”. Assim, no dia 8 de setembro de 1829, foram enviadas instruções aos representantes diplomáticos da Grã-Colômbia na França e no Reino Unido – respectivamente, Leandro Palacios (1782-1836) e José Fernández Madrid (1789-1830). As negociações acabaram sendo totalmente infrutíferas e, mais tarde, contraproducentes. Devido aos seus laços de sangue com a Casa de Bourbon, na Espanha, a realeza francesa rejeitou o pedido. Já no Reino Unido, a ideia de instauração de uma monarquia na Colômbia teve melhor recepção, mas outros motivos levaram à mesma recusa. Fernández Madrid enviou para Bogotá um relatório das suas conversas com o então ministro britânico de Relações Exteriores, Lorde Aberdeen (1784-1860). No relatório, ele destacou: “O Governo de Sua Majestade, longe de se opor a que se estabeleça na Colômbia uma ordem política semelhante à deste país, comemoraria a realização desta reforma, convencido de que ela irá contribuir para a ordem e, consequentemente, a prosperidade dessa parte da América. Mas [o ministro] repetia que o governo inglês não permitiria que um príncipe da família da França cruzasse o Atlântico para ser coroado no Novo Mundo.” Além de terminarem em fracasso, as negociações tiveram repercussões negativas para o governo da Grã-Colômbia. Afinal, apesar de terem sido realizadas de forma reservada, elas acabaram chegando ao conhecimento público. “O próprio projeto de uma monarquia que substituísse os esforços liberais e republicanos dos libertadores soou como grito de alerta em todas as cidades e aldeias, sacudindo em pânico a epiderme colombiana”, escreveu o escritor e diplomata colombiano Diego Uribe Vargas (1931-2022), no seu livro Colombia y su Diplomacia Secreta (“A Colômbia e sua diplomacia secreta”, em tradução livre). “Neste caso, a diplomacia secreta havia sido utilizada contra a República e a própria tentativa de alterar clandestinamente a estrutura constitucional com ajuda estrangeira representava um ato passível de punição, não apenas à luz dos costumes democráticos, mas como traição à própria ação emancipadora”, prossegue o escritor. Por isso, a iniciativa acabaria por ser um dos últimos pregos no caixão da Grã-Colômbia. Nas palavras do historiador venezuelano Carraciolo Parra Pérez, “o resultado mais grave e irremediável da operação em favor da monarquia foi oferecer aos nacionalistas venezuelanos mais do que um pretexto, mas uma razão válida para separar seu país da União Colombiana, já que seus governantes em Bogotá perderam a esperança na República.” Mas como é possível, depois de quase duas décadas de guerra, sangue e destruição para conseguir a independência da Espanha, que ainda houvesse pessoas na Grã-Colômbia propondo seriamente a substituição da república por uma monarquia, colocando no governo um membro da realeza europeia? Na verdade, as negociações de 1829 foram a iniciativa mais séria de criar a monarquia, mas esta ideia já havia sido apresentada em outras ocasiões. E, de fato, era uma ideia persistente no continente americano. “As tentativas monárquicas na América Latina não foram poucas. Em praticamente todos os países da região, houve este tipo de iniciativa”, declarou à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC) Juan Carlos Morales Manzur, presidente da Academia de História do Estado de Zulia, na Venezuela. “É preciso recordar a tentativa que ocorreu na Argentina, para instaurar uma monarquia com a princesa Carlota Joaquina de Bourbon, uma das irmãs de Fernando 7º [da Espanha]; as ideias de San Martín de estabelecer uma monarquia no Peru; e a iniciativa do presidente [Juan José] Flores que, já fora do poder, tentou constituir uma monarquia no Equador, que seria dirigida por um filho da rainha que governava a Espanha, Maria Cristina de Bourbon”, explica o historiador. “Já o México teve uma monarquia e dois impérios. No Haiti, também houve três impérios e o Brasil teve uma monarquia estável por muito tempo. Por isso, pensar em uma monarquia na Colômbia não é um fato isolado”, conclui Morales Manzur. O historiador Tomás Straka, da Universidade Católica Andrés Bello de Caracas e membro da Academia Nacional de História da Venezuela, indica que “a independência não é necessariamente antimonárquica”. Ele explica que, embora a região litorânea da Venezuela e da Colômbia tivesse posições bastante radicais e, desde o primeiro momento, tenha se imaginado que a independência da Espanha causaria a transformação global da sociedade, a maior parte da América espanhola, incluindo a maioria dos venezuelanos, por muito tempo, não apoiou a ideia da república. “Isso explica, em grande parte, por que a guerra durou 10 anos, pois houve conotações de guerra civil na maior parte do território”, explica o historiador. “Houve quem pensasse que, se o Reino da Espanha não era mais viável, seria necessário estabelecer-se e tornar-se independente, como um filho que sai de casa – esta foi a imagem defendida por muitos – e procurar outro rei. A existência de problemas na monarquia espanhola, para muitos, não significava que a monarquia não pudesse funcionar”, segundo Straka. Mas a iniciativa de 1829 não teve origem na possível simpatia dos membros do Conselho do Governo da Grã-Colômbia pelo sistema monárquico, mas na grave crise interna vivida no país, cada vez mais próximo da sua dissolução. Morales Manzur explica que, naquela época, a Grã-Colômbia vivia em uma situação política complexa. “Todas as repúblicas latino-americanas haviam fracassado”, explica ele. “Quando se conseguiu a independência, o que houve foi um clima de confronto, de pobreza e de instabilidade política em todos aqueles países. Por isso, alguns pensaram na ideia da monarquia, considerando que ela poderia trazer estabilidade.” Já Tomás Straka afirma que, em 1829, a situação política da Grã-Colômbia estava muito deteriorada. “Havia dissensões na Nova Granada [hoje, Colômbia e Panamá]. A Venezuela, declaradamente rebelde, organizava assembleias para separar-se da Colômbia e, pouco antes, havia ocorrido uma rebelião em Guaiaquil [Equador], que conseguiu ser resolvida no último minuto”, explica o historiador. “Além disso, havia a guerra com o Peru. Por isso, procurando uma solução desesperada, apresentou-se aquilo [a proposta da monarquia].” A iniciativa buscava conseguir uma fórmula que permitisse dar continuidade à própria existência da Grã-Colômbia, como explicou o então secretário do Interior do Conselho de Governo do país, José Manuel Restrepo (1781-1863). “Muitos dos homens experientes e influentes nos negócios, residentes em Bogotá, ao verificar o estado alarmante de subsistência da União Colombiana; ao considerar que o único vínculo que conectava as diferentes partes desta bela República era Bolívar, seu fundador, cujas enfermidades e velhice precoce não ofereciam garantias de que fosse viver o bastante para completar a obra iniciada; e ao considerar, por fim, a forte antipatia infelizmente existente entre granadinos e venezuelanos, e a declarada contra ambos pelos filhos do Equador, naturalmente observavam com ansiedade o futuro da Colômbia, que não conseguiam considerar que fosse duradouro”, escreveu Restrepo. O então secretário assinalou que estes elementos persuadiram algumas pessoas, incluindo os membros do Conselho de Ministros, de que o país não iria sobreviver se continuasse sendo uma república. A Grã-Colômbia, para eles, terminaria dividida “pelas antipatias e rivalidades existentes”. Por isso, eles chegaram à conclusão de que a única forma de ter garantia de ordem e estabilidade era uma monarquia constitucional, governada por um príncipe trazido da Europa. Mas, sobre tudo isso, o que pensava Simón Bolívar? Em dezembro de 1829, o Libertador deixou muito claro que ninguém poderia contar com ele para aquele projeto de monarquia. “Em relação ao ato do Conselho Ministerial sobre a fundação de uma monarquia, cujo trono (qualquer que fosse sua denominação) deveria ser ocupado por S. Exª o Libertador-Presidente e, por ele próprio, sustentar a todo custo sua base em benefício do sucessor, S. Exª acreditou ser seu dever reprová-lo; pois sua própria consagração à causa pública seria infrutífera, já que, manchada sua reputação por um ato contraditório à sua carreira e aos seus princípios, ele trilharia o conhecido caminho dos monarcas”, segundo uma carta enviada pelo secretário de Bolívar, José Domingo Espinar (1791-1865), ao ministro Estanislao Vergara (1790-1855). “Convenha ou não à Colômbia a criação de um trono, o Libertador não deve ocupá-lo; mais do que isso, ele não deve cooperar com a sua edificação, nem acreditar, ele próprio, na insuficiência da atual forma de governo”, acrescenta a carta. Apesar desta e de outras negativas explícitas e escritas anteriores, existem historiadores que acreditam que Bolívar aspirava a ser um monarca, enquanto outros consideram que sua posição sobre a questão era ambígua. “Se alguma responsabilidade pode ser imputada a Bolívar é a de que, conhecendo o projeto de monarquia, ele não se apressou a reprová-lo, mantendo um silêncio com efeitos devastadores para a unidade nacional”, segundo Uribe Vargas. “Não só o Conselho de Ministros renunciou, reconhecendo seu erro, mas a opinião unânime dos historiadores considera esta conduta um dos fatores que mais contribuíram para a dissolução da Grã-Colômbia”, conclui o historiador. Naquela época, Bolívar estava muito preocupado com o destino da Grã-Colômbia, ao ponto de considerar ideias extremas, como solicitar um protetorado externo, para evitar sua dissolução. Em uma carta enviada de Quito (no Equador), em abril de 1829, para o ministro de Relações Exteriores, Espinar destacou que “o quadro tão espantoso oferecido pelos novos Estados americanos faz prever um futuro muito grave e a causa da independência se vê ameaçada pelas mesmas pessoas que deveriam sustentá-la”. Ele acrescenta: “não resta outro recurso (na opinião de S. Exª) a não ser que você fale privadamente com os ministros dos Estados Unidos e da Inglaterra, manifestando a pouca esperança existente de consolidar os novos governos americanos e a iminência de que eles sejam reciprocamente substituídos, se um Estado poderoso não intervier em suas diferenças ou tomar a América sob sua proteção”. Uribe Vargas afirma que esta “súbita mudança de conduta” de Bolívar é atribuída à doença que o afligia e “à angústia do Libertador ante o espetáculo de algumas facções políticas, cujas disputas colocavam em perigo a sorte da campanha de emancipação”. O escritor e ex-diplomata também destaca que, a partir desta iniciativa do protetorado, o Conselho de Ministros imaginou que o Libertador pudesse assumir uma posição mais favorável à ideia da monarquia. Mas, apesar disso, Bolívar rejeitou a possibilidade de ser coroado em diversas ocasiões. Uma das mais célebres ocorreu em 1826, quando o general José Antonio Páez (1790-1873) enviou uma carta comparando a situação da Grã-Colômbia com a vivida pela França, quando Napoleão foi chamado para salvar a nação – e apelava ao Libertador para que fizesse o mesmo. Em sua resposta, Bolívar foi taxativo: “não sou Napoleão, nem quero ser; também não quero imitar César, muito menos Iturbide [imperador do México entre 1822 e 1823]. Estes exemplos me parecem indignos da minha glória. O título de Libertador é superior todos os que já recebeu o orgulho humano. Por isso, é impossível degradá-lo.” “Um trono assustaria tanto pelo seu brilho, quanto pela sua altura. Este projeto não é conveniente para você, nem para mim, nem para o país”, concluiu Bolívar.
2023-08-20
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A colombiana de 18 anos que fazia tranças em vilarejo e hoje é modelo exclusiva da Louis Vuitton
Há apenas um ano, os moradores do bairro Ciudadela, no vilarejo litorâneo de Tumaco, na Colômbia, conheciam Valentina Castro Rojas por ela ser uma garota com talento para trançar cabelos afro. Fora isso, seus 1,75m de altura também já chamavam a atenção em desfiles e concursos de beleza em sua escola e no bairro. Mas ninguém imaginava que, com apenas 18 anos, Valentina estaria desfilando para a marca de luxo mais vendida do mundo. A Louis Vuitton é bastante conhecida, mas distante para a grande maioria dos tumaqueños. A única loja dessa marca na Colômbia fica em Bogotá, a mais de 1.000 km da casa de Valentina. Seus produtos são acessíveis a uma pequena minoria. Antes de sua vida ser mudada por uma mensagem no Instagram enviada por um caça-talentos, Valentina ganhava entre US$ 4 e US$ 12 (de R$ 20 a R$ 60, aproximadamente) para fazer os cabelos de cada cliente em seu bairro. Agora, ela desfila com roupas multimilionárias em lugares icônicos como o Musée d'Orsay em Paris ou a ilha italiana de Isola Bella, no Lago Maggiore. "Uma das coisas que mais admiro nas outras modelos e também em mim é fazer parecer fácil, porque não é. Pode estar muito frio, pode estar muito quente, pode doer os pés, mas você vai como se nada estivesse acontecendo", diz Valentina à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC. Depois de vários meses viajando pela Europa, ele voltou para Tumaco e está no último ano do ensino médio em uma escola perto de sua casa, enquanto estuda inglês virtualmente. A modelo mora com a mãe, que vende produtos por catálogo, e as irmãs. Seu pai é pescador. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Tumaco, onde Valentina nasceu e cresceu, é uma pequena cidade na costa do Pacífico da Colômbia, perto da fronteira com o Equador. Ela tem pouco mais de 250 mil habitantes — 4 em cada 5 pessoas são afro-colombianas. É um lugar onde se cristalizam as facetas mais duras da realidade colombiana: a pobreza e a violência. Segundo o último censo demográfico, mais da metade dos habitantes de Tumaco vivem abaixo da linha de pobreza multidimensional; 3 em cada 10 têm suas necessidades básicas não atendidas. Valentina, no entanto, descreve Tumaco como "pacífica". "Apesar de não termos todos os recursos e as ruas não serem asfaltadas, somos todos muito unidos", explica. "De Tumaco, gosto muito da praia e do pôr-do-sol, da comida, gosto de muitas coisas." Arrumar o cabelo com a irmã é uma de suas lembranças favoritas da infância. "Sou simples na maneira de me vestir, mas não no meu cabelo. Gosto muito do meu cabelo, gosto de mudar de visual, não gosto de ficar com o cabelo parado", diz Valentina. Foi precisamente através de uma conta no Instagram em que publicava imagens de tranças e penteados que Sebastián Bedoya, caça-talentos da agência dominicana Nefer Models, fez contato. Bedoya se dedica a buscar modelos na Colômbia que tenham uma certa altura e a um determinado perfil de rosto — mais precisamente, semelhante ao da rainha egípcia Nefertiti. Em novembro, ele encontrou Valentina nas redes sociais e mandou uma mensagem perguntando se ela gostaria de ser modelo. "Eu não tinha muitos seguidores, mas eles [da agência] gostaram muito das fotos e poses que eu postei. Em muitas fotos, imitei como outras modelos posavam. Fotografei a mim mesma com a câmera frontal", lembra Valentina. Com muita desconfiança, ela respondeu que estava sim interessada na carreira de modelo. Mas quando Valentina contou à mãe sobre as mensagens, esta também ficou imediatamente desconfiada. "Ninguém achava que era verdade", lembra a modelo. O fantasma das mulheres que recebem promessas de trabalho no exterior e acabam sendo traficadas nublaram a expectativa de Valentina de seguir a carreira de modelo. A desconfiança continuou por várias semanas, mas a insistência de Valentina foi tanta que sua mãe concordou em conversar com Bedoya e depois com Nileny Dippton, uma conhecida ex-participante de concursos de beleza e empresária dominicana que dirige a Nefer Models. Eles marcaram uma viagem de Valentina e de sua mãe para Santo Domingo, para que a carreira fosse iniciada — isso sem saber que a gigante francesa Louis Vuitton viria mais à frente. "Foi quando chegamos lá que ficamos um pouco mais tranquilas", relata Valentina. Valentina assumiu a difícil tarefa de aprender a ser modelo internacional em apenas algumas semanas. "Foi uma mudança muito drástica. A comida era muito diferente. Eu tinha que comer de forma saudável. Foi muito difícil para mim, de verdade. Comecei a me exercitar, correr, treinar, beber muita água. Desde o primeiro dia que cheguei, não tive descanso." Antes dessa viagem — a primeira vez que ela saiu da Colômbia —, Valentina nunca havia usado salto. A mudança de hábitos foi tão repentina que acabou cobrando um preço. Alguns meses depois, em um voo da Itália para a Inglaterra, Valentina começou a sentir que não conseguia respirar. "Eu tinha uma dieta muito rígida que me afetava muito. Desmaiei no avião e tive que ir para o hospital", conta. "Nunca estive doente assim. Eu estava ficando desnutrida." Segundo suas palavras, o médico recomendou que ela "comesse melhor". "Estou acostumada a comer muito. Desde então, tenho comido minha alimentação normal." Nem quatro meses se passaram desde a primeira troca de mensagens com o caça-talentos, quando Valentina recebeu a notícia de que sua estreia seria no desfile outono-inverno da Louis Vuitton na semana de moda de Paris, em março passado. "Eu estava muito segura de mim, me senti muito feliz, muito contente", diz ela. Agora que conhece melhor o mundo da moda, Valentina conta que já ouviu muitas histórias de modelos que ficam empolgadas em desfilar para grandes marcas, mas na última hora, isso não acontece. Não foi o caso dela. Chegou a hora do desfile no renomado Musée d'Orsay e Valentina foi a segunda a aparecer — com os cabelos trançados e uma jaqueta estruturada preta, peça que foi um dos destaques da coleção. Valentina descreve a passarela como um ringue de luta contra sua própria mente. “Chegou uma hora que eu estava subindo uma escada, pisei na ponta de um degrau e quase caí. Comecei a ficar incomodada e a minha mente dizia que ia cair, mas continuei”. A revista Vogue chamou a coleção desenhada por Nicolas Ghesquière de "o epítome da elegância francesa". A lista de convidados incluía superestrelas como Zendaya e Jaden Smith. “Sim, conheci celebridades, mas o problema é que não decoro os nomes. Eles têm alguns nomes estranhos. Eu não sou uma pessoa que é fã de alguém. Eles que me peçam uma foto”, brinca. Sobre sua relação com as outras modelos, ela diz: “Eu sorria muito e tentava me incluir mesmo não entendendo. Se riam, eu ria, embora nem entendesse do que falavam." “Também conheci outras modelos latinas, mas me senti excluída. Isso doeu um pouco.” Após o desfile, Valentina foi escolhida para fazer fotos e vídeos promocionais da coleção. Ela continou trabalhando exclusivamente para a Louis Vuitton desde então. Em abril, desfilou na Coreia do Sul, e em maio, na Itália. Sobre seu desfile em Seul, ela lembra: “Minha roupa esvoaçava e estava superlinda. Eu me senti como uma super-heroína." Valentina passou quase todo o ano de 2023 fora da Colômbia. Ele voltou há menos de um mês para terminar a escola. Voltar foi uma missão quase impossível, pois a cada vez que a data de seu voo se aproximava, novas sessões de fotos e campanhas no exterior surgiam. "Agora me sinto bem porque estou em casa descansando, me sinto feliz." Desde que ela voltou, dezenas de jovens a procuraram porque sonham em seguir seus passos. "Há muitas garotas que querem ser modelos, mas não gosto de vender esse sonho a elas." Apesar disso, Valentina já acertou com a agência Nefer Models que fará um casting (algo como um recrutamento) de novas modelos em Tumaco. Ela está ajudando algumas jovens em que vê potencial a se prepararem para essa oportunidade. Além disso, Valentina viajará novamente em setembro para a sede de sua agência na República Dominicana e espera continuar sendo modelo exclusiva da Louis Vuitton, embora por enquanto não tenha um contrato de longo prazo com a marca. Além disso, ela sonha em ser cabeleireira e ter seu próprio salão de beleza. E ela não perde uma oportunidade de falar sobre seu cabelo. Valentina diz que, depois de anos de alisamento químico, ela e as mulheres de sua família estão voltando a usar o cabelo natural. “Acho que fica muito bonito e dá para fazer muito mais com o cabelo afro do que liso. Eu acho muito lindo. E é também o que nos representa."
2023-08-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ckv192l4wv8o
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'Milei tem componente libertário que o torna incomum entre ultradireitistas da América Latina'
O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), filho do ex-presidente Jair Bolsonaro; o ex-candidato presidencial chileno José Antonio Kast; o líder do Vox na Espanha, Santiago Abascal; e o partido Irmãos de Itália, sigla da primeira-ministra Giorgia Meloni, comemoraram publicamente os 30% dos votos que Milei obteve nesta etapa. As eleições para presidente da Argentina estão marcadas para 22 de outubro. Mas como esse candidato que se define como libertário se compara a tais políticos, ou ao ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump? “Conceitualmente, a extrema direita tem muito mais a ver com as ideias que são defendidas. E é aqui que Milei se encaixa muito bem, porque ele tem ideias muito direitistas em questões morais”, diz Cristóbal Rovira, professor de Ciência Política da Universidade Católica do Chile, em entrevista à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC). Fim do Matérias recomendadas O acadêmico, que pesquisa a direita radical na região e na Europa, acredita que essa corrente política “veio para ficar” na América Latina — embora possa ser difícil para eles alcançarem o governo federal, segundo análise de Rovira. Confira os principais trechos da entrevista por telefone com Rovira, doutor em Ciências Políticas pela Universidade Humboldt de Berlim e pesquisador do Centro de Estudos de Conflitos e Coesão Social (Coes) de Santiago. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast BBC - Como você definiria Javier Milei do ponto de vista ideológico? Cristóbal Rovira - Há uma onda bastante global da extrema direita. Começou na Europa Ocidental, onde está o caso emblemático de Jean-Marie Le Pen na França dos anos 1980, expandiu-se para o Leste Europeu e hoje vemos que começa a ganhar terreno em outros lugares: com Trump, Bolsonaro... Milei se encaixaria no protótipo do que são essas ultradireitas. A nível acadêmico, as definimos por dois critérios importantes. Primeiro, elas estão à direita da direita dominante e professam ideias muito mais radicais. No caso da Argentina, Milei se posiciona à direita do macrismo. Em segundo lugar, mantêm uma relação ambivalente com o sistema democrático e por vezes professam ideias autoritárias. Isso as diferencia das direitas tradicionais, que atuam dentro das regras do jogo democrático. O caso de Milei se encaixa muito bem nessa dupla classificação. BBC - Quais características de estilo e quais propostas fazem com que o senhor o classifique como parte da "ultradireita"? Rovira - Note que quando falamos de extrema direita, não estamos nos referindo tanto a estilos políticos. Isso me parece relevante porque, no debate latino-americano, surgiu esse clichê de que ser de extrema direita é ser como Trump ou Bolsonaro: personagens muito disruptivos, com linguagem bastante vulgar, que se conectam com demandas dos cidadãos, principalmente por serem contra o "sistema". Mas esse estilo não é necessariamente seguido pelos líderes da extrema direita na Europa ou por Kast no Chile. Conceitualmente, a extrema direita tem muito mais a ver com as ideias que são defendidas. E é aqui que Milei se encaixa muito bem, porque ele tem ideias muito direitistas em questões morais como aborto, em termos de criminalidade e daquela ideia da "mão forte". Em certo sentido, ele é neoliberal, contra o Estado, e com uma agenda de privatizações, o que o aproxima de Kast e Bolsonaro. Mas Milei tem um componente libertário que o torna uma criatura um pouco incomum entre os ultradireitistas da América Latina, onde esse componente geralmente está menos presente. Outro aspecto peculiar de Milei é que seu perfil ideológico mudou um pouco. Hoje, ele se define como alguém contra o aborto, mas há alguns anos essa questão não o mobilizava fortemente. Então, ele tem se voltado para posições mais conservadoras moralmente, mas que não necessariamente estavam em suas origens como figura política. BBC - Milei tem mais características libertárias ou da direita radical? Rovira - Acho que um grupo contém o outro: ele leva a questão libertária a um paroxismo que o torna muito de extrema direita. É uma combinação de ambos os elementos. Às vezes, ele dá mais ênfase à questão libertária, outras à questão moral e outras ao crime. Mas o pacote ideológico que ele defende, como um todo, o posiciona claramente nas ultradireitas. E, no caso argentino, é muito importante a crítica que faz à “casta" política como um todo, onde estão a direita mais tradicional do macrismo e Patrícia Bullrich [candidata e ex-ministra da Segurança de Mauricio Macri]. BBC - Outra característica que você apontou na direita radical é a postura anti-imigração. Isso é reproduzido por Milei, ou é diferente das posições de Trump e Kast? Rovira - Na verdade, Milei não tem isso. Mas observe que o traço anti-imigratório geralmente não está muito presente nas ultradireitas da América Latina — por exemplo, se pensarmos em Bolsonaro. Isso está muito presente na extrema direita europeia. Por isso, é importante ter em mente que todas essas extremas direitas têm elementos em comum, mas há características que as definem. É como uma grande família, em que há primos, alguns mais parecidos, mas nem todos idênticos. Se todos se reunirem, eles se divertem muito, mas diferem em alguns elementos, como o traço anti-imigração. BBC - Giancarlo Summa, um ítalo-brasileiro que estuda o ressurgimento da direita radical no projeto Multilateralismo e Direita Radical na América Latina (Mudral), apontou que Milei não reivindica abertamente a memória da ditadura militar na Argentina como Bolsonaro faz no Brasil ou Kast no Chile. Esta também não é uma diferença irrelevante... Rovira - É verdade. E voltamos àquela metáfora de que são todos primos, mas não irmãos. Na questão militar, pelo menos até agora, não é que Milei professe uma defesa muito irrestrita do que foi aquilo. A gente foca na figura dele, mas vamos pensar que ele também está tentando formar um grupo político. Com sua candidata à vice-presidência, Victoria Villarruel, a relação com o mundo militar é muito mais direta. BBC - Ou seja, o projeto político de Milei está em fase quase embrionária e caminha para a direita radical... Rovira - Exato. E esses outros elementos ideológicos da extrema direita às vezes não vêm do líder principal como Milei, mas das pessoas que trabalham com ele para levantar um projeto que, como você disse, é muito embrionário hoje. Lembremos que Milei tem meses de campanha pela frente, e outros elementos ideológicos podem ir sendo decantados. BBC - Milei tem propostas como acabar com o Banco Central argentino e dolarizar a economia, ideias que não parecem se encaixar no nacionalismo clássico. Ou permitir a venda de órgãos, o que tampouco parece condizer com uma visão religiosa conservadora. Existem mais divergências em relação à direita radical de outros países? Rovira - Cada uma dessas ultradireitas deve ser entendida em seus próprios contextos nacionais, e a Argentina tem uma peculiaridade importante: há uma crise econômica muito grande, com o problema histórico da inflação. Como Milei é um candidato radical, me parece lógico que para enfrentar esse problema ele defenda ideias radicais, como a dolarização e a eliminação do Banco Central. Também me parece lógico que a extrema direita do Chile não se envolva nessa questão, porque os problemas que temos são diferentes dos da Argentina. Mas como discutimos antes, o aspecto libertário dá a Milei uma característica peculiar em comparação com outras extremas direitas que temos na América Latina. E, às vezes, essas abordagens libertárias o colocam em xeque com a questão moral. Como podemos pensar que uma pessoa antiaborto diria que o comércio de crianças ou órgãos pode eventualmente ser permitido? Essas são as coisas que não encaixam bem. BBC - Milei rouba votos da direita argentina tradicional ou captura votos antissistema de diferentes partes do espectro ideológico? Rovira - Na Europa, muitos analistas argumentam que o antigo voto social-democrata sindicalista foi para a extrema direita. Isso empiricamente é bastante falso. Sabemos que os eleitores de Marine Le Pen na França, da AfD na Alemanha ou do Vox na Espanha geralmente votavam na direita tradicional, sentiram-se abandonados por ela e passaram a votar na extrema direita. Não se sabe até que ponto esse argumento chega à América Latina. No entanto, as evidências em diferentes países nos dizem que o voto ultradireitista latino-americano é uma combinação de diferentes tipos de eleitores: um que veio da direita convencional e virou para a extrema direita, outro que representa um voto raivoso contra o "sistema" e um terceiro tipo de eleitor que vem de um mundo de esquerda moralmente conservador e, por cansaço, acaba votando na extrema direita. Precisamos de mais pesquisas empíricas para saber a proporção de cada tipo. Eu não ousaria dizer as porcentagens [de cada tipo de eleitor] dentro dos votos de Milei, mas pelo que vimos, acho que grande parte são votos de protesto. Temos que ver qual é a participação de votos mais puramente ideológicos. BBC - Uma das características de políticos como Trump e Bolsonaro que você apontou é que eles parecem manter uma lealdade infalível de seus eleitores. Isso também se aplicaria a Milei, ou seria imprudente considerar o apoio que ele obteve nessas primárias como votos seguros para outubro? Rovira - Eu não ficaria surpreso se Milei mantivesse na eleição presidencial o número significativo de votos que teve. Agora, levemos em conta que ele mobilizou 30% dos votos com uma participação eleitoral não tão alta para o histórico das primárias na Argentina. Então, fiquemos atentos que, se aumentar a participação eleitoral, esses 30% podem diminuir. Não quero dizer que ele tem a eleição perdida, mas acho que será um pouco difícil para ele. Assim como essas lideranças geram adesão muito forte, também geram índices de rejeição muito significativos. E isso é essencial para o segundo turno eleitoral, quando os eleitores tendem a votar no mal menor. Em uma eventual disputa de Milei contra quem quer que seja, é muito provável que eleitores de candidatos derrotados acabem optando por essa outra opção porque querem impedir que a extrema direita chegue ao poder. No Chile, Kast venceu o primeiro turno contra Boric com uma participação de 45% dos eleitores. Na segunda rodada, a participação subiu para 55%, e Boric venceu por 10 pontos de diferença. Muitas pessoas votaram nele para evitar que Kast chegasse ao poder. É semelhante ao que aconteceu na França quando Macron venceu Marine le Pen. BBC - Então, até que ponto o resultado das primárias argentinas representa um sinal de conquistas para a direita radical da América Latina? Rovira - Boa pergunta. Acho que o que temos visto na América Latina é que essas ultradireitas vêm crescendo. Milei não existia há cinco anos. Kast obteve 8% dos votos em 2017 e hoje está onde está. Meu olfato político me diria que essa realidade veio para ficar. Não me surpreenderia se em muitos outros países latino-americanos víssemos um efeito dominó e essas lideranças começassem a ganhar espaço na arena eleitoral. No entanto, é difícil para mim pensar que, na grande maioria dos países latino-americanos, esses líderes acabem conquistando o Poder Executivo. Uma coisa é eles conseguirem 20%, 30% ou 35% dos votos, e outra é eles terem percentual suficiente para vencer. Essa é a grande incógnita para outubro na Argentina: se esses 30% que Milei teve são suficientes para eventualmente chegar ao Poder Executivo no segundo turno. BBC - Muitos na região veem o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, como um exemplo de mão forte contra o crime. Bukele também entra no campo da direita radical? Rovira - Se voltarmos à metáfora dos primos, Bukele é aquele que parece um pouco mais distante da família. Eu o enquadraria na extrema direita, com uma ressalva importante: suas origens. Se pensarmos nas origens de Kast ou Bolsonaro, eles sempre estiveram à direita e acabaram montando seu próprio veículo eleitoral muito à direita. Milei, inclusive, sempre teve posições de direita, principalmente nas questões econômicas que ele agora alia à questão moral. Bukele, por outro lado, começa um pouco à esquerda, posiciona-se contra o establishment, acaba defendendo a mão forte e depois combina isso com questões moralmente muito conservadoras. Bukele tem se voltado para posições muito à direita, por isso eu o colocaria dentro desse grande conglomerado. BBC - O que a tradicional classe política latino-americana pode tirar da ascensão de figuras como Milei? Rovira - Uma primeira lição é que, na maioria das vezes, esses atores ganham não tanto pela agenda econômica, mas sim pela agenda cultural: questões como aborto ou casamento igualitário vêm ganhando espaço na América Latina. Não é mais apenas sobre Estado ou mercado. Em segundo lugar, há um mal-estar generalizado com a capacidade dos políticos de ouvir as demandas dos cidadãos. Esses atores de extrema direita se conectam com essas sensibilidades, muitas vezes propondo soluções que vão gerar mais problemas. Portanto, a classe política da América Latina precisa entender melhor esses problemas. O terceiro ponto é que uma das demandas transversais na América Latina tem a ver com o crime organizado, e nem a esquerda, nem a direita convencional conseguiram propor soluções de longo prazo compatíveis com o sistema democrático. É outro grande calcanhar de Aquiles. BBC - Você escreveu que os líderes da direita radical, se chegarem ao governo, podem levar a "regimes competitivos autoritários", onde ainda há eleições, mas eles governam mais como ditadores. Isso não pode acontecer também com lideranças de esquerda? Rovira - Certamente sim. A Venezuela é o melhor exemplo disso: quem construiu o regime competitivo autoritário venezuelano foi a esquerda, e não a direita. Mas, hoje, se analisarmos o panorama global da erosão dos sistemas democráticos, ele vem muito mais da ultradireita do que da ultraesquerda. Mesmo na América Latina, a ultraesquerda não está muito bem posicionada eleitoralmente. Em vez disso, os ultradireitistas vêm ganhando terreno. Sabemos por evidências comparativas que eles colocam em risco os regimes democráticos e podem provocar processos de gradual erosão democrática. É um risco diferente do que representava a direita ou as ditaduras dos anos 1960 ou 1970, que queriam simplesmente fazer desmoronar o espaço político. E com isso, não quero dizer que as ultraesquerdas não sejam perigosas.
2023-08-16
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Rio Amazonas é o maior do mundo? Expedição para medir vai averiguar
Guerras, revoluções e outros movimentos políticos e econômicos alteraram significativamente a geografia nos últimos 30 anos. Mas como se o fato de nações inteiras desaparecerem dos mapas e outras ressurgirem ou nascerem não fosse suficiente, uma expedição agora ameaça tornar obsoletos os livros escolares em todo o mundo, pois tenta provar que o Amazonas é o rio mais longo do planeta. Em abril de 2024, um grupo liderado pelo documentarista e explorador brasileiro Yuri Sanada partirá para os recantos mais remotos dos Andes peruanos com o propósito de mapear e medir todo o curso do rio, a fim de comprovar que é este, e não o Nilo, como afirmam a maioria dos textos, o mais extenso do globo. De acordo com a Enciclopédia Britânica, o Serviço Geológico dos Estados Unidos e o Livro dos Recordes do Guinness, o Nilo tem uma extensão de 6.650 quilômetros, enquanto o Amazonas se aproxima com 6.400. No entanto, uma série de pesquisas e estudos realizados nos últimos quinze anos por instituições como o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), assim como por alguns exploradores norte-americanos, têm colocado em dúvida esses dados. Fim do Matérias recomendadas "Vamos a provar que o Amazonas nasce no rio Mantaro, no Peru", declarou à BBC Mundo Sanada, líder da expedição batizada de "Amazonas, do gelo ao mar". Tradicionalmente, os rios Apurímac e Marañón, também no Peru, têm sido considerados os afluentes mais distantes do Amazonas. No entanto, uma pesquisa publicada em 2014 pelo explorador norte-americano James Contos confirmou que o Mantaro também é um tributário. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Localizado no centro do país andino, a cerca de 4.000 metros acima do nível do mar, o Mantaro poderia acrescentar ao gigante sul-americano dezenas de quilômetros em comprimento, chegando a 6.800 quilômetros, o que tiraria o primeiro lugar no ranking de seu rival africano. "Embora já tenha sido comprovado que o Mantaro está conectado ao Amazonas, até agora ninguém fez uma medição completa em campo desde os Andes até o oceano deste rio", afirmou Sanada, que esteve em muitas partes do Amazonas, mas nunca o percorreu integralmente. "A cúpula do monte Everest foi alcançada por cerca de 4.500 pessoas, e 1.500 cruzaram o Atlântico a remo, mas apenas cerca de dez pessoas fizeram a jornada desde a nascente do rio até a sua foz", acrescentou para justificar a expedição, que estima ter uma duração de cerca de seis meses. Muitos dos estudos mais recentes sobre o comprimento do Amazonas têm se baseado em imagens de satélite e em percursos parciais de seu curso. Sanada explicou que a missão começará nas montanhas peruanas, onde um grupo liderado por ele percorrerá o rio Mantaro em canoas, enquanto outro grupo percorrerá o rio Apurímac a cavalo. Ambas as equipes se encontrarão mais tarde no rio Ene, também no Peru, e dali seguirão de barco até o Amazonas. Especialistas consultados pela BBC Mundo admitiram que nos últimos anos têm surgido dúvidas mais do que razoáveis sobre qual é o rio mais longo do planeta. "A polêmica sobre qual é o primeiro afluente do Amazonas nos Andes peruanos e qual é o primeiro afluente do Nilo na África existe há algum tempo, e acredito que esse debate sempre persistirá", afirmou Antonio De Lisio, geógrafo da Universidade Central da Venezuela (UCV) e professor do Centro de Estudos do Desenvolvimento dessa instituição acadêmica. Por sua vez, o geógrafo britânico Jeremy Anbleyth-Evans declarou que "o consenso internacional entre os especialistas e a literatura científica é que o Nilo é o mais longo, embora haja certamente dúvidas e um debate sobre isso". "O problema está em localizar a nascente", explicou De Lisio. O critério para definir a origem de um rio não é uniforme. "A principal discussão sobre qual dos dois rios é mais longo se baseia no debate sobre se o curso de um rio deve ser medido ao longo dos afluentes mais volumosos ou daqueles que são efetivamente mais extensos", explicou David Haro Monteagudo, professor de Hidrologia e Gestão de Recursos Hídricos da Universidade de Aberdeen, na Escócia. "Há alguma discussão sobre se afluentes com represas são válidos ou não, embora eu ache que isso não faça muito sentido, já que o Nilo tem a represa de Assuã bem no meio", acrescentou o professor. Por sua vez, De Lisio assegurou que o fato de um afluente não contribuir com água permanentemente não impede que seja considerado uma das nascentes. "O fato de um rio ser sazonal não implica que não seja afluente", acrescentou. No entanto, Haro também enfatizou que a origem não é a única questão controversa. "No caso do Amazonas, por exemplo, sua foz é tão ampla e repleta de ilhas que também é difícil determinar onde ela termina antes de se transformar no oceano Atlântico", observou. No entanto, a expedição não apenas buscará medir o Amazonas, com o propósito de determinar seu comprimento real, mas também perseguirá outros objetivos. "Essa disputa entre o Nilo e o Amazonas é interessante, mas o mais importante é o legado que vamos deixar para a população da Amazônia, não apenas do Brasil, mas também da Colômbia e do Peru", disse Sanada. "Iremos documentar com câmeras profissionais a biodiversidade da área e os danos que vêm sofrendo por causa do homem, devido a mineiros ilegais, traficantes de drogas e crime organizado que se instalaram lá... A ideia é fazer um documentário IMAX", afirmou Sanada. Uma missão que o explorador admitiu ser arriscada e, por isso, eles estão em conversações com líderes indígenas para garantir proteção durante sua jornada. "Não me preocupam as serpentes ou os jaguares, mas sim os seres humanos que estão lá", destacou. Organizações criminosas transformaram a Amazônia em uma área muito mais perigosa do que naturalmente já era. Entre 2016 e 2021, 58 líderes e moradores indígenas foram assassinados na região selvática compartilhada pelo Brasil, Colômbia, Equador e Peru, conforme revelado por uma investigação realizada por 11 organizações ambientalistas. Até o momento de 2023, quatro defensores dos povos indígenas foram assassinados somente no Brasil, de acordo com um relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Além disso, não podemos esquecer que no ano passado o mundo ficou chocado com as notícias dos assassinatos do trabalhador da Fundação Nacional do Índio (Funai), Bruno Pereira, e do jornalista britânico Dom Phillips, que estavam produzindo um documentário sobre as ameaças que as comunidades amazônicas brasileiras enfrentam de fazendeiros e organizações criminosas. Um terceiro objetivo da expedição será testar barcos elétricos totalmente desenvolvidos no Brasil, que não só têm um custo muito mais baixo do que os fabricados na Alemanha, mas também são mais resistentes e fáceis de reparar do que os chineses. "Um motor elétrico custa cerca de US$ 5.000, mas nosso motor custará 500 dólares", afirmou o explorador brasileiro. Durante a expedição, serão utilizados três protótipos cuja construção está sendo finalizada pela Faculdade de Tecnologia de São Paulo. Embora no Brasil se considere comprovado que o Amazonas é o rio mais longo, e mesmo sendo essa informação ensinada às crianças nas escolas, se a expedição confirmar essa afirmação, isso não necessariamente encerrará o debate em âmbito internacional. Isso foi ressaltado pelos especialistas consultados pela BBC Mundo. "Não acredito que simplesmente medir o Amazonas seja suficiente; também seria necessário medir o Nilo, porque os egípcios provavelmente continuarão a afirmar que o rio deles é mais longo e dirão que sua nascente está além do que conhecemos hoje", afirmou De Lisio. Essa opinião é compartilhada por Jesús Rocamora Esquiva, membro da Junta de Governo do Colégio Oficial de Engenharia Geomática e Topografia da Espanha. "No caso do Nilo, também há espaço para dúvidas (sobre sua origem), uma vez que alguns especialistas argumentam que a rede hidrológica que alimenta o próprio lago Vitória, em Tansânia, deveria estar conectada ao rio Nilo, o que aumentaria seu comprimento total", explicou. Independentemente do resultado da expedição, o lugar de destaque que ambos os rios ocupam no mundo permanecerá inalterado. Dessa forma, o Amazonas, que serve como pilar de uma das regiões mais biodiversas do planeta e é responsável por capturar um terço das emissões de carbono globais, continuará sendo considerado o "pulmão do mundo". Por outro lado, no caso do Nilo, ninguém questionará que ele foi o motor impulsionador de civilizações como o antigo Egito dos faraós.
2023-08-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72x5q1xqdwo
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Drogas, casamento gay e militares: as diferenças entre Milei e Bolsonaro
"Olá, prezado Javier Milei. (Aqui é) Jair Bolsonaro. Temos muita coisa em comum. A começar que nós queremos o bem dos nossos países. Nós defendemos a família, a propriedade privada, o livre mercado, a liberdade de expressão, o legítimo direito à defesa e queremos sim ser grandes à altura do nosso território e da nossa população." Foi enfatizando semelhanças que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) divulgou um vídeo demonstrando apoio ao deputado argentino Javier Milei, que saiu vitorioso nas eleições primárias da Argentina, realizadas no domingo (13/8). Milei se apresenta como um libertário, e seu grupo, o La Libertad Avanza ("A Liberdade Avança", em tradução livre) liderou a corrida presidencial com mais de 30% dos votos. As eleições presidenciais na Argentina acontecem em outubro e Milei aparece, agora, como um dos favoritos à vitória. O resultado surpreendeu boa parte dos analistas políticos do país e de fora da Argentina, uma vez que as pesquisas de intenção de voto apontavam que ele teria em torno de 20% dos votos. Fim do Matérias recomendadas Sua comparação com Bolsonaro vem sendo feita desde que ele despontou no cenário político argentino, em 2021, quando se elegeu deputado. "É quase natural meu alinhamento com Trump e Bolsonaro", em referência ao também ex-presidente Donald Trump, dos Estados Unidos. Mas enquanto todas as atenções parecem voltadas para as semelhanças entre Bolsonaro e Milei, especialistas em política argentina ouvidos pela BBC News Brasil apontaram quais seriam as quatro principais diferenças entre os dois políticos. Segundo eles, as quatro principais diferenças entre os dois são: carreiras distintas, posição em relação aos militares, apoio do eleitorado evangélico e o conservadorismo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A diferença mais óbvia apontada pelos especialistas ouvidos pela BBC News Brasil se dá pelas trajetórias diferentes de Milei e Bolsonaro. Milei é formado em Economia pela Universidade de Belgrano, na Argentina, e tem dois mestrados na área. Ele atuou em consultorias, bancos e grupos de políticas econômicas, segundo um perfil disponível no site do Fórum Econômico Mundial. Bolsonaro, por sua vez, tem sua origem no universo militar brasileiro. Ele se formou como oficial do Exército na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) na década de 1970. Ele foi militar da ativa até 1988, quando entrou para a reserva. Para além da diferença nas suas formações, Milei e Bolsonaro têm uma trajetória distinta em relação às suas atuações políticas. Apesar de ter vencido as eleições presidenciais de 2018 se apresentando como um candidato "fora do sistema", Bolsonaro já atuava como parlamentar desde 1988, quando foi eleito para um cargo político (vereador, à época) pela primeira vez. Desde então, ele se manteve como parlamentar até vencer o então candidato à Presidência Fernando Haddad, no segundo turno das eleições de 2018. Javier Milei, por sua vez, só entrou para o universo político em 2021, quando foi eleito deputado de primeiro mandato. Rafael Rezende é doutor em Sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e estuda, há anos, a política argentina. Para ele, as trajetórias na política de Milei e Bolsonaro são uma das principais diferenças entre os dois. "Apesar de os dois terem esse discurso anti-sistema, a realidade é que Bolsonaro foi parlamentar durante décadas. O Milei, por sua vez, apesar de ter trabalhado para alguns políticos, ele jamais foi um representante político eleito até 2021. Ele, de fato, é alguém que pode se vender como uma força que vem de fora do que ele chama de 'casta política'", disse o pesquisador. Outro ponto destacado pelos especialistas ouvidos pela BBC News Brasil é a relação de Milei e Bolsonaro com os militares de seus países. Apesar de ambos se colocarem como candidatos contrários a ideologias de esquerda, Milei e Bolsonaro adotam posições distintas em relação aos militares, inclusive, em relação à atuação deles durante as ditaduras que comandaram Brasil e Argentina. Bolsonaro, que se formou na AMAN durante a ditadura militar que comandou o Brasil entre 1964 e 1985, faz constantes defesas do período e chegou a homenagear um coronel acusado de tortura, Carlos Alberto Brilhante Ustra, durante a votação do impeachment da ex-presidente Dilma Roussef (PT), em 2016. Em seu governo, vários militares assumiram cargos importantes como o general Walter Braga Netto, que ocupou a chefia da Casa Civil e foi seu candidato a vice-presidente em 2022. Além dele, outros generais foram alçados a postos-chave como o general Eduardo Pazuello, que comandou o Ministério da Saúde entre 2020 e 2021, período que compreendeu o auge da pandemia de Covid-19. Milei, por sua vez, adota uma posição mais crítica em relação aos militares e, segundo especialistas, não demonstra uma proximidade significativa em relação a eles. "Uma grande diferença entre Milei e o Bolsonaro é a relação com os militares. Bolsonaro teve o apoio aberto deles, enquanto Milei não é visto como um candidato dos militares. Milei, por exemplo, jamais disse que haverá participação de militares em seu governo", afirma Rafael Rezende. O professor de Política da América Latina na Universidade de Buenos Aires Ariel Goldstein explica que essa diferença se dá, possivelmente, por conta da forma como os militares são vistos no Brasil e na Argentina. "No Brasil, apesar da transição democrática, os militares ainda têm bastante aprovação junto à população. No Brasil, não houve julgamento dos crimes cometidos pelos militares durante a ditadura. Na Argentina houve e há uma rejeição grande em relação a eles no país", diz Goldstein. Em entrevistas como a que foi dada ao jornal O Globo em 2021, Milei condena a prática de tortura atribuída aos militares durante a ditadura militar que comandou o país entre o 1976 e 1983. Questionado sobre o assunto, ele condenou a tortura. "Eu não defendo torturadores. Como liberal acredito no respeito irrestrito do direito de vida de todo ser humano. Estou contra os abusos que foram cometidos pelo Estado, e também contra os atos cometidos pelos terroristas", disse. Rafael Rezende pontua, no entanto, que apesar de distanciar ativamente dos militares, Milei tem como sua candidata a vice uma política que é vista como representante dos militares na política argentina. Seu nome é Victoria Villarruel, que é neta de um tenente-coronel do Exército argentino. O pesquisador diz que Villarruel é conhecida por questionar fatos históricos relacionados à ditadura militar argentina. "Ela costuma colocar em dúvida o número de pessoas mortas pelos militares, numa espécie de questionamento sobre o legado da ditadura no país", explica Rafael Rezende. Uma outra diferença significativa apontada pelos especialistas entre Milei e Bolsonaro é a forma como eles se relacionam com o eleitorado evangélico. No Brasil, Bolsonaro se notabilizou por contar com um forte apoio dessa faixa do eleitorado tanto em 2018 quanto em 2022. Ao longo dos últimos anos, ele obteve o apoio explícito das principais lideranças do mundo evangélico como os pastores Silas Malafaia, da Igreja Assembleia de Deus, e André Valadão, da Igreja Batista da Lagoinha. Milei, segundo os especialistas, não apenas não conta com esse apoio como não se coloca, ainda, como um candidato próximo aos evangélicos. "O Milei não tem o apoio do evangélico da mesma forma como o Bolsonaro tinha. Ele não tem o apoio de pastores e de suas igrejas como o ex-presidente brasileito teve nas suas duas eleições", disse Ariel Goldstein. Rafael Rezende explica que uma parte dessa diferença pode se dar pela diferença demográfica entre Brasil e Argentina. Enquanto no Brasil, pesquisas como o Datafolha indicaram, em 2020, que pelo menos 31% dos brasileiros são evangélicos, na Argentina, os dados indicam um percentual muito menor. Em janeiro de 2020, uma pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Investigações Técnicas e Científicas, vinculada ao governo argentino, apontou que o percentual de evangélicos no país era de 15,3%, praticamente a metade do encontrado no Brasil. "O Milei, em momentos algum, quis fazer esse movimento para se aproximar (do eleitorado evangélico) porque dentro do cálculo eleitoral dele não vale a pena. Na Argentina, há poucos evangélicos e ele percebeu que este não seria um cálculo político positivo", disse Rezende. Na avaliação dos especialistas, a proximidade dos dois com o espectro político conservador também aparece como uma diferença entre Milei e Bolsonaro, apesar de essa percepção ser menos clara que nos demais tópicos. Bolsonaro, historicamente, se posicionou como um político conservador. Ele faz críticas pautas identitárias como as defendidas pela comunidade LGTBQIA+, diz defender a família tradicional cristã, é contra o aborto e a descriminalização das drogas. Assim como Bolsonaro, Milei também é crítico à descriminalização do aborto (ocorrida na Argentina em 2020) e à chamada ideologia de gênero. Os dois também defendem mais facilidade para a compra e porte de armas em seus países. No entanto, Milei já deu diversas declarações afirmando que não se considera um conservador. Em 2016, ao responder a um comentário no Twitter que o classificava como conservador, ele rebateu. A postura de Milei em relação às drogas, pelo menos no discursivo, é diferente da de Bolsonaro. Enquanto o brasileiro se posiciona totalmente contra o consumo de drogas e à descriminalização delas, Milei adota um discurso de maior tolerância em relação ao assunto. Em uma entrevista ao programa da TV argentina "Dos Voces" (Duas vozes, na tradução pra o português) em 2021, Milei disse que, como libertário, não via problema no consumo de drogas. Segundo ele, a prática só passa a ser um problema porque ela ocorre dentro de uma sociedade em que há Estado. "Drogar-se é se suicidar em cotas. A mim, não importa. Você faz o que quiser [...] é uma decisão pessoal. Mas isso é no mundo anarcocapitalista. Nesse mundo não tem Estado [...] Quando existe um Estado, aquele se droga passa a conta para mim", ponderou. Outro ponto de distinção dentro da agenda conservadora é a posição de Milei em relação ao casamento homoafetivo. A argentina foi o primeiro país da América Latina a permitir o casamento homoafetivo, em 2010. Apesar de Bolsonaro e Milei serem contra serem contra a união homoafetiva Bolsonaro afirma que sua contrariedade se dá porque ela violaria os princípios da família tradicional. Milei, por sua vez, diz que é contra, mas por não acreditar em qualquer tipo de casamento ou matrimônio. Segundo ele, isso é uma intromissão indevida do Estado na vida privada das pessoas. "Me parece fabuloso que as relações sejam totalmente livres. Mas para isso é necessário do Estado? [...] Não é com relação ao matrimônio igualitário, mas de todos", disse Milei em entrevista concedida em 2021 a um programa de vídeo do jornal argentino La Nacion. "Milei jamais se afirma como conservador. Ele se coloca como um ultra-liberal. O Bolsonaro, por outro lado, se afirmava como um conservador nos costumes e liberal na economia. Além disso, Bolsonaro terceirizava o discurso liberal para o seu ministro da Economia, Paulo Guedes. Milei toma esse discurso pra si", diz Rafael Rezende. Para Ariel Goldstein, outra diferença importante é o fato de que Milei não se coloca como defensor da família tradicional, como Bolsonaro. "Esse discurso da família tradicional não está presente em Milei como está em Bolsonaro. Milei faz algumas falas críticas ao feminismo ou educação sexual e reprodutiva, mas sua linguagem é diferente da usada por Bolsonaro", afirma Goldstein. O professor da Universidade de Buenos Aires tenta sintetizar as diferenças entre Milei e Bolsonaro. "Enquanto Bolsonaro se apresentava como um representante conservador da família tradicional e tentava o apoio dos mercados com Paulo Guedes, Milei se apresenta, de cara, como um representante dos mercados e que, agora, faz um movimento mais em direção a faixas conservadoras", diz.
2023-08-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c512yk8pl8go
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Por que há 6 tipos de dólar na Argentina?
Com o anúncio do BCRA — que também elevou a taxa de juros para 118% — e a cotação oficial do dólar foi para 350 pesos no mercado "oficial". O objetivo dessa abrupta desvalorização é deixar o câmbio praticado pelo governo um pouco mais próximo dos demais tipos de dólar que o país possui, principalmente do dólar blue ("azul", em inglês), que é a principal referência utilizada pelos argentinos. Na segunda-feira, esse dólar de mercado — que já havia subido cerca de 20%, de 500 pesos para mais de 600 pesos nas duas semanas antes das primárias — também passou por outra alta abrupta, superior a 10%, chegando a mais de 680 pesos. Fim do Matérias recomendadas Estreitar a distância entre o valor do dólar oficial e dos dólares financeiros é uma das exigências que o Fundo Monetário Internacional (FMI), principal credor do país, vem cobrando do governo argentino. O país deve cerca de US$ 44 bilhões ao FMI, que foram contratados ainda durante o governo de Mauricio Macri. A medida buscaria estancar a sangria de dólares que tem levado as reservas do BCRA ao limite. Mas por que a Argentina tem tantos tipos de dólar? Conheça os motivos e as diferenças entre eles a seguir. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A Argentina tem um problema recorrente de alta inflação há décadas, gerado em parte pela tendência dos governos de imprimir dinheiro para financiar altos gastos públicos. Isso leva — como acontece agora — à desvalorização do peso. Por isso, os argentinos usam o dólar como referência de preços e como uma moeda de poupança. A indústria nacional também é fortemente dependente de insumos importados. Mas a crescente demanda por dólares em um país que não os produz criou repetidamente um problema conhecido tecnicamente como "restrição externa". Em suma: os dólares não são suficientes, e isso cria uma crise. Para tentar conter a saída de divisas e preservar as reservas do Banco Central, os vários governos que estiveram no poder nas últimas duas décadas — tanto kirchneristas quanto macristas — aplicaram restrições à compra de moedas estrangeiras, conhecidas localmente como "cepos". Esses controles de capital geraram um fenômeno muito particular: a coexistência de toda uma série de preços diferentes para a moeda americana na Argentina. Em alguns casos, as cotações delas podem variar em mais de 100%. É a cotação a qual o poupador argentino tem acesso em dólar oficial. Embora o BCRA estabeleça um valor para o dólar, pessoas comuns não podem acessar a moeda norte-americana por esse preço. Eles devem pagar uma sobretaxa de 75% e só podem comprar, no máximo, US$ 200 por mês — e isso se atenderem a uma série de requisitos que apenas uma minoria muito pequena da população pode cumprir. É por isso que muitos poupadores argentinos recorrem ao mercado ilegal para comprar a moeda. Como já mencionado anteriormente, é assim que se chama o dólar comprado fora dos meios oficiais. Para a maioria dos argentinos, essa é a forma mais comum de acessar a moeda americana além dos limites estabelecidos pelo governo. Os argentinos usam blue como principal referência para o dólar, já que a cotação dele segue a lógica de oferta e demanda. Quando se compra ou se vende uma casa, um carro ou algo de grande valor, como um computador ou um celular, utiliza-se esta cotação. Porém, por ser regido pelas leis do mercado, esse tipo de dólar também é muito mais volátil e pode disparar repentinamente, como já aconteceu várias vezes antes e depois dos dias de eleições. Quando o blue sobe com grande velocidade, pode chegar a um preço até mais de 100% superior ao valor praticado no mercado oficial. Esse fenômeno é conhecido como la brecha cambial e, quanto mais essa diferença cresce, maior fica a pressão para a desvalorização do peso. Quem usa o cartão de crédito para pagar serviços em dólares (como assinaturas da Netflix e da Amazon) ou pequenos gastos no exterior também tem uma cotação própria, que é igual à do dólar poupança, com acréscimo de 75% de encargos. Mas esse esquema só vale quando as despesas são inferiores a US$ 300. Se um argentino viaja para o exterior e gasta mais de US$ 300, a alíquota de imposto sobe para 100%. Como essa política foi anunciada pouco antes da Copa do Mundo de 2022 — que a Argentina acabou vencendo —, ela foi apelidada de dólar Catar, em referência ao país-sede da competição. Quem não quer comprar dólares fora do sistema financeiro formal tem uma alternativa: o "mercado de pagamentos eletrônicos" (MEP, na sigla em espanhol), que é uma forma legal para obter moeda estrangeira. Isso é feito por meio da compra e da venda de títulos financeiros e ações, o que exige a intermediação de uma corretora de valores. Por isso, esse tipo é conhecido informalmente como "dólar bolsa". A operação funciona assim: é preciso adquirir títulos cotados tanto em peso argentino quanto em dólar americano. Eles são comprados em moeda local e vendidos no exterior. Mas a moeda que entra na conta no final do processo está sujeita à regulamentação local. O dólar "contado com liquidação" (CCL) é outra ferramenta financeira, mas esta permite trocar pesos por dólares no exterior. Para muitas empresas e investidores, essa é a principal forma de adquirir moeda estrangeira e tirá-la do país legalmente. Por isso, muitos analistas econômicos consideram o CCL e o dólar bolsa como os melhores termômetros para estimar o valor "real" da moeda americana no contexto argentino. Para obter a chamada "contagem com liquidez" é preciso ter uma conta no exterior. Por isso, esse esquema não é utilizado pelos poupadores argentinos comuns. O dólar CCL utiliza ações ou títulos listados na Argentina e também em outro mercado internacional (como em Wall Street, nos EUA). Como o dólar bolsa, eles são comprados em pesos argentinos, mas depois esses ativos são transferidos para a conta no exterior e vendidos em troca de dólares americanos. O cálculo de quantos dólares são comprados com determinada quantidade de pesos determina essa cotação. Essas operações têm sido amplamente utilizadas para transferir dólares para outros países quando empresas e bancos são proibidos ou limitados de enviar dividendos para suas controladoras localizadas fora da Argentina.
2023-08-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ce4zqjvv112o
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Como moedas de México e Colômbia se tornaram as mais fortes da América Latina
As moedas do México e da Colômbia tiveram, até agora, um extraordinário ano de 2023. Tanto o peso mexicano quanto o colombiano têm mostrado um contínuo fortalecimento em relação ao dólar, consolidando-se como as moedas mais robustas entre as principais economias latino-americanas neste ano. O peso mexicano teve uma valorização de 16%, e foi cotado a 16.999 pesos por dólar em 14 de agosto, conforme dados da agência Bloomberg. No mesmo período, o peso colombiano alcançou o patamar de 3.963 pesos por dólar, exibindo uma valorização ainda mais substancial, de 19%. Em termos de ranking entre as moedas latino-americanas, tanto o peso colombiano quanto o mexicano estão liderando as posições, ocupando o primeiro e o segundo lugar, respectivamente, no índice Bloomberg. Fim do Matérias recomendadas Esse índice é amplamente reconhecido como uma medida confiável para avaliar o desempenho das moedas de países emergentes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No México, a recente estabilidade da moeda local levou alguns veículos de comunicação e indivíduos nas redes sociais a apelidá-la carinhosamente de "superpeso". Apesar da aparente vantagem de possuir uma moeda forte, a realidade é mais complexa. Os mercados cambiais têm sido afetados por considerável volatilidade ao longo do último ano, influenciados por diversos fatores. Um dos principais catalisadores é o aumento das taxas de juros em âmbito global, particularmente aquelas definidas pelo Federal Reserve, o banco central dos Estados Unidos. Tanto o México quanto a Colômbia foram beneficiados pela melhoria das perspectivas econômicas globais. Embora muitos analistas tenham inicialmente previsto uma possível recessão devido à pressão dos bancos centrais para conter a inflação, essas preocupações estão gradativamente se dissipando nos mercados. Esse cenário tem resultado em um aumento no preço do petróleo, uma valiosa commodity que ambos os países exportam e que gera consideráveis receitas em dólares, contribuindo para a estabilização das taxas de câmbio. Entretanto, é importante ressaltar que o desempenho das moedas mexicana e colombiana também está influenciado por fatores internos. Embora elas tenham seguido trajetórias ascendentes semelhantes, suas valorizações são moldadas por diferentes circunstâncias e dinâmicas econômicas. Elijah Oliveros-Rosen, analista responsável pela América Latina na agência de avaliação de risco Standard & Poor's, compartilhou com a BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, a seguinte avaliação: "O México encontra-se em uma posição mais vantajosa em comparação com outros países emergentes, uma vez que, ao contrário destes últimos, sua situação fiscal não sofreu uma deterioração substancial durante a crise da pandemia de covid-19". O comprometimento com a estabilidade fiscal, uma prioridade destacada pelo presidente Andrés Manuel López Obrador, desempenhou um papel fundamental na valorização do peso mexicano, segundo analistas. O fenômeno conhecido como "nearshoring", no qual muitas empresas estão transferindo suas atividades terceirizadas para países vizinhos após a pandemia, abriu uma nova janela de oportunidades para o México, permitindo-lhe aproveitar sua proximidade geográfica com a maior economia do mundo nos próximos anos. "Uma expectativa global foi gerada, indicando que o México atrairá fluxos substanciais de investimentos nos anos vindouros, algo que sempre exerce impacto sobre as taxas de câmbio", explica Oliveros-Rosen. O aumento das remessas em dólares enviadas por emigrantes mexicanos, principalmente dos Estados Unidos, também elevou o valor do peso. Segundo dados do Banco de México (Banco do México), em maio passado chegaram a US$ 5,7 bilhões, batendo o recorde registrado até agora. Isso aumenta a demanda por pesos mexicanos, aumentando a quantidade de dólares em circulação que se deseja trocar pela moeda local. As razões da ascensão do peso colombiano parecem ser menos robustas e mais circunstanciais. Analistas apontam que a notável recuperação do peso colombiano é, em grande parte, resultado da significativa queda que havia experimentado em períodos anteriores. Oliveros-Rosen lembra que "o peso colombiano foi uma das moedas que mais sofreu com os impactos da pandemia de covid-19, e desde então não conseguiu recuperar completamente seu valor". Historicamente, o peso colombiano tem demonstrado alta sensibilidade às flutuações do dólar, resultando em uma tendência de queda de seu valor durante períodos de fortalecimento da moeda dos EUA, e vice-versa. Recentemente, também houve um paradoxo que não passou despercebido pelos analistas. "Observamos que as dificuldades políticas enfrentadas por Gustavo Petro resultaram em vantagens para o peso colombiano", diz Oliveros-Rosen. O presidente da Colômbia havia se comprometido a implementar reformas ambiciosas no sistema de saúde, pensões e leis trabalhistas. Entretanto, após um ano de seu mandato, esses planos parecem estagnados devido à incapacidade de avançar com sua agenda no Congresso e a presença de escândalos, como o envolvimento de seu filho, Nicolás Petro Burgos, em casos de corrupção. "O mercado percebeu que tais reformas teriam um considerável impacto fiscal, e agora está refletindo a possibilidade de sua não realização, o que fortalece a confiança na moeda colombiana", explica Oliveros-Rosen. No entanto, especialistas acreditam que o peso colombiano não manterá sua alta cotação em relação ao dólar por muito tempo. A Standard & Poor's espera que ambas as moedas comecem a cair em breve. Se sua previsão estiver correta, o peso colombiano terá uma queda mais acentuada devido à menor solidez fiscal da Colômbia e à incerteza política no país. Em muitos países da América Latina, a memória das crises financeiras que resultaram em uma drástica depreciação de suas moedas ainda está fresca. Isso foi evidenciado na Argentina com o "corralito" (medidas econômicas para impedir uma corrida aos bancos) e no México com a chamada "crise da tequila" em 1994. É por essa razão que uma grande parte da opinião pública acredita que uma moeda mais valorizada é melhor. De fato, o fortalecimentio da moeda traz consigo vantagens como a preservação do valor das economias expressas naquela moeda. Quando você poupa em uma moeda que se mantém estável ou se valoriza, suas economias mantém ou aumentam de valor. Além disso, existem outros benefícios, como a capacidade de um país com uma moeda forte de importar bens a preços mais acessíveis. Com a diminuição dos custos das matérias-primas importadas, os consumidores também se beneficiam, uma vez que os preços finais são mantidos em cheque. Portanto, uma moeda forte também desempenha um papel crucial ao conter a inflação, um fenômeno que tem sido uma fonte de preocupação para economistas, governos e famílias em todo o mundo nos últimos 18 meses. Mas nem tudo são vantagens. Economistas apontam efeitos adversos com impacto real na vida das pessoas. Muitas famílias colombianas e mexicanas que recebem remessas em dólares de seus parentes que emigraram estão testemunhando a perda de valor, resultando em um menor valor em pesos quando realizam a conversão no mercado cambial. Além disso, empresas e outras entidades produtivas também estão enfrentando desafios. Enquanto o petróleo e outras matérias-primas energéticas são cotados em dólares nos mercados globais, setores que exportam produtos em troca de pesos, como o setor alimentício, estão observando o aumento dos custos de produção e a redução de competitividade. "Este cenário é particularmente relevante na Colômbia, onde o presidente Petro optou por reduzir a dependência das exportações de matérias-primas energéticas", observa Oliveros-Rosen. A valorização significativa do peso torna a realização desse objetivo um desafio adicional. No caso do México, isso poderia se tornar um fator dissuasor para os consideráveis investimentos planejados para a fase pós-covid, como resultado do "nearshoring" ou realocação próxima. A recentemente aprovada Lei de Redução da Inflação, liderada pelo presidente Joe Biden nos Estados Unidos, determina que minerais estratégicos, como lítio ou cobre, essenciais na produção de veículos elétricos, devem predominantemente ser produzidos ou processados em nações que tenham acordos internacionais de livre comércio com Washington, como o México. Isso apresenta uma oportunidade notável para o México atrair substanciais influxos de investimentos. Contudo, o aumento dos custos de produção e mão de obra derivado de uma moeda local valorizada pode levar os investidores a buscar alternativas em outros países. Esse cenário já está sendo percebido em diversos elos da cadeia industrial. De qualquer maneira, a economia é intrinsecamente uma questão de equilíbrio, influenciada por múltiplos fatores. Nos próximos anos, o sucesso do México dependerá da capacidade de oferecer incentivos e garantias suficientes aos investidores, bem como da capacidade de sua indústria gerar bens de valor agregado que compensem o atual alto valor relativo de sua moeda.
