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brasil
'Bolsonaro se vai, mas seu movimento não', diz especialista em extrema-direita
A lição que a derrota de Donald Trump nos Estados Unidos deixa para a derrota de Jair Bolsonaro no Brasil é que o homem se vai, mas seu movimento não desaparece. Esse é o recado de Benjamin Teitelbaum, professor de relações internacionais na Universidade de Colorado (EUA) e autor do livro Guerra pela Eternidade (Unicamp, 2020), sobre a corrente de pensamento que inspirou Steve Bannon, ex-conselheiro de Trump, e Olavo de Carvalho, o guru do bolsonarismo falecido em janeiro deste ano. Para Teitelbaum, Bolsonaro foi uma força imensamente desestabilizadora para a política brasileira. E seu legado é uma mudança dramática do espectro político doméstico, cuja principal marca é o desaparecimento da centro-direita. No âmbito internacional, a herança de Bolsonaro é uma severa degradação da posição do Brasil no exterior, avalia o pesquisador. "Há razões para acreditar que esses legados serão de alguma forma permanentes e nós enfrentamos o mesmo nos Estados Unidos", disse Teitelbaum em entrevista à BBC News Brasil, pouco depois de o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) declarar a vitória de Lula neste domingo (30/10). Fim do Matérias recomendadas "Os líderes mundiais podem gostar mais de Lula e de [Joe] Biden, mas agora a perspectiva sempre existirá de que um Trump ou Bolsonaro está potencialmente a apenas quatro anos de distância", afirma o estudioso da extrema-direita. Para Teitelbaum, os mais de 58 milhões de votos obtidos por Bolsonaro e a distância de apenas 2,1 milhões de votos em relação a Lula representam um resultado surpreendentemente forte. Mas ele avalia que, mais do que essa votação, o que demonstra a potência do populismo representado por Bolsonaro como uma força social é o tamanho da aliança de centro-esquerda que foi necessária para derrotá-lo. Para o professor da Universidade de Colorado, essa imensa coalizão que elegeu Lula será um fator de dificuldade para seu futuro governo. "Para a campanha é difícil, porque não há uma mensagem unificada. E para governar será muito difícil também, porque as políticas poderão ser confusas", afirma. "Lula ganhou essa eleição, e isso é ótimo, mas essa não é uma situação muito boa para se estar." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Teitelbaum afirma que a Europa dá bons exemplos disso, como Emmanuel Macron, na França, que conseguiu sua base de apoio ao se estabelecer como a alternativa à candidata de extrema-direita de Marine Le Pen. "A Suécia é outro bom exemplo. Lá, um movimento de extrema-direita ganhou força. Todos os demais se uniram contra a extrema-direita e isso fortaleceu essa extrema-direita, que então se tornou a única força de oposição no país. E todos os partidos que tentavam trabalhar juntos contra isso numa coalizão nunca conseguiram ter uma mensagem, nunca puderam governar com uma agenda específica porque, entre si, eles eram muito diversos", afirma. "Eu prevejo que algo do tipo aconteça com a coalizão de Lula, porque os atores que ele teve que reunir para fazer sua vitória acontecer são muito distintos. Há liberais, socialistas, grupos que em diversos temas se consideram oponentes." O pesquisador diz ainda que outra coisa que o preocupa é a força de Bolsonaro junto à burocracia estatal. Isso porque, nos EUA, o funcionalismo teve papel fundamental para barrar a tentativa de Trump de contestar ilegalmente o resultado eleitoral. "Há um perigo em especial no Brasil por conta disso, que não existe nos Estados Unidos. Porque se ele [Bolsonaro] quiser contestar o resultado, ele tem muito mais recursos do que Trump teve", avalia. Na noite de domingo após a divulgação do resultado, no entanto, aliados de Bolsonaro fizeram declarações nas redes sociais que demonstravam aceitar o resultado, a exemplo dos ex-ministros Ricardo Salles e Sergio Moro, eleitos respectivamente para a Câmara e o Senado. Apesar dessa diferença entre EUA e Brasil, Teitelbaum avalia que uma semelhança entre os dois países é o colapso da centro-direita. Segundo ele, isso é menos visível nos EUA devido ao sistema bipartidário, mas, no Partido Republicano, a ala mais centrista e liberal na economia do partido foi marginalizada após Trump. Para o pesquisador, a perda de ressonância do liberalismo econômico na sociedade está relacionada à sua incapacidade em reduzir a desigualdade e diminuir a pobreza. Questionado por que então os eleitorados não se voltaram para a esquerda, já que essas são preocupações típicas desse campo político, o analista avalia que primeiro, a centro-direita sempre foi uma espécie de anteparo da extrema-direita. Quando ela se rendeu à extrema-direita, esse foi um ponto de virada. Em países industrializados, a classe trabalhadora industrial empobrecida volta-se contra minorias, um fruto da guerra cultural, que acaba se sobrepondo à política econômica, diz o pesquisador. Ele reconhece que esse não é um fator relevante no Brasil, onde a imigração e a xenofobia não são itens centrais na ascensão do populismo de direita. Mas ele avalia que aqui há a ascensão do pentencostalismo evangélico que serviu como elemento nesta disputa cultural. Uma pesquisa Datafolha divulgada entre o primeiro e o segundo turnos da eleição mostrou que a democracia tem o apoio de 79% dos brasileiros, um recorde histórico. Apesar disso, 49% dos brasileiros votaram em um candidato percebido como antidemocrático. E seus apoiadores entendem que a ação do STF (Supremo Tribunal Federal) para pôr limites a Bolsonaro é a verdadeira ameaça à democracia. Em entrevistas anteriores, Teitelbaum identificou fenômeno semelhante nos Estados Unidos, que os diferentes campos políticos daquele país se dizem defensores da democracia, mas têm entendimentos distintos do que é essa democracia. Por que isso acontece? Como as sociedades chegam a um ponto de divisão em que há entendimentos tão diversos acerca de um conceito tão fundamental? "Na base disso está nosso consumo de informação. Estamos observando o mundo com entendimentos de realidade cada vez mais polarizados pois uma questão-chave é que a sociedade tem canais diferentes para conhecer a realidade, as notícias e entender o que é bom e ruim", afirma, referindo-se ao fato de que parte da estratégia da extrema-direita é contar com uma rede de comunicação própria, formada por redes sociais e redes de comunicação. Teitelbaum também já destacou no passado que uma diferença importante entre Brasil e EUA é o fato de a democracia brasileira ser jovem, com o passado ditatorial ainda recente. Nesse cenário, a experiência do governo Bolsonaro poderá causar um dano permanente à jovem democracia brasileira? "Me preocupo, no caso do Brasil, que a alternativa à democracia sempre estará lá como uma opção, especialmente em momentos de instabilidade. Esse é meu medo e o papel que eu penso que o histórico do seu país com a democracia pode ter."
2022-10-31
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63421488
brasil
Vídeo, Em 4 pontos, por que vitória de Lula é históricaDuration, 3,26
A Justiça Eleitoral anunciou que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito pela terceira vez para o cargo, derrotando no segundo turno o atual presidente, Jair Bolsonaro. Lula teve 50,9% dos votos válidos (conta que exclui brancos e nulos), ante 49,1% de Bolsonaro. Neste vídeo, nossa repórter Nathalia Passarinho explica quatro fatos que tornam essa eleição histórica.
2022-10-30
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63452265
brasil
Lula e Getúlio Vargas: semelhanças e diferenças entre os dois únicos presidentes que foram e voltaram ao poder na história do Brasil
Esta reportagem foi atualizada às 14h30 de Brasília em 01/01/23 Eleito com mais de 60,3 milhões de votos, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) será o segundo presidente na história do Brasil a reassumir o posto depois de um hiato fora do Executivo. Sua posse ocorre neste domingo (01/01). Eleito pela primeira vez em 2002, reeleito em 2006, Lula ficou oficialmente distante da esfera de poder entre 2011 e 2022. Getúlio Vargas (1882-1954), por sua vez, presidiu o país de 1930 a 1945, sem ter sido eleito pelo voto, vale ressaltar — nos primeiros quatro anos, chefiou o Governo Provisório. Depois foi indicado pela Assembleia Constituinte e, entre 1937 e 1945, foi ditador no período chamado de Estado Novo. Em 1951, entretanto, após ter sido eleito por escrutínio popular, Vargas reassumiu o comando do Executivo — mandato este que seria interrompido com o fatídico suicídio do mesmo, em 1954. Essa característica que une ambos — o fato de ter reassumido o posto depois de um período sem função executiva — por muito pouco também não foi vivenciada por Francisco Rodrigues Alves (1848-1919). Presidente do Brasil entre 1902 e 1905, ele foi eleito novamente em 1918. Contudo, pelo fato de ter contraído a gripe espanhola, ele se viu impossibilitado de assumir o cargo. Morreu em janeiro de 1919. Fim do Matérias recomendadas A convite da BBC News Brasil, especialistas comentam as diferenças e semelhanças entre ambos os políticos, separados por décadas. Autor de três livros que, em sua totalidade, compreendem uma completa biografia de Vargas, o jornalista e escritor Lira Neto reconhece que tanto ele quanto Lula compartilham características em comum, sobretudo o "imenso carisma" e a "popularidade", além da "marcante força eleitoral junto às classes médias e camadas populares". "Não há precedentes, na história brasileira, de líderes que tenham desfrutado de tamanha empatia com as massas", afirma ele. "Ambos estabeleceram a questão social como prioridade de seus respectivos governos, ao mesmo tempo em que articularam alianças pragmáticas com diferentes segmentos da população, incluindo desde o operariado até o patronato. Lula, a exemplo de Vargas, sempre defendeu que, em um país de desigualdades tão abissais como o Brasil, o Estado não pode se eximir de seu papel como indutor do desenvolvimento econômico." Lira Neto ressalta também que ambos "foram alvos de fortes tentativas de desconstrução política e moral". Segundo o biógrafo, isso se deu a partir de um "discurso seletivo dos adversários contra a corrupção" e a partir da "fantasmagoria de um suposto 'perigo vermelho'." Mas, na visão do jornalista, nem tudo são semelhanças entre os políticos. Por um lado, Vargas é fruto do "seio das oligarquias gaúchas" e teve sua formação "acadêmica e política no positivismo do movimento republicano, de matriz autocrática e elitista". Além disso, como lembra o biógrafo, ele chegou ao poder, originalmente, "por meio de um movimento civil e militar, a chamada Revolução de 30", sendo que governou "ditatorialmente até 1945, com exceção do pequeno interregno constitucional entre 1934 e 1937". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Lula nasceu em família nordestina pobre, formou-se politicamente no meio sindical e chegou à Presidência pelo voto, seguindo e respeitando os ritos democráticos ao longo dos oito anos em que passou no Planalto", compara Lira Neto. Enquanto muitos classificam o segundo mandato de Vargas como pior que o primeiro — e usam desse argumento para desqualificar, de antemão, a volta de Lula —, Lira Neto não concorda. "Penso exatamente o contrário", enfatiza. "Creio que o segundo governo de Getúlio, entre 1951 e 1954, consolidou, de forma eficaz e democrática, todas as iniciativas em prol do desenvolvimento do país forjadas no período anterior, ditatorial, no Estado Novo." "No contexto da Guerra Fria, sua política nacionalista e independente da tutela americana atraiu a ira dos conservadores, daí a perversa campanha desencadeada pelos adversários, [o político de oposição a ele] Carlos Lacerda [1914-1977] à frente, que resultou na trágica crise que o levaria à morte", analisa o biógrafo. Na opinião do escritor, "Lula deve estar atento à reação conservadora que, por certo, enfrentará". "A extrema-direita, embora tendo sido derrotada, estará à espreita, com seus golpes baixos, incluindo o apelo ao moralismo seletivo". O historiador Carlos Fico, pro fessor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), lembra que, com a eleição deste ano, Lula é o "primeiro presidente eleito pelo voto direto três vezes" da história do Brasil. Nesse sentido, fazer um paralelo com Vargas significa compará-lo a um presidente que só foi eleito "dessa maneira uma vez". Nesse sentido, para ele, "as duas situações são diferentes". "A única semelhança que vejo é a seguinte: ambos se beneficiaram da 'adesão por afeto', quando parte de seus apoiadores permanece política e eleitoralmente fiel independentemente do que façam os líderes", ressalta. "Getúlio Vargas e Lula conquistaram esse tipo de apoio por causa do fascínio que exercem e, sobretudo, em função impacto da legislação social e trabalhista do primeiro e do programa Bolsa Família [de redistribuição de renda mínima] do segundo." Na visão do historiador, é impossível comparar o "segundo mandato" de Vargas com o mandato que Lula terá a partir do ano que vem. Isso porque o primeiro acabou acumulando uma sucessão de governos diferentes, do Provisório dos primeiros quatro anos e da presidência indicada pela Constituinte dos anos seguintes à ditadura do Estado Novo e à eleição pelo voto direto em 1950. Como lembra Fico, o governo Vargas dos anos 1950 "foi marcado por crescente inflação, greves, crises políticas e militares". "Mas o presidente conseguiu [nesse período] criar a Petrobras e o BNDE. Discutiu-se muito o nacionalismo econômico e a abertura ao capital estrangeiro. A oposição da UDN foi muito forte. O contexto internacional era o da Guerra Fria. O atentado contra Lacerda levaria ao suicídio [de Vargas]", frisa o historiador. "Não vejo nada nesse período que permita estabelecer correlações com o terceiro mandato de Lula." Professor na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), o cientista político, filósofo e sociólogo Paulo Niccoli Ramirez ressalta a coincidência histórica de que tanto Lula quanto Vargas são expoentes do chamado "desenvolvimentismo". "Os dois defendem uma maior intervenção do Estado nas políticas de bem-estar social, ou seja, saúde, educação, moradia, relações de trabalho…", enumera. "Também têm um amplo projeto econômico de desenvolvimento, isto é um aspecto em comum." Mas, na visão de Ramirez, é preciso enfatizar a diferença grande entre ambos, principalmente pelo fato de que Vargas, em seu primeiro governo, foi líder de uma ditadura, "em que havia pouca margem para liberdade de expressão e perseguição a partidos de esquerda". "Lula, por sua vez, foi eleito pelas vias democráticas, com consenso popular em torno de sua pessoa", recorda. Contudo, na visão do pesquisador, há uma característica que os une. "Eles são considerados populistas, ou seja, atraíram um grande contingente de apoiadores. São líderes carismáticos capazes de sensibilizar a população mais pobre no processo eleitoral", ressalta. Segundo Ramirez, a diferença nesse movimento é que o segundo governo de Vargas foi "marcado por um amplo nível de oposição", principalmente "pelas elites econômicas". "E isso é diferente de Lula agora, quando grandes banqueiros e grandes industriais o estão apoiando. Ele tem uma margem de apoio muito maior do que aquela que Vargas tinha na década de 1950", compara. O professor salienta que a forte oposição, inclusive da mídia, sofrida por Vargas em seu segundo mandato fez com que o período fosse marcado por "forte instabilidade". "Isto acabou presente até em sua carta de despedida, de suicídio, quando ele disse que 'forças ocultas' o pressionavam", comenta. "Mas, no caso de Lula, há um cenário diferente. Ele tem amplo apoio de empresários, movimentos sociais… Então, provavelmente terá um governo mais tranquilo. Conseguiu uma base de apoio partidário, permitiu uma aliança inclusive com [o ex-tucano histórico] Geraldo Alckmin [seu vice-presidente], uma figura conservadora e representativa dos interesses do grande capital." "Vargas não conseguiu promover uma ampla negociação com opositores da direita brasileira e parte da imprensa, inclusive do Lacerda", diz. "Lula, ao que me parece, vai pela via oposta, se apresentando como negociador, capaz de promover alianças com grupos conservadores do grande capital. Esse parece ter sido o grande aprendizado do populismo brasileiro: não se governa por si só, somente com o apoio do povo, mas principalmente é preciso ter apoio dos grandes do setor econômico." "Desde 2002, as campanhas de Lula sempre tentaram relacioná-lo à figura de Getúlio Vargas", analisa o historiador e sociólogo Wesley Espinosa Santana, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. "Porém, como historiador, não consigo fazer uma comparação diacrônica, de dois tempos diferentes, sem marcar a ideia de que a história não é cíclica. Ela aparentemente traz alguns elementos que podem ser repetidos, mas com outro pano de fundo, outro contexto histórico", argumenta ele. Nesse sentido, Santana ressalta que, embora tanto Lula quanto Vargas tenham sido "grandes estadistas", é preciso ressaltar que o presidente do Estado Novo foi "autoritário, ditador". "Mas foi um grande estadista, porque criou o Estado brasileiro. Ao mesmo tempo, ficou à mercê dos interesses internacionais", pondera. "Vargas fez os direitos sociais, mas ligados aos interesses do desenvolvimento e da consolidação do capitalismo industrial." "Não acredito que nenhum governo se repita, e o segundo governo de Lula não será tão ruim como o segundo governo de de Getúlio Vargas. Não vejo dessa forma", avalia. "Lula fez um bom primeiro governo até quando houve o escândalo do Mensalão. Mais tarde, ele foi preso e as razões de sua prisão são discutidas ainda hoje, justamente por conta de um funcionário público, o então juiz Sergio Moro, ter sido parcial em seu trabalho, extrapolando suas funções. Ele investigou e julgou, o que é bem complicado, depois virou ministro do concorrente [do PT], o que é um problema ético já consolidado. Fora as questões jurídicas que estão vindo pela frente." Para Santana, contudo, o que se vê hoje é "um estado de exceção na política das narrativas, das fake news". "É um clima de guerra", frisa, deixando claro que isso pode tumultuar um futuro governo. "Se o próximo governo Lula vai ser pior ou melhor do que os anteriores, é muito difícil falar. A situação vai estar difícil, crítica, tanto no cenário político quanto no externo", acredita.