2023-08-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cz939zlp19go
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'Dinamitar' Banco Central, venda de órgãos e fim da educação obrigatória: as propostas radicais de Javier Milei
"Não vim guiar cordeiros, vim despertar leões." Foi com esta frase que o candidato à Presidência da Argentina Javier Milei, representante do partido La Libertad Avanza, definiu sua surpreendente vitória neste domingo (13/08), nas eleições primárias do país. Com 30% dos votos, Milei, de 52 anos, tornou-se assim o favorito para vencer as eleições presidenciais, que ocorrerão em 22 de outubro. O candidato, que se define como libertário, superou as duas forças que governaram o país nas últimas duas décadas: o macrismo (Juntos por El Cambio), que obteve 28% dos votos; e a coalizão peronista-kirchnerista, Unión por la Patria, que obteve 27%. Mas, embora o resultado seja surpreendente — as pesquisas não davam a ele nem 20% de intenção de votos —, a verdade é que Milei já tinha se tornado um fenômeno político polêmico na Argentina nos anos recentes. Fim do Matérias recomendadas Parlamentar desde 2021, economista e amante de cachorros, Milei tem agitado os debates políticos com propostas como a dolarização da economia, a privatização de estatais e o fechamento (ou "dinamitar", em suas palavras) do Banco Central. Ele também já anunciou ideias como a permissão à venda de armas e órgãos humanos. Soma-se a isso sua oposição à legalização do aborto e à educação sobre questões de gênero nas escolas públicas. Milei é frequentemente comparado com outros políticos da direita radical, como o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump e o brasileiro Jair Bolsonaro. "Conseguimos construir uma alternativa competitiva que não só vai acabar com o kirchnerismo, mas também com a ladra casta política e inútil que existe neste país", disse o candidato, pouco depois do resultado das primárias ter sido divulgado. Afinal, qual são as propostas de Milei — e as fortes críticas a elas? Confira. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A Argentina vive uma situação crítica devido à alta inflação que, no ano passado, chegou a 100% na inflação anual. E foi na economia que a figura de Milei foi impulsionada: formado como economista da Universidade de Belgrano, ele participou várias vezes como analista de economia em programas de televisão. Nessas participações, ele foi construindo o que é a base de sua proposta econômica: primeiro, a dolarização da economia, imitando o modelo de outros países da região como o Equador. "Os equatorianos estão muito melhores que os argentinos. Os números do Equador impressionam. A renda multiplicou por dez e a inflação foi pulverizada", disse Milei ao jornal espanhol El País. Em segundo lugar nas propostas está o fechamento do Banco Central. Milei já defendeu em várias entrevistas que a criação da instituição, em 1935, foi o início de todos os problemas do país. Terceiro: a redução nos gastos públicos. Nessa linha, Milei quer reduzir o número de ministérios para apenas oito (atualmente são 18 ministérios, sem contar outras agências estatais). O candidato do La Libertad Avanza propõe a redução dos subsídios às empresas prestadoras de serviços e que o valor da tarifa real seja repassado aos usuários. Outra proposta é abolir o limite da quantidade de dólares que um cidadão argentino pode adquirir por mês. Essas propostas, principalmente a dolarização do país e o fechamento do Banco Central, receberam fortes críticas de outros analistas econômicos. "A proposta de fechar o Banco Central significa voltar a uma discussão já travada há dois séculos", disse o economista Guido Agostinelli ao jornal Página 12. Agostinelli argumentou que o Estado precisa regular o mercado financeiro para proteger a poupança dos cidadãos e que não existe país desenvolvido sem banco central "A experiência mais recente em que os depósitos dos poupadores não puderam ser garantidos foi com o corralito [medida de 2001 que determinou o congelamento dos depósitos bancários e limites semanais para saques] de Domingo Felipe Cavallo à frente do Ministério da Economia, o que é hoje justamente reivindicado por toda a ala libertária." Mas, além de suas propostas econômicas radicais, é no campo social e dos costumes que as ideias de Milei têm causado maior agitação. Em várias ocasiões, especialmente durante a campanha presidencial, Milei afirmou ser a favor de que os argentinos possam comprar armas livremente, justificando para isso o aumento de incidentes de segurança em algumas áreas do país. O candidato já falou também a facilitação para outro mercado: o da venda de órgãos, atividade atualmente proibida. "Há 7.500 pessoas sofrendo, esperando por transplantes. Tem alguma coisa que não está funcionando bem. O que proponho é procurar mecanismos de mercado para resolver este problema", disse o candidato ao canal de televisão TN. A proposta foi categoricamente rejeitada por Carlos Soratti, diretor do Instituto Central Coordenador Nacional de Ablação e Implantação (Incucai), órgão que regulamenta a doação de órgãos no país. "Essas propostas exóticas, que já eram colocadas há um século, hoje são absurdas", disse Soratti em um comunicado. Enquanto isso, vários meios de comunicação denunciaram um comportamento agressivo de Milei contra mulheres jornalistas. Seu programa de governo se opõe a várias iniciativas relacionadas ao gênero. "No meu governo, não haverá marxismo cultural e não pedirei perdão por ter pênis. Se dependesse de mim, fecharia o Ministério da Mulher", disse o candidato em entrevista. A candidata à Vice-presidência na chapa de Milei, Victoria Villarruel, também é conhecida por declarações e propostas polêmicas. Villarruel é filha de militares e já colocou em dúvida os crimes cometidos durante o regime militar — como a tortura e o desaparecimento de milhares de pessoas — que governou a Argentina, de 1976 a 1983. "Devemos denunciar os terroristas que realizaram ataques nos anos 70, tomaram o poder, reescreveram a história e garantiram a impunidade", disse ela durante um encontro político. É ela quem lidera as propostas de flexibilização do comércio de armas e de uma reforma judicial que pode dar liberdade a dezenas de militares e policiais condenados por crimes contra a humanidade. Verónica Torrás, diretora do instituto Memoria Aberta (voltado para a defesa dos direitos humanos), repudiou a proposta. "Estamos em uma situação de ameaça ao consenso mínimo, que é o repúdio ao terrorismo de Estado", disse Torrás em entrevista ao jornal espanhol La Verdad. Dentro da proposta de redução de gastos públicos, Milei tem deixado claro que haverá cortes nas principais áreas sociais: saúde, educação e desenvolvimento social. Ele quer aglutinar os três ministérios que tratam dessas questões em um só, que se chamaria de "Capital Humano". Na área da saúde, ele propõe a criação de um "seguro universal", em que os usuários e médicos chegariam a um acordo sobre valores pelos serviços médicos. No campo da educação, Milei propõe o sistema dos vouchers, no qual a educação não seria nem obrigatória nem gratuita. "O sistema obrigatório não funciona. Se você quiser estudar, terá um voucher e poderá estudar. O dinheiro que o Estado separa para isso seria dividido entre as crianças em idade escolar e um voucher seria entregue aos pais, para que eles possam escolher a escola que querem para os seus filhos" disse o candidato. Professora de carreira e atualmente parlamentar, Victoria Morales Gorleri foi uma das pessoas que se manifestaram contra o projeto. "A educação obrigatória não é uma arma que se coloca na cabeça da sociedade, mas um estímulo essencial para a sobrevivência", avaliou Gorleri.
2023-08-14
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ckdndg59wxko
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Vídeo, Javier Milei: o 'anarcocapitalista' aliado de Bolsonaro que surpreendeu em primárias na ArgentinaDuration, 5,20
Em um resultado que causou enorme surpresa na Argentina, o economista de direita radical Javier Milei foi o mais votado nas eleições primárias realizadas no domingo (13/8). Milei, que se autodenomina um libertário, e seu grupo La Libertad Avanza ("A Liberdade Avança", em tradução livre) lideraram a corrida presidencial com mais de 30% dos votos. Ficaram para trás as duas forças que governaram o país nas últimas duas décadas: o macrismo (Juntos por el Cambio, ou "Juntos pela Mudança"), com cerca de 28% dos votos, e a coalizão peronista-kirchnerista (Unión por la Patria, ou "União pela Pátria"), com mais de 27%. Nosso repórter André Biernath traz mais detalhes sobre o candidato. Confira. Reportagem em texto: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cm5j5k15le4o
2023-08-14
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-66505793
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Nômades digitais e aluguel em dólar: por que moradores estão sendo expulsos de seus bairros na América Latina
Basta caminhar pelos bairros de Medellín, na Colômbia, para se deparar com dizeres nos muros: "Medellín não está à venda. Parem a gentrificação". O fenômeno é explicado pelo alto número de aluguéis de curta temporada, principalmente na plataforma Airbnb, e pela chegada em peso dos nômades digitais, segundo especialistas. E o cenário é comum em vários outros países da América Latina, onde moradores relatam o aumento no custo de vida. Segundo a plataforma AllTheRooms, que cataloga dados de habitações e aluguéis de temporada em todo mundo, houve um aumento expressivo de estadias na modalidade Airbnb na América Latina nos últimos anos. Na América do Sul, o Brasil aparece em primeiro lugar no número de diárias contratadas, seguido por Colômbia e Argentina. México, Costa Rica e Guatemala são outros países com taxas altas. Fim do Matérias recomendadas “A América Latina continua a desempenhar um papel significativo no mercado de aluguel de curto prazo, com forte crescimento ano a ano em todos os países da América Latina, tanto em receita quanto em oferta, em 2022 e até em 2023”, diz Joseph DiTomaso, CEO da plataforma. “Brasil e México continuam dominando o mercado, representando cerca de 72% da receita total de aluguel de curto prazo na América Latina”, acrescenta. Um estudo realizado pelo governo da cidade do México mostrou que o número de habitações temporárias na cidade, na categoria Airbnb, triplicou entre os anos de 2000 e 2020, passando de 22.122 a 71.780 unidades. A pesquisa mostrou ainda que a cidade do México expulsa anualmente 20 mil famílias de renda mais baixa por falta de opção de uma moradia acessível. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mesmo com o fim da pandemia de covid-19, muitos estrangeiros continuam trabalhando remotamente ou investiram para valer no modo de vida nômade. Muitos deles são remunerados em moeda valorizada e procuram cidades mais baratas, com qualidade de vida para morar ou passar longas temporadas, de acordo com Diana Quintas, sócia da Fragomen no Brasil, empresa especializada em imigração e líder na área de mobilidade internacional de pessoas físicas e empresas. “Falando de nomadismo digital na América Latina, nossa região é escolhida por muitos profissionais porque juntamos qualidade de vida a um custo atrativo para os mais bem colocados no mercado”, diz a especialista. Porém, isso afeta diretamente no aumento dos aluguéis para quem reside naquele lugar, aponta Isadora Guerreiro, coordenadora do Lab Cidade da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Esse processo, conhecido como gentrificação, se dá pela transformação da população local, que é substituída por outros perfis de renda mais alta, contribuindo para a supervalorização de um bairro ou cidade e, consequentemente, para a expulsão de antigos moradores. Segundo Guerreiro, esse movimento aprofunda a desigualdade urbana. "O que estamos vivendo na América Latina é que esses proprietários corporativos, que são empresas ou fundos de investimento internacional, passam a ser donos de unidades (...) e passam a definir (preços) baseado no setor internacional. (...) É totalmente descolado de quanto as pessoas podem pagar. Isso vai redefinindo o bairro", diz Guerreiro. Atrelado a isso, a América Latina também acompanha a onda de inflação global, intensificando o aumento dos aluguéis. Segundo dados do site de locação Quinto Andar, de maio de 2022 a maio de 2023, o custo médio do aluguel de um apartamento subiu 136% em Buenos Aires (Argentina); 13% na Cidade do México (México); 11% em São Paulo (Brasil), 11% em Quito (Equador), 11% na Cidade do Panamá (Panamá) e 6% em Lima (Peru). A gerente de comunicação brasileira Daniela De Caprio vive na cidade do México há três anos e meio. Ela se mudou para o país devido a uma oferta de trabalho. Mesmo o México tendo uma moeda desvalorizada frente ao real, segundo ela, alugar ou comprar um imóvel no país é muito caro. Desde que chegou ao país, De Caprio, de 33 anos, vem acompanhando o aumento nos preços dos aluguéis e mudou de bairro três vezes. Ela conta que, em alguns bairros, o aluguel de um apartamento pequeno sai por US$ 5 mil (R$ 24,5 mil). "Eu sabia que era caro, mas não tanto assim. Tem muitas empresas que vendem apartamentos já em dólar", diz. Maria Siqueira, dona da Imobiliária Ousía na Cidade do México, aponta que o aumento está ligado à chegada de nômades digitais e expatriados. Em outubro de 2022, o governo da Cidade do México anunciou uma parceria com o Airbnb e a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) para promover a cidade com um centro global para trabalhadores remotos e para se tornar a capital do turismo criativo. Segundo Vinicius Oike, economista do QuintoAndar, o fenômeno no México é até mais prevalente do que no restante da América Latina. "Esse processo é um fenômeno localizado, dentro de certos bairros e de certas cidades onde esse público se foca. Isso acontece até por questão geográfica de estar perto dos Estados Unidos, que adotou bastante o trabalho 100% remoto, mesmo depois da pandemia", diz o especialista. Siqueira confirma a dolarização nos aluguéis e aumento na procura dos imóveis por estrangeiros. "Para muitos proprietários, é conveniente cobrar em dólar. Eles aceitam a transferência já que tem muita burocracia para abrir uma conta. Às vezes, muitos vêm para cá temporariamente. O México é um dos países mais econômicos e tem uma boa qualidade de vida", diz. Siqueira acrescenta que muitos contratos são de um ano, mas acabam tendo flexibilidade caso a pessoa pague a multa e queira sair antes. No caso dos nômades digitais, ela diz que esse público não tem muitas exigências, são jovens e prolongam a estadia por mais tempo. "Alguns vêm para uma temporada e acabam ficando mais. Não querem gastar com um aluguel caro, querem viajar. Não importa se o edifício está caindo aos pedaços." Essa onda de trabalhadores remotos internacionais também foi sentida por pela brasileira Mayara Pinheiro, de 36 anos, consultora de operações em negócios na Cidade do México. Morando no local há dois anos e meio, ela diz que os preços de vários produtos e serviços começaram a mudar drasticamente. "Os 'gringos' estão se mudando para cá podendo pagar aluguéis que os locais, que ganham em moeda local, não podem. Daí, o aumento atinge não só os mexicanos, mas os latinos que já vivem aqui, como eu, que ganha em peso", opina. Ela conta que tem uma amiga mexicana que precisou deixar o apartamento atual e ir para um bairro mais distante, devido a um aumento de 20% no valor do aluguel. O problema também foi percebido pelo executivo de vendas de tecnologia Roberto Bucio, de 33 anos, que é mexicano e morou na capital a vida inteira. "Depois da pandemia houve várias mudanças. Algumas pessoas voltaram a morar com os pais ou saíram para cidades mais afastadas que ficam a uma hora de carro daqui. Os preços dos imóveis aumentaram muito", ressalta. Para ele, o modo de trabalho remoto, que começou em muitas empresas e segue até hoje, possibilitou a vinda dos nômades para o país. "Essa flexibilidade de não ir ao escritório tem uma conexão direta com o aumento do custo de vida na cidade nos últimos três anos." Considerada a cidade mais rica da Colômbia, Medellín vive um boom de estadias temporárias, muitas vezes cobradas em dólar. Segundo a plataforma AllTheRooms, entre 2020 e 2021, as estadias feitas por Airbnb cresceram 119% na cidade. Já em 2023, houve um crescimento de quase 40%, na comparação com o mesmo período do ano passado. Bairros como El Poblado e Laureles são os mais procurados por quem deseja ficar por mais tempo. Também são muito visados por turistas que visitam a cidade e buscam ficar perto do metrô, bares, cafés e restaurantes. Porém, a alta demanda por essas regiões já influencia no custo e estilo de vida dos moradores. A colombiana Diana Yanes, de 33 anos, vive em Medellín há 13 anos, e precisou sair do seu apartamento antigo devido ao aumento dos preços. A alternativa foi alugar apenas um quarto e dividir a casa com uma amiga. Ela diz que não conseguiria pagar por um imóvel se morasse sozinha. Mesmo sendo compartilhado, o espaço é simples e muito caro. Pelo fenômeno que ocorre na cidade, ela diz acreditar que a vinda de estrangeiros contribuiu para o aumento no valor dos aluguéis. "Os proprietários preferem alugar para estrangeiro para obter maior rentabilidade e não para pessoas locais que podem pagar um aluguel mensal mais baixo", diz. Marisol Pérez Hernández, de 43 anos, trabalha com uma pousada há quase três anos e ressalta que tudo mudou na cidade desde o aumento dos turistas estrangeiros e trabalhadores remotos. Embora tenha fortalecido a economia na região, principalmente no pós-pandemia, isso torna certos bairros proibitivos de morar, diz ela. "El Poblado, por exemplo, é impossível, são só turistas. Os aluguéis mensais são extremamente caros nessa região. Em Laureles, já está começando a chegar neste patamar." No bairro de Manila, que era conhecido por casas tradicionais, a realidade também mudou. Hoje, a região é completamente comercial, com cafés, albergues e pousadas. "Era um bairro velho e com população mais velha. Todos já saíram de lá. O turismo destruiu", diz Marisol. Ela também reforça que a cidade vive um movimento de construções de apartamentos destinados aos Airbnbs. "Todas as propriedades informam que será possível colocar o apartamento na plataforma. Querem investir nesse tipo de imóveis. Acho que não será possível ver o efeito agora, mas acredito que terá um efeito nocivo nos próximos dois anos", destaca. Hernández diz ainda que a inflação no país também está alta, provocando um aumento do preço de quase todos os serviços. O problema de estadias temporárias e preços cobrados em dólar já é uma realidade também na Argentina, principalmente na capital, Buenos Aires. É muito comum encontrar imóveis, principalmente na região metropolitana da cidade, com anúncios em moeda americana e não mais em pesos argentinos. Isso foi apontado também por um estudo realizado pelo Mercado Livre e pela Universidade San Andrés, que fica na capital. Segundo dados da pesquisa, 50% dos anúncios de aluguéis são feitos em dólar. O argentino Fernando Corraro, de 30 anos, confirma que observou essa mudança. "Já há lugares específicos na capital que o aluguel é pago em dólar", afirma. Por causa do aumento dos valores cobrados, ele diz que precisou mudar de bairro com os três filhos. Além da inflação que assola o país há anos, o local sofre com a baixa oferta de imóveis e também com o aumento do turismo internacional, principalmente de chilenos, uruguaios e brasileiros. Segundo o último relatório divulgado pelo Turismo da Argentina, o país recebeu somente em julho deste ano 622.445 visitantes não residentes. De acordo com a assessoria de imprensa, os dados são provisórios. Com a cotação do câmbio favorável, ficou muito mais fácil conhecer cidades argentinas sem gastar muito. A brasileira e advogada Ana Flavia Yarid, de 36 anos, foi uma das pessoas que aproveitou os preços baixos no país como nômade digital. Como ganha em real, sempre viaja para lugares mais baratos e onde a moeda brasileira tenha maior poder de compra. Segundo a brasileira, mesmo com o "efeito Airbnb", ainda é vantajoso viajar para a Argentina. Ela passou três meses explorando diversas cidades do território argentino. Ela constatou que algumas acomodações temporárias já estão sendo cobradas em dólar. Porém, para economizar, ela procura se hospedar em albergues e evita zonas muito turísticas. "É barato viajar dentro da própria Argentina. Peguei um ônibus leito de Buenos Aires para Mendoza e paguei R$ 170", diz. Ana Flavia passou por diversas cidades da América do Sul e ressalta que o país foi um dos melhores no quesito custo benefício, atrás apenas da cidade de Santa Marta, no litoral da Colômbia. Embora não exista um número oficial de quantos nômades digitais existem no mundo, a tendência é que eles cresçam ainda mais. Segundo dados do último relatório divulgado em 2022 pela empresa Fragmen, os nômades digitais já somam 35 milhões no mundo, podendo chegar a 1 bilhão em 2035. Outro estudo realizado pela MBO Partners, consultoria americana, mostrou que em 2022, ano em que a pesquisa foi realizada, 169 milhões de trabalhadores dos EUA se declararam nômades, um aumento de quase 9% em relação a 2021. A facilidade de visto e o bom custo benefício oferecido a alguns em muitos países possibilita a longa estadia em determinados lugares. No Brasil, por exemplo, a permanência de nômades já é regulamentada desde 2021 por uma resolução do Conselho Nacional de Imigração, do Ministério da Justiça e Segurança. A política migratória permite que o nômade estrangeiro fique por até um ano no país, podendo renovar o visto por esse mesmo período de permanência e que a renda mínima seja igual ou superior a US$ 1.500, entre outros requisitos. “O Brasil especificamente é um dos países que exigem as menores rendas para conceder o visto de nômade digital”, diz Quintas. A Argentina também já disponibiliza esse tipo de visto para nômades digitais estrangeiros, que podem ficar no país por até 180 dias. O governo não pede valor mínimo de comprovação de renda mensal, apenas recibos de honorários, além de cobrar pelo trâmite, que pode ser em euro ou dólar. “A região (América Latina) aderiu rapidamente à tendência de lançar vistos e criar programas de incentivo para atrair trabalhadores nômades e aquecer a economia local com capital estrangeiro”, afirma Quintas. Nos países da Europa, os valores de visto para essa modalidade podem ser bem mais custosos, se comparado à América Latina. Na Espanha, para quem deseja ser nômade é necessário ter em conta bancária 25 mil euros para o solicitante principal e 9.441 euros para cada membro da família. Em Portugal, há uma exigência de comprovação de rendimentos de pelo menos quatro salários mínimos portugueses mensais. Muitos nômades procuram cidades mais econômicas no México, Colômbia, Brasil, Argentina e outros países para trabalhar e ainda aproveitar os pontos turísticos nas horas vagas. Segundo a empresa Nomad List, em seu ranking global com centenas de países e cidades, a cidade do México aparece na 12ª posição e Buenos Aires aparece na 13ª ficando atrás apenas de alguns locais da Ásia e Europa, na escolha dos melhores locais para ser nômade digital no mundo. Já a empresa americana Kayak, líder no segmento de viagens, disponibilizou no ano passado um estudo que mostra um ranking dos melhores lugares para trabalhar remotamente. A Costa Rica, localizada na América Central, apareceu na sétima posição e o Panamá ficou em oitavo lugar. No ranking da América do Sul, o Brasil apareceu em primeiro na lista e a Colômbia em quarto. A pesquisa também levou em consideração fatores como segurança, custo de vida, boa internet, clima e outros requisitos. Segundo a Nomad List, as melhores cidades para trabalhar remotamente e viver como nômade digital na América Latina, de acordo com a opinião e avaliação dos visitantes, são Buenos Aires, em primeiro lugar, seguida da Cidade do México e Medellín na terceira posição. O Rio de Janeiro aparece na 12ª posição e Florianópolis, na 13ª. A avaliação no site leva em consideração segurança, internet, preços dos aluguéis e outros itens. O canadense Connor Ondriska, de 27 anos, atua na área de marketing digital e trabalha de forma remota há oito anos. Atualmente, é pago em dólares americanos. Ele já passou longas temporadas na Cidade do México, Medellín e Barranquilla, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. E relata que viver nessas cidades saía mais barato do que morar em Toronto, no Canadá, por exemplo. Connor diz que, embora no passado o valor mensal de moradia em Medellín girasse em torno de 2 milhões a 3,5 milhões de pesos colombianos (R$ 2,5 mil a R$ 4 mil), hoje o custo de vida para ele, inclusive na Colômbia, está caro. Mesmo sabendo que ganha em uma moeda valorizada, ele ressalta que ainda há um deslumbre na interpretação de que todos os nômades estrangeiros, principalmente europeus, americanos e canadenses, são ricos. “Uma grande parte dessas pessoas não ganha muito e não poderia viver em seus países de origem. Eles vão para países mais baratos para que possam viver uma vida um pouco melhor enquanto viajam", opina. A fotógrafa americana Katie Medow, de 36 anos, vive como nômade há mais de sete anos e já passou por diversos países da América Latina. Vivendo um longo período no México, entre cidades litorâneas e a própria capital, ela conta que a média por mês de um aluguel dividindo com o ex-namorado era de US$ 500 dólares (R$ 2,45 mil), o que, para ela, é muito econômico. "Na Filadélfia, por exemplo, teria que desembolsar, no mínimo, 900 dólares. E tem até mais caros", conta. Katie também achou o custo de vida em Cartagena, na Colômbia, bem acessível. Seus próximos planos agora são ir para o Egito e o Sudeste Asiático. "Ganhar em dólar realmente traz benefícios. Nesses lugares da Ásia, assim como na América Latina, a hospedagem em hostels e Airbnbs são muito baratas, além do transporte", afirma. O cenário não é muito diferente para os europeus. A italiana Sylvia Santarsiero, de 25 anos, é nômade digital e viaja com o namorado nesse estilo de vida desde maio de 2021. Trabalhando como freelancer, ela tem flexibilidade de estar em qualquer lugar do mudo. Sylvia diz que viver em países da América Latina realmente sai muito barato, já que ela e o companheiro ganham em euro. "A cidade mais barata que já vivemos foi Medellín, na Colômbia. Como trabalhamos para empresas europeias, podemos ficar em áreas melhores", afirma. O poder de compra é tão grande que a italiana conta que antes vivia na Holanda e pagava aproximadamente 500 euros (R$ 2,7 mil) por mês em um quarto sem mobília em uma casa compartilhada. Agora, ela e o namorado pagam no máximo 600 euros (R$ 3,3 mil) por boas moradias na América Latina. "Isso é menos da metade do que pagaríamos por um pequeno apartamento na Europa", diz. Além da Colômbia, Buenos Aires, na Argentina, também foi uma das cidades que mais os beneficiou no quesito economia. "O que realmente me surpreendeu é que para a maioria dos meus amigos argentinos era 'caro' sair para jantar, enquanto para mim era mais barato do que comprar mantimentos para comer em casa na Europa", afirma. "Se não ganhássemos em euros/dólares, não poderíamos ter o estilo de vida que estamos vivendo agora. Eu pessoalmente encontraria um emprego que me fizesse ganhar mais ou eu reduziria alguns padrões de viagem que tenho", complementa a nômade digital. Agora, o casal voltou para a Europa, onde vai passar alguns meses e depois segue para a Ásia. Embora pareça uma dinâmica difícil de ser resolvida a curto prazo, há maneiras para tentar amenizar esse fenômeno em cidades da América Latina, diz Isadora Guerreiro, da FAU-USP. Ele aponta que uma forma de impedir esse avanço de Airbnbs, aluguéis em dólares e outras medidas é por meio da intervenção do poder público. Na prática, isso significaria, por exemplo, tornar os edifícios de moradia pública para aluguel e que o município possa ter aluguel social em áreas que são de sua propriedade. O Estado pode fazer isso em prédios privados que tenham obtido benefícios públicos na construção; ou em prédios de sua propriedade (que já sejam seus ou que ele adquira). "Porque, com isso, se ele (Estado) tem muitas unidades, acaba conseguindo controlar o valor do aluguel e manter pessoas que querem morar naquele lugar", diz Guerreiro. Isso pode gerar benefícios para os centros das grandes metrópoles latino-americanas, como renovar edifícios que estão vazios hoje. Mas a especialista ainda alerta para a melhor forma de fazer esse processo. É importante, segundo ela, que essas unidades de aluguel em edifícios antigos restaurados (conhecidos como retrofits) tenham, de alguma maneira, um controle da demanda pública ou de baixa renda, que seja organizado e articulado por movimentos sociais ou entidades sem fins lucrativos. Isso vale dizer que o Estado define o perfil das famílias atendidas, dando prioridade para a baixa renda, e define a lista final de beneficiários. "Porque o grande problema de fazer retrofit ligado a plataformas de investimento internacional é ir para público de mais média e alta renda", diz Guerreiro. "É interessante a dinâmica de aluguel, renovando empreendimentos que estão vazios, desde que tenha um controle público sobre a demanda para que eles possam ser utilizados pela população que mais precisa."
2023-08-14
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy0p1z80yelo
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Javier Milei: quem é o 'anarcocapitalista' aliado de Bolsonaro que surpreendeu em primárias na Argentina
Em um resultado que causou enorme surpresa na Argentina, o economista de direita radical Javier Milei foi o mais votado nas eleições primárias realizadas no domingo (13/8). Milei, que se autodenomina um libertário, e seu grupo La Libertad Avanza ("A Liberdade Avança", em tradução livre) lideraram a corrida presidencial com mais de 30% dos votos. Ficaram para trás as duas forças que governaram o país nas últimas duas décadas: o macrismo (Juntos por el Cambio, ou "Juntos pela Mudança"), com cerca de 28% dos votos, e a coalizão peronista-kirchnerista (Unión por la Patria, ou "União pela Pátria"), com mais de 27%. A maioria das pesquisas deu a Milei cerca de 20% das intenções de voto, dez pontos atrás das outras duas coalizões — que, juntas, protagonizaram a "fenda" que dividiu politicamente o país nos últimos 20 anos. O resultado posiciona Milei, que atualmente é congressista e tem discurso contra as forças políticas tradicionais, como favorito para as eleições gerais, marcadas para 22 de outubro. Fim do Matérias recomendadas Atrás dele, aparecem Patricia Bullrich, vencedora pelo "Juntos pela Mudança" e ex-ministra de Segurança durante a presidência de Mauricio Macri, e Sérgio Massa, do "União pela Pátria", e atual ministro da Economia do governo de Alberto Fernández. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Milei tem um discurso de ferrenha defesa do livre mercado — e muitos o comparam ao ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e ao ex-presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. Ele se definiu como anarcocapitalista — corrente que defende um modelo de capitalismo sem regulação do Estado. Bolsonaro publicou vídeos nas redes sociais nos últimos dias manifestando apoio a Milei. Durante a adolescência, ele foi goleiro do Chacaritas Juniors e teve uma banda de rock chamada Everest, que tocava músicas dos Rolling Stones. Ao longo da atual campanha, Milei se conectou especialmente com os mais jovens, com a promessa de acabar com o sistema político tradicional, que ele chama depreciativamente de "a casta". A proposta mais conhecida do candidato é dolarizar a moeda, acabando com a desvalorização do peso. Ele também propõe fechar o Banco Central e privatizar empresas estatais. Durante a campanha, Milei gerou polêmica ao sugerir que permitiria a liberação da venda de armas de fogo e até de órgãos humanos. Ele também teve vários problemas com a imprensa e recebeu críticas por fazer comentários misóginos. A vida pessoal de Milei tem sido alvo de muitas especulações, em especial sua relação com a irmã, Karina Milei, que é a gerente da campanha dele, e seus cachorros — que ele chama de "filhos de quatro patas" e aos quais agradeceu no discurso de vitória. “Obrigado a todos aqueles que apostam desde 2021 na criação de um projeto liberal com projeção nacional”, disse Milei diante de uma plateia constituída majoritariamente por jovens. "Conseguimos construir esta alternativa competitiva que não só vai acabar com o kirchnerismo, mas também com a casta política parasita, corrupta e inútil que existe neste país", afirmou ele. Para o analista político Facundo Cruz, do Centro de Estudos da Qualidade Democrática, o voto em Milei “canalizou o descontentamento dos cidadãos pelos últimos dois governos”. "Milei foi subestimado nas pesquisas", disse ele à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, observando que os jovens são "os mais atingidos pela crise e não veem oportunidades". A Argentina sofre com inflação alta por mais de uma década e atualmente tem a terceira maior taxa anual do mundo, acima de 115%. Quatro em cada dez argentinos são consideradores pobres (entre menores de 14 anos, a pobreza chega a quase 55%) e o país vive uma profunda crise de endividamento. Juan Germano, diretor da Isonomía Consultores, considerou que a vitória de Milei “é uma crítica ao sistema em geral”. As prévias argentinas também serviram para definir quem serão os candidatos que liderarão as duas coalizões que governaram a Argentina neste século. Sem a presença das principais figuras — os ex-presidentes Cristina Kirchner e Mauricio Macri —, as primárias serviram para eleger quem serão os sucessores políticos deles. Do lado do "Juntos pela Mudança" macrista, a vencedora foi Patricia Bullrich, que tem propostas de linha mais dura, que se aproximam em alguns aspectos do que defende Milei. Ela prevaleceu confortavelmente (com cerca de 17% dos votos) sobre o rival mais conciliador e atual prefeito de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta, que obteve cerca de 11% de apoio. Enquanto isso, a coalizão kirchnerista-peronista que hoje governa a Argentina sob o comando de Alberto Fernández será liderada pelo atual ministro da Economia, Sergio Massa, que obteve uma vitória confortável sobre o rival Juan Grabois (21% contra 5%, aproximadamente). Apesar dos graves problemas econômicos, o partido governista conseguiu se colocar apenas um ponto atrás de seu rival histórico. O kirchnerismo também conseguiu manter o governo estratégico da província de Buenos Aires, enquanto o macrismo manteve o próprio reduto: a cidade de Buenos Aires. Somando todos os votos, os três principais candidatos nas eleições chegam à disputa com números semelhantes: cerca de 30% para Milei, 28% para "Juntos pela Mudança" (Patricia Bullrich) e 27% para "União pela Pátria" (Sergio Massa). Nas eleições presidenciais de outubro, se nenhum candidato atingir 45% dos votos, ou 40% com diferença de pelo menos 10 pontos em relação ao segundo colocado, os dois mais votados vão para o segundo turno, em novembro. A grande incógnita agora é qual dos dois — Bullrich ou Massa — conseguirá atrair os votos dos rivais para enfrentar Milei, que não teve concorrência nas primárias. Enquanto isso, uma questão ainda mais urgente para a maioria dos argentinos será como os mercados reagirão nesta segunda-feira ao inesperado triunfo de Milei. *Com reportagem de Veronica Smink, da BBC News Mundo na Argentina
2023-08-14
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cm5j5k15le4o
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Equador: a megaoperação militar para transferir líder de quadrilha acusado de ameaçar candidato assassinado
Milhares de soldados e policiais do Equador participaram de uma operação para transferir um conhecido líder de uma quadrilha criminosa para uma prisão de segurança máxima. José Adolfo Macías, conhecido como Fito, é o líder de Los Choneros, uma das gangues criminosas que operam no Equador. Ele é acusado de enviar ameaças de morte ao candidato presidencial Fernando Villavicencio. A transferência de Fito para um presídio de segurança máxima foi feita neste sábado (12/8), três dias depois de Villavicencio, cuja campanha focava no combate à corrupção, ter levado três tiros na cabeça. O assassinato ocorreu quando o político saía de um comício, 11 dias antes das eleições presidenciais. Antes de morrer, o candidato denunciou ter recebido ameaças de Fito. Fim do Matérias recomendadas Ele disse que o alerta chegou a ele por meio de um aliado político na província costeira de Manabí, lar da cidade de Chone, onde nasceram os Los Choneros. Segundo Villavicencio, um emissário de Fito o advertiu. “Se eu continuar… mencionando Los Choneros, eles vão me quebrar”, comentou em um programa de televisão. Ele também denunciou outra ameaça feita por meio de uma mensagem de texto de um usuário que tinha a imagem de Fito como foto de perfil. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A morte de Villavicencio chocou uma nação que até poucos anos atrás havia escapado de décadas de violência associada ao narcotráfico, guerras de cartéis e corrupção que atormentaram tantos de seus países vizinhos. No entanto, o crime disparou nos últimos anos, agravado pela presença crescente de cartéis de drogas da Colômbia e do México. No sábado, o partido de Villavicencio, Construye, anunciou que sua companheiro de chapa, Andrea González Náder, o substituiria como candidato presidencial. No entanto, não houve clareza por parte do Conselho Nacional do Equador (CNE) sobre a candidatura de González Náder. Segundo a lei, você não pode desistir de sua candidatura a vice-presidente para concorrer à Presidência. Para evitar problemas, o partido anunciou em sua conta no Twitter que registrará Christian Zurita como seu candidato presidencial, ao invés de Andrea González Náder. Enquanto isso, a viúva de Villavicencio, Verónica Sarauz, disse que responsabiliza o Estado pela morte de seu marido e já se juntou a outras vozes expressando insatisfação por González ter sido nomeada substituta de seu marido na disputa eleitoral. A campanha de Villavicencio se concentrou na luta contra a corrupção e as drogas. Ele foi um dos únicos candidatos a denunciar os supostos vínculos entre o crime organizado e funcionários do governo equatoriano. Um dia antes de seu assassinato, ele denunciou à Procuradoria-Geral da República supostas irregularidades nos contratos de petróleo negociados durante o governo do ex-presidente Rafael Correa que custaram ao país US$ 9 bilhões. Seis colombianos foram presos em conexão com o assassinato, enquanto um deles morreu em confronto com a polícia. As autoridades disseram que todos pertencem a "gangues criminosas", mas sem especificar quais. Fito, líder de Los Choneros, está desde 2011 no Centro de Privação de Liberdade Zona 8 de Guayaquil, condenado a 34 anos de prisão por crime organizado, narcotráfico e assassinato. Fito assumiu a liderança do Los Choneros depois que as autoridades equatorianas confirmaram a morte na Colômbia do líder anterior, Júnior Roldán, em maio passado. Cerca de 4.000 agentes entraram na prisão onde Fito estava durante a madrugada, fortemente armados e em veículos militares blindados. Vídeos compartilhados pelas forças de segurança mostram o líder da gangue de barba longa, algemado e sem camisa enquanto é transferido para outra penitenciária. O presidente equatoriano, Guillermo Lasso, anunciou que Fito foi transferido para La Roca, uma prisão de segurança máxima que abriga 150 detentos e faz parte do mesmo complexo prisional.
2023-08-13
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjlwl1g0xgko
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Como prisões da América Latina se tornaram centros de comando para as principais facções de tráfico de drogas
No Equador, as prisões são o epicentro de uma crise de segurança pública sem precedentes. No Brasil e na Venezuela, grupos criminosos nascidos atrás das grades estão se expandindo. Na América Central, governos tomam medidas extremas contra o poder exercido pelas facções nas prisões. Em toda a América Latina, penitenciárias criadas por países para melhorar a segurança de quem está fora delas tiveram o efeito contrário: tornaram-se centros de comando de importantes organizações criminosas. Em geral, essas facções que surgiram e são comandadas de dentro dos presídios têm como principal fonte de renda o tráfico de drogas. Mas especialistas acreditam que algumas se envolveram em outras formas de crime, desde extorsão até mineração ilegal. “A prisão não é como pensávamos”, diz Gustavo Fondevila, especialista do Centro de Pesquisa e Ensino Econômico (Cide), no México. “Esses presídios da região se tornaram motores da violência: você constrói um presídio em um lugar e o índice de criminalidade naquela área aumenta”, acrescenta Fondevila em entrevista à BBC Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC. Fim do Matérias recomendadas “É um Estado paralelo dentro das prisões." O desafio prisional para os países latino-americanos cresceu à medida que celas superlotavam nas últimas décadas, sem políticas efetivas para acompanhar essa tendência e ressocializar os presos. A população carcerária nas Américas, excluindo os Estados Unidos, mais do que dobrou desde 2000, de acordo com o World Prison Brief, um relatório global de dados prisionais publicado em 2021 pelo Institute for Crime and Justice Policy Research (ICPR, por sua sigla em inglês). Esse aumento no número de presos chegou a 200% na América do Sul, segundo o estudo, e a 77% na América Central. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No Brasil, onde a população carcerária multiplicou por 3,5 desde o início deste século, um grupo surgido na década de 1990 dentro de um presídio paulista passou a ser considerado nas últimas décadas a maior organização criminosa do país e talvez da América do Sul: o Primeiro Comando da Capital (PCC). Inicialmente concebido como um sindicato de proteção aos presos, com estatuto próprio, o PCC se fortaleceu dentro dos presídios até que em 2006 mostrou sua capacidade de atuar nas ruas. Na época, uma série de ataques violentos banharam em sangue e paralisaram a maior cidade da América Latina. "O crime fortalece o crime" é um dos lemas do PCC. O grupo se expandiu quando as autoridades enviaram seus líderes para prisões em outros Estados brasileiros onde recrutou mais membros, até chegar a cerca de 30 mil integrantes dentro e fora das prisões, indicam estudos. Sob a liderança de Marcos Herbas Camacho, conhecido como Marcola, preso desde 1999, o PCC expandiu suas operações de tráfico de drogas controlando rotas internacionais do Paraguai, Bolívia e outros países da região. Paralelamente, a facção ampliou seus ganhos com outros crimes, como assaltos a bancos e venda de telefones roubados. Neste ano, um relatório da ONU citou relatos de infiltração de operações ilegais de mineração de ouro na Amazônia pelo PCC e Comando Vermelho, outra poderosa facção brasileira nascida em uma prisão do Rio de Janeiro. “Mesmo dentro da prisão, grupos como o PCC não interromperam completamente sua comunicação com o que está acontecendo nas ruas. Quando falamos de presos com maior poder e centralidade na organização, com certeza eles têm a possibilidade de manter a influência, os lucros e a organização do negócio”, diz Betina Barros, socióloga e pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, para a BBC Mundo. Na prática, o PCC é um caso emblemático do que está acontecendo numa escala menor em outras partes da região. Em vez de controlar o interior da prisão de Tocorón, no centro-norte da Venezuela, autoridades transferiram a responsabilidade para os próprios presos. Assim, junto a uma boate, um cassino e um zoológico, outra transnacional latino-americana do crime, o Tren de Aragua, surgiu em 2014 nessa penitenciária venezuelana. Além de narcotráfico, a quadrilha, que conta com cerca de 3.000 membros, é acusada de uma ampla gama de crimes: de extorsão e sequestro a tráfico de pessoas e pistolagem —além de garimpo ilegal como o PCC, com o qual estabeleceu laços segundo autoridades brasileiras. Figura mais visível do Tren de Aragua, Héctor Rusthenford "Niño" Guerrero, "está protegido dentro de Tocorón e controla toda a operação de lá", disse Ronna Rísquez, jornalista venezuelana e autora de um livro sobre a quadrilha, em entrevista em maio. A falta de controle dos presídios superlotados também ficou evidente no Equador, onde o governo declarou na semana passada estado de emergência. O sistema prisional do país foi palco de uma série de massacres com mais de 450 mortos desde o ano de 2020. Por trás da violência nas prisões equatorianas, os especialistas veem uma guerra de gangues que também se espalhou pelas ruas, palco de homicídios, tiroteios e ataques enquanto o país se tornava um centro regional de distribuição de drogas. “Eu diria que o Equador é um narcoestado governado de dentro das prisões pelo crime organizado”, disse Carla Álvarez, professora e pesquisadora de segurança. Sem chegar a esses extremos, outros países da região viram crescer o desafio do narcotráfico atrás das grades. Na Argentina, várias pessoas foram presas acusadas de transportar quilos de cocaína sob o comando de líderes presos do "Los Monos", uma quadrilha do narcotráfico da cidade de Rosário. Recentemente, revelaram que um ex-piloto de aviação que já forneceu drogas ao grupo dirigia uma rede ativa de distribuição de entorpecentes e lavagem de dinheiro a partir do presídio de Ezeiza. No México, onde traficantes como Joaquín “El Chapo” Guzmán mantinham seus gigantescos negócios ilícitos em prisões de segurança máxima, estima-se que milhões de telefonemas de extorsão sejam feitos a partir das prisões todos os anos. Alguns governantes latino-americanos admitiram abertamente que as facções dominam suas prisões. “Iniciamos atividades para que as prisões deixem de ser escolas do crime e quebrem o ciclo com as facções”, disse José Manuel Zelaya, secretário de Estado de Defesa Nacional de Honduras, semanas atrás. Além de planejar a construção de uma prisão para cerca de 2.000 líderes de facções em um arquipélago caribenho, o governo hondurenho adotou medidas extremas para combater o crime, como toque de recolher, estado de emergência em grande parte do país e a militarização de presídios superlotados após vários massacres . Essa estratégia de "mão forte" parece ser cópia da usada pelo presidente salvadorenho Nayib Bukele para reduzir o enorme poder que as facções tinham dentro e fora das prisões de seu país, incluindo a inauguração de uma megaprisão para supostos membros de gangues neste ano. Com a taxa de homicídios despencando em El Salvador, Bukele goza de grande popularidade em nível doméstico e é considerado por alguns políticos da região um exemplo a ser seguido. Mas alguns alertam que o país está pagando um preço muito alto para restaurar a segurança pública, com erosão das liberdades civis, abusos das forças de segurança e concentração de poder no presidente. Outros lembram que as apostas apenas para punir muitas vezes se tornam um bumerangue na América Latina. “Em contextos com muitas vítimas, as pessoas querem uma mão forte. Dá para entender perfeitamente: elas querem sair na rua sem medo”, diz Fondevila. “Mas a resposta de prender todo mundo por qualquer coisa na região deu muito errado e o efeito é paradoxal: colocamos pessoas na prisão para ficar tranquilo e essas pessoas voltam para a sociedade com crimes cada vez mais graves e complexos”.
2023-08-13
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c03x57z15l6o
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'Equador temia virar Venezuela e agora parece Colômbia dos anos 1980'
A violência era um dos temas da agenda eleitoral no Equador. Mas após o assassinato do candidato Fernando Villavicencio, nesta quarta-feira (9/8), ela dominou o debate de campanha rumo às eleições presidenciais de 20 de agosto. Villavicencio foi morto a tiros após um comício em Quito, pouco antes de entrar em seu veículo. A possibilidade do crime não aparecia em nenhum dos cenários eleitorais previstos por analistas, apesar do crescimento exponencial da violência e do discurso do próprio Villavicencio, que garantia que o país havia se tornado um "narcoestado". Villavicencio afirmou publicamente que recebera ameaças de morte de “grupos criminosos”. “A franqueza de Villavicencio pisou nos calos de muitos envolvidos com o crime organizado e seus elos com o Estado”, afirma Luis Córdova, diretor do programa de Pesquisa, Ordem, Conflito e Violência da Universidade Central do México, em entrevista à BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC. Fim do Matérias recomendadas Ele descreve uma sequência lógica na escalada da violência. Se em 2021 a taxa de homicídios era de 13 por 100.000 habitantes, em 2022 subiu para 22,6 e, pela tendência que o país apresenta, espera-se que em 2023 chegue a 40 por 100.000 habitantes. O episódio desta quarta-feira, no entanto, não foi um homicídio comum e traz um recado. “Esse assassinato é uma mensagem política da irregularidade, do medo”, diz Pedro Donoso, analista político e diretor-geral da consultoria Icare Inteligência Comunicacional. Para Córdova, mostra “não só a influência do narcotráfico, mas das economias criminosas, muito mais diversificadas no país”. O assassinato de Villavicencio é o último de uma série de ataques contra políticos no país que, segundo Donoso, começou em 2020, com o assassinato de Patricio Mendoza, candidato às eleições legislativas do ano seguinte. O ano de 2023 está sendo mais sangrento. Em maio, Luis Chonillo, prefeito de Durán, sofreu um atentado. E, há apenas algumas semanas, o prefeito de Manta, Agustín Intriago, político mais bem avaliado do país e, segundo analistas, com grande potencial político futuro, também foi assassinado. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast “Com o primeiro assassinato (de Patrício Mendoza), lembro de pensar que o país estava saindo do controle. Dizíamos que íamos virar a Venezuela e isso não vale mais, porque já somos a Colômbia dos anos 1980 e 1990”, diz Donoso. O especialista se refere à mensagem recorrente de medo de alguns setores políticos de que o Equador possa acabar em uma crise tão profunda quanto a vivina na Venezuela há anos, algo que se repetiu em campanhas eleitorais em muitos outros países - incluindo o Brasil. Segundo Donoso, a violência atual é mais ou menos semelhante à que a Colômbia experimentou por causa dos narcotráfico há 40 anos. A situação no país escalou violentamente em 23 de julho, quando Intriago foi morto a tiros. “Não demos ao assassinato do prefeito de Manta a importância política que merece. É o assassinato de um representante do Estado." O problema se estende por todo o país, principalmente na costa e na região de Guayaquil. “Os criminosos não agem sozinhos, mas com a conivência de agentes de segurança de todos os níveis”, aponta Luis Córdova. Para o especialista em segurança, o assassinato de Villavicencio é “o produto da guerra tola e vã contra as drogas, na qual a segurança pública continua militarizada, e narcotraficantes estão infiltrados nas forças de segurança do Estado, juízes, promotores…”. A relevância crescente das quadrilhas criminosas associadas ao narcotráfico no Equador se deve a vários fatores. Uma delas é a mudança na “geopolítica da cocaína” após os acordos de paz na Colômbia em 2016 que, junto à falta de uma política conjunta com o Equador a esse respeito, “fez com que a guerrilha e as FARC penetrassem no Equador”, diz Córdoba. Para o analista, também influenciam a degradação institucional e policial no país. “A degradação do poder e a instrumentalização das forças de segurança do Estado facilitaram a criação de redes de extorsão para privilegiar certas organizações do narcotráfico em troca de informações”. Entre 2013 e 2017, uma quadrilha conhecida como Los Choneros ganhou força no país. Mas o assassinato de seu líder, Jorge Luis Zambrano González, vulgo “Rasquiña”, fez com que quadrilhas criminosas se fragmentassem, o que influenciou na expansão da violência. “Outro motivo é a política de desinvestimento e desmonte do Estado, onde se reduz o orçamento das prisões, por exemplo, e isso aumenta a violência”, comenta Córdova. “Estamos em um ecossistema homicida que facilita essa escalada de violência criminal. Não pode haver convivência pacífica na sociedade se os recursos estatais não forem usados ​​para a inclusão”. Por fim, ele aponta que atualmente existe “uma fórmula absurda na guerra contra as drogas e essas quadrilhas, mas os fluxos de dinheiro sujo que os narcotraficantes movimentam não são cortados. E se isso não for cortado, nada se resolve”. Os especialistas concordam que ainda é cedo para saber como o assassinato de um dos candidatos afetará a campanha presidencial. “Antes me perguntavam o que poderia fazer tudo mudar radicalmente e eu não tinha condições de visualizar um acontecimento como esse. Mas é sem dúvida um ponto de inflexão e as pesquisas feitas até agora se tornaram inúteis. Isso muda absolutamente tudo”, diz Donoso. “A violência é um grande eleitor que não está nas urnas”, diz. Até agora, pesquisas apontavam um alto índice de indecisos, 40%, que podem pender para um lado ou para o outro do espectro político dependendo dos últimos acontecimentos. De acordo com as pesquisas realizadas até agora, no topo das intenções de voto aparece Luisa González (Movimiento Revolución Ciudadana), candidata do movimento liderado pelo ex-presidente Rafael Correa (2007-2017), seguida por Otto Shoneholzner, que foi vice-presidente no governo de Lenín Moreno, o candidato indígena Yaku Pérez, o finado Villavicencio, e o empresário Jan Topic. “Um ato de violência como este em Quito, onde nunca ocorreram episódios neste nível, pode causar medo nas classes médias e fortalecer propostas 'bukelistas', porque pode posicionar no eleitorado a ideia de que um candidato linha dura deve ganhar a presidência”, diz Córdova. O especialista faz alusão a Topic, um outsider nesta disputa que tem mantido um discurso centrado na insegurança ao estilo do presidente de El Salvador, Nayib Bukele. Os analistas não são tão claros sobre como isso pode beneficiar ou prejudicar González. “O Revolución Ciudadana é capaz de enquadrar habilmente em sua mensagem política a ideia de que 'esta violência, conosco, no correísmo, nunca aconteceu'”, diz Donoso. Mas ele também aponta outro cenário em que esse episódio pode prejudicá-los: “Fernando Villavicencio foi a voz mais radical do anticorreísmo”. Para Donoso, há um claro desafio após este “episódio nefasto”: compreender a multidimensionalidade da violência no Equador no contexto da degradação da sociedade. “O tecido social do Equador está quebrado e a violência é o caminho escolhido, porque o Estado não administra as tensões sociais. Isso permeia a violência." O presidente Guillermo Lasso decretou 3 dias de luto pelo assassinato de Villavicencio, mas manteve a data de 20 de agosto para as eleições. Donoso aprova que a campanha não seja interrompida: “A resposta do Estado não pode ser a paralisia. Isso não pode mudar o curso da democracia. Fazer isso é concordar com os violentos”.
2023-08-12
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cg34r3ej8reo
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Equador: o que se sabe sobre quem teria matado candidato à Presidência
O assassinato do candidato à presidência do Equador Fernando Villavicencio na quarta-feira (09) levou seis suspeitos de envolvimento com o crime à cadeia, em prisão preventiva. Enquanto isso, o principal suspeito de ter disparado os três tiros que mataram Villavicencio foi ferido em uma troca de tiros com seguranças e depois morreu em uma unidade policial em Quito, segundo a Promotoria. Ele tinha antecedentes criminais, tendo sido preso anteriormente por acusações relacionadas a armas, informou o governo. As prisões dos seis suspeitos de envolvimento no crime foram feitas poucas horas depois do assassinato, em operações que ocorreram no sul e no sudeste de Quito. A Justiça decretou prisão preventiva com duração de 30 dias. Segundo o ministro do Interior do Equador, Juan Zapata, os seis são estrangeiros e "pertencem a grupos do crime organizado", sem especificar quais. Fim do Matérias recomendadas Mais tarde, as autoridades equatorianas confirmaram à mídia local que tanto o suspeito morto quanto os seis detidos são colombianos, motivo pelo qual foi solicitada a colaboração com a polícia do país vizinho. Por sua vez, o presidente do Equador, Guillermo Lasso, informou que agentes do Federal Bureau of Investigation (FBI, a polícia federal) dos Estados Unidos viajarão ao país sul-americano para colaborar com a investigação. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os investigadores identificaram os suspeitos como Andrés M., José N. Adey G., Camilo R., Jules C. e John R. Os detidos têm antecedentes criminais por diferentes delitos e, para dois deles, havia um mandado de prisão pendente por um caso de receptação. “Durante as incursões, foram encontrados um fuzil, uma submetralhadora, quatro pistolas, três granadas, dois pentes de fuzil, quatro caixas de munição, duas motocicletas e um veículo com denúncia de furto onde os integrantes desse grupo criminoso estariam se movimentando", afirmou Zapata. O ministro acrescentou que a polícia “utilizará toda a sua capacidade operacional e investigativa para esclarecer o motivo deste crime e os mandantes”. Na mesma entrevista coletiva, Zapata repudiou o assassinato de Fernando Villavicencio, que classificou como um "crime político de caráter terrorista". O Ministério das Relações Exteriores da Colômbia, por sua vez, repudiou "veementemente", por meio de um comunicado, o assassinato do candidato, e expressou suas condolências à família e apoiadores. "Em nome do chanceler e de todo o Estado colombiano, expressamos solidariedade ao povo equatoriano e enviamos uma mensagem de confiança às instituições da irmã República do Equador" para que se possa "esclarecer os fatos e punir os responsáveis". A participação de cidadãos colombianos no crime lembra o ocorrido em julho de 2021 com o presidente haitiano Jovenel Moïse, assassinado em sua casa por um grupo que incluía 26 colombianos e dois haitianos-americanos. Villavicencio, 59, era um dos oito candidatos presidenciais nas eleições antecipadas que acontecerão no Equador em 20 de agosto. O mandato de Lasso terminaria em 2025, mas em maio deste ano ele decretou a dissolução da Assembleia Nacional e pediu a convocação de novas eleições — mecanismo constitucional conhecido como "morte cruzada"—, em meio a acusações de desvio de dinheiro público.
2023-08-11
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c25g4jxn1k5o
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O papel dos cartéis mexicanos na onda de violência que levou à morte de candidato à Presidência no Equador
"Aqui pagamos com a vida pela democracia." Seu assassinato não é um incidente isolado. Um prefeito baleado enquanto inspecionava obras públicas, corpos pendurados em pontes, líderes de gangues publicando vídeos nos quais ameaçam matar políticos a menos que cumpram suas ordens - uma sequência aparentemente interminável de violência dominou as manchetes em um país anteriormente conhecido por sua segurança . Fim do Matérias recomendadas Em 2018, a taxa de homicídios foi de 5,8 por 100 mil habitantes. A maioria de sua população, apontou uma pesquisa da Gallup, sentia-se segura para andar sozinha à noite. Em 2022, a taxa de homicídios havia mais que quadruplicado, e a percepção de segurança, despencado, junto com a confiança na polícia em mantê-los seguros. É seguro supor que, se uma pesquisa fosse realizada agora, a porcentagem dos que se sentem seguros seria ainda menor. Como o Equador, um país que até recentemente era considerado um oásis seguro para turistas e moradores locais, se tornou uma nação onde políticos eleitos democraticamente são mortos a tiros? A resposta são as gangues de criminosos — e a geografia. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O Equador está espremido entre a Colômbia e o Peru, os dois maiores produtores de cocaína do mundo. A produção de cocaína atingiu recentemente um recorde, de acordo com o Relatório Global das Nações Unidas sobre Cocaína 2023. A Colômbia e o Peru, onde se cultiva a folha de coca — matéria-prima para a fabricação da cocaína — estão no centro desse comércio ilegal que se estende por grandes partes do mundo. Enquanto a produção aumenta, também aumentam as apreensões da droga feitas pela polícia em vários países. A Colômbia, em particular, passou décadas tentando conter o fluxo de cocaína, e sua polícia recebeu treinamento e apoio dos Estados Unidos. Mas, assim como as forças policiais reuniram recursos para interromper o fluxo de cocaína, as gangues que fazem o tráfico também se tornaram mais internacionais. Após a desmobilização do grupo rebelde Farc na Colômbia — outrora um dos principais atores do comércio de cocaína — surgiram novos participantes que forjaram alianças muito além das fronteiras da Colômbia. Cartéis de drogas mexicanos e grupos criminosos dos Bálcãs ganharam espaço na América do Sul. Esses grupos estavam interessados em explorar novas formas de transportar a cocaína produzida na Colômbia para seus compradores na Europa e nos Estados Unidos. Como áreas anteriormente sem lei na Colômbia ficaram sob controle das forças do Estado após o acordo de paz assinado entre o governo do país e os rebeldes das Farc em 2016, a necessidade de novas rotas tornou-se mais premente. Esses grupos criminosos transnacionais cada vez mais viam o Equador como um país atraente para o trânsito de seus carregamentos de drogas. Sua fronteira porosa com a Colômbia, sua boa infraestrutura e seus grandes portos na costa do Pacífico — como Guayaquil — tornaram o Equador geograficamente conveniente para essas gangues. As forças de segurança do Equador também tinham pouca experiência em lidar com cartéis poderosos, o que significa que não estavam preparadas para o influxo de criminosos fortemente armados. Não demorou muito para que os sindicatos do crime transnacional se infiltrassem nas quadrilhas locais, que até então se dedicavam a crimes menores como a extorsão. Muitas dessas novas alianças foram forjadas dentro das prisões do Equador, e foi atrás das grades que a onda de violência e brutalidade que desde então se espalhou para as cidades do Equador entrou em erupção. Gangues ligadas a cartéis rivais no México se confrontaram nas prisões, mutilando-se com armas caseiras e exibindo as cabeças decapitadas de seus inimigos. Centenas de presos foram mortos em lutas nas prisões superlotadas do Equador nos últimos anos. Alguns dos incidentes mais graves aconteceram na prisão de El Litoral, em Guayaquil. Os esforços para acabar com a violência transferindo prisioneiros para diferentes prisões parecem apenas ter espalhado o problema por todo o país. No mês passado, 136 guardas foram mantidos como reféns por presidiários que organizaram motins simultâneos em prisões de todo o país. E, enquanto muitos dos líderes das gangues que surgiram no Equador estão atrás das grades, a violência que eles desencadearam não se limitou às prisões. Por meio de celulares contrabandeados para as prisões, eles comandam o crime do lado de fora e ordenam a morte daqueles que ficam em seu caminho. Fernando Villavicencio havia sido ameaçado uma semana antes de morrer por membros de Los Choneros, uma gangue que leva o nome da cidade de Chone, no oeste do Equador. Los Choneros têm ligações com o cartel de Sinaloa, cujo ex-líder, Joaquín "El Chapo" Guzmán, está preso nos Estados Unidos. Estimulados pelo dinheiro canalizado para eles de seus novos aliados no exterior e seu poder de fogo reforçado por armas de alta potência contrabandeadas dos Estados Unidos via México, essas gangues se tornaram um inimigo forte. Poucos estão dispostos a enfrentá-los. Fernando Villavicencio foi um deles. Mesmo depois de ter sido alertado por Los Choneros para não desafiar a quadrilha ou sequer mencionar seu nome, Villavicencio manteve-se fiel ao slogan de sua campanha: "É a hora dos bravos". "Eles [as gangues] disseram que iriam me quebrar, mas não tenho medo deles", disse ele em um vídeo publicado na internet logo após ser ameaçado. Villavicencio recebeu proteção policial, mas continuou em campanha. Momentos antes de sua morte, ele apertava as mãos dos eleitores. Pouco depois de seu assassinato brutal, surgiu um vídeo mostrando homens mascarados admitindo a execução de seu assassinato e ameaçando outro candidato presidencial. Os homens mascarados dizem que não pertencem a Los Choneros, mas a uma gangue que se autodenomina Los Lobos (Os Lobos), que tem ligações com outra poderosa organização criminosa mexicana, o Cartel de Nova Geração de Jalisco. Outro vídeo apareceu horas depois, no qual homens que diziam ser Los Lobos negavam ter participado do assassinato. "Não cobrimos o rosto (...) o vídeo em que homens mascarados com fuzis de assalto fingem ser membros de nossa organização é totalmente falso." O grupo de homens no segundo vídeo disse que o primeiro vídeo foi enviado para "desestabilizar o país e culpar os Los Lobos por esta tragédia que está acontecendo". Embora a polícia ainda não tenha dito quem acredita estar por trás do assassinato de Fernando Villavicencio, o fato de um candidato presidencial poder ser morto enquanto estava sob proteção policial em um evento público na capital deixará os equatorianos que não desfrutam de tais níveis de proteção temendo por sua segurança.
2023-08-10
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cglykedy00po
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Fernando Villavicencio: as críticas a Lula e Bolsonaro de candidato assassinado no Equador
Villavicencio, no entanto, se mostrava crítico aos dois. Conhecido no Equador principalmente por seu trabalho como jornalista investigativo, Villavicencio foi líder sindical da Federação dos Trabalhadores Petroleiros (Fetrapec) no fim dos anos 1990. Como deputado, desde 2021, dizia que sua principal bandeira era a luta contra a corrupção — Villavicencio definia o Equador como um "narcoestado", propunha restaurar a segurança com as forças armadas e a polícia nas ruas e combater duramente o que chamava de "máfia política" no país. Seu principal adversário político era Rafael Correa, ex-presidente do Equador e aliado de Luiz Inácio Lula da Silva, sobre quem Villavicencio compartilhou uma série de textos sobre corrupção na Petrobras. Fim do Matérias recomendadas Mas Villavicencio também compartilhava conteúdo crítico contra o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro — desde reportagem que falava sobre "potencial genocídio" promovido pelo brasileiro durante a pandemia até denúncias de corrupção contra os filhos do ex-presidente. Petróleo foi um dos temas mais discutidos por Villavicencio em seus 59 anos de vida. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O ex-candidato nasceu em 11 de outubro de 1963 na província de Chimborazo, no centro-sul do Equador. Segundo o perfil publicado no site de sua campanha, foi dirigente sindical da Federação dos Petroleiros (Fetrapec) em 1999. Sua biografia de campanha diz que, desde adolescente, ele esteve ligado a organizações sociais indígenas e de trabalhadores. Villavicencio cresceu no meio rural, onde aprendeu a “cultivar e respeitar a terra e a conviver com os mais humildes”. Em 2021, tomou posse como deputado eleito pela Alianza Honestidad, uma frente política formada, entre outros partidos, pelo Partido Socialista Equatoriano. À frente da Frente Parlamentar Anticorrupção, apresentou uma série de denúncias que deram origem a investigações sobre suposta corrupção no setor petroleiro durante as presidências de Rafael Correa, Lenín Moreno e Guillermo Lasso. O principal escândalo político divulgado sob sua gestão como deputado foi o chamado caso "Petrochina", que denunciava uma dívida que o Equador teria adquirido com a China durante o governo de Rafael Correa e que Villavicencio classificou como esquema de corrupção. Nos últimos anos, Villavicencio compartilhou uma série de tuítes positivos sobre a operação Lava Jato. Em 31 de outubro do ano passado, data em que a eleição de Lula como presidente foi confirmada, Villavicencio escreveu: "O retorno dos ladrões da lava jato". Em 2019, criticou Bolsonaro quando o Brasil não compartilhou informações de delações premiadas da Odebrecht com a procuradoria equatoriana. Villavicencio citou Bolsonaro em 11 tuítes desde 2018 — dez deles tinham teor crítico. Às vésperas da eleição que elegeu Bolsonaro, Villavicencio respondeu ao tuíte de um professor equatoriano que afirmava que torcia pelo então candidato Fernando Haddad, já que a "outra opção" (Bolsonaro) seria "aterrorizante". "Não podemos curar a raiva com mais mordidas do mesmo cão", disse Villavicencio. "Bolsonaro é produto da traição do PT, da maior corrupção da história. Por Deus.... E não compartilho nada com Bolsonaro." Em dezembro do mesmo ano, compartilhou reportagem sobre investigações contra Flavio Bolsonaro, filho do ex-presidente, e seu ex-motorista e assessor Fabrício Queiroz. O texto abordava uma investigação ligada à operação Lava Jato que apontava, segundo um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf, movimentações financeiras de mais de R$ 1,2 milhão consideradas suspeitas por Queiroz. A investigação mais tarde desembocaria no caso das "rachadinhas". Desde 2019, Villavicencio citou Lula 9 vezes em seu perfil no Twitter — todas elas em tom crítico. Em janeiro de 2019, compartilhou reportagem sobre delação do "ex-ministro de Lula da Silva" Antonio Palocci, que havia relatado repassar propina paga pela Odebrecht em dinheiro para o atual presidente. Em diversos tuítes, Villavicencio pressionava autoridades para ter acesso ao conteúdo de uma suposta reunião entre Rafael Correa, Lula e Marcelo Odebrecht em 2006. Em sua menção mais recente ao brasileiro, em novembro de 2022, disse que Lula e Odebrecht ganhava com a falta de cooperação entre executivos da construtora e autoridades peruanas. A apenas 10 dias das eleições presidenciais antecipadas no Equador, Fernando Villavicencio foi morto a tiros após encerrar um evento de campanha na capital do país, Quito. Os disparos aconteceram por volta das 18h20, horário local, enquanto ele entrava em um veículo, ainda cercado por seguranças. Em 4 de agosto, sua campanha informou à imprensa que Villavicencio continuaria viajando pelo país, apesar das ameaças de morte que "continua recebendo de grupos criminosos". Pelo Twitter, após a confirmação do assassinato, o presidente equatoriano, Guillermo Lasso, disse que "o crime organizado foi muito longe, mas todo o peso da lei recairá sobre eles”. Lasso declarou estado de emergência nacional por 60 dias. A irmã de Villavicencio, Patricia Villavicencio, culpou o atual governo pela violência que acabou com a vida do político. "Eles não queriam que a corrupção fosse investigada. Eu amaldiçoo este governo. Não fizeram nada para protegê-lo. É uma conspiração", disse à mídia local.
2023-08-10
https://www.bbc.com/portuguese/articles/clm17zp484jo
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O que se sabe sobre assassinato de Fernando Villavicencio, candidato à presidência do Equador
Esta reportagem foi atualizada às 10h20 (horário de Brasília) desta quinta-feira (8/8). Fernando Villavicencio, candidato nas eleições presidenciais do Equador que fez campanha contra corrupção e gangues, foi morto a tiros em um comício de campanha. Membro da Assembleia Nacional do país, ele foi atacado ao deixar um evento na capital, Quito, na noite de quarta-feira (9/8). Ele é um dos poucos candidatos a falar claramente sobre as ligações entre o crime organizado e funcionários do governo no Equador. A gangue Los Lobos (Os Lobos) reivindicou a responsabilidade pelo assassinato. Fim do Matérias recomendadas Los Lobos é a segunda maior gangue do Equador, com cerca de 8 mil membros, muitos deles atualmente atrás das grades. A quadrilha esteve envolvida em uma série de confrontos mortais recentes em prisões, nas quais dezenas de detentos foram brutalmente mortos. Acredita-se que Los Lobos, uma facção dissidente da gangue Los Choneros, tenha ligações com o Cartel de Nova Geração de Jalisco (CJNG), com sede no México, para o qual trafica cocaína. A suspeita do assassinato recaiu primeiro sobre Los Choneros, que ameaçaram Villavicencio na semana passada — mas a facção Los Lobos assumiu a responsabilidade em um vídeo no qual membros usam balaclavas, exibem símbolos do grupo e brandem armas. Historicamente, o Equador é um país relativamente seguro e estável na América Latina, mas a criminalidade disparou nos últimos anos, alimentado pela presença crescente de cartéis de drogas colombianos e mexicanos, que se infiltraram em gangues criminosas locais. O assassinato de Villavicencio ocorre a menos de quinze dias das eleições presidenciais, nas quais a questão da insegurança aparece como a principal preocupação. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os cartéis usam o Equador, que tem uma boa infraestrutura e grandes portos, para contrabandear a cocaína produzida nos vizinhos Colômbia e Peru para os Estados Unidos e a Europa. Esses grupos ameaçam e visam qualquer indivíduo que entre no caminho deles. Villavicencio, deputado em exercício e ex-jornalista, condenou durante a campanha o que disse ser uma abordagem branda a respeito das gangues. Ele declarou que, se chegasse ao poder, aumentaria a repressão. Villavicencio, casado e com cinco filhos, era um dos oito candidatos no primeiro turno das eleições — mas ele não era um dos favoritos e estava no meio do pelotão nas pesquisas. Ele não é o primeiro político a ser assassinado no país. No mês passado, o prefeito da cidade de Manta foi morto a tiros, enquanto em fevereiro um candidato a prefeito da cidade de Puerto López foi alvo de um ataque mortal. Mas o assassinato de um candidato presidencial em um evento público na capital é o ataque mais descarado até agora e um testemunho chocante da força das gangues. Testemunhas dizem que Villavicencio foi alvejado quando saía de um evento de campanha por volta das 18h20 no horário local (20h20 de Brasília). O evento foi realizado no distrito financeiro de Quito, em um prédio que já abrigou uma escola. Uma rajada de tiros foi disparada quando o homem de 59 anos entrava em um carro do lado de fora do prédio onde, momentos antes, havia se reunido com os eleitores. O tio de Villavicencio, Galo Valencia, descreveu o momento em que seu sobrinho foi morto: "Estávamos a poucos metros da escola quando fomos atingidos por uma saraivada de cerca de 40 balas." Valencia disse que seu sobrinho foi atingido por três tiros na cabeça. Carlos Figueroa, outra testemunha, disse que "30 segundos depois que ele [Fernando Villavicencio] saiu pela porta principal, começaram os tiros". Um vídeo de dentro do prédio mostra apoiadores do candidato em pânico se escondendo. No caos, outras nove pessoas ficaram feridas, incluindo um candidato à assembléia do país e dois policiais, segundo os promotores que investigam o caso. Um suspeito do crime também foi baleado em uma troca de tiros com seguranças e depois morreu por causa dos ferimentos, disse o procurador-geral do país nas redes sociais. Seis pessoas foram detidas pela polícia na investigação sobre o assassinato, acrescentou ele. Um estado de emergência foi declarado e o atual presidente Guillermo Lasso prometeu que "o crime não ficará impune". Lasso, que não concorre na eleição, disse estar "indignado e chocado" com o assassinato. "O crime organizado percorreu um longo caminho, mas todo o peso da lei cairá sobre ele", acrescentou o presidente equatoriano. Líder nas pesquisas, Luisa González compartilhou uma mensagem de solidariedade com a família de Villavicencio. "Este ato vil não ficará impune", escreveu ela. O ex-vice-presidente e também candidato Otto Sonnenholzner enviou suas "mais profundas condolências e profunda solidariedade" à família de Villavicencio. "Que Deus o guarde em sua glória", escreveu. "Nosso país saiu do controle."
2023-08-09
https://www.bbc.com/portuguese/articles/clk3mv8r4z9o
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Os obstáculos enfrentados por mulheres que não querem ser mães e tentam laqueadura na América Latina
O sangramento começou às 22h do sábado, 22 de julho. Paula* (chilena, 30 anos) estava em casa. Ela pensou que era a sua menstruação, mas depois de um tempo se assustou. Havia muita dor e sangue. Resolveu ir para o hospital. Ao chegar, os médicos disseram a ela: "Você teve uma perda, um aborto espontâneo". Ela ficou completamente surpresa. A mulher nunca esperou tal notícia. Paula havia tomado a decisão anos atrás: não queria ser mãe em hipótese alguma. Fim do Matérias recomendadas As pílulas anticoncepcionais falharam e, mais uma vez, ela lamentou que nenhum médico quisesse fazer a esterilização cirúrgica, mais conhecida como laqueadura, um desejo que tinha desde os 18 anos. "Se minhas trompas tivessem sido amarradas, nada disso teria acontecido. Não foi uma experiência agradável e sinto raiva porque há anos procuro um profissional para me ajudar a realizar meu desejo de não ser mãe", disse à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, poucos dias depois de sofrer a perda. Paula representa milhares de mulheres na América Latina que não têm acesso à esterilização cirúrgica voluntária, mais conhecida como "laqueadura de trompas". Esse procedimento é mais de 99% eficaz na prevenção da gravidez, o que o torna um dos métodos mais seguros disponíveis. A Organização Mundial da Saúde (OMS), de fato, o coloca entre os poucos contraceptivos "muito eficazes". Além disso, não afeta os níveis hormonais do corpo (como fazem outros anticoncepcionais), o que para muitas mulheres é uma vantagem considerável, pois não tem "efeitos colaterais". A principal diferença em relação aos demais métodos de prevenção da gravidez – como pílulas, dispositivos intrauterinos, anel vaginal, adesivos, ampolas injetáveis ou preservativos ​​– é que é permanente e irreversível. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Isso pode ser um benefício importante para aquelas mulheres que decidiram não ter filhos porque nunca mais terão que se preocupar com isso: nem tomar pílula diária, nem trocar o aparelho todo mês, nem continuar gastando dinheiro com anticoncepcionais. No entanto, para muitos médicos é o principal motivo que os leva a evitar esse procedimento. Ainda mais se a mulher for jovem e não tiver filhos. Isso acontece mesmo em países onde o acesso ao procedimento é supostamente garantido por lei. Esse é um cenário que acontece no Brasil, apontam especialistas. Além disso, também ocorre situação semelhante em países como Colômbia, Argentina, México ou Chile. Nesses países latino-americanos, assim como no Brasil, essa cirurgia é considerada um "direito reprodutivo". Para promover a maternidade e paternidade responsáveis, a maioria desses países estabelece como requisito que a mulher seja maior de idade, que faça o pedido por escrito (assinando um consentimento informado) e que antes do procedimento seja submetida a aconselhamento em questões sexuais e saúde reprodutiva pelo médico assistente. Mas, de acordo com as mulheres e especialistas consultados pela BBC News Mundo, muitas vezes isso se traduz em uma série de obstáculos que dificultam muito o acesso à laqueadura. É o caso de Paula, que manifestou o desejo de ser esterilizada por três vezes, mas sempre obteve negativas nas orientações de seu médico. "A primeira vez que tentei foi aos 23 anos, na rede pública chilena. O médico me disse que não, que eu era muito jovem, que ainda não tinha saído da universidade, que ia mudar de ideia", conta. "Na segunda vez eu tinha 25 anos e a resposta foi a mesma: que eu não tinha maturidade para tomar essa decisão. E na terceira vez, há apenas 3 anos, me fecharam a porta categoricamente ao dizer que, se eu quisesse uma laqueadura, deveria pedir lá fora (em outro país)." A sua gravidez recente, embora sem sucesso, a deixa em estado de alerta. "Com os outros contraceptivos, sempre pode ocorrer falha. Esse é o problema", diz. "Eu já quero esquecer isso. E eu não posso", acrescenta. Um dos maiores problemas enfrentados pelas mulheres que desejam acesso gratuito a esse procedimento são as longas filas de espera existentes na maioria das instituições de saúde pública da América Latina. E a situação das mulheres que não têm filhos é ainda mais complexa. "No sistema público, as filas de espera são enormes e mulheres sem filhos não são prioridade. Por isso, são estimuladas a se cuidar com outros métodos anticoncepcionais", comenta o ginecologista-obstetra Gabriel Zambrano, do Centro Médico Itenü de Caracas, sobre a realidade venezuelana que se repete em vários países da região. De acordo com o último relatório da ONU sobre planejamento familiar, a pandemia de covid-19 agravou essa situação, reduzindo a disponibilidade e o acesso a serviços contraceptivos para mulheres, principalmente aqueles de ação irreversível, como a laqueadura. A ONU afirma que a realidade é pior em países de baixa e média renda, e entre os mais vulneráveis. Diante desse cenário, a esterilização voluntária acaba sendo muito mais acessível às mulheres que podem pagar por ela de forma privada. É o caso de Amanda Trewhela, uma chilena que aos 34 anos conseguiu a esterilização após solicitá-la por 16 anos. “No sistema público, ninguém queria me operar porque eu era muito nova ou porque não tinha filhos... Então fui parar no sistema privado. E é muito caro. Esse é o maior obstáculo de todos”, conta à BBC News Mundo. Amanda teve que pagar 4 milhões de pesos chilenos (aproximadamente R$ 23 mil). “Eles podem te dizer de tudo, as perguntas duríssimas. E é preciso enfrentá-los. Mas se não tiver dinheiro, vai tudo pro chão”, conta. Mas há também um problema cultural. Assim afirma Francisca Crispi, médica, acadêmica e presidente da Faculdade de Medicina de Santiago do Chile, que há anos estuda a questão dos direitos sexuais das mulheres. “Na América Latina existe uma questão de autonomia da mulher na relação médico-paciente. O preconceito de que a mulher não pode tomar decisões sozinha, de que ela é muito emotiva”, alerta. “Existe a ideia de que toda mulher deveria querer ser mãe e, se não quiser naquele momento, vai se arrepender depois”, acrescenta. Aliás, o ginecologista-obstetra Gabriel Zambrano afirma que "o maior medo que temos é que a mulher se arrependa... nós, os médicos, podemos ser acusados ​​de cortar a fertilidade de uma paciente". No entanto, para as mulheres consultadas pela BBC News Mundo, esse medo de arrependimento que os médicos têm muitas vezes faz com que seus direitos reprodutivos e liberdade de decisão não sejam respeitados. “Existe um julgamento em relação às mulheres em que nos infantilizam, nos fazem pensar que nossas decisões são precipitadas, sem pensar nelas”, diz Paula. Em meio a tudo isso, também estão os argumentos religiosos. “Existem centros que não fornecem certos benefícios contraceptivos por motivos religiosos, embora nesse caso a objeção de consciência não seja regulamentada”, diz Crispi. Por outro lado, ela assegura que, apesar de em muitos países a lei esclarecer que a mulher não necessita do consentimento do seu companheiro para fazer esse procedimento (é o caso da Argentina, Brasil ou da Colômbia, por exemplo), a realidade é que ainda existem centros de saúde que o pedem. “Temos muitos casos em que eles pedem a opinião do casal e isso acaba se tornando uma grande barreira”, diz. No Brasil, essa questão é recente: somente em março deste ano entrou em vigor a lei que dispensa o aval do cônjuge para fazer laqueadura para as mulheres e vasectomia para os homens. Essa nova regra também diminuiu de 25 para 21 anos a idade mínima para a realização desses procedimentos no país. A chilena Paula lembra que o consentimento do parceiro foi justamente uma das perguntas que recebeu quando manifestou o desejo de ter as trompas. “É como se seu marido fosse o dono de suas decisões. É um olhar muito arcaico e patriarcal porque é uma decisão pessoal”, diz. No caso da Espanha, a situação parece ser diferente. Segundo o Dr. José Cruz Quílez, presidente da Sociedade Espanhola de Contracepção (SEC), não há perguntas adicionais se uma mulher não teve filhos. "Aqui, se a mulher quiser a laqueadura, o procedimento é feito independentemente de ela ter sido mãe ou não", explica. "É um direito delas", acrescenta. Para Francisca Crispi, todas as barreiras existentes na América Latina são problemáticas, pois a contracepção é "dependente do tempo". “Se uma mulher for negada, pode significar que ela tem uma gravidez indesejada a curto prazo. Portanto, essa recusa a certos tipos de contracepção me parece problemática”, aponta. Esse cenário se torna ainda mais relevante se forem levados em consideração os números da ONU sobre gravidez indesejada: segundo a organização internacional, entre 2015 e 2019, ocorreram 121 milhões desse tipo de gravidez, o que representa 48% de todas as gestações. Dois anos depois de ser esterilizada, Amanda Trewhela diz que se sente "calma e feliz". Ela lembra que, ao entrar na enfermaria para fazer o procedimento, uma parteira de 50 anos a abordou para contar algo que ela jamais esquecerá. “Ela me disse: ‘Acho que o que você está fazendo é super valioso. Não cheguei a pertencer à sua geração que pode tomar essas decisões. Nunca quis ter filhos, mas ninguém nunca quis me operar. Eu vou cuidar de você aqui." Amanda afirma que ali entendeu que fazia parte de uma "comunidade de mulheres que convivem com essa dor dos obstáculos, das perguntas, como se fôssemos fracas emocional e hormonalmente". Ao acordar da operação, Amanda começou uma nova vida. “Senti uma tranquilidade infinita. Pensei: 'finalmente acabou'”. Paula vive uma realidade diferente hoje. Mal recuperada de seu recente aborto, ela garante que não tem mais energia para continuar tentando obter uma esterilização. "Talvez em alguns anos eu encontre alguém que pense que tenho idade razoável - e maturidade razoável - para que liguem as minhas trompas." "Enquanto isso, meu companheiro vai fazer vasectomia, porque para ele não há empecilhos, nem perguntam a idade dele, nem se teve filhos ou não", diz, com evidente desconforto.
2023-08-09
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c97pm77v10no
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O que antropóloga italiana aprendeu vivendo com seu bebê em comunidade na Amazônia
"Sou gringa para eles", diz com um sorriso a antropóloga italiana Francesca Mezzenzana. "Mas meu filho, todos o percebem como um runa (como são conhecidos povos indígenas que falam a língua quíchua)." Em 2015, quando seu filho tinha quatro meses, ela foi para a Amazônia equatoriana, viver em uma aldeia indígena com cerca de 500 habitantes. Essa experiência, que a marcou profundamente não só como acadêmica, mas como mãe, foi refletida no ensaio "Puericultura Amazônica", publicado no site Aeon. Mezzenzana é doutora em antropologia pela London School of Economics e é a pesquisadora principal do projeto Learning Natures no Rachel Carson Centre for Environment and Society em Munique, Alemanha. Ela descreveu à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, como o povo runa mostrou a ela "sutilmente, mas implacavelmente, que há mais de uma maneira de florescer como seres humanos". Fim do Matérias recomendadas No Dia Internacional dos Povos Indígenas, compartilhamos a experiência que ela nos contou na entrevista a seguir: BBC News Mundo - Por que você foi morar com seu bebê na comunidade runa? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Francesca Mezzenzana - Trabalhei na província de Pastaza, região amazônica do Equador, desde 2011. Meu companheiro é de lá e a primeira vez que fui morar na área ficamos por três anos. Desde então, vamos todos os anos por períodos de seis ou oito meses. Quando nosso filho nasceu, quisemos levá-lo para que a família o conhecesse. Não pensei muito nisso, mas as pessoas ao meu redor ficaram surpresas: "Como você vai para um lugar tão remoto?" Sim, a Amazônia equatoriana é remota, mas também é minha casa. Tenho parentes que moram lá, temos uma cabana. Então, para mim, foi uma decisão instintiva. BBC - Seu artigo fala sobre Digna, "uma mulher sábia que havia criado 12 filhos". Mezzenzana - Digna era a avó do meu marido. Faleceu há cerca de quatro anos. Ela só falava quíchua, teve uma vida incrível. Seu pai, que era um xamã muito conhecido na região, não a mandou para a escola. Ela cresceu sob uma disciplina dura, mas muito bonita também. Aprendeu a curar usando plantas, a andar pela selva e conhecê-la. Ela foi uma das pessoas que mais me ensinou no meu tempo no Equador. Foi uma das mulheres chamadas sinchi warmi, o que significa mulher forte e sábia. Ainda existem algumas, mas as mais velhas já estão indo embora e é muito triste porque com elas se foi toda uma forma de ver o mundo e viver. BBC - Você se lembra como foi o encontro entre Digna e seu bebê? Mezzenzana - Ela ficou muito feliz por termos ido e por ver essa criança que ela dizia ser "de dois mundos". Ela era muito carinhosa e queria cuidar dele, mas era muito cuidadosa comigo porque sentia que a forma de criar os filhos na Europa é muito diferente de como se faz na Amazônia. Ela tinha suas ideias sobre o que fazer com um bebê, mas sempre foi muito respeitosa. BBC - Você conta que ao vê-la colocando o filho no baby sling, o 'porta-bebês', ela reagiu com espanto. Como você se lembra desse momento? Mezzenzana - Foi muito engraçado. Eu tinha comprado um sling último modelo, tinha levado muito tempo escolhendo um, e quando a Digna me viu colocando meu filho nele (depois de muitas tentativas porque ele não queria e chorava), ela perguntou ao meu marido: "Por que ela está apertando a criança dentro disso? A criança não consegue mexer o rosto, só vê o peito da mãe." A maneira como ela abordou a situação não transmitia julgamento, mas parecia mais uma expressão de surpresa. Ela buscava compreender o motivo por trás do que eu estava fazendo. Fiquei um momento sem saber o que dizer, o que me levou a refletir: se a reação dela era de surpresa, isso significava que minha ação não era óbvia. Havia possivelmente uma influência cultural subjacente a isso. Agora, quem estava curiosa era eu, e novas dúvidas surgiram. BBC - O sling parte do conceito de proteger o filho do mundo exterior, enquanto os runa acreditam que as crianças precisam estar conectadas a esse mundo a seu redor. Eles, como você descreve, carregam as crianças nas costas ou no quadril para que elas possam observar o ambiente. Isso carrega consigo uma filosofia de vida, não é verdade? Mezzenzana - Sim, lembro-me que, quando comprei o sling, os sites que visitei ressaltavam seu papel ideal no desenvolvimento do vínculo entre pais e filho. Também era enfatizada a importância de proteger os bebês do excesso de barulho e estímulos visuais. Ao visitar a Amazônia ou qualquer outro lugar que não seja a Europa ou os Estados Unidos, é evidente que as crianças participam ativamente da vida social. Não há a concepção de que elas deveriam ser resguardadas da exposição ao mundo ou de que o mundo é avassalador demais para elas. Se você pensar bem, essa concepção de que o mundo sobrecarrega um bebê é algo curioso, uma vez que os seres humanos são animais que vivem inseridos no mundo. Mesmo quando consideramos os recém-nascidos, nas comunidades runa, eles estão ao lado das mães durante festas, visitas a outras casas e até na selva. BBC - Você ressalta a ideia que existe nas sociedades pós-industriais, de que as experiências na primeira infância desempenham um papel crucial no sucesso do desenvolvimento cognitivo e emocional. Como os runa encaram essa questão? Na minha visão, os runa possuem uma concepção muito mais flexível acerca do desenvolvimento humano, e não aderem a esse paradigma de que tudo o que ocorre nos primeiros anos de vida é determinante para o futuro. De fato, diversos psicólogos concordam nessa ideia, surgida nos últimos 50 a 60 anos: a crença de que o que transcorre nos primeiros três anos acarreta implicações significativas para o futuro de nossos filhos. Naturalmente, há fatores que podem exercer influência, mas não são irreversíveis. Estou lendo um livro, publicado há cerca de 20 anos, de um psicólogo que aborda essa ideia, que é muito forte em nossa sociedade, e diz que não há e nunca haverá um estudo que mostre a influência de algo que aconteceu nos primeiros anos de vida, 40 anos depois. Mesmo assim, é uma ideia pela qual somos obcecados. Uma das minhas preocupações é que toda essa ênfase nos primeiros anos tenha consequências muito duras, principalmente para as mães. Ela gera uma sensação de culpa nelas. BBC - Você conta que sua permanência com os runa repercutiu em sua vida como antropóloga e como mãe. Como? Mezzenzana - Naquela primeira viagem com meu filho, ele estava feliz. Essa experiência me ajudou a ver que existem outras maneiras de criar filhos. Isso me fez reconsiderar muitas coisas que na Itália, na Inglaterra, ou aqui na Alemanha, onde moro há muitos anos, são consideradas essenciais e se você não as fizer, você é uma mãe ruim ou seu filho terá problemas no futuro. Por exemplo, consegui deixar de lado a ideia de ficar atenta à criança o tempo todo por medo de que se não o fizer ela possa ter algum trauma. Cada vez que estou com os runas e meus filhos, vejo a importância de estar com outras pessoas, você sente que não está sozinho neste mundo, que tem que conviver com pessoas muito diferentes de você, com outras ideias e necessidades. E isso é mais importante do que se tornar excelente (em alguma coisa) ou se destacar dos outros. Meus parentes runa me lembraram disso. BBC - Você relatou que o jeito com que cuidava do bebê, interrompendo coisas que estivesse fazendo para atendê-lo ou mesmo antecipando necessidades dele começou a chamar atenção e a gerar reações da comunidade, que passaram a ficar preocupados. Como foi isso? Mezzenzana - Por muito tempo, os parentes, os vizinhos, me observavam. Dava para perceber que eu estava muito cansada, muito focada no meu filho e que não fazia outra coisa a não ser cuidar dele. Começaram a fazer piadas sobre esse amor infinito que tinha pelo meu filho. Uma das coisas que me disseram em tom de brincadeira foi: "Essas mamães gringas amam os filhos". Disseram ao meu filho coisas como: "Coitadinho, o que você vai fazer quando sua mãe morrer? Você estará sozinho neste mundo." Levavam ele a outros lugares para que não estivesse somente comigo, e o faziam com grande alegria. Jamais ouvi alguém me advertir: "Pare com isso, está prejudicando seu filho." Nunca me senti alvo de julgamento. Era como se estivessem me fazendo perceber que meu filho pertencia a todos, não apenas a mim. É fundamental destacar que os runa, assim como muitos povos indígenas amazônicos, ostentam uma profunda humildade e independência. Consideram absolutamente inapropriado impor aos outros o que acreditam ser correto fazer; seu respeito pelas escolhas individuais é notavelmente arraigado. Foi ao observar a forma como meu filho era tratado que comecei a ponderar sobre minhas próprias ações. Esse processo se desenrolou de maneira sutil, mas se revelou significativo. BBC - 'Coitadinho, o que você vai fazer quando sua mãe morrer?' é uma frase que, como você mencionou em seu artigo, pode soar inadequado para pessoas no Ocidente. Mas ela fez você pensar não apenas no dia em que teu filho não terá mais você por perto mas também sobre como expor crianças a emoções complexas como a tristeza. Os runas têm uma perspectiva distinta em relação à morte? Mezzenzana - Sem dúvida. As crianças runa são integradas à vida dos adultos; não existe tópico que seja tabu na frente delas. Essa abertura é notável; todos os assuntos são discutidos abertamente, e desde tenra idade as crianças aprendem sobre todos os aspectos. Lembro que, quando voltamos, meu filho tinha dois anos e meio e participamos de uma atividade coletiva para limpar a grama do cemitério. Meu filho indagou sobre aquele local, perguntando: "O que é este lugar?" Respondi: "É um cemitério", e então ele prosseguiu com mais questionamentos: "O que isso significa? Por que os mortos estão aqui? O que é a morte?" Lembro que a madrinha dele, de maneira simples, lhe explicou que todos nós, inclusive ela, um dia iremos morrer. Isso o impactou profundamente, pois ele entendeu o significado. Ele ficou sério e perguntou: "Mas como?" Minha comadre disse a ele: "Tudo o que vive tem um começo e um fim, assim como as plantas e nós". As crianças não são mantidas alheias ao tópico da morte. Uma das diferenças mais notáveis que meu marido observa entre europeus e runa é que, para nós, quando alguém falece, isso é visto como o fim do mundo. Já para os runa, faz parte da jornada que deve ser enfrentada; mesmo que seja triste, eles adotam uma perspectiva similar à dos budistas. Eles compreendem que a morte e a dor são aspectos inerentes à vida, e não me refiro ao conceito que têm disso, mas ao fato de que vivem isso. É um traço que admiro profundamente e que até me causa certo sentimento de inveja. E esse entendimento tem suas raízes na infância. BBC - Você conta que certa vez um vizinho levou teu filho para um passeio sem você saber, e quando teu marido viu você buscando o bebê frenéticamente, ele disse: "Pare de encher o saco das pessoas, a criança está bem". Mezzenzana - Isso ocorreu diversas vezes. Quando eu precisava fazer algo rápido, deixava o menino com o pai e alguém o levava para passear. Não vê-lo gerava ansiedade, e eu ia procurá-lo. Localizá-lo, porém, podia ser um desafio dadas as vastas distâncias na selva. Pedia que meu marido me ajudasse, mas ele recusava, explicando que a criança estava em boas mãos e que eu deveria confiar em pessoas que já tinham experiência com um número maior de filhos do que eu. Foi difícil aceitar, continuei procurando, mas depois disse para mim mesmo: você tem que confiar nas outras pessoas. Na primeira vez, fiquei com muita raiva. Foi muito difícil para mim entender como eles puderam levar meu filho de quatro meses por horas sem pedir minha permissão. Mas ele sempre voltou saudável, feliz e calmo. BBC - Seu marido é um membro dos runa, ele cresceu lá, viveu o que seu filho viveu. Mezzenzana - Depois de morar na Europa por muitos anos, ele entende minha ansiedade, mas naquela época não entendia. Ele cresceu cercado por muitas pessoas. Ele não via esse cuidado coletivo como algo estranho ou problemático. BBC - A criação, para o povo runa, é então um ato coletivo? Mezzenzana - Sim, porque, no final, essas crianças se tornarão as pessoas que cuidarão de seu povo e de sua selva. No caso dos runa, a criança é membro da comunidade e vai trabalhar para ela, vai viver em paz com os vizinhos. Essas comunidades são muito pequenas, há muita liberdade, as crianças andam pra todo lado, se chega a alguma casa, lhe dão comida. Todos se conhecem, são todos família, comunidade. BBC - Você descobriu que sua família runa parecia alheia à ideia de uma relação "mãe-filho exclusiva e dominante" e também à ideia de que as necessidades e desejos dos filhos devem ser atendidos "sempre e prontamente". Seu artigo fala sobre o conceito de "individualismo suave". Por quê? Mezzenzana - A ideia foi desenvolvida por uma antropóloga (Adrie Kusserow) que fazia pesquisas, em Nova York, com crianças de famílias da elite e crianças da classe trabalhadora. Ele descobriu que as crianças pertencentes à elite eram percebidas por seus pais como pessoas que precisavam de cuidados constantes, motivação permanente, como se fossem muito frágeis e seus egos tivessem que ser cultivados com frequência e delicadeza. Essa forma de atenção constante ficou muito naturalizada, a gente nem toma como problemática. Entre os runa, ninguém diz às crianças: "Muito bem!" ou "Você se saiu muito bem, estou muito orgulhoso de você!". Um entrevistador em um podcast me disse que isso parecia ser muito duro, mas não é. Essas crianças podem fazer tantas coisas, são tão independentes, têm tanta liberdade de movimento que não precisam que alguém diga: “Muito bem!”. Elas sabem que fazem isso muito bem. Sempre penso nas crianças que conseguem acender uma fogueira em dois minutos e ninguém as reconhece por isso, a fogueira é a demonstração do que são capazes de fazer. BBC - E esse "individualismo brando", você escreveu, promove a autoexpressão e o individualismo psicológico, e não é coincidência que essas sejam qualidades também promovidas na sociedade neoliberal. Mezzenzana - Os debates sobre como educar os filhos estão focados no desenvolvimento cognitivo das crianças com a ideia de que elas podem ser bem-sucedidas, mas todo esse sucesso não é para as crianças serem membros de uma comunidade, mas para seu desenvolvimento individual e sucesso no mercado de trabalho. Muitos desses debates falam sobre o cérebro, “como melhorar o desenvolvimento cerebral da criança”, mas não falam sobre as habilidades de estar com os outros, de cooperar, que são habilidades que vão ajudá-las mais tarde. A narrativa que conhecemos está focada em como melhorar a si mesmo para prosperar em termos de carreira e riqueza, para alcançarmos a felicidade. BBC - Você escreveu que fora das populações chamadas Weird (sigla inglesa para brancas, educadas, industrializadas, ricas e democráticas), as crianças são criadas por pessoas diferentes - que nem sempre são adultas. Sim, não são apenas avós ou tias que ajudam as mães a cuidar dos filhos. Também há outras crianças que ajudam a tomar conta de bebês. E isso é bem importante porque, para nós,, a ideia de que uma criança de 7 anos possa se encarregar, por algumas horas, de um bebê de seis meses, é tabu - e acho que ilegal também. Em minha experiência como pesquisadora, tenho visto que deixar um filho para assumir a responsabilidade de um irmão, um primo, confere a ele uma série de habilidades incríveis. Teríamos que repensar o que achamos que eles podem fazer. Pode um menino de 7 anos ter a responsabilidade de cuidar do irmão? E a resposta é que, na Amazônia, sim. Se trata de algo cultural. A gente tem a ideia dos bebês como extremamente frágeis e meu filho era levado pra cá e pra lá por outras crianças, eles carregavam ele e o abraçavam. BBC - Você também argumenta que fora do mundo pós-industrial, as crianças raramente são o centro da vida adulta. Qual foi a experiência com o povo runa? Mezzenzana - A criança participa de todas as atividades e, como qualquer outro membro da comunidade, não há a ideia de que o desejo de uma pessoa, mesmo de uma criança, possa influenciar o desejo de outras pessoas. Obviamente, se uma criança está muito doente, prevalece o bom senso, como em todos os lugares. Lembro que, porque tinha o bebê, queria que minhas viagens de canoa fossem rápidas, sem paradas e em horário certo por causa do calor. Todo esse planejamento em torno das necessidades, percebidas por mim, do meu filho, foi algo simplesmente incrível. Se meu filho estava bem, ele poderia viajar como os outros. Não precisava ter mudado tudo por causa dele. É muito interessante como, mesmo inseridas em um ambiente de carinho e cuidados, as crianças não ocupam o centro das atenções. Em vez disso, aprendem a se orientar a partir das ações dos outros. Dado que esse aprendizado se inicia precocemente, os frequentemente mencionados "terríveis dois anos" (a expressão popular 'terrible two' em inglês), não encontram eco nesse contexto, pois as crianças já estão imersas na ideia de que seus desejos são relevantes, mas que se há um contexto em que esses não podem ser atendidos prontamente por falta de tempo ou porque as pessoas têm outras necessidades, você terá que esperar e entender isso. De maneira notável, as crianças aprendem a discernir os contextos rapidamente. BBC - Você destaca que "aos olhos do povo runa, as crianças ocidentais crescem mimadas, excessivamente protegidas e despreparadas para lidar com o mundo ao seu redor". Mezzenzana - Uma das principais preocupações das comunidades runa na Amazônia é que, quando seus filhos ingressam na cidade, aprendem a viver com a população mestiça. E, quando eles têm seus próprios filhos, os educam à maneira mestiça. Para eles, a educação branca é excessivamente voltada para as necessidades individuais e não leva em consideração o papel social das crianças dentro da comunidade. Os avós sentem apreensão de que seus netos se tornem mimados. Na cidade, por exemplo, há uma concepção de que deixar as crianças brincarem muito é uma forma justa de educação - algo tido como sagrado. Porém, para a comunidade runa, a linha entre brincadeira e trabalho é sutil. Por exemplo, quando as crianças vão pescar, para elas é uma atividade lúdica, porém, ao mesmo tempo, é útil para suas famílias. O mesmo ocorre quando colhem frutas ou sobem em árvores; elas se divertem, mas também contribuem com a comunidade por meio do que trazem. Acredito que a noção das crianças como uma entidade separada, frágil e que requer cuidados próprios, desassociada da vida adulta, é o que inquieta as pessoas e as leva a perceber essas crianças como mimadas. Isso é resultado da falta de engajamento das crianças na vida social. BBC - Como foi o retorno (à Amazônia) com dois filhos? Mezzenzana - Na época, meu filho tinha 7 anos. Ele saía de manhã e só retornava à tarde. Eu não tinha conhecimento do que ele comia ou do que fazia, já que é esse o formato dos dias das crianças lá: passam o tempo em grupos, explorando a comunidade. Isso lhe proporcionava uma sensação agradável de independência e pertencimento a um grupo de colegas. Minha filha também adorou essa experiência, e ela tinha dois anos na época. Para mim, esse processo tem sido gradativo, e ao longo do tempo tenho me tranquilizado progressivamente.
2023-08-09
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1n0jk38evo
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O chocante assassinato de cirurgião colombiano esquartejado por filho de ator espanhol
Atenção: O texto contém detalhes que podem ser considerados perturbadores. Um crime chocou a população da paradisíaca ilha de Kho Phangan, no sul da Tailândia. Conhecida mundialmente por sua festa da lua cheia, onde as pessoas dançam até o amanhecer, a ilha agora está nas manchetes em todo o mundo por motivos totalmente diferentes. O espanhol Daniel Sancho Broncha, de 29 anos, foi preso na semana passada na ilha tailandesa acusado de conexão com a morte e esquartejamento do cirurgião colombiano Edwin Arrieta em um hotel de Koh Phangan. Ele é acusado de homicídio culposo e premeditado, além de ocultação e remoção de partes do corpo para ocultar cadáver ou a causa da morte. Fim do Matérias recomendadas Filho do renomado ator Rodolfo Sancho, que estrelou a série La Señora, Daniel Sancho trabalha como chef e estava de férias na Tailândia. Ele se declarou culpado nesta segunda-feira perante um tribunal tailandês pelo assassinato de Edwin Arrieta. Em declarações à agência de notícias espanhola EFE, Sancho afirmou ter sido "refém" de Arrieta e o acusou de estar obcecado por ele. "Ele me manteve refém. Era uma gaiola de vidro. Ele me fez destruir meu relacionamento com minha namorada, me obrigou a fazer coisas que eu nunca teria feito", disse. Mas quem foi Edwin Arrieta e o que se sabe sobre sua relação com Daniel Sancho? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Edwin Arrieta Arteaga, 44 anos, nasceu e cresceu em Lorica, município do departamento de Córdoba, no Caribe colombiano. Ele morava no bairro El Recreo, em Montería, capital do departamento. Como cirurgião, foi membro da Sociedade Colombiana de Cirurgia Plástica, Estética e Reconstrutiva (SCCP). A irmã o descreveu como uma “pessoa nobre e de coração generoso”, em declarações à rede local de notícias Caracol. "Ele era um excelente filho, um excelente irmão, tio, amigo. Uma pessoa que gostava de fazer trabalhos de caridade", disse Arrieta, em meio às lágrimas. “Seu sonho era conhecer o mundo inteiro, por isso Edwin passava o tempo viajando. Minha mãe sempre preocupada e dizia a ele: 'Edwin, pare de voar tanto.'” Em sua cidade natal, há comoção por causa do assassinato. "Lorica está abalada com o doloroso episódio da morte do cirurgião Edwin Arrieta Arteaga", escreveu o prefeito da cidade, Jorge Negrete, na rede social X, anteriormente conhecida como Twitter. Negrete decretou três dias de luto no município, em “consideração pela dor que se apodera dos loriqueros”. Operando principalmente mulheres na Colômbia e no Chile, Arrieta teve uma carreira de sucesso que lhe permitiu reunir dezenas de milhares de seguidores nas redes sociais. Segundo a imprensa colombiana, ele foi criado por uma “família trabalhadora”. Seu pai, Leobaldo Arrieta, se dedicava a consertar rádios e televisões, enquanto sua mãe, Marcela Arteaga, era professora. Seu amigo Deibys Palomino garante que seus pais fizeram um grande esforço para criá-lo: "Eles tiraram muitos empregos para lhe enviar comida", acrescentou em declarações ao jornal colombiano El Tiempo. Edwin Arrieta Arteaga estudou medicina em Barranquilla, antes de continuar seus estudos em Buenos Aires, onde se tornou cirurgião plástico. Na capital argentina adquiriu também o amor pelo polo. Depois de terminar seus estudos, ele voltou para sua Colômbia natal e se estabeleceu em Montería, uma cidade não muito longe da casa de seus pais. De acordo com seu site, ele tratou "pacientes geralmente saudáveis ​​que não se sentem confortáveis ​​com seus corpos". A história macabra de seu assassinato começou no dia 31 de julho, quando ele chegou à ilha tailandesa para curtir alguns dias com o amigo espanhol Daniel Sancho. Depois que os amigos passaram vários dias juntos curtindo a gastronomia e os atrativos turísticos de Koh Phangan, o colombiano desapareceu de repente. Foi o próprio Daniel Sancho quem denunciou o misterioso desaparecimento do amigo às autoridades tailandesas. Conforme relatado pelo Bangkok Post, os dois jantaram em um restaurante na ilha em 1º de agosto. Pouco depois, o espanhol foi flagrado por câmeras de segurança comprando facas, luvas de borracha, sacos de lixo e utensílios de limpeza em uma loja. Na quinta-feira, 3 de agosto, a mídia local informou que um coletor de lixo havia encontrado uma pélvis cortada e intestinos humanos escondidos em uma bolsa descartada em um aterro na ilha. Na sexta-feira, mais restos humanos foram encontrados em um saco plástico no mesmo lixão, com várias peças de roupa. As novas descobertas levaram os investigadores a questionar Sancho como suspeito naquela mesma sexta-feira. Sancho afirma que Arrieta decidiu acompanhá-lo na viagem, mas, segundo a polícia tailandesa, Edwin pagou todas as despesas. Alguns meios de comunicação tailandeses, como o Bangkok Post, noticiaram no fim de semana que os amigos mantinham um relacionamento amoroso e o crime havia sido passional, mas Sancho negou essa versão. Em suas primeiras declarações à imprensa, Daniel Sancho disse que o colombiano o enganou. "Ele me fez acreditar que o que ele queria era fazer negócios comigo, colocar dinheiro na empresa da qual sou sócio. Que iríamos fazer coisas juntos, que iríamos ao México, Chile, Colômbia, abrir um restaurante", ele disse. "Mas era tudo mentira. Ele só queria que eu fosse o namorado dele." A irmã da vítima, Darling Arrieta, disse ao Caracol Notícias que “é uma tortura” pensar no que aconteceu com seu irmão e no fato de que ele nunca poderá se defender das acusações do assassino. "Não sabemos se este homem o matou primeiro e depois fez isso com ele, ou se ele fez isso com ele vivo. É algo que nunca saberemos", disse ele. "Essa pessoa está usando a ausência do meu irmão, que não vai poder se defender, porque está falando muitas coisas, está sujando o nome do meu irmão, mas meu irmão não pode se defender." Segundo informações da agência Reuters, a polícia confirmou com análise de DNA que os restos mortais eram de Arrieta e acrescentou que tem provas contra Sancho.
2023-08-09
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cq52xw5kdxlo
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Cacique Raoni: 'Pedi a Lula para não repetir os erros do passado'
Uma fila se formou entre as mesas de um restaurante na área central de Belém e não era para chegar à comida. A fila seguia em direção à cadeira onde o cacique Raoni Metuktire aguardava pacientemente por um prato de peixe pedido havia quase meia hora. Um a um, em duplas, trios, os frequentadores matavam sua fome de foto. Raoni não negou um retrato. A cada pedido, ele fazia sinal de positivo com o polegar direito e sorria em silêncio. Aos 93 anos, Raoni parecia acostumado ao assédio digno de popstar. Raoni foi a Belém para participar das reuniões que antecederam a Cúpula da Amazônia, evento que começa nesta terça-feira (8/8) e que vai reunir presidentes e líderes de todos os países da região amazônica, além de outras nações convidadas. Fim do Matérias recomendadas Ao longo de sua história, Raoni já se manifestou contra madeireiros, grileiros e garimpeiros. Agora, sua atenção está voltada para o que considera ser um novo perigo dos povos indígenas: a exploração de petróleo na Amazônia. "Vou pedir para o Lula não explorar o petróleo na Amazônia", disse Raoni em entrevista exclusiva à BBC News Brasil. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O pedido será feito em meio a um momento delicado para o governo Lula. O petista convocou a Cúpula da Amazônia com o objetivo de obter uma posição conjunta dos líderes da região em torno de temas como a preservação ambiental. A ideia é que esses países cheguem unidos nas negociações da 28ª Conferência das Nações Unidas para as Mudanças Climáticas (COP-28), prevista para dezembro deste ano. O tema ganhou destaque em maio deste ano, quando o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) negou uma licença ambiental para a Petrobras perfurar um poço exploratório em um bloco localizado na bacia sedimentar da Foz do Rio Amazonas, na costa do Amapá. O órgão alegou que o plano de segurança apresentado pela estatal não era suficiente para que o poço fosse liberado. Lula, até agora, não se posicionou de forma enfática sobre o assunto. Questionado sobre o assunto em maio, ele disse achar "difícil" que a exploração de petróleo na bacia da Foz do Rio Amazonas prejudique a Amazônia. "Se explorar esse petróleo [da foz do Amazonas] tiver problema para a Amazônia, certamente não será explorado, mas eu acho difícil, porque é a 530 quilômetros da Amazônia", disse o presidente. A ambiguidade da posição brasileira sobre o tema chamou ainda mais atenção depois que, em julho, o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, defendeu publicamente o fim da exploração de petróleo na Amazônia. Membros do governo dizem que a área pode ser um novo "pré-sal" do Brasil e que o país não poderia abrir mão desse tipo de riqueza. Mas o argumento econômico não convence Raoni. Há expectativa de que ele se encontre com Lula nos próximos dias, durante a cúpula, e ele promete que vai falar com o presidente sobre o assunto. "Eu não vou apoiar o Lula nisso. Eu vou falar pra ele não fazer isso na Foz do Rio Amazonas. Vai estragar o peixe e o rio e isso não é bom", disse Raoni. Na entrevista, o cacique elogia o que considera como avanços na política indigenista do atual governo, e diz que os indígenas já teriam "perdoado" os governos do PT pela construção da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. Comunidades indígenas afirmam que a usina afetou o regime de pesca e causou danos à vida da população local. "Você fez muita coisa ruim e isso não pode acontecer com o atual governo", disse Raoni. Confira os principais trechos da entrevista: BBC News Brasil - Em uma carta assinada por entidades indígenas, vocês dizem que a única forma de combater as mudanças climáticas é escutar os povos indígenas. O que precisa ser escutado? Raoni Metuktire - Vou falar com os governos para manterem a floresta em pé. Eu já venho falando isso faz tempo, tanto para o governo brasileiro, quanto para fora. Até hoje, continuo falando. Se desmatar toda a mata, vai ficar muito quente. O clima vai ficar diferente e é um perigo para todos. BBC News Brasil - O senhor é respeitado no mundo todo. Países ricos prometeram bilhões de dólares para combater as mudanças climáticas, mas esse dinheiro ainda não começou a fluir. Qual o seu recado para os países ricos que prometeram dinheiro para combater as mudanças climáticas? Raoni - Hoje, os governos e as associações ambientais estão reunidas para discutir num fórum como esse. Vou falar a eles para pedirmos juntos aos países ricos para mandar dinheiro para a gente manter a floresta em pé. Vamos trabalhar apenas com projetos sustentáveis. É isso que estou querendo. Eu já tinha falado há muito tempo, venho trabalhando e venho pedindo, mas como esse evento é muito importante, vou aproveitar para pedir de novo. É bom os países ricos ajudarem os países em desenvolvimento para trabalharmos em projetos sustentáveis. Não queremos madeireiros, não queremos garimpeiros. BBC News Brasil - Nesta terça-feira, o senhor deve se encontrar com o presidente Lula. Parte dos países e da comunidade internacional não querem a exploração de petróleo na Amazônia. O que o senhor vai dizer ao presidente Lula sobre petróleo na Amazônia? Raoni - Eu não vou apoiar o Lula nisso. Eu vou falar para ele não fazer isso na Foz do Rio Amazonas. Vai estragar o peixe e o rio e isso não é bom. BBC News Brasil - Em uma frase, o que o senhor falará ao presidente Lula sobre petróleo? Raoni - Vou pedir para o Lula não explorar o petróleo na Amazônia. Se for (explorar) próximo a algum território, se ele quiser fazer isso, tem que fazer em algum outro lugar. Vou ter que falar isso para ele. BBC News Brasil - Por que o senhor é contra a extração de petróleo na Amazônia? Raoni - Se o governo quiser mexer com isso, meu medo é que quando a empresa for mexer nisso, que haja transformação no subsolo, problemas com a água. Meu medo é que se continuarem fazendo isso, eles possam causar danos ao ser humano. BBC News Brasil - O senhor entrou de mãos dadas com o presidente Lula na posse. Isso deu a impressão de que os povos indígenas apoiam o presidente. Mas o senhor é uma liderança do movimento indígena. Tem como ser líder indígena e fazer críticas ao presidente Lula? Raoni - Sim. Depois que a gente subiu a rampa, eu falei para ele: "Como já subi a rampa com você, quero te dizer pra você respeitar os indígenas, para receber as lideranças e, toda vez que for fazer alguma coisa, você tem que consultar a liderança indígena. Você tem que esquecer as coisas do passado. Você fez muita coisa ruim e isso não pode acontecer com o atual governo que você vai governar. Se você errar alguma coisa, vou chegar a você e falar". Aí ele falou para mim que, assim que ele errar alguma coisa, posso ir orientar e dar conselhos, pois ele iria me ouvir. BBC News Brasil - O senhor falou de erros do passado. Os povos do Xingu culpam os governos de Lula e da ex-presidente Dilma pela usina hidrelétrica de Belo Monte. Belo Monte foi o pior erro? Raoni - Ele (Lula) falou que isso é coisa do passado e que dessa vez ele iria apoiar os indígenas do Brasil. Foi isso que combinamos. BBC News Brasil - Mas os povos indígenas já perdoaram os governos do PT pelos danos causados por Belo Monte? O senhor perdoou Lula e Dilma por Belo Monte? Raoni - Sim, já perdoamos, mas eu falei para ele para não continuar com os erros do passado. Além de conversar com ele sobre esses trabalhos, eu fui lá na Europa pedir para as autoridades de fora para dar apoio para demarcar as terras indígenas. Isso foi falado ao presidente Lula. BBC News Brasil - O atual governo prometeu fazer a demarcação de várias terras e retirar invasores de terras indígenas. Como está a velocidade do governo para demarcar terras indígenas e retirar invasores? Raoni - Como eles prometeram durante a campanha, o governo está cumprindo sua palavra e está fazendo novas demarcações e retirando invasores. Eu estou gostando. BBC News Brasil - Há alguns meses, o congresso pressionou e retirou poderes do Ministério do Meio Ambiente e do Ministério dos Povos Indígenas. Dá para confiar num governo que cedeu nesses pontos ao Congresso? Raoni - Fiquei sabendo da situação dos ministérios. Eu queria trazer o presidente Lula para minha aldeia para falar sobre isso, (para falar) para ele ser forte, mas ele ficou no hospital e por isso ele não foi. Amanhã (terça-feira), eu vou falar com ele e ele tem que ser forte e enfrentar esse grupo pelo bem do povo indígena. BBC News Brasil - Nesta segunda-feira, um indígena da etnia tembé foi atingido por um tiro, no Pará. Por que os indígenas são alvo de tanta violência na Amazônia? Raoni - Há muito tempo, o filho de um branco foi pego pelos indígenas e foi maltratado. Aí, ele conseguiu escapar e falou para os brancos que era preciso acabar com os indígenas. [Nota da redação: após traduzir a primeira parte da fala do cacique, o tradutor informa que parte da resposta de Raoni foi dada em formato de lenda] Uma vez, fui a São Paulo com os irmãos Villas-Boas e eles me mostraram uma estátua e disseram que era para derrubá-la. [Nota da redação: a reportagem perguntou ao tradutor sobre a qual estátua Raoni se referia. Ele disse que, "provavelmente", era a estátua de um bandeirante, termo usado para designar pessoas que, no período colonial, foram responsáveis pela captura de indígenas com a intenção de escravizá-los] Era a estátua de alguém que odiava os indígenas. Uma das coisas que eu vou falar amanhã é que eles aloquem recursos urgentes para serem retirados os garimpeiros e madeireiros que praticam coisas ruins contra os indígenas. Temos que proteger os territórios dos madeireiros e dos garimpeiros. Vou cobrar os presidentes amanhã. [Nota da redação: Orlando, Leonardo e Cláudio Villas-Boas foram sertanistas brasileiros responsáveis pelo contato com diversas etnias indígenas no século 20 e foram considerados militantes importantes na defesa dos direitos indígenas no país]. BBC News Brasil - O senhor disse que fará críticas ao governo Lula quando necessário. Como o senhor analisa a política do ex-presidente Jair Bolsonaro? Raoni - Bolsonaro não pensa muito bem. Ele critica vocês, brancos, nós indígenas, praticamente falando que precisa fazer guerra para diminuir a quantidade de pessoas. Não gostei de Bolsonaro e ele não é uma boa pessoa. BBC News Brasil - Cientistas afirmam que a Amazônia está perto do ponto de não-retorno, um ponto a partir do qual seria impossível recuperá-la e que ela pode acabar. O senhor está otimista ou pessimista? O mundo vai conseguir evitar o ponto de não-retorno? Raoni - Muitas autoridades estrangeiras estão prometendo compromissos para frear esse problema. Muitas pessoas e muitas lideranças estão pensando como eu, e acredito que vamos conseguir. Mas tem muita gente que critica nós, indígenas, as lideranças. Se essas pessoas forem mais fortes do que nós, a gente vai ter problema para todo mundo.
2023-08-08
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cj5n3j0004po
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Por que Brasil é um dos protagonistas do novo boom de petróleo na América Latina
Embora possa parecer uma contradição, em meio à crise das mudanças climáticas, a produção mundial de petróleo aumentará nesta década, segundo a Agência Internacional de Energia (AIE). Os especialistas projetam que nos próximos anos o mercado internacional continuará demandando uma maior quantidade de petróleo bruto, embora antes do final desta década a tendência deva seja invertida, à medida em que as energias renováveis ​​ganham espaço sobre os combustíveis fósseis. Enquanto isso não acontecer, o ouro negro continuará girando os motores da economia internacional. Nesse contexto, a AIE estima que a produção mundial de petróleo aumentará em 5,8 milhões de barris por dia até 2028 — e cerca de um quarto dessa oferta adicional virá da América Latina. Quem serão os protagonistas desse novo boom? Brasil, Guiana e, em menor escala, Argentina, três países que lideram um novo capítulo na produção de petróleo da região. Deve ficar para trás a era dominada por nações como Venezuela, México, Equador e Colômbia que, por motivos diversos, reduzirão a oferta de petróleo bruto no mercado internacional nos próximos cinco anos, segundo a AIE. “É muito difícil para esses países reverter seu declínio”, disse à BBC News Mundo Francisco Monaldi, diretor do Programa Latino-Americano de Energia do Instituto Baker Institute, na Universidade Rice (nos Estados Unidos). Juntos, Guiana e Brasil serão os principais protagonistas do boom petrolífero latino-americano. A história do Brasil está ligada às descobertas subaquáticas. Sob três quilômetros de água e mais cinco de rocha e sal, o país extrai a fonte de combustível de um dos maiores campos de petróleo do mundo. A descoberta dessas jazidas do pré-sal mudou o destino do país, fazendo com que se tornasse o maior produtor de petróleo da América Latina em 2017, superando o México, que na época detinha a liderança. A Venezuela, que durante anos foi o ícone do petróleo na região, estava em um momento de uma crise tão profunda que sua produção havia entrado em colapso. Assim, nos últimos seis anos, o Brasil não parou de aumentar sua produção de petróleo até atingir 2,2 milhões de barris em 2022, o que lhe permitiu se tornar o oitavo maior produtor do mundo. Mas não se trata apenas da quantidade de barris por dia que cada país produz. Tanto o Brasil quanto a Guiana produzem petróleo bruto de forma mais eficiente e lucrativa que outros países. E quanto aos efeitos poluentes desse combustível fóssil, que é uma das principais causas da crise climática que o mundo vive, os dois países emitem uma quantidade menor de CO2 por barril produzido em relação à média mundial, argumenta Monaldi. Como muitos países se comprometeram a reduzir seu nível de emissões, é possível que no futuro esse tipo de óleo tenha uma demanda maior no mercado. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Com cerca de 800 mil habitantes, a Guiana é um dos menores e mais pobres países da América do Sul. Ou pelo menos era assim até 2015, quando a gigante norte-americana ExxonMobil descobriu a primeira de suas reservas comprovadas de petróleo bruto, estimadas em cerca de 11 bilhões de barris, nas profundezas do Oceano Atlântico. Aproveitando a forte demanda por petróleo que haverá nesta década, a produção da Guiana está em aceleração e acredita-se que até 2028 possa chegar a 1,2 milhão de barris por dia. Se as projeções se concretizarem, "a Guiana vai se tornar o país que mais produz barris por habitante no mundo, superando o Kuwait", explica Monaldi. Nesse cenário, a Guiana passaria de um país pobre a um país rico (considerando a riqueza per capita), dado o aumento espetacular de seu Produto Interno Bruto (PIB) — que no ano passado subiu 57,8% e este ano está previsto para 37,2 %. Como será distribuída essa nova riqueza da Guiana? Isso é algo incerto até agora. O governo afirmou que tentará evitar os erros cometidos por outros países petrolíferos no passado, embora com tanta riqueza jorrando do fundo do mar não seja fácil controlar o destino dos recursos gerados. Em terceiro lugar está a Argentina, que apesar de ter uma inflação superior a 100% ao ano e uma crise crônica de endividamento, sua produção de petróleo (e gás) tem crescido nos últimos anos. No centro desse desenvolvimento está o Vaca Muerta, um gigantesco campo localizado no noroeste do país que possui a segunda maior reserva do mundo em gás de xisto e o quarto maior em óleo de xisto. Ambos os recursos são extraídos em formato “não convencional”, como se chama os hidrocarbonetos que devem ser extraídos da rocha geradora pela técnica do fracking (ou fratura hidráulica). As projeções para o desenvolvimento da indústria do petróleo argentina são positivas. A AIE espera que a produção chegue a 700 mil barris por dia este ano e algumas estimativas sugerem que pode chegar a 1 milhão de barris por dia até o final desta década, segundo a consultoria Rystad Energy. No entanto, após 2030, as projeções apontam para um declínio porque a produção de petróleo convencional deverá continuar caindo e a produção de xisto não deverá ser suficiente para compensar. Se o cenário previsto se concretizar, o grande salto do comércio de petróleo duraria alguns anos, até chegar a níveis mais baixos de produção. Também é preciso levar em conta, dizem os especialistas, que a produção não convencional precisa de grandes investimentos de longo prazo. Isso exige garantia de estabilidade nas políticas do setor, algo que na Argentina é difícil de prever. Os líderes históricos da produção de petróleo na região ficaram para trás. No México, a produção atingiu o pico em 2004 e, desde então, caiu pela metade. Para tentar melhorar a situação, o governo de Andrés Manuel López Obrador tentou promover o desenvolvimento da Pemex, a estatal petrolífera, mas até agora não conseguiu os resultados esperados. Embora o governo tenha dado à empresa milhões de dólares em incentivos fiscais e outras ajudas financeiras, a Pemex não conseguiu se recuperar. Com mais de US$ 100 bilhões (cerca de R$490 bilhões) em dívidas, a Pemex é a empresa de petróleo mais endividada do mundo. "Além de ser uma empresa com fins comerciais, ela também opera com fins políticos", diz Diego Rivera, pesquisador associado do Centro de Política Energética Global da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. "A produção parou." Por sua vez, a PDVSA, empresa estatal venezuelana, teve uma forte queda, intimamente ligada à profunda crise econômica e política que afeta o país. A produção de petróleo venezuelano, a maior parte pesada e densa, despencou de 3,4 milhões de barris por dia em 1998 para 700 mil na atualidade. “O que está acontecendo na Venezuela é uma queda brutal que pode ser explicada por motivos que vão da negligência à corrupção”, destaca Rivera. Enquanto isso, no caso do Equador, projeções de especialistas apontam para uma queda dos atuais 460 mil barris por dia para 370 mil em 2028. Esse declínio atingiria duramente o país porque sua economia depende das receitas do petróleo mais do que qualquer outro país da América Latina. Enquanto isso, a Colômbia está se movendo em outra direção. O governo do presidente Gustavo Petro pretende avançar na transição energética do país, reduzindo gradativamente a produção de petróleo. Recentemente, foram concedidas licenças para projetos de energia renovável na província de La Guajira, com a expectativa de que a energia limpa produzida por aquela região forneça toda a eletricidade que o país necessita. A ideia é que esse tipo de projeto permita compensar a queda nas exportações de petróleo sem prejudicar a economia, mas alguns especialistas estão bastante céticos sobre a possibilidade dessa meta ser alcançada nos próximos anos. Por enquanto, não se sabe com que rapidez avançará a transição energética na região e até que ponto o mundo demandará petróleo a partir da próxima década. “Mas há muitos fatores que não podem ser controlados”, alerta Rivera, como, por exemplo, a invasão da Ucrânia pela Rússia ou pandemias. “O que temos certeza é que a transição energética será confusa, complicada e com muita volatilidade”, acrescenta. Mas, se as projeções da AIE para 2028 forem cumpridas, faltam poucos anos para que o pico de demanda termine, dando lugar a um novo cenário na produção mundial de energia. Para o período 2030-2050, o destino da América Latina estará intimamente ligado ao que ocorrer com a demanda dos mercados internacionais. Se o mundo atingir a meta de zero emissões líquidas até 2050, "a região vai se sair muito mal", diz Monaldi. Mas se formos ao outro extremo, ao cenário previsto pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), em que há um platô na demanda em vez de queda, "a América Latina se sairia muito bem, porque é a região com mais recursos petrolíferos do mundo, depois do Oriente Médio”, diz o especialista.