2022-10-30
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63087984
brasil
Como imprensa internacional noticiou vitória de Lula na eleição
Importantes meios da imprensa internacional deram grande destaque a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no segundo turno neste domingo (30/10). O jornal americano The New York Times levou a vitória do petista para a manchete de seu site. "Brasil elege Lula, um esquerdista que já liderou o país, em reprovação a Bolsonaro". O jornal afirma que foi "uma longa e amarga campanha" e que "termina o período turbulento de Bolsonaro como o mais poderoso líder da região". O concorrente The Washington Post deu menos destaque à eleição brasileira em sua página na internet. O diário lembra que a vitória de Lula se junta a uma onda de líderes de esquerda que se elegeram na América Latina, citando os casos de Colômbia, Chile e Peru. Em sua cobertura da eleição, a repórter Paulina Villegas disse que a coordenadora de uma seção eleitoral (ela não menciona de qual cidade ou estado) a expulsou enquanto fazia uma entrevista porque "as perguntas eram tendenciosas". Fim do Matérias recomendadas Outro francês, o conservador Le Figaro, também colocou a notícia na manchete do site com o título "Lula, a vida extraordinária do incansável campeão da esquerda brasileira". No texto, a publicação lembra que o presidente eleito teve uma "longa vida política e pessoal foi marcada por dramas, vitórias, quedas, renascimentos". O diário argentino Clarín destacou em sua manchete: "Lula ganhou por menos de dois pontos de Bolsonaro e voltará à presidência". No texto afirmou que a vitória veio "no final de uma campanha agressiva, em um clima histórico de polarização e após uma contagem voto a voto". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O também argentino La Nación fez ampla cobertura da eleição brasileira e apontou que o presidente argentino Alberto Fernandéz comemorou a vitória de Lula e aque agora não terá que "padecer" a "hostilidade" do Brasil. El Universal, do México, ressalta que "Com Lula da Silva, esquerda governará 86% da população da América Latina e Caribe". O espanhol El País também colocou em seu espaço principal do website a vitória do petista e lembra da diferença bastante apertada no resultado. "Lula ganha de Bolsonaro e presidirá um Brasil dividido", diz a manchete. Na Inglaterra, o jornal The Guardian acompanhou o dia de eleição com uma página ao vivo e destacou na manchete de sua homepage a vitória com a frase "Lula triunfa sobre o incumbente de extrema-direita Bolsonaro em um retorno espetacular". O jornal econômico britânico Financial Times foi na mesma linha e disse que "o veterano esquerdista Lula completa um retorno espetacular à Presidência do Brasil". O diário The Times, também britânico, declarou que Lula venceu Bolsonaro por "um fio de cabelo" após uma eleição "disputada amargamente". Na China, a eleição brasileira não tinha destaque no começo da manhã no horário local em sites importantes com versão em inglês como Xinhua, Global Times e China Daily. O South China Morning Post informou a vitória de Lula com texto da agência France Presse. O CGTN dava uma linha sobre a eleição brasileira como notícia urgente.
2022-10-30
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63451405
brasil
Abstenção cai pela 1ª vez no 2º turno de eleição presidencial desde a redemocratização
O segundo turno desta eleição presidencial foi a primeira vez desde a redemocratização que a abstenção caiu entre os dois turnos de votação. Com 99,58% das urnas apuradas, 20,56% dos eleitores não votaram, 0,39 ponto percentual abaixo do registrado no primeiro turno, quando a abstenção foi de 20,95%. Seu dispositivo não consegue visualizar essa imagem Em 1989, na eleição de Fernando Collor, a abstenção passou de 11,93% para 14,39% no segundo turno. Em 1994 e 1998, a eleição e a reeleição de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) foram definidas no primeiro turno — o índice foi de 17,77% e 21,49% respectivamente. Em 2002, quando Lula se elegeu pera primeira vez, subiu de 17,74% para 20,47% e, em 2006, sua reeleição, de 16,75% para 18,99%. Fim do Matérias recomendadas Em 2010, passou de 18,12% para 21,47% e, em 2014, de 19,39% para 21,10%. Dilma Rousseff (PT) foi eleita nas duas ocasiões. Em 2018, quando Bolsonaro se elegeu pela primeira vez, contra o petista Fernando Haddad, cresceu de 20,33% para 21,30%. O efeito da abstenção sobre o primeiro turno e no resultado final foi muito discutido nesta eleição, porque estudos indicam que ela prejudica mais Lula, por ser maior entre os eleitores com menor renda e escolaridade, parcela da população em que o petista liderava nas intenções de voto. Uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que, neste segundo turno, as prefeituras que condessem passe livre no transporte público não estariam infringindo a Lei de Responsabilidade Fiscal. Também foi proibida a redução do volume de transporte disponível para a população na eleilção. A decisão atendeu um pedido feito pelo partido Rede Sustentabilidade. O entendimento da Corte foi de que as medidas são importantes para garantir que os eleitores, especialmente os mais pobres, consigam exercer seu direito ao voto. No domingo de votação (30/10), centenas de operações da Polícia Rodoviária Federal (PRF), boa parte delas no Nordeste, foram criticadas como uma tentativa de dificultar o voto a favor de Lula. O atual diretor-geral da PRF, Silvinei Vasques, havia declarado em seu Instagram voto em Bolsonaro. A PRF disse que as operações eram para fiscalizar o cumprimento do Código de Trânsito. No sábado (29/10), o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) já havia determinado que a PRF não fizesse operações no transporte público, para não atrapalhar a votação. Vasques foi intimado pelo atual presidente do TSE, Alexandre Moraes, a interromper as operações.
2022-10-30
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63421487
brasil
Bolsonaro derrotado: 10 armas usadas sem sucesso na tentativa de reeleição
Jair Bolsonaro (PL) é o primeiro presidente brasileiro a não ser reconduzido ao cargo desde que foi aprovada a emenda constitucional que permitiu a reeleição, em 1997. O presidente, no entanto, não poupou esforços na tentativa de se manter no poder, tendo emendado a Constituição para permitir a manutenção de um "estado de emergência" no ano eleitoral, que possibilitou a criação de uma série de benefícios sociais e a realização de despesas acima do permitido pelo teto de gastos — regra que limita o crescimento do gasto do governo à inflação do ano anterior. Em busca da reeleição, o governo distribuiu bilhões de reais a parlamentares através do chamado "orçamento secreto", reduziu impostos sobre combustíveis, ampliou o Auxílio Brasil para R$ 600 e o Vale Gás, e criou benefícios para caminhoneiros e taxistas. A Caixa Econômica Federal lançou empréstimo consignado do Auxílio Brasil, renegociações de dívidas, concessão de crédito para mulheres empreendedoras e o uso do FGTS futuro no financiamento à habitação. Para além das medidas econômicas, Bolsonaro transformou o comprovante de votação em prova de vida do INSS para estimular o voto dos idosos (público que em 2018 deu votação expressiva ao presidente) e reforçou o uso de três de suas armas da campanha anterior: as redes sociais, o apoio evangélico e o antipetismo. Fim do Matérias recomendadas Com tudo isso, conseguiu reduzir fortemente sua rejeição ao longo da campanha e obter uma votação muito superior aos cerca de 27% da população que hoje se definem como bolsonaristas, segundo pesquisa Atlas recente. Como foi possível esse uso sem precedentes da máquina pública numa campanha eleitoral? E por que, mesmo assim, Bolsonaro não conseguiu se reeleger? A BBC News Brasil ouviu Sérgio Lazzarini (Insper), Letícia Bartholo (ex-secretária nacional adjunta de Renda de Cidadania), Bruno Carazza (Fundação Dom Cabral) e Denilde Holzhacker (ESPM) para responder a essas e outras perguntas sobre o fracasso do "arsenal eleitoral" de Bolsonaro. Procurados, o Ministério da Economia disse que não iria comentar e Caixa, Ministério da Cidadania e Planalto não responderam ao pedido de posicionamento. "Bolsonaro tinha um desafio muito grande, pois entrou na corrida eleitoral como o presidente buscando a reeleição mais mal avaliado e com maior rejeição desde que a reeleição foi instituída no Brasil", lembra Bruno Carazza, professor da Fundação Dom Cabral e autor do livro Dinheiro, eleições e poder: As engrenagens do sistema político brasileiro. Em maio deste ano, 54% dos brasileiros diziam que não votariam em Jair Bolsonaro de jeito nenhum, comparado a 35% que diziam o mesmo sobre Dilma Rousseff (PT) em maio de 2014, 27% que diziam isso sobre Lula em 2006 e 26% de rejeição a FHC em 1998, segundo dados do Datafolha, levantados pelo UOL. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Ele estava em segundo lugar nas pesquisas, num contexto econômico muito difícil, pós-pandemia e com os reflexos da guerra entre Rússia e Ucrânia na economia brasileira. Então ele tentou virar o jogo com um pacote de medidas para dar um gás na reta final da campanha, dado que ele não tinha números de popularidade suficientes para garantir a reeleição", afirma. Sérgio Lazzarini, professor do Insper e coautor do livro Reinventando o capitalismo de Estado: O Leviatã nos negócios (sobre o intervencionismo estatal na economia durante os governos petistas), observa que essa estratégia é parte da chamada "vantagem do incumbente", uma série de prerrogativas políticas — como o uso do Orçamento público — que dão ao governante em exercício mais força na corrida eleitoral em relação a seus oponentes. "Isso desequilibra o processo democrático, dando uma vantagem natural a quem já está no poder", observa o especialista em administração pública, que está atualmente no Canadá, lecionando na Ivey Business School da Western University. Lazzarani observa que essa não é uma característica apenas de modelos políticos onde existe a possibilidade de reeleição, já que o governante em exercício também pode fazer uso da máquina pública para cacifar um sucessor ou sucessora. "O uso da máquina acontece em todos os níveis: nas eleições municipais, para governadores e presidenciais. Sempre aconteceu o uso de instrumentos econômicos", diz Carazza, citando como exemplo o adiamento da desvalorização cambial por Fernando Henrique Cardoso (PSDB) em 1998 e o uso de transferência de renda nos governos Lula e Dilma. "No caso do Bolsonaro, o que houve foi uma escala maior do que em anos anteriores, porque não foi só o governo abrir as torneiras do gasto público. Houve uma série de mudanças no arcabouço jurídico-econômico brasileiro, de flexibilização de travas fiscais e eleitorais que restringiam esse uso eleitoreiro do gasto público às vésperas da votação", afirma. E por que os mecanismos de freios e contrapesos, como as leis que visam inibir o abuso de poder econômico em ano eleitoral, falharam? "As leis dependem do sistema político. Quando esse sistema tem um objetivo político, ele passa por cima [das leis]. A lei de responsabilidade fiscal foi flexibilizada no passado e agora, toda a aprovação dessas PECs [Propostas de Emenda à Constituição] que ocorreu para aumentar os gastos, também foi em função da pressão política", avalia Lazzarini. O impacto das medidas lançadas pelo governo para aumentar as despesas sociais durante o período eleitoral supera os R$ 68 bilhões somente em 2022, segundo estimativa do jornal Valor Econômico, a partir de dados das emendas constitucionais e do Ministério da Economia. Mas então por que não deu certo? Os especialistas têm algumas hipóteses. "A população mais pobre tem memória", diz Letícia Bartholo, especialista em políticas públicas e gestão governamental e ex-secretária nacional adjunta de Renda de Cidadania (2012-2016). "Tem memória de como o presidente Bolsonaro tratou a transferência de renda aos mais pobres durante toda a sua carreira no Legislativo e Executivo, chamando de 'bolsa esmola'. Além disso, no último período, houve muitas mudanças, muito vai, não vai no âmbito da transferência de renda. Foram seis mudanças em dois anos, o que gera uma sensação de insegurança na população, de não saber o dia de amanhã. Acredito que isso contribuiu para essa estratégia que injetou bilhões de reais [na economia] não ter dado certo", avalia. Já Bruno Carazza acredita que Bolsonaro pagou um preço por sua displicência na gestão da pandemia e por ter relegado a política social à reta final da eleição. Para Denilde Holzhacker, cientista política e coordenadora geral de pesquisa e pós-graduação na ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing), o episódio envolvendo o deputado Roberto Jefferson na reta final da campanha também pesou sobre o resultado. "Foi um caso que demonstrou o grau de polarização e de violência política associada aos grupos bolsonaristas e ao próprio Bolsonaro", diz Holzhacker. "Então, apesar de todas as ações econômicas e do forte apoio evangélico e de outros atores, ele não conseguiu superar a grande rejeição que existe frente ao seu governo e ter o apoio da maioria da população." Confira a lista de 10 armas usadas sem sucesso por Bolsonaro na tentativa de reeleição. O orçamento secreto, que recebeu esse nome a partir de uma série de reportagens do jornal O Estado de S. Paulo, é uma