2023-08-06
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c88vyp88l2yo
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Por que 1 milhão de americanos se arriscam em turismo médico no México a cada ano
Os americanos costumam viajar para o México em busca de serviços médicos de baixo custo. Mas pechinchar na área da saúde pode ser arriscado. No fim de semana, quatro americanos foram sequestrados em Matamoros, no Estado de Tamaulipas, depois de viajar de carro para a cidade fronteiriça mexicana para fazer cirurgias plásticas, segundo parentes. Dois foram confirmados como mortos e dois sobreviveram. Cidades fronteiriças como Matamoros estão entre as mais perigosas do México. Os cartéis de drogas controlam grandes regiões do Estado de Tamaulipas e geralmente detêm mais poder do que a polícia local. Mas essas cidades são alguns dos principais destinos de turismo médico para dezenas de milhares de americanos — alguns que não têm dinheiro para pagar por cuidados de saúde nos EUA. Fim do Matérias recomendadas Os "turistas de medicina" mais experientes, que conhecem a região, aprenderam a tomar precauções, como registrar seu veículo no México, o que permite que eles troquem a placa por uma mexicana depois de entrar no país de carro para que fiquem mais discretos, e evitando passear por essas cidades a pé. Preço e proximidade fazem do México um dos principais destinos de turismo médico para os americanos. "É uma questão de economia", disse Néstor Rodriguez, especialista em estudos de imigração e professor de sociologia na Universidade do Texas em Austin. "Remédios e serviços são mais baratos no México, especialmente procedimentos odontológicos. Você pode limpar seus dentes ou fazer um implante por uma fração do custo do que você consegue nos EUA." A qualidade do atendimento geralmente corresponde ao que um paciente pode encontrar nos EUA, acrescentou, embora os Centros de Controle e Prevenção de Doenças tenham alertado sobre infecções de procedimentos cirúrgicos no México. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast De acordo com o Conselho Mexicano para a Indústria de Turismo Médico, quase um milhão de americanos viajam ao México para receber cuidados médicos a cada ano. A cidadã americana Taide Ramirez, de 58 anos, nascida no México, cruza a fronteira há mais de uma década para obter um tratamento mais barato para seu hipotireoidismo, uma viagem de duas horas e meia de sua casa em San Antonio até a fronteira de Eagle Pass/Piedras Negras. Embora ela tenha seguro de saúde patrocinado pelo empregador, ela diz que suas parcelas nos EUA são mais caras do que o tratamento no México. Ela disse à BBC que costuma dedicar um dia inteiro à viagem e nunca enfrentou problemas. Ainda assim, a segurança está em primeiro lugar. Ela não cruza à noite e vai direto para seus compromissos antes de retornar prontamente aos EUA. "Eu nunca vou sozinha. Sempre levo minha irmã comigo ou meu filho", acrescentou. Para muitas cidades fronteiriças, esse tipo de "turismo" está entre as indústrias que mais crescem. Em Nuevo Laredo, no Estado de Tamaulipas, algumas horas a noroeste de Matamoros, há ruas com dezenas de consultórios odontológicos e hotéis para viajantes que procuram atendimento médico. Em Tijuana, no Estado de Baja California, a apenas três minutos de carro ao sul da fronteira de San Diego, um centro médico de 33 andares foi inaugurado em novembro de 2022. Lançado como "o melhor centro de turismo médico do mundo", o NewCity Medical Plaza oferece atendimento em mais de 30 especialidades médicas, incluindo cirurgia estética, além de hotel e shopping center. O mais recente comunicado do Departamento de Estado dos EUA adverte contra viagens a Tamaulipas devido a crimes e sequestros, citando que ônibus de passageiros e veículos particulares podem ser um alvo. Outros Estados fronteiriços do México também têm avisos de viagem. Embora algumas cidades fronteiriças tenham se tornado hostis para imigrantes e requerentes de asilo que tentam entrar nos EUA, a violência contra americanos nessas regiões ainda é rara. O sequestro dos quatro americanos e a subsequente morte de dois é algo "fora do normal", disse Rodriguez. Mas isso é um lembrete de que a fronteira não é segura, disse Rodriguez. "Eu parei de ir."
2023-08-04
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0w13kndq4eo
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Como denúncia de doação de narcotraficante pode afetar presidente da Colômbia
Poucos dias depois do aniversário de um ano da posse de Gustavo Petro na Colômbia, o filho do presidente soltou uma bomba no meio político do país: segundo ele, dinheiro ilegal foi usado na campanha. A Procuradoria-Geral da República informou nesta semana que Nicolás Petro Burgos, filho mais velho do presidente e ex-deputado, afirmou ter recebido dinheiro para a campanha do pai de pessoas acusadas de tráfico de drogas. E que não só recebeu o dinheiro, como o usou para seu próprio enriquecimento e para uma campanha que supostamente ultrapassou os limites de financiamento permitidos pela lei eleitoral. Petro Burgos, preso desde sábado (29/7), decidiu colaborar com o Ministério Público — dirigido por um opositor do presidente — em troca da prisão domiciliar. No final da tarde, Gustavo Petro reagiu com um discurso: negou ter dado ordens para os crimes eleitorais, comparou o caso com as prisões e torturas que sofreu quando era guerrilheiro e atribuiu tudo à "perseguição" que o "governo da mudança" sofre com os poderes tradicionais. Fim do Matérias recomendadas "Não há quem possa acabar com este governo senão o próprio povo, e o mesmo povo deu ordem por maioria nas urnas: vamos embora até o ano de 2026", exclamou, sob aplausos. Petro chegou ao poder com a promessa de uma mudança nas velhas formas de poder. Ele foi um habilidoso e veemente político de oposição por 30 anos. Agora, da Presidência, ele enfrenta um caso que parece contradizer toda a sua carreira política. Entenda em três pontos o caso de Nicolás Petro. Aos 37 anos, Burgos era uma figura em ascensão na política de Atlântico, o departamento (Estado) mais rico do Caribe colombiano e palco tradicional de clientelismo e corrupção no país. O filho do presidente nasceu em 21 de junho de 1986 no município de Ciénaga de Oro, na savana caribenha, do casamento de Petro com Katia Burgos, sua primeira esposa. Embora eles tenham desenvolvido uma relação próxima já quando adultos, o próprio presidente Petro admitiu que não esteve presente durante a criação do filho, porque ele estava na clandestinidade como guerrilheiro do grupo M19. Petro Burgos fez sua vida no Caribe. Lá, o jovem estudou Direito e se especializou em Meio Ambiente. Depois morou em Barcelona e finalmente se estabeleceu em Barranquilla, a capital do departamento de Atlântico. E desde que sua ex-esposa Day Vásquez denunciou em março que Nicolás havia recebido dinheiro ilegal para a campanha, a mídia local o investigou e descobriu que seus gastos não eram o que um representante regional pode pagar: ele tinha carros e apartamentos suntuosos, além de gastar grandes somas em lojas de luxo. Durante a última campanha presidencial —a terceira em que Petro participou— Petro Burgos desempenhou um papel central na busca de alianças e financiamentos, um exercício que no Caribe inevitavelmente implica em confronto com poderes questionáveis. Estima-se que pelas acusações que admitiu — enriquecimento ilícito e lavagem de dinheiro — Nicolás Petro pode receber uma pena entre 10 e 30 anos, dependendo da sua colaboração e da gravidade dos crimes comprovados. "Petro Burgos prestou informações relevantes que, até agora, o Ministério Público desconhecia", disse o investigador do caso, Mario Burgos. "Dentre eles, destacam-se o financiamento da campanha presidencial passada do atual presidente e o dinheiro que entrou nessa campanha, que, aparentemente, teria ultrapassado os limites mínimos da lei." Segundo a Promotoria, Petro Burgos admitiu que o dinheiro foi doado por dois homens: Samuel Santander Lopesierra, conhecido como "Homem do Marlboro", que foi extraditado para os Estados Unidos por tráfico e contrabando de drogas, cumpriu pena e voltou ao país em 2021; e Gabriel Hilsaca, filho de "El Turco" Hilsaca, empresário investigado por ligações com grupos armados. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Segundo Vasquez, Petro Burgos recebeu até 1 bilhão de pesos (R$ 1,5 milhão) dessas pessoas. O promotor afirma que "parte desse dinheiro foi usado por Petro Burgos e seu sócio em benefício próprio e outra parte foi investida na campanha presidencial". Durante esses meses, o caso foi se expandindo. De acordo com o site La Silla Vacía, cerca de 15 funcionários e políticos estão sendo investigados, não apenas por recebimento de dinheiro ilegal, mas também por acordos políticos que possam ter surgido com as transações. Em junho, a revista Semana publicou gravações de áudio privadas do homem mais próximo de Petro durante a campanha, Armando Benedetti, nas quais apontava para o possível recebimento de até 15 bilhões de pesos (R$ 20 milhões) para a campanha, cifra três vezes maior do que o estabelecido pela lei eleitoral. Bendetti foi nomeado embaixador na Venezuela pelo Petro, mas teve que renunciar devido ao escândalo. Sua colaboração com a Justiça pode trazer novas revelações. Na verdade, o caso está apenas começando. A grande questão para os colombianos é como isso tudo pode afetar um presidente que chegou ao poder com a ideia de mudar a política — tendo sido o primeiro presidente verdadeiramente de esquerda do país. Petro está obtendo alguns resultados: a economia está melhor do que o esperado, as baixas militares e os homicídios caíram ligeiramente como resultado de suas iniciativas de paz, e comunidades e regiões historicamente excluídas foram reconhecidas. No entanto, um ano depois de chegar à presidência, suas grandes promessas não foram cumpridas: as reformas da saúde, trabalho e pensões não foram aprovadas, os seis processos de paz com grupos armados são considerados fracos e a crise política em seu gabinete e coalizão tem sido mais a regra do que a exceção. Agora vem um escândalo que, além de afetar um de seus seis filhos, pode fazer com que ele concentre a maior parte de suas energias em se defender para ficar no cargo. O caso de financiamento ilegal, além de ser investigado pelo Ministério Público, passará pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE) e pela Comissão de Denúncias do Senado. No primeiro, Petro — que em 2018 havia dito que "um único voto obtido por fraude anula uma eleição" — não pode ser removido do poder, já que o CNE só pode investigar dirigentes de campanha. Mas no Senado a situação é diferente: como ocorreu durante o governo de Ernesto Samper (1994-1998), a Comissão de Denúncias pode levar o presidente a um julgamento político. No caso de Samper, o então presidente foi absolvido pelo Senado, mas seu governo progressista — que prometia mudanças menos drásticas que Petro e tinha muito menos simbologia histórica — acabou ali. Agora Petro enfrenta um cenário semelhante. Nesta ele já indicou que vai denunciar tudo como sendo uma grande perseguição. A briga política na Colômbia está recém começando.
2023-08-04
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c513xm4g9pzo
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O fóssil encontrado no Peru que pode ter sido do animal 'mais pesado que já existiu'
Cientistas descobriram no Peru fósseis de um animal que pode ter sido o mais pesado de todos os tempos no planeta Terra. Trata-se de uma baleia antiga e há muito extinta que pesaria cerca de 200 toneladas. Apenas alguns dos maiores espécimes de baleia azul podem ter rivalizado com seu peso, dizem os pesquisadores. Os ossos fossilizados do animal foram desenterrados no deserto no sul do Peru — que, por isso, recebeu o nome de Perucetus colosso. A datação dos sedimentos ao redor dos ossos sugere que o animal viveu há cerca de 39 milhões de anos. Fim do Matérias recomendadas "Os fósseis foram realmente descobertos há 13 anos, mas por causa de seu tamanho e forma foram necessários três anos apenas para levá-los a Lima (capital do Peru), onde foram estudados desde então", explica Eli Amson, da equipe de descoberta liderada pelo paleontólogo Mario Urbina. Dezoito ossos foram recuperados do mamífero marinho, que é um tipo primitivo de baleia conhecido como basilosaurídeo. Isso inclui 13 vértebras, quatro costelas e parte de um osso do quadril. Mas mesmo considerando a idade dos fragmentos e o fato de eles estarem repartidos em pedaços, os cientistas conseguiram decifrar muitas coisas sobre a criatura. Ficou evidente que os ossos eram extremamente densos, resultado de um processo conhecido como osteosclerose, no qual as cavidades internas são preenchidas. Os ossos também eram maiores do que o normal, consequência de outro processo, chamado paquiostose. Essas não eram características de doenças, disse a equipe, mas sim adaptações que teriam dado a essa grande baleia o poder de flutuar e procurar comida em águas rasas. Características ósseas semelhantes são vistas, por exemplo, em peixes-boi modernos, ou vacas marinhas, que também habitam zonas costeiras em certas partes do mundo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Cada vértebra pesa mais de 100 kg, o que é completamente alucinante", diz Rebecca Bennion, do Instituto Real Belga de Ciências Naturais, em Bruxelas, que trabalhou na pesquisa. "Foram necessários vários homens para movê-las para o meio do solo no museu para que eu fizesse uma digitalização 3D. A equipe perfurou o centro de algumas dessas vértebras para calcular a densidade óssea. O osso era tão denso que quebrou a furadeira na primeira tentativa." Quando confrontados com um esqueleto de uma espécie há muito extinta, os cientistas usam modelos para tentar reconstruir a forma do corpo e a massa do animal. Eles fazem isso com base no que sabem sobre a biologia de criaturas vivas comparáveis. Prevê-se que o Perucetus teria tido de 17 a 20 metros de comprimento, o que não é excepcional. Mas sua massa óssea estaria entre 5,3 e 7,6 toneladas. E quando se adiciona órgãos, músculos e gordura, o animal pode ter pesado — dependendo das estimativas — algo entre 85 e 320 toneladas. Amson, curador do Museu Estadual de História Natural de Stuttgart, na Alemanha, acredita que o peso médio era de 180 toneladas. As maiores baleias azuis registradas durante a era da exploração comercial estavam nessa escala. "O que gostamos de dizer é que o Perucetus está no mesmo campo que a baleia azul", disse ele à BBC. "Mas não há razão para pensar que nosso espécime era particularmente grande ou pequeno; provavelmente era apenas parte da população em geral. Vale a pena ter em mente que, quando usamos a estimativa mediana, ela já está em faixas superiores ao que as baleias azuis podem medir." Um dos fósseis usados pelos cientistas como parâmetro de comparação é uma baleia azul que é muito familiar para quem já visitou o Museu de História Natural de Londres. Apelidada de Hope, o esqueleto desse animal ganhou destaque na instituição quando foi pendurado no teto do salão principal em 2017. Mas antes de ser instalado, o esqueleto foi digitalizado e descrito em grande detalhe — o que agora é um importante recurso de dados para cientistas de todo o mundo. Em vida, a massa esquelética do Perucetus teria sido duas a três vezes maior que a da Hope, embora o mamífero londrino fosse uns bons cinco metros mais longo. Richard Sabin, o curador de mamíferos marinhos do Museu de História Natural, está entusiasmado com a nova descoberta e adoraria levar algumas partes dela para exibição em Londres. "Dedicamos um tempo para digitalizar Hope — para medir não apenas o peso dos ossos, mas também sua forma, e nossa baleia agora se tornou uma espécie de pedra de toque para as pessoas", disse ele. "Não nos prendemos a rótulos — como 'qual era o maior espécime?' — porque sabemos que a ciência em algum momento sempre virá com novos dados. "O que é incrível sobre o Perucetus é que ele tinha tanta massa há mais de 30 milhões de anos, quando pensávamos que o gigantismo ocorreu em baleias apenas 4,5 milhões de anos atrás."
2023-08-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c06er34pne3o
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'Deep tech': o que é tecnologia profunda e por que Brasil está em 2º em ranking latino
Tudo começou como uma pequena startup na Costa Rica dedicada a inovar na área de implantes mamários. Mas hoje a Establishment Labs é uma empresa listada na Bolsa de Valores de Nova York Nasdaq com uma avaliação de mercado de US$ 1,8 bilhão. Usando inteligência artificial, a chilena NotCo está substituindo alimentos de origem animal por alternativas à base de plantas, enquanto a empresa argentina Bioceres se dedica a revolucionar a forma como os alimentos são cultivados. Na área de tecnologia espacial, a empresa argentina Satellogic cria constelações de satélites de alta resolução e baixo custo para observar a Terra. O que essas empresas têm em comum? Elas fizeram descobertas científicas ou criaram inovações tecnológicas consideradas verdadeiramente disruptivas. Ao contrário de outras empresas que desenvolvem aplicativos para smartphones ou inovações para um produto ou modelo de negócios, essas startups fazem inovação tecnológica pura, conhecida como deep tech ou tecnologia profunda. Fim do Matérias recomendadas “Estamos vendo uma explosão de inovação de Big Tech na América Latina”, diz Ignacio Peña, autor do estudo Deep Tech: a nova onda, do BID Lab. “É algo inédito em sua magnitude”, disse o pesquisador à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC. "A tecnologia permite que você faça coisas que não eram possíveis antes, como diagnosticar câncer com uma gota de sangue." A biotecnologia responde por mais de 60% da inovação de tecnologia profunda na região, seguida pela inteligência artificial, com 11%. Existem outros setores emergentes com menos desenvolvimento, como nanotecnologia, tecnologias limpas, tecnologia espacial, mobilidade avançada ou robótica. Algo interessante que aconteceu nos últimos anos, explica Peña, é que os custos de algumas dessas inovações caíram, abrindo caminho para que elas se disseminem. A maioria das startups de deep tech na região está na Argentina, Brasil e Chile, países que representam 80% do total latino americano. Por valor de mercado, a liderança é ocupada pelos mesmos três países mais a Costa Rica. A Argentina tem o maior número de startups de deep tech na região (103 startups, 30% do total, principalmente em estágios iniciais de desenvolvimento). Foi o berço da Auth0, empresa de cibersegurança vendida em 2021 por US$ 6,5 bilhões , que alcançou o maior valor da história entre as startups de deep tech da região. No país sul-americano, duas em cada três empresas se dedicam à biotecnologia, enquanto a empresa Satellogic lidera o emergente setor de tecnologia espacial. Uma das políticas que tem impactado positivamente no desenvolvimento da tecnologia profunda no país está relacionada à Lei do Empreendedorismo de 2017 e ao grande número de fundos de capital de risco que têm investido em empresas nascentes. Com 101 startups emergentes, o Brasil ocupa o segundo lugar na região em desenvolvimento de deep tech, quase no mesmo nível da Argentina. Embora o número não seja tão surpreendente em relação ao tamanho do país, as startups brasileiras têm alcançado um alto valor de mercado. De fato, 37 empresas valem mais de US$ 10 milhões e o setor de biotecnologia representa mais da metade das empresas. O Brasil tem grande potencial de crescimento, tendo em vista que concentra quase 80% dos pesquisadores da região, mais da metade das patentes e 40% do total de investimentos de capital de risco da América Latina. As startups chilenas que desenvolvem tecnologia profunda acumulam o maior valor de mercado de toda a região, apesar de sua economia ser menor que a do Brasil e da Argentina. Juntas, as chilenas estão avaliadas em cerca de US$ 2 bilhões, um quarto do valor total dessas empresas em toda a região. O Chile tem 3,4 startups por milhão de habitantes, sinal de que o setor conquistou uma boa posição em nível regional. A NotCo, empresa que utiliza tecnologia artificial para desenvolver seus alimentos, é a mais bem-sucedida do país no setor de Deep Tech. Embora mais da metade das empresas estejam no setor de biotecnologia, a inteligência artificial lidera a tecnologia avançada do país em termos de valor, principalmente devido ao rápido crescimento da NotCo. Já a Costa Rica aparece no mapa da deep tech devido ao sucesso da startup mais valiosa da região: a Establishment Labs, que concentra 97% do valor de mercado do setor naquele país. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Duas das maiores economias da região, México e Colômbia, estão atrasadas no desenvolvimento de startups de deep tech, com uma das menores concentrações desse tipo de empresa na América Latina. É surpreendente que o México, com um grande setor de manufatura e capital de risco, mal tenha 0,2 startups de tecnologia profunda por milhão de habitantes. Assim como o México, a Colômbia também tem apenas 0,2 startups por milhão de habitantes, com apenas nove empresas dedicadas à tecnologia profunda. Na América Latina, as estimativas indicam que a biotecnologia continuará liderando o setor de deep tech devido ao vínculo direto da região com a agricultura e a produção de alimentos, sua biodiversidade e um número significativo de profissionais dedicados a esse campo. E embora ainda haja um longo caminho a percorrer, "há uma grande oportunidade de crescimento", diz Marcelo Cabrol, chefe de Escalabilidade, Conhecimento e Impacto do BID Lab. "Isso não é ficção científica. A tecnologia profunda vai melhorar a vida da maioria da população.”
2023-08-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy9q1l7w90jo
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Como briga por fatia de melancia levou à primeira intervenção dos EUA no Panamá
Com o xingamento “Vá à *****!”, um americano provocou uma revolta que se tornou um ponto de virada na história do Panamá. Esse americano era um dos chamados flibusteiros, uma espécie de mercenário disposto a fazer o "trabalho sujo" para conseguir riquezas, seja com a corrida do ouro no oeste dos Estados Unidos ou também em territórios estrangeiros do Caribe e da América Central. Eles partiram de cidades como Nova York ou Boston junto com imigrantes que viajaram para o Istmo do Panamá - uma estreita porção de terra que liga a América do Norte e a América do Sul e que naquele momento fazia parte de Nova Granada - em uma viagem de milhares de quilômetros até a Califórnia. Na rua La Ciénega, na ainda rural Cidade do Panamá, o flibusteiro Jack Oliver insultou José Manuel Luna, um vendedor de melancias, em 15 de abril de 1856. "Cuidado, aqui não estamos nos Estados Unidos", respondeu o panamenho ao insulto fácil de Oliver, que se recusou a pagar cerca de 5 centavos de dólar pela fatia de melancia que comeu. Fim do Matérias recomendadas Mas o que poderia ter sido um confronto de rua irrelevante foi, na verdade, o reflexo de uma situação social em ebulição. "É preciso entender que o significado mais profundo do incidente da fatia de melancia é a manifestação de um primeiro movimento para dignificar um povo humilhado. Isso é o mais importante", explica à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, Hermann Güendel, especialista em estudos latino-americanos da Universidade Nacional da Costa Rica e autor de uma análise sobre o assunto. A revolta desencadeada durou três dias, resultando na morte de 16 americanos e dois panamenhos, além de algumas dezenas de feridos em ambos os lados. Mas daquele momento em diante, o chamado "incidente da fatia de melancia" foi capitalizado por Washington para iniciar uma ocupação da passagem estratégica entre o Pacífico e o Atlântico no futuro Canal do Panamá. Desde a década de 1840, os Estados Unidos tiveram uma presença estratégica no Istmo do Panamá, onde o rio Chagas era a passagem para atravessar do Pacífico ao Atlântico sem a necessidade de contornar todo o continente. Os EUA assinaram o Tratado Mallarino-Bidlack com Nova Granada (que incluía Colômbia, Venezuela, Equador e Panamá) em 1846, garantindo a seus cidadãos e interesses econômicos um tratamento privilegiado ao passar pelo istmo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Em princípio, isso parecia à população panamenha naquela época uma oportunidade de ouro para o crescimento econômico. Eles esperavam transporte, hospedagem, comida. Mas o fato foi que rapidamente tudo isso ficou nas mãos dos próprios americanos", explica Güendel. A rota de trem da empresa Panama Canal Railway substituiu as viagens em barcos panamenhos. Os albergues e refeitórios que estavam abrindo nas cidades de Colón e Cidade do Panamá também ficaram nas mãos dos americanos. Além disso, os panamenhos começaram a notar atitudes arrogantes dos americanos, que se escondiam atrás do tratado de 1846 para agir com muitas liberdades. "Nos EUA já se desenvolvia a filosofia do Destino Manifesto, pela qual eles são considerados os responsáveis ​​por trazer a civilização para a América", diz Güendel. "Quando os americanos chegam, eles trazem essa concepção do mundo, da América Latina, e isso os levou a um tratamento arrogante e debochado da população, de suas leis e das autoridades de Nova Granada", acrescenta. Em 15 de abril de 1856, entre os viajantes americanos que chegaram ao Panamá estava Jack Oliver. O homem estava acompanhado por outros flibusteiros. Era comum que alguns deles "aproveitassem sua curta estada para satisfazer seus vícios em casas de jogo e tabernas", como descreveu o historiador Juan Bautista Sosa em seu livro Compêndio da história do Panamá (1911). Em aparente estado de embriaguez, Oliver foi até a barraca de José Manuel Luna e pegou um pedaço de melancia. Depois de comê-lo pela metade, jogou-o no chão e, ao tentar sair, o vendedor exigiu o pagamento. Mas Oliver recuou e ergueu a arma. Luna pegou uma faca de sua barraca, conta Sosa. Um colega de Oliver optou por pagar pela fatia de melancia, o que acabaria com o problema. Mas um homem, identificado como Miguel Abraham, aproveitou o momento para roubar a pistola de Oliver, o que deu início a uma perseguição por parte dos americanos. "Eles perseguiram o ladrão dando tiros", relata Sosa. Percebendo isso, os panamenhos próximos se envolveram na defesa de Abraham e Luna e a briga virou generalizada. O confronto avançou na direção da estação de trem, onde Oliver se entrincheirou. Coincidentemente, chegava um trem com mais de 900 passageiros, entre homens, mulheres e crianças. A guarda panamenha entrou em ação por ordem do governador Francisco de Fábrega. Eles abriram fogo para repelir os tiros vindos da estação de trem, que acabou sendo protegida. Mas a briga resultou na morte de 16 americanos e 2 panamenhos, além de feridos em ambos os lados. Washington não ficou de braços cruzados. O governo instruiu o diplomata e agente Amos B. Corwine a investigar o ocorrido. Ele apresentou um relatório em 8 de julho de 1856, baseado em "depoimentos coletados de testemunhas do ataque e outros documentos de apoio", conforme registrado nos Arquivos Nacionais dos Estados Unidos. Corwine, no entanto, não mencionou que a origem do incidente foi o delito de Oliver. Pelo contrário, recomendou a ocupação militar dos pontos estratégicos na passagem do Istmo. "Em seu relatório, ele aponta que tudo foi por causa da brutalidade dos negros, independentemente do que disseram os cônsules britânico, francês e equatoriano, que a culpa foi dos americanos", explica Güendel. O pesquisador observa que nos EUA o incidente foi analisado de forma depreciativa, como na capa do jornal New York Illustrated, que relatou o ocorrido de forma muito parcial. "A ilustração mostra um grupo de selvagens africanos, seminus, com facões, atacando cavalheiros americanos brancos, com suas famílias e filhos. Essa é a concepção, uma relação com os selvagens”, aponta. Dois navios e 160 militares assumiram o controle do território de Nova Granada por três dias em setembro de 1856, dando origem à primeira de uma dezena de intervenções militares dos Estados Unidos no Panamá. Para resolver as diferenças, os EUA e Nova Granada convocaram uma comissão mista para debater a situação. Um dos resultados foi o pagamento de US$ 412.349 em ouro por Nova Granada, além de garantias sobre os interesses americanos no Istmo. "Isso obriga Nova Granada a declinar da autonomia do Panamá e Colón em favor dos americanos. E os cerca de US$ 400.000, cerca de US$ 2 bilhões agora, nunca chegaram às famílias dos americanos mortos. O grande vencedor de tudo isso foram os EUA graças à capacidade de lidar com esta situação", diz Güendel. No fundo, aponta o pesquisador, o acordo entre as partes não resolveu uma situação de opressão social que começou anos antes do incidente envolvendo a fatia de melancia. "O incidente foi uma catarse para um povo que se sentia humilhado, maculado, como forma de se libertar daquele sentimento a que estava sendo submetido pela presença americana. Por isso o incidente foi uma causa nacional", afirma o acadêmico. "E no final foi também uma justificativa para a ocupação militar que ao longo dos anos vai consolidar a presença dos EUA no canal e os 5 km de cada lado do canal que passaram a ser propriedade dos EUA", acrescenta. O controle pelos americanos da passagem entre o Atlântico e o Pacífico duraria mais de um século e meio, até o último dia de 1999, já quase um século após a inauguração do Canal do Panamá.
2023-07-31
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1ee2geeyvo
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Três razões para o aumento de investimento externo na América Latina – e por que Brasil lidera o ranking
Em 2022, na contramão do que ocorreu no resto do mundo, o investimento estrangeiro direto na América Latina e no Caribe cresceu e atingiu um recorde histórico: US$ 224,579 bilhões (R$ 1,06 trilhão), 55,2% a mais que no ano anterior, segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). O montante surpreende também porque vai contra o chamado "flight to quality", um fenômeno que ocorre, por exemplo, quando o banco central americano aumenta as taxas de juros e os fluxos de capitais saem da América Latina e de outros países emergentes e "voam para destinos mais seguros", como os EUA. Ou seja, de países com risco para outros com menos. Mas, desta vez, os economistas foram surpreendidos por uma entrada inusitada de recursos nas principais economias latino-americanas, contrariando a tendência mundial. O peso desses fluxos no PIB regional também aumentou, chegando a 4%, ainda segundo a Cepal. O Brasil foi o país que mais se beneficiou, com 41% do total de investimentos estrangeiros que vieram para a América Latina, seguido por México, Colômbia e Chile. A Argentina também foi contemplada, apesar de sua economia ser uma das mais vulneráveis ​​do continente. Entenda, a seguir, os motivos de tudo isso. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os US$ 224,579 bilhões que entraram na América Latina e no Caribe em 2022 equivalem ao PIB do Peru, a sexta maior economia da região. Para Jimena Blanco, analista-chefe de risco global da consultoria estratégica Verisk Maplecroft, a volatilidade global gerada pela invasão russa da Ucrânia beneficiou a América Latina em geral. "A região está distante do conflito – tanto geograficamente quanto diplomaticamente – e, ao mesmo tempo, oferece alternativas para cadeias de abastecimento que foram interrompidas ou quebradas como resultado da guerra." A analista destaca os investimentos no setor de energia e na indústria agroalimentar, tanto na produção de grãos quanto de fertilizantes. "Chile, Colômbia e Argentina são três das economias regionais que também se beneficiaram da corrida entre o Oriente e o Ocidente para garantir sua segurança energética, tanto agora como no futuro", diz Blanco. "Os recursos de petróleo e gás, a mineração (especialmente para a transição energética) e o potencial de geração de energia por meio de fontes renováveis ​​levaram ao aumento dos fluxos nos três casos", acrescenta. Nesse ponto, ele concorda com Marco Llinás, diretor da divisão de desenvolvimento produtivo e empresarial da Cepal, que destaca o papel da energia limpa e seu poder de atração de investimentos estrangeiros. "A transição energética representa uma grande oportunidade para a América Latina em termos de desenvolvimento produtivo", afirma. No final de 2021 e início de 2022, a América Latina teve uma normalização da atividade econômica após a fase mais aguda da pandemia de covid-19. Economistas têm repetido que muitos países da região se anteciparam à alta de juros nos Estados Unidos e chegaram a esse momento com suas economias em boas condições para enfrentar o choque que ela sempre acarreta. O aperto das condições financeiras na primeira economia do mundo provoca, normalmente, uma valorização do dólar e uma depreciação das moedas locais dos países de onde sai o capital. Mas "desta vez esse fenômeno não foi tão intenso como em outras ocasiões, porque antes de o Fed começar a aumentar as taxas de juros, os bancos centrais da América Latina já começaram a fazê-lo para controlar a inflação", explicou à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, Juan Carlos Martinez Lázaro, economista e professor da IE Business School de Madri. "E até hoje eles mantêm taxas de juros notavelmente mais altas que as do Fed, o que em países como Brasil e México desacelera a saída de capitais e mantém o real e, principalmente, o peso mexicano forte em relação ao dólar." "Além disso, o mercado prevê que o Fed poderia começar a baixar as taxas de juros no próximo ano, por isso muitos países da região mantêm sua atratividade para atrair investimentos estrangeiros, já que as expectativas de negócios neles permanecem intactas", acrescenta Martinez Lázaro. Os setores que mantêm sua atratividade estão relacionados aos serviços -especialmente o financeiro - que manteve sua liderança. "Também vale mencionar que foram reativadas as entradas nos setores relacionados a recursos naturais e manufaturados", disse o especialista da Cepal. Por várias razões, os lucros de muitas empresas estrangeiras não saíram da América Latina, em uma tendência observada em 2022 para "maximizar o capital". As subsidiárias de grandes empresas estrangeiras sediadas na região retinham os lucros em vez de repassá-los à matriz. "O choque da economia durante o pior momento da pandemia em 2020 fez com que muitas empresas retivessem seus lucros naquele ano, que foram investidos posteriormente em 2021, mas em maior proporção em 2022", diz Blanco. Algumas vantagens dessa prática são que se paga menos impostos sobre os lucros gerados e, ao mesmo tempo, se permite o acesso ao crédito de forma mais eficaz às subsidiárias que, de outra forma, teriam de acessá-lo a um preço consideravelmente mais elevado no mercado. O exemplo mais claro dessa prática é a Argentina. Devido a restrições de capital, as subsidiárias no país reinvestem os lucros em vez de repassá-los para a controladora. "Neste contexto, não é surpreendente que os EUA e a UE continuem sendo a fonte do maior investimento estrangeiro direto na América Latina e no Caribe. Mas também há um impacto das tensões geopolíticas e dos planos de estímulo de Washington para incentivar o 'nearshoring' na região", acrescenta o analista da Verisk Maplecroft. Com "nearshoring", o especialista se refere à transferência de parte da produção que é feita na China para a América Latina. "Na verdade, tanto o México quanto a Colômbia se beneficiaram dessa tendência, embora em proporções diferentes." "No primeiro caso, o USMCA (acordo comercial entre México, Estados Unidos e Canadá) e os elos das cadeias de valor integradas na sub-região desempenham um papel muito importante. No caso da Colômbia, o primeiro governo de esquerda do país não gerou uma ruptura dos fortes laços comerciais entre os setores privados de ambos os países." Brasil Marco Llinás, diretor da divisão de desenvolvimento produtivo e empresarial da Cepal acredita que "devemos tomar nota do crescimento extraordinário que ocorreu em particular no investimento estrangeiro direto no Brasil, que representa 41% do total de investimento estrangeiro direto na região" . O Brasil teve um aumento de 97% em sua receita de investimento estrangeiro direto, que foi principalmente para o setor de serviços, seguido por manufatura e recursos naturais. México Na indústria automotiva mexicana, foi importante o anúncio da Tesla de que construirá uma megafábrica em Nuevo León. O movimento confirma a liderança do país como maior fabricante de veículos elétricos das Américas, atraindo até US$ 5 bilhões. "Sempre insisto que a chegada desse investimento não foi repentina. Em Nuevo León está sendo trabalhada uma iniciativa de cluster no setor automotivo, que hoje é inclusive uma referência mundial. Há um trabalho articulado entre os setores público, privado e acadêmico, trabalhando para melhorar a produtividade e a competitividade desse setor", diz Llinás. Chile e Colômbia Nos casos do Chile e da Colômbia, Jimena Blanco acredita que os processos eleitorais no final de 2021 e início de 2022 também afetaram negativamente os fluxos de investimento estrangeiro direto em 2021. "Resolvidas as disputas eleitorais, os investidores têm maior clareza sobre as políticas a serem implementadas por cada governo, o que facilita a tomada de decisões e permite a retomada dos fluxos", destaca. Argentina "No caso da Argentina, a volatilidade inerente a uma crise econômica sustentada significa que os ativos argentinos estão com um preço muito baixo para investidores dispostos a enfrentar o alto risco macroeconômico do país", acrescenta a analista. O investimento estrangeiro cresceu muito em 2022 devido aos empréstimos entre empresas e ao reinvestimento dos lucros, devido a rígidos controles tributários que colocam muitos obstáculos à saída de capitais. Este investimento destinou-se fundamentalmente ao setor do lítio, hidrocarbonetos não convencionais e ao setor das tecnologias de informação. Este fechamento extraordinário de 2022 não parece que se repetirá este ano, mas a Cepal acredita que existem oportunidades muito novas para a América Latina em uma era de reconfiguração das cadeias globais de valor e relocalização geográfica da produção. Tudo como consequência de uma globalização em mudança.
2023-07-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c5129nd8448o
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O impressionante 'cemitério oculto' com restos de milhares de pessoas na capital do Peru
O professor Cayetano Villavicencio move-se com agilidade entre as pilhas de fêmures e caveiras guardadas em galerias escuras. Há anos, ele se dedica ao seu estudo e conservação — e não consegue esconder uma certa paixão por estes ossos. "Veja, alguns fêmures são extraordinariamente grandes", indica ele ao visitante. Estamos nas catacumbas do Convento de São Francisco de Assis, em pleno centro da capital do Peru, Lima. Nas criptas escavadas no subsolo do emblemático templo, repousam os restos mortais de milhares de pessoas enterradas ao longo de vários séculos de domínio espanhol. Fim do Matérias recomendadas O convento é um tesouro da arte barroca da era colonial. Ele foi construído em 1535, quando os franciscanos e outras ordens religiosas começavam a se instalar no continente americano sob o domínio da Coroa espanhola. Mas o que mais costuma fascinar os turistas são os crânios, fêmures, clavículas e outros ossos humanos, cuidadosamente alinhados onde antes havia um cemitério, para receber os visitantes. "O que mais existem são caveiras e fêmures, que são os ossos que ficam conservados por mais tempo", explica Villavicencio. Mas também há esternos, fragmentos de cóccix e outros restos de ossos. O número exato de pessoas que foram enterradas aqui é desconhecido. As estimativas mais comuns falam em pelo menos 25 mil, mas Villavicencio calcula que podem ter sido mais de 100 mil pessoas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Sabemos que existem no convento muitos corredores e galerias onde há restos que ainda não foram escavados", explica ele. Na verdade, este não é o único centro religioso sob o qual foram enterrados corpos na época do vice-reinado, como ficou comprovado pelos restos humanos encontrados em outras igrejas de Lima. Os especialistas suspeitam que, debaixo do burburinho do trânsito no epicentro da capital peruana, esteja escondida uma imensa necrópole, esperando para ser redescoberta. O arqueólogo Pieter van Dalen, da Universidade Nacional Maior de São Marcos, no Peru, afirmou à BBC News Mundo — o serviço em espanhol da BBC — que "somente foram escavados 30% ou 40%, mas estamos falando de uma infinidade de túneis que se estendem por toda a parte baixa do centro histórico de Lima". Ninguém sabe ao certo até onde chegam esses túneis, mas as lendas da região afirmam que eles chegam até o subterrâneo do Palácio do Governo ou mais além — até o vizinho porto de Callao. As criptas sepulcrais do convento de São Francisco são impressionantes pela grande quantidade de restos mortais e porque estão abertas ao público desde a sua redescoberta, no final da década de 1940. As catacumbas são formadas por um labirinto de galerias cheias de ossos, que podem dar calafrios aos visitantes mais sensíveis. "Precisamos sinalizar muito bem o trajeto porque havia turistas que se perdiam e ficavam assustados", conta Villavicencio. Grandes quantidades de corpos enterrados também foram encontradas em outras igrejas de Lima, como a de São Lázaro, de Santana e do Sagrado Coração de Jesus, conhecida popularmente como a igreja dos órfãos. Nesta, foram encontrados inúmeros restos de crianças enterradas. Van Dalen explica que "se trata das estruturas funerárias associadas a igrejas, conventos e monastérios, nos quais era enterrada toda a população que morava em Lima e seus arredores, na época colonial". "No começo, elas eram utilizadas apenas para enterrar os religiosos", ele conta. "Mas, com o passar dos anos, devido às diversas epidemias e terremotos que assolaram a cidade, ali começaram ser realizados enterros civis." Somava-se a isso a crença generalizada de que ser enterrado debaixo de um templo aumentava a proximidade de Deus e, consequentemente, a salvação da alma. "Eles acreditavam que, ficando perto do altar, estavam mais perto de Deus", explica Villavicencio. O professor pesquisou as classes sociais e a forma em que eram enterradas as pessoas que jazem nas catacumbas do convento de São Francisco. "Aqui, eram enterrados espanhóis, mestiços, indígenas e negros", conta Villavicencio. "Não havia exclusões, apesar da hierarquia social vigente na época. Costumava se tratar de membros de algumas das irmandades instaladas nos altares laterais da igreja", explica o professor. Naquela época, havia muitas irmandades ou confrarias. Elas eram uma das formas mais abrangentes de agrupamento social. A maior parte dos restos mortais não tem identificação, de forma que não se sabe a quem eles pertencem. Mas nem todos eram pessoas anônimas. Existem também personagens de destaque da época, como García Sarmiento de Sotomayor, que foi vice-rei do Peru entre 1648 e 1655. Os corpos costumavam ser depositados sem caixão, uns ao lado dos outros e separados apenas por um monte de terra que os cobria. E, quando uma fileira de cadáveres era completada, começava-se outra que iria por cima e, assim, sucessivamente. As criptas foram lacradas no século 19. Em 1949, os monges franciscanos do convento decidiram abri-las para comprovar como elas eram — e encontraram uma imensa quantidade de ossos esparramados pelo solo. A descoberta logo chamou a atenção da imprensa local, despertando a imaginação do público. O espaço acabou sendo transformado em museu e aberto para visitação. Em 28 de julho de 1821, o general argentino José de San Martín (1778-1850) proclamou a independência do Peru na Praça Maior, em Lima. San Martín tornou-se o protetor do novo Peru independente e, preocupado com a falta de salubridade da cidade, proibiu os enterros subterrâneos nas igrejas. Mas, antes disso, alguns religiosos já haviam expressado sua preocupação pela continuidade da prática, que colocava em risco não apenas a saúde pública, mas talvez a própria estabilidade das edificações. Em 1808, foi inaugurado o Cemitério Geral de Lima, hoje conhecido como Cemitério Presbítero Matías Maestro. Mas a população local era reticente sobre a transformação daquele espaço no local do seu descanso eterno. Por isso, o costume de realizar enterros nas igrejas ainda foi mantido por alguns anos. Com o tempo, a prática foi progressivamente abandonada. O espaço funerário do Convento de São Francisco foi lacrado e abandonado, mas sua existência permaneceu nas lembranças da comunidade franciscana. Apenas o trabalho dos arqueólogos e historiadores pode desvendar as incógnitas sobre a extensão desta rede funerária nos subterrâneos de uma das capitais mais vibrantes da América Latina. O professor Villavicencio recorda que existe comprovação documental de que o largo vizinho ao convento e a basílica de São Francisco, na era colonial, eram um cemitério. E tudo indica que as criptas sepulcrais estavam conectadas àquela região. "É preciso um trabalho em conjunto com as autoridades para fazer uma pesquisa rigorosa no local", reivindica o professor. Van Dalen destaca que "as pesquisas sobre estas áreas concentraram-se no turismo. É mais complicado abrir e valorizar as áreas mais afastadas, onde enfrentamos possíveis problemas de segurança, desmoronamentos e falta de oxigênio." Para o pesquisador, um dos problemas é a falta de recursos. "No Peru, a arqueologia pré-hispânica enfrenta muitas limitações orçamentárias", ele conta. "Imagine a arqueologia colonial, que recebe muito menos atenção."
2023-07-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72v08k27yzo
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'Sou patrimônio histórico, mas não posso pagar dentista': o muro que divide Cartagena, a cidade mais turística da Colômbia
O símbolo internacional de Cartagena, uma das cidades mais famosas da Colômbia, é um cordão de muralhas que separa as pessoas desde a sua construção no século 16: primeiro entre espanhóis e piratas, depois entre brancos e negros, e agora entre turistas e moradores da cidade. Há moradores que nunca estiveram na cidade amuralhada, e muitos outros podem ter passado anos, ou décadas, sem pisar no bairro que lhes dá reconhecimento mundial. “É como os parisienses, que não vão à Torre Eiffel”, justificam alguns. Com a diferença que os muros cercam o centro da cidade: sede de várias universidades e de um Estado que muitos aqui veem como estrangeiro. Em 1984, esses 11 quilômetros de muro à beira do Mar do Caribe foram declarados Patrimônio da Humanidade pela Unesco. Em 2005, San Basilio de Palenque, uma cidade a 50 quilômetros de distância conhecida como o primeiro assentamento sem escravidão nas Américas, recebeu o mesmo reconhecimento. Mas Betty Sargado, uma palenquera que vive de posar para fotos com turistas fascinados pelas cores de suas roupas e pelas frutas que carrega na cabeça, não vê grande benefício nesse “chamado patrimônio”. Fim do Matérias recomendadas “Somos patrimônio histórico, meu amor, mas não temos seguro para pagar o dentista”, diz à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC). "Eu não tenho um cartão que diz que sou patrimônio histórico e que por isso devem me oferecer serviço de odontologia. Então, que tipo de patrimônio histórico é esse?" Empregada doméstica por 14 anos e depois massagista nas praias, Betty e sua mãe, Angélica Cáceres, foram umas das primeiras palenqueras a chegar ao centro para aproveitar ao máximo o turismo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Passam os dias a cativar o estrangeiro: agitam as saias, contam piada, enquanto pedem uma "picture, picture (foto em inglês)". “Fomos nós, negros, que fizemos essas paredes”, diz Betty, enquanto observa o amanhecer que tinge a rocha de coral. "Mas não temos muitos direitos sobre eles", reclama. "Ninguém sabe nada das muralhas pra lá." Das muralhas para lá está "a outra Cartagena", uma cidade de quase dois milhões de habitantes onde duas em cada três pessoas, segundo dados oficiais, não comem três vezes ao dia; onde 70% trabalham na informalidade, têm a pior qualidade educacional do país e vivem sob a ansiedade de uma criminalidade que registrou 360 homicídios em 2022, o maior número da história recente, e entro pela primeira vez na lista das 50 cidades mais perigosas do mundo – seis delas são colombianas. A ideia das duas Cartagenas, uma feliz e outra triste, se consolidou. Ela está na mídia, em discursos políticos, em reportagens turísticas. Em uma Cartagena você pode ouvir o galope dos cavalos em uma carruagem, os gritos de "feliz casamento". No outro, o ronco dos mototáxis, as buzinas do trânsito caótico e os aviões que pousam ao lado de um bairro de casas assombradas com ruas sem calçamento. Em uma delas há butiques de luxo, galerias de arte, eletricidade e água encanada. Na outra, vendedores ambulantes lotam semáforos e esquinas, e os serviços básicos são intermitentes. A história de que existem duas cidades, uma boa e outra ruim, virou um clichê que os próprios moradpres repetem e que, como todo clichê, é discutível. Porque uma Cartagena precisa da outra, elas se alimentam. Porque das paredes para fora pode haver caos, mas também vida, folclore, idiossincrasia caribenha. Ariel Valdez é um líder social na área de La Popa, ode ficam os bairros informais ao pé da única colina da cidade, fora das muralhas. Lá ele organiza eventos, faz mediação entre gangues armadas e apoia jovens artistas. Valdez, 34 anos, dirige um estúdio de gravação onde, em 8 anos, mais de 300 artistas desses bairros gravaram suas composições de rap, reggaeton e champeta, gênero característico da cidade, que mistura ritmos afro-caribenhos com arranjos eletrônicos. Em uma noite de outubro de 2021, Valdez estava com seu grupo em uma das praças adjacentes ao centro murado. Eles cantaram, dançaram, riram. E, como todas as noites, turistas, vendedores ambulantes e profissionais do sexo convergiam para a área: agitação e pequenos focos de tensão ao mesmo tempo que festa, oportunidade de negócios e clima quente e úmido, atenuado pela brisa. "Uma unidade de policiais veio nos revistar", lembra Valdez, sentado em um pequeno estúdio com paredes vermelhas em que um cartaz diz "arriba los debajo". "Não encontraram nada para nós, mas a atitude de desafio continuou, como se procurassem um pretexto para nos prender. Por que estávamos ali, por que estávamos fazendo barulho, do que estávamos fugindo? Claro, finalmente começaram a nos assombrar. Incomodam, porque esta é a nossa cidade, e acabaram prendendo um de nós." O grupo de jovens se dirigiu à estação, dentro da cerca murada. Lá eles conheceram outros músicos negros presos. Eles descobriram que não eram exceção. "Isso é o que acontece todos os dias", diz Valdez. Pisar no centro da cidade é, para o negro, um risco. “Se você não gosta de ser revistado, não saia de casa”, comenta Valdez sobre o que os policiais teriam dito a eles. Sua reclamação é semelhante à de Betty, a palenquera: "Em Cartagena, os turistas têm mais direitos do que nós, o povo de Cartagena". Assim, as pessoas que vêm da "outra Cartagena" promovem o desenvolvimento da Cartagena dos cartões postais: vão lá durante o dia para trabalhar nos hotéis, nas lojas, nos restaurantes, nos eventos, mas se quiserem usá-la como um espaço público, nas horas de lazer, fica complicado. Muitos cartageneneiros sentem que suas terras são segregadas, divididas em duas. Como é então que uma idílica cidade murada acabou isolada, em pleno século 21, da cidade real que a rodeia? Em 1943 o centro murado era uma ruína, vestígio da principal sede comercial do império espanhol nesta zona da América. Alguns anos antes, inclusive, algumas partes das paredes haviam sido demolidas por serem supostamente focos de propagação de doenças. Naquela época, as principais fontes de renda da cidade eram — como hoje — as indústrias petroquímicas e o porto, um dos maiores da América Latina. Mas seus lucros não foram suficientes - ou não permaneciam o suficiente em Cartagena - para tirar a cidade da estagnação. A Colômbia também estava saindo de uma crise econômica. Foi então que surgiu o turismo como solução: o governo nacional destinou recursos para renovar o patrimônio, vários filmes foram rodados — incluindo Queimada, estrelado por Marlon Brando— e os assentamentos que cercam o centro amuralhado, como o emblemático Chambacú, começaram a ser despejados, em uma ação que muitos chamam de "limpeza social". Assim, um destino turístico foi criado. “A convicção de que os monumentos eram o bem mais precioso da cidade, mesmo acima da dignidade dos seus habitantes, ganhava cada vez mais força”, defende o historiador Francisco Flórez no artigo “Culto da pedra, desprezo pelas pessoas”, onde detalha as diferentes campanhas publicitárias para "embranquecer" o centro em busca de um destino. Embora o verdadeiro impulso turístico de Cartagena tenha ocorrido apenas na década de 1980, segundo especialistas, as iniciativas para condicionar o patrimônio ao olhar estrangeiro surgiram antes e continuam até hoje. Um dos casos mais emblemáticos, mas não o único, foi o mercado Getsemaní, uma praça pública de raízes culturais e urbanas que foi deslocada na década de 1970 para construir, em 1982, um centro de convenções que hoje abriga conferências, casamentos e festas, principalmente de interesse privado. Nas décadas de 1980 e 1990, grandes conferências de organizações multinacionais e festivais anuais de cinema e música erudita impulsionaram a reforma de claustros, fábricas e escolas, agora convertidas em hotéis, restaurantes e espaços para eventos. Até os fruteiros do centro, de Palenque, modificaram suas roupas para alinhá-las ao turismo: a tradição era se vestir de preto para homenagear os ancestrais, mas os negócios prevaleceram sobre o luto ancestral. "Descobrimos que quanto mais cores usássemos, melhor ficaríamos", diz Betty Sargado, a palenquera, conhecedora de seu ofício e seu produto de vendas. "Porque com as cores escuras íamos nos ver mais ousadas. E foi daí que surgiu a bandeira da Colômbia e de Cartagena (para enfeitar os vestidos)." Diana Gideón, co-directora da maior empresa de turismo da cidade, a Gema Tours, foi, com a sua família, uma peça fundamental na construção deste destino turístico. "O crescimento da empresa andou de mãos dadas com o desenvolvimento da cidade", afirma. Um empreendimento que, ela admite, não abarcou todos os cartageneiros, embora existam empresas, como a Gema Tours, que promovem a mobilidade social. A empresária convida todos os meses centenas de crianças de bairros pobres para “um passeio pelo patrimônio de Cartagena”, do qual pouco ou nada sabem. Quando lhe pergunto sobre a deslocação de populações e culturas a favor do turismo, assegura que são riscos normais do desenvolvimento: "Há cidades que são mais ciumentas do que outras, que cuidam melhor dos seus bens, mas não foi este o caso aqui, o desenvolvimento ocorreu". Para Gideon, embora todos os presidentes “ponham seu grão de areia para promover o turismo em Cartagena, houve um antes e um depois de Álvaro Uribe”. Uribe, que governou entre 2002 e 2010, criou robustas entidades para promover o país, estabeleceu isenções fiscais —algumas ainda vigentes— para quem comprar e reformar casas no centro de Cartagena e promoveu, em aliança com os Estados Unidos, um ambicioso programa de segurança e política antiterrorista que gerou a ideia de que "agora você pode viajar na Colômbia". Nesses anos, também foi relatada a chegada de grupos paramilitares à cidade que supostamente pretendiam realizar uma limpeza social. Investigações jornalísticas informam que, em 2003, por exemplo, os homicídios aumentaram 47% em relação ao ano anterior devido à ação dos paramilitares. "Desde a criação do destino turístico, toda a política pública de Cartagena se voltou para o turismo", diz Camilo Rey, geógrafo e economista em Cartagena. "E isso não só gerou a ideia de que existem duas cidades, como foi feito sob uma premissa que não é verdadeira: que é a maior fonte de renda." A indústria petroquímica pagou o dobro de impostos e gerou o dobro de empregos que a hotelaria entre 1990 e 2010, segundo pesquisa do economista Aarón Espinosa. Hoje, segundo dados da Câmara de Comércio da cidade, a petroquímica gera um quarto dos empregos gerados pelo turismo, além de dez vezes mais renda. Ou, dito de outra forma: das cinco atividades mais pujantes da cidade —agricultura, construção, porto, petroquímica e turismo—, é esta última que gera menos lucro e, portanto, menos impostos. E embora o turismo seja a maior fonte de trabalho, 40% do total, mais da metade desses empregos, 60%, são informais, segundo dados oficiais. Além do atributo histórico e estético do chamado "Centro de Pedra", a atração de Cartagena é a sua natureza. Cercados por pântanos, canais e uma esplêndida baía, na cidade se reúnem diversos complexos hídricos que permitem a ágil interação do interior do país com o mar do Caribe. Existe também uma luminosidade que faz de qualquer pedra uma imagem fotogênica. Sua localização estratégica a converteu em um dos portos mais dinâmicos —comerciais, mas também de escravos— das Américas. Por ser um conjunto de penínsulas, a cidade parece ancorada no mar aberto, o que gera uma concorrência de ventos que esfria de 30 a 40 graus Celsius. Mas essa geografia que traz centenas de milhares de turistas por ano também é um desafio. A maior parte de seus solos está abaixo do nível do mar e muitos deles são construções feitas pelo homem, que, artesanalmente ou industrialmente, foram colocando entulho nas margens para expandir o terreno com o acúmulo de sedimentos. Hoje 60% do litoral da cidade está ameaçado pela erosão, que só promete aumentar devido às mudanças climáticas. Toda vez que chove, as ruas alagam, o trânsito congestiona, os esgotos transbordam. A infraestrutura de Cartagena talvez seja a maior reclamação de seus moradores, que têm uma das taxas de parques por pessoa mais baixas do país e poucos espaços para praticar seus esportes tradicionais: beisebol e patinação de velocidade. Você não pode entrar de motocicleta – o veículo mais usado na região – na área dedicada ao lazer, o centro murado. E há poucos, se houver, restaurantes de comida típica da região por lá. O boom imobiliário gerado pelo turismo na década de 1990, com prédios altos e brancos em áreas próximas ao centro, foi parcialmente impulsionado por investidores estrangeiros e, segundo registros judiciais, pela economia do narcotráfico, interessada em lavagem de dinheiro. Dezenas de prédios foram construídos sem licença, causando desmoronamentos que custaram vidas ou construções que posteriormente tiveram que ser demolidas. Alguns bairros de Cartagena se parecem com Miami, mas outros têm déficits habitacionais semelhantes aos de Chocó e La Guajira, os departamentos mais pobres do país. E a isso se soma uma situação crítica na educação: em todos os indicadores, o desempenho educacional da cidade é pior que a média nacional. Está no nível das regiões com as economias mais pobres, mas localizado em uma das economias mais ricas do país. A Prefeitura de Cartagena é um dos poucos edifícios construídos sobre a fortificação de pedra. Branco, com sacadas de madeira vermelha e telhas de barro na cobertura, o edifício abriga o gabinete do prefeito da cidade, de onde se acessa um trecho reservado da muralha e se avista a baía, o Centro de Convenções e, um pouco mais adiante, "a outra Cartagena". Entre os especialistas ouvidos pela reportagem há certo consenso de que o governo de Cartagena é um Estado falido. A política local está infestada de corrupção e infiltrada por castas familiares e empresariais de outras regiões. O atual prefeito, William Dau, provavelmente será, no fim deste ano, o primeiro mandatário distrital a terminar seu mandato nos últimos 12 anos. Os oito prefeitos anteriores tiveram mandatos atípicos. Alguns foram destituídos, outros foram presos. Eleito em nome da luta contra a corrupção, Dau tem contra si todos os deputados da Assembleia, muitos dos seus funcionários se demitiram e que não consegue fazer obras. O seu legado, disse à News BBC Mundo, é o saneamento das finanças públicas: "Aqui houve um pacto tácito entre empresários e políticos de não se atacarem. 'Deixo vocês continuarem roubando e vocês não mexam nas minhas empresas' (.. .) Quando me tornei prefeito, 70% do orçamento foi perdido na corrupção, mas já estamos moralizando a administração pública." Mas Dau, com números no vermelho nas pesquisas e investigado por 20 processos disciplinares em órgãos estaduais, estima que sua limpeza vai ficar aquém: “Tem tanta demora para corrigir que não dá para fazer tudo em 4 anos. acabam em elefantes brancos (construções inacabadas) porque falta planejamento, porque fizeram tudo chamboneado (improvisado)". Para ele, a riqueza de Cartagena não se traduz em bem-estar geral porque os políticos não estão interessados: “A ideia aqui não é pensar em todas as pessoas, mas em como explorar a beleza da cidade para fins privados. visto como um animalzinho, como um insumo de uma cadeia produtiva". “Isso de que a Cartagena rica abastece os pobres não é verdade", diz o prefeito. "Mas sem os negros, (os mais ricos) não poderiam ter seus hotéis nem seus restaurantes." No censo nacional de 2005, foi informado que cerca de 15.000 pessoas viviam no centro murado de Cartagena, mais ou menos o mesmo número estimado pela historiografia dos séculos anteriores. Mas no censo de 2018, apenas 2.500 pessoas disseram que viviam nessa área. Essa diminuição se deve não só ao fato de a maioria dos imóveis se dedicarem ao turismo, mas também ao fato de o centro, à noite, se tornar uma zona de tolerância à prostituição e ao microtráfico de drogas com um suposto aval da polícia. “Todos se calam por amor ao dinheiro”, diz Berena Suárez, uma ex-profissional do sexo que agora administra um lar para vítimas do tráfico no bairro de Alcibia. “Sim, as autoridades colocam um papel nas portas dos hotéis dizendo que não aceitam turismo sexual, mas isso é mentira, porque eles têm um acordo com a polícia, com a justiça, com todos; eles fazem vista grossa. " É impossível saber a magnitude do turismo sexual, que é legal, ou do tráfico de pessoas, que é ilegal. Ambos são mundos nebulosos. Mas só de olhar para a Plaza de los Coches, mais conhecida como Torre do Relógio, em pleno centro da cidade, às 22h, é possível identificar uma espécie de capital mundial da prostituição. Ana María González é a atual secretária do Interior, a funcionária mais midiática da prefeitura de Dau e uma ativista obsessiva contra o tráfico de pessoas. "A idade média das meninas (profissionais do sexo) é de 19 anos", diz ela. Vestindo um colete vermelho do gabinete do prefeito, cercada por câmeras e delegados e policiais, a oficial levou a BBC News Mundo em um de seus habituais passeios por estabelecimentos dedicados à prostituição. Alguns, os mais exclusivos, estão dentro da parede; outros, os mais populares, estão pra fora. "Olha o alfinete (o cadeado)", diz González, apontando para a porta de um quarto de um bordel em El Amparo, longe do centro. "Existem as intenções: eles colocam do lado de fora da porta para poder trancar as meninas." Nascida em Bogotá, González, que assim como o prefeito morou por muitos anos nos Estados Unidos, destaca: “Há meninos e meninas cuja liberdade está sendo cerceada para que os estrangeiros possam se divertir, e essa situação me machuca muito”. Berena, a ex-trabalhadora do sexo, concorda: "Se um gringo é pego com um menor, eles o protegem. Não sei o que acontece, mas quando isso acontece (um crime sexual cometido por um estrangeiro), fica impune". Todos os fins de semana, em cada bairro popular de Cartagena, são montadas enormes aparelhagens de som ao estilo jamaicano, pintadas de cores, que reúnem dezenas de pessoas em festas de rua. Eles os chamam de "picó", podem durar três dias e são uma característica essencial da "outra Cartagena". No centro murado, essas festas não existem. Há festas, claro, mas não em Cartagena propriamente dita. Houve até uma época em que as autoridades tentaram proibir o estilo musical champeta porque, supostamente, alegaram que promove o contato sexual e favorece o crime. Há pessoas de Cartagena que cresceram pensando que esse gênero era proibido porque era "música negra". Hoje a champeta é um símbolo internacional de Cartagena. E a grande maioria de seus expoentes vem da cidade fora dos muros. Ariel Valdez, líder social e produtor musical, é um dos 25 filhos de Justo Valdez, um palenquero considerado co-criador da champeta e um expoente vital da música caribenha colombiana. Seu legado é celebrado em bares de Bogotá e até em conservatórios de Boston. Mas, de acordo com Ariel, seu pai não tem dinheiro suficiente "para comer três vezes ao dia". E ele não frequenta muito o centro murado. Ele foi convidado para centenas de eventos de promoção turística ao longo de quatro décadas. Sua música afro, alegre e pioneira é justamente o que os turistas vêm conhecer. Mas Justo, como os outros músicos de Son Palenque, sua famosa banda, vive na pobreza. Ariel menciona duas razões para isso: “O sistema educacional e econômico não permite que os pobres subam, mas também é que em Cartagena há um sentimento de resignação, de que é melhor receber pouco do que não receber nada”. A opinião do jovem músico dos bairros das ladeiras de La Popa é compartilhada por dezenas de pensadores da cidade: os sentimentos coletivos mais profundos dos moradores de Cartagena, sempre ligados à alegria, estão em crise. Há duas coisas que historicamente deram a Cartagena um atributo único: as festividades de 11 de novembro, que celebram a independência de Cartagena, anterior à de Bogotá; e o beisebol, esporte tradicional ao contrário do resto do país, onde se pratica futebol e ciclismo. Ambos estão diminuindo: as festas de 11 de novembro foram rebaixadas pelo Concurso Nacional de Beleza, que acontece na mesma época; e os times de beisebol de Cartagena não se classificam para torneios de importância moderada, enquanto o estádio Once de Noviembre, conhecido como "o templo do beisebol colombiano", está desgastado, precisando de reformas há décadas. Rosita Díaz e Raúl Paniagua são um renomado casal de sociólogos de Cartagena. Ambos tentam esconder seus mais de 70 anos. Dedicados a passar a tarde lendo em uma varanda cheia de plantas no tradicional bairro de Pie de la Popa, ao som de pássaros e motocicletas, o casal explica que em uma "cidade pré-moderna", onde sistemas de castas regem o poder econômico e a política, tem sido muito difícil manter as raízes africanas, por mais resistentes que sejam. “Sempre disse que nunca fomos livres, mas sempre fomos dignos”, diz Díaz. "Porque mantivemos nossas danças, nossa gastronomia, nossos cultos religiosos." “Mas agora não sei mais se somos dignos”, acrescenta. "Nossa herança se tornou um disfarce. Nossa cultura se tornou clandestina.”
2023-07-23
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cmlxmeg1g9mo
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Boric: 'Temos que ser ainda mais exigentes com governos de esquerda'
O presidente sobe as escadas em ritmo acelerado, um tanto acalorado, seguido por seus colaboradores mais próximos que conversam com ele, lhe entregam documentos e até tentam pentear suas madeixas rebeldes. São cinco e meia da tarde de terça-feira, 18 de julho. Foi uma semana intensa para Boric: depois de visitar a Espanha - e se encontrar lá com o rei Felipe 6°, o presidente Pedro Sánchez e empresários -, ele viajou para Bruxelas, onde participou da cúpula de líderes da União Europeia (UE) e da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac). Em seguida, seguiu para a Suíça e para a França, onde realizou importantes reuniões com autoridades locais. Fim do Matérias recomendadas Em meio a essa agenda lotada, o dirigente chileno concedeu duas entrevistas à BBC, uma à repórter Fernanda Paulo, da BBC Mundo (serviço da BBC em espanhol), que está publicada abaixo, e outra ao programa HardTalk, que será transmitido em inglês pela rede internacional do canal britânico. É importante ressaltar que a conversa com Boric aconteceu antes das desavenças entre ele e o presidente Lula, que discordam sobre os rumos da guerra na Ucrânia. O chileno pressionou a Celac a dar uma posição sobre o conflito, o que fez Lula chamá-lo de "jovem apressado". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast BBC - Presidente, o senhor deixou o Chile em um momento muito difícil para o senhor e sua coalizão com o escândalo do Caso dos Acordos e as investigações de corrupção que afetam suas próprias fileiras. Você diria que este é o momento mais complexo da sua gestão? Gabriel Boric - É um momento complexo, sem dúvida. Mas a verdade é que não me sinto numa posição diferente daqueles que buscam o controle disso. Fico profundamente indignado com o fato de haver quem, independentemente do partido político ao qual esteja filiado ou do setor do qual se sinta parte, acredite que o Estado é um lugar de onde pode aproveitar, ainda mais no que diz respeito aos recursos de quem mais precisa. Portanto, a minha visão, e é o que transmiti a todo o governo como instrução, é que aqui tens de saber absolutamente tudo, ninguém está protegido, por mais próximo que esteja do partido. Se há pessoas que cometem crimes, que são confirmados pela Justiça, ou agem de forma contrária à ética e à moral que temos defendido, certamente terão que responder perante o povo. A diferença é que aqui não vamos fazer nenhum tipo de camaradagem ou perdão ou tentar amenizar a situação. BBC - No plano internacional, sua figura foi destacada pelas críticas explícitas que fez aos governos da Nicarágua, Venezuela, Cuba... Custou-lhe ser uma voz solitária nesses assuntos na América Latina? Boric - Não me sinto uma voz solitária quando me encontro com o ex-vice-presidente da Nicarágua Sandinista, Sergio Ramírez, quando converso com Gioconda Belli (escritora nicaraguense), com José Luis Rodríguez Zapatero (ex-primeiro-ministro da Espanha) e com outros líderes da esquerda latino-americana. Acho que temos muito mais coincidências do que diferenças. E nisso minha posição é relativamente simples: tem que ter o mesmo padrão de avaliação tanto contra governos do mesmo signo quanto contra governos de outro signo. Eu diria até que temos que ser mais exigentes com nós mesmos. E se há alguém que se incomoda com isso, bem, sinto muito, mas me parece que faz parte da coerência necessária construir um projeto de esquerda e uma alternativa de esquerda não só no Chile, mas no mundo. BBC - Essa "outra" esquerda, não vive um bom momento no mundo. Vê-se na Grécia, onde só conseguiu governar durante 4 anos, ou com Pedro Sánchez na Espanha, o que, se acreditarmos nas sondagens, é bastante complicado. Que esperança resta para a nova esquerda no mundo? Boric - A política é de ciclos longos. Certa vez, perguntaram a um político chinês o que ele achava da Revolução Francesa e ele respondeu algo como "É muito cedo para dizer". Acho que avaliar as flutuações políticas com base nas mudanças eleitorais a cada quatro anos é um tanto míope. As mudanças são mais tectônicas, mais estruturais. Dito isso, é verdade que a alternativa de esquerda, que também é referência para nosso setor político há muito tempo, como Syriza ou Podemos, não está no melhor momento em termos eleitorais. O que me convenci - e este passeio também me ajudou a ver isso - é que a união entre esquerda e centro-esquerda é necessária para poder defender a democracia e enfrentar a ascensão de grupos de ultradireita que estão fazendo sentido para importantes setores da população, que não necessariamente compartilham seus valores, mas estão preocupados ou assustados com as incertezas que o novo mundo em que vivemos traz. E aí temos que ser mais autocríticos, entregar melhores propostas, dar soluções mais rápidas e atender emergências. Tivemos que mudar a agenda e administrar nossas prioridades de maneira diferente porque a segurança é uma preocupação fundamental para os chilenos hoje. Não podemos ignorar isso. Se não pudermos responder a isso, é claro que eles não acreditarão em nós. BBC - A ideia de pensar que pode acabar passando a faixa presidencial para a extrema direita de José Antonio Kast te tira o sono? Boric - Preocupa-me a continuidade das instituições democráticas e o bem-estar do povo chileno. E, nesse sentido, acredito que as propostas da ultradireita em nosso país não são boas para os chilenos e, portanto, espero que possamos ter continuidade. Mas ainda é muito cedo para pensar nos resultados das eleições presidenciais. Faltam dois anos e meio, e estou confiante que o fruto do trabalho que temos vindo a desenvolver vai convencer as pessoas que esta tem sido uma boa alternativa. E se não, respeitarei a vontade democrática do povo, que é o que corresponde em uma democracia. BBC - Continuando no campo dos sonhos... Com o que você sonha quando seu governo acabar? Em termos pessoais, pergunto. Boric - Em termos pessoais… Adoraria ir a Magalhães, passar mais tempo no estreito, viver um dia num farol. Mas em termos mais coletivos, o que me comove é que quando acabar o governo possamos ter melhorado um pouco a confiança interpessoal em nosso país, para que as pessoas não fiquem desconfiando das outras o tempo todo. Que possamos nos ver e nos reconhecer como iguais e que colaborando somos melhores que competindo. E por sua vez, que as instituições, não só do Estado mas também da sociedade civil, são mais valorizadas pelos cidadãos. Isso, para além de políticas públicas pontuais, seria uma importante conquista de um governo que se considera progressista. BBC - Gostaria de repetir o prato, concorrer de novo, quando possível? Boric - Não é algo que está na minha cabeça. Eu não tinha planejado esta situação. Há pessoas que às vezes acreditam que nasceram com a estrela para fazer tal coisa. Não me sinto parte desse grupo. E obviamente vou acabar muito jovem, se tudo correr bem, aos 39 anos, mas não estou a pensar no que vou fazer a seguir em termos políticos. Colaborar com o meu partido, com o Chile, mas não no sentido de querer voltar a ser presidente, não é algo que eu esteja pensando. BBC - Talvez o maior desafio diplomático internacional no momento seja a guerra na Ucrânia. A maioria dos líderes latino-americanos, liderados, por exemplo, pelo presidente Lula no Brasil, pediu um cessar-fogo imediato. Mas parece que você está tomando uma posição diferente... Boric - Em primeiro lugar, reconheço a liderança de Lula. Ele é um líder forte com muita experiência, ele tem um grande histórico. Tenho admiração por ele. BBC - Mas você não concorda com ele... Boric - Concordo com ele que temos que falar de paz e não ficar só falando de guerra. Minha posição, ou a posição do Chile, é que não importa o que você pensa da Ucrânia ou o que você pensa de Volodymyr Zelensky. Não importa quais são suas opiniões sobre o Sr. Putin ou sobre a Rússia. A guerra não é culpa de ambas as partes. A Rússia invadiu um país livre e quer tomar parte de seu território. E isso viola o direito internacional. E devemos defender o direito internacional porque agora é a Ucrânia, mas amanhã pode ser nós, pode ser qualquer um. BBC - Há preocupação na União Europeia de que a China, e talvez também a Rússia, estejam fazendo investimentos significativos - e amigos - na América Latina, enquanto o Ocidente está perdendo terreno. Você acha que isso é verdade? Se for verdade. Isso não é uma suposição. Isso te preocupa? Você diz que seu principal princípio político é a defesa dos direitos humanos e da democracia... Boric - Acredito que todos os países devem concordar em defender os direitos humanos, porque esse é um avanço civilizatório que não devemos negar. BBC - E você acha que a China ou a Rússia estão em uma posição mais forte para defender os direitos humanos? Boric - Creio que não. E acho que nem os Estados Unidos nem alguns países latino-americanos, meu próprio país em algum momento. Há muitos países que violaram os direitos humanos. Mas a questão é que devemos defender a qualquer momento e em qualquer governo a importância da universalidade dos direitos humanos. Acredito firmemente que a democracia é a melhor maneira de resolver nossos problemas. Mas não acho que devemos, como o Ocidente, impor a democracia a países que têm outras culturas. Isso é algo que cada país e cada povo deve discutir e resolver por si. BBC - Preocupado com a extensão da influência da China? Boric - Quando você fala com os chineses, eles não falam sobre a diferença entre sua cultura e a americana. Eles falam sobre o que podem fazer para ter mais investimento, como podem ajudar nisso ou naquilo. E é claro que você não precisa ser ingênuo sobre isso, mas a China está tendo uma posição mais forte. E acho que é porque eles estão fazendo seu trabalho melhor. Os Estados Unidos têm uma dívida pesada com a América Latina há muitos anos. BBC - Você está se referindo a dívida histórica negativa? Boric - Sim. E não acho que seja culpa do Sr. Biden. Os Estados Unidos devem reconhecer que erraram em sua relação com a América Latina ao promover golpes militares. E acho que é por isso que esta cúpula é tão importante, porque acredito firmemente que na América Latina não devemos depender dos Estados Unidos ou da China. Devemos ser independentes. BBC - E como ser independente em um mundo cada vez mais polarizado? Boric - Bem, com países que pensam da mesma forma e compartilham valores. E compartilhamos valores com a Europa.
2023-07-21
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c843gdylp4eo
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Como são as regras para apostas esportivas nos EUA e America Latina
O governo federal deve anunciar em breve a regulamentação das apostas esportivas no Brasil. A Casa Civil confirmou à BBC News Brasil que as propostas estão à espera de uma decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). As apostas esportivas devem ser regulamentadas por meio de uma medida provisória e um projeto de lei, que serão enviados ao Congresso. O tema é alvo de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) que investiga denúncias de manipulação de partidas de futebol para favorecer apostadores. A regulamentação tem sido defendida por membros da CPI como um instrumento importante para coibir fraudes. Fim do Matérias recomendadas As novas regras devem estabelecer como serão tributadas as receitas das empresas e as premiações pagas aos apostadores, além de estabelecer como será feita a permissão para empresas de apostas operem no país. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que o governo estima arrecadar R$ 2 bilhões em 2024 com taxação de apostas esportivas. Parte dos valores arrecadados devem ser destinados a investimentos em educação e segurança pública, para o custeio da seguridade social e do Ministério do Esporte, além de pagamentos aos clubes pela cessão de marcas aos sites de apostas. Além da tributação, as novas regras devem estabelecer as sanções para as empresas que não cumprirem os critérios de funcionamento das plataformas. As apostas esportivas foram autorizadas no Brasil por uma lei aprovada em 2018. As normas para esse tipo de atividade deveriam ser criadas por meio de novas leis, mas isso não foi feito até agora. A falta de regulamentação criou um limbo legal que levou empresas do setor que atuam no Brasil a operarem a partir de outros países, especialmente do Caribe e Mediterrâneo. A proliferação e popularização dos sites de apostas nos últimos anos criou desafios para governos de várias partes do mundo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Tradicionalmente, as apostas esportivas eram feitas de maneira presencial. A internet fez esse mercado crescer muito porque agora é possível apostar em uma variedade muito maior de campeonatos e esportes. Heather Wardle, professora da Universidade de Glasgow, na Escócia, e especialista em apostas esportivas, diz que “o jogo online oferece acesso contínuo a produtos de uma forma que não era possível há 20 anos”. “O jogo online também muda fundamentalmente a natureza da indústria, já que são grandes empresas de tecnologia fazendo uso de todas as percepções e informações que possuem sobre as pessoas, e são capazes de ter um relacionamento muito direto com seus consumidores por meio de seus dispositivos e pegadas digitais”, aponta a especialista. “Eles usam todas essas informações para direcionar as pessoas para que continuem a jogar.” Esse boom das apostas esportivas levou outros países do mundo a regular esse tipo de atividade. Entenda a seguir como funcionam estas regras atualmente nos Estados Unidos e em países da Europa e da América Latina. A indústria de apostas apelidou a América Latina de "gigante adormecido" por ter um grande potencial que consideram inexplorado e pelo grande número de fãs de esportes, diz Wardle. Entre os países da região, há grande disparidade nos estágios de regulamentação do setor. Em geral, os países que têm regras cobram taxas para que as operadoras se regularizem e exigem que elas tenham sede nos seus respectivos territórios. A Colômbia foi pioneira ainda em 2015 ao estabelecer regras para o funcionamento e a tributação dos sites de apostas esportivas e criar um órgão, o Coljuegos, para supervisionar essa atividade. Não há limite para o número de plataformas que podem operar, e as licenças valem por três anos, prorrogáveis por mais cinco. Além dos tributos cobrados de empresas, os lucros dos apostadores a partir de um determinado valor também são taxados em 20%. Grande parte do que é arrecadado tem como destino o sistema de saúde do país. Tanto que a Coljuegos usa o slogan “aposte pela saúde”. No total, em 2022, foram arrecadados cerca de US$ 236 milhões (R$ 1,132 bi) com jogos de azar no país, dos quais US$ 151 milhões (R$ 724 milhões) tiveram como destino a saúde. Entre 2018 e 2022, o tamanho do setor quase sextuplicou na Colômbia, onde atualmente existem mais de 8 milhões de contas ativas nos sites de apostas. “Isso tem gerado desafios tecnológicos e desafios associados à proteção”, disse a Coljuegos à BBC News Brasil por meio de nota. “O rápido crescimento levou a milhões de transações por dia, o que gera grandes volumes de informações para transformar e analisar”. A Coljuegos avalia que enfrenta um “flagelo” do jogo ilegal e realiza constantes esforços para controlá-lo. O órgão afirma que conseguiu bloquear mais de 10.749 sites que oferecem jogos de azar na internet e 121 perfis de redes sociais nas quais este tipo de plataforma não autorizada eram promovidas. Na Argentina, cada Província é responsável por estabelecer suas próprias regras, e os apostadores só podem acessar um determinado site se estiverem localizados na região onde a plataforma tem autorização para operar. Na Província de Buenos Aires, foram outorgadas apenas sete licenças, com validade de 15 anos. Uma parte do que é arrecadado vai para a educação. Já no Chile, a falta de regulamentação é alvo de preocupação de governantes, assim como no Brasil. As propostas visam atualmente dedicar parte do que for arrecadado para medidas de incentivo ao esporte chileno. O economista chileno Maurício Holz fez um estudo comparando as estratégias de Colômbia, Espanha e da Província de Buenos Aires. Holz explica que mecanismos como o número de licenças concedidas, sua duração e a frequência com que são concedidas funcionam como uma barreira de entrada para este mercado. Isso permite, segundo o especialista, ter um maior controle sobre as empresas. “Os requisitos visam a garantir a capacidade da empresa de cumprir suas obrigações tanto com o órgão regulador quanto com seus clientes”, afirma. Holz defende que mecanismos de controle e sanções às empresas que violem as regras são fundamentais para as regulamentações. Wardle concorda e avalia que, “onde a permissão do jogo é acompanhada por regulamentação e fiscalização inadequadas, há um perigo real para a saúde da população nesses países”, avalia Wardle. A Coljuegos afirma que vem colaborando com o governo do Peru para que o país implemente um sistema semelhante ao colombiano e que recebe com frequência contatos de outros países na região que querem regulamentar o setor. Nos Estados Unidos, em 2018, uma decisão da Suprema Corte do país anulou uma lei federal de 1992 que vetava apostas esportivas na maioria dos Estados, abrindo caminho para a legalização da atividade, mas excluindo as competições universitárias do rol de apostas possíveis. A regulamentação das apostas esportivas cabe a cada Estado no país, assim como em outros temas, como aborto e criminalização das drogas. Atualmente, 34 dos 50 Estados americanos têm algum tipo de permissão para a atividade. O Estado de Nevada, onde fica a cidade de Las Vegas, capital americana dos jogos de azar, foi um dos primeiros a regular as apostas esportivas. Enquanto isso, governos como os de Delaware e Dakota do Sul permitem as apostas, mas apenas se forem feitas de forma presencial. Em novembro passado, os californianos foram às urnas para votar sobre a legalização das apostas esportivas no Estado. A proposta foi rejeitada. Com uma cultura consolidada há décadas neste tipo de atividade e algumas das principais empresas do setor, a Europa conta há anos com uma série de regulamentações na área. Desde 2005, o Reino Unido conta com uma legislação para o tema, que estabelece, por exemplo, quais autoridades podem outorgar licenças às plataformas e as taxas anuais que cada uma deve pagar para operar. Na Espanha, um decreto estabeleceu as diretrizes para as apostas em 2011, e é aplicada uma taxação de 20% às receitas das plataformas. Para outorgar as licenças, é necessário que haja ao menos um representante permanente no território espanhol. As permissões têm prazo de dez anos, que podem ser prorrogados por igual período. A Itália é um dos países na região onde o tema é mais sensível, já que os campeonatos locais de futebol foram duramente atingidos por manipulações envolvendo apostas esportivas em algumas oportunidades, como no Brasil. A legislação local passou por algumas modificações desde 2007. A maioria buscou reforçar a presença de empresas italianas no ramo e, mais recentemente, a taxação das receitas das empresas aumentou, e foram impostos limites para os valores pagos aos apostadores. São discutidas alterações semelhantes no Reino Unido para atualizar as regras do setor. Os projetos, em tramitação no Parlamento, ainda incluem uma taxa que seria cobrada das empresas para pagar o tratamento de vícios e medidas de prevenção, com foco especialmente em jovens de 18 a 24 anos que, segundo as evidências, correm maior risco de danos. A preocupação com o vício é constante no país. O tema levou as equipes da elite do futebol local a concordarem em não exibir mais patrocínios de casas de apostas em suas camisas, algo que também foi adotado na Espanha. Para Wardle, é preciso haver uma postura muito mais rígida para a publicidade, o marketing e o patrocínio de jogos de azar. “É improvável que regras adotadas voluntariamente sejam eficazes. A história mostra que elas são frequentemente contornadas com poucas repercussões”, avalia. Recentemente, um país que avançou no tema foi a França, onde o Parlamento proibiu a participação de influenciadores e atletas nas propagandas de casas de apostas. “É muito importante olhar para coisas como esta e para as formas como as empresas de jogos de azar e suas afiliadas estão usando uma ampla gama de mídias sociais para vender seus produtos”, afirma Wardle. “Muito disso ocorre de forma realmente pouco transparente, e (estas redes sociais) podem ser acessadas por crianças e jovens, o que é eticamente questionável.”
2023-07-21
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn06yqrg4evo
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Copa do Mundo feminina: quais as chances do Brasil ser campeão, segundo estatísticas
O fato de um mesmo país ser citado por diferentes especialistas e estatísticas como favorito para vencer a Copa do Mundo não faz jus à expectativa gerada pelo Mundial Feminino a ser disputado na Nova Zelândia e na Austrália. Isso porque o torneio é tido como um dos mais disputados da história. É fato que os Estados Unidos conquistaram quatro títulos nas oito edições que disputou, que venceram os dois últimos mundiais e que partem como o principal candidato a erguer o troféu na final deste ano, marcada para 20 de agosto. No entanto, no final de 2022, a seleção do país sofreu três derrotas consecutivas frente a três seleções europeias (Inglaterra, Espanha e Alemanha) e isso deu esperança aos seus rivais para quebrarem a hegemonia americana no Mundial. "No ano passado, foi disputada a Eurocopa mais equilibrada da história e esta Copa do Mundo será da mesma maneira", disse Willie Kirk, técnico do time feminino do Leicester, da primeira divisão do futebol inglês. A BBC News Mundo, junto com a BBC Sport, consultou vários especialistas, ex-jogadores e estatísticas para saber qual é a seleção favorita para ganhar a Copa do Mundo, além de saber quais são as chances das seleções latino-americanas. Fim do Matérias recomendadas Com base nos números e projeções da empresa de análise de dados Gracenote, os Estados Unidos aparecem como o candidato com mais chances de defender com sucesso seu título mundial. A metodologia é baseada na classificação estabelecida pela Fifa para prever os resultados de cada partida, com cerca de um milhão de simulações de todo o torneio. "É difícil ver além dos Estados Unidos", admite a atacante da Irlanda do Norte Simone Magill. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Elas têm uma trajetória de sucesso e o histórico fala por si. A mentalidade delas faz uma grande diferença e são uma máquina de vencer. É difícil ver isso mudando nesta temporada", acrescentou. Mas uma das lendas do futebol inglês, Kelly Smith, considera que "elas tiveram alguns contratempos recentemente em termos de resultados e não têm os mesmos grandes nomes na escalação". A jornalista venezuelana da ESPN Deportes Geraldine Carrasquero concorda que a renovação do elenco pode ser um fator decisivo. "É impressionante, mas tem 14 novas jogadoras que nunca estiveram na Copa do Mundo e temos que ver como elas respondem", disse ele. Segundo o Gracenote, a seleção norte-americana tem 18% de chances de conquistar o pentacampeonato mundial, mas isso mostra que o favoritismo está longe de ser avassalador. Alemanha e Suécia aparecem como seus principais rivais, com 11% de chance, embora as nórdicas apareçam do mesmo lado da tabela dos EUA e teriam que enfrentar as americanas nas semifinais. Em seguida, vem a França com 9%, logo à frente da campeã europeia Inglaterra, que, junto com a Espanha e a anfitriã Austrália, têm 8% de chance. O melhor time latino-americano da lista é o Brasil, vice-campeão mundial em 2007, com 7%. Apesar de estar com o oitavo melhor percentual nas estatísticas, o otimismo no Brasil é bastante moderado. “É um time que está passando por uma mudança geracional”, disse Renata Mendonça, co-fundadora do site especializado em esportes femininos Dibradoras e comentarista da SportTV, da Rede Globo. "Se chegar às semifinais será um sucesso, mas tudo indica que terminará em segundo lugar do seu grupo e nas oitavas-de-final terá de enfrentar a Alemanha. Não vai ser nada fácil", explicou Mendonça. Aliás, o Gracenote dá 41% de chance às brasileiras em um possível duelo contra a seleção alemã. "Por que não? Elas têm Marta e muitas jogadoras jovens que estão indo bem na Europa e no campeonato dos Estados Unidos", respondeu Geraldine Carrasquero quando perguntada se o Brasil poderia vencer a Copa do Mundo. "Com (a técnica) Pia Sundhage no comando, elas podem surpreender. Elas já mostraram na Finalíssima contra a Inglaterra que estavam bastante equilibradas e empataram fisicamente", acrescentou. A verdade é que, com a presença da técnica sueca no banco, há muita expectativa sobre o que o Brasil pode fazer na Copa do Mundo. "Estou ansiosa para ver como elas jogam", reconheceu a americana Kristine Kelly, que detém o recorde de partidas disputadas em uma Copa do Mundo. "Sempre acreditei que, se tivessem uma formação e treinamento melhores, seriam uma equipe realmente temível", alertou. A América Latina terá seu maior número de representantes em uma Copa do Mundo, graças ao aumento do total de equipes participantes — de 24 para 32. Mas também devido ao progressivo desenvolvimento do futebol feminino em alguns países da região. Argentina, Colômbia e Costa Rica já sabem o que é jogar uma Copa do Mundo, enquanto Haiti e Panamá farão sua estreia no torneio. Todas com objetivos muito diversos, mas nem por isso menos ambiciosos. "Minha expectativa para as seleções sul-americanas é que consigam derrubar seus respectivos tetos de vidro", disse Carrasquero. No caso da Argentina, por exemplo, seria vencer seu primeiro jogo. "A seleção está em um processo que começou há dois anos com a chegada de Germán Portanova como técnico", explicou Angela Lerena, comentarista do TNT Sport e da TV Pública. "A Argentina tinha uma atitude mais defensiva, sabendo que era inferior à maioria das seleções que estão na Copa do Mundo." "Mas agora disseram que não, que vão jogar como a Argentina joga, tentar jogar no campo rival, pressionar alto, ter um protagonismo e atacar com muita gente", acrescentou. Para Lerena, o mais importante é que elas busquem uma identidade futebolística além do resultado. "Gosto da ideia de que o futuro está sendo construído. Se uma vitória for conquistada nesta Copa do Mundo, é isso, a história foi feita", concluiu. A Colômbia, por sua vez, terá a difícil tarefa de tentar igualar o que conquistou na Copa do Mundo no Canadá, oito anos atrás, quando surpreendentemente venceu a França e se classificou para as oitavas de final, quando perdeu para os Estados Unidos. "Acho que pode passar para a próxima fase", disse uma confiante Carrasquero, da ESPN Deportes. "Para isso, vai depender do que ela sabe fazer com a bola e de suas habilidosas jogadoras como Linda Caicedo, Catalina Usme, Mayra Ramírez e Leicy Santos." Quanto às representantes da América Central e do Caribe, Carrasquero acredita que elas se beneficiam por jogar em uma confederação "onde estão duas das melhores seleções do mundo, Canadá, campeão olímpico, e Estados Unidos, campeão mundial". "Isso faz com que o resto tenha que subir de nível porque senão elas resolvem com muita facilidade. Um dos exemplos é que Panamá e Haiti estão lá pela primeira vez e a Costa Rica se mantém." As estatísticas de Gracenote dão a times latino-americanos menos de 1% de chances de se tornarem campeãs, mas, por enquanto, não se trata de lutar pelo título, mas sim de alcançar seus próprios marcos. *Com entrevistas de Laura García e BBC Sport.
2023-07-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cp97remzpwno
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'Pix tipo exportação': pagamento instantâneo se populariza na Argentina com real valorizado
Ao lado de caixas de alfajores e garrafas de vinho, um aviso ajuda a captar a atenção dos turistas brasileiros no centro da cidade argentina de Puerto Iguazú: "Aceitamos Pix". Mas este não é o único estabelecimento a aceitar o pagamento instantâneo que se popularizou no Brasil. No município, que faz fronteira com a cidade paranaense de Foz do Iguaçu, vários comerciantes vêm aceitando o Pix de olho no poder de compra dos brasileiros e do real, enquanto o peso argentino perde valor dia a dia com uma inflação que galopa a mais de 100% ao ano. "Não podemos correr o risco de perder clientes brasileiros", diz à BBC uma vendedora argentina que não quis se identificar e explicou que aderiu ao Pix mesmo tendo que pedir ajuda a um amigo com conta no Brasil para receber o dinheiro. Em outros locais da cidade, comerciantes contaram que usavam o Pix por meio de contas de familiares e que até fizeram sócios brasileiros. Fim do Matérias recomendadas Agora, o que começou como um "jeitinho" na fronteira encontrou um caminho oficial. Desde junho, o Pix já pode ser usado em lojas em todo o território nacional argentino, especialmente em pontos turísticos, por iniciativa de uma plataforma de pagamentos digitais argentina privada que, de certa maneira, se antecipou ao plano oficial do Banco Central de exportar a tecnologia de pagamentos instantâneos para os vizinhos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A iniciativa foi encabeçada pela empresa KamiPay, cujos criadores, que trabalham com parceiros no Brasil, viram na afluência de brasileiros na Argentina (são o terceiro maior grupo de turistas, depois de uruguaios e chilenos, ou 15% do total de visitantes) e na "complexidade" cambial da economia local uma oportunidade de negócios. "Ninguém anda mais com maços de dinheiro, e no Brasil vimos como é comum o uso do Pix, da carteira digital", diz à BBC News Brasil Nicolas Enrique Bourbon, cofundador da KamiPay, que negocia para expandir seu "Pix tipo exportação" também para Uruguai e México. Pela plataforma, o pagamento é feito em real por meio de leitura de QR Code, como no Brasil, e o uso da tecnologia blockchain agiliza as operações para que o comércio argentino receba na hora o pagamento. "O turista brasileiro que chega aqui, com um emaranhado de cotações, fica até confuso", acrescenta Bourbon. A Argentina possui, atualmente, pelo menos cinco cotações do dólar mais conhecidas. Na imprensa local, especula-se que elas possam chegar a 15. O Banco Central da República Argentina informa que existe apenas uma cotação, a do dólar oficial. No entanto, diariamente, os portais de notícias informam as demais cotações, como a do dólar blue (paralelo), a mais popular para uso local, a do MEP, definido pelo mercado financeiro, e a do turismo, por exemplo. Na sexta-feira (14/7), o dólar oficial era cotado a 277 pesos, o chamado dólar blue, a quase 520 pesos, e o chamado MEP, a 498 pesos. No câmbio que tem como referência o dólar blue (paralelo), o valor do real era cotado a cerca de 100 pesos. Se o turista brasileiro usar seu cartão de crédito para efetuar pagamentos, pagará um valor que tem como cotação de referência o dólar MEP, menos vantajosa que o “blue”, geralmente acrescida de impostos (Imposto de Operações Financeiras, o IOF) e a taxa do serviço cambial do banco, o chamado spread — algo que pode tornar o dinheiro vivo a escolha preferida. O Banco Central da República da Argentina mostrou, sem citar diretamente o Pix, que reconhece o sistema levado ao país pela iniciativa privada. Em um comunicado recente, informou que os "turistas poderão pagar com carteiras eletrônicas a um tipo de câmbio que terá como referência os dólares financeiros". Os comerciantes entrevistados pela BBC News Brasil veem o Pix como uma alternativa positiva pela rápida transferência de dinheiro para suas contas e como uma forma de não perder para a inflação. No mês de junho, a inflação argentina subiu 6%. Nos primeiros cinco meses do ano, o índice oficial acumulou alta de 50,7%. Em 12 meses, entre maio de 2022 e maio de 2023, a inflação chegou a 115,6%. Mariana Dappiano, empresária argentina do ramo de moda, conta que decidiu aderir ao Pix colocando, inclusive, um adesivo que sinaliza a disponibilidade da forma de pagamento na vitrine da sua loja no bairro de Palermo. "Entendemos que para o turista é muito estressante vir às compras com muitos pesos. O Pix é algo novo aqui, nos ofereceram e aceitamos imediatamente para agregar uma experiência amigável para o consumidor brasileiro", diz Dappiano, que tem negócios em vários países. Segundo a comerciante, um cliente já usou o Pix para compras, mas, com as férias de inverno e a expectativa de incremento do turismo brasileiro, ela acredita que a forma de pagamento terá mais adeptos. "É algo muito novo ainda, mas com potencial de crescimento, sem dúvida." De Mendoza, um dos polos produtores de vinho e destino usual de turistas brasileiros, representantes do setor de vinhos entrevistados pela BBC News Brasil dizem desconhecer a existência do Pix, mas confirmam a popularidade do real. "O que vemos aqui são brasileiros com reais ou dólares, trocando no paralelo, e saindo com uma pilha de pesos para pagar os consumos", conta um assessor de imprensa do setor vitivinícola de Mendoza. Em locais turísticos da cidade de Buenos Aires, como em pequenos mercados do bairro da Recoleta e bares de San Telmo e Palermo, é possível pagar a conta com reais, recebendo o troco em pesos. Nas vitrines de lojas do centro da cidade também passou a ser comum a informação sobre a cotação do real, um sinal de que mais comerciantes estão aceitando a moeda brasileira. "Nós entendemos que é, muitas vezes, mais prático para o turista brasileiro pagar em real. Por isso, aceitamos", diz o vendedor Jorge Salas, do bar La Chopperia, em Palermo. A atual crise da economia da Argentina inclui, além da desvalorização do peso e da inflação, a escassez de divisas (em dólares) nas reservas do Banco Central — afetadas, principalmente, pela seca histórica que drenou os dólares gerados pelas exportações do setor agropecuário do país. Por isso, no país que aprendeu a pensar em dólar por causa da crise econômica crônica, a moeda americana é ainda dominante, mas há outros experimentos em curso. Além da maior aceitação do real, há a chegada da moeda chinesa, o yuan, o que faz o movimento ganhar ares de disputa geopolítica. Desde a semana passada, o Banco Central argentino autorizou que sejam abertas contas bancárias na moeda da China logo depois que o governo assinou em Pequim um acordo que permitiu à Argentina receber US$ 10 bilhões (R$ 48 bilhões) para reforçar as reservas do país. O arranjo com o Brasil, no entanto, está em negociações, segundo fontes do governo argentino.
2023-07-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2qd6y0eed2o
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Vídeo, Por dentro da polêmica megaprisão de El SalvadorDuration, 2,14
Parte de uma política linha-dura de combate às gangues em El Salvador, o megapresídio criado pelo presidente Nayib Bukele foi alardeado como o maior do continente. O local não dá acesso a jornalistas, nem a advogados - um dos motivos pelos quais ele é criticado por entidades de direitos humanos. A BBC Mundo (serviço em espanhol da BBC) investigou para descobrir como é o presídio por dentro. Confira neste vídeo.
2023-07-18
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-66236152
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Por que Europa agora tem pressa para se reaproximar de Brasil e América Latina
Bilhões de euros em investimentos, promessas de um acordo de comércio e palavras de união — tudo para recuperar o tempo perdido. Essa tem sido a tônica dos anúncios da Europa nesta semana durante a cúpula de líderes de União Europeia e da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), que acontece em Bruxelas. A Comissão Europeia anunciou nesta segunda-feira (17/7) que a América Latina vai receber 45 bilhões de euros (mais de R$ 240 bilhões) nos próximos quatro anos como parte do Global Gateway — o programa europeu de investimentos em projetos sustentáveis em diversos setores, como saúde, educação e tecnologia. Os europeus também têm pressa para finalizar o acordo comercial com o Mercosul (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai) — que está sendo negociado desde 1999. Em Bruxelas, Pedro Sánchez, presidente da Espanha (país que ocupa atualmente a presidência rotatória da União Européia), disse que existe uma “janela de oportunidade” agora para se fechar o acordo até o final do ano. Mas por que a Europa tem tanta pressa e oferece tantas “benesses” ao continente agora? Fim do Matérias recomendadas Segundo fontes do Itamaraty, especialistas internacionais e até mesmo algumas das autoridades europeias, três pontos explicam o afã europeu em se aproximar do Brasil e dos demais países da região neste momento: a crescente influência da China na América Latina, a rivalidade com a Rússia no cenário internacional e a sensação que a Europa perdeu muito tempo ao longo das últimas décadas. A própria presidente da Comissão Europeia, Ursula Von Der Leyen, ao anunciar o investimento maciço na América Latina nesta segunda-feira, reconheceu esses motivos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast “A América Latina, o Caribe e a Europa precisam uns dos outros mais do que nunca. O mundo no qual vivemos é mais competitivo, mais conflituoso do que antes, ainda se recuperando do impacto da pandemia de covid. O mundo está sofrendo o impacto duro da agressão da Rússia à Ucrânia. E tudo isso acontece com o pano de fundo do crescimento da ascendência da China no exterior”, disse a presidente da Comissão Europeia. A cúpula entre União Européia, América Latina e Caribe não acontecia desde 2015 — e foi relançada em um momento em que os europeus tentam trazer o continente de volta à sua esfera de influência. “Hoje marca um novo começo para uma velha amizade”, disse Von Der Leyen. Analistas dizem que a aproximação com a América Latina — o que inclui o acordo comercial com o Mercosul — se tornou uma das prioridades da gestão de Von Der Leyen na União Europeia. Neste ano, ela já visitou Brasil, Argentina, México e Chile. “A importância do acordo UE-Mercosul aumentou ainda mais para Bruxelas, já que a Europa decidiu diversificar seus laços comerciais após uma dura separação da Rússia após a invasão da Ucrânia e uma avaliação de risco sobre sua dependência de suprimentos chineses e acesso ao mercado”, afirma um relatório da consultoria política Eurasia Group. O próprio programa de investimentos da Europa — o Global Gateway — é visto como uma resposta europeia ao ambicioso plano de investimentos da China — conhecido como “Nova Rota da Seda”. Nos últimos dez anos, através desse programa, a China despejou bilhões em projetos de infraestrutura principalmente em países da América Latina, Ásia e África. A Nova Rota da Seda construiu rodovias, ferrovias e portos no exterior e aumentou a influência de Pequim em mais de 140 países. Há diferentes estimativas sobre quanto dinheiro já foi investido pela China em dez anos. Os valores vão de US$ 890 bilhões (mais de R$ 4,2 trilhões) a US$ 1 trilhão (R$ 4,8 trilhões). Com seu programa Global Gateway, a Europa quer investir 300 bilhões de euros (R$ 1,6 trilhões) até 2027 para “diminuir o fosso de investimento global” em infraestrutura que existe entre os países ricos e os em desenvolvimento. Segundo os detalhes anunciados em Bruxelas, a América Latina vai receber uma fatia de 45 bilhões de euros para 130 projetos. Entre esses projetos estão 2 bilhões de euros (R$ 10 bilhões) de investimento para apoiar a produção brasileira de hidrogênio verde e energias renováveis, uma parceria com a Argentina sobre matérias-primas sustentáveis e lançamento de um Fundo para Hidrogênio Renovável no Chile, com orçamento inicial de 225 milhões de euros (R$ 1,2 bilhão). Mas o movimento de reaproximação com a América Latina não tem sido sempre fácil. A União Europeia está no processo de finalizar três acordos de livre comércio na região — um com Chile, um com México e um com Mercosul (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai). Tanto a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von Der Leyen, como o presidente rotativo do Conselho da União, Pedro Sánchez (Espanha), disseram que a prioridade é aprovar esses acordos até o final do ano. Mas, no caso do Mercosul, ainda há muitos obstáculos no caminho. Países como França, Irlanda, Holanda e Áustria tentam introduzir mecanismos no acordo que inviabilizem negócios com países que desmatarem suas florestas. Ao discursar na Cúpula em Bruxelas na segunda-feira, Lula disse que esse tipo de cláusula soa como “ameaças”. “A conclusão do Acordo Mercosul-União Europeia é uma prioridade e deve estar baseada na confiança mútua, e não em ameaças. A defesa de valores ambientais, que todos compartilhamos, não pode ser desculpa para o protecionismo”, disse Lula. “Proteger a Amazônia é uma obrigação. Vamos eliminar seu desmatamento até 2030. Mas a floresta tropical não pode ser vista apenas como um santuário ecológico.” Também existe uma pressão para que empresas europeias possam participar de licitações públicas em setores nacionais estratégicos, o que no jargão diplomático é conhecido como “compras governamentais”. No mesmo discurso em Bruxelas, Lula também disse que o Brasil não aceitará essa pressão. “O poder de compra do Estado é uma ferramenta essencial para os investimentos em saúde, educação e inovação. Sua manutenção é condição para industrialização verde que queremos implementar.” Não se sabe ainda se essa questão pode ser rapidamente negociada pelos diplomatas ou se ela pode acabar reabrindo todas as negociações entre os blocos. Apesar dos entraves, é possível que o acordo Mercosul-União Europeia avance ainda neste ano. O Brasil apresentou no fim de semana aos seus parceiros do Mercosul uma proposta de resposta às reivindicações feitas por europeus. Depois que essas propostas forem analisadas e houver um consenso dentro do Mercosul, as negociações devem seguir adiante. Analistas e fontes do Itamaraty acreditam que o momento é propício para avanços nas negociações. A “janela de oportunidade” se estende até junho de 2024, quando a Europa realizará eleições para o Parlamento do bloco. Depois disso, é difícil prever se a União Europeia aprovaria o acordo, já que isso dependeria do perfil dos novos parlamentares e da nova composição da casa. Em Bruxelas, Lula disse que, apesar das dificuldades, espera a conclusão do acordo ainda neste ano. “A União Europeia é o segundo maior parceiro comercial do Brasil. Nossa corrente de comércio poderá ultrapassar este ano a marca de US$ 100 bilhões. Um acordo entre Mercosul e União Europeia equilibrado, que pretendemos concluir ainda este ano, abrirá novos horizontes”, disse o presidente brasileiro. Outro ponto que tem causado certo atrito nas relações com os latino-americanos — e com o Brasil em especial — é a Rússia. A União Europeia, junto com Estados Unidos e Reino Unido, vem impondo sanções pesadas à Rússia desde a invasão da Ucrânia no ano passado. Diplomatas em Bruxelas relatam que há dificuldades para se chegar a um consenso sobre como tratar do tema na declaração final da cúpula, que termina na terça-feira. Von Der Leyen — que já foi apontada neste ano como favorita para assumir a presidência da aliança militar ocidental Otan — fez referências críticas à Rússia em seu discurso. Já Lula fez o oposto: criticou a atuação das potências ocidentais. “A guerra na Ucrânia é mais uma confirmação de que o Conselho de Segurança das Nações Unidas não atende aos atuais desafios à Paz e à Segurança. Seus próprios membros não respeitam a Carta da ONU”, disse Lula. “Recorrer a sanções e bloqueios sem o amparo do direito internacional serve apenas para penalizar as populações mais vulneráveis.” A Cúpula União Europeia-Celac termina na terça-feira (18/7) na Bélgica. Pela manhã, Lula terá um encontro com líderes “progressistas”, organizado pelo ex-premiê sueco Stefan Löfven, que preside o Partido Socialista Europeu. No mesmo dia, ele participa de sessão plenária final da cúpula e mantém encontros bilaterais com líderes de Suécia (premiê Ulf Kristersson) e Dinamarca (premiê Mette Frederiksen). Ele deve embarcar de volta para o Brasil na manhã de quarta-feira.
2023-07-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4n49ervdelo
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Os aliados internacionais de Lula que podem deixar o poder em breve
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) iniciou nesta semana sua 14ª viagem internacional em seis meses de governo. O destino da vez é Bruxelas, onde ele participa de um encontro da União Europeia (UE) e da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), que contará com dezenas de chefes de Estado das duas regiões. Na margem do encontro, na terça-feira (18/7), Lula participará de um encontro com líderes progressistas de Europa e América Latina, organizado pelo Partido Socialista Europeu. O convite a Lula para participar do encontro UE-Celac partiu do presidente do governo espanhol, Pedro Sánchez, do Partido Socialista Obreiro Espanhol (PSOL). A Espanha preside atualmente a União Europeia. Desde que o governo iniciou esforços diplomáticos internacionais sob o slogan informal de “o Brasil voltou” — para marcar oposição ao governo de Jair Bolsonaro, que segundo analistas priorizava pouco a política externa —, Lula tem buscado a aproximação com dois líderes internacionais que em breve poderão estar fora do poder: Pedro Sánchez, na Espanha, e Alberto Fernandez, na Argentina. Fim do Matérias recomendadas A Espanha assumiu no mês passado a presidência rotativa do Conselho da União Europeia. E isso acontece em um momento em que União Europeia e Mercosul podem estar próximos dos ajustes finais de um acordo de livre comércio que vem sendo discutido desde 1999. O Brasil preside — até dezembro — o Mercosul, também de forma rotativa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O jornal espanhol El País destacou a afinidade ideológica entre os dois líderes. “Pedro Sánchez está quase tão eufórico quanto Lula pela vitória do histórico dirigente sindicalista brasileiro e a derrota do ultradireitista Jair Bolsonaro”, disse o jornal. Na ocasião, Sánchez falou que a coincidência das presidências brasileira no Mercosul e espanhola na UE era uma “excelente oportunidade” para que houvesse avanços concretos nos acordos comerciais. O governo brasileiro havia inicialmente dito que o vice-presidente Geraldo Alckmin iria para a cúpula UE-Celac em Bruxelas. No entanto, após uma conversa telefônica com Sánchez, Lula anunciou que iria pessoalmente ao encontro. O único ponto de discórdia mais evidente entre Lula e Sánchez é a questão da Ucrânia. Na coletiva de imprensa que deram juntos, Lula disse que é inútil debater “quem está certo, quem está errado”. Já Sánchez afirmou, ao lado do brasileiro, que “nesta guerra existe um agressor e uma vítima de um ataque” — acrescentando que o agressor é a Rússia. Apesar da aproximação com Sánchez, especialistas indicam que pode haver incerteza sobre a aproximação entre União Europeia e Mercosul — justamente por causa da Espanha. “As eleições antecipadas na Espanha em 23 de julho correm o risco de afetar a eficácia de Madri em conduzir acordos durante sua presidência do Conselho da UE”, analisa o grupo de consultoria Eurasia Group. Em maio, Sánchez antecipou eleições espanholas de dezembro, que agora serão realizadas no próximo fim de semana. Segundo analistas políticos, o objetivo do líder socialista é “neutralizar uma mudança no ciclo político que favorece a direita”. A direita conquistou diversas vitórias em eleições municipais realizadas em maio, despertando temores na esquerda de uma grande virada ideológica no país. Sánchez disputa a reeleição, mas o líder em algumas pesquisas é o direitista Alberto Núñez Feijóo, do Partido Popular. O crescimento do partido ultra-direitista Vox — e o discurso conservador de Feijóo para conquistar esses eleitores — tem despertado temores entre a esquerda espanhola. Apesar de poder haver uma virada política neste mês na Espanha, com eleição de um líder sem proximidade ideológica com Lula, especialistas dizem que não está claro se isso teria um efeito imediato nas negociações entre União Europeia e Mercosul. Por ora, os maiores opositores das negociações são França e Irlanda. Outro líder internacional com quem Lula tem grande afinidade — e também vital nas relações União Europeia e Mercosul — é o presidente da Argentina, Alberto Fernández. O líder argentino anunciou que não concorrerá à reeleição em outubro deste ano. Seu mandato acabará no dia 10 de dezembro. Faltando três meses para a eleição, o futuro político da Argentina está em aberto. Quatro candidatos aparecem hoje nas pesquisas de opinião: Sergio Massa (ministro da Economia apoiado por Fernández), Patricia Bulrich (oposicionista ligada ao ex-presidente Maurício Macri), Javier Milei (da extrema-direita) e Horacio Larreta (prefeito de Buenos Aires, também ligado a Macri). Desses candidatos, a maior afinidade ideológica de Lula é com Massa. Em Bruxelas, nesta semana, a Celac volta a realizar uma cúpula com a União Europeia após um intervalo de oito anos. Os temas centrais da cúpula são: mudança do clima e transição justa e sustentável; transição digital inclusiva e justa; segurança cidadã, coesão social e combate ao crime transnacional; e comércio e desenvolvimento sustentável e recuperação pós-pandemia. A guerra na Ucrânia pode vir a constar na declaração final da cúpula, mas não existe consenso entre as partes sobre uma posição conjunta. Lula chegou à Bruxelas no domingo (16/7) e tem seus primeiros compromissos nesta segunda-feira (17/7). Ele teve reunião com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e tem prevista participação em um fórum empresarial União Europeia-América Latina. Ao longo da segunda-feira, ele participa da cúpula UE-Celac e tem encontros com líderes de Barbados (premiê Mia Mottley), Bélgica (premiê Alexander de Croo), do Parlamento Europeu (Roberta Metsola), e com o rei da Bélgica, Philippe — além de um jantar de gala à noite. Na terça-feira (18/7), Lula terá o encontro de líderes progressistas com chefes de Estado de Argentina, Chile, Colômbia, Portugal, República Dominicana, Alemanha, Dinamarca e Espanha — segundo o Itamaraty. O encontro é organizado pelo ex-premiê sueco Stefan Löfven, que preside o Partido Socialista Europeu. No mesmo dia, ele participa de sessão plenária da cúpula e tem encontros bilaterais com líderes de Suécia (premiê Ulf Kristersson) e Dinamarca (premiê Mette Frederiksen). Ele deve embarcar de volta para o Brasil no final da terça-feira ou manhã de quarta-feira. O Itamaraty disse que não espera avanços significativos no acordo Mercosul-União Europeia esta semana, já que a cúpula servirá para tratar de temas mais amplos que tocam toda a América Latina e Caribe. Atualmente, os países-membros do Mercosul estão discutindo uma sugestão de resposta elaborada pelo Brasil à mais recente proposta europeia. Somente depois de consenso no Mercosul — que deve acontecer fora do prazo da cúpula — é que as negociações com a Europa devem evoluir. União Europeia e Mercosul fecharam um acordo comercial em junho de 2019. No entanto, esse acordo ainda não foi aprovado por cada um dos países membros. Com o início da guerra na Ucrânia, a União Europeia vem sinalizando que vai dar prioridade a fechar acordos comerciais com outras partes do mundo — como parte de sua estratégia de busca de parceiros alternativos à Rússia. Mas as negociações para um acordo final que seja aprovado por todos é difícil, sobretudo por resistência de países como França e Irlanda, que temem perdas de seus produtores domésticos com aberturas no setor de agricultura. Europeus têm levantado preocupações ambientais com os países do Mercosul. Já Lula disse neste mês que o bloco sul-americano não abrirá mão do controle de compras governamentais, que é uma forma de estimular empresas nacionais, protegendo-as de concorrência do exterior.
2023-07-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cx8y7r4713ro
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Por que Montevidéu está prestes a ficar sem água
Todas as manhãs, Sebastián Ciliurczuk abria a torneira de sua casa em Montevidéu para ferver a água do chimarrão. Há 45 dias, esse contador de 41 anos teve que mudar esse hábito e esquentar um litro de água engarrafada para fazer a tradicional infusão. Assim como ele, centenas de milhares de uruguaios deixaram de beber água da torneira ou usá-la para preparar suas bebidas. A qualidade da água corrente na capital uruguaia e cidades próximas piorou ao longo do ano porque um dos reservatórios que abastecem o sul do país secou por falta de chuvas e porque a principal reserva de água doce da região - a represa Paso Severino, localizada a 80 quilômetros ao norte de Montevidéu, estava praticamente esgotada. Nesta semana, ela estava com apenas 3% da capacidade, mas já chegou a ficar com 1,7% no início de julho. Fim do Matérias recomendadas Um país próximo a um dos rios mais largos do mundo e que acreditava que suas reservas de água eram infinitas enfrenta a pior seca desde 74 anos, e suas consequências não são vistas apenas na produção agrícola, mas também no dia a dia vida de mais da metade de seus 3,5 milhões de habitantes. O Uruguai, que foi o primeiro país do mundo a incluir em sua Constituição que o acesso à água potável é um direito humano fundamental, agora encontra dificuldades para cumprir o que determina o documento. O governo de centro-direita de Luis Lacalle Pou estava confiante de que a escassez de água seria resolvida com as chuvas, mas isso não ocorreu. "(A ação foi tomada) pensando que era uma questão temporária e que as chuvas viriam", declarou o vice-ministro do Meio Ambiente, Gerardo Amarilla, em entrevista ao canal local 12 em meados de maio. Questionado sobre se essa era a razão pela qual não tinha sido feita anteriormente uma represa para transferir água de outro rio para a bacia que alimenta o abastecimento da capital, o governante reconheceu que sim. Naquela época, o governo adotou medidas transitórias - por 45 dias - para flexibilizar os requisitos de qualidade da água encanada. "Vamos torcer para que não precisem ser prorrogados", disse Lacalle Pou na ocasião. Setenta dias depois, a qualidade da água não melhorou. Com pouca água doce na represa Paso Severino, o governo autorizou em 26 de abril que a Companhia Nacional de Abastecimento de Água (OSE, estatal) utilize a água do rio da Prata, que tem maior concentração de sal e cloreto, e a misture com os outros estoques. Uma semana depois, o governo permitiu que a proporção de sódio para cloreto fosse ainda maior na água que as autoridades dizem ser "própria para consumo humano". Com essas disposições, o Uruguai garantiu que a água não parasse de sair quando a torneira fosse aberta. Apesar disso, a água que hoje sai da torneira em Montevidéu pode ter, segundo autorização do governo, mais que o dobro de sódio e quase o triplo de cloreto em relação aos valores máximos da definição de potabilidade do país sul-americano. Em alguns dias, porém, esses novos tetos foram ultrapassados, segundo registros oficiais. A água também contém maior quantidade de trialometanos, compostos químicos que se formam no líquido quando ele é tratado com cloro para desinfecção. Diante do agravamento da crise hídrica, o governo decretou estado de emergência hídrica em 19 de junho e adotou uma série de medidas extraordinárias, como a construção de uma barragem de emergência e de uma barragem temporária, a compra de uma dessalinizadora e a instalação de uma tubulação de cerca de 13 quilômetros para levar água de outro rio até a estação de tratamento de água. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A causa imediata da crítica situação hídrica no sul do Uruguai é a falta de chuva. Nos últimos três anos e meio, choveu 25% a menos que a média histórica, e, se for considerado apenas o primeiro semestre de 2023, a queda foi de 43% em relação à média. A falta de chuvas no sul do país é ainda maior e, segundo o Instituto Uruguaio de Meteorologia, “o período atual é o mais seco” desde 1947. Mas os especialistas consultados pela BBC Mundo consideram que a atual situação de emergência foi alcançada também pela falta de planejamento dos sucessivos governos uruguaios. O reservatório Paso Severino foi inaugurado em outubro de 1987 e foi o último grande projeto realizado pelo Uruguai para aumentar sua capacidade de abastecimento de água. Sua construção havia sido planejada após um estudo realizado em 1970, que recomendou várias medidas adicionais a serem adotadas, como a construção de outra barragem na cidade de Casupá, a 110 quilômetros de Montevidéu, para ter um segundo reservatório de grande vazão. A conclusão de uma segunda obra de abastecimento de água foi adiada, governo após governo. Cinco episódios de estiagem nas décadas de 1990 e 2000 trouxeram o tema à tona de forma intermitente, mas como essas crises não foram suficientemente severas para afetar o abastecimento de água potável, logo o investimento voltou a ser adiado. Em 2013 e após o aparecimento de cianobactérias na água, o governo uruguaio disse que deveria ser construído um novo reservatório; um ano depois, anunciou o início do projeto Casupá. O tempo passou, o presidente José Mujica entregou o governo ao seu sócio de esquerda Tabaré Vázquez e, quase no final do mandato, em dezembro de 2019, o então presidente apresentou os estudos preliminares para o governo Lacalle Pou iniciar a construção do reservatório. O projeto estabeleceu um cronograma de obras com conclusão em junho de 2024 e exigiu um investimento de US$ 100 milhões (cerca de R$ 470 milhões). O governo de Lacalle Pou decidiu ir por outro caminho diante da proposta de um grupo de investimentos para construir uma estação de tratamento de água na cidade costeira de Arazatí, a oeste de Montevidéu, para tirar água do rio da Prata a um custo de cerca de US$ 280 milhões (cerca de R$1,3 bilhão), mais juros, pagáveis ​​em 20 anos. Isso politizou a discussão pública sobre a solução, e atualmente os partidos de oposição defendem o projeto Casupá, enquanto os governistas apoiam a iniciativa na costa uruguaia. Até mesmo funcionários do governo declararam que continuam a beber água da torneira, enquanto os opositores afirmam que ela pode ser usada para quase nada. “Suponha que (...) tivéssemos decidido pela barragem de Casupá, (...) teríamos feito tudo certo e em novembro ela estaria pronta; aquela represa [hoje] não tinha água”, disse Lacalle Pou em entrevista coletiva em maio. “O que o governo decidiu?” perguntou o presidente, e ele respondeu: “Uma fonte inesgotável de água como o projeto Arazatí, que tira água do rio da Prata”. O chefe de Estado disse que o projeto que lhe foi deixado pelo governo anterior não está descartado. O gerente geral da OSE afirmou algum tempo depois que os dois projetos deveriam ser executados. "Você tem que fazer Arazatí o mais rápido possível e também tem que fazer Casupá", disse ele. Para o diretor do Instituto de Ecologia e Ciências Ambientais da Faculdade de Ciências da Universidade da República do Uruguai, Daniel Panario, houve uma “total falta de visão”. "Acreditamos firmemente que nada acontece aqui", disse ele à BBC Mundo. Panario, que também é doutor em tecnologia ambiental e gestão hídrica, entende que, para evitar essa crise, deveria ter sido feito um investimento pontual tanto na geração de uma nova fonte de água quanto no reparo de tubulações. No Uruguai, metade da água transportada pela OSE é perdida, enquanto a média de vazamentos nos países em desenvolvimento é de 35%, segundo o Banco Mundial. “Os diferentes governos decidiram que era mais barato tornar a água potável do que consertar os canos ”, diz ele. Sobre a dicotomia do que deveria ser a nova fonte de recursos hídricos para o sul do país, Panario sustenta que "não poderia ser nenhum dos dois" projetos em discussão, mas que o mais adequado é o de Casupá porque supõe um custo mais baixo. O especialista alerta ainda que no passado a distribuição de água corrente no sul do país era descentralizada para várias fontes locais, e que ao longo das décadas a unificação dependente de uma única bacia agravou a crise atual. Diego Berger, doutor em engenharia ambiental e administração de recursos hídricos, concorda que o acesso à água potável no Uruguai era considerado seguro e que faltava planejamento. “É preciso entender que é um bem finito e que no futuro haverá mais flutuações, mais anos de seca e mais anos de enchente”, disse à BBC Mundo. “Nenhuma presidência vai colher frutos [de planejar e investir] em seu governo porque as políticas de água implicam trabalhar no longo prazo, e em muitos lugares não querem fazer isso porque transcende a administração”, acrescenta. Berger é o coordenador de projetos especiais no exterior da empresa israelense de água Mekorot, contratada pela OSE antes desta crise para consultoria. No ano passado, em entrevista à mídia local, Berger disse ser um "milagre" que o sul do Uruguai tenha "água todos os dias" porque depende de uma única fonte de abastecimento. O especialista acredita que o mais conveniente é construir primeiro a estação de tratamento de água do rio da Prata, para garantir uma segunda fonte de água , e que o projeto Casupá seja desenvolvido em uma segunda etapa, porque depende da mesma bacia que nesses anos foi afetado. Berger também acha que é preciso conscientizar a população sobre o consumo de água. De acordo com um relatório do Ministério do Ambiente publicado a 7 de julho que inclui previsões meteorológicas e projeções baseadas em diferentes modelos, a normalidade na bacia que alimenta o abastecimento ao sul do país poderá ser alcançada em dezembro. As chuvas dos últimos dias pouco ajudaram a resolver a crise hídrica do Uruguai, país que terá que buscar soluções de longo prazo para evitar o temido "dia zero" em que falta água.
2023-07-13
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cg3z91jy2xgo
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O que é a síndrome de Guillain-Barré, que fez Peru declarar estado de emergência
O governo do Peru decretou estado emergência sanitária nacional, no sábado (8/7), devido ao “aumento incomum” de casos da síndrome de Guillain Barré. Segundo os dados do Ministério da Saúde local, o país registrou 182 pacientes com a doença no primeiro semestre de 2023. Desses, quatro morreram, 31 seguem internados e 147 receberam alta. O ministro da Saúde peruano, César Vásquez, declarou que a decisão aconteceu após “um incremento importante [de casos] durante as últimas semanas”, o que exige “ações do Estado para proteger a saúde e a vida da população”. O que é a síndrome de Guillain Barré e quais são as principais formas de diagnóstico e tratamento? Fim do Matérias recomendadas A síndrome de Guillain Barré é classificada como uma doença autoimune, em que o próprio sistema imunológico passa a atacar certas partes do corpo de um indivíduo. No caso específico desta doença, a região acometida é o sistema nervoso periférico, responsável por fazer a comunicação entre o cérebro e as diferentes regiões e estruturas do nosso organismo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas o que leva a esse ataque súbito das células de defesa? Até o momento, os agentes identificados como possíveis gatilhos para a síndrome de Guillain Barré são: O ministério ressalta que “muitos vírus e bactérias já foram associados temporalmente com o desenvolvimento da síndrome de Guillain Barré, embora em geral seja difícil comprovar a verdadeira causalidade da doença”. E não há uma relação entre a gravidade da infecção e o aparecimento da doença: mesmo quadros leves e com poucos sintomas podem engatilhar o ataque ao sistema nervoso periférico. A infectologista Raquel Stucchi, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), acrescenta que o Guillain Barré também está eventualmente associado a uma reação vacinal, embora esse efeito colateral seja considerado raro. “Diversas vacinas têm essa relação causal com a síndrome, que pode ocorrer no período de 60 a 90 dias após a administração da dose”, diz a médica, que também integra a Sociedade Brasileira de Infectologia. Segundo as autoridades, os benefícios de se vacinar — e, portanto, ficar protegido das doenças infecciosas para as quais as doses são aplicadas — superam os eventuais riscos observados até o momento. Em linhas gerais, a síndrome começa com formigamentos ou uma sensação de fraqueza. Esses incômodos são progressivos e costumam se iniciar pelos membros inferiores (pés e pernas). Com o tempo, eles “sobem” para o tronco, os braços e as mãos. Se esses sinais não forem embora ou piorarem após alguns dias — com o aparecimento de dificuldades para se locomover, engolir ou respirar —, é importante buscar um médico o mais rápido possível para uma avaliação criteriosa. O diagnóstico da doença depende de alguns exames, como a análise do líquido cefalorraquidiano (o líquor, presente na medula espinhal e no cérebro). A detecção precoce da síndrome é primordial para iniciar o tratamento assim que possível. Desse modo, a doença não progride e não acomete outros músculos vitais para a sobrevivência — como é o caso do diafragma, que desempenha um papel fundamental na respiração. Na fase aguda, em que o paciente fica internado no hospital, o Guillain Barré é combatido com medicações conhecidas como imunoglobulinas intravenosas (IgIV). Esse fármaco traz anticorpos retirados de diversos doadores, numa tentativa de conter a ação desregulada do sistema imunológico. Se essa primeira opção não dá certo, os especialistas costumam recorrer à plasmaférese, um procedimento que substitui o plasma sanguíneo do indivíduo para livrá-lo de anticorpos que possivelmente engatilharam o quadro. Quando o problema agudo é resolvido, a pessoa recebe alta e volta para casa. Mesmo assim, ela ainda pode necessitar de tratamentos de reabilitação — que envolvem fisioterapia, fonoaudiologia e psicologia, entre outros. A nota publicada pelo Ministério da Saúde sobre o aumento repentino de casos não menciona eventuais explicações para a alta identificada. Stucchi aponta que o aumento repentino de casos de Guillain Barré em terras peruanas demanda uma avaliação aprofundada sobre possíveis causas infecciosas. “Sabemos, por exemplo, que o Peru vive a sua pior epidemia de dengue”, lembra a infectologista. O surto atual da doença transmitida pela picada do Aedes aegypti por lá até levou à queda da então ministra da Saúde, Rosa Gutiérrez, no dia 15 de junho. “A dengue talvez seja uma explicação, mas é necessário que se faça uma análise mais ampla, para se certificar que outros agentes não podem estar por trás desse cenário”, acrescenta Stucchi. “Uma investigação é necessária e fundamental.”
2023-07-10
https://www.bbc.com/portuguese/articles/clj5z2x1p70o
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'Betty, a feia': como novela que foi fenômeno no passado voltará em 2024 com mesmos protagonistas
“Betty, a feia”, uma das novelas colombianas mais populares da história da televisão, ganhará uma continuação no próximo ano. Ana María Orozco e Jorge Enrique Abello, protagonistas da novela original, vão dar vida novamente a Betty e Armando na nova versão, 20 anos após o início do casamento na novela. A Amazon Prime Video anunciou que a série estreará em seu serviço de streaming direto em mais de 240 países e territórios ao redor do mundo, em coprodução com os Estúdios RCN, da Colômbia. “Essa aposta é a evolução da novela de maior sucesso da América Latina para distribuição no mercado digital”, disse comunicado de Alexander Marín, vice-presidente de distribuição da RCN. A original "Betty, a feia" é considerada pelo Guinness World Records como a novela de maior sucesso da história. Fim do Matérias recomendadas Ela não apenas foi transmitida em centenas de países e dublada em 15 idiomas, mas também foi adaptada em vários territórios, incluindo Estados Unidos, Índia e África do Sul. No Brasil, a novela colombiana foi exibida pela RedeTV no início dos anos 2000 e, anos mais tarde, ganhou uma versão brasileira produzida pela Record. Beatriz Pinzón Solano era uma economista brilhante, com mestrado em finanças, que tinha um único "defeito": era feia. Quando ela começa a trabalhar na empresa Ecomoda como assistente do executivo Armando Mendoza, não apenas se apaixona por ele, mas tenta se tornar uma mulher bem-sucedida e desejada para conquistá-lo. Esse era o enredo da novela que estreou em 1999. Desta vez, Betty será uma mulher empoderada e líder de uma empresa, mas com novos desafios familiares. Betty ainda está casada com Armando, mas terá que se esforçar para reconstruir seu relacionamento com Mila, a filha adolescente dos dois. Ao mesmo tempo, ela tentará lidar com a crise que a empresa familiar atravessa enquanto questiona se a decisão que tomou há duas décadas realmente a faz feliz. “'Betty,a feia' tinha uma energia saudável, com o enorme impacto que essa personagem teve nos códigos de beleza convencionais, o que explica por que se tornou uma franquia global com a qual todas as mulheres podem se identificar”, disse Francisco Morales, que lidera a estratégia de aquisições de conteúdo para a América Latina da Prime Vídeo. A nova série será dirigida por Mauricio Cruz Fortunato e a história será escrita pelos roteiristas Marta Betoldi, Juan Carlos Pérez e César Betancur.