prática adotada pelo Congresso brasileiro desde 2020, em que verbas do Orçamento público são destinadas a projetos sem a necessidade de identificação dos parlamentares ou detalhamento sobre a destinação dos recursos. O esquema movimentou R$ 16 bilhões em 2021, R$ 16,5 bilhões este ano e a proposta de Orçamento para 2023 reserva R$ 19,4 bilhões para as chamadas emendas do relator, nome oficial dessa despesa no Orçamento da União. Inicialmente, o presidente Jair Bolsonaro vetou essa novidade no Orçamento. Depois, no entanto, o governo enviou nova proposta orçamentária ao Legislativo prevendo destinação de recursos para as emendas do relator, que foi então aprovada por deputados e senadores. Segundo analistas, a destinação de recursos para o orçamento secreto fortaleceu a base de apoio a Bolsonaro no Congresso e em municípios que receberam essas verbas. Também contribuiu para o forte índice de reeleição entre parlamentares esse ano. Na Câmara, 294 deputados (57,3% do total) foram reeleitos, segundo dados da Agência Câmara — o percentual considera os 596 deputados que assumiram mandato em algum momento da atual legislatura, não apenas os 513 que estão no exercício do mandato. E facilitou a aprovação de PECs de interesse do governo, como a dos Precatórios (que adiou o pagamento de dívidas da União para liberar recursos para o Auxílio Brasil) e a que turbinou gastos sociais no ano eleitoral; além da legislação que reduziu impostos sobre combustíveis. "Não foi só o governo, o Legislativo também usou a máquina [pública]", diz Holzhacker, da ESPM. "A liberação de recursos via orçamento secreto é também uma forma de manter a máquina azeitada nos municípios e com isso obter benefícios eleitorais. Vimos que isso teve um resultado prático para a eleição dos partidos que receberam recursos." Em meio à forte alta internacional dos preços do petróleo devido à guerra entre Rússia e Ucrânia, o Congresso aprovou em junho e Bolsonaro sancionou legislação que zerou os impostos federais (PIS e Cofins) sobre combustíveis até 31 de dezembro de 2022 e limitou a cobrança de ICMS pelos Estados à alíquota mínima de 17% ou 18%. Após a aprovação da medida, os combustíveis tiveram queda de preços em julho, agosto e setembro, contribuindo para a deflação registrada pelo IPCA, índice oficial de inflação do país, nesses mesmos meses. Com isso, a inflação acumulada em 12 meses no Brasil se descolou da tendência mundial, conforme mostra esse gráfico elaborado pela LCA Consultores. "Essa medida teve como objetivo agradar a fatia do eleitorado de classe média, que estava bastante incomodado com os preços altos dos combustíveis. Então foi uma medida estratégica do governo para tentar acalmar esse segmento, que foi muito decisivo para a eleição do Bolsonaro em 2018", diz Carazza, da Fundação Dom Cabral. "Também foi uma estratégia para, por vias indiretas, ao intervir no mercado de combustíveis, criar uma redução artificial da inflação, reduzindo seus efeitos para a classe de renda mais baixa. Então, sem dúvida nenhuma, isso teve um objetivo eleitoral muito forte." Ao fim de 2021, o governo Jair Bolsonaro extinguiu o Bolsa Família e criou o Auxílio Brasil, numa tentativa de imprimir uma marca própria na assistência social, apagando o nome fortemente associado às gestões petistas. A proposta original do governo previa um valor de R$ 400 válido só até dezembro de 2022, mas uma emenda na Câmara dos Deputados tornou o benefício permanente. No entanto, o valor ainda era inferior aos R$ 600 do Auxílio Emergencial pago durante a pandemia, o que daria aos beneficiários uma percepção de perda. Assim, em junho deste ano, o governo propõe ampliar o Auxílio Brasil para R$ 600, mas novamente com validade somente até dezembro. A medida foi viabilizada em julho através de uma PEC, que abriu brecha para gastos de até R$ 41 bilhões fora do teto de gastos, ao reconhecer um "estado de emergência". Isso possibilitou a criação de benefícios no ano de eleições, driblando proibição imposta pela Lei Eleitoral. Além do aumento de valor do auxílio, a PEC também dobrou o valor do Vale Gás de R$ 60 para R$ 120 e ampliou o número de famílias que recebem esse vale. Posteriormente, o governo ainda ampliou o número de beneficiários do Auxílio Brasil em mais 500 mil famílias — chegando a um total de 21,1 milhões no início de outubro —, antecipou o calendário de pagamentos antes dos dois turnos da eleição, ampliou prazo de cadastro ao benefício e prometeu um 13º para os beneficiários em 2023. Para Letícia Bartholo, apesar do aumento do valor do auxílio ser positivo, o programa nos moldes atuais tem graves problemas de desenho. Uma evidência disso é a explosão de cadastros de famílias formadas por uma única pessoa. "Quando o Auxílio Brasil paga um piso por família, desconsidera o número de pessoas na família. Na realidade, está pagando R$ 600 para quem mora sozinho, R$ 300 para uma família de dois, R$ 200 para uma família de três e R$ 150 para uma família de quatro integrantes, pensando no valor por pessoa", diz Bartholo. "Isso prejudica, por exemplo, mães solo com crianças pequenas e favorece pessoas que moram sozinhas e que têm mais condições de procurar emprego, por não terem as limitações do cuidado com crianças", afirma a socióloga. "Cria também um incentivo adverso que é estimular que famílias que tenham dois adultos se dividam artificialmente para majorar seu benefício. Sempre que isso acontece, há uma família pobre, que precisa, que não vai conseguir a vaga." A mesma PEC que viabilizou o Auxílio Brasil de R$ 600 e ampliou o Vale Gás, também criou um benefício mensal de R$ 1 mil para taxistas e caminhoneiros, pago entre agosto e dezembro de 2022. Segundo balanço do Ministério do Trabalho, mais de 360 mil caminhoneiros e 297 mil taxistas receberam os benefícios até a semana anterior ao segundo turno. O governo também antecipou o calendário de pagamento desses benefícios e destinou recursos extras para esse fim entre o primeiro e o segundo turnos. "São grupos muito vocais, principalmente o dos caminhoneiros", diz Lazzarini, do Insper e da Western University. "Então isso também vai na linha de ganhar suporte político, além de atenuar insatisfações e evitar revoltas durante a campanha e na pré-eleição, o que também teve claramente um objetivo eleitoral." Em outra medida visando a parcela da população mais vulnerável, tradicionalmente mais propensa a votar em candidatos do PT, o governo criou o consignado do Auxílio Brasil, um empréstimo garantido pelo benefício social, com as parcelas da dívida descontadas na fonte — isto é, descontadas do próprio benefício pago pelo governo. A regulamentação do empréstimo saiu apenas ao fim de setembro, estabelecendo um limite de juros de 3,5% ao mês ou 51,5% ao ano, acima da média de outros consignados. Enquanto o Auxílio Brasil de R$ 600 começou a ser pago em agosto, o consignado — com valor médio de R$ 2.600 —, passou a ser pago a partir de 10 de outubro, entre o primeiro e o segundo turno das eleições. Em apenas 11 dias, até 21 de outubro, a Caixa já havia emprestado R$ 4,3 bilhões, para 1,7 milhão de pessoas. O Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União chegou a pedir a suspensão do consignado para "impedir sua utilização com finalidade meramente eleitoral". Além disso, a modalidade de empréstimo sofreu duras críticas de especialistas, por comprometer até 40% do benefício pago às famílias mais vulneráveis do país com o pagamento de dívida. "É claro que a população precisa de acesso a crédito, mas há uma incompatibilidade entre o empréstimo consignado, que exige uma regularidade de pagamentos, e o desenho do Auxílio Brasil, que prevê a possibilidade de bloqueios, suspensões e até mesmo a saída da família do programa, por problemas de cadastro ou quando a família deixa de cumprir condicionantes", observa Letícia Bartholo, ex-secretária nacional adjunta de Renda de Cidadania. "O problema é que, em caso de suspensão de pagamento, a dívida recai unilateralmente sobre as famílias. O poder público não será solidário no pagamento dessa dívida. E estamos falando de uma população com pouca educação financeira, submetida a juros abusivos." O uso eleitoral da Caixa Econômica Federal não se restringiu ao Auxílio Brasil e ao empréstimo consignado. Entre o primeiro e o segundo turnos, Bolsonaro anunciou um programa de renegociação de dívidas, outro de crédito para mulheres empreendedoras e a possibilidade de o trabalhador complementar um financiamento habitacional com créditos ainda não recebidos do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) como forma de caução, tudo através da Caixa. "O uso de bancos públicos na política brasileira é muito comum, desde a época em que os governos estaduais tinham seus próprios bancos — Banespa, Bemge, Banerj", lembra Carazza. Com a privatização dos bancos estaduais durante os governos FHC, Banco do Brasil, BNDES, Caixa e Basa (Banco da Amazônia) continuaram sendo usados para fins não só de políticas públicas, mas também eleitorais, avalia o professor da Fundação Dom Cabral. "Na Caixa, há uma situação particular porque ela não tem ações negociadas no mercado, é um banco de varejo [isto é, que atende pessoas físicas] com capital 100% da União. Isso faz com que que as decisões que a União toma em relação à Caixa não possam ser questionadas por acionistas privados, como é o caso do Banco do Brasil [que tem ações em bolsa]", observa. "Então o governo opta por instrumentalizar a Caixa, utilizando ela como uma espécie de braço paralelo do governo e utilizando suas políticas de concessão de crédito para complementar a estratégia de aumentar gastos e transferências de renda em ano eleitoral." Em fevereiro, o INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) publicou uma portaria que passou a considerar o comprovante de votação como prova de vida para aposentados e pensionistas. Levantamento do jornal Valor Econômico mostrou que, no primeiro turno, a abstenção diminuiu em relação ao primeiro turno de 2018 para todas as faixas etárias entre 50 e 94 anos, ao passo que aumentou entre os mais jovens. Entre os eleitores de 70 a 74 anos, por exemplo, a abstenção chegou a diminuir 5,8 pontos percentuais, de 44,7% para 38,9%. "No total, a portaria do INSS (...) pode ter aumentado o comparecimento de quase 1 milhão de eleitores entre 60 anos e 94 anos", observou a jornalista Maria Cristina Fernandes, na reportagem do Valor. Não há ilegalidade na portaria do INSS, mas a mudança normativa foi usada como instrumento de campanha por Bolsonaro. Um vídeo da campanha intitulado "Prova de Vida" dizia: "Agora é lei. Nessas eleições, você que é aposentado ou pensionista pode fazer sua prova de vida direto das urnas. O governo federal acabou com o deslocamento desnecessário e tornou a sua vida mais fácil. Apenas o seu voto já é suficiente para garantir os benefícios do INSS, para você exercer seu direito à cidadania com menos burocracia. Pelo bem do Brasil, vote 22." O vídeo foi removido do YouTube por ordem do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) a pedido da coligação de Simone Tebet (MDB), mas apenas depois do primeiro turno. Além dos instrumentos econômicos e legais, a comunicação através das redes sociais foi novamente um trunfo da campanha bolsonarista. Além de redes como Facebook, Instagram e Twitter, seus apoiadores mantém uma ágil rede de comunicação via grupos de WhatsApp e Telegram e têm forte presença na plataforma de vídeos YouTube, seja através de canais de militantes ou de veículos jornalísticos alinhados ao governo, como a produtora de vídeos Brasil Paralelo e a rede Jovem Pan. A propagação de desinformação (fake news) através dessa rede bastante eficiente de comunicação esteve no centro do embate entre Bolsonaro e o TSE ao longo da campanha. "A estrutura digital da campanha de Bolsonaro não começa com a campanha, ela começa muito antes da primeira eleição dele", destaca Denilde Holzhacker, da ESPM. "Ele manteve isso — os grupos digitais e a lógica digital — durante todo seu mandato e isso se reflete em conseguir acionar essas bases para mobilização durante as eleições. Se pensarmos de forma clara, ele está em campanha desde que entrou no governo." A cientista política observa que essa rede serviu para alimentar o sentimento anti-Lula e anti-PT ao longo da campanha, além de trazer ao debate temas caros ao bolsonarismo e sobre os quais o PT tem dificuldade de resposta, principalmente relacionados à agenda de costumes, usada para se contrapor à agenda econômica onde Bolsonaro tinha maior dificuldade. "A eficiência dessa rede paralela de comunicação e articulação se manifesta não só na campanha pela reeleição de Bolsonaro, mas inclusive na eleição de representantes do bolsonarismo para cargos no Legislativo, como verificamos com inúmeras figuras ligadas a Bolsonaro sendo eleitas com votações muito expressivas esse ano", acrescenta Bruno Carazza. O apoio evangélico foi outro instrumento da campanha de Bolsonaro em 2018 que ganhou força renovada em 2022. Com templos em todo o Brasil, nas regiões e bairros mais afastados, uma rede de comunicação própria e líderes carismáticos, as igrejas evangélicas também serviram para dar capilaridade à mobilização bolsonarista. Casos de expulsão ou abandono de igrejas por fiéis que não quiseram seguir a orientação de voto em Bolsonaro se repetiram em todo o Brasil. "O apoio evangélico foi central à campanha de Bolsonaro", diz Holzhacker. "Ele conseguiu de fato se firmar como o candidato ligado a esse segmento ao fazer uma campanha muito atrelada aos valores e costumes. Ele teve um apoio maciço dos líderes religiosos, que fortaleceram essa estratégia, que levou para o nível religioso um grau de antagonismo e polarização que também tem sido questionado, com a igreja evangélica passando a ser associada à intolerância, à falta de respeito à opinião dos outros." Os evangélicos representavam 22% da população brasileira no Censo de 2010. Pesquisa Datafolha de 2020 estimou essa parcela da população em 31% naquele ano. A bancada evangélica elegeu entre 60 e 65 deputados em 2022, abaixo dos 84 parlamentares evangélicos eleitos em 2018, segundo cálculos do pesquisador Guilherme Galvão Lopes, da FGV (Fundação Getulio Vargas). Apesar da redução da bancada evangélica, a pauta religiosa não deve perder influência, segundo Galvão, já que foi incorporada pelo bolsonarismo, que ganhou força no Congresso. As bancadas de PL, PP e Republicanos, partidos do Centrão mais fortemente alinhados a Bolsonaro, elegeram juntas 187 deputados em 2022. "A bancada evangélica trabalha não só por uma pauta de valores e costumes que é cara a esse eleitorado, mas também defende os interesses particulares dessas igrejas, em termos de obtenção de benefícios tributários e outras vantagens", observa Carazza, da Fundação Dom Cabral. Por fim, o antipetismo foi novamente uma "arma" de campanha de Bolsonaro em 2022. Segundo pesquisa Atlas, publicada em 24 de outubro, enquanto 21% dos brasileiros se dizem petistas, 30% declaram ser antipetistas, acima da parcela de 27% que se dizem bolsonaristas. Assim, Bolsonaro buscou ao longo de toda a campanha mobilizar a rejeição ao PT e a Lula, relembrando os escândalos de corrupção durante os governos petistas e destacando as relações do PT com governos de esquerda de países como Venezuela, Argentina e Nicarágua. "Ao bater na tecla de temas sensíveis ligados à eventual vitória de Lula, Bolsonaro conseguiu reverter boa parte da rejeição que cresceu contra ele durante seu governo, sobretudo entre eleitores do Centro-Sul do país e de renda mais alta, que votaram em Bolsonaro em 2018, mas haviam se afastado dele por causa, por exemplo, da gestão da pandemia, do discurso contra a democracia e da gestão da economia", observa Carazza. "Parte expressiva desse eleitorado voltou para os braços do bolsonarismo, à medida em que a estratégia de campanha do presidente começa a bater nas teclas do antipetismo. Foi uma estratégia de disseminação do medo para resgatar esse eleitor que havia se afastado."
2022-10-30
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63419897
brasil
O que se sabe sobre ações da PRF que contrariaram proibição do TSE?
Contrariando determinação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a Polícia Rodoviária Federal (PRF) realizou centenas de abordagens a ônibus ao longo do domingo (30/10), dia de votação do segundo turno da eleição presidencial e de mais 12 disputas por governos estaduais. No dia anterior, o presidente do TSE, Alexandre de Moraes havia proibido qualquer operação relacionada a transportes públicos por entender que elas poderiam atrasar ou impedir eleitores de se deslocarem até as seções eleitorais. A decisão de Moraes previa ainda que o descumprimento da proibição "pode acarretar responsabilização criminal do diretor-geral da PRF, por desobediência e crime eleitoral, bem como dos respectivos executores da medida", informou nota do TSE. No fim da tarde de domingo, Moraes minimizou o impacto da ação da PRF no comparecimento dos eleitores às urnas, mas disse que será apurado se houve crime. Entenda melhor a seguir. A PRF ainda não divulgou informações oficiais sobre as operações. Segundo um balanço interno ao qual a BBC News Brasil teve acesso, pelo menos 619 ônibus haviam sido abordados no país até as 17 horas, horário de encerramento da votação. Fim do Matérias recomendadas A região Nordeste, onde o candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem proporcionalmente mais apoio, foi a mais afetada, com quase 300 abordagens. O número de abordagens realizadas neste domingo já é 108% superior às abordagens realizadas no dia 2 de outubro, dia do primeiro turno de votação, quando 297 ônibus foram parados pela PRF, segundo os documentos internos obtidos pela reportagem. De acordo com um policial rodovário federal ouvido pela BBC News Brasil, abordagens desse tipo costumam demorar de meia hora a uma hora, podemos se estender ainda mais se a equipe da PRF decidir consultar os antecedentes criminais de parte dos passageiros no sistema da polícia. As operações realizadas pela PRF estão sendo criticadas nas redes sociais como uma forma de tentar atrapalhar eleitores de Lula de comparecerem às urnas. A desconfiança em relação a atuação da PRF foi reforçada pelo fato de o diretor-geral da instituição, Silvinei Vasques, ter manifestado seu apoio à reeleição do presidente Jair Bolsonaro. No sábado (29/10) ele publicou no stories da sua conta do Instagram uma bandeira do Brasil com a mensagem: "Vote 22, Bolsonaro presidente". Em reação, a presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann solicitou a prisão do diretor-geral da PRF e dos policiais que atuaram nas operações, em mensagem compartilhada no Twitter. "ATENÇÃO-pedimos a prisão do Diretor Geral da PRF e dos Superintendentes Regionais q ñ estão cumprindo a decisão do TSE. Peço aos parlamentares da nossa coligação q se dirijam aos locais das operações em seus estados e deem ordem de prisão aos policiais,inclusive PMs como no RJ", tuitou Hoffmann. Além das operações da Polícia Rodoviária Federal, a presidente do PT faz referência aos relatos de operações da Polícia Militar do Rio de Janeiro, estado que é governado por um aliado de Bolsonaro, Cláudio Castro (PL). Já o deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP) solicitou neste domingo providências ao TSE contra as operações da PRF. Moraes, então, determinou a convocação com urgência de Silvinei Vasques para prestar esclarecimentos. Após encontro com o diretor da PRF, o presidente do TSE minimizou o impacto das operações no deslocamento dos eleitores, em entrevista a jornalistas na sede da Corte. Segundo Moraes, informações da PRF e dos Tribunais Regionais Eleitorais indicam que eleitores não deixaram de votar devido às abordagens nas estradas. "O prejuízo que causou aos eleitores foi eventual atraso durante aquela inspeção. Eu volto a dizer: nenhum ônibus voltou à origem, todos foram ao local de votação e votaram. Todos votaram", afirmou Moraes. Após essa avaliação, o presidente do TSE descartou estender o horário de votação para além das 17 horas. Apesar disso, o ministro determinou novamente, no encontro com Vasques, que todas as operações deveriam ser paradas. Ainda segundo Moraes, Vasques afirmou que as abordagens foram realizadas seguindo o código de trânsito. "Ou seja: um ônibus com pneu careca, com farol quebrado, sem condições de rodar era abordado, e era feita a autuação", disse Moraes. Apesar disso, o presidente do TSE informou que receberá por escrito o detalhamento das operações e que a Corte vai apurar se houve crime eleitoral. "Se houve desvio de finalidade e se houve abuso de poder, no âmbito do TSE isso é crime eleitoral e, no âmbito da Justiça comum, nós enviaremos para que sejam responsabilizados seja por ato de improbidade administrativa seja por crime comum", garantiu. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A PRF não respondeu o questionamento da BBC News Brasil sobre a quantidade de operações realizadas. Apesar das mais de 500 abordagens a ônibus realizadas, a organização afirmou por meio de nota que obedeceu a determinação do TSE. "No que se refere à notificação enviada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a PRF respondeu no prazo determinado encaminhando Ofício aos Superintendentes, determinando "o fiel cumprimento da aludida decisão", diz o comunicado da instituição. Por meio dessa nota, a PRF disse também que "reforçou o policiamento em todo o território nacional, a fim de garantir a segurança no trânsito nas rodovias federais". "As ações nestes últimos dias, em comparação com o mesmo período do primeiro turno, refletiram na redução de 43% de mortes e 72% de feridos em acidentes de trânsito, comprovando o aumento da segurança da circulação nos 73 mil quilômetros de rodovias federais", acrescenta a nota.
2022-10-30
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63451402
brasil
'Nunca vi nada desse tipo no Brasil desde a redemocratização', diz ex-presidente do TSE sobre operações da PRF
O ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Ayres Britto demonstrou preocupação com as notícias sobre as operações da Polícia Rodoviária Federal (PRF) realizadas neste domingo (30/10) durante o período de votação de segundo turno. Relatos de diversas partes do Brasil apontam que a PRF estaria parando ônibus com eleitores em direção aos locais de votação. A operação se concentraria especialmente no Nordeste, região onde o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) venceu o presidente Jair Bolsonaro (PL) no primeiro turno das eleições. "Nunca vi nada desse tipo no Brasil desde a redemocratização. Esse tipo de coação", disse o ex-presidente do TSE à BBC News Brasil. As operações da PRF em rodovias brasileiras começaram a chamar atenção nas primeiras horas deste domingo, quando ônibus e outros veículos que transportavam eleitores a locais de voto começaram a ser parados. Fim do Matérias recomendadas Diversos relatos apontaram que veículos lotados de eleitores do presidente Lula foram abordados por agentes da PRF em todo o país, mas especialmente na região Nordeste. As operações, no entanto, aconteceram após o TSE divulgar uma resolução proibindo operações da PRF relacionadas ao transporte público, gratuito ou não, de eleitores. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ayres Britto disse que se ficar comprovado que as ações da PRF tiveram o objetivo de prejudicar o acesso de eleitores às urnas, isso poderia comprometer a "legitimidade" do segundo turno. "É preciso ver em qual medida isso (as operações) afeta o processo eleitoral como um todo. O que se pode dizer com segurança jurídica é que a PRF é um órgão de Estado e não de governo. Ela está submetida ao princípio constitucional da impessoalidade. A depender das circunstâncias, isso pode comprometer a normalidade e legitimidade do processo eleitoral", disse o ex-ministro. Ayres Britto disse que, dependendo da gravidade das ações da PRF, o TSE poderia até adiar o horário de votação neste segundo turno, que vai até as 17h (horário de Brasília). Em entrevista coletiva realizada na tarde deste domingo, porém, o presidente do TSE, Alexandre de Moraes, descartou a possibilidade de prorrogar o horário de votação por conta das operações da PRF. Ele disse ter sido informado pelo diretor da PRF, Silvinei Marques, que os veículos abordados durante as operações foram liberados e que nenhum deles teria sido impedido de chegar aos locais de votação. "Isso, em alguns casos, retardou a chegada dos eleitores até a seção eleitoral. Mas, em nenhum caso, impediu os eleitores de chegarem às suas seções eleitorais", disse o ministro. Questionado sobre se o pleito poderia ser suspenso por conta do efeito das operações, Ayres Britto adotou moderação. "Não tenho os elementos todos do caso para fazer um juízo técnico sobre isso", afirmou. O número de operações da PRF chamou atenção já nas primeiras horas do período de votação. Segundo o jornal Folha de S.Paulo, até às 12h35 deste domingo, foram realizadas 514 fiscalizações. O número seria 70% do que o realizado no primeiro turno. Segundo o portal G1, foram contabilizadas 549 operações sendo que 272, o equivalente a 49,5% do total teria ocorrido no Nordeste. Neste domingo, Alexandre de Moraes intimou o diretor-geral da PRF a parar as operações e a prestar esclarecimentos sobre o assunto. Após o encontro, Alexandre de Moraes informou que tinha obtido as informações que havia solicitado e que não teria havido prejuízo aos eleitores abordados pela PRF. A BBC News Brasil enviou questionados à assessoria de imprensa da PRF. O órgão enviou uma nota oficial, mas não respondeu diretamente nenhuma das perguntas enviadas pela reportagem. Na nota, a PRF diz que respondeu às notificações enviadas pelo TSE e que as ações do órgão nos últimos dias teriam sido responsáveis pela redução de 43% no número de mortos e de 72% no número de feridos em rodovias federais na comparação com o período próximo ao primeiro turno.
2022-10-30
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63451019
brasil
Lula eleito: veja como foi a votação para presidente e governadores no 2º turno
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) derrotou o atual presidente Jair Bolsonaro (PL) no 2º turno das eleições. Com 99,01% das urnas contabilizadas, ele está matematicamente eleito, segundo o Tribunal Superior eleitoral (TSE). Entre os Estados, 12 também decidiram seus governadores: Alagoas, Amazonas, Bahia, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Paraíba, Pernambuco, Rondônia, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Sergipe e São Paulo. Neste interativo, você pode acompanhar a votação de cada um dos candidatos a presidente e governador em seu Estado e município.