2023-07-08
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2vz7ngvydxo
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‘Padre me estuprou e obrigou a abortar’: as denúncias de abusos de menores em igrejas na Colômbia
Em 25 de agosto de 2022, estourou em Medellín, a segunda maior cidade da Colômbia, um dos maiores escândalos de abuso sexual de menores na Igreja Católica. Naquele dia, o arcebispo da cidade, Dom Ricardo Tobón Restrepo, publicou nas redes sociais uma lista com os nomes de 36 sacerdotes que haviam sido denunciados perante a arquidiocese nos últimos 30 anos. A publicação ocorreu depois que o Supremo Tribunal de Justiça do país decidiu em favor do jornalista colombiano Juan Pablo Barrientos e exigiu que a Igreja Católica entregasse os dados por considerá-los de interesse público. Barrientos investigou durante anos denúncias de pedofilia na Igreja Católica colombiana. Na lista divulgada pela arquidiocese, consta o nome de um padre acusado por Natalia Restrepo. O que se segue é o depoimento em primeira pessoa da mulher, acompanhado do contexto de seu caso coletado pela BBC Mundo. Meu nome é Natalia, tenho 32 anos e acabo de embarcar na jornada mais importante da minha vida. Voltei a Medellín com minha filha, duas malas e o firme propósito de quebrar meu silêncio. De denunciar, mais uma vez e de todas as formas possíveis, o padre que me estuprou e me obrigou a fazer um aborto em 2004, quando eu tinha 14 anos. Essa é uma viagem ao meu passado, à história mais dolorosa que já vivi e que nem a minha família conhece a fundo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Embora eu já tenha voltado várias vezes para a casa onde cresci, agora é diferente. É a primeira vez que volto para tentar falar com minha avó sobre o que aconteceu comigo. Ele já tem 90 anos e, embora tenha perdido a visão, seu caráter ainda é forte. Minha avó tem sido minha mãe e meu pai, porque eles não puderam ou não quiseram cuidar de mim. Eu nunca tive um relacionamento com meu pai. Minha mãe, por outro lado, mandava dinheiro para meu sustento dos Estados Unidos, onde reconstruiu sua vida e construiu outra família. Nunca senti falta de nada material. Eu gostava da minha mãe em tudo e ela sempre esteve em contato comigo, mas nunca moramos juntas. Por isso minha grande carência na vida, até hoje, tem sido afetiva. É um vazio que, não de forma consciente, tentei preencher com a religião. Minha avó me levava à missa aos sábados e domingos, e durante a semana, se fosse possível e passássemos pelo parque, também tínhamos de entrar na igreja. É algo que ela continua a fazer de forma sagrada até hoje. Falar sobre o que aconteceu comigo não é fácil, mas consegui fazer algumas perguntas a ela: - Mãezinha, você se lembra dos padres? - Sim, eu confiei neles porque eles me fizeram acreditar que cuidavam bastante de você. - Você se lembra que tinha um padre que sempre ligava para você para pedir sua permissão para mim? - Sim. sempre. Eu dizia a ele para ter muito cuidado. Tudo começou na paróquia que fica na praça principal de Envigado, município da região metropolitana de Medellín. É uma igreja grande e bonita. Me parece que não mudou com os anos. Quando eu era criança, gostava de ver as crianças e jovens no altar ajudando o padre durante a missa. Admirava-os com suas túnicas brancas e dizia à minha avó que queria ser como eles. Assim que completei 11 anos, idade mínima exigida, inscrevi-me no curso para ser coroinha (ou acólita, como chamamos na Colômbia). Um ano depois, me consagrei e comecei a auxiliar os padres da paróquia. Envigado é um lugar muito católico e conservador, por isso era motivo de orgulho para as famílias que seu filho ou filha estivesse na igreja, que participassem da Eucaristia [celebração da Igreja Católica para lembrar a morte e ressurreição de Jesus Cristo] e das procissões da Semana Santa. Eu também fazia parte dos grupos de infância missionária, então passava muitas horas lá. Foi nesse contexto que conheci um seminarista que sempre ia à missa aos domingos, ficava no altar e nos fazia cantar e aplaudir. Ele era carismático, conhecido por sua boa voz e por tocar violão. Ele chamava a atenção porque as missas eram mais chatas, mas o que ele fazia era bacana para os paroquianos. Além disso, foi ex-aluno do Liceu Francisco Restrepo Molina, o mesmo onde estudei. Por volta de 2002, foi ordenado padre e destinado a essa mesma paróquia de Santa Gertrude. Foi no mesmo ano que me tornei acólita, então compartilhei muito com ele. Às vezes, ele me pedia para ajudá-lo com o computador ou para fazer algum cartaz. Eu me sentia especial. Ele me tratava como alguém importante, porque minha caligrafia era linda e os cartazes ficavam muito bonitos. Ele me fez sentir levada em conta. Com o tempo, comecei a me tornar sua preferida. Acompanhava-o às missas fora da paróquia ou a alguma unção a um enfermo. Íamos no carro dele e, quando voltávamos, ele sempre me deixava em casa. Em um sábado, depois da reunião do grupo de jovens, o padre me pediu para acompanhá-lo a uma Eucaristia em um clube em um bairro nobre de Medellín. De lá, ele me levou a Sabaneta, município próximo a Envigado, para um restaurante ao ar livre onde vendiam carne assada. Ficamos lá por cerca de uma hora, comendo e bebendo algo. Então, entramos no carro, mas dessa vez ele não me levou para minha casa — e sim para um motel, que ainda existe. "Padre, por que você está me trazendo aqui?", perguntei a ele. "Para que possamos nos servir de mais alguma coisa e não nos vejam, porque talvez um padre bebendo seja feio", respondeu. Fiquei tranquila porque era comum ele beber. Além disso, eu confiava nele. Eu o conhecia há muito tempo e ele nunca tinha feito nada comigo. Lembro que os quartos eram como cabanas com estacionamento próprio. Ele bebeu muito, foi longe demais e começou a tentar tirar minha roupa. Eu não entendi muito bem o que estava acontecendo. Eu me senti confusa. Eu nunca tive aulas de educação sexual e falar de sexo com minha avó era um tabu . "Deixa eu te dar uns beijos. Sempre fui apaixonado por você. Você é uma mulher linda. Quero que seja minha", dizia o padre. Eu pedia para ele parar, mas ele não ligava. Foi quando comecei a sentir muito medo. Comecei a bater na porta que dava para a garagem para alguém me ajudar, mas ele me disse que ninguém ia ouvir, que a recepção era longe dali. O que ocorreu depois é a lembrança mais nojenta que tenho: ele tirou a calça, a camisa, me jogou na cama, abriu minhas pernas e se forçou contra mim. Essa imagem ficou comigo e acho que é o momento que gera mais ódio em mim. Agora que sou adulta, entendo que, como eu estava indisposta, demorou um pouco para chegar ao clímax. Mas naquele momento, não entendi nada, apenas me pareceu eterno. Eu estava gritando porque doía. Eu era adolescente e ele estava tirando minha virgindade. Quando — não sei como — consegui me libertar, comecei a chorar. Eu chorava muito, muito, mas ele não se importava. Ele disse que eu era dele, que sempre seria dele. Não contei a ninguém o que aconteceu porque, no fundo, sabia que não iriam acreditar em mim. Em Medellín, quando algo de ruim acontece a alguém, costuma-se dizer um ditado: "Nem se ele tivesse matado um padre [alguém mereceria isso]". E eu, que era uma adolescente de 14 anos, como ia enfrentar um? Quem iria acreditar que aquele homem respeitado em Envigado tinha feito algo tão terrível para mim? Logo após o estupro, houve outro episódio de abuso, desta vez na casa sacerdotal onde o padre morava na época. Uma vez, ele me levou para um quarto e começou a se masturbar. Ele pedia para eu olhar para ele. Talvez os abusos continuassem, mas aconteceu algo que mudou tudo: parei de menstruar. Eu tinha uma menstruação regular, então sabia que aquilo não era normal. Resolvi contar a uma amiga, sem lhe dar detalhes do que havia acontecido comigo. Ela sugeriu que eu fizesse um exame de (gravidez) de urina, mas o resultado não foi claro, então busquei um laboratório para fazer um exame de sangue. Eu estava a caminho quando encontrei Dona Lucía [nome alterado por respeito à sua privacidade], uma catequista da paróquia. Eu estava nervosa, mas confiei nela e contei tudo. Ela respondeu: "Como isso pode ter acontecido? Você sempre foi muito próxima dos padres... Eu pensei que talvez não fosse tão bom você ser tão próxima deles..." Fiz o teste em Envigado. O resultado foi positivo. Quando soube do resultado, fui à paróquia e disse ao padre que precisava falar com ele. Ele me encontrou em um lugar onde vendiam sorvete. Lá, eu disse que estava grávida. Ele ficou com raiva e me disse que eu não iria prejudicar sua vocação, que ele estava apenas começando sua vida sacerdotal. "Como posso não te atrapalhar se você esteve comigo? O que vou fazer?", perguntei. Ele me disse para não me preocupar, que ele iria dar um jeito na situação. Ele me levou a uma senhora em um bairro popular. Eles primeiro conversaram e depois ela fez um exame vaginal. A senhora disse que não havia nada que ela pudesse fazer. Acho que ela quis dizer que era muito cedo para inserir um espéculo, porque o feto era muito pequeno. Então, fomos a uma farmácia. No balcão, vi que o padre passou dinheiro para o vendedor, e este me deu comprimidos, explicou como tomá-los e avisou que eu ia sentir muita dor. O padre me disse que, com aquilo, eu iria menstruar. Ele nunca falou em aborto [que, no caso, foi ilegal]. Fugi do assunto por vários dias porque estava com medo. Mas ele me ligava para me pressionar. Ele gritava comigo e me manipulou muito. Até que eu usei os comprimidos. Na madrugada, comecei a expelir coágulos de sangue. Foi muito forte. A dor era horrível. Eu perdia muito sangue. Alguns dias depois, o desconforto continuou e decidi ir à clínica. Lá, eles tiveram que fazer uma curetagem, uma intervenção para limpar o resíduo que ainda estava no meu corpo depois do aborto. Mas eu não pude fazer isso em segredo, como eu queria. Uma das enfermeiras conhecia um parente meu e contou para ele. Ele veio para a clínica furioso. Ele disse coisas ofensivas para mim: "Como você engravidou e fez um aborto? Sabe-se lá de quem você engravidou!" Quando cheguei em casa, minha avó já sabia. Ele havia contado a ela, mas eu neguei. Eu disse que tinha ido clínica por outro motivo. Ficou por aquilo mesmo. Não voltamos a falar sobre aquele dia até agora, quando voltei e perguntei se ela se lembrava daquele episódio. - Mamãe, o que você lembra daquela época que eu fui para a clínica? - Naquele momento, não me dei conta, porque você disse que era só uma cólica. - E você lembra o que aconteceu daquela vez que fiquei até tarde com o padre? - Bem, foi depois que você contou que ele tinha... e que ele tinha te feito abortar. Minha avó nunca foi capaz de dizer a palavra "estupro" em nossa conversa. Não me surpreendeu porque eu mesma, sendo muito mais jovem, também tinha dificuldade em dizê-la. O que ela sim me disse é que passou a ter muito rancor daquele padre. "Uma vez fui confessar porque tinha muito ressentimento com aquele padre, pela confiança que havia depositado nele. Eu não queria receber a comunhão dele", disse minha avó. Vários anos se passaram até que tivesse coragem de apresentar uma queixa à Arquidiocese de Medellín. Tive dificuldade em decidir isso. Eu sabia que a Igreja Católica tem muito poder e que eu enfrentaria algo muito grande. Além disso, naquela época, eu me sentia culpada por ter abortado. Eu estava confusa e pensava que havia feito um pecado muito grave. Lembro que fui atendida por um padre que fazia anotações em um livro, à mão. Quando terminei, ele me deu um tapinha no ombro e disse que eu tinha que perdoar, “que eles [padres] são homens e também erram”. Não aconteceu nada. Nunca mais me contataram. Voltei recentemente e perguntei o que aconteceu com minha primeira queixa. Eles tampouco me deram uma resposta. A senhora que me atendeu pediu meus dados e disse que iria verificar os arquivos e entraria em contato comigo, mas não o fez. Então resolvi registrar uma queixa pela segunda vez. No dia 30 de agosto de 2022, o bispo auxiliar, monsenhor José Mauricio Vélez García, me atendeu. Enquanto ele me ouvia, anotava tudo no computador e lia em voz alta para que eu soubesse o que estava sendo registrado. No final, assinei um documento com a minha declaração. Perguntei a ele o que ele pensava. - É uma queixa muito grave. Deve ser assumida com toda a responsabilidade e rigor - respondeu. Ele acrescentou que não fazia ideia das minhas queixas anteriores. - Era outra época, outra realidade. Depois do aborto, me afastei da Igreja e tentei seguir em frente com minha vida. Eu mesma paguei meus estudos técnicos em farmácia, mas não me sentia bem. Eu queria ir embora, para onde ninguém me conhecesse. Ouvi várias pessoas falarem sobre o Chile e resolvi ir para aquele país distante e desconhecido para recomeçar. Saí em 2014, quando tinha 24 anos. Lá conheci meu marido e tive minha filha. Foi também lá que ouvi pela primeira vez sobre acusações de pedofilia contra padres católicos. Eles estavam no meio de um grande escândalo revelado por vários homens que, já adultos, denunciaram um padre chamado Fernando Karadima — que abusou deles quando eram menores. Isso me fez pensar: por que não posso também contar o que me ocorreu, se há outras pessoas que o fizeram depois de anos? Entendi que nunca era tarde e comecei a investigar. Fiquei sabendo que o padre que me estuprou ainda é atuante, em uma paróquia de Antioquia. Esse foi o último impulso que eu precisava para embarcar nessa jornada: voltar ao meu país para fazer denúncias e falar publicamente do meu caso. Não creio que ele possa passar a vida confessando, oferecendo a Eucaristia e falando de coisas boas, depois de ter feito algo tão sério. Só quero que ele pague pelo que fez. Mas não com uma suspensão ou castigo temporário. Espero que ele vá para a cadeia pelos crimes que cometeu. Por esse motivo, em setembro de 2022 também apresentei uma denúncia às autoridades colombianas. Fiquei um mês e meio em Medellín e fiz todas as atividades [relacionadas ao caso] que pude antes de voltar para a minha casa no Chile. Depois de toda a adrenalina daquela viagem — visitando lugares, pessoas e apresentando minha denúncia oficial à Justiça —, não tem sido fácil retomar a vida cotidiana. Na minha casa, embora esteja a minha filha que me ama e me acompanha, também há minha solidão e meus fantasmas. Ser abusada sexualmente me deixou com uma ferida que não consigo apagar. Isso afetou minha vida emocional e física. Desfrutar da minha sexualidade tem sido difícil. Estar na situação [sexual] revive o trauma e traz à minha mente imagens horríveis do estupro. Fecho os olhos, respiro, tento não pensar nisso, mas é como se isso estivesse me seguindo. Foi muito difícil também quando engravidei da minha filha, porque voltei a me sentir culpada por aquela outra vida que perdi. Penso quantos anos ele teria se tivesse nascido. Tento progredir, mas sinto raiva porque acredito que não existe justiça no meu país. Não entendo como um padre continua a atuar depois de ter cometido um crime tão grande. Também não recebi nenhuma resposta da arquidiocese. Imagino que não vai acontecer nada. Os sacerdotes dão cobertura uns aos outros. Quando há denúncias, no máximo são transferidos para asilos onde supostamente pagam as penas. Ou eles são enviados para cidades pequenas onde ninguém os conhece, e eles continuam atuando. Sinto raiva e impotência ao pensar que, em Envigado, tudo continua igual. Não tenho tido boas noites. Não imaginava que tudo isso seria tão difícil emocionalmente, que me daria tanta angústia lembrar e denunciar, mas não queria passar mais anos com isso no peito. Por isso decidi quebrar meu silêncio. Este texto e as fotos que o acompanham são minha última parada nesta dolorosa jornada de volta à minha infância e adolescência. A BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) tentou por mais de cinco meses obter informações sobre o caso de Natalia. Depois de numerosos telefonemas a diferentes funcionários, e-mails e de petições na Justiça, a Arquidiocese de Medellín concordou em responder por escrito às nossas perguntas. A instituição confirmou a existência das duas denúncias e reconheceu que, na época da primeira, “não havia processo formal que existe hoje” e que, após análise, decidiram arquivar a denúncia "até que se obtenha evidências que nunca obtiveram". No entanto, na lista divulgada por Tobón em 2022, o caso aparece "em investigação". Sobre a segunda denúncia, a arquidiocese afirmou que abriu uma investigação que está a cargo de dois padres, conforme indica o protocolo a ser seguido pela Igreja Católica desde 2019. Questionada sobre por que só apresentou a primeira denúncia à Justiça colombiana em 2022, a instituição afirmou que "assinou acordos de colaboração com o Ministério Público nos quais priorizam os casos ocorridos nos últimos três anos e, posteriormente, os ocorridos nos últimos cinco anos”. Sobre a versão do padre acusado, a assessoria de imprensa da Arquidiocese de Medellín esclareceu que ele era livre para decidir se atendia ou não às solicitações de um meio de comunicação. Todas as tentativas da BBC News Mundo de obter a versão dele não tiveram sucesso. A BBC News Mundo também teve que insistir por meses para obter respostas do Ministério Público da Colômbia e precisou novamente de uma ordem judicial para que a instituição respondesse por escrito a perguntas. O Centro de Atenção Integral à Vítima de Abuso Sexual do Ministério Público confirmou que recebeu a denúncia de Natália. Sobre a lista divulgada por Tobón, destacou que recebeu da Arquidiocese de Medellín autos onde se presume o cometimento de crimes sexuais por parte de sacerdotes, mas esclareceu que não foram realizadas investigações pela instituição religiosa. Além disso, a promotoria apontou que cinco dos padres mencionados na lista morreram e 13 foram transferidos para outra unidade mais especializada, incluindo o que Natália denuncia. Mais cinco estão em processo judicial, três em execução de pena e o restante em investigação Algum tempo depois de nossa consulta, Natalia Restrepo recebeu um comunicado oficial da promotoria — a que a reportagem teve acesso — informando que seu caso havia prescrito porque os fatos ocorreram há 18 anos. Com isso, a investigação não prosseguiria.
2023-07-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ck7dgnwgjnxo
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'Não quero que meus filhos vivam com medo': as famílias que deixam a Flórida após nova lei de imigração
Alejandra está rodeada de caixas e malas que não cabem no carro. Ela está se preparando para uma viagem de 20 horas. Alejandra está se mudando da Flórida para Nova York, nos Estados Unidos, com seus três filhos. E ainda precisa definir o mais importante para eles: quais brinquedos irão ficar e quais eles podem levar na mudança. Longe da avó e dos entes queridos que ficaram em Bogotá, na Colômbia, Alejandra conseguiu, durante os últimos dois anos, estabelecer uma rotina para as crianças em West Palm Beach, ao norte de Miami, no sul da Flórida. A jovem colombiana de 30 anos levantava-se cedo para preparar o café da manhã. Depois, ela acompanhava Dominik — seu filho maior, de 11 anos — até o ponto do ônibus escolar e levava John e Samuel — os gêmeos, de 7 anos — para a escola. Alejandra trabalhava em uma mercearia das 10h até 19h. Ela finalmente havia encontrado uma babá que pegava os meninos na escola à tarde e cuidava deles até que ela pudesse voltar para casa. Fim do Matérias recomendadas Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Da mesma forma que Alejandra, a maioria dos funcionários da loja é de imigrantes sem documentos. "Estão fechando as portas para mim e para os meus filhos", afirma ela, enquanto embala os últimos pertences que os meninos irão levar para Nova York. Lá, o irmão de Alejandra dará hospedagem para eles até que ela consiga um novo emprego. Diferentemente da mãe, os meninos já falam inglês. Dominik entrou em um programa especial de matemática avançada, ciências e informática na escola. Seu sonho é estudar economia na Universidade Harvard (EUA). "Eu me sinto menosprezada", afirma Alejandra, enquanto separa um boneco Simba (do Rei Leão) de pelúcia, um dos poucos brinquedos que irá viajar com a família para Nova York. "Só o que quero é que meus filhos tenham a oportunidade de estudar e sejam profissionais." Nova York é um "Estado santuário", como são chamados os locais em que os governadores democratas aprovaram leis para proteger os direitos dos indocumentados. Já governadores republicanos, como DeSantis, vêm enviando para os Estados santuários, em ônibus ou aviões, os migrantes que chegam às suas jurisdições após cruzarem a fronteira ao sul. Alejandra e seus filhos também entraram no país pela fronteira com o México. E, agora, eles pedem asilo. DeSantis anunciou a SB 1718 como "a legislação contra a migração ilegal mais forte do país". A norma obriga que as empresas com 25 funcionários ou mais usem um sistema para verificar a situação migratória dos trabalhadores (chamado E-Verify). Impõe às empresas multas diárias de US$ 1 mil (cerca de R$ 4,8 mil) se empregarem um imigrante sem documentos e ameaça os empresários com a suspensão dos seus alvarás de funcionamento em caso de reincidência frequente. A lei também proíbe que as autoridades locais da Flórida emitam documentos de identificação a estrangeiros que se encontrem nos Estados Unidos de forma irregular e invalida os cartões de identidade outorgados na mesma situação por outros Estados. Os hospitais também são obrigados a coletar os dados migratórios dos pacientes e os apresentem às autoridades, para cálculo dos custos da assistência médica prestada às pessoas indocumentadas. E a lei também considera um delito grave o transporte de pessoas sem documentos para que ingressem no território da Flórida, mesmo no próprio carro. O centro de estudos Migration Policy Institute, com sede na capital americana, Washington DC, calcula que 772 mil pessoas indocumentadas residem na Flórida. Tadeo tem 12 anos e usa fraldas. Ele não fala, mas recebe terapias de fonologia e psicomotricidade em uma escola de West Palm Beach, segundo seu pai, Maikel Piriz. Quando os médicos contaram que Tadeo tinha autismo em forma grave, seus pais visitaram escolas na cidade onde moravam — Canelones, no sul do Uruguai. Mas a melhor alternativa que elas ofereciam era sentar Tadeo em um canto e colocá-lo para brincar com blocos de figuras geométricas. Piriz e sua esposa decidiram emigrar para os Estados Unidos, esperando poder encontrar centros especializados em autismo. Eles chegaram ao país em 2017, de avião, com vistos de turistas. A intenção era legalizar-se como imigrantes o mais breve possível. Mas a nacionalidade uruguaia e o perfil da família aparentemente não se encaixavam em nenhum visto que abrisse caminho para sua estadia permanente na Flórida. Eles saíram e voltaram para os Estados Unidos duas vezes, mas não encontraram um mecanismo legal que permitisse sua permanência. Agora, com a nova lei da Flórida, Piriz e sua esposa decidiram sair definitivamente dos Estados Unidos. "Não vou permitir que meus filhos vivam à sombra, que sejam excluídos por não terem papéis", afirma ele. Piriz trabalha em uma fazenda, limpando o estábulo dos cavalos. Carlos é mexicano e tem 53 anos. Ele ainda não tomou a decisão sobre se vai abandonar a Flórida. Ele trabalha como entregador de tortilhas de milho para restaurantes e supermercados. O dono da empresa prometeu fazer todo o possível para manter o emprego de Carlos, mas a carteira de motorista dele está vencida há dois anos e, agora, ele não poderá renová-la enquanto estiver sem documentos. "Finquei raízes na Flórida há 13 anos. É muito difícil levantar-se de repente e fazer uma vida nova em outro lugar, de um momento para o outro", ele conta, durante um intervalo no seu caminho diário para entregar as tortilhas de milho. Toda semana, Carlos envia US$ 100 a US$ 200 (cerca de R$ 480 a R$ 960) para seus três filhos na cidade de Colima — a capital do Estado de mesmo nome, a oeste da Cidade do México. Carlos afirma que irá considerar a possibilidade de sair da Flórida se houver uma caça às bruxas contra os indocumentados. "Preciso ver se, a partir de agora, a polícia irá deter as pessoas na rua aleatoriamente, se vão nos perseguir por causa da cor da pele", afirma ele. "Se começar a haver perseguição, vou embora. Não estou disposto a perder a minha paz por causa dessa lei." Os donos dos comércios onde Carlos entrega os produtos comentam que, nas últimas semanas, o consumo e a venda de tortilhas de milho diminuiu — muitos dos seus clientes já foram embora da Flórida.
2023-07-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/clm53g2m8mro
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A grave crise de combustível que levou Cuba a pedir socorro à sua antiga aliada Rússia
O taxista cubano Jorge Lloro se lembra dos laços históricos de seu país com a Rússia toda vez que se senta ao volante de seu Lada azul marinho produzido durante a era soviética. Seu carro de fabricação russa é um dos cerca de 100 mil importados pela ilha caribenha durante a Guerra Fria. Essas máquinas ajudam Cuba a contornar as limitações impostas pelo embargo econômico dos Estados Unidos há décadas. Cuba vive um dos piores momentos de sua endêmica crise econômica, acentuada por uma implacável falta de combustível que fez o país recorrer à ajuda de seu antigo aliado, a Rússia. Jorge luta para manter seu carro andando. As peças de reposição são escassas e caras. Encher o tanque com combustível é uma tarefa que leva dias. Fim do Matérias recomendadas No pior momento da crise, as filas de carros nos postos de gasolina se estendiam por vários quarteirões. O problema chegou a um ponto em que o Estado precisou organizar as filas de motoristas por meio de grupos de WhatsApp. Um funcionário recolhe o contato do motorista e lhe dá um número. Quando chega a sua vez de abastecer, ele é contatado para vir com o carro. "Tenho o número 426", explica Jorge enquanto dirige até um posto de gasolina em Havana após receber a notificação. Mas quando atinge sua posição, não há gasolina. O petroleiro não chegou. “Não sei por que me pediram para vir”, reclama Jorge. "Este sistema é ineficiente", responde Joel Hernández, outro motorista. Todos na fila estão exasperados. "Não deixam encher o tanque, muitas vezes as pessoas perdem o número ou não são avisadas na hora. Falta organização e infraestrutura”, diz Hernández. Nas últimas semanas, a crise dos combustíveis tem deixado os cubanos desesperados. É outro desafio que a população enfrenta, assim como a insegurança alimentar, a inflação e os apagões. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As dificuldades de Cuba decorrem dos problemas de gestão de seu governo e do embargo econômico dos Estados Unidos, mas se agravaram com o colapso do turismo durante a pandemia de covid-19. Essa foi uma oportunidade única para algumas empresas russas. Em um recente fórum comercial em Havana, Cuba assinou uma série de acordos com empresas russas que cobrem desde turismo até agricultura e energia. Entre os acordos estavam licenças para empresas russas revitalizarem partes da decrépita infraestrutura turística da ilha, incluindo o decadente balneário de Tarará. Também será organizado um projeto conjunto para reabilitar uma usina de açúcar obsoleta na província de Sancti Spíritus, além de investimentos na produção de rum e aço. Mas o que mais interessa a Jorge e aos demais motoristas na fila da gasolina é o acordo pelo qual a Rússia fornecerá ao país latino-americano 30 mil barris de petróleo bruto por dia. Isso ajudaria a aliviar o consumo doméstico depois que a Venezuela reduziu suas exportações de petróleo para Cuba de 80 mil barris por dia em 2020 para cerca de 55 mil atualmente. Os acordos são apresentados pela mídia estatal cubana como prova dos longos laços que unem as duas nações. Mas o economista independente Omar Everleny teme que relações mais próximas com Moscou sejam apenas uma solução de curto prazo para Cuba. “Quando você lida com incêndios em várias frentes, é atraente para a Rússia entrar nessa situação volátil, mas o problema está no médio prazo”, diz Everleny. As empresas russas vão exigir o pagamento integral e pontual pelo fornecimento dos recursos de que Cuba necessita, acrescenta o economista. "Não são empresas soviéticas que fornecem crédito ao governo. São empresas privadas que vão pedir benefícios em seus investimentos”, afirma Everleny. “Isso implicará mais sacrifícios para as famílias cubanas porque teremos que pagar esses empréstimos ou Putin perdoará a dívida?”, diz ele, referindo-se à decisão de Vladimir Putin, em 2014, de perdoar cerca de US$ 32 bilhões (cerca de R$ 155 bilhões, em valores atuais) da dívida cubana. Os novos laços econômicos chegam em um momento complexo. Após a invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022, Cuba tem sido uma das vozes de apoio ao Kremlin na América Latina, algo que Moscou aprecia. "Sem dúvida, Cuba foi e continua sendo o aliado mais importante da Rússia na região", disse o ministro da Defesa russo, Sergei Shoigu, durante uma recente visita de uma delegação cubana a Moscou. O economista Omar Everleny insiste que Cuba não pode repetir o erro de depender de um único benfeitor para mitigar sua crise. "Aconteceu primeiro com a Espanha, depois com os Estados Unidos, depois com a União Soviética e finalmente com a Venezuela. Não se pode depender de um único mercado”, afirma. “Acho que Cuba precisa de uma produção estratégica própria, na qual as pequenas e médias empresas cubanas desempenhem um papel vital”. Ao final de um dia sufocante no posto de gasolina, Jorge Lloro consegue encher o tanque de seu Lada. Mas, assim como na Revolução Cubana, sua máquina só consegue se mover graças à Rússia e precisará de uma grande reforma nos próximos anos.
2023-07-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0383078rgzo
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4 lições das reformas tributárias do Chile e da Colômbia para o Brasil
A reforma tributária – conjunto de mudanças na legislação e na forma de cobrança dos impostos pagos pelas famílias e empresas brasileiras – é uma das prioridades do novo governo na economia, ao lado do novo conjunto de regras fiscais que devem substituir o teto de gastos. Segundo os ministros Fernando Haddad (Fazenda) e Simone Tebet (Planejamento), a expectativa do governo é de que a reforma seja feita em duas etapas. A primeira tem foco nos impostos sobre consumo – aqueles cobrados no momento da compra de produtos e serviços –, com a unificação de tributos como PIS/Cofins, IPI, ICMS e ISS em um único imposto, conhecido como IVA (Imposto sobre Valor Agregado). Já a segunda etapa, conforme a equipe econômica, deve ter como foco mudanças nas regras dos impostos que incidem sobre a renda. A primeira foi aprovada na Câmara dos Deputados em dois turnos de votação na quinta-feira (6/7) e, após análise das propostas de mudanças (os destaques), seguirá para o Senado. Fim do Matérias recomendadas A segunda está sendo desenvolvida, segundo o secretário extraordinário da reforma tributária, Bernard Appy, e pode ser debatida e votada até o final do ano. O Brasil não está sozinho no objetivo de reformar seu sistema de impostos. Na América do Sul, dois dos países com governos de esquerda propuseram reformas após a fase mais aguda da pandemia: Chile e Colômbia. No primeiro, a discussão ainda está em andamento, já no segundo, a mudança nas regras tributárias foi aprovada no Congresso em novembro. Em comum, as reformas dos dois países têm foco na redução de desigualdades sociais, estímulo ao crescimento, produtividade e investimento e uso da política fiscal com objetivo de proteção do meio ambiente e promoção do desenvolvimento regional, mostra estudo dos pesquisadores Amanda Resende e Lucca Henrique, membros do Made-USP (Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo). Confira quatro lições das reformas tributárias do Chile e Colômbia que podem ser úteis ao processo de mudança nas regras tributárias do Brasil, segundo os pesquisadores da USP. Da crise financeira de 2008 à pandemia de covid-19, diversos países têm realizado reformas em seus sistemas tributários. Amanda Resende, mestranda em economia na FEA-USP e pesquisadora do Made, identifica ao menos três ondas de reformas. "Com a crise de 2008, muitos países sentiram a necessidade de reformar seus sistemas tributários para elevar a arrecadação, afetada pela crise e pelas baixas taxas de crescimento que geraram desequilíbrios orçamentários", diz Resende, em entrevista à BBC News Brasil. Segundo a economista, após esta primeira onda de reformas, que teve como objetivo promover um maior equilíbrio entre receitas e despesas em países afetados pela crise, o crescimento econômico continuou lento. Assim, uma nova onda de reformas ocorreu a partir de 2015, com objetivo de reduzir a carga de impostos para estimular o crescimento econômico. "A recuperação, quando começou a ocorrer, veio acompanhada de uma concentração de renda, então houve uma terceira onda [de reformas] voltada a tentar reduzir desigualdades através do sistema tributário", diz Resende. Esses esforços para reduzir desigualdades foram feitos principalmente por meio do aumento da progressividade da tributação sobre a renda (isto é, cobrar mais de quem tem mais) e da equalização da tributação sobre as rendas do capital e do trabalho, por exemplo, revisando benefícios tributários sobre dividendos, o que também é uma forma de tributar mais o topo. Em meio a tantas reformas, por que então olhar especificamente para Chile e Colômbia? "As reformas da Colômbia e do Chile são muito atuais", diz a pesquisadora. "Elas vieram pós-pandemia, que foi um novo momento de repensar reformas tributárias – por conta do aumento de desigualdade, da dificuldade de equilibrar receitas e despesas e da busca de formas para estimular o crescimento. Então todos esses elementos estão presentes nessas reformas", acrescenta. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Além disso, são dois países da América Latina, com realidades históricas, desigualdades e dependência externa financeira e comercial semelhantes às do Brasil. A pesquisadora observa, porém, que há diferenças entre os países. Por exemplo, enquanto Chile e Colômbia têm cargas tributárias bem abaixo da média dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) – de 20,7% do PIB no caso chileno e de 19,7% na Colômbia, comparado a 33,8% no grupo das economias desenvolvidas em 2019 –, no Brasil, a carga tributária (equivalente a 33,9% do PIB em 2021) é muito próxima do nível de arrecadação dos países ricos. Além disso, o Brasil já conta com uma infraestrutura de proteção social e uma rede de bens e serviços públicos que os países vizinhos ainda estão tentando construir. "Apesar das diferenças, o debate público nesses países tem muito a nos ensinar, porque eles estão enfrentando a questão tributária com transparência, considerando a questão fiscal como uma coisa única", diz Resende. "Não adianta pensar no gasto, sem pensar nas receitas. Ou olhar para os gastos, como tem sido feito muito no Brasil, apenas da perspectiva do equilíbrio orçamentário. Essa é uma preocupação importante, mas é preciso considerar também a função social do Estado. As reformas dos países vizinhos ajudam a pensar no fiscal como um sistema em que arrecadação tributária e gastos em bens e serviços públicos fazem parte um mesmo pacto social", afirma. "A visão de que a reforma tributária é um pacto social está faltando ao Brasil, estamos pautando o tema da reforma há muito tempo, mas ainda se fala pouco sobre qual é o impacto social que os brasileiros querem e como vamos inserir os cidadãos nessa discussão." 1. A reforma tributária é um pacto social "As reformas do Chile e da Colômbia nos ensinam a importância de atrelar o debate tributário à discussão dos gastos públicos", escrevem Amanda Resende e Lucca Henrique, no estudo Como nuestros hermanos: reformas tributárias para um novo pacto social. "A arrecadação de impostos não é um fim nela mesma, mas garante os meios pelos quais o Estado pode exercer seu papel como investidor em infraestrutura física e social, protetor dos mais vulneráveis, prestador de serviços à população, estabilizador da economia e empreendedor. Nesse sentido, a legitimidade da reforma depende fundamentalmente dos objetivos que se deseja alcançar", acrescentam os pesquisadores. Por exemplo, no Chile de Gabriel Boric, a população foi chamada a participar no processo de discussão da reforma tributária através dos chamados Diálogos Sociales. Desse processo de participação cidadã e da análise técnica e comparação com outros países, foi redigido um projeto de lei com seis objetivos que regem a reforma. O primeiro deles é "maior arrecadação para a ampliação de direitos sociais, diversificação produtiva e descentralização". Para cumprir esse objetivo, o governo espera arrecadar o equivalente a 4,1% do PIB a mais até 2026, dos quais 2,9% serão destinados ao novo sistema de Previdência e à criação de um sistema universal de saúde, 0,3% a um novo sistema nacional de cuidados, que pretende reduzir a sobrecarga de trabalho não remunerado das mulheres, 0,4% a políticas de educação e 0,7% a políticas produtivas e de pesquisa e desenvolvimento. Já na Colômbia de Gustavo Petro, os três principais objetivos da reforma aprovada em novembro são erradicar a fome, reduzir a pobreza e acabar com o tratamento preferencial na cobrança de impostos. Com o aumento da arrecadação, o governo também visa viabilizar sua política de "paz total", que muda o enfoque do enfrentamento aos grupos armados do país. "No Brasil, as hierarquias aparecem invertidas, o equilíbrio orçamentário se apresenta como finalidade e os direitos sociais devem se adequar a critérios definidos de forma tecnocrática", escrevem os economistas Pedro Rossi, Esther Dweck e Ana Luiza Matos de Oliveira, em trecho do livro Economia Para Poucos: impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil, citado pelos pesquisadores do Made-USP – Dweck é agora ministra da Gestão no governo Lula. "O debate econômico brasileiro parte de 'cima para baixo' para pensar a política fiscal, ou seja, dos indicadores e regras macroeconômicas para a disponibilidade de recursos para áreas específicas. Essa relação deve ser invertida e a política fiscal deve ser pensada de 'baixo para cima'", defendem Rossi, Dweck e Oliveira. 2. É necessário e possível aumentar a arrecadação do topo "Para o Estado exercer seu papel redistributivo e redutor de desigualdades, e ao mesmo tempo manter os indicadores fiscais de dívida pública e resultado primário em uma trajetória sustentável, é necessário aumentar o volume e a eficiência na arrecadação de tributos sobre os mais ricos." Esta é a segunda lição que as reformas tributárias de Chile e Colômbia deixam para o Brasil, segundo os pesquisadores do Made-USP. No Chile, por exemplo, a reforma pretende elevar a alíquota máxima do imposto de renda de 40% para 43% e reduzir os intervalos de renda para cada nível de contribuição. Além disso, o valor a partir do qual o contribuinte paga a alíquota máxima seria reduzido de uma renda mensal de US$ 21.390 (R$ 110,6 mil), para US$ 9.660 (R$ 50 mil). Isso aumentaria a base de contribuição e arrecadação, com mais pessoas pagando a alíquota máxima. Ainda assim, a estimativa do governo é de que apenas o 1% mais rico do país seria afetado, com cerca de 10 mil contribuintes pagando mais do que pagam atualmente. A estimativa de arrecadação é entre 0,34% e 0,43% do PIB chileno. A reforma chilena também propõe a criação de um imposto de 22% sobre dividendos, lucros distribuídos e ganhos de capital, que poderá ser depois deduzido da base do imposto de renda. Essa é uma forma de reduzir a diferença de tributação entre renda do capital e do trabalho, que beneficia os mais ricos, que são os que mais recebem rendimentos de capital. Os dois países também propõem impostos sobre patrimônio – conhecidos como IGF (imposto sobre grande fortunas), um tipo de imposto controverso e abandonado por alguns países que adotaram esse modelo no passado. Em sua proposta de reforma, o Ministério da Fazenda chileno argumenta que alguns dos problemas que levaram países a abandonar essa forma de tributação já foram superados, com o avanço da tecnologia utilizada pelas autoridades fiscais, por exemplo, e maior cooperação na troca de informações fiscais entre países, inibindo a evasão fiscal. Assim, o Chile propõe um imposto de 1% para patrimônios entre US$ 5 milhões e US$ 15 milhões (R$ 26 milhões a R$ 78 milhões) e de 1,8% para fortunas acima desse valor, visando taxar o 0,2% mais ricos – pouco mais de 6 mil pessoas. A expectativa de arrecadação do governo é de 0,48% do PIB chileno com o tributo. A Colômbia, desde 2019, estabeleceu um imposto com taxa única de 1% sobre riquezas acima de US$ 105 mil (R$ 543 mil). A reforma aprovada em novembro elevou a faixa de isenção para US$ 574 mil e criou faixas de imposto que variam de 0,5% a 1,5%, tornando a tributação mais progressiva. Com isso, o governo colombiano espera arrecadar o equivalente a 0,18% do PIB do país. "O sistema tributário brasileiro é regressivo: a população de baixa renda é muito tributada. Um caminho para reduzir essa desigualdade seria onerar mais o topo da distribuição, aumentando a progressividade do Imposto de Renda e a participação desse imposto sobre a carga tributária total do Brasil", defende Resende, lembrando que, atualmente, os impostos indiretos sobre o consumo representam a maior parcela da arrecadação, o que pesa mais sobre os mais pobres. 3. O sistema tributário não é neutro do ponto de vista das desigualdades "Embora o sistema tributário não tenha regimes diferenciados por gênero, raça ou classe, um sistema igual em uma sociedade desigual reproduz desigualdades", afirmam Resende e Henrique, sobre a terceira lição que as reformas tributárias chilena e colombiana ensinam. A reforma tributária chilena, por exemplo, tem grande preocupação com a questão de gênero e o cuidado de crianças, idosos e pessoas com deficiência – que em geral recai sobre mulheres. Segundo os economistas do Made-USP, o próprio aumento da progressividade do imposto de renda já reduz a desigualdade de gênero. Isso porque o 1% mais rico no Chile tem muito mais homens do que mulheres (são quatro homens para cada mulher nessa faixa mais abastada). Além disso, a proposta chilena inclui a possibilidade de dedução de gastos com cuidado para crianças com menos de 2 anos, idosos e pessoas com deficiência – incluindo creches, lares para idosos e cuidadores domiciliares, como domésticas e enfermeiras – e propõe destinar parte do aumento da arrecadação esperada para a criação de um sistema público de cuidado. No Brasil, Resende cita estudo do Made-USP de novembro de 2022, que mostrou que, entre o 1% mais rico do país, negros pagam mais Imposto de Renda do que brancos. Isso acontece porque os brancos mais ricos recebem parcela relevante de sua renda por meio de lucros e dividendos – atualmente isentos de IR – , enquanto os negros mais ricos são em sua maioria funcionários públicos assalariados, cujos rendimentos são taxados a alíquotas nominais que chegam a 27,5%. Assim, uma reforma tributária pode ser um instrumento para redução de desigualdades não só de renda, mas de gênero e raça, desde que ela seja planejada para essas finalidades. 4. Instrumentalizar a proteção ao meio ambiente e o desenvolvimento regional Chile e Colômbia criaram mecanismos para tornar sua política fiscal um instrumento na luta contra as mudanças climáticas e reduzir desigualdades regionais dentro dos países, dizem os pesquisadores da USP. Importante exportador de cobre e outros minerais, o Chile propõe a criação de um royalty sobre mineração, para que a riqueza produzida pela exploração desses recursos finitos gere renda para o Estado e seja distribuída à sociedade através de fundos de desenvolvimento e investimento regional. Já a Colômbia optou por um imposto nacional sobre o carbono, que incidirá sobre a venda, consumo e importação de combustíveis fósseis. Dos recursos arrecadados, 80% serão destinados a um Fundo para a Sustentabilidade e Resiliência Climática, voltado à gestão da erosão costeira, redução do desmatamento e preservação de ecossistemas e da biodiversidade. Outros 20% vão para um programa de "substituição de cultivos de usos ilícitos", parte do programa de paz em andamento no país — a substituição de cultivo é um dos meios pelos quais o governo colombiano tenta convencer agricultores a deixarem de plantar a coca que abastece o narcotráfico. Os pesquisadores da USP observam, porém, que a tributação de carbono, embora importante para desacelerar a emissão de gases do efeito estufa, é regressiva – isto é, pesa mais para as famílias de menor renda, que destinam parcela maior dos seus gastos ao consumo dos produtos afetados pela alta de impostos. A reforma colombiana tenta mitigar esse efeito através de mecanismos de isenção para a população mais vulnerável. A reforma colombiana também cria um imposto sobre plásticos de uso único e aumenta impostos sobre bebidas açucaradas a alimentos ultraprocessados, visando desincentivar o consumo desses produtos, cuja ingestão em excesso gera custos ao sistema público de saúde. "Esse eixo do meio ambiente é fundamental, juntos com as desigualdades sociais. Não tem como o Brasil querer enfrentar as mudanças climáticas sem entender como isso está relacionado às vulnerabilidades sociais", defende Resende, lembrando que os vulneráveis são os mais afetados pelos efeitos das mudanças climáticas, como secas e enchentes. "A combinação entre atacar as desigualdades sociais de frente, e combinar isso com uma atuação em prol da proteção do meio ambiente e preservação da nossa biodiversidade é fundamental. É o que nós esperamos desse governo." Apesar do exemplo de outros países sul-americanos, os analistas reconhecem que as condições enfrentadas por Petro na Colômbia, Boric no Chile e Lula no Brasil são diferentes. E avaliam que o governo brasileiro terá diversos desafios pela frente em seu processo de reforma tributária. Um primeiro desafio, diz Resende, é a própria conjuntura em que o atual governo foi eleito, que resulta em não só um parlamento, mas uma população dividida. "Por isso a importância de o governo trazer essa discussão para o debate público de uma forma transparente, para fazer a população ver os benefícios que estão em jogo", defende a economista, lembrando que o Congresso brasileiro, mesmo em tempos de menor polarização, não tem sido historicamente favorável a reformas progressivas do sistema tributário. "Pelo contrário, o que mais é aprovado no Parlamento são desonerações de todo tipo", destaca, observando que essas desonerações tendem a favorecer grupos de interesses específicos, em detrimento da maior parcela da sociedade. Um segundo desafio é o de conciliar os interesses de Estados, municípios e do governo federal, num país de grandes dimensões como o Brasil. Aqui, dizem os pesquisadores, os fundos de desenvolvimento regional podem ter papel relevante. Por fim, um terceiro desafio decorre da estratégia do governo de fazer a reforma de maneira fatiada, em duas etapas. Embora a estratégia tenha como benefício uma possível aprovação rápida da simplificação dos impostos sobre consumo em um IVA (Imposto sobre Valor Agregado) – proposta que já tem anos de debates acumulados no Congresso e é considerada madura para ser votada –, corre-se o risco de o governo gastar todo o fôlego reformista nesta primeira etapa e acabar deixando de lado a segunda fase, que atacaria a questão do Imposto de Renda e da progressividade do sistema tributário. "Existem vantagens e desvantagens na estratégia do governo, mas há de fato o risco de a segunda etapa ficar para um momento indeterminado. Talvez para nunca. Esse é um risco que o governo vai correr", alerta a pesquisadora.
2023-07-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2jpn9z0yjeo
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União Europeia, tensão com Uruguai e Venezuela: os pontos que marcaram a cúpula do Mercosul
Durante a 62ª Cúpula do Mercosul em Puerto Iguazú, Argentina, os presidentes dos países membros — Brasil, Uruguai, Paraguai, Argentina — e a Bolívia, Estado associado, abordaram as expectativas e necessidades para o futuro do bloco. A reunião teve a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva como líder temporário do bloco, posto que ele assumirá até o fim de 2023. Entre suas prioridades no posto estão acelerar a adesão oficial da Bolívia ao bloco, incluir os setores automotivo e açucareiro no livre comércio entre os países e ampliar a adoção de uma moeda comum para transações comerciais entre os vizinhos. Durante os discursos dos líderes, foram mencionadas questões de interesse comum, tais como a expansão de acordos comerciais, o uso de uma moeda comum para importações e exportações e a proteção ambiental nos territórios sul-americanos. Temas mais desafiadores também receberam destaque, como o acordo comercial com a União Europeia, a possível reinserção da Venezuela, suspensa do bloco em 2016, e as queixas do Uruguai, que ameaçam a permanência do país no Mercosul. A seguir, listamos os detalhes desses desafios para o bloco sul-americano: Fim do Matérias recomendadas Em seu discurso de abertura, o anfitrião Alberto Fernandéz fez críticas ao que considera praticas protecionistas do acordo com a UE. A carta da União Europeia prevê sanções caso os países não cumpram as exigências ambientais, que incluem a proibição de alimentos cultivados com agrotóxicos amplamente utilizados no Brasil, mas banidos na Europa, e a entrada de madeira não proveniente de cadeias sustentáveis. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast “A apresentação de novas demandas ambientais pela União Europeia nos apresenta uma visão parcial de desenvolvimento sustentável. Uma visão excessivamente centrada no meio ambiente, sem registro das três dimensões da sustentabilidade (ambiental, econômica e social) e sua interação entre si”, disse o presidente da Argentina. Na sequência, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assumiu posição semelhante, acrescentando detalhes sobre sua visão em relação ao acordo. "O Instrumento Adicional apresentado pela União Europeia em março deste ano é inaceitável. Parceiros estratégicos não negociam com base em desconfiança e ameaça de sanções. É imperativo que o Mercosul apresente uma resposta rápida e contundente." O governo brasileiro também defende a manutenção do direito de priorizar produtos nacionais nas compras governamentais, "um dos poucos instrumentos de política industrial que nos restam", segundo Lula. "Se abrirmos mão de empresas brasileiras para comprar de empresas estrangeiras, simplesmente vamos matar pequenas e médias empresas brasileiras, pequenos e médios empreendedores, e reduzir empregos no Brasil", declarou Lula em live no seu canal do Youtube algumas horas antes da cúpula. O presidente brasileiro mencionou brevemente a possibilidade de uma reunião entre ministros dos países do bloco para resolver, em nível técnico, as questões que ainda travam o acordo. O presidente espera que o assunto seja retomado no encontro da Celac (Comunidade dos Estados da América Latina e do Caribe) com a União Europeia, em uma cúpula que acontecerá em Bruxelas, capital da Bélgica, entre os dias 17 e 18 de julho. No início da cúpula do Mercosul na última segunda-feira (3/7), o chanceler uruguaio, Francisco Bustillo, surpreendeu ao afirmar que seu país pode reconsiderar sua adesão ao bloco. "Ou para modificar o próprio tratado fundador, ou eventualmente considerar a possibilidade de deixar o Mercosul como Estado fundador e tornar-se um Estado associado", disse o chanceler após participar do primeiro dia do encontro realizado em Puerto Iguazú. No Mercosul, os estados associados têm menos responsabilidades e mais liberdades comerciais, mas ficam sem poder de voto e participação plena no mercado comum. Na terça-feira, sem mencionar a possibilidade descrita pelo chanceler, o presidente uruguaio, Luis Alberto Lacalle Pou, defendeu a flexibilização do bloco. Ele afirmou que sua prioridade é avançar junto com o Mercosul nos acordos comerciais, mas, se não for possível, seu governo considera fazer acordos bilaterais com países como a China. O governo uruguaio diz que não irá aceitar uma posição de imobilidade e criticou a falta de avanço em tratados com outras regiões do mundo. "O Uruguai luta para conseguir mercados. A nossa balança comercial entre os países sócios é deficitária", disse Lacalle Pou. O presidente Lula já havia mencionado, no passado, a possibilidade de readmitir a Venezuela ao bloco. O país foi suspenso do Mercosul em 2016. Na época, o bloco justificou a decisão afirmando que a Venezuela não cumpria critérios democráticos. Lacalle Pou, do Uruguai, foi o primeiro a tocar no assunto, se posicionando contra a volta do país ao grupo. “O Mercosul tem que dar um sinal claro para que o povo venezuelano caminhe para uma democracia plena que não tem hoje”. “Todos aqui sabem o que pensamos sobre o regime venezuelano. Você tem que tentar ser objetivo. É claro que a Venezuela não conseguirá uma democracia sã se, quando se vislumbra a possibilidade de eleições, uma candidata como María Corina Machado, de enorme potencial, for desclassificada por motivos políticos e não jurídicos.” Segundo a agência France Presse, María Corina Machado é o nome da oposição que aparece mais bem colocada para disputar as eleições presidenciais do país. Na semana passada, a Controladoria Geral venezuelana anunciou que ela estará impedida de ocupar cargos públicos por 15 anos por causa de "irregularidades administrativas". Machado contestou a decisão. “Eles estão errados se pensam que neste momento, com manobras (...), o povo da Venezuela vai parar ou abaixar a cabeça. Isso acabou. Aqui há uma única entidade, uma única voz que empodera e é o povo da Venezuela”, disse. Alberto Fernandez, presidente da Argentina, e Lula, defenderam manter o diálogo aberto com a Venezuela. "Com relação à questão da Venezuela, todos os problemas que a gente tiver de democracia, a gente não se esconde deles, a gente enfrenta eles. Não conheço pormenores do problema com a candidata (María Corina Machado) da Venezuela, pretendo conhecer", disse Lula.
2023-07-04
https://www.bbc.com/portuguese/articles/crglygx584po
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Os maiores salários mínimos da América Latina — e o que esse dinheiro compra
Os países com maior salário mínimo mensal na América Latina são Costa Rica (US$ 650, equivalente a R$ 3.107), Chile (US$ 550 ou R$ 2.629) e Uruguai (US$ 550 ou R$ 2.629). No Brasil, o salário mínimo atual é de R$ 1.320. Os números, sem qualquer contexto, não refletem o valor real desse dinheiro em cada país. Para isso, é preciso responder a uma pergunta básica: o que se pode comprar com essa quantia. Afinal de contas, um salário é baixo ou alto em relação ao custo de vida. Nos três países há uma situação econômica melhor do que em muitas outras nações da região. Fim do Matérias recomendadas No entanto, na mesma medida em que os salários são mais altos, o custo de vida também é maior. E o efeito que tem na qualidade de vida das pessoas muda muito dependendo das circunstâncias de cada família. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Se for um casal jovem e saudável com apenas um filho, ambos contribuindo com um salário mínimo para a renda familiar, a situação é menos grave. Mas muitas vezes acontece que as pessoas que vivem com um salário mínimo fazem parte de grupos familiares maiores, onde às vezes há idosos doentes ou crianças pequenas para alimentar. Com as consequências econômicas deixadas pela pandemia e a onda de inflação que assola o mundo, a região vive um momento difícil, marcado por altas taxas de juros e baixo crescimento econômico. Quase a metade da população latino-americana trabalha na informalidade, ou seja, vive com o que ganha por dia, não tem contrato de trabalho, não tem estabilidade, não tem previdência social e não tem poupança para a velhice. Embora em 2023 as coisas tenham melhorado aos poucos, os bolsos da população mais vulnerável continuam sofrendo, principalmente quando a maior parte de sua renda vai para alimentação ou aluguel. Aqui contamos a história de três famílias, cada uma morando em um dos três países com os maiores salários mínimos da América Latina. Com um salário mínimo de 352.165 colones (o equivalente atual a US$ 650 ou R$ 3.107, o mais alto da América Latina), muitos podem pensar que viver na Costa Rica é relativamente fácil. Mas, embora a família de Ana Yancy Segura receba um pouco mais do que isso graças aos 200.000 colones (R$ 1.768) quinzenais que seu marido ganha trabalhando como guarda, ela garante que "não é suficiente" para cobrir suas necessidades básicas e as de seus três filhos pequenos de 18, 11 e 3 anos. "Com isso é impossível economizar. Se economizar 30 mil (R$ 262) já é muito, mas para isso teria que deixar de pagar as despesas fixas do mês", diz a mulher de 38 anos à BBC News Mundo, serviço da BBC em espanhol. A família mora no Alto de San Blas, um bairro humilde do município de Cartago, a sudeste de San José, onde muitos vivem graças ao cultivo de batata ou cebola e, no melhor dos casos, da construção civil. "Não é fácil procurar um emprego melhor remunerado aqui", diz a mulher. Ele calcula que em eletricidade, água, cabo e internet gasta cerca de 70% de uma das quinzenas. A outra é dedicada a pagar a passagem do filho para a escola, o gasto semanal para compra de material, roupas essenciais e, principalmente, alimentação. Segura acredita que é essa última despesa que ficou mais cara, mesmo ela não se permitindo grandes luxos. Ele compra principalmente arroz, feijão, café, leite... "Se der, frango ou carne. Ovos muito pouco, porque estão muito caros e passaram de 2.500 para 4.000 [R$ 22 para R$ 35] em três anos. Agora compro salsicha ou linguiça, que é mais barato e dura uma semana", explica. Segundo o Instituto Nacional de Estatísticas do país, o custo médio mensal da cesta básica em maio foi de 58.887 colones (R$ 521) per capita, 25% a mais do que há três anos . Assim, embora a mulher tente ganhar um dinheiro extra cozinhando e vendendo esporadicamente pamonhas ou arroz doce, ela diz que mal consegue lucrar diante do custo dos ingredientes. Seu marido tem plano de saúde, mas como seus três filhos têm doenças crônicas, como asma, há medicamentos e tratamentos que representam um gasto adicional. "Agora tenho que pagar um neurologista para meu filho, que custa 70 mil (R$ 620) por consulta. Imagina se forem várias", diz. Segura diz que pediu às autoridades ajuda financeira e bolsas de estudos para seus filhos, mas os pedidos foram negados porque dizem que seu salário é suficiente. "E isso não é verdade, porque os impostos são pesados. Esses salários não chegam para uma família média ou pobre, nunca", afirma. Ela recebeu ajuda da ONG Techo para construir sua modesta casa na mesma propriedade onde seus três filhos mais velhos moram em outra casa com suas famílias. Sente falta de ter uma cama de verdade, pois agora dorme em um cama improvisada "feita de dois colchões" com o marido e o bebê. "Quando cair algum dinheirinho, vamos comprar", anseia. Aos 62 anos, Rosario Román é a provedora principal de uma família de oito pessoas que vive em duas casas de materiais leves construídas em um terreno que anos atrás foi ocupado por pessoas sem moradia no município de La Granja, em Santiago, capital do Chile. Como auxiliar em uma cafeteria, ganha um salário mínimo de 440 mil pesos chilenos por mês (equivalente a US$ 550 ou R$ 2.629). Ela também recebe uma aposentadoria de R$ 1.042 por mês que lhe permite complementar sua renda. Mora com a irmã de 57 anos, desempregada e com múltiplos problemas de saúde, e divide o terreno com o sobrinho, a esposa e quatro filhos. O sobrinho não tem salário fixo porque ganha por dia de trabalho (cerca de R$ 90) limpando vidros de prédios altos. No inverno há menos trabalho por causa das chuvas, mas no verão ele ganha o equivalente a cerca de R$ 1.816 por mês. A esposa, que se dedica aos afazeres domésticos (eles têm um bebê e três filhos em idade escolar), às vezes vende cosméticos em uma feira livre e também contribui para a subsistência da família. Entre todos, eles podem arrecadar cerca de R$ 5.736 — e 70% do orçamento vai para a alimentação. "Aqui no Chile é muito caro comer", diz Román. "Eu gostaria que pudéssemos ter uma boa alimentação básica. Não aspiro a nenhum luxo, mas quero viver com dignidade." Com os 30% restantes pagam luz, água, gás, transporte e produtos de limpeza. E no inverno acrescentam o custo da parafina para aquecer a casa. Não gastam com educação ou saúde (exceto alguns remédios no comércio informal), nem pagam aluguel. Para reduzir custos, Román se organizou com seus vizinhos para comprar alimentos em mercados atacadistas, fizeram cozinhas coletivas e atividades para ajudar uns aos outros por meio de uma organização chamada Fuerza Pobladora. Seu sonho é ter uma casa própria. “Pelo menos quero morrer na minha própria casa, mesmo que seja pequena, mas que seja minha”, diz Román. Como essa família é muito grande, conversamos também na BBC Mundo com duas famílias menores que vivem com um salário mínimo fora da capital. Em ambos os casos (uma mãe solteira com duas filhas em Quintero e um casal com uma filha em Lota) a despesa maior é a alimentação e em segundo lugar o aluguel. Com o que sobra, pagam contas básicas. Mas em Santiago, o aluguel de um imóvel em um bairro periférico pode custar mais de 60% ou 70% do salário mínimo. É por isso que os filhos adultos costumam ficar com os pais e, se formarem sua própria família, constroem cômodos adicionais no mesmo terreno. No Chile, a linha de pobreza por pessoa é de cerca de R$ 1.340 por mês, ou seja, aproximadamente meio salário mínimo. Para as famílias que vivem em situação de pobreza e extrema pobreza, existem benefícios sociais estatais, que são pagas em função do número de dependentes (ou que não gerem rendimentos) no grupo familiar. A isto se somam subsídios para adultos com mais de 65 anos. O custo da cesta de bens e serviços com que se mede o Índice de Preços ao Consumidor (IPC) é considerado informação confidencial, segundo o Instituto Nacional de Estatística. A informação fornecida pelo governo é a variação dos preços da cesta, mas não o valor dos produtos que a compõem. A inflação acumulada em 12 meses do país caiu para 9%, após ter atingido 14% no ano passado. Valéria Avondet enfrenta um difícil equilíbrio para viver com o equivalente a cerca de R$ 2.629 que ganha por mês trabalhando como operadora de vendas em um call center no Uruguai. Este valor é comparável ao salário mínimo de 21.107 pesos uruguaios fixado pelo governo daquele país, que quando convertido em dólares é um dos maiores salários mínimos da América Latina (US$ 550). Mas Avondet, de 24 anos, conhece bem seus limites estreitos. "Metade do meu salário vai para aluguel, impostos, e despesas com serviços", disse ele à BBC Mundo. "Eu administro a outra metade." Nessa categoria de "outros" há espaço para despesas essenciais, como alimentação, embora geralmente sejam atenuadas com um bônus de alimentação, que ela ganha extra com as comissões de vendas. Ela divide o aluguel com mais duas pessoas: um colega de trabalho e um policial que ganha melhor e é o fiador do pagamento mensal. Avondet costuma ir de ônibus para o trabalho em Montevidéu e voltar a pé, para “baratear um pouco” o transporte. Em troca, viaja uma vez por mês para Paysandú, sua cidade natal, localizada a cerca de 380 quilômetros a noroeste de Montevidéu. Além de ver a família por lá, costuma aproveitar para atravessar a ponte até a cidade argentina vizinha de Colón, onde a alimentação sai mais barata para ela devido à diferença de câmbio. No Uruguai, os preços ao consumidor sem aluguel são 94% mais altos do que na Argentina, segundo o site especializado Numbeo, e uma cesta básica chegou a 18.759 pesos uruguaios per capita em dezembro (cerca de R$ 2.342 pelo câmbio atual), segundo dados oficiais. Avondet explica que, para chegar ao fim do mês com o que ganha, ela gasta apenas o necessário em roupas e sapatos em ofertas, não tem acesso a cartões de crédito e desistiu de ir à academia que pagava. "Também é algo que eu gostaria, mas sei que, se pagar uma academia, tenho que sacrificar outras coisas", argumenta. "O Uruguai é um país muito caro para se viver", destaca. “Tem certas coisas boas, [como] a educação que é gratuita, entre aspas, e em outros países tem um custo: quem não pode pagar, não tem acesso. Mas [o Uruguai] tem um custo de vida que em outros países você pode não ter."
2023-07-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0xeled7qxgo
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A polêmica militarização dos presídios de Honduras após massacre de detentas
Uma grande operação para desmantelar quadrilhas criminosas que atuam dentro de penitenciárias de Honduras foi iniciada nesta semana, com a tomada do controle dos presídios por forças militares do país centro-americano. Nas imagens, distribuídas pelo governo liderado por Xiomara Castro, centenas de presos, tatuados e descalços, podem ser vistos sentados com as mãos atrás da cabeça, enquanto são vigiados pelos militares. Segundo o secretário de Estado de Defesa Nacional de Honduras, José Manuel Zelaya Rosales, a operação - denominada "Fé e Esperança" - busca que esses centros "deixem de ser escolas do crime". "Nossa missão é derrotar o crime organizado que está nas prisões”, disse ele por meio de sua conta no Twitter. Autoridades apreenderam armas, telefones via satélite, granadas e drogas, entre outras coisas, das celas dos presos. O plano é que as Forças Armadas tenham o controle dos presídios por um ano. A ação militar ocorre dias depois de 46 detentas terem sido queimadas e mortas a tiros em uma rebelião entre supostas integrantes das gangues rivais Barrio 18 e Mara Salvatrucha, em um presídio perto de Tegucigalpa, capital hondurenha. Castro descreveu o motim como um "assassinato monstruoso de mulheres", demitiu o ministro da Segurança e nomeou um conselho prisional. A intervenção ocorre também após um fim de semana particularmente violento: só no sábado, 21 pessoas foram mortas. Treze delas foram vítimas de um massacre dentro de um salão de bilhar no município de Choloma, no norte do país. Após esses episódios dramáticos, o presidente prometeu tomar "medidas severas". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A violência é um dos desafios mais complexos para o governo de Xiomara Castro. Sob forte pressão dos cidadãos que exigem mais segurança, a presidente tenta controlar o crime organizado por meio de várias medidas. Além da intervenção militar nas prisões, seu governo decretou toque de recolher no domingo, das 21h às 4h, para as cidades de Choloma e San Pedro Sula (uma das maiores do país), que foram fortemente afetadas pela violência. Essa restrição foi imposta por 15 dias, período que pode ser prorrogado. Grande parte do país encontra-se também em estado de emergência, medida que vigora desde 6 de dezembro do ano passado e que foi prorrogada três vezes (a última em 21 de maio, quando foi estendida por mais 45 dias ). A presidente também realiza uma operação policial, chamada "Candado Valle de Sula", que visa controlar a violência no norte do país e recuperar áreas ocupadas por gangues. A ofensiva inclui recompensas para quem facilitar a captura de autores dos crimes. As medidas foram criticadas por algumas organizações de direitos humanos. Em conversa com a BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, Evelyn Escoto, comissária do Centro Nacional para a Prevenção da Tortura, Tratamento Cruel, Desumano ou Degradante de Honduras, afirmou que a militarização das prisões é uma "regressão do ponto de vista dos direitos humanos". "Preocupa-nos porque não somos um país insular, temos muitas obrigações e compromissos em matéria de direitos internacionais e somos obrigados a garantir esses direitos nas prisões" afirmou. Cesar Muñoz, diretor adjunto para as Américas da Human Rights Watch, concorda que a medida é um retrocesso. "É fundamental reduzir a superlotação, já que os guardas não conseguem controlar os presídios superlotados, bem como reduzir o uso da prisão preventiva, que em Honduras cobre quase a metade da população carcerária, e garantir condições dignas e oportunidades de emprego e educação para os internos", disse Muñoz. Por sua vez, a diretora da Anistia Internacional para as Américas, Erika Guevara, destacou que o governo Castro, "em plena demonstração de populismo punitivo de Bukele", estava replicando "políticas de segurança fracassadas que só aprofundam um contexto de crise de direitos humanos". "O falso dilema entre segurança e direitos tem cobrado muito de nós na região", acrescentou em sua conta no Twitter. No entanto, Carlos Javier Estrada, subsecretário de imprensa do gabinete presidencial hondurenho, disse à BBC que é uma "intervenção curta, com respeito aos padrões internacionais" para evitar o risco de violações dos direitos humanos. "Assumir o controle dos centros (onde os criminosos operam) não necessariamente leva à tortura ou manipulação imprópria (dos internos)", disse Estrada. Em relação ao toque de recolher e ao estado de exceção, Evelyn Escoto acredita que as medidas não estão resolvendo a "questão de fundo". "Isso deve ser resolvido com políticas. Temos problemas com narcotráfico, extorsão, quadrilhas... e cada crime tem suas articulações e deve ser atacado de uma forma diferente", afirmou. O comissário alertou que em algumas áreas as prisões estão sendo feitas "por mera suspeita". "Existe uma estigmatização em relação às pessoas", disse ele. No entanto, de acordo com as autoridades hondurenhas, o estado de emergência permitiu identificar e capturar membros de gangues que lucram com outros crimes, como tráfico de armas e drogas, roubo de veículos, feminicídios e lavagem de dinheiro. Tudo acontece no contexto da guerra contra as gangues conduzida pelo presidente de El Salvador, Nayib Bukele, cujo país faz fronteira com Honduras. Historicamente, El Salvador e Honduras já tiveram algumas das taxas de homicídio mais altas do mundo. Seus habitantes sofreram anos de insegurança. El Salvador está em um regime de emergência há mais de um ano, que é questionado por organizações de direitos humanos, mas aplaudido pela maioria dos salvadorenhos por reduzir a criminalidade e os homicídios, segundo dados do governo. A popularidade de Bukele também atinge amplos setores hondurenhos que veem com bons olhos como o presidente vizinho está conduzindo a guerra contra as gangues. "Bukele é muito valorizado na sociedade hondurenha e há amplos setores da população que clamam por uma liderança como a de Bukele no país. Que pôs ordem, que se impôs, que os criminosos o temem", disse à BBC Eugenio Sosa, sociólogo do Instituto Nacional de Estatística de Honduras. Para Sosa, a intervenção militar nas prisões (e a posterior distribuição das imagens pelo governo) faz parte do "efeito Bukele" na região. "O que está sendo feito em El Salvador pressiona os governantes hondurenhos que, vendo que algumas coisas estão funcionando no país vizinho, têm motivação para desenvolver aspectos semelhantes ao modelo de Bukele", diz o sociólogo. No entanto, o porta-voz do governo, Carlos Javier Estrada, descartou que a política de Castro "copie literalmente" a estratégia de Bukele. "Não podemos nos comparar diretamente com o país vizinho", disse. "Simplesmente adotamos alguns elementos, mas queremos que esta intervenção não seja a norma, mas uma exceção", acrescentou. Embora Bukele tenha reduzido drasticamente a criminalidade, diminuindo o número de homicídios, ele foi criticado pela ausência de um plano para o futuro, além de medidas emergenciais. Assim, analistas ouvidos pela BBC garantem que o grande desafio em Honduras é atacar o crime pela raiz. Para tanto, medidas como o toque de recolher ou o estado de exceção só funcionarão se forem implementadas juntamente com políticas mais profundas, como o combate à corrupção, a redução da desigualdade e da pobreza e a recomposição das instituições.