2022-10-30
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63435332
brasil
10 momentos-chave que definiram campanhas de Lula e Bolsonaro no 2º turno
Os candidatos Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que tem liderado a maioria das pesquisas eleitorais, e Jair Bolsonaro (PL), que está atrás nas intenções de voto, se enfrentam em um segundo turno presidencial histórico amanhã, dia 30 de outubro. É a primeira vez que dois candidatos que já presidiram o Brasil disputam um segundo turno, e suas campanhas ao longo das últimas semanas foram repletas de momentos marcantes que podem ajudar a definir os resultados neste domingo. Confira, abaixo, 10 deles. As campanhas presidenciais foram lançadas oficialmente no fim de agosto, e embora tenham ocorrido bem antes da definição do segundo turno, trouxeram elementos importantes das candidaturas de Lula e Bolsonaro. "No lançamento da campanha do petista observamos um movimento um pouco saudosista, com imagens simbólicas que remeteram a 1989 [ano da primeira campanha presidencial de Lula]. Além disso, já houve um aceno de que eles queriam transmitir a ideia de uma frente ampla, trazendo Alckmin — um marcador inicial importante", avalia o cientista político Creomar de Souza, fundador da consultoria política Dharma. Na campanha de Bolsonaro, Souza avalia que o destaque do lançamento, que também era um indicativo do tom de como seria a candidatura do atual presidente, foi a abertura dos discursos por Michelle Bolsonaro, que foi se tornando uma figura importante. Fim do Matérias recomendadas "Para driblar um dos seus pontos fracos, a rejeição do eleitorado feminino, a campanha escalou a esposa, Michelle, para entrar em campo. Ela figurou com destaque na propaganda política e nas viagens. Participou de dezenas de cultos evangélicos, nos quais entoava o mantra da luta do 'bem' (o bolsonarismo) contra o 'mal' (o petismo). A estratégia parece ter ajudado a conter perdas nessa fatia do eleitorado", aponta a professora Maria do Socorro Braga, que leciona Ciência Política na UFSCar (Universidade Federal de São Carlos). Bolsonaro terminou o primeiro turno da disputa presidencial com mais votos do que as pesquisas previam. Enquanto institutos como Datafolha e Ipec mostravam que o atual presidente conquistaria em torno de 37% dos votos, ele chegou ao segundo turno com 43,2%. A "onda conservadora", na visão do professor, "pode, apesar da sua vocação antidemocrática, sobreviver democraticamente e ter força para influenciar a democracia, porque conta com uma grande quantidade de eleitores." Políticos do PL, partido de Bolsonaro, também conquistaram a maioria dos cargos no Congresso. O partido tem a maior bancada da Câmara dos Deputados, com crescimento dos 76 deputados atuais para 99 na próxima legislatura, e 14 cadeiras no Senado. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Lula conquistou aliados importantes, que foram além dos nomes previsíveis da esquerda. Entre os apoios recebidos estão o de ex-opositores: o sutil apoio declarado por Ciro Gomes (PDT) e o apoio vocal e até militante de Simone Tebet (MDB), que tem acompanhado o petista em comícios. "O candidato do PT conseguiu organizar em torno de si amplo apoio de segmentos sociais variados, incluindo classe de baixa renda, mulheres de vários campos profissionais, artistas, celebridades, parte da classe econômica, política e do capital financeiro", aponta a professora Maria do Socorro Braga. Na avaliação do cientista político Creomar de Souza, Lula rompeu uma barreira ideológica ao conseguir apoios de figuras consideradas da centro-direita. "Nomes como Simone Tebet e Fernando Henrique Cardoso, que não votaram no PT, isso é uma novidade no quadro político. Já os apoios que o Bolsonaro recebeu até agora são mais do mesmo. Não há ninguém que entrou no palanque que possamos dizer 'esse eu não esperava'." Em 14 de outubro, durante uma entrevista a um podcast, Bolsonaro disse que "pintou um clima" durante visita a um grupo de meninas venezuelanas no Distrito Federal. Na ocasião, ele associou as adolescentes à exploração sexual. "Tinha umas 15, 20 meninas, sábado de manhã, se arrumando, todas venezuelanas. Eu pergunto: meninas bonitinhas, 14, 15 anos, se arrumando no sábado para quê? Ganhar a vida." A fala teve grande repercussão. Como mostra uma reportagem da BBC publicada logo após o episódio, houve uma série de defesas por parte de apoiadores do presidente, que disseram que sua fala foi tirada de contexto e acusaram a esquerda de fake news. O presidente também pediu perdão caso as frases tenham sido "mal compreendidas" ou causado "algum tipo de constrangimento a nossas irmãs venezuelanas". A cientista política Camila Rocha, que é pesquisadora da nova direita no Brasil no Cebrap, disse à reportagem que o pedido de desculpas é algo inédito. "É uma estratégia de humanizar a figura dele porque quem faz o marketing do Bolsonaro percebeu que tem um impacto importante no sentido de afastar as pessoas do voto no Bolsonaro. Ainda que a gente saiba que seja algo meio que para inglês ver - porque ele nunca fez isso antes, vai fazer agora aos 45 do segundo tempo - mas pode dar algum resultado, sim. No sentido de alguém que até gostaria de votar no Bolsonaro, aí viu o 'pintou um clima', ficou assustado, mas daí fala 'tudo bem, ele pediu desculpa, ou fez alguma coisa a respeito'." No debate exibido pela Band no dia 16 de outubro, Bolsonaro e Lula dialogaram "cara a cara", sem a intervenção de terceiros por boa parte do tempo, pela primeira vez. Lula focou parte do discurso na má gestão do opositor na pandemia da covid-19 e na economia, enquanto Bolsonaro reforçou mensagens que vinculavam o rival à corrupção. Para a professora Maria do Socorro Braga, alguns debates prejudicaram Lula. "Não usou bem o seu tempo, principalmente no último debate antes do primeiro turno, exibido na Globo, e ainda buscou ingenuamente se colocar como colega de um político que defende dizimar o oponente. Como estadista que o Lula é, precisa ter outra postura e atitudes diante das agressões, acusações, pressões e ameaças de Bolsonaro. A depender dos temas, ele poderia ter sido mais propositivo, estratégico e até desequilibrar Bolsonaro", opina Braga. "O ano eleitoral de 2022 foi marcado pela aprovação, por parte da maioria bolsonarista no Congresso, de generosos benefícios sociais", lembra a professora Maria do Socorro Braga. Conhecidas informalmente como "pacote de bondades", essas medidas lançadas pelo governo federal para aumentar despesas sociais em pleno período eleitoral serviram para financiar empréstimos consignados, auxílios para famílias e trabalhadores como caminhoneiros e taxistas. As medidas foram turbinadas no último mês, com o anúncio de antecipação das últimas duas parcelas do auxílio pago a caminhoneiros e taxistas. Estima-se que o valor gasto deixe um rombo de R$ 68 bilhões aos cofres da União apenas em 2022. "Essas políticas atingiram um extenso contingente de pessoas vulneráveis socialmente, minando bases que no passado foram cortejadas por Lula." Em 20 de outubro, foi aprovada uma resolução que afirma que em casos de notícias falsas que já tenham sido consideradas irregulares pelos integrantes do tribunal, em decisão colegiada, a determinação de retirada do ar vale também para conteúdos idênticos replicados na internet. Isso significa que se uma fake news com conteúdo idêntico a uma já julgada pelo TSE começar a circular, o presidente do tribunal, Alexandre de Moraes, pode ordenar que ela saia do ar sem a necessidade de uma nova ação de partidos, do Ministério Público ou uma decisão judicial com um pedido. Em outro episódio recente, a Jovem Pan, empresa de rádio e televisão que vinha incluindo em sua programação diária críticas ao ex-presidente, foi proibida de usar temos como "ex-presidiário" e "ladrão" em referência a Lula. A Jovem Pan veiculou um editorial afirmando que "justamente aqueles que deveriam ser um dos pilares mais sólidos da defesa da democracia estão hoje atuando para enfraquecê-la e fazem isso por meio da relativização dos conceitos de liberdade de imprensa e de expressão, promovendo o cerceamento da livre circulação de conteúdos jornalísticos, ideias e opiniões". Em entrevista à BBC News Brasil, o advogado Alberto Rollo, especializado em direito eleitoral avalia as expressões proferidas pelos comentaristas da emissora. "Se algum dia eu fosse condenado por alguma coisa pela qual eu pudesse ser chamado de ladrão e o meu processo fosse anulado, estaria errado me chamar de ladrão empiricamente. Ladrão é aquele que foi condenado em transitado em julgado [quando não há mais possibilidade de recursos]." Na avaliação da professora Luciana Veiga, os apoiadores de Bolsonaro encararam a decisão como uma privação da liberdade. "Foi mais um ponto para o discurso de que a liberdade de expressão deles corre risco." Na última semana de campanha, o ex-deputado Roberto Jefferson, quando soube que seria preso pela Polícia Federal, disparou mais de 50 tiros e jogou três granadas contra servidores da PF, que ficaram feridos. "Jefferson é apoiador declarado de Bolsonaro e o resultado, previsível, foi um efeito colateral negativo na campanha bolsonarista, atingida pelo efeito dos disparos. Sobretudo porque as vítimas foram policiais, uma das bases que ajudaram a eleger Bolsonaro em 2018. Vale lembrar que essa atitude violenta foi em seguida a uma primeira, dirigida a uma mulher, a ministra Cármen Lúcia , público mais refratário ao Bolsonaro", diz Braga. A violência à ministra Carmem Lúcia citada por Braga foi proferida por Jefferson durante sua audiência de custódia, em 25 de outubro. Em depoimento a Airton Vieira, juiz instrutor do ministro Alexandre de Moraes no Supremo, Jefferson disse que Cármen Lúcia age "pior que prostitutas". "Essa fala contra uma ministra, mulher e sexagenária, foi ruim para Bolsonaro na questão de estratégia de gênero. Como reflexo do que aconteceu com Jefferson, agora o presidente se manifesta contra o antigo aliado, e nas propagandas políticas, fala da segurança, mas sem falar da questão do armamento", afirma Luciana Veiga. A religião foi foco importante da disputa no último mês. Notícias falsas de que Lula fecharia igrejas foram espalhadas, às quais o petista respondeu se encontrando com padres e sacerdotes e escrevendo uma carta aberta aos evangélicos. Enquanto isso, Bolsonaro se destacou recebendo o apoio de influenciadores evangélicos e mantendo bom índice de apoio entre as comunidades cristãs. O "acirramento do ordenamento social no campo religioso", como caracteriza a cientista política Luciana Veiga, foi uma estratégia que trouxe bons resultados para Bolsonaro. "Ele buscou alinhar principalmente as mulheres cristãs, pobres, do país inteiro, mas sobretudo do Nordeste, pela identidade religiosa. É um grupo que poderia, por identidade de classe e gênero, estar tendendo a votar no Lula, mas Michelle e Bolsonaro buscaram trazer essas mulheres para dentro." Um episódio, no entanto, marcou negativamente a campanha do presidente. No dia 12 de outubro, durante as celebrações em homenagem a Nossa Senhora de Aparecida, apoiadores de Bolsonaro proferiram ofensas e chegaram a vaiar um sacerdote que discursava a favor do combate à fome na Basílica. Na reta final do segundo turno das eleições presidenciais, o comando da campanha à reeleição de Bolsonaro recorreu ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) alegando que a sua chapa teria sido alvo de "fraude eleitoral". A suposta fraude teria ocorrido porque rádios das regiões Norte e Nordeste teriam deixado de veicular milhares de inserções (pequenas peças publicitárias) da campanha do presidente, prejudicando o candidato à reeleição. A Justiça Eleitoral, no entanto, negou o pedido de investigação feito pela campanha. Em decisão divulgada na noite desta quarta-feira, o presidente do TSE, Alexandre de Moraes, afirmou que as supostas irregularidades "são inconsistentes" e carecem de "base documental crível." "Bolsonaro parte para a narrativa de que há um desvio de conduta do Tribunal da Justiça Eleitoral na condução das inserções de rádio e tenta jogar isso na 'conta' de Lula, em uma tentativa de dizer, a poucos dias da decisão, que as eleições não são limpas", diz Creomar de Souza. Com isso, diz Luciana Veiga, Bolsonaro mune seus eleitores com informação que fazem com que eles ganhem força nas redes sociais, onde tinham perdido força após o episódio de Roberto Jefferson. "Além disso, criam mais um argumento para, caso necessário, gerar questionamento e usar o discurso de fraude. Na sexta-feira (28), no entanto, o ministro das Comunicações, Fábio Faria, deu entrevista à Folha de S.Paulo afirmando que se arrependia de ter levantado a questão das inserções e admitindo que, se houve a falta da veiculação, a culpa seria do próprio partido do presidente, o PL.
2022-10-29
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8 momentos que marcaram debate da Globo entre Lula e Bolsonaro
A menos de 48 horas da abertura das urnas para o segundo turno da eleição presidencial, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro (PL) se enfrentaram no último debate da campanha, realizado na noite de sexta-feira (28) pela Rede Globo. Atrás nas pesquisas, Bolsonaro buscou mais confrontar Lula em temas como corrupção, programas sociais e assuntos da chamada "pauta de costumes". Lula, por sua vez, evitou ataques mais frontais na maior parte do tempo, mantendo suas falas em torno de relembrar e defender os feitos de seus governos entre 2002 e 2010. Apesar da proximidade com a votação e da polarização que toma conta do país, o debate foi, em geral, um dos menos tensos de toda a campanha eleitoral. A seguir, alguns dos momentos que marcaram o encontro dos candidatos na Rede Globo: Em um dos embates mais agressivos do primeiro bloco, Bolsonaro acusou Lula de ser "bandido" e voltou a atacar, inclusive, o mediador do debate, William Bonner. "Você dizer que foi absolvido? Só se for pelo Bonner, que disse que você foi absolvido. Você é um bandido, Lula. Lula cadê o Palocci, cadê o Zé Dirceu?" Fim do Matérias recomendadas Lula, então, retorquiu mencionando o ex-deputado federal Roberto Jefferson, aliado de Bolsonaro e preso no início da semana após ter atirado com um fuzil e atirado granadas contra a Polícia Federal. "Ele acabou de tentar esconder o Roberto Jefferson, o pistoleiro dele", disse Lula. Bolsonaro respondeu: "Roberto Jefferson: teu amigo, Lula". "O Roberto Jefferson foi o delator. O Roberto Jefferson explodiu o seu governo, o mensalão." Ao final do bloco, as afirmações de Bolsonaro provocaram um curioso "direito de resposta informal" de Bonner: "Eu de fato disse na entrevista do JN que o candidato Lula não deve nada à Justiça", afirmou, reforçando que "como jornalista, eu não digo coisas da minha cabeça", lembrando que os processos contra Lula foram anulados por decisões do Supremo Tribunal Federal. Dizendo que Bolsonaro "se autoexilou" e provocou um isolamento do Brasil no mundo, Lula puxou o tema da política externa: "O que você vai fazer para reinserir o Brasil no mundo? Ninguém quer conversar com você". Bolsonaro respondeu: "Temos três vezes mais acordos no meu governo em quatro anos do que o seu em oito". Ainda no primeiro bloco, Lula e Bolsonaro protagonizaram um dos momentos que mais repercutiram nas redes sociais, apesar da brevidade. Ao questionar Lula novamente sobre programas sociais, Bolsonaro pediu que o rival ficasse próximo para responder: "Fica aqui, rapaz. Fica aqui, Luiz Inácio". Lula respondeu imediatamente: "Não quero ficar perto de você". O diálogo trouxe à lembrança outro momento, este do debate da Globo ainda no primeiro turno, quando Bolsonaro pousou a mão no ombro de Lula durante uma resposta. No segundo bloco, que impôs aos candidatos escolha de um tema disponível em uma lista, Lula escolheu o tema combate à pobreza e afirmou que seu governo foi auspicioso: "O povo brasileiro tinha dinheiro para comida, para trocar de fogão, de máquina de lavar roupa, para viajar para dentro e fora do Brasil". E questionou "por que o povo ficou tão miserável depois que Bolsonaro assumiu a Presidência", lembrando reportagem da Folha de S.Paulo sobre 33 milhões de famintos no país. Em resposta, Bolsonaro ironizou Lula por usar o jornal como fonte: "Pelo amor de Deus, Lula, Folha de S.Paulo?" E acrescentou: "No nosso governo, quem estiver passando necessidade procura, bate na porta de alguém que esse alguém te ajuda a cadastrar (no Auxílio Brasil)". Levando o debate para a chamada "pauta de costumes", Lula relembrou um discurso de Bolsonaro na tribuna da Câmara, quando ainda era deputado federal, sugerindo a distribuição de "pílulas de aborto". Bolsonaro diz que fala foi há 30 anos atrás e que se referia à "pílula do dia seguinte", e não a abortiva. "Abortiva é Cytotec", disse o candidato, chamando Lula de "abortista convicto", ao que Lula respondeu que é contra o aborto. Em outro momento inusitado, os candidatos conduziram o debate a uma discussão sobre uma compra do medicamento Viagra pelas Forças Armadas durante o governo Bolsonaro. "Explica por quê, se o povo não tem nem fraldão geriátrico para as pessoas mais velhas de idade, que você retirou".O presidente respondeu que "o Viagra é usado para vários tratamentos". "Então, não vem com essa historinha de comprar Viagra, que é usado para tratamento de próstata." Lula provocou: "E só as Forças Armadas têm direito? Por que não distribui de graça pro povo?" Como ocorreu em debates anteriores, Bolsonaro utilizou diversos momentos para mencionar casos de corrupção da época dos governos do PT. Citando os escândalos do mensalão e o petrolão, o presidente afirmou que em seu governo não há corrupção. "Os meus ministros saíram para serem 2 possíveis governadores no segundo turno, 6 senadores e alguns deputados", afirmou. "Os seus ministros quando deixaram o governo foram pra cadeia. Eu posso até falar palavrão de vez em quando, me desculpo, eu falo palavrão, mas não sou ladrão." Lula respondeu mencionando decretos de sigilo impostos pelo governo Bolsonaro a diversas investigações e documentos. "Queria que vocês atentassem: o cidadão transforma em sigilo de 100 anos, 50, 20. Na hora que levantar o tapete da sala você vai ver a podridão" Lula acusou Bolsonaro de promover uma política favorável ao desmatamento da Amazônia. Bolsonaro rebateu que Lula desmatou mais que ele. "Você desmatou mais que o dobro nos seus 4 anos do que do lado de cá." O candidato petista retorquiu: "Ainda bem que trouxe Marina Silva e foi minha ministra, e que ganhou mais respeitabilidade sobre clima, o candidato sabe que nós reduzimos o desmate em mais de 80% enquanto a agricultura crescia".
2022-10-29
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brasil
'Todos de aviso prévio': chefes ameaçam funcionários por voto nas eleições
Uma reunião marcada às pressas deixa os funcionários de uma empresa em São Paulo em alerta. O presidente e diretores ordenam que os mais de 150 funcionários pausem as atividades. O motivo: "conscientizar os colaboradores sobre o voto" nas eleições presidenciais, segundo o relato dado por uma das funcionárias à BBC News Brasil. De acordo com Lilian* (nome fictício), que pediu para não ser identificada por medo de ser demitida, a cúpula da empresa passou duas horas falando que há apenas uma opção para votar nestas eleições — o atual presidente, Jair Bolsonaro (PL) — e que "a outra representa um candidato ladrão". "Foram duas horas de reunião cheias de mentiras e pressão psicológica, dizendo que o futuro da empresa dependia da reeleição do presidente. Um absurdo! O pior é sermos obrigados a engolir calados um desrespeito desse, e saber que muita gente foi manipulada com essa atitude." "Esta é uma forma de manifestar a minha indignação com as condutas da empresa em que trabalho e outras tantas, usando a influência hierárquica para manipular o voto dos funcionários", disse, referindo-se ao desabafo à reportagem. A BBC News Brasil ouviu diversas pessoas que afirmaram ter sido coagidas dentro de suas empresas a votarem em um candidato apontado pelos chefes. Entre as ameaças mais relatadas pelos funcionários estão demissões, caso o candidato apoiado perca. Fim do Matérias recomendadas Segundo dados do Ministério Público do Trabalho (MPT), até a noite de quinta-feira (27/10) foram registradas 1.965 denúncias envolvendo 1.525 empresas durante a campanha para o segundo turno em todo o país. Esse dado é nove vezes maior que o registrado em 2018: naquele ano, foram 212 denúncias envolvendo 98 empresas. A BBC News Brasil questionou quantas dessas denúncias foram pró-Lula e pró-Bolsonaro. O MPT respondeu que "o levantamento não possui essa segmentação". Alice*, que trabalha em São Paulo, disse que é frequentemente constrangida e até coagida pela chefe para votar em Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Em alguns momentos, ela relata que precisa pausar o trabalho para ouvir os argumentos para votar no candidato petista. "Eu vou votar nulo, mas minha chefe usa palavras como 'burro' e 'sem caráter' ao falar sobre quem vota no político adversário. Inclusive, há diferença de tratamento entre quem declara ser pró-Lula e quem não é. Eu não quero nenhum dos dois. Escolhi outro candidato no primeiro turno e ele não chegou ao segundo", afirmou. Alice conta que o constante assédio moral que recebe no trabalho por conta das eleições faz com que ela se sinta desrespeitada e desanimada, não apenas no ambiente de trabalho, mas também na vida pessoal. Ela disse que é frequentemente questionada em quem vai votar, numa clara intenção de "virar voto". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Eu me sinto pressionada. No começo, eu levava na brincadeira e entendia como a pessoa pensa e sente. Mas o clima da eleição foi ficando pesado, tenso. Durante as videochamadas, os outros funcionários têm uma visão pró-Lula e comentam: 'Não entendo esse povo que vota nesse candidato'", diz a funcionária. Ela conta que essas constantes pressões prejudicam não apenas o desempenho no ambiente de trabalho, mas também o clima de comemoração de seu aniversário, celebrado neste mês. "Está sendo um período péssimo para mim. Fujo do pessoal na hora do almoço porque o assunto é sempre política. Minha chefe é insistente e fica buscando artimanhas para virar meu voto. Diz que está nas minhas mãos e que não posso deixar Bolsonaro vencer", conta. No ponto de vista de Alice, qualquer um dos candidatos que vencer, "vai ser um inferno, com violência para todos os lados". E relata que o desejo dela seria a eleição de uma terceira via. "Minha chefe diz que, se ela estiver incomodando, eu posso falar. Mas eu não farei isso porque posso ficar com a pecha de acreditar em valores opostos ao dela. Quando eu tento me explicar, sinto que não sou ouvida porque o ambiente está tão polarizado que as pessoas não se escutam. Eu vejo baixaria e fake news dos dois lados. Não queria nenhum desses dois candidatos. Na minha opinião, não temos candidato". Beatriz*, uma funcionária de uma empresa localizada no interior de São Paulo, contou à reportagem, na condição de anonimato, que no primeiro turno das eleições deste ano seu chefe levou todos os funcionários que trabalhavam no escritório naquele dia de carro para votar. Segundo ela, ele aproveitou o trajeto entre o posto de trabalho e o colégio eleitoral para convencê-los a votar em Jair Bolsonaro (PL). "Ele disse que, se o Lula ganhar essas eleições, todos nós vamos entrar de aviso prévio. Falou: 'Vou vender a empresa e, para mim, deu. Não vou ter condições de manter funcionário e nem empresa com o governo do Lula'", relata. Segundo ela, o chefe disse que votou em Lula quando era assalariado, mas que hoje é melhor anular do que votar no candidato petista. Questionada pelo chefe se sabia em quem votaria, ela respondeu que decidiria no momento em que chegasse na urna eletrônica. "Ele respondeu: 'Mas está em dúvida entre quem?'. E eu, com medo de revelar meu voto, pois meu candidato não é o que ele queria, disse que estava entre Ciro Gomes e Simone Tebet. Ele então falou: 'Não faz isso. Seria jogar voto fora porque esses dois não têm chance de ganhar'", contou Beatriz, que ainda trabalha na mesma empresa. Para fugir do assunto no trajeto até o local de votação, ela disse ter colocado o celular para despertar e fingido ter recebido uma ligação. "Na volta da votação, meu chefe só disse: 'Bom espero que tenha feito a escolha certa para o futuro do seu emprego e de muitos outros.'" Na maior parte dos casos, é firmado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), um acordo extrajudicial no qual o investigado se compromete a não cometer novamente a prática ilegal. Em outras situações, quando o investigado não quer formalizar um acordo, o caso vai parar na Justiça por meio de ação civil pública. Entre as punições aplicadas a essas empresas há, além da obrigação de uma retratação de modo público ou somente para os funcionários (a depender da forma como ocorreu o assédio), e o MPT também pode pedir o pagamento de multa e indenização aos empregados ou à sociedade. Essas denúncias podem envolver, além do empregador, políticos que tenham participado da situação de assédio. * A reportagem usou nomes fictícios para preservar a identidade dos entrevistados** Colaborou Vinicius Lemos, da BBC News Brasil em São Paulo
2022-10-28
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brasil
O que eleitores mais querem saber sobre Lula e Bolsonaro 48 horas antes da votação