2023-06-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cx9pk7ej8gzo
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Alberto Fernández e Lula: o que Argentina quer do Brasil?
Os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, do Brasil, e Alberto Fernández, da Argentina, voltaram a se encontrar em Brasília na segunda-feira (26/6). Foi o quinto encontro entre eles desde que o brasileiro tomou posse, em janeiro. O argentino está no fim de seu mandato e em 10 de dezembro passará a faixa presidencial ao sucessor da Casa Rosada. Ainda assim, está no topo da lista de líderes mundiais com quem Lula mais se encontrou neste ano. O que está na agenda dos dois presidentes? E o que a Argentina quer do Brasil? Os dois governos divulgaram um longo documento conjunto do que foi chamado "relançamento da relação estratégica bilateral", com noventa ações, que incluem obras de infraestrutura, defesa e energia, entre outros itens. No documento, afirmam que vão “continuar analisando alternativas para estruturar uma linha de crédito de produtos brasileiros exportados para a Argentina”. E este é o ponto que mais tem interessado a Argentina em sua urgência por conseguir divisas para manter suas compras externas. Fim do Matérias recomendadas Lula e Fernández costumam se referir um ao outro como “amigo”, pelo menos desde que o argentino se solidarizou com o brasileiro e o visitou na prisão em Curitiba, acompanhado pelo ex-chanceler e hoje assessor especial da Presidência, Celso Amorim. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast “Essa negociação não é de agora. Vem desde o início do ano”, contou o embaixador da Argentina no Brasil, Daniel Scioli. Em Brasília e em Buenos Aires, nos bastidores, os comentários eram também de que, após o “silêncio, distanciamento e até agressões (por parte do Brasil)” durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, a relação “está sendo retomada”. “Com tudo”, disse uma fonte diplomática argentina. Em 2022, o volume de menções sobre a Argentina no debate político no Twitter se tornou maior que as mensagens sobre a Venezuela, um país cuja crise foi amplamente utilizada por políticos brasileiros nos últimos anos. "Essa atual crise passa, a que não passa é a do Socialismo, que o PT ajudou a implementar na Venezuela, está em andamento na Argentina", escreveu Bolsonaro naquele ano. Nesta segunda-feira, Lula disse: “Estamos trabalhando numa linha de financiamento abrangente (para os argentinos). Não faz sentido que o Brasil perca espaço no mercado argentino porque outros países oferecem crédito e nós não”. No mês passado, logo após seu encontro anterior com Fernández, o presidente brasileiro defendeu que o objetivo não é apenas beneficiar a Argentina, mas ajudar empresários brasileiros que exportam para o mercado vizinho e financiar as exportações nacionais. O chamado programa de financiamentos à exportação dos bens e serviços de engenharia brasileiros consiste no aporte a empresas brasileiras para executarem serviços no exterior. Os empréstimos são feitos em reais e no Brasil, para as companhias nacionais. Segundo um negociador brasileiro que participou do encontro em Brasília nesta segunda, o BNDES financiará por meio desse modelo o gasoduto Nestor Kirchner, que irá da região da Patagônia, no extremo sul da Argentina, até o Brasil. A ideia é reduzir a dependência do gás boliviano, que, de acordo com dados dos dois países, estaria em queda. A primeira fase do projeto já está concluída e o governo do país vizinho busca recursos para continuar a obra, com 500 quilômetros, ligando os campos de óleo e gás da região de Vaca Muerta até San Jerónimo, na província de Santa Fé. Há planos para que, em uma fase futura, o gasoduto se conecte com o Rio Grande do Sul, mas eles nunca saíram do papel. Segundo Lula, “há perspectivas positivas” para que o BNDES comece a subsidiar produtos de origem brasileira para a construção do gasoduto. O projeto, porém, tem despertado muitos questionamentos ambientais. Para a extração de petróleo e gás na região de Vaca Muerta é necessária uma técnica conhecida como fracking, que consiste em perfurar as rochas e introduzir água, areia e produtos químicos para aumentar a permeabilidade da pedra e fazer o produto escoar mais facilmente. A técnica, no entanto, pode gerar contaminação na água, na terra e no ar durante o processo de produção, armazenamento e transporte pela quantidade de água utilizada. Justamente por isso está proibida em muitos países. Ao mesmo tempo, a possível entrada do BNDES em novos empreendimentos internacionais é considerada um ponto sensível para especialistas. Isso acontece, em parte, por conta das dívidas e calotes acumulados por alguns dos países envolvidos. Também há críticos que falam em falta de transparência nos financiamentos. E há ainda quem defenda que os investimentos podem ser destinados a projetos mais vantajosos para o Brasil. Em maio, o presidente argentino desembarcou em Brasília com seus ministros da Economia, Sergio Massa, e das Relações Exteriores, Santiago Cafiero, além do embaixador da Argentina no Brasil, Daniel Scioli. Após o encontro, Lula lamentou não poder ajudar mais o argentino com empréstimos diretos. Em uma declaração que gerou polêmica em setores da imprensa argentina, o presidente brasileiro disse que Alberto Fernández "chegou aqui muito apreensivo, mas vai voltar mais tranquilo". "É verdade, sem dinheiro, mas com muita disposição política", disse. Lula reconheceu, porém, que a situação do país vizinho tinha se agravado a partir dos efeitos econômicos da seca histórica, com três anos seguidos de estiagem que acabaram drenando também a geração de divisas geradas pelas exportações do agronegócio argentino. Por isso, levantou a possibilidade da criação de uma espécie de fundo garantidor pelo banco do Brics, o NDB (Novo Banco de Desenvolvimento), para assegurar os financiamentos brasileiros. Esse passo, porém, ainda não saiu do papel. Dias após receber Fernández em Brasília em maio, Lula admitiu que “não foi possível (conseguir que o banco dos Brics desse essa garantia)”. No entanto, no item 17 do documento conjunto divulgado nesta segunda-feira, afirma-se que os dois países continuarão “estudando alternativas para a estruturação de uma linha de crédito para as exportações de produtos brasileiros para a Argentina” e que os responsáveis seriam o BNDES e o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), entre outros. Segundo uma fonte do governo brasileiro que tem acompanhado de perto a relação bilateral, o mais rápido apoio financeiro que o Brasil pode dar à Argentina no momento se manifesta por meio de uma “maior pressão” para que o Fundo Monetário Internacional (FMI) “alivie” as exigências feitas ao país. Na semana passada, Lula e outros cinco presidentes assinaram uma carta enviada a Joe Biden, dos Estados Unidos, respaldando a renegociação do acordo da Argentina com o organismo internacional, segundo a imprensa local. Em maio, após um encontro a portas fechadas com sua contraparte argentina, Lula disse que tinha se comprometido com “o amigo a fazer todo e qualquer sacrifício para que a gente possa ajudar a Argentina neste momento difícil (...) e conversar com o FMI para tirar a faca do pescoço da Argentina”. A Argentina assinou um acordo de US$ 44 bilhões com o Fundo durante o governo do ex-presidente e opositor de Fernández, Mauricio Macri. Atualmente, tenta renegociar o acordo para destravar a liberação de recursos para o país. Economistas argentinos ouvidos pela BBC News Brasil explicaram que a Argentina não está buscando um “empréstimo” do governo brasileiro, mas evitar ter que suspender as importações do Brasil. Disseram que “não é um empréstimo de país para país". A ideia inicial era de que o financiamento para as empresas brasileiras na Argentina girasse em torno de US$ 1 ou 2 bilhões. No entanto, a expectativa é que, se o acordo sair do papel, será em um valor muito menor. "Eu espero que saia (o acordo com o Brasil) porque vai ajudar o comércio e também a indústria brasileira”, disse o economista brasileiro Gustavo Perego, da consultoria Abeceb, de Buenos Aires. No início de junho, a Argentina assinou acordo financeiro com a China, com objetivo de reforçar suas reservas do Banco Central da República Argentina (BCRA). Mas, no entendimento de economistas locais, o pacto poderia abrir a porta para a maior presença de produtos chineses na Argentina. “Nossa preocupação é que acabe ocorrendo presença ainda maior da China e menor do Brasil”, avaliou Perego. Recentemente, a imprensa especializada que acompanhou a viagem do ministro da Economia, Sergio Massa, e do presidente do BCRA, Miguel Pesce, a Pequim, voltou a usar o termo ‘Argenchina’ – junção de Argentina e China – para sinalizar a maior união entre os dois países.
2023-06-27
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2qg21kk2yyo
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Como o Reino Unido enviou de volta ao Caribe centenas de migrantes com distúrbios mentais
A BBC descobriu que centenas de pessoas com doenças crônicas e problemas mentais da geração Windrush — que chegaram ao Reino Unido entre 1948 e 1971 — foram enviadas de volta para o Caribe, em uma ação descrita como uma "injustiça histórica". Documentos antes classificados como confidenciais revelaram que pelo menos 411 pessoas foram enviadas de volta entre os anos 1950 e o início dos anos 1970, em um programa que deveria ter sido voluntário. Famílias afirmam que foram separadas e algumas nunca foram reunidas novamente. O governo britânico afirma que está comprometido com a reparação das injustiças daquela época. Segundo um porta-voz, "reconhecemos o ativismo das famílias que buscam a reparação da injustiça histórica enfrentada pelos seus entes queridos e permanecemos totalmente comprometidos com a correção dos erros enfrentados pelas pessoas da geração Windrush". Os fatos revelados referem-se ao escândalo de Windrush, que causou a deportação indevida de centenas de cidadãos da Commonwealth — a Comunidade Britânica de Nações. Fim do Matérias recomendadas Muitos deles vieram da região do Caribe e as revelações desencadearam pedidos de investigação pública sobre aquela política de repatriação. Os repatriados eram parte de um grupo de milhares de pessoas que se mudaram de colônias britânicas para o Reino Unido nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. Elas ficaram conhecidas como a geração Windrush — nome de um dos primeiros navios a chegar ao Reino Unido trazendo essas pessoas, o HMT Empire Windrush. O ano de 2023 marca o 75º aniversário das primeiras chegadas. A BBC News encontrou, nos Arquivos Nacionais do Reino Unido, documentos que revelam a escala dessa política. Especialistas agora acreditam que o esquema pode ter sido ilegal, já que nem todos os pacientes tinham a capacidade mental necessária para concordar em voltar para o seu local de origem. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Joseph, pai de June Armatrading, foi um dos deportados. Como outras pessoas do Caribe que viajaram para o Reino Unido após a guerra, Joseph era cidadão britânico. Ele nasceu em St. Kitts, colônia do Reino Unido que, até hoje, é administrada diretamente por Londres, e tinha passaporte britânico. Joseph chegou ao Reino Unido em 1954 e morou em Nottingham, na Inglaterra, com sua esposa e suas cinco filhas. Mas ele começou ter problemas de saúde mental na década de 1960. Joseph Armatrading foi diagnosticado com psicose paranoide e, em 1966, foi devolvido para St. Kitts. Ele nunca mais viu sua família. June tem agora 65 anos. Ela conta que sua mãe disse a ela e às suas irmãs que o pai as havia "abandonado". Ela cresceu acreditando que seu pai não as amava, o que causou "uma grande mágoa, imensa". Mas a BBC teve acesso a uma carta escrita por Joseph Armatrading, pedindo para voltar ao Reino Unido e reunir-se à sua família. Pouco se sabe sobre o que aconteceu com ele depois do pedido. Em cartas que, antes, eram confidenciais, autoridades do governo admitiam que o procedimento de repatriação de Joseph Armatrading "não havia sido correto". Os documentos revelam que seu passaporte foi confiscado, de forma errônea. Quando mostramos as cartas para June Armatrading, ela ficou em choque. "Estou perturbada. É perturbador, é realmente perturbador... como eles se atreveram?", questiona ela. "Este era um homem vulnerável. Você precisa cuidar das suas pessoas vulneráveis e eles não fizeram. Eles o deixaram — eles o abandonaram." Marcia Fenton ingressou na assistência social quando ainda era bebê. Ela havia sido separada da mãe, Sylvia Calvert, que foi enviada de volta para a Jamaica no final dos anos 1960. Seu pai não conseguiu cuidar dela sozinho. Mãe e filha somente se reuniram muitos anos depois, na Jamaica. Sylvia havia recebido alta naquele momento, mas ainda não estava bem de saúde. Ela morreu em 2007. Marcia ainda quer descobrir o que aconteceu com sua mãe quando ela chegou de volta à Jamaica. Tudo o que ela sabe é que ela passou algum tempo no Hospital Bellevue, na capital jamaicana, Kingston. "Sua devolução para a Jamaica roubou a minha mãe", declarou ela à BBC. Ela quer uma investigação sobre como e por que pessoas como a sua mãe foram enviadas de volta para os seus lugares de origem. "Ninguém deveria ter sido repatriado se tinha problemas mentais" afirma ela. "O governo britânico deveria pedir desculpas." A análise dos documentos dos Arquivos Nacionais conduzida pela BBC demonstra que 411 pacientes com doenças crônicas e mentais foram enviados de volta para países da Comunidade Britânica de Nações no Caribe entre 1958 e 1970. Mas os departamentos governamentais aparentemente não mantêm registros abrangentes e, por isso, o número pode ser maior. O Conselho Nacional de Assistência — que deu origem ao Departamento de Trabalho e Aposentadorias — costumava ficar a cargo do processo. Cartas do governo e documentos políticos dos arquivos indicam que cada paciente deveria ter "expressado o desejo de retornar". Eles sugerem que a repatriação só deveria ocorrer se "beneficiasse" os pacientes e se houvesse "disposições apropriadas" para eles quando retornassem. Mas não se sabe ao certo se pacientes vulneráveis poderiam tomar essas decisões e se essas disposições apropriadas realmente existiam. Um documento acadêmico afirma que a assistência à saúde mental no Caribe naquela época carecia de "pessoal treinado e recursos". As autoridades do governo britânico estavam preocupadas em não dar a impressão de que estavam "tentando ativamente descarregar... os cidadãos da Comunidade Britânica que tinham pouca utilidade para o Reino Unido". Mas parece que as autoridades jamaicanas não ficaram convencidas. Em 1963, o Escritório do Alto Comissariado da Jamaica escreveu para o governo britânico queixando-se de que os hospitais do Reino Unido estavam solicitando repatriações, "em grande parte, com base na pressão sobre os leitos ou outros serviços hospitalares". A geração Windrush, composta por "Cidadãos do Reino Unido e das Colônias", tinha direito ao mesmo status legal de qualquer pessoa nascida no Reino Unido. Mas o professor James Hampshire, da Universidade de Sussex, na Inglaterra, afirma que, desde a primeira chegada de cidadãos britânicos do Caribe, houve o desejo de restringir o seu número, por parte dos governos dos dois partidos, trabalhista e conservador. "A intenção e o efeito da legislação aprovada naquele período [anos 1960 e 70] era de restringir alguns tipos de imigração e não outros", afirma ele. "Destinava-se principalmente ao que era chamado na época de 'imigração de cor'." O professor Kris Gledhill, que foi juiz de processos legais sobre saúde mental, afirma que a legalidade da prática de repatriação de pacientes de doenças mentais é discutível. Para ele, "o que você está fazendo é confiar em uma 'escolha voluntária' que, se você fosse determinar corretamente a capacidade da pessoa de fazer aquela escolha, você diria que eles não têm aquela capacidade". A advogada de imigração Jacqueline McKenzie, do escritório de advocacia londrino Leigh Day, representou centenas de vítimas do escândalo de Windrush em 2018. Sobre a repatriação de pessoas doentes e com problemas de saúde mental, ela afirma que "é absolutamente chocante que isso estivesse acontecendo". "Vidas foram destruídas", afirma ela. "O Estado agora deve aos descendentes daquelas pessoas o fornecimento de respostas e de algum tipo de compensação." Os médicos que pesquisaram as consequências aos pacientes devolvidos ao Caribe concluíram que o impacto foi negativo e que muitos queriam voltar para o Reino Unido. No início dos anos 1970, Aggrey Burke — o primeiro psiquiatra clínico negro do NHS, o serviço de saúde pública britânico — concluiu que o envio de pacientes com doenças mentais graves do Reino Unido para o Hospital Bellevue, na Jamaica, não foi realizado no seu melhor interesse. Ele agora afirma que existia falta de curiosidade sobre o que aconteceu com os pacientes. "Ninguém parecia ter interesse no 'e agora?', na próxima etapa", segundo Burke. Outro psiquiatra dos anos 1970, George Mahy, de Barbados, analisou os casos de cerca de 200 pacientes com doenças psiquiátricas originalmente da região do Caribe. Ele descobriu que cerca de 52% deles haviam sido aconselhados a voltar do Reino Unido e, em muitos casos, receberam auxílio financeiro do governo britânico. Segundo Mahy, muitos desses pacientes tinham fortes arrependimentos e queriam voltar para a Inglaterra. Em resposta à BBC, um porta-voz do governo afirmou: "O bem-estar dos pacientes hospitalares detidos com base na Lei de Saúde Mental é fundamental. A lei foi alterada desde a época daqueles casos — agora, um tribunal independente precisa concordar que a eventual repatriação seria feita no melhor interesse do paciente." Não existem fotos de Joseph Armatrading. Na sua casa em Nottingham, sua filha June conta que se lembra de ter visto uma com ela e suas irmãs, mas, com o passar dos anos, ela foi perdida. Mas June está decidida a fazer com que a história do seu pai não seja esquecida. "O governo ainda precisa responder às perguntas sobre o que aconteceu com meu pai, o que aconteceu com Joseph Armatrading?", questiona ela. "Eles nos deixaram perdidos."
2023-06-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72mj8j8n56o
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Submarino perdido: relembre outros 2 casos de embarcações desaparecidas no oceano
As buscas pelo submarino que desapareceu com cinco pessoas a bordo no Oceano Atlântico no início desta semana chegaram a um desfecho nesta quinta-feira (22/6): destroços do veículo foram encontrados e todos os passageiros morreram, segundo a empresa dona do submarino, a OceanGate, e a Guarda Costeira dos Estados Unidos. O submarino, chamado de submersível por especialistas, foi dado como desaparecido no domingo (18), após partir para uma visita às ruínas do Titanic. Nos últimos dias, as equipes de resgate fizeram uma corrida contra o tempo, pois a previsão era de que o suprimento de oxigênio do veículo durasse apenas até a manhã desta quinta. Relembre a seguir dois outros casos em que buscas por submarinos desaparecidos no oceano despertaram grande comoção e ganharam manchetes no mundo todo. Fim do Matérias recomendadas Em 15 de novembro de 2017, o submarino argentino ARA San Juan naufragou na costa do país com 44 tripulantes. Ele só foi encontrado após mais de um ano de buscas, a 900 metros de profundidade. A embarcação perdeu contato com a terra firme durante uma viagem de Ushuaia, no extremo sul do país, onde havia realizado exercícios militares, ao balneário de Mar del Plata, a 300 quilômetros da capital Buenos Aires. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O capitão enviou oito comunicações para seus superiores, informando sobre uma falha nas baterias do submarino, horas antes de desaparecer nos radares. Segundo as mensagens, havia entrado água no sistema de ventilação do submarino. Isso ocorreu quando o submarino estava próximo da superfície, usando um "snorkel" submarino para a entrada de ar, e houve uma grande ondulação no mar. A última mensagem do capitão explicava que esse problema havia provocado "um curto-circuito e princípio de incêndio" no setor onde ficavam as baterias. A partir de então, foi iniciada uma intensa operação de busca pelo submarino, que contou com a participação de diversos países. A Marinha do Brasil e a Força Aérea Brasileira (FAB) chegaram a enviar três embarcações e duas aeronaves para ajudar nas buscas, mas o tempo ruim no local dificultou a ação, devido às ondas, que chegavam a 6 metros de altura. Duas semanas depois do desaparecimento, a Marinha argentina anunciou que já não havia esperanças de encontrar nenhum dos tripulantes com vida e as buscas foram temporariamente abandonadas. Em setembro de 2018, o governo argentino contratou a empresa norte-americana Ocean Infinity para continuar as buscas. Em 16 de novembro, os restos do submarino foram encontrados a 800 metros de profundidade e a 600 metros da cidade de Comodoro Rivadavia, na Patagônia argentina, em um local próximo aquele no qual foi registrado o último contato do submarino. A missão de busca do submarino foi cercada de reclamações dos familiares da tripulação, que questionaram o governo tanto devido ao próprio desaparecimento como em relação às buscas. Três anos e meio depois do acidente, o Conselho de Guerra puniu a cúpula da Marinha argentina com penas que variaram entre 20 e 45 dias de prisão. A maior penalidade recaiu sobre o então comandante da força de submarinos, capitão Claudio Villamide, que foi destituído. Mas especialistas e familiares consideraram as penas brandas demais. Uma investigação contra o então presidente Mauricio Macri por espionagem dos familiares da tripulação do submarino chegou a ser aberta, mas foi encerrada em julho de 2022 após não terem sido identificados delitos. Outro caso bastante conhecido é o do Kursk (K-141), um submarino nuclear que afundou no Mar de Barents em 2000, com uma tripulação de 118 homens. O acidente é visto como umas das maiores tragédias subaquáticas da história. O Kursk era na época visto como um orgulho da Marinha russa, uma máquina de guerra equipada com 24 mísseis e, até o naufrágio, considerada indestrutível. Mas duas explosões causadas pelo disparo de mísseis durante exercícios militares em 12 de agosto acabaram com esse mito. Segundo especialistas, um vazamento de peróxido de hidrogênio em um dos projéteis provocou um incêndio, que posteriormente provocou as duas explosões. O Kursk foi localizado a 108 metros de profundidade na madrugada de 13 de agosto. Inicialmente acreditava-se que todos a bordo haviam morrido na detonação, mas cartas deixadas por alguns marinheiros revelaram que 23 pessoas sobreviveram à explosão após se trancarem em um compartimento do submarino. As equipes de resgate, porém, não encontraram a embarcação a tempo e seus corpos foram localizados por mergulhadores noruegueses em 21 de agosto. O submarino foi totalmente içado apenas em outubro de 2001, mais de um ano após a tragédia. O caso provocou muitas críticas ao governo russo, que demorou dias para comunicar ao público a gravidade do acidente. Além disso, investigações posteriores apontaram que a Rússia recusou as primeiras ofertas de outros países para ajudar a resgatar os tripulantes do submarino, pois a embarcação poderia revelar segredos militares. A apuração oficial concluiu ainda que o acidente revelou "indisciplina flagrante, equipamentos de má qualidade, obsoletos e mal conservados", bem como "negligência, incompetência e má gestão" por parte dos responsáveis ​​pelo submarino. Ninguém está preso atualmente pela morte dos 118 marinheiros.
2023-06-22
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1r9zy04wzwo
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Mulher que 'acordou' no próprio funeral morre dias depois de voltar ao hospital
Uma mulher de 76 anos que havia chocado os familiares ao acordar em meio a seu funeral faleceu no último dia 16 de junho no Equador. Bella Montoya foi declarada morta em um hospital na cidade de Babahoyo, no centro do país, em 9 de junho. Depois de ter sido encontrada lutando para respirar dentro do caixão, foi levada às pressas de volta à unidade de saúde. Após uma semana na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), contudo, ela acabou falecendo de um acidente vascular cerebral (AVC) isquêmico, conforme as informações divulgadas pelo Ministério da Saúde do Equador. Segundo a pasta, Montoya permaneceu sob "vigilância permanente" enquanto esteve no hospital. "Desta vez minha mãe realmente morreu. Minha vida não será mais a mesma", disse entrevista a um jornal local Gilberto Barbera Montoya. Fim do Matérias recomendadas Na sexta-feira, a mulher foi levada de volta ao mesmo local onde havia sido realizado seu "primeiro" funeral e, em seguida, enterrada em um cemitério público, segundo o registro da mídia local. A cobertura da imprensa mencionou ainda que Montoya sofria de catalepsia, uma condição que deixa o corpo rígido e imóvel e que, em alguns casos, pode ser confundida com a morte. Uma comissão formada por especialistas foi designada pelas autoridades de saúde equatorianas para avaliar o caso. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Montoya quase foi enterrada viva no último dia 9 de junho, mas reagiu a tempo, em pleno velório. A mulher estava há cerca de cinco horas dentro de um caixão fechado na funerária. Quando parentes se aproximaram para trocar sua roupa para o funeral, entretanto, encontraram a idosa ofegante, ainda vestindo a camisola e a pulseira do hospital. Minutos depois, Montoya foi colocada em uma maca e levada por bombeiros para o mesmo hospital de onde tinha saído horas antes, supostamente como vítima de um AVC. "Minha mãe começou a mexer a mão esquerda, abriu os olhos, a boca; ela tinha dificuldade para respirar", disse na ocasião seu filho Gilberto Barbera Montoya, descrevendo o momento em que percebeu que sua mãe ainda estava viva. Pouco antes, ele havia recebido dos médicos um atestado de óbito em que constava que a idosa havia morrido de parada cardiorrespiratória após sofrer um derrame. Um vídeo gravado por um vizinho presente na funerária que viralizou mostra a mulher deitada no caixão aberto. A jornalista equatoriana Cristina Muñoz disse à BBC que não é incomum que o caixão não seja aberto até chegar à funerária. "A limpeza de um cadáver às vezes é feita em hospitais, mas preparar o corpo e maquiá-lo antes do velório é feito por profissionais em funerárias", explicou Muñoz, de Quito. Mas nem sempre esse cuidado na funerária ocorre, pois, nas palavras de Muñoz, "esse ritual costuma ser muito caro, então famílias com poucos recursos optam por fazer por conta própria". Um caso semelhante aconteceu em fevereiro, no Estado de Nova York, Estados Unidos - uma mulher de 82 anos começou a respirar durante o velório, três horas depois de ser declarada morta em uma casa de repouso. *Com informações da BBC News Mundo, serviço em língua espanhola da BBC.
2023-06-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c519lw60grdo
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Quem são os uitotos, o povo indígena das crianças que sobreviveram sozinhas na selva colombiana por 40 dias
É uma história incrível: quatro crianças, com idades entre 13 anos e 12 meses, sobreviveram na densa selva amazônica por 40 dias, após o acidente do avião em que viajavam, no qual três adultos perderam a vida. A história de como os irmãos sobreviveram sem comida, expostos a mosquitos e animais selvagens em uma região inóspita, ainda não foi contada pelas crianças. No entanto, para os quatro menores, a selva não era um lugar estranho. Pelo contrário, a floresta faz parte de sua casa, de seu ambiente natural: as crianças são da comunidade indígena Muina Murui, mais conhecida como Uitoto. "Nos chamamos de muina murui, mas as outras comunidades nos chamam de uitoto como apelido", conta María Kuiru à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC). Kuiru, cujo nome tradicional é Jitomakury, é Secretária da Mulher, Família e Infância da Associação Zonal Indígena de Cabildos e Autoridades Tradicionais de La Chorrera, que reúne várias comunidades como os muina murui-uitoto. Fim do Matérias recomendadas Os muina murui, que se traduz como "filhos do fumo, da coca e da mandioca doce", são uma das maiores comunidades indígenas que habitam a floresta amazônica. Além da Colômbia, eles também estão presentes no Peru e no Brasil. E eles conhecem muito bem a área onde ocorreu o acidente e a operação de resgate. As crianças estavam sendo procuradas depois que o desaparecimento do avião em que viajavam com a mãe foi noticiado em 1º de maio. De fato, vários membros da comunidade -- que conta com cerca de 8 mil pessoas e representa 0,5% da população indígena da Colômbia -- fizeram parte das operações que finalmente permitiram encontrá-los. "Nós moramos na reserva indígena Predio Putumayo, nosso território ancestral, que é uma das florestas mais bem preservadas da Amazônia", observa Kuiru. Ela acrescenta que a selva é um lugar selvagem e inóspito, mas graças ao seu calendário ecológico é também a principal fonte de alimento para quem a habita e sabe "lê-la". "Nós, graças às nossas práticas tradicionais, equilibramos nossa sobrevivência diária na selva. E isso é ensinado às crianças desde os primeiros anos. Isso ajudou na sobrevivência das quatro crianças por 40 dias", diz. Muito pouco se sabe sobre a presença dos muina murui ou uitoto em território colombiano antes do início do século 20. Sua economia baseia-se principalmente na caça e na pesca, além da coleta da mandioca doce, produto bastante cultivado nesta região do país. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Todos os dias vamos para a floresta, com nossas famílias, procurar alguma coisa. Vivemos na selva a vida inteira. E nesse cotidiano aprendemos o que se come e o que não se come", diz. Uma das principais tradições dos muina murui é o uso da folha de coca e do fumo para cerimônias e ritos. Enquanto os homens se dedicam a tarefas físicas como a caça e a pesca, as mulheres se encarregam de realizar os rituais. "Para nós, a folha de coca e o fumo são folhas sagradas. Por isso são as que mais usadas", diz María Kuiru. A origem do uso da folha de coca e do tabaco tem a ver com os poderes curativos de ambos, o que lhe confere seu caráter sagrado. "Essas folhas sagradas nos foram dadas por nosso criador para o manejo espiritual do mundo", diz. Além delas, a doce folha de mandioca, amplamente disponível na selva, também é usada. "A moagem dessa folha é feita especialmente pelas mulheres. Nós a transformamos em bebida para consumo nas nossas danças tradicionais", conta. "A bebida serve para para limpar os corações que chegam descarregados aos nossos rituais." Outro produto de consumo entre os muina murui é a mandioca amarga, que teria sido a fonte de alimento das crianças que se perderam na selva. Durante séculos, os Uitoto conseguiram manter-se alheios aos grandes processos de conquista e colonização que ocorreram no continente. No entanto, foi o chamado "boom da borracha", no início do século 20, que não só significou o primeiro contato com os povos mestiços, como também levou a comunidade à beira da extinção. A fundação da Casa Arana, um grupo comercial peruano que operava principalmente ao longo do rio Putumayo, na Colômbia, usava os uitotos como escravos para explorar o material. "Cerca de 40 mil de nós morreram devido a essa exploração. Somos descendentes dos poucos que conseguiram sobreviver", diz Kuiru. O genocídio perpetrado pelo dono da casa Arana, Julio César Arana, retratado em livros como La Vorágine, provocou a dispersão da população uitoto. Depois disso veio a guerra entre a Colômbia e o Peru em 1932, que colocou a população indígena a conviver pela primeira vez com soldados e militares e levou membros da comunidade a serem escravizados para trabalhar nos seringais. "Muitos povoados e clãs, como o do Sol, desapareceram por causa daquele genocídio. Mas aos poucos voltamos a ocupar nossos territórios ancestrais com muita resiliência", diz Kuiru. Mas nos últimos anos eles viveram um fenômeno difícil de superar: a busca dos narcotraficantes pelas plantações de folha de coca. "Usamos a folha de coca para nos curar, para nossos rituais, não para vendê-la. Essa exploração de algo que é sagrado para nós nos afetou profundamente como comunidade", diz.
2023-06-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/crgdq4q04q4o
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'Mundo é melhor com Brasil nele', diz secretário adjunto de Estado dos EUA sobre governo Lula
O secretário adjunto de Estado dos Estados Unidos, Brian A. Nichols, dribla perguntas sobre declarações agressivas do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em relação aos EUA. Principal autoridade americana para as Américas, Nichols prefere exaltar o novo papel que o Brasil tem desempenhado no cenário internacional desde a posse do petista, há quase seis meses. Lula chegou ao poder prometendo colocar o país de volta no mapa-mundi - depois de 4 anos de gestão de Jair Bolsonaro (PL) - e de lá pra cá sustentou dezenas de encontros com líderes mundiais, como o americano Joe Biden, o chinês Xi Jinping e o alemão Olaf Scholz. Acumulou também desgastes com aliados americanos depois de dizer que pretendia negociar a paz na guerra da Ucrânia e que os EUA “deveriam parar de promover” o conflito. O posicionamento foi criticado publicamente pela Casa Branca como uma repetição de discurso russo. “Nem sempre vamos concordar em tudo, mas o mundo é melhor com o Brasil nele”, diz Nichols em entrevista exclusiva à BBC News Brasil, em seu gabinete, no prédio do departamento de Estado em Washington D.C. Fim do Matérias recomendadas Nichols, porém, não deixa de dizer que a fala de Lula de haver uma “narrativa” sobre o caráter ditatorial do regime de Nicolás Maduro na Venezuela “não é uma caracterização justa” do que acontece no país e ressalta que a afirmação do brasileiro foi rebatida tanto pelo líder chileno Gabriel Boric quanto pelo uruguaio Luis Alberto Lacalle Pou. Mas diz que o Brasil segue sendo um ator importante para negociar uma saída democrática para os venezuelanos. Os EUA, pressionado pelo avanço da China na América Latina e mantendo relações erráticas com dois de seus principais aliados históricos na região, México e Colômbia, seguem vendo no Brasil sob Lula uma grande oportunidade de retomar influência na região e de fazer avançar globalmente pautas prioritárias para Biden, como a promoção da democracia e o combate às mudanças climáticas. O secretário adjunto elogiou o que chamou de “muito boa química” entre Biden e Lula. Mas descartou a possibilidade de que os EUA possam negociar um acordo de livre comércio com o Mercosul nos moldes do tratado que o bloco negocia com a Europa. Nichols assinala a cooperação ambiental entre EUA e Brasil como ponto alto do relacionamento bilateral, embora os US$500 milhões prometidos pelo governo Biden ao Fundo Amazônia ainda não tenham sido aprovados pelo Congresso. “Estou confiante de que seremos capazes de defender os recursos de que precisamos (junto ao Congresso)”, assegura Nichols, sem dizer como essa negociação será feita. Leia a seguir os principais trechos da entrevista, editada por concisão e clareza. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast BBC News Brasil - Quase seis meses após o início do mandato de Lula, de que maneira a relação Brasil-EUA mudou em comparação ao governo brasileiro anterior? Brian A. Nichols - Tive o prazer de me juntar ao presidente Biden e ao presidente Lula na reunião que eles tiveram na Casa Branca (em fevereiro) e foi incrível ver os dois líderes saírem do Salão Oval, de sua reunião individual, ombro a ombro, conversando um com o outro, e quanta boa química e valores compartilhados os dois presidentes têm. Eles falaram sobre a defesa da democracia, suas preocupações compartilhadas sobre a mudança climática, seu compromisso com a diversidade, equidade e inclusão, abordando os muitos desafios que o mundo enfrenta hoje em termos de conflitos globais, segurança alimentar. Portanto, há uma base incrivelmente forte para construir nosso relacionamento. E os dois líderes transmitiram às suas equipes a importância dessa relação. Desde a minha visita ao Brasil, no mês passado, fiquei realmente impressionado com tantos atores diferentes, seja no setor governamental, empresarial, acadêmico, sociedade civil, todos realmente valorizam o relacionamento com os Estados Unidos. Então eu acho que não é apenas uma relação de governo para governo. Está em todos esses níveis diferentes da sociedade. E temos um relacionamento maravilhoso com o Brasil e muito trabalho a ser construído. BBC News Brasil - E isso tudo não estava presente na gestão anterior (de Jair Bolsonaro)? Nichols - Brasil e EUA são países grandes, e há muitos interesses. E eles vão além dos líderes e vão além do governo. Então, tivemos relações positivas com o Brasil no passado de muitas maneiras, mas acho que esta é uma oportunidade única, já que agora temos dois presidentes que estão tão alinhados em uma agenda de governo. BBC News Brasil - Se eu te pedisse pra fazer um balanço, em que aspectos da relação houve avanços e onde ainda há o que melhorar? Nichols - Acho que o clima é uma das áreas em que há um compromisso muito forte de ambos os países e líderes. Aguardamos com expectativa a cúpula da Amazônia em Belém, em agosto, que o Brasil sediará. O presidente Lula aspira a sediar a COP 30 (conferência da ONU sobre o clima, já confirmada em Belém em 2025). Essa é uma iniciativa importante. O presidente Biden destinou US$ 500 milhões para o fundo da Amazônia, e já estamos trabalhando nas questões da Amazônia há algum tempo, seja no combate à extração ilegal de madeira, mineração ilegal de ouro, promoção de políticas agrícolas sustentáveis ​​que ajudarão a acabar com o desmatamento, todas essas áreas de cooperação são muito importantes. E coisas como a segurança alimentar global têm sido incrivelmente importantes desde a época da pandemia até a invasão da Ucrânia pela Rússia. Como um dos principais exportadores de alimentos e fertilizantes, o Brasil tem um papel fundamental a desempenhar em relação à segurança alimentar. Essas são apenas algumas das áreas nas quais já estamos ativamente engajados na cooperação. E em termos de coisas que espero que possamos fazer mais para enfrentar, (estão) os desafios regionais e os desafios globais. O Brasil historicamente tem sido um grande líder na tentativa de ajudar o povo haitiano, por exemplo, e isso é uma grande prioridade para nós. Da mesma forma, enfrentamos um desafio de democracia e respeito pelas liberdades e direitos básicos na Venezuela, e o presidente Lula manifestou interesse em tentar enfrentar os desafios de lá. Portanto, definitivamente existem áreas nas quais podemos trabalhar juntos em nossa região. BBC News Brasil - A presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyer, acaba de visitar o Brasil e dizer que pretende finalizar o acordo de livre comércio com o Mercosul até o final do ano. Existe a possibilidade de que EUA e Mercosul também negociem um acordo de livre comércio, ou este assunto está completamente fora da agenda? Nichols - Na Cúpula das Américas no ano passado, os Estados Unidos anunciaram a Parceria das Américas para a Prosperidade Econômica, e essa é a base que temos para construir uma estrutura mais ampla para o crescimento econômico e a prosperidade em nosso hemisfério. Na época que lançamos o Brasil estava em meio a uma eleição e não achava muito apropriado aderir naquele momento, mas é algo que estamos construindo com muitos países em nosso continente para agilizar processos alfandegários e regulatórios, construir conexões mais fáceis no setor de serviços, fazer coisas que ajudarão a facilitar o crescimento (econômico) em nossa região. Outra área importante para nós é tentar facilitar a criação de novas cadeias de suprimentos mais próximas dos Estados Unidos. Essa é uma das prioridades do presidente Biden. Estamos realmente fazendo muito para trazer a manufatura de volta aos Estados Unidos, mas ainda há insumos que teremos de importar de parceiros na América Latina. E o Brasil é uma economia gigantesca e há grandes sinergias que temos com a economia brasileira, como no setor aeroespacial. BBC News Brasil - Então, se entendi bem sua resposta, isso significa que os EUA preferem investir nestas iniciativas mais pontuais a discutir um acordo de livre comércio? Nichols - Não acho que estejamos prontos para algum tipo de acordo amplo de livre comércio em bloco. Mas acho que há muitas outras coisas que podemos fazer para facilitar as áreas em que somos complementares. Os EUA são a principal fonte de investimento estrangeiro no Brasil, as empresas americanas contribuem para um terço do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro. Queremos ter certeza de que estamos trabalhando com nossos parceiros em toda a região para aumentar a classe média, para ajudar as economias a se tornarem mais equitativas, mais bem-sucedidas e mais resilientes. BBC News Brasil - O presidente Lula fez uma série de declarações que foram vistas por analistas como agressivas aos EUA ou como ecos de antiamericanismo. Ele disse, por exemplo, que os EUA tinham que parar de incentivar a guerra na Ucrânia. Antes de Lula ganhar a eleição, diplomatas americanos que conversaram com a BBC News Brasil reservadamente expressaram preocupação com ecos de antiamericanismo que pudessem ainda existir na esquerda brasileira. O senhor vê ecos de antiamericanismo no discurso do presidente Lula? Nichols - Olha, o presidente Lula é, mais uma vez, um parceiro importante em tantas áreas... As questões que vemos globalmente, a guerra na Ucrânia começou quando a Rússia invadiu a Ucrânia pela segunda vez. E nós e nossos aliados dissemos ao mundo que a Rússia planejava invadir. A Federação Russa negou. E na sequência invadiu. O conflito está acontecendo inteiramente dentro das fronteiras da Ucrânia. E a maneira de parar esse conflito agora é a Rússia retirar suas forças do território ucraniano. (Se a Rússia fizer isso), a guerra acabou. Essa é a realidade. Acho muito positivo que o presidente Lula e altos funcionários brasileiros estejam em contato com funcionários do governo ucraniano. Acho importante ouvir a perspectiva deles sobre a situação. O que costumamos dizer aqui é que nada sobre a Ucrânia (será discutido ou resolvido) sem a Ucrânia. Portanto, qualquer solução para o conflito dependerá do envolvimento dos líderes ucranianos, conversando com eles sobre suas preocupações. E vemos isso como um passo positivo (do governo Lula). BBC News Brasil - Então a situação constrangedora entre Brasil e EUA sobre a guerra na Ucrânia já foi superada? Nichols - Acho que para ambos os países é importante que nos mantenhamos engajados, que conversemos uns com os outros, que tenhamos certeza de que as linhas de comunicação estão muito ativas. Quando temos diferenças de opinião sobre as coisas, a melhor maneira de lidar com isso é conversando, conversando e compartilhando nossas respectivas perspectivas, e acho que à medida que avançamos, será vital mantermos contato próximo. Este é um momento incrivelmente desafiador em nossa região e em todo o mundo. E o Brasil pode desempenhar um papel fundamental na solução desses problemas. Precisamos que o Brasil esteja ativo no cenário mundial, precisamos que o Brasil traga sua criatividade e suas soluções para a mesa. E claro que nem sempre vamos concordar em tudo, mas o mundo é melhor com o Brasil nele. BBC News Brasil - Especificamente sobre a Venezuela, quais são seus comentários sobre a declaração do presidente Lula de que o que está acontecendo na Venezuela é uma narrativa? Nichols - Não é uma narrativa. A realidade é que existem amplos relatórios internacionais da Organização das Nações Unidas (ONU), da Organização dos Estados Americanos (OEA) e do relator especial da ONU para a Comissão de Direitos Humanos que falam sobre a realidade da situação na Venezuela. O povo venezuelano não pode exercer seus direitos democráticos fundamentais, e a melhor maneira de resolver isso é ter uma eleição livre, justa e transparente na Venezuela. Isso é algo que apoiamos fortemente e acreditamos que a comunidade internacional precisa manter a unidade para encorajar uma solução democrática por meio de uma eleição na Venezuela. E se pudermos apoiar esse processo, será melhor para o povo venezuelano, melhor para nossa região, melhor para o mundo. BBC News Brasil - Foi surpreendente para você este comentário do presidente Lula? Nichols - Acho que o elemento crucial da discussão em nossa região é qual é a realidade e quais são os desafios que enfrentamos como região. E, certamente, se você olhar para as declarações de outros líderes do continente ou declarações da própria classe política do Brasil, há uma constelação de atores políticos, acho que as pessoas em geral acharam que essa não era uma caracterização justa. Então o importante é que temos que trabalhar juntos para promover soluções. E estou confiante de que o governo brasileiro fará isso. BBC News Brasil - Ao falar em “narrativa”, Lula reduz as condições do Brasil de servir como mediador da crise venezuelana? Nichols - Muitos países vão ter um papel importante nesse processo. A Cidade do México tem sido palco de negociações entre o regime de Maduro e a plataforma unitária da oposição, e esse é um processo incrivelmente importante. Na Colômbia, o presidente (Gustavo) Petro organizou uma reunião ministerial de alto nível para falar sobre o caminho a seguir e falou sobre seu compromisso de revitalizar um grupo de parceiros para enfrentar os desafios na Venezuela. O Brasil é o anfitrião de milhares de venezuelanos que fugiram da repressão em seu próprio país e pode desempenhar um papel crucial no fornecimento de uma solução. Portanto, há muitos países que terão um papel importante a desempenhar para ajudar a Venezuela a ter um futuro melhor. E o Brasil é um deles. BBC News Brasil - O senhor esteve na semana passada no Congresso americano para falar sobre o Orçamento proposto pelo presidente Biden para ações na América Latina. Em uma sessão de uma hora e meia, a Amazônia foi mencionada uma única vez, e pelo senhor. A impressão que dá é que a questão do meio ambiente não é uma prioridade para o Congresso americano como o governo Biden diz que é para sua gestão. Essa impressão é verdadeira? Faz sentido ainda esperar que o Congresso aprove o valor de meio bilhão de dólares que Biden prometeu destinar ao fundo amazônia diante desse contexto? Nichols - O presidente Biden tem sido muito claro ao priorizar as questões climáticas e obteve mais dinheiro em financiamentos relacionados ao clima do Congresso dos EUA do que todos os outros presidentes americanos. Há muitos senadores e deputados que falam muito e apoiam nossos esforços para enfrentar a crise climática. E estou confiante de que seremos capazes de defender os recursos de que precisamos. BBC News Brasil - Em relação ao Haiti, o Brasil liderou a missão de paz no país por anos e, no entanto, vemos hoje a situação de completa deterioração do Estado haitiano. O Brasil falhou em sua missão? O Brasil deveria compor nova força internacional que tem sido defendida pelos EUA no país? Nichols - O Brasil tem sido um líder incrivelmente importante em ajudar o povo haitiano por décadas, e sua liderança na Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti) foi um compromisso incrível. Sou profundamente grato por tudo o que o Brasil fez e continua fazendo para prestar assistência ao Haiti. Todos nós temos que fazer mais para ajudar o Haiti. E parte da solução para isso é fornecer uma espécie de força de segurança internacional que o governo haitiano solicitou. Líderes haitianos de todo o espectro político estão se reunindo e estiveram nos últimos dias na Jamaica para falar sobre o caminho a seguir, enquanto examinamos os diferentes tipos de ajuda de que o Haiti precisa, seja assistência humanitária, médica, eleitoral, educacional, econômica ou mesmo policial. O Brasil tem experiência em todas essas áreas e espero que o Brasil continue sendo generoso e criativo em ajudar o Haiti neste momento incrivelmente difícil. BBC News Brasil - A relação entre Brasil e EUA completa 200 anos em 2024. Ao mesmo tempo, o Brasil não recebe visitas de um presidente americano há cerca de dez anos, desde Barack Obama. Biden pretende visitar o país no fim do ano ou começo do ano que vem? Nichols - Durante a reunião na Casa Branca, o presidente Lula fez um convite ao presidente Biden para uma visita. Ele (Biden) disse que estava ansioso para visitá-lo e tenho certeza de que encontrará algum momento mutuamente conveniente para uma visita ao Brasil. Eu sei que ele está ansioso por essa viagem.
2023-06-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn42rrm1nv1o
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Por que presidente de El Salvador vai extinguir mais de 80% das cidades do país
O mapa administrativo de El Salvador vai mudar drasticamente: os atuais 262 municípios serão agrupados em apenas 44. Ou seja, 83% dos municípios vão deixar de existir. O presidente do país centro-americano, Nayib Bukele, ratificou nesta quarta-feira a Lei Especial de Reestruturação Municipal, um dia depois de 67 dos 84 deputados do Congresso terem aprovado a proposta após mais de cinco horas de debate. O regulamento, que contém 13 artigos, entrará em vigor a 1 de maio de 2024, no início da próxima legislatura e três meses após as próximas eleições presidenciais, legislativas e autárquicas. A partir de então, o país terá 44 prefeitos, 44 curadores e 372 vereadores, número bem inferior aos atuais 3 mil. Bukele considera a aprovação da nova lei um marco histórico, enquanto a oposição a vê como um movimento eleitoral e um retrocesso. Fim do Matérias recomendadas Analisamos o que o governo de El Salvador busca com essa mudança e como isso afetará o país. O presidente Bukele e os partidários da nova lei defenderam com vários argumentos a transformação radical do mapa administrativo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em primeiro lugar, sustentam que 262 prefeituras é um número muito grande para um país como El Salvador, com 6,5 milhões de habitantes e 21 mil quilômetros quadrados de extensão. "Foi necessária uma reestruturação", explica a analista política salvadorenha Bessy Ríos à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC. A especialista critica, porém, a falta de diálogo na elaboração do plano: “havia um pedido para que a sociedade civil fosse consultada nos territórios”. “Além disso, não há nenhum estudo técnico que tenha explicado à população os motivos pelos quais deveriam ser 30, 20, 100 ou 44 municípios”, aponta. Os defensores da lei alegam que o projeto vai desburocratizar a administração pública, o atendimento ao cidadão será aprimorado e a transparência e a prestação de contas serão melhoradas. Esse argumento não convence a oposição: "não é desburocratizar, mas aumentar", diz a deputada Claudia Ortiz, do partido Vamos. “Se antes o cidadão podia ir diretamente ao seu prefeito, agora terá de ir primeiro ao chefe do seu distrito; este, ao chefe do município; e o autarca vai transferir o pedido para a Direção de Obras Municipais”, diz Ortiz. Em todo caso, o principal motivo que Bukele e seus partidários apresentam a favor da lei é a luta contra a corrupção. O problema, dizem eles, está enraizado nas administrações municipais de todo o país. A Assembleia Nacional defendeu em comunicado que a concentração das autarquias vai promover "um melhor controle da despesa e do investimento público, eliminando contratos sobrevalorizados e atos de corrupção com eles relacionados". Bukele foi muito mais explícito: “muitos prefeitos se dedicam apenas a roubar ou ver o benefício pessoal que tiram dos recursos do povo”, disse ele em defesa da nova lei. A analista política Bessy Ríos, por sua vez, é mais cética em relação à reestruturação. “Com os novos prefeitos de 5 ou 6 distritos, os projetos serão maiores e as possibilidades de corrupção continuam existindo. Elas não diminuem, pois a corrupção depende das pessoas que você coloca no comando”, diz. Segundo o governo, os atuais prefeitos não serão demitidos e os cargos que serão extintos na reestruturação serão os de vereadores e cargos considerados "de confiança" em instituições locais. No plano econômico, o Ministério da Fazenda garante que a reestruturação municipal significará uma economia de US$ 250 milhões (R$ 1,2 bilhões) por ano para os cofres de El Salvador. Esse excedente poderá ser utilizado para “maiores e melhores investimentos em obras e serviços de qualidade para a população”, segundo nota da Assembleia Legislativa. Além disso, sustenta o parlamento, as cidades menos populosas vão se beneficiar da “solidariedade entre municípios”, uma vez que a concentração de prefeituras vai favorecer o financiamento e a distribuição equitativa de bens e serviços. Para a analista Bessy Ríos, porém, “o principal problema da reestruturação é que ela não garante que o desenvolvimento chegue às comunidades que precisam dele, porque falta um plano estratégico” que o complemente. Entretanto, o deputado da oposição critica que “os mesmos deputados governistas que falam em poupança com a redução de municípios aprovam milhões de dólares de aumento orçamental para o poder executivo das comunicações e imprensa”. "Não, não é a economia que motiva a redução de municípios. É o cálculo eleitoral", acrescenta Claudia Ortiz. Para a oposição, a nova lei de reestruturação municipal é um movimento do partido governista para acumular ainda mais poder em um momento em que Bukele goza de alta popularidade entre os salvadorenhos. "Em El Salvador, o poder está se concentrando cada vez mais. Ninguém mais tem capacidade de decisão. Nem prefeitos, nem vereadores, nem os próprios deputados", diz o oposicionista. "O único que realmente toma decisões é o grupo de poder que está no executivo. Eles vêm eliminando funcionários, modificando leis e criando instituições para esse esquema vertical e centralizado", afirmou. Em 4 de fevereiro de 2024, El Salvador realizará eleições presidenciais, legislativas e municipais. Nas duas primeiras, o partido Nuevas Ideas, de Nayib Bukele - que está concorrendo à reeleição como presidente - começa nas pesquisas com ampla vantagem sobre seus concorrentes. No entanto, "as pesquisas mostram que eles podem perder prefeituras, especialmente nos municípios da grande San Salvador", diz Bessy Ríos. Assim, prevê o analista: (ao concentrar várias dessas prefeituras) “o partido do presidente terá melhor retorno eleitoral”.
2023-06-16
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn0k20j3x46o
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'Não foi milagre, foi sabedoria ancestral do nosso povo', diz 'parente' brasileira de crianças resgatadas na Colômbia
Ela é líder indígena do povo witoto, etnia da qual fazem parte os irmãos resgatados após a queda do avião em que viajavam - na Colômbia, a etnia é comumente chada de hitoto. Vanda considera os hitoto da Colômbia seus "parentes”, apesar da distância. De origem colombiana, a etnia está no Brasil desde a década de 1930, quando os indígenas fugiram das perseguições no país vizinho. Vanda conta que seus bisavós estavam entre os que deixaram o território original do povo para trás. "Mas ainda nos vemos como parentes, pois a fronteira não cortou nossos laços", diz. A técnica de enfermagem é professora voluntária na comunidade Parque das Tribos, em Manaus, e afirma que a autonomia, o conhecimento sobre o manejo da floresta e a busca por alimentos na selva são ensinados às crianças indígenas desde muito cedo por meio do convívio em comunidade. Fim do Matérias recomendadas "A educação se dá no cotidiano e na observação dos fazeres dos mais velhos. Desde cedo, as crianças são levadas para a roça e aprendem como cuidar e manejar a natureza, quais folhas, frutas e raízes podem comer ou como procurar rios, pescar e confeccionar instrumentos básicos", diz a líder indígena. "Por isso, não consideramos um milagre a sobrevivência das crianças hitoto na Colômbia. Foi a força da espiritualidade, do conhecimento e da sabedoria ancestral do nosso povo que as manteve vivas." Os irmãos de 14, 9, 4 e um ano sobreviveram à queda do avião de pequeno porte em que viajavam com a mãe e outros dois adultos em 1º de maio. Todos os adultos morreram e eles ficaram sozinhos na selva até a última sexta-feira (9/6), quando foram encontrados pelo Exército após uma intensa busca. Segundo Vanda Witoto, em sua cultura, a transmissão de conhecimentos não acontece na escola tradicional, mas na convivência com os pais e avós e com a natureza. "Por isso é tão importante garantir o direito à terra", diz. "Se hoje temos a condição de continuar existindo mesmo diante de toda a violência estrutural que enfrentamos, não só no Brasil, mas em toda a América, é por conta da força da nossa relação com a floresta, com os rios e com a terra." Como professora voluntária no bairro indígena Parque das Tribos, Vanda afirma que trabalha a preservação da cultura e da sabedoria ancestral. "Nós indígenas costumamos ter muito baixa autoestima de ser quem somos por conta do preconceito. Então, trabalhamos a valorização da identidade indígena, das nossas línguas e história com as crianças", afirma. Nativos da Colômbia, os witoto se deslocaram para o Peru e o Brasil para fugir da violência enfrentada em seu território original, advinda principalmente da exploração da borracha na região e da ação de guerrilhas como a extinta Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). A grafia do nome do povo varia conforme o país - na Colômbia são hitoto e no Peru, uitoto - mas os costumes mantidos pela etnia são os mesmos em todos os locais. No Brasil, o povo witoto vive no Estado do Amazonas, principalmente no Alto Solimões, na região da tríplice fronteira com Peru e Colômbia. A região abriga atualmente cerca de três aldeias com mais de 150 famílias, que vivem da caça, da pesca e do extrativismo. Outros indígenas da etnia também vivem no Parque das Tribos, como é o caso de Vanda Witoto. "Meus bisavós fugiram da Colômbia de canoa e se instalaram no Brasil", conta. "Nós nos distanciamos do nosso território ancestral, mas, em 2021, fizemos o primeiro encontro entre os witoto do Brasil e da Colômbia em cem anos." Vanda diz que a mãe das crianças, que morreu no acidente de avião na Colômbia, é parente de uma tia sua que vive em Bogotá, capital da Colômbia. "Na verdade, dizemos que todos somos parentes, apesar de não compartilharmos necessariamente vínculos de sangue." Vanda conta ainda que, durante as buscas pelas crianças na selva amazônica, todos do povo se juntaram em um movimento espiritual para que fossem encontradas. "Os povos originários seguram o céu. Nós fazemos isso a partir das medicinas tradicionais, da espiritualidade e da relação com a floresta."
2023-06-14
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c80d58q1gjro
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A mulher que começou a respirar dentro do próprio caixão em funeral
Ser enterrado vivo costuma ser um dos grandes medos, típicos de filmes de terror. E foi o que esteve perto de acontecer com uma mulher de 76 anos que reagiu a tempo dentro do caixão em que se encontrava, em pleno velório. Tudo aconteceu em Babahoyo, no centro do Equador, quando um médico de um hospital da cidade declarou Bella Montoya morta por um suposto derrame. Ela foi então colocada em um caixão e levada para uma funerária onde, após cinco horas, o caixão começou a tremer. Quando abriram o caixão, encontraram a mulher lutando para respirar, ainda vestindo a camisola e a pulseira do hospital. Fim do Matérias recomendadas "Minha mãe começou a mexer a mão esquerda, abriu os olhos, a boca; ela tinha dificuldade para respirar", disse seu filho Gilbert Balberán, descrevendo o momento em que percebeu que sua mãe ainda estava viva. Um vídeo gravado por um vizinho presente na funerária que viralizou mostra a mulher deitada no caixão aberto. Minutos depois, Bella Montoya foi retirada, colocada em uma maca e transferida para o mesmo hospital onde havia sido declarada morta. A jornalista equatoriana Cristina Muñoz disse à BBC que não é incomum que o caixão não seja aberto até chegar à funerária. "A limpeza de um cadáver às vezes é feita em hospitais, mas preparar o corpo e maquiá-lo antes do velório é feito por profissionais em funerárias", explicou Muñoz, de Quito. Mas nem sempre esse cuidado na funerária ocorre, pois - nas palavras de Muñoz - "esse ritual costuma ser muito caro, então famílias com poucos recursos decidem fazer por conta própria". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O filho de Bella Montoya disse à imprensa equatoriana que sua mãe está em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI). "Minha mãe está no oxigênio, seu coração está estável. O médico beliscou sua mão e ela reagiu, eles me dizem que isso é bom porque significa que ela está reagindo aos poucos", disse o filho ao jornal El Universo. O Ministério da Saúde do Equador criou uma comissão para investigar o incidente. Balberán explicou que levou sua mãe ao hospital em uma emergência pela manhã e que "ao meio-dia um médico me disse que ele havia morrido". Chegaram a dar a ele um atestado de óbito afirmando que a idosa havia morrido de parada cardiorrespiratória após sofrer um derrame. Como disse Muñoz à BBC, o caso de Bella Montoya teve forte repercussão no país e está sendo acompanhado de perto porque sua "saúde ainda é delicada e ninguém sabe como essa história vai acabar". Para Muñoz, as portas também estão abertas "para que o filho possa processar os responsáveis por negligência, imperícia e dano moral". Em fevereiro, houve um caso semelhante ao de Montoya, no estado de Nova York, Estados Unidos, quando uma mulher de 82 anos respirou durante o velório, três horas depois de ser declarada morta em uma casa de repouso.
2023-06-13
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy0jk100d9jo
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A busca por Wilson, cão que foi crucial no resgate de crianças na selva na Colômbia
"As buscas não terminaram", disse neste domingo o Exército Nacional da Colômbia. Enquanto o país continua comemorando o resgate com vida das quatro crianças que desapareceram por 40 dias na selva após a queda do avião em que viajavam, os militares tentam encontrar o último dos perdidos: o cão de buscas Wilson. Este pastor belga de seis anos foi a chave para encontrar várias das pistas que indicavam que as crianças estavam vivas e sozinhas no meio da selva. Vários relatos até indicam que em algum momento o cachorro encontrou as crianças sozinho e passou um tempo com elas. Mas agora ele está desaparecido, possivelmente perdido em uma selva perigosa e clima adverso, habitat de muitos predadores. Fim do Matérias recomendadas Sob a premissa de que "ninguém fica para trás", o Exército procura o cachorro Wilson como "mais um do batalhão". Wilson se perdeu no meio da selva amazônica colombiana durante o resgate de quatro crianças indígenas Lesly, Soleiny, Tien e Cristin. As crianças foram finalmente encontradaos em 9 de junho, graças aos esforços dos militares e de um grupo de indígenas. Agora eles estão se recuperando em um hospital em Bogotá, capital do país. No acidente da aeronave, todos os tripulantes morreram, exceto as crianças, incluindo a mãe, uma liderança indígena e o piloto. O cachorro foi muito importante nos primeiros esforços de resgate e ajudou a manter viva a esperança de que as crianças ainda estivessem vivas quando encontrou uma mamadeira rosa no meio da vegetação. O exército informou a perda do animal na última quinta-feira. "Devido à complexidade do terreno, à umidade e às condições climáticas adversas, ele ficou desorientado", afirmaram os militares em comunicado. No entanto, antes de se perder, várias pistas indicam que Wilson pode ter alcançado as crianças primeiro, acompanhando-as por um tempo. A primeira dessas pistas vem diretamente dos menores. Segundo Astrid Cáceres, diretora do Instituto Colombiano de Bem-Estar Familiar, entidade que zela pelos direitos das crianças, os menores indicaram ter encontrado um "cachorro" na selva, sem especificar se era Wilson. Cáceres acrescentou que as crianças falaram "do cachorrinho que se perdeu, que não sabem onde estava e que os acompanhou durante algum tempo". Acrescenta-se a esta pista que os militares afirmam ter "encontrado pegadas que seriam as dos menores e muito próximas também as que podem ser do cão". Durante uma visita às crianças no hospital do comandante das Forças Armadas, Helder Fernán Giraldo Bonilla, as meninas Lesly e Soleiny entregaram-lhe alguns desenhos que parecem ser do cachorro Wilson. "Wilson não ficará para trás", concluiu a nota do Exército.