Em meio à corrida presidencial polarizada de 2022, muitos brasileiros têm usado a internet em busca de respostas. Mas nem sempre essas dúvidas são facilmente sanadas — especialistas alertam para a torrente de notícias falsas espalhadas por diferentes plataformas. Por isso, a 48 horas do pleito, a BBC News Brasil elencou as principais dúvidas dos eleitores sobre os dois candidatos à presidência — Jair Bolsonaro (PL) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) — e buscou as respostas. A maior parte das pesquisas mais recentes sobre Jair Bolsonaro e Lula gira em torno do ex-deputado Roberto Jefferson (PTB). Aliado do atual presidente, ele foi o delator do escândalo do "mensalão", um esquema de compra de apoio político ocorrido durante o primeiro mandato presidencial do petista. Fim do Matérias recomendadas Presidente de honra do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), o ex-deputado Roberto Jefferson é aliado do presidente Jair Bolsonaro. Ele estava em sua casa no interior do Estado do Rio de Janeiro e teve sua prisão domiciliar revogada nesta semana pelo ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) e presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), Alexandre de Moraes, por violar os termos de seu benefício. Jefferson resistiu inicialmente à prisão, disparando contra policiais da PF (Polícia Federal) e atirando granadas contra eles. Dois agentes ficaram feridos. Ele foi preso em flagrante. Nesta quinta-feira (27/10), Moraes converteu a prisão em flagrante de Jefferson em preventiva (por tempo indeterminado). Bolsonaro tentou desvencilhar sua imagem da de Jefferson, chamou-o de "bandido", apesar de criticar sua prisão que, segundo ele, carece de "inquérito" e "atuação do MP (Ministério Público)". Disse também que não havia fotos dos dois juntos, o que não é verdade. "Não tem uma foto dele comigo, nada", disse. Mas imagens dos dois juntos estão registradas e foram divulgadas pelo PTB. Jefferson foi o delator do chamado "mensalão", um esquema de compra de apoio político ocorrido no primeiro mandato de Lula como presidente — parlamentares recebiam dinheiro em troca de votarem a favor dos projetos do governo. Seu partido, o PTB, fazia parte da base aliada. Durante sua carreira política, apresentou cerca de 170 projetos de lei, mas apenas dois foram aprovados — um que estende o benefício de isenção do Imposto sobre Produto Industrializado (IPI) para produtos de informática e outro que autoriza o uso da chamada a fosfoetanolamina sintética, a "pílula do câncer", cuja eficácia não foi comprovada; o STF acabou barrando o uso do medicamento. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O jogador de futebol Neymar apoia abertamente Bolsonaro. Em entrevista ao podcast Flow, em 18 de outubro, Lula comentou o apoio do craque a seu rival, afirmando que Neymar deve estar "com medo" de que um suposto perdão do chefe do Executivo à sua dívida com a Receita Federal seja descoberto. "Não fico p..., Neymar tem o direito de escolher quem ele quiser para ser presidente", disse Lula. "Acho que ele está com medo de que, se eu ganhar as eleições, eu vá saber o que o Bolsonaro perdoou da dívida do Imposto de Renda dele. Acho que é isso que ele está com medo de mim", acrescentou. O petista disse considerar "óbvio" que tenha havido um acordo entre Bolsonaro e o pai do jogador, o empresário Neymar da Silva Santos. "Obviamente o Bolsonaro fez um acordo com o pai dele. E ele agora está com problema com o imposto de renda na Espanha. Mas isso não é um problema do presidente, é da Receita Federal, e não meu", afirmou. Por meio de um comunicado, a NR Sports, empresa da família de Neymar Jr. que gerencia a carreira do jogador, classificou afirmação como "falaciosa" e "leviana". Também disse que Lula deverá provar o que disse "no palco adequado". "A NR Sports, seus Diretores e a família do Sr. Neymar da Silva Santos, repudiam a afirmação falaciosa que um dos candidatos à Presidência da República fez de forma leviana, ao acusá-los de práticas de condutas ilícitas supostamente praticadas em conjunto com o atual presidente Jair Messias Bolsonaro", escreveu a empresa no seu perfil no Instagram. "Para encerrar definitivamente o assunto comunicamos que a informação é falsa. Os responsáveis deverão provar o contrário no palco adequado." "Em um momento importante que o país está vivendo não se espera de um candidato à presidência da república falas como essa, que ultrapassam os limites do razoável da liberdade de expressão", concluiu. Em seu plano de governo, Bolsonaro diz pretender "aprimorar o sistema previdenciário, garantindo sustentabilidade financeira e justiça social". Em vídeo divulgado por sua campanha, ele disse recentemente que o salário mínimo do Brasil irá aumentar acima da inflação para 2023, além de prever aumento real para aposentados, pensionistas e servidores públicos. "Consertamos a economia do Brasil, estamos arrecadando muito, a partir do ano que vem, a nossa garantia é dar a todos os aposentados e pensionistas um reajuste acima da inflação, a mesma coisa no tocante aos servidores públicos. O valor do salário mínimo também será acima da inflação", afirmou. Sobre aposentadoria, Bolsonaro foi alvo de fake news. Um vídeo que circula nas redes sociais foi editado para fazer crer que ele cortaria salários de servidores, pensões e aposentadorias em 25% e que essa seria uma proposta do ministro da Economia, Paulo Guedes. Já outro vídeo, manipulado para distorcer sua fala, faz crer que Bolsonaro confiscaria a aposentadoria dos brasileiros e nomearia seu aliado, o ex-presidente Fernando Collor de Mello, como ministro da Previdência. Jair Bolsonaro é aposentado pelo Exército Brasileiro. Ele iniciou sua carreira no Exército em 1973 e entrou para a reserva remunerada em 1989. Isso aconteceu porque, em 1988, ele foi eleito vereador na cidade do Rio de Janeiro, e assumiu o mandato em 1989. Essa reserva é diferente da aposentadoria, porque o militar ainda pode ser convocado para as atividades, se for necessário. Mas, mesmo que queira seguir na ativa, o militar é obrigado ir para a reserva, de modo a evitar a influência de interesses político-partidários. Em 2015, quando completou 60 anos, Bolsonaro atingiu a idade limite de permanência na reserva remunerada do Exército, passando, portanto, a ser capitão "reformado". Também é falso que ele tenha sido aposentado ou expulso do Exército com laudo de "insanidade mental", como alegam algumas publicações nas redes sociais. Lula não compareceu aos debates do 2º turno que aconteceram no SBT (21 de outubro) e na Record (23 de outubro). A campanha do petista optou por enfrentamentos contra Bolsonaro apenas na Band (16 de outubro) e na Globo (28 de outubro). No primeiro turno, Lula já havia optado por não ir ao debate no SBT; já a Record não organizou encontro com os candidatos. Na ocasião, o petista alegou "incompatibilidade de agendas". Lula já falava que não deveria comparecer a todos os debates, mesmo antes do início da corrida presidencial. Sua campanha argumenta que tais eventos demandam muito tempo de preparação. Já Bolsonaro disse que o rival "brochou" por não ir ao debate no SBT e o chamou de "fujão" por não ter marcado presença no encontro realizado pela Record. Bolsonaro indicou dois ministros para o STF (Supremo Tribunal Federal), instância máxima do Poder Judiciário: André Mendonça e Kassio Nunes Marques. André Mendonça foi o mais recentemente indicado pelo presidente, em 2021, e ocupou a vaga que era de Marco Aurélio Mello. Ex-advogado-geral da União (AGU) e pastor presbiteriano, foi descrito por Bolsonaro como "terrivelmente evangélico". Já Kassio Nunes Marques foi indicado pelo presidente em 2020 e ocupou a vaga que era de Celso de Mello. Nunes Marques era desembargador do Tribunal Regional Federal da 1ª região. Piauiense de Teresina, atuou como advogado por 15 anos. Ele é o único nordestino entre os 11 ministros. Lula nasceu em Caetés, no interior do Estado de Pernambuco, em 27 de outubro de 1945. Ele tem 77 anos, 10 a mais do que Bolsonaro. Ele foi empossado como presidente em 1º de janeiro de 2003. Governou o Brasil por dois mandatos e saiu do poder em 1º de janeiro de 2011, quando passou a faixa presidencial à sua sucessora, a ex-presidente Dilma Rousseff, que havia sido ministra da Casa Civil e de Minas e Energia de seu governo. Bolsonaro foi vítima de um ataque durante um ato de campanha em Juiz de Foras (MG) em 2018. Ele recebeu uma facada e precisou passar por cirurgia. O autor do ataque foi identificado como Adélio Bispo de Oliveira. Ele segue preso em uma penitenciária federal em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. Segundo um laudo pericial, Bispo "permanece com diagnóstico clínico de transtorno delirante persistente" e teria "alucinações de cunho religioso, persecutório e político que se manifestam frequentemente". Um delegado que cuidou do caso concluiu por duas vezes que ele agiu sozinho e que não houve mandante no atentado contra Bolsonaro. Em junho de 2020, com base nas conclusões da segunda investigação da Polícia Federal sobre o episódio, o Ministério Público Federal (MPF) em Minas Gerais se manifestou pelo arquivamento do inquérito policial que apurava o possível envolvimento de terceiros no crime. Apesar disso, Bolsonaro e aliados no governo alegam que o atentado foi orquestrado.
2022-10-28
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Em carta a Biden, 31 congressistas dizem que EUA devem se preparar caso Bolsonaro rejeite resultado
A menos de 48 horas do início da eleição presidencial no Brasil, 31 congressistas dos Estados Unidos enviaram, na manhã desta sexta-feira (28/10) uma carta ao presidente americano Joe Biden em que expressam "preocupação crescente" em relação à disputa eleitoral no Brasil e recomendam que a Casa Branca reconheça o resultado da eleição assim que anunciado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), na noite do próximo domingo (30/10). Na carta, os congressistas — independentes ou democratas — dizem que Luiz Inácio Lula da Silva (PT) terminou o primeiro turno na frente de Jair Bolsonaro (PL), que atrelou o reconhecimento dos resultados a um relatório das Forças Armadas. Depois de pronto — e sem encontrar indícios de fraude — o relatório dos militares não foi divulgado. O Ministério da Defesa afirmou que pretende tornar público o material apenas após o segundo turno eleitoral. Além dos militares, o Tribunal de Contas da União (TCU) e observadores internacionais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA), não encontraram qualquer indício de irregularidades na votação e apuração dos votos no primeiro turno. "Dada a recusa do presidente Bolsonaro em admitir que respeitará o resultado da eleição e, na ausência de denúncias fundamentadas de irregularidades por observadores eleitorais independentes credíveis, os Estados Unidos e a comunidade internacional devem estar preparados para reconhecer prontamente os resultados anunciados pelo autoridade em 30 de outubro", escreveram os parlamentares a Biden, às vésperas do pleito no Brasil. Entre os signatários da carta estão estrelas da política americana, como os presidentes das Comissões de Relações Exteriores do Senado, Bob Menendez, e da Câmara, Gregory Meeks. Fim do Matérias recomendadas Bolsonaro tem insistido na possibilidade de fraude — mesmo sem evidências — e agora afirma que nem mesmo os militares podem certificar a lisura do processo. "O que nos traz certa confiança é que as Forças Armadas foram convidadas a integrar uma comissão de transparência eleitoral. E elas têm feito um papel atuante e muito bom neste sentido", disse, há alguns dias, quando questionado sobre a confiabilidade do pleito. "Contudo, eles me dizem que é impossível dar um selo de credibilidade, tendo em vista ainda as muitas vulnerabilidades que o sistema apresenta", completou. Bolsonaro venceu todas as eleições que disputou com às urnas eletrônicas ao longo de sua carreira política de mais de 3 décadas. Embora já tenha dito que, caso perdesse a disputa, "não teria mais nada para fazer na Terra" e que passaria a faixa presidencial, Bolsonaro tem sistematicamente atacado o TSE, que organiza as eleições, e lançado dúvida sobre as urnas. Ele já disse, sem apresentar qualquer prova, que ganhou no primeiro turno de 2018. As reiteradas afirmações de Bolsonaro em desafio à eleição acenderam alertas entre as autoridades dos EUA. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na mensagem ao presidente americano, os congressistas citam ainda que Bolsonaro estaria atuando de modo semelhante a Donald Trump, que contestou a vitória de Biden em 2020 com alegações jamais comprovadas. As afirmações do republicano, que não admitiu a derrota nem compareceu à posse de seu sucessor, desaguaram na invasão do Congresso dos EUA por trumpistas durante a certificação da vitória de Biden. O episódio resultou em cinco mortes e em uma investigação no Congresso sobre os atos de Trump e seus aliados no episódio. "Há fortes temores de que, se Bolsonaro perder, ele vá contestar os resultados do segundo turno, quando a diferença entre Bolsonaro e Lula pode vir a ser reduzida. Segundo aliados de Bolsonaro, ele já está supostamente trabalhando em um 'projeto de resistência ao estilo Donald Trump' no caso de perder a eleição. Se esses temores se confirmarem e Bolsonaro rejeitar ativamente os resultados das eleições, devemos estar preparados para nos posicionar inequivocamente em defesa da democracia no Brasil", escrevem na mensagem. O texto menciona ainda a alta da violência política no país no período eleitoral e diz que será papel dos americanos denunciar qualquer "incitação à violência política"no dia da eleição ou depois disso. A BBC News Brasil apurou que a Casa Branca e o Departamento de Estado monitorarão de perto o decorrer da votação e o anúncio do vencedor ainda no domingo. Poucos dias antes do primeiro turno, por iniciativa do senador Bernie Sanders, o Senado dos EUA aprovou uma recomendação para que o governo dos EUA rompesse relações com o Brasil em caso de tentativa de ruptura democrática. A manifestação às vésperas do segundo turno se soma a uma série de mensagens enviadas pela administração Biden, direta ou indiretamente, ao governo Bolsonaro, expressando preocupação com a saúde da democracia no Brasil e desencorajando eventuais comportamentos golpistas dos atores políticos e militares do país. A defesa da democracia é uma das agendas prioritárias da gestão Biden, que chegou a realizar um encontro com quase uma centena de países - incluindo o Brasil - para debater e cobrar compromissos em relação à promoção dos princípios democrático.
2022-10-28
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63430576
brasil
Lula pede 'cheque em branco'? As dúvidas sobre o programa do PT
Tendo recebido a maior votação entre os candidatos à Presidência no primeiro turno, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pode chegar, no próximo domingo (30/10), a um terceiro mandato presidencial, se conseguir manter sua vantagem e vencer o presidente Jair Bolsonaro (PL). Mas apesar de ser uma das figuras políticas mais conhecidas da história recente do país, Lula vem sendo criticado ao longo da campanha pela falta de detalhamento de suas propostas em áreas relevantes como a política econômica que ele poderá adotar em um eventual novo mandato. Às vésperas das eleições, o questionamento permanece: Lula está pedindo um "cheque em branco" aos eleitores? Cientistas políticos, economistas e políticos ouvidos pela BBC News Brasil divergem sobre a resposta a essa pergunta. De um lado, há os que alegam que Lula não está pedindo um "cheque em branco" do povo porque parte do seu eleitorado já tem um conjunto de ideias fixas sobre sua agenda econômica e espera que o petista repita o que fez em seus dois mandatos anteriores. Outros, porém, avaliam que o fato de Lula não ter detalhado suas propostas mostraria que ele e o partido não teriam "aprendido" com os erros do passado e que isso pode dificultar o processo de cobrança por desempenho, caso ele seja eleito. Eles alegam que ao fazer promessas sem detalhar como vai alcançar os objetivos, o cheque pode estar na verdade "sem fundo", quando não há como pagá-lo. Fim do Matérias recomendadas A expressão "cheque em branco" vem sendo utilizada ao longo da corrida eleitoral por críticos do PT. No jargão popular, dar um "cheque em branco" significa dar um voto de extrema confiança em alguém, uma vez que o portador pode escrever o valor que quiser no cheque. Na campanha do primeiro turno, a senadora e candidata à Presidência Simone Tebet (MDB) usou a expressão ao se referir a Lula em uma postagem em suas redes sociais. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "O ex-presidente Lula defende o voto útil, mas foge covardemente do debate, não apresenta propostas. Quer um cheque em branco do Brasil", disse Simone. Após o primeiro turno, Tebet declarou apoio a Lula e passou a viajar pelo país fazendo campanha pelo ex-presidente. Quem também usou a expressão foi o candidato do Novo à Presidência, Felipe D`Ávila. Em uma série de postagens em suas redes sociais, ele criticou a falta de detalhamento das propostas de Lula. "'Não sou o Bolsonaro' não é política econômica. Não gera emprego nem renda [...] Aqui não tem cheque em branco nem estelionato eleitoral", disse. D'Ávila, ao contrário de Tebet, continua a se posicionar contra Lula no segundo turno. A principal fonte de críticas girou em torno da suposta falta de detalhamento das propostas de Lula. O documento intitulado "Diretrizes para o programa de reconstrução e transformação do Brasil" tem 21 páginas, 121 pontos e foi registrado pelo partido junto à Justiça Eleitoral. Nele, a coligação de Lula se compromete, por exemplo, a acelerar a atividade econômica e retomar a geração de empregos. "Temos compromisso com o desenvolvimento econômico sustentável com estabilidade, para superar a crise e conter a inflação, assegurando o crescimento e a competitividade, o investimento produtivo, num ambiente de justiça tributária e transparência na definição e execução dos orçamentos públicos, de forma a garantir a necessária ampliação de políticas públicas e investimentos fundamentais para a retomada do crescimento econômico", diz um trecho do documento. Na quinta-feira (27/10), o PT divulgou uma carta com 13 pontos assinadas pelo ex-presidente Lula em que fornece mais informações sobre suas propostas para diversas áreas, entre elas a econômica. Na carta, Lula promete retomar obras paradas nas 27 unidades da federação, buscar investimentos nacionais, internacionais, públicos e privados para "para dinamizar e expandir o mercado interno de consumo, desenvolver o comércio, serviços, agricultura de alimentos e indústria". Na carta, Lula promete ainda construir uma "Nova Legislação Trabalhista" e implantar um programa de crédito a juros baixos para micro, pequenas e médias empresas. O problema, segundo alguns críticos, é que as propostas na área econômica não estariam suficientemente detalhadas. "O cheque está em branco porque você não ouviu o Lula fazendo nenhum grande compromisso na área econômica. Você não sabe, em detalhes, o que ele quer fazer e nem como quer chegar lá", diz doutor em economia e ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central, Alexandre Schwartzman. O economista afirma que a política econômica adotada pelos governos do PT a partir de 2006 foi equivocada e teria sido responsável, em parte, pela crise econômica que o país enfrentou a partir de 2015. Lula admitiu que sua sucessora, Dilma Rousseff (PT) teria cometido erros na condução da economia como o programa de desonerações adotado por ela para manter um nível baixo de desemprego. Segundo Schwartzman, sem o detalhamento das novas propostas na área econômica, o eleitorado ficou sem saber se Lula vai repetir ou não as políticas do passado. "A gente não sabe se o Lula e o PT aprenderam com os erros do passado ou se vão continuar a fazer as mesmas coisas", afirmou. A economista de orientação liberal e apoiadora da candidatura de Simone Tebet à Presidência, Elena Landau, concorda com Schwartzman. Segundo ela, a estratégia do "cheque em branco" ficou ainda mais evidente na reta final do primeiro turno, quando a candidatura de Lula apostou todas as fichas no voto útil para encerrar as eleições ainda no primeiro turno. "Houve uma pressão enorme pelo voto útil sob o argumento de que apenas Lula representaria a democracia. Mas quão democrático é defender voto útil no primeiro turno? Ele pedia voto na base do 'confia em mim' e só", disse a economista. Elena Landau admite que algumas posições de Lula sobre a economia chegaram a ser debatidas como a ideia de usar o Estado como indutor do crescimento econômico e reativar o consumo. Ela usa a metáfora do cheque para descrever o que vê como um problema. "Talvez, o cheque do Lula não esteja em branco. Talvez, o problema seja que o cheque que ele deu ao eleitorado esteja sem fundo, porque ele não vai ter como entregar o que prometeu", afirmou. Apesar das críticas, Landau apoia o voto em Lula no segundo turno. "Meu voto é contra a reeleição de Bolsonaro. Após ver o Congresso Nacional que foi eleito, é preciso dar um freio a Bolsonaro. É um Congresso conservador e de direita. Com Bolsonaro, essa combinação não é saudável", disse ao jornal Valor Econômico no dia 7 de outubro. Em uma postagem no seu perfil no Twitter na segunda-feira (24/10), a economista criticou a suposta ausência de cobrança sobre as propostas de Bolsonaro. "Por que só pedem propostas do Lula, enquanto é Bolsonaro que acabou com teto, que contratou déficit primário para 2023, que fica perturbando as ideias da Petrobras, que faz política populista, que mantém regimes especiais no IR [Imposto de Renda], que transformou Brasil em pária?", indagou a economista. "Depois do dia 30, a gente cobra. E até o fim do ano a dupla Guedes/Jair ainda pode fazer muito estrago", completou. A doutora em Ciência Política e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Viviane Gonçalves, porém, discorda dos argumentos de Schwartzman e Elena Landau sobre um suposto "cheque em branco" pedido por Lula. Ela sustenta que como Lula é bastante conhecido e já governou o país duas vezes, o eleitorado já tem uma ideia sobre o que quer e o que espera do petista. "Eu não vejo como um cheque em branco porque ele não é um desconhecido. Quem vota em Lula já vota esperando algo, nem que seja a repetição do que ele fez quando foi presidente. Além disso, ele vem como uma proposta de ser o oposto de Bolsonaro. O eleitorado se manifesta dizendo: eu não quero mais isso", afirmou a professora. "Não é que ele não precisou apresentar propostas. Ao longo da campanha, ele falou de algumas, mas o que existiu nessa campanha foi uma aposta muito grande nas figuras pessoais dos candidatos. Isso já era uma característica forte no Brasil no passado e se manteve agora", avaliou Viviane Gonçalves. Na avaliação da professora de Ciência Política da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) de São Paulo, Denilde Holzhacker, Lula é ambíguo ao não detalhar algumas de suas propostas. Segundo ela, isso se deveu à necessidade de ele atrair o voto do eleitor moderado e indeciso. Ao não descrever em detalhes suas propostas, Lula teria evitado espantá-los ou desagradar a militância mais à esquerda que sempre o apoiou. Outro motivo que permite a Lula não detalhar suas propostas ao longo da camanha, segundo ela, é a forma como a disputa acontece. "A disputa foi muito centrada na figura de Lula e Bolsonaro. É uma batalha, em certa medida, sobre as personalidades. Não é uma eleição sobre propostas", afirma. Apesar disso, ela discorda da tese do "cheque em branco". "Eu não chamaria de cheque em branco porque o eleitor vai cobrá-lo [caso ele seja eleito]. Haverá uma pressão da sociedade em geral e dos grupos políticos que o apoiaram até agora", disse Denilde Holzhacker. Em suas redes sociais, o candidato a vice-presidente na chapa de Lula, o ex-governador Geraldo Alckmin (PSB), rebate a ideia de que as propostas na área econômica do ex-presidente sejam vagas. Em uma série de postagens, Alckmin disse que, se Lula for eleito, o governo terá como ponto principal a responsabilidade fiscal. O deputado federal e um dos formuladores do programa de governo da candidatura de Lula, Paulo Teixeira (PT-SP) também não concorda com a ideia de "cheque em branco". "Não existiu isso. O principal balizador da campanha de Lula foram os seus governos. Além disso, nós elaboramos, junto aos outros partidos da coligação, um programa com todas as diretrizes de como queremos governar. Está tudo registrado", afirmou Teixeira à BBC News Brasil. Indagado sobre o nível de detalhamento das propostas, Paulo Teixeira negou que elas sejam vagas, mas disse que um detalhamento maior e estabelecimento de metas vai depender de conversas com a sociedade e com o Congresso, caso Lula seja eleito.
2022-10-28
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brasil
'Não existe câncer público e câncer privado. Por que o tratamento é tão diferente no SUS?'
O engenheiro Thiago Brasileiro, de 43 anos, e a influenciadora digital Lucilene de Lima, de 41, possuem histórias de vida que são, ao mesmo tempo, parecidas e diferentes. Ambos foram diagnosticados com leucemia mieloide crônica, um tipo de câncer que afeta a medula óssea — aquele "tutano" que temos no interior dos ossos e é responsável por fabricar as células do sangue, como as hemácias e os leucócitos. Em 2017, Brasileiro começou a sentir uma dor no abdômen e um cansaço muito grande. Ele foi então a um hospital em Belo Horizonte, cidade onde mora. Lá, rapidamente recebeu o diagnóstico e o tratamento. "Assim que a biópsia definiu o tipo de tumor, os médicos prescreveram uma das três quimioterapias orais disponíveis e, em cerca de 10 dias, eu já estava com o remédio em mãos", relata. Lima, por outro lado, demorou quase um mês para buscar o pronto-socorro desde o início dos sintomas que experimentou, como o aparecimento de manchas na pele e um emagrecimento rápido. Fim do Matérias recomendadas Quando finalmente marcou uma consulta, a moradora de Diadema, na Grande São Paulo, passou por três unidades de saúde diferentes antes de saber qual era a verdadeira origem daqueles incômodos. "A investigação médica começou em dezembro de 2012 e só fui iniciar o tratamento em abril de 2013. Foram quatro meses de espera", lembra. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas qual a diferença fundamental entre os dois? Brasileiro tem convênio médico e realiza todo o acompanhamento em clínicas e hospitais privados. Lima não possui esse tipo de seguro e depende do Sistema Único de Saúde (SUS) para lidar com a enfermidade. Além da demora para ter o primeiro acesso aos fármacos, Lima aponta a dificuldade de recebê-los todo mês — o tratamento da leucemia mieloide crônica costuma ser feito com um entre três quimioterápicos disponíveis (imatinibe, dasatinibe e nilotinibe), administrados por meio da ingestão diária de comprimidos. "Com o passar do tempo, você cria laços com outros pacientes. Recentemente, me contaram que os remédios estavam faltando na Bahia, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, no Pará, no Rio Grande do Norte…", lista. "Só no ano passado, eu mesma fiquei sem receber a dose certa em julho, agosto, setembro, outubro e dezembro", complementa. Lima afirma não ter condições de custear o tratamento, cujo preço varia entre R$ 12 mil e R$ 18 mil por mês. "Uma vez ou outra, até dá pra se virar e pedir ajuda financeira para alguém próximo", diz. "Mas, às vezes, precisamos recorrer aos familiares de um paciente que acabou de morrer para que eles doem a medicação que sobrou." Brasileiro, que coordena grupos de pacientes na Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia (Abrale), também afirma lidar com relatos do tipo com mais frequência do que gostaria. "Não existe câncer público e câncer privado. Por que o tratamento é tão diferente no SUS?", questiona. Histórias como a de Brasileiro e Lima são um retrato do que acontece todos os dias com pessoas diagnosticadas com câncer, a segunda principal causa de morte no país, atrás apenas das doenças cardiovasculares. Segundo alguns pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil, é possível observar um enorme descompasso entre o que existe de mais moderno e eficiente para tratar os tumores e aquilo que é oferecido de fato nas unidades de oncologia. "Existe um abismo. Essa é uma das expressões mais concretas das desigualdades de saúde no Brasil", constata a médica Lígia Bahia, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Esse "buraco", aliás, se ampliou ainda mais na última década. Nesse período, foram lançadas drogas que revolucionaram o setor e são capazes de aumentar a sobrevida ou até curar os pacientes. No entanto, elas são muito caras — não raro, custam uma pequena fortuna por mês. "Para ter ideia, mais de 95% dos medicamentos oncológicos aprovados para uso no país nos últimos dez anos não estão disponíveis no SUS", calcula o oncologista Fernando Maluf, fundador do Instituto Vencer o Câncer. Para entender direitinho esse assunto, porém, é preciso dar um passo para trás e explicar como uma nova medicação chega (ou deveria chegar) a quem mais precisa dela. Vamos supor que o medicamento X apresentou ótimos resultados contra o câncer de mama. A farmacêutica responsável por aquela molécula precisa entrar com um pedido de aprovação na Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa. Os técnicos da instituição avaliam o dossiê de evidências e tomam uma decisão. Se os dados forem suficientemente bons, o remédio está liberado para venda e prescrição no Brasil. "Esse 'ok' da Anvisa significa que o fármaco está autorizado para ser vendido no país, mas ele não precisa ser necessariamente coberto pelos planos de saúde ou disponibilizado no SUS", diferencia a psicóloga Luciana Holtz, presidente do Instituto Oncoguia. Essa incorporação pelos sistemas público ou privado só acontece após uma nova rodada de análises. Só que aqui o processo se bifurca em duas instâncias diferentes, ambas vinculadas ao Ministério da Saúde. Quem é responsável por determinar se o novo tratamento deve fazer parte dos pacotes de serviços obrigatórios dos convênios é a Agência Nacional de Saúde Suplementar, a ANS. Agora, quem bate o martelo sobre a adoção daquilo no SUS é a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde, a Conitec. E aqui as diferenças começam a ficar mais aparentes: por uma série de razões, muitas coisas aprovadas pela ANS não recebem o sinal verde da Conitec. "Como que existem possibilidades de tratamento tão diferentes dentro de um mesmo país? Esse é um exemplo de como as desigualdades do nosso sistema de saúde estão naturalizadas", observa Bahia. Pra piorar, nem tudo que ganha uma sinalização positiva da Conitec chega efetivamente aos pacientes que poderiam se beneficiar com aquilo. "Pela lei, a nova opção terapêutica aprovada pela comissão deveria estar à disposição dos pacientes em 180 dias. Mas não é isso que acontece", denuncia Holtz. Para ilustrar esse descompasso entre a decisão técnica e a prática clínica, o oncogeneticista Bruno Filardi, colaborador do Serviço de Genética do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, no interior paulista, cita como exemplo um medicamento chamado gefitinibe. Após passar por todo o processo burocrático citado nos parágrafos anteriores, esse fármaco recebeu no final de 2013 a aprovação da Conitec como tratamento principal para um tipo de câncer de pulmão em estágio mais avançado ou metastático (quando a doença se espalhou para outros órgãos), em que ocorre uma mutação genética chamada EGFR. "Os estudos mostraram que o paciente que faz esse tratamento tem um benefício enorme em termos de sobrevida", resume o médico. "Além disso, as análises de farmacoeconomia mostraram que oferecer comprimidos de gefitinibe sairia mais barato na comparação com o tratamento anterior, feito a partir da quimioterapia injetável", completa. Mas aí vem o problema: o valor mensal por