2023-06-12
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjl9127zp7go
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'A selva não era a ameaça, a selva os salvou': como sobreviveram as 4 crianças que passaram 40 dias na Amazônia colombiana
O caso que para muitos pode ser um milagre, para outros é um acontecimento normal, e não por isso simples, da vida na selva. No dia 1º de maio, jovens de 14, 9, 4 e um ano sobreviveram à queda do avião de pequeno porte em que viajavam com a mãe e outros dois adultos que morreram. A mídia colombiana fala de um "milagre", de um "resgate" e do "heroísmo" do exército. Mas para Alex Rufino, indígena Ticuna especialista em cuidados da selva, essa linguagem manifesta um desconhecimento do mundo indígena. Fim do Matérias recomendadas Mais do que perdidas, diz ele, as crianças estavam em seu ambiente, sob os cuidados da selva e da sabedoria de anos de populações indígenas em contato com a natureza. O fotógrafo e professor universitário afirma que as crianças estiveram vulneráveis durante esses 40 dias: o alimento é escasso e a relação com os animais pode ser tão complementar como fatal. Mas eles também estavam em sintonia com a natureza, diz ele. "Protegido pela Selva" Logo após dar uma aula para crianças sobre a Amazônia, Rufino conversou por telefone neste sábado com a BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) sobre a forma como enxerga esse caso. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast BBC News Mundo - Como as crianças conseguiram sobreviver na selva? Alex Rufino - As crianças intuitivamente aprendem muito com seus pais. Quando vão caçar, para colher frutas. Sua observação é essencial. Eles estão aprendendo o que pode ser útil para eles e o que não é. Às vezes, eles ficam doentes por tentarem coisas que não deveriam, mas é aí que estão os irmãos mais velhos, ajudando-os a descobrir o que é prejudicial. Cada árvore, cada planta, cada animal indica onde estamos, o que está disponível e quais são as ameaças. E as crianças sabem interpretar isso. Além do aprendizado, eles se ajudam com os animais. Por exemplo, os macacos, que por se alimentarem de maneira semelhante a nós, com muitas frutas doces, servem de guia. Há uma convivência entre nós e eles, que, por estarem nas árvores, jogam comida no chão. O desafio é se adaptar ao seu movimento, que é rápido. Não se trata de imitá-los, mas de seguir e observar seus passos para encontrar comida. A quebra de um galho, por exemplo, é uma indicação do caminho a seguir. Seu som e seu passo dão alertas dos animais (de onça, de jibóia). Nessa relação com o macaco podemos nos camuflar e nos proteger. Os militares disseram que parte da dificuldade em encontrá-las era que as crianças estavam em movimento. Por que elas fizeram isso? Porque quem está na selva não pode ficar parado. Por instinto, você se move. Porque na selva não esperamos sair, mas sim encontrar comida e coisas que nos permitam passar melhor a noite. BBC News Mundo - Como você descreveria a selva em que eles estavam? Rufino - É uma selva muito escura, muito densa, onde estão as maiores árvores da região. É uma área que não foi explorada. As populações são pequenas e ficam próximas ao rio, não na selva. Há frio, insetos, umidade. É perigoso, porque é o corredor da onça, da sucuri, da cobra verrugosa, uma das maiores cobras venenosas da América. Mas não vemos isso pelo medo ou perigo, mas pelo respeito. Cada centímetro da selva tem uma espiritualidade que você não pode invadir. Qualquer movimento implica um diálogo com o xamã, com o espaço. Caso contrário, isso pode afetar sua saúde ou segurança. Cada coisa, cada árvore, é um ser que pode ensinar, um elo que pode dar remédio e comida e água em troca. Por exemplo, as árvores têm a função de proteger enquanto você dorme: elas são o grande ancestral, o grande protetor. Elas te dão abrigo, elas te abraçam. BBC News Mundo - Que técnicas as crianças podem ter usado para sobreviver na selva? Rufino - Certamente encontraram muitas folhas úmidas e pequenos riachos, que não são necessariamente potáveis. Mas há folhas que purificam a água, mas outras que são venenosas. Você tem que pegá-las de uma certa maneira, lavá-las de uma certa maneira e depois de um tempo usá-las para coletar água. Também podem usar técnicas para limpar o corpo com folhas que servem para que mosquitos ou insetos não ataquem com tanta força. Certamente, as crianças encontraram um pequeno arbusto que permite limpar os pés para evitar que as cobras as vissem ou as mordessem. Nessa idade, 14 anos, você já tem esse tipo de sabedoria clara. Eles podem ter comido algum tipo de minhoca. Desde uma formiga até um pássaro é comida. O que a onça deixa para trás é outra opção. E, acima de tudo, acho que comiam frutas, como algumas sementes vermelhas e doces que abundam nesta época. Isso ajuda a não desidratar e dá energia. Há também pós que servem da mesma forma, como um substituto que dá calorias, que aquece o corpo. Na selva você não percebe que está perdendo peso: sempre tem a ideia de que está bem. Somente quando você conhece pessoas de fora é que percebe que era vulnerável. Você nunca pensa que vai morrer: você se concentra em seguir em frente. BBC News Mundo - Quão comum é um grupo de indígenas estar nessa situação na selva? Rufino - É comum, sim, até a cada 10 dias em média um certo número de pessoas ficarem à deriva, porque vão à procura de frutas ou caça. Não é que eles se percam, porque estão em seu ambiente, mas estão à deriva, sem saber quando vão voltar ao seu abrigo. E isso é porque você não conhece o caminho, ou porque os donos daquele espaço, os espíritos da selva, decidiram que não é hora de voltar. E essa é a perda mais complexa, porque se você for retirado à força da selva, os espíritos podem aparecer de outras formas. Sua vida e sua saída dependem da instância do processo que você está vivendo com a selva. Sair nem sempre é a coisa certa a fazer. Se essas crianças se perderam porque os espíritos as quiseram, e não passaram por um processo com o xamã, e se não recebem o tratamento que sua cultura exige, ainda correm perigo. BBC News Mundo - O que você acha da narrativa segundo a qual isso foi um milagre? Rufino - Os territórios indígenas sempre foram vistos com uma narrativa herdada da conquista, da religião católica, porém não falamos de milagres, mas da ligação espiritual com a natureza. É a palavra que vende, mas eu falaria mais do abraço da mãe que é a selva, da mãe que cuida de você. É difícil entender isso, eu sei, mas é uma boa oportunidade para a sociedade, o ser humano, conhecer as diferentes visões de mundo que existem nos territórios. Mais que um milagre, é preciso entender que na selva existem seres que protegem, que acompanham. A selva não é só verde, mas também energias milenares com as quais as populações se relacionam, aprendem e se ajudam. As crianças nunca esquecerão o aprendizado desses 40 dias. Eles são a face visível do que é ser criança na selva. Sem a queda do avião, ninguém olharia para como as crianças vivem na selva, como se relacionam com ela, como morrem ou sobrevivem dependendo do processo que estão vivenciando. A mesma mãe, que virou espírito após o acidente, os protegeu. E só agora vai começar a descansar. BBC News Mundo - E o que você acha da ideia de que as crianças estavam desaparecidas? Rufino - Bem, elas estavam perdidas no sentido de que não encontraram seu lugar, onde está sua família. Mas não, as crianças estavam perdidas, porque estavam em seu ambiente, que conhecem e sabem conduzir. Falar que elas estavam perdidas é supor erroneamente que estavam em uma selva descuidada, em uma suposta tragédia, mas para nós não é assim: elas estavam em seu ambiente, em seu lugar. Por exemplo, a chuva: você pode pensar que isso os afeta, mas na realidade os protege, os banha, os limpa. E ainda: a chuva impede de encontrá-los, porque encontrá-los é, de alguma forma, quebrar o curso natural da selva. BBC News Mundo - Você acha que na leitura de todo esse caso há uma certa incompreensão sobre os indígenas? Rufino - Completamente. Desde a própria narrativa do milagre, a ignorância é evidente. Porque além do imediatismo, você tem que entender como o território funciona. Os próprios avós falaram dos duendes que poderiam ajudar. Fala-se mais do exército, das instituições, dos heróis que supostamente os salvaram. Mas, na realidade, para nós, a selva não era a ameaça: foi a própria selva que os salvou. Desejo que as crianças tenham a dignidade que merecem, o respeito pelo seu território e pela sua cultura. Este é um território muito atingido por grupos armados, mineração, etc., e esperamos que essas crianças estejam bem. Não devemos pressioná-las a nos contar o que aconteceu com elas. BBC News Mundo - Você acredita que as crianças ainda seguem em perigo? Rufino - Claro. Além do mais, acho que elas correm mais perigo agora do que quando estavam na selva. Porque estão de fora, por causa da mídia, por causa do próprio olhar da sociedade que julga, que fala de milagres, que os pressiona a ser algo que não são, a receber tratamentos que talvez não precisem. É fundamental que se respeite o curso natural que a selva destinou para eles.
2023-06-10
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c848pv0znndo
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'Operação Esperança': como foi o resgate de crianças desaparecidas na selva colombiana por 40 dias
As forças militares colombianas encontraram as quatro crianças - de 9, 4, 13 e 1 anos, respectivamente - bem, mas com sinais de desidratação e picadas de insetos na sexta-feira (9/6). Elas foram levadas de helicóptero para receber atendimento médico em um hospital. A operação de buscas que terminou com sucesso começou em meados de maio, quando tropas do Exército chegaram ao local do incidente, ocorrido no dia 1 do mesmo mês, e encontraram apenas os corpos dos 3 adultos que os acompanhavam. As crianças tinham desaparecido. Desde então, cerca de 120 policiais uniformizados e 70 indígenas integravam a "Operação Esperança" de resgate. Eles percorreram cerca de 1.250 quilômetros de selva densa entre os departamentos colombianos de Caquetá e Guaviare com a ajuda de helicópteros e cães de resgate. Fim do Matérias recomendadas "Colocamos todos os recursos possíveis para encontrá-los", disse o capitão Carlos Vargas, membro da equipe de comunicações do Exército, à BBC Mundo em maio. As condições climáticas da busca foram tão adversas que 14 indígenas tiveram que abandonar a missão devido a problemas de saúde. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Parte da estratégia usada pela operação consistia em reproduzir repetidamente a voz de Fátima, a avó das crianças, por meio de alto-falantes. Ela lhes dizia, em espanhol e em sua língua indígena nativa, que as estavam procurando. "Vocês têm que ficar parados", dizia a mensagem. O comandante do Conjunto de Operações Especiais da Colômbia, Pedro Sánchez, explicou que a operação trabalhava com três hipóteses: a de que os menores haviam morrido, que estavam sob o poder de dissidentes da ex-guerrilha Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e a que acabou sendo verdadeira, de que eles estavam vivos, sozinhos e perdidos. "Eles estavam sozinhos. Eles deram um exemplo de sobrevivência que ficará para a história", declarou o presidente colombiano, Gustavo Petro, na sexta-feira. A busca pelas crianças contou com a colaboração do governo, das comunidades indígenas e do Exército nacional, algo que a vice-presidente Francia Márquez destacou como importante para que os menores fossem encontrados. “Quando colocamos o conhecimento e as instituições para trabalhar persistentemente a serviço do povo, podemos resolver, salvar vidas e construir coletivamente a esperança”, escreveu no Twitter. A atenção da mídia voltou-se para a operação depois que as equipes de resgate encontraram evidências de que as crianças estavam vivas: uma fralda, restos de frutas mordidas, uma mamadeira rosa e um "abrigo improvisado feito de gravetos e galhos". "Presumimos que as crianças que estavam dentro da aeronave estejam vivas. Encontramos alguns vestígios em uma posição diferente e distante de onde a aeronave foi deixada (...) Também encontramos um possível local onde as crianças poderiam ter se refugiado e continuamos a busca", disse um porta-voz do exército em 18 de maio. A pista que acabou sendo fundamental na busca foram as pegadas de uma das crianças ao lado das de um cachorro. Segundo um dos comandantes da missão, elas pertenciam a Wilson, um dos três cães que fazia parte do grupo de buscas e que havia se perdido alguns dias antes. “Onde encontramos os últimos rastros, encontramos os rastros de um cão. Acreditamos que o cachorro os encontrou e os acompanhou”, disse Lucho Acosta, coordenador nacional da guarda indígena. Após o resgate das crianças, foi confirmado que o cachorro continua desaparecido. No dia do acidente, a família viajava para se encontrar com o pai, Manuel Ranoque, líder indígena que havia fugido de Araraucara em decorrência de ameaças de grupos armados ilegais. O avião fazia o trajeto de Araracuara a San José del Guaviare com sete pessoas a bordo, incluindo o piloto. Ele relatou problemas com o motor do avião Cessna 206 minutos antes de a aeronave desaparecer do radar, segundo a agência de resposta a desastres da Colômbia. A região da selva onde o avião caiu tem poucas estradas e é de difícil acesso por água, por isso o transporte aéreo é comum.
2023-06-10
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cydgq0z4l3zo
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Quatro crianças perdidas na selva colombiana são achadas com vida após 40 dias desaparecidas
As autoridades colombianas confirmaram nesta sexta-feira (09/06) que as quatro crianças que haviam desaparecido há 40 dias na floresta foram encontradas com vida. As quatro crianças — irmãos de 13, 9 e 4 anos, além de um bebê de 11 meses — sobreviveram à queda de um avião, na qual morreu a mãe deles e mais dois adultos (incluindo o piloto). O acidente ocorreu em 1º de maio. Segundo o jornal El Tiempo, "as forças militares encontraram as quatro crianças com sinais de desidratação e picadas de insetos". Ainda de acordo com a reportagem, as crianças no geral estão bem e estão sendo transferidas de helicóptero para a cidade de San José del Guaviare, onde receberão tratamento médico. O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, comemorou a notícia no Twitter: "Uma alegria para todo o país! As 4 crianças que se perderam há 40 dias na selva colombiana apareceram vivas." Fim do Matérias recomendadas O avião que caiu era de pequeno porte e fazia o trecho Araracuara - San José del Guaviare. A região onde o avião caiu tem poucas estradas e é de difícil acesso por água, por isso o transporte aéreo é comum. O piloto relatou problemas no motor minutos antes de o avião desaparecer do radar, segundo a agência de resposta a desastres da Colômbia. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Quando as autoridades chegaram ao local do acidente, encontraram apenas os corpos sem vida dos adultos. Como não havia vestígios das crianças, iniciou-se uma intensa busca conduzida por militares e indígenas. Os esforços para encontrar as crianças se intensificaram em meados de maio, depois que as equipes encontraram um "abrigo improvisado feito de gravetos e galhos", o que as levou a acreditar que havia sobreviventes. Algumas imagens divulgadas pelos militares colombianos mostraram tesouras e um prendedor de cabelo em meio à densa vegetação da floresta. Eles também encontraram uma garrafa e uma fruta meio comida em uma área distante de onde o avião caiu. "Presumimos que as crianças que estavam dentro da aeronave estejam vivas. Encontramos alguns vestígios em uma posição diferente e distante de onde a aeronave caiu (...) Também encontramos um possível local onde as crianças podem ter se refugiado, e continuamos a busca", disse um porta-voz do exército em 18 de maio. A busca dos menores envolveu mais de 150 agentes de segurança, além do apoio de comunidades indígenas.
2023-06-09
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjmyeykv20wo
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'Odeio a palavra inclusão. Já estou aqui, não quero que me incluam em lugar nenhum'
Julia Risso fala com clareza e pausadamente. Sua voz demonstra seus anos de treinamento antes de se tornar locutora. Ela diz que sempre se desvia do assunto durante as conversas e escolhe com cuidado cada uma de suas frases. E está convencida de que odeia a palavra "inclusão" – ela prefere "socializar". Risso tem 28 anos de idade. Ela nasceu com uma má formação genética na coluna que a transformou em uma "pessoa baixinha", como ela diz, com ternura. Ela mora em San Miguel del Monte, a cerca de 110 km da capital argentina, Buenos Aires. Lá, trabalha como professora de teatro. A jovem se autodefine como "ativista disca" (de "discapacitada", ou "deficiente" em espanhol). Ela apresenta o podcast Les otres, está prestes a publicar um livro de ficção autobiográfico e, no mês de abril, apresentou uma palestra na 47ª Feira Internacional do Livro de Buenos Aires sobre como romper as barreiras sociais que aprofundam a desigualdade. Fim do Matérias recomendadas Ela contou sobre sua vida e seu trabalho à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC. Leia abaixo a entrevista. BBC News Mundo - Uma pessoa é deficiente ou tem deficiência? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Julia Risso - Antes, eu acreditava que era algo que se tinha, mas hoje acredito que se é. Hoje, sou uma pessoa deficiente. Embora haja algo de politicamente correto muito forte de que devemos falar "pessoa com deficiência". Acho que sou uma pessoa incapacitada pela sociedade. Não sou eu que tenho deficiência. Estão me incapacitando quando instalam um banheiro e eu não entro ou o vaso sanitário é alto para mim. Ou quando vou ao supermercado, a gôndola mede 1,80 metro e a erva-mate que eu gosto está em cima de tudo. E a sociedade não está incapacitando somente a mim, mas também a uma pessoa mais alta que não consegue levantar seus braços ou outra que carrega uma criança e não pode alcançar alguma coisa. BBC News Mundo - E qual você diria que é a diferença entre ter deficiência e ser deficiente? Risso - A identidade. Quando alguém decide que é deficiente e percebe que isso irá acompanhá-lo por toda a vida, aquilo se torna uma característica, como tantas outras. Sou uma mulher, sou branca e também sou deficiente. De qualquer forma, acredito que o mais difícil é que a sociedade entenda que o problema, na verdade, são os outros, não somos nós. Para falar de forma mais teórica, o modelo social da deficiência entende que a deficiência é uma construção social, não é um tema individual, não é um problema que exige que se cure uma pessoa. O entorno é que precisa se adaptar para que essa pessoa possa viver com a maior autonomia possível. Mesmo assim, acho que este conceito não encerra a discussão sobre a ideologia da normalidade. BBC News Mundo - A deficiência gera medo na sociedade? Risso - Gera perigo e medo. Acho que a primeira coisa que as pessoas pensam é que não sabem o que fazer. Uma mulher de 42 anos me escreveu no Instagram para contar que estava tentando ter um filho ou uma filha e seu médico indicou que, se decidisse ter um bebê, ele poderia ter risco de nascer com deficiência. Ela se assustou muito. E eu disse: "Que forma de assustar uma pessoa que decide ter um filho, que o medo seja que ele tenha deficiência!" Depois achei que o médico talvez tivesse razão... mas logo lembrei que minha mãe me teve com 32 anos, não tinha mais de 40. Quem tem risco de ter deficiência? Até certo ponto, todos nós temos risco. Talvez todos nós cheguemos a ser velhos e, quando isso acontecer, o corpo se deteriore. Existem pessoas que, do nada, têm uma doença incapacitante e acabam usando cadeira de rodas. A vida tem uma porção de circunstâncias que fazem você ficar deficiente em algum momento. Quem tem medo de ser deficiente não deve nascer, pois a condição humana é frágil. Existe um medo de que discriminem esse filho ou filha. Penso no meu pai, que tinha pavor de que me tratassem mal, que me enganassem. Antes me aborrecia, mas agora entendo o que ele sentia. Minha mãe precisou educar não só a mim, mas também ao meu pai e a todos os demais para que percebessem que estavam criando uma menina autônoma. BBC News Mundo - Existem normas dentro da deficiência? Risso - Sim, uma porção delas. Não sair de noite, não beber álcool. Muitas pessoas me olhavam espantadas. E me perguntavam: "Você não toma remédios?" Em 2018, eu estava dançando com minhas amigas e nos divertíamos em uma festa gay friendly, que normalmente é algo mais aberto, quando veio um menino que me abraçou e me deu parabéns porque eu fui dançar naquele lugar. Fiquei estupefata, petrificada. Ali, eu entendi que a mensagem era: "Parabenizo você porque, teoricamente, você não teria que estar aqui. Não há motivo para comemorar." Existe muito policiamento sobre as comemorações. BBC News Mundo - O que acontece com o desejo da pessoa deficiente? Também existem normas? Risso - Eu acho que, nos lugares de diversão, de entretenimento, onde você vai passar momentos agradáveis, sempre parece que estamos pedindo permissão. A acessibilidade nos lugares de diversão não existe. Beber uma cerveja em um bar que tem aquelas banquetas muito altas... eu preciso de uma escada. Imagine uma pessoa que usa cadeira de rodas, ela usa a mesa de teto. Não é só a acessibilidade física, mas também a de atitudes. E, com relação ao desejo sexual, a norma é ser heterossexual. BBC News Mundo - Uma pessoa deficiente pode exercer sua sexualidade? Risso - Eu gosto de falar de desejo e sexualidade separadamente, porque a sexualidade não é entendida apenas como pessoas que querem fazer sexo com outras ou com elas próprias, mas como um conceito multidimensional. Ela tem muitos aspectos, como a forma como nos exibimos, como nos vestimos e como decidimos nos mostrar. Geralmente, surgem comentários de que não se espera que a pessoa tenha esse poder de escolher, de autonomia. E, como não temos tanta representação, não existem pessoas com deficiências como modelos de roupas, nós não nos vemos refletidos. Eu não tenho problemas em dizer que a estética me interessa. Gosto de ir ao cabeleireiro, maquiar-me todos os dias, estar arrumada. E muitas pessoas interpretam que eu quero dissimular a deficiência. É como um mandamento. Existem também pessoas com quem você decide ter um vínculo sexual e afetivo e que acreditam que estão fazendo um favor, como uma ideia de que estão fazendo boas ações por terem relações sexuais conosco. Ou existe uma visão de que somos muito frágeis. Acho que é preciso expor um pouco essas pessoas ao ridículo. No exercício da sexualidade, existem também coisas talvez mais banais, mas que surgem na nossa vida cotidiana. Como o que repete Florencia Santillán, outra ativista "disca": "Alguma vez você viu um motel com rampa?" Isso também demarca onde as pessoas devem estar. BBC News Mundo - O que é o "pornográfico inspiracional" que você menciona no seu podcast? Risso - É um belo conceito que assusta muito as pessoas. Quem o mencionou pela primeira vez foi Stella Young [1982-2014], uma ativista australiana que deu uma palestra TED chamada "Não sou sua fonte de inspiração, muito obrigada". Ela diz que as pessoas "coisificam" as que têm deficiência sem o consentimento delas, para que fiquem motivadas. Basicamente, para acreditar que a sua vida é menos infeliz [em comparação com a da pessoa com deficiência]. É como quando dizem: "Parabéns por seguir adiante, apesar de tudo". Ou naquelas imagens que mostram uma pessoa sem as pernas e se lê, embaixo: "E você se queixa porque tem sono de manhã". Você acha que essa pessoa se queixa o dia inteiro porque não tem pernas? Sim, eu reclamo às vezes porque não chego a lugar nenhum com a minha altura, mas não estou todo o tempo me queixando disso porque me aborrece. Quero reclamar de outra coisa. Mas as pessoas precisam olhar para casos de deficiência para não se sentirem tão mal. E isso vem da necessidade de acreditar que estamos todo o tempo sofrendo e renegando nossa deficiência. Como na representação dos deficientes nas séries de TV ou nos filmes, onde geralmente existem dois opostos. Um é o renegado que odeia tudo, mal humorado, como o menino em cadeira de rodas da série Sex Education. Acho muito engraçado porque, nesta série, todos fazem sexo como se fossem selvagens e, na cena do menino na cadeira de rodas, os dois ficam oito horas chupando a orelha. Por que não mostram o menino da cadeira de rodas fazendo sexo selvagem? Isso seria visibilidade. No outro extremo, está o personagem do anjo que não tem desejo sexual. A sociedade gosta muito de romantizar a deficiência porque não quer combater a desigualdade. E romantizar também é uma forma de excluir. BBC News Mundo - Nós vivemos em uma sociedade inclusiva? Risso - Odeio a palavra inclusão. Não gosto porque está na moda. O que faz esta palavra, na verdade, é perpetuar que fiquemos fora do sistema. Se eu preciso incluir é porque alguém está de fora. E quem governa o sistema? Os que incluem, que são as pessoas capacitadas, brancas, heterossexuais, de classe alta e ocidentais. São eles que incluem os negros, homossexuais, travestis, pobres e deficientes. Então, quem decide quem incluir? Os que estão sempre dentro e são sempre os mesmos. E não se discute a normalidade, o fato de que existe um padrão e que tudo o mais está de fora. Eu já estou aqui, não quero que me incluam em lugar nenhum. Eu quero que tudo mude. BBC News Mundo - O que você quer que mude? Risso - As classificações, a hierarquização das pessoas, o que as pessoas valem pelo que podem fazer, em todos os sentidos. O mundo atual coloca a nós todos em algum lugar. Os deficientes são colocados como mão de obra barata, como assistência, como um corpo medicalizado e como um corpo público, porque todos opinam sobre ele, o que pode fazer bem ou mal. Há pouco tempo, alguém me escreveu pelo Tinder e perguntou: "Você é uma pessoa baixinha?" Aquilo me deu ternura. E respondi: "Sim, baixinha para a mesa de cabeceira". Eu caminho pela rua e me abençoam pela minha deficiência. E sempre faço a mesma brincadeira: com tantas bênçãos, já ganhei o céu, vou direto e sem escalas. BBC News Mundo - Você acredita que existem mudanças? Risso - Sim. Existem muito mais grupos onde somos compreendidos. Fala-se mais sobre capacitismo, que é a hierarquização de corpos e mentes sobre o que eles podem fazer, produzir, sentir ou controlar. É preciso tomar medidas anticapacitistas, porque estamos submetidos a um sistema arraigado com base na divisão entre os que podem e os que não podem, os que têm e os que não têm. Continuará havendo mudanças enquanto nós formos os protagonistas e não houver pessoas que queiram ser protagonistas ao nosso redor. Não é preciso tomar o lugar dos outros, como alguns fazem com a palavra "inclusão". E também acredito que é preciso repensar os nossos privilégios. Eu também preciso repensá-los, porque tenho uma deficiência motora e posso tranquilamente oprimir uma pessoa cega, surda ou neurodivergente. Mas os privilégios não são abandonados nem renegados, são compartilhados. Se uma pessoa que não tem deficiência se aproxima de um grupo de pessoas com deficiência e oferece: "Em que posso servir de apoio? Posso fazer isto ou aquilo." Isto é socializar. Socializar. Desta palavra, sim, eu gosto.
2023-06-09
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cz4nved839eo
america_latina
'Eletrocutados de joelhos': os duros relatos das prisões em massa decretadas em El Salvador
"Mãos ao alto. Se elas abaixarem, vamos matá-los. Só se tiverem sorte é que vocês vão sair daqui vivos." Esse é apenas um dos duros relatos que vêm de El Salvador, onde o presidente Nayib Bukele decretou, há 14 meses, um regime de exceção em meio à sua chamada "guerra às gangues". Particularmente, o relato acima foi dado por um jovem que ficou detido na prisão de Mariona e depois foi libertado, após ser declarado inocente. Ele compartilhou sua história com a Cristosal, a principal organização de defesa dos direitos humanos do país centro-americano. A organização publicou na segunda-feira (29) um relatório a partir de centenas de entrevistas com ex-detidos, familiares de presos e peritos, além de atestados forenses e boletins policiais. "[Presos] Foram eletrocutados de joelhos. Até tiraram sangue de um deles. Ao entrarem no setor onde iam ficar, os guardas deram outra surra", contou o jovem. Fim do Matérias recomendadas O relatório concluiu que, desde 27 de março de 2022 (data em que o estado de exceção entrou em vigor), dezenas de presos morreram vítimas de tortura, espancamento ou falta de cuidados de saúde. A Cristosal registrou a morte de pelo menos 153 pessoas sob custódia do Estado, todas presas durante o regime de exceção. Destes, 29 presos tiveram morte violenta; 46 "provável morte violenta" ou suspeita de "criminalidade". Ainda de acordo com o relatório, é um "padrão comum" a presença nos corpos de detidos de hematomas evidenciando pancadas, ferimentos causados por contusões ou objetivos pontiagudos, sinais de estrangulamento ou enforcamento. O relatório cita o caso de um homem de 52 anos, dono de uma loja e de um engenho, que durante anos foi assediado por membros de gangues e forçado a fornecer-lhes comida. Com o regime de exceção, o homem foi acusado de colaborar com as gangues e preso. Segundo um atestado de óbito emitido pelo Instituto de Medicina Legal de El Salvador, o homem acabou morrendo por conta de um edema cerebral. Enquanto isso, as autoridades salvadorenhas declararam como confidenciais as informações oficiais a respeito e sustentam que as mortes dentro dos presídios ocorrem por causas naturais. “Ouvi a oposição dizer que as pessoas estão morrendo nas prisões. E que de alguma forma estamos matando os presos ou deixando-os morrer [...] Há alguns que têm doenças terminais etc", disse Bukele durante uma transmissão ao vivo em 16 de outubro do ano passado. O regime de exceção foi imposto em El Salvador após 76 assassinatos serem registrados no país em apenas 48 horas em março do ano passado. Segundo reportagens como do site jornalístico El Faro, a onda de homicídios foi resultado da ruptura de um suposto pacto entre o governo e a gangue MS-13. Recentemente, a Procuradoria dos Estados Unidos de fato apontou para uma ligação entre o governo e a MS-13, mas o Executivo salvadorenho sempre negou ter feito qualquer tipo de negociação com a gangue. No último ano, em que o direito à privacidade nas comunicações e as garantias do devido processo legal foram suspensos, mais de 68 mil pessoas foram detidas por suposta associação às gangues. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Com uma população de 6,3 milhões de pessoas e com as milhares de prisões recentes, El Salvador se tornou o país com a maior taxa de população encarcerada do mundo. Familiares e organizações denunciam que muitos dos detidos são inocentes. Em entrevista exclusiva concedida à BBC em março, por ocasião do primeiro ano do regime de exceção, o vice-presidente Félix Ulloa reconheceu que, com uma operação dessas dimensões em andamento, é possível que algum erro tenha sido cometido e que pessoas possam ter sido presas sem ter ligação com as gangues MS-13 ou Barrio 18. Mas Ulloa também argumentou que “mais de 90% da população concorda com o estado de exceção e quer que ele seja prolongado". "Os únicos que reclamam são os ativistas que não sabem o que se passa no país e a oposição política", disse o vice-presidente. Já a organização Cristosal afirma que "a suspensão permanente das garantias constitucionais sob a figura do regime de exceção é a única ferramenta de política pública que o governo implementa.”
2023-06-04
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cq5gr7gzv5eo
america_latina
O que explica disparada de aluguéis nas maiores cidades da América Latina?
Para muitas pessoas na América Latina não está sendo fácil encontrar uma casa para alugar devido à escalada de preços. Com a onda de inflação global, os salários perderam poder de compra, enquanto o custo do crédito atingiu níveis recordes. Como é muito caro comprar uma casa devido ao aumento frenético das taxas de juros, muitos preferem alugar uma moradia, o que faz subir o preço do aluguel. Essa tendência de alta começou no final da pandemia de covid-19, mas os maiores aumentos ocorreram em 2022. “Parte da alta dos preços é explicada como uma recuperação após sua queda durante a pandemia”, disse Vinicius Oike, analista do Grupo QuintoAndar, à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC. Fim do Matérias recomendadas "Os preços subiam e desciam na forma da letra U", diz. Mas há cidades, aponta, onde os valores subiram muito acima de uma simples recuperação. De acordo com os dados compilados pelo site de locação QuintoAndar, considerando os preços anunciados em plataformas online, entre março de 2022 e março de 2023, o custo médio do aluguel de um apartamento subiu 126% em Buenos Aires; 12% na Cidade do México; 11,2% em São Paulo, 10,9% em Quito, e na Cidade do Panamá e 6,3% em Lima. Com uma inflação anual de quase 109%, a Argentina é o país mais afetado do Cone Sul. "Pagar o aluguel é muito difícil para mim", diz Paula Serenelli, uma chefe de família de 35 anos que mora com o filho em Villa Lugano, em Buenos Aires. "No ano passado aumentaram o aluguel em 90%, e neste ano pode vir outro aumento maior. Isso é ultrajante." Algo semelhante aconteceu com Gastón Levy, 38 anos, que mora em Palermo, uma área de alto poder aquisitivo de Buenos Aires onde não é incomum o aluguel superar o aumento da inflação. "Eles aumentaram em 87%, o que é bom se você olhar o índice em relação à inflação, que foi maior", diz. "Mas outras pessoas pegam um aumento médio de 60% a cada seis meses." Embora exista uma lei que regule o mercado de aluguéis, “na prática não funciona”, afirma Gervasio Muñoz, presidente da Associação de Inquilinos. "Aluguéis na Argentina funcionam sob a lei da selva." Os especialistas preveem que, enquanto a inflação no país não cair, os preços dos aluguéis em Buenos Aires também não vão diminuir. No restante das maiores economias da região, a escalada inflacionária está atingindo fortemente as famílias, mas longe dos níveis dramáticos experimentados pela Argentina. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No México, onde a inflação gira em torno de 10%, o preço dos aluguéis na capital segue uma tendência semelhante ou um pouco acima do aumento geral do custo de vida. "Os aluguéis têm sido reajustados entre 10% e 15%, em média", diz Leonardo González, analista imobiliário da empresa propiedades.com, referindo-se à alta dos valores. Segundo González, o aumento dos preços é explicado pela alta geral da inflação, uma menor demanda por empréstimos imobiliários (o que faz com que mais pessoas procurem alugar) e uma preferência crescente por locais com mais espaço para home office. Em bairros específicos da Cidade do México, onde moram pessoas com maior poder aquisitivo, os aumentos no preço do aluguel chegaram a até 40%, diz o especialista. Essa escalada está relacionada à chegada dos “nômades digitais” que, em muitos casos, recebem salários em dólares. Os bairros mais centrais estão “gentrificando”, diz Óscar García, que mora em Colonia del Valle e cujo aluguel de seu apartamento aumentou 30%. “Estou procurando alugar e está difícil”, diz. “Chegaram muitos estrangeiros que podem pagar preços altos e há casas que são alugadas exclusivamente pelo Airbnb.” Projeções de especialistas sugerem que o preço do aluguel na Cidade do México continuará crescendo. “O ano de 2023 vai ser caracterizado por uma tendência de alta dos preços. Projetamos um aumento médio de 12%”, diz González, ressaltando que o índice também pode variar a depender da inflação geral do país. Em outras capitais latino-americanas, os aumentos nos preços dos aluguéis foram menores. Quando os contratos de locação são renovados na Colômbia, os preços são ajustados de acordo com a taxa de inflação registrada em dezembro do ano imediatamente anterior. Se essa regra fosse cumprida, a alta dos valores atuais seria de 13%, que era o IPC (Índice de Preços ao Consumidor) de dezembro de 2022. Porém, na prática, muitas negociações não seguem essa tendência. O problema, apontam os que se dedicam ao negócio de aluguel, é que muitas vezes os proprietários saem perdendo ao baixar preços, principalmente quando o aluguel é essencial para sua renda. "Para muitas pessoas, o que recebem do aluguel é uma espécie de pensão", diz Liliana Báez, corretora de imóveis independente em Bogotá. O outro lado da moeda são os inquilinos que não podem pagar um aumento de 13% no preço do aluguel. Por fim, a negociação é o que define o aumento real do preço, diz Sergio Olarte, economista-chefe do Scotiabank Colpatria. Embora o Departamento Administrativo Nacional de Estatísticas (Dane), não tenha divulgado dados de preços de aluguel discriminados por cidade, Olarte estima que Bogotá seguiu a tendência em nível nacional, com um aumento próximo a 7%. O comportamento dos preços no futuro dependerá em grande parte do que ocorrer com a inflação geral do país. Entre as megacidades da América Latina está São Paulo, o maior centro comercial e financeiro do Brasil. Na cidade, o valor dos aluguéis subiu cerca de 11% no último ano, segundo o QuintoAndar. Após a pandemia, houve uma espécie de boom imobiliário em São Paulo, tanto no mercado de vendas quanto no de locação. As pessoas, principalmente os mais jovens, têm procurado os chamados microapartamentos, que podem ter menos de 30 metros quadrados e geralmente são construídos perto de estações de metrô. Estes microapartamentos costumam ser caros por causa da localização propícia. E, olhando para o futuro, os especialistas sugerem que o índice deverá continuar a aumentar devido à falta de terrenos disponíveis para construir nas zonas mais acessíveis. Se houver pouca terra disponível e alta demanda, o resultado é um aumento nos valores de venda e aluguel. Apesar da crise política e econômica que o Peru atravessa, os preços no mercado de aluguel em Lima não caíram. O aumento é menor em comparação outras cidades latino-americanas, mas o valor médio continua subindo, apesar das grandes diferenças que existem entre um distrito e outro. “Neste ano todos os bairros estão com preços acima dos de antes da pandemia”, explica Luciano Barredo, gerente de marketing da empresa Grupo Navent. Ao analisar os preços oferecidos nos anúncios de aluguel, o aumento médio no último ano em Lima chega a 6,3%. No entanto, ressalta Barredo, o valor divulgado nos anúncios tende a cair nas negociações. Então, levando isso em consideração, a alta em Lima fica mais próxima de 2,8%, explica o especialista. Esse fenômeno, segundo ele, é influenciado por fatores como a inflação geral — que fechou em 8% no ano passado —, a queda nas vendas de casas devido às altas taxas de juros dos empréstimos hipotecários, a taxa de câmbio e a incerteza causada pelo contexto político do país. Soma-se a esse panorama o fato de que “na área metropolitana de Lima há muito poucos terrenos disponíveis e os materiais de construção subiram muito depois da pandemia”, diz Barredo. Nesse contexto, "é quase impossível que os preços não continuem subindo". Com uma inflação próxima de 10% em abril, o valor dos aluguéis não acompanhou essa tendência na capital chilena. “O valor do aluguel cresceu bem menos que a inflação”, diz Daniel Serey, gerente de estudos do portal imobiliário TOCTOC. “Para o bolso das pessoas, o metro quadrado de aluguel subiu 2,1%, mas se olharmos por outro ponto de vista, o preço caiu mesmo”, diz Serey. Como se explica esta divergência? O analista argumenta que no Chile muitos aluguéis são fixados em relação ao aumento ou queda de um índice chamado Unidade de Fomento, mais conhecido como UF. Então, “se corrigirmos o preço do aluguel pela inflação e convertermos para UF, o preço na verdade caiu 9,5%”. Por mais que você olhe para os números, a questão é que em Santiago o valor dos aluguéis não subiu como está acontecendo em outras capitais. "O preço do aluguel não está subindo agora porque a situação da habitação é complexa", diz Serey. “O mercado imobiliário no Chile está sob uma pressão muito forte porque há um déficit habitacional muito grande. Estamos vivendo um fenômeno de explosão da habitação informal, dos acampamentos”, acrescenta. "A situação econômica está mais desacelerada. Menos pessoas compram casa e só lhes resta recorrer ao mercado de aluguel", diz o analista. Enquanto as construtoras continuarem criando novos projetos, os preços serão contidos, acrescentou. Mas se a indústria parar de construir casas no ritmo que vem construindo até agora, os preços vão subir. No caso das cidades latino-americanas onde o valor dos aluguéis tem subido rapidamente, Vinicius Oike, do QuintoAndar, projeta que "o mercado deve esfriar" neste ano e no próximo, à medida em que o crescimento econômico será menor. Isso dependerá muito de como vai evoluir a combinação de crescimento, inflação e juros em cada país, além das notícias econômicas que possam chegar do exterior.
2023-06-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cq5qrlpyxjgo
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Por que Venezuela tem dívida bilionária com Brasil — e quem paga a conta
Maduro veio ao Brasil para participar de uma cúpula com líderes de 11 países da América do Sul em Brasília que havia sido proposta por Lula. A última vez que o presidente venezuelano esteve no Brasil foi em julho de 2015, quando participou de uma cúpula do Mercosul em Brasília, durante o governo de Dilma Rousseff (PT). Desde 2019, ele estava impedido de entrar no país após uma portaria editada pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL) proibir seu ingresso e de outras autoridades venezuelanas no Brasil. Bolsonaro revogou a portaria um dia antes de deixar o cargo em uma negociação com o governo de transição para abrir a possibilidade de Maduro participar da posse de Lula, mas o presidente venezuelano acabou não participando da cerimônia. Fim do Matérias recomendadas Maduro só voltou ao Brasil de fato no último domingo (28/5), quando desembarcou em Brasília para participar da cúpula. No dia seguinte, teve uma reunião bilateral com Lula, em que os dois trataram desta dívida e de como ela será quitada. Maduro e Lula foram questionados após o encontro por jornalistas sobre o total da dívida. Lula disse não saber e questionou Maduro: "Você sabe qual é o tamanho da dívida?". O presidente venezuelano respondeu: "Vai ser estabelecida uma comissão para estabelecer esse tamanho e retomar os pagamentos". De acordo com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, Maduro pediu que seja criado um grupo de trabalho com o governo brasileiro para consolidar o valor do débito e, a partir daí, reprogramar seu pagamento. Pelo lado brasileiro, devem participar a Secretaria-Executiva da Câmara de Comércio Exterior (Camex), vinculada à Fazenda, a secretaria do Tesouro Nacional e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) - que é um dos principais interessados no assunto. Mas, afinal, de quanto é essa dívida, de onde ela veio e quem vai pagar essa conta? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Após o encontro de Lula e Maduro, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) informou à BBC News Brasil que o valor da dívida venezuelana totaliza atualmente quase US$ 1,27 bilhão (R$ 6,4 bilhões). "Os débitos da Venezuela junto ao governo brasileiro soma US$ 1.268.151.276,81, sendo: i) US$ 1.095.002.908,09 referente a valores já indenizados pelo Fundo de Garantia à Exportação (FGE); ii) US$ 53.987.162,42, referentes a indenizações a serem pagas pelo FGE". O Fundo de Garantia à Exportação é um fundo de natureza contábil vinculado ao Ministério da Fazenda. Ele foi criado em setembro de 1997 para cobrir operações amparadas pelo Seguro de Crédito à Exportação (SCE). O Seguro de Crédito à Exportação é um mecanismo de garantia oferecido pela União para proteger as exportações brasileiras de bens e serviços de potenciais riscos comerciais, políticos e extraordinários e, assim, evitar calotes às empresas nacionais. Caso haja inadimplência de quem comprou os bens e serviços, o FGE indeniza o financiador e busca recuperar o valor em atraso do devedor. O BNDES é o principal financiador público de longo prazo para operações de comercialização de exportações. Segundo o MDIC, os débitos da Venezuela são referentes a uma inadimplência relativa a exportações brasileiras de bens e serviços para o país vizinho que contrataram o Seguro de Crédito à Exportação. "As operações foram financiadas em sua maior parte pelo BNDES, porém havendo operações com financiadores estrangeiros", disse a pasta em nota. O BNDES, que era vinculado ao então Ministério da Economia durante o governo de Bolsonaro e passou a fazer parte do MDIC sob Lula, atua como principal instrumento de execução da política de investimentos do governo federal. Durante os governos petistas, tanto nos dois primeiros mandatos de Lula quanto nos de Dilma Rousseff, atual presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD, popularmente conhecido como "Banco dos Brics"), houve desembolsos bilionários no banco, em particular para o financiamento à exportação dos bens e serviços de engenharia brasileiros. No caso da Venezuela, foi concedido R$ 1,5 bilhão a vários projetos de infraestrutura realizados por empresas do Brasil. Ou seja, a empresa brasileira que vendeu produtos ou serviços para fora do país recebe um pagamento do BNDES por isso. Quem fica com a dívida neste caso é a empresa ou país estrangeiro que comprou o bem e serviço, que fica com a responsabilidade de pagar de volta o BNDES com juros, em dólar ou em euros. Se há inadimplência, o BNDES aciona a estrutura de garantias e é ressarcido por mecanismos como o FGE. A maior parte das operações de exportação de serviços de engenharia beneficiou cinco grandes empreiteiras brasileiras, todas envolvidas na Operação Lava Jato. Especificamente nessa categoria, de financiamentos para exportação de serviços a outros países, três deram calote - a Venezuela entre eles - "em um valor total de US$ 1,09 bilhão acumulado até março de 2023", segundo o BNDES. "Outros US$ 518 milhões estão por vencer desses países", informou o banco. O governo brasileiro explicou em nota à BBC News Brasil que o FGE "cobriu o calote". No entanto, segundo o economista e professor do Insper Sérgio Lazzarini, isso é uma "falácia". Ele explica que, por conta das dívidas e dos calotes acumulados, o patrimônio do fundo foi minguando, cujos recursos são provenientes, dentre outras fontes, do orçamento federal. "Quem paga essa conta é, em última análise, o contribuinte", diz. O problema está, segundo Lazzarini, justamente na avaliação de risco dos empreendimentos nesses países. Ele publicou, ao lado de outros pesquisadores, um estudo que analisou o custo financeiro incorrido em algumas das operações realizadas pelo BNDES entre 2007 e 2015. Segundo Lazzarini, o banco emprestou para países "com altíssimo risco de crédito e isso não foi precificado adequadamente". "Então, esse fundo, vire e mexe, está tomando calote. Se ele toma muito calote, não há recursos", diz o economista. "Se estivéssemos emprestando a países com baixo risco de crédito, o mecanismo funciona. Mas tomamos calote atrás de calote." Desde 2020, é discutido no âmbito do governo federal um novo modelo para o FGE, mas nada foi decidido até agora. Em fevereiro, durante a posse de Aloizio Mercadante como presidente do BNDES, Lula disse ter "certeza" que a Venezuela e outros países inadimplentes quitarão as dívidas com o banco durante seu governo. "Porque são todos países amigos do Brasil e certamente pagarão a dívida que têm com o BNDES", disse Lula.
2023-05-31
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c6pl463dp3lo
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As críticas de presidentes de esquerda e direita às falas de Lula sobre Venezuela
As alegadas violações de direitos humanos na Venezuela fizeram com que presidentes de diferentes orientações ideológicas se unissem e contestassem as declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre a situação no país vizinho. As críticas foram feitas durante a cúpula de líderes sul-americanos convocada por Lula realizada nesta terça-feira (30/05). Durante o evento, o presidente do Chile, Gabriel Boric, que é de centro-esquerda, e o presidente do Uruguai, Luis Alberto Lacalle Pou, de centro-direita, rebateram as declarações de Lula. A cúpula convocada por Lula reuniu líderes de 11 dos 12 países da América do Sul. A única presidente que não participou do evento foi a do Peru, Dina Boluarte - por questões judiciais, ela não pode se ausentar do país. Fim do Matérias recomendadas A iniciativa vem sendo apontada pela diplomacia brasileira como uma tentativa para que a região voltasse a ter um diálogo político após alguns anos de hiato. A reunião também é vista como parte do esforço do governo do presidente Lula de ampliar seu papel de liderança regional após os quatro anos do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O encontro, porém, vem sendo marcado pelas polêmicas em torno da participação de Nicolás Maduro, presidente da Venezuela. O governo liderado por ele é apontado por entidades vinculadas à Organização das Nações Unidas (ONU) como responsável por graves violações de direitos humanos como tortura, execuções e perseguição a adversários políticos. Historicamente, o governo venezuelano vem se defendendo alegando que as acusações fariam parte de uma campanha internacional contra o regime liderado por Maduro. O pivô das controvérsias foram as declarações feitas por Lula na segunda-feira, quando recebeu Maduro com honras de chefe de Estado. Segundo Lula, a Venezuela teria sido alvo de uma narrativa construída. "Se eu quiser vencer uma batalha, eu preciso construir uma narrativa para destruir o meu potencial inimigo. Você sabe a narrativa que se construiu contra a Venezuela, de antidemocracia e do autoritarismo", disse Lula. O presidente brasileiro também afirmou que caberia a Maduro mudar a opinião pública internacional a partir de uma nova narrativa. "Eu vou em lugares que as pessoas nem sabem onde fica a Venezuela, mas sabe que a Venezuela tem problema na democracia. É preciso que você construa a sua narrativa e eu acho que, por tudo que conversamos, a sua narrativa vai ser infinitamente melhor do que a que eles têm contado contra você", disse o presidente brasileiro. Nesta terça-feira, porém, líderes convidados por Lula reagiram às falas de Lula. O primeiro a se manifestar de forma crítica em relação ao episódio foi o presidente do Uruguai, Luis Alberto Lacalle Pou. Ele é do Partido Nacional, um dos principais partidos de centro-direita do país, e é conhecido por defender pautas como a liberdade econômica e redução do tamanho do Estado. Durante a reunião entre os chefes de Estado, Lacalle Pou transmitiu seu discurso pelas redes sociais e disse ter ficado "surpreso" com as declarações. Ele, no entanto, não citou nominalmente o presidente Lula. "Fiquei surpreso quando foi dito que o que acontece na Venezuela é uma narrativa. Já sabem o que pensamos sobre a Venezuela e o governo da Venezuela." "Se há tantos grupos no mundo tentando mediar para que a democracia seja plena na Venezuela, para que os direitos humanos sejam respeitados e não haja presos políticos, o pior a fazer é tapar o sol com a mão", disse o presidente uruguaio. Não há informações sobre como Lula ou Maduro reagiram às falas de Lacalle Pou. Mais tarde, foi a vez de Boric abordar o assunto. O presidente chileno tem 36 anos de idade e é uma político de esquerda que iniciou sua carreira política no movimento estudantil. Ele disse que celebrou a participação da Venezuela na cúpula, mas afirmou que não poderia fazer "vista grossa" para a situação na Venezuela. "Para muitos de nós é a primeira oportunidade que temos de compartilhar o mesmo espaço que o presidente Nicolás Maduro. E que a verdade é que nos alegra que a Venezuela retorne às instâncias multilaterais. Cremos que é nestes espaços que se resolvem os problemas", disse. Boric, no entanto, disse abertamente discordar dos termos usados por Lula em sua menção à realidade venezuelana. "Eu manifestei respeitosamente que tinha uma discrepância com o que disse o senhor presidente Lula ontem no sentido de que a situação dos direitos humanos na Venezuela era uma construção narrativa. Não é uma construção narrativa. É uma realidade que é séria e eu tive a oportunidade de ver a dor de centenas de milhares de venezuelanos que vivem em nossa pátria", disse Boric. As declarações de Boric e de Lacalle Pou acompanham o tom de crítica de parte da comunidade internacional em relação à situação política na Venezuela. Entidades como a Anistia Internacional, a Human Rights Watch e a Organização das Nações Unidas (ONU) acusam o governo comandado por Maduro de ser uma ditadura que usa da violência para manter o poder. Os métodos incluiriam execuções, sequestros, estupros e prisão de opositores. Iniciado por Hugo Chávez, o grupo político de Maduro - o chavismo - está no poder na Venezuela de desde 1999. Segundo elas, o governo usaria o aparato de inteligência civil e militar para vigiar a sociedade civil, inclusive sindicalistas e membros da imprensa. As acusações mais recentes de violação de direitos humanos ao governo Maduro foram em março deste ano pela Missão das Nações Unidas para Verificação de Fatos sobre a Venezuela (FFMV, na sigla em inglês). A missão relatou a existência de pelo menos 282 presos por razões políticas no país, e apontou a permanência de um clima generalizado de medo por parte da população. A reunião entre os líderes deverá se estender até o fim da tarde desta terça-feira. Alguns presidentes vão deixar o Brasil ainda hoje, como Gabriel Boric. Outros deverão participar de um jantar oferecido por Lula no Palácio da Alvorada. A expectativa é de que boa parte dos presidentes que participaram da cúpula de hoje também façam parte de outro encontro convocado por Lula previsto para agosto, em Belém. O encontro reunirá líderes dos países que compartilham o bioma amazônico.
2023-05-30
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c885lv6x36qo
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Por que Reino Unido nega a Maduro acesso a ouro venezuelano depositado em Londres
O governo de Nicolás Maduro trava desde 2018 uma batalha na Justiça britânica para ter acesso a cerca de US$ 2 bilhões em barras de ouro mantidas nos cofres subterrâneos do Banco da Inglaterra em Londres. O Superior Tribunal de Justiça da Inglaterra já se pronunciou sobre o caso em suas ocasiões e descartou o pedido do mandatário para ter acesso às riquezas, alegando na época reconhecer apenas Juan Guaidó, então presidente da Assembleia Legislativa e líder da oposição venezuelana, como presidente legítimo da Venezuela. Como consequência dessa decisão, quem teria autoridade sobre essa reserva de ouro seria o conselho do Banco Central da Venezuela (BCV) designado por Guaidó. Após as deliberações do governo britânico, os advogados que representam o conselho indicado pelo BCV entraram com um novo processo no âmbito da justiça comercial. Desde então Guaidó perdeu proeminência e, em uma carta enviada ao Superior Tribunal à qual a BBC News Brasil teve acesso, a advogada represente do Escritório de Relações Exteriores, Commonwealth e Desenvolvimento do governo britânico confirmou que o reconhecimento de Guaidó como presidente interino emitido anteriormente sobre o líder da oposição não reflete mais o posicionamento do Reino Unido. Fim do Matérias recomendadas No documento, o órgão também reafirmou um posicionamento feito pelo ministro para as Américas e Caribe da pasta, David Rutley, no qual ele afirma reconhecer uma decisão tomada por votação pela Assembleia Legislativa em dezembro de 2022 para dissolver o governo interino e o cargo de presidente interino de Guaidó. Nesta semana, o caso voltou à tona com a visita de Maduro à Brasília. Após seu encontro com o venezuelano na segunda-feira (29/5), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) defendeu a legalidade da Presidência do contraparte e apoiou o seu direito de posse sobre as 31 barras de ouro. "Em muitas discussões com meus companheiros europeus eu dizia que não compreendia como um continente que conseguiu exercer a democracia de forma tão plena como a Europa quando construiu a União Europeia poderia aceitar a ideia de que um impostos pudesse ser Presidente da República porque eles não gostavam do presidente eleito", disse Lula sobre Guaidó. Entenda a seguir por que a Justiça britânica nega a Maduro acesso ao ouro venezuelano e qual o estágio atual das negociações. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O caso A disputa se arrasta desde 2018 e em 2020 o BCV entrou com uma ação legal contra o Banco da Inglaterra para forçar a liberação do ouro. Na época, o governo de Nicolás Maduro alegou querer acesso às riquezas para vender e usar os fundos para combater a disseminação do coronavírus no país. O caso foi julgado pelo Superior Tribunal de Justiça da Inglaterra, que rejeitou o pedido de Maduro pela primeira vez em 2020 e novamente em 2022, após uma revisão das circunstâncias. Em janeiro de 2019, o então ministro das Relações Exteriores do Reino Unido, Alan Duncan, já havia dito que, embora a disposição do ouro tenha sido uma decisão do Banco da Inglaterra, "eles levarão em conta que há agora um grande número de países em todo o mundo questionando a legitimidade de Nicolás Maduro e reconhecendo a de Juan Guaidó." Mas desde então, o líder da oposição perdeu apoio e não conseguiu renovar seu mandato como presidente do Legislativo e deputado federal. Guaidó foi reconhecido por mais de 50 países - entre eles todos os membros da União Europeia, Reino Unido, EUA e Brasil - como o presidente interino da Venezuela em 2019 após uma grande onda de protestos no país. Em 2021, porém, as nações que fazem parte do bloco europeu disseram que não poderiam mais reconhecê-lo legalmente depois de ele perder a posição de líder do Parlamento, mas afirmaram que ele segue sendo um "interlocutor privilegiado". Já os EUA afirmaram em junho passado que ainda reconhecem o ex-deputado como presidente interino, mas descartaram convidá-lo para a Cúpula das Américas realizada naquele ano em Los Angeles, pois nem todos os países da região compartilhavam dessa visão. Em abril deste ano, Guaidó foi de surpresa à Colômbia para participar de uma conferência internacional convocada por Bogotá para desbloquear o diálogo na Venezuela, mas foi obrigado a se retirar do país porque teria entrada de 'forma irregular', segundo o Ministério as Relações Exteriores. Em seu pronunciamento em Brasília nesta semana, Lula se referiu a Guaidó como "impostor" e disse que o não reconhecimento de Maduro como presidente da Venezuela, "eleito pelo povo", é um "absurdo", em clara oposição à decisão adotada em 2019 pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Sarosh Zaiwalla, advogado que representa o conselho do BCV indicado por Maduro, afirmou à BBC News Brasil que sua equipe ainda tem esperanças de reaver os fundos. Segundo ele, não há mais recursos disponíveis para apelar contra as resoluções anteriores do Superior Tribunal de Justiça da Inglaterra, mas um segundo processo aberto no âmbito da justiça comercial ainda está correndo e deve ter uma decisão anunciada em algumas semanas. "Entramos com uma apelação com base no fato de que a situação mudou totalmente agora. Não há mais Guaidó como presidente interino e, portanto, o caso todo deve ser julgado novamente", afirmou, em referência ao novo posicionamento do governo britânico sobre o líder da oposição. A expectativa do advogado é de que, com a decisão tomada pela corte comercial, o conselho indicado por Maduro possa abrir um novo processo no Superior Tribunal de Justiça para reaver o ouro. Ainda segundo Zaiwalla, os fundos pertencem à Venezuela e serão empregados em projetos para a população venezuelana. "O governo do presidente Maduro já disse que está preparado para envolver as Nações Unidas e garantir que o dinheiro seja usado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) para o benefício do povo." A BBC News Brasil procurou o Banco da Inglaterra para prestar esclarecimentos sobre a situação, mas a instituição afirmou que não comenta o caso. O Departamento Jurídico do Governo governo britânico também foi contactado, mas não respondeu ao pedido de comentário até a publicação desta reportagem. Já o Escritório de Relações Exteriores, Commonwealth e Desenvolvimento afirmou que a questão é de responsabilidade do Banco da Inglaterra. Mas por que a Venezuela mantém reservas de ouro na Inglaterra? O Banco da Inglaterra é o segundo maior detentor de ouro do mundo, com aproximadamente 400 mil lingotes de ouro. Apenas o Federal Reserve Bank, nos Estados Unidos, tem mais. Um quinto do ouro dos governos do mundo está em Londres e a razão é simples: a capital britânica é o centro mundial do comércio do metal precioso. O Banco da Inglaterra também possui um dos maiores cofres de ouro do mundo e se destaca porque em seus mais de 320 anos de história, nunca uma barra de ouro nunca foi roubada de suas instalações. Portanto, os bancos centrais de várias nações o utilizam para armazenar suas reservas nacionais e a Venezuela é um deles. "Não há nada de estranho que um país mantenha reservas de ouro e outros títulos em outros bancos", explica Luis Vicente León, economista venezuelano e presidente da consultoria Datanálisis. Para ele, essa é simplesmente uma estratégia de proteção e garantia das reservas de ouro. "Eu diria que é uma estratégia muito convencional entre países pequenos. Os países maiores têm capacidade para proteger suas próprias reservas, mantendo-as em seus cofres." "É uma dor de cabeça para os bancos centrais, sobretudo quando não se tem capacidade de proteção, de medidas de segurança e de tecnologia para impedir que haja uma operação de roubo. Quando você coloca em um banco estrangeiro o seu ouro, você tem uma garantia. Se algo acontecer, você estará protegido porque está pagando por um serviço de custódia." Em 2011, o então presidente Hugo Chávez repatriou cerca de 160 toneladas de ouro que estavam em bancos nos Estados Unidos e na União Europeia, citando a necessidade de seu país de ter controle físico de seus ativos. "A Venezuela retornou ouro ao Banco Central, tirando de diferentes países, porque era um momento em que o governo temia a aplicação de sanções internacionais que pudessem congelar suas reservas lá fora", diz Leon. "O governo sentiu que manter reservas no exterior era uma estratégia perigosa e que ele poderia ter parte de seus recursos congelada." No entanto, o ouro que a Venezuela tinha no Banco da Inglaterra, e que hoje é alvo de disputa, permaneceu lá. Em meio à enorme crise econômica e humanitária na Venezuela, o ouro é uma das poucas alternativas de financiamento e liquidez para o governo de Maduro, sobretudo desde fevereiro de 2019 quando os Estados Unidos adotaram sanções contra a empresa estatal de petróleo PDVSA, responsável por muitos recursos nacionais. O governo também está de olho em minas no sudeste do país, em uma vasta zona que se estende da fronteira com a Guiana até a fronteira com o Brasil. Trata-se de uma região estratégica. Em fevereiro de 2016, Maduro decretou que o chamado Arco Mineiro do Orinoco (AMO) será uma zona de desenvolvimento estratégico nacional. Países como Rússia e China ampliaram sua presença em empresas mistas de extração, com participação do governo. O AMO tem 111.846 quilômetros quadrados, cerca de 12% do território do país, e pode ser fonte de até 7 mil toneladas de ouro. O BCV vem recebendo cada vez mais reservas do Arco, mas mesmo assim suas reservas estão em queda. Um informe do Conselho Mundial do Ouro diz que o BCV foi a instituição bancária que mais vendeu ouro em 2017 e 2018. Segundo a Reuters, o BCV tinha o equivalente a US$ 4,6 bilhões em barras de ouro em meados de 2019. A quantidade é 18,5% inferior ao volume do final de 2018 — e o nível mais baixo da Venezuela em 75 anos. A Turquia é hoje o maior comprador do ouro venezuelano, com US$ 900 milhões importados em 2018. A princípio o ouro seria refinado na Turquia e devolvido para a Venezuela, mas não há registros dessa reexportação. Nos últimos anos, navios iranianos com gasolina ctêm chegado à Venezuela. Acredita-se que a Venezuela esteja pagando o Irã com ouro.
2023-05-30
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-53262827
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O que é a moeda comum que Lula defende e por que isso não seria o fim do real
Nesta terça-feira (30/05), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) voltou a falar sobre a possibilidade da criação de uma "unidade de referência comum para o comércio", uma espécie de "moeda comum" dos países sul-americanos. Sem detalhar a proposta, Lula falou sobre o assunto durante a reunião da cúpula dos países da América do Sul, que acontece em Brasília nesta semana. Em seu pronunciamento, o presidente comentou sobre a necessidade de união entre os países da região. "Enquanto estivermos desunidos, não faremos da América do Sul um continente desenvolvido em todo o seu potencial. A integração deve ser objetivo permanente de todos nós. Precisamos deixar raízes fortes para as próximas gerações", afirmou. A possibilidade de criação de uma moeda comum de Brasil e Argentina para transações comerciais surgiu durante a visita do presidente Lula ao país vizinho — a sua primeira viagem internacional desde que tomou posse. Na época, Lula e o presidente argentino, Alberto Fernández, publicaram uma carta conjunta sobre o assunto. "Decidimos avançar nas discussões sobre uma moeda sul-americana comum, que possa ser usada tanto para os fluxos financeiros como comerciais, reduzindo os custos operacionais e nossa vulnerabilidade externa", dizia a carta. Fim do Matérias recomendadas Em discurso durante aquele encontro, Lula reforçou a ideia: "Por que não tentar criar uma moeda comum como se tentou entre os países dos Brics? Acho que, com o tempo, isso vai acontecer. E acho que é necessário que aconteça." Na época, muitas pessoas ao saber da notícia entenderam que Brasil e Argentina poderiam criar algo como o euro — uma moeda única entre as duas maiores economias da América do Sul que substituiria tanto o peso argentino como o real brasileiro. Na época, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, desmentiu a notícia. A moeda comum que os dois países estudam criar no futuro serviria apenas para facilitar transações comerciais sem a necessidade de recorrer ao dólar. Ela seria muito diferente do euro — que é uma moeda única que substituiu moedas nacionais em 20 dos 27 países da União Europeia. Na verdade, a proposta em estudo entre Brasil e Argentina mais parece uma moeda virtual — que não substituiria as moedas nacionais. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O dólar americano é hoje fundamental para a maioria das operações financeiras e comerciais no mundo. A moeda foi adotada como a reserva global de valor em 1944, dentro do Acordo de Bretton Woods. Isso significa que muitos bancos centrais no mundo todo mantém parte da riqueza de seus governos em dólares. A cotação das moedas nacionais em relação ao dólar é fundamental para determinar o poder econômico de cada país. Ao longo dos anos, houve esforços para se abandonar o dólar como principal moeda mundial. A China promove tratados bilaterais com diversos países para que as trocas comerciais sejam realizadas em iuan e na moeda nacional do país. Em abril do ano passado, Haddad havia publicado junto com o economista Gabriel Galípolo, hoje diretor de política monetária do Banco Central, um artigo no jornal Folha de S. Paulo em que propunha uma moeda comum não só para Brasil e Argentina como para toda a América do Sul. Haddad e Galípolo defenderam que a criação da moeda poderia ajudar países a protegerem sua soberania de possíveis sanções impostas por potências estrangeiras, sobretudo dos EUA, que estão no "topo da hierarquia mundial", por terem o privilégio de poder emitir a moeda internacional. "Os EUA e a Europa se valeram do poder de suas moedas para impor severas sanções contra a Rússia, confiscando reservas internacionais e excluindo-a do sistema de pagamentos internacionais (Swift)", escreveram. "A utilização do poder da moeda em âmbito internacional renova o debate sobre sua relação com a soberania e a capacidade de autodeterminação dos povos, em especial para países com moedas consideradas não conversíveis. Por não serem aceitas como meio de pagamento e reserva de valor no mercado internacional, seus gestores estão mais sujeitos às limitações impostas pela volatilidade do mercado financeiro internacional." No artigo, eles reconhecem que criar uma moeda como o euro seria difícil dada as "heterogeneidades estruturais e macroeconômicas" dos países sul-americanos. No caso de Brasil e Argentina, as economias vivem realidades completamente distintas — o Brasil possui inflação anual na casa de dois dígitos enquanto na Argentina os preços praticamente dobraram em 2022. Segundo a proposta, a nova moeda seria usada para fluxos comerciais e financeiros entre países da região — mas Haddad e Galípolo deixam claro que todos os países teriam liberdade para adotá-la domesticamente ou manter suas moedas. Ou seja, tanto Brasil como Argentina poderiam manter o real e o peso, respectivamente. Eles propõem a criação de um Banco Central Sul-Americano que seria responsável pela emissão da moeda. Esse banco central seria criado com contribuições de cada governo, que seriam proporcionais às suas participações no comércio regional. "A capitalização seria feita com reservas internacionais dos países e/ou com uma taxa sobre as exportações dos países para fora da região. A nova moeda poderia ser utilizada tanto para fluxos comerciais quanto financeiros entre países da região." Eles citam a "experiência monetária brasileira com o êxito da URV", em referência à Unidade Real de Valor, que foi usada como moeda de transição para implementação do real. O artigo foi escrito pelos autores em abril de 2022, meses antes da eleição de Lula e a indicação de Haddad para o ministério da Fazenda. Ao chegar em Buenos Aires, Haddad disse a jornalistas, segundo o jornal Valor Econômico: "Estive com ele [Massa] mais de uma vez conversando e ele está querendo incrementar o comércio que está caindo muito. [A situação do comércio] está muito ruim, e o problema é exatamente a divisa, né? Isso que a gente está quebrando a cabeça para encontrar uma solução. Alguma coisa em comum, alguma coisa que permita a gente incrementar o comércio porque a Argentina é um dos países que compram manufaturados do Brasil e a nossa exportação pra cá está caindo."
2023-05-30
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64375705
america_latina
Vídeo, 3 controvérsias da visita do presidente da Venezuela ao BrasilDuration, 2,58
O presidente da Venezuela, Nicolas Maduro, está no Brasil nesta semana. É a primeira vez que ele vem ao país desde 2015 – e desde que o ex-presidente Jair Bolsonaro proibiu-o de entrar em território brasileiro, em 2019. Maduro participa de uma cúpula de presidentes da América do Sul, que foi convocada por Lula e que acontece nesta terça-feira (30/5), em Brasília. Apesar da presença esperada de quase dez líderes da região, a chegada de Maduro é uma das que mais chama atenção. Neste vídeo, nosso repórter Leandro Prazeres conta três polêmicas envolvendo a visita de Maduro ao Brasil: as acusações de violações de direitos humanos na Venezuela, as dívidas com o Brasil e os números da imigração de venezuelanos fugindo do país. Assista e confira.
2023-05-30
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-65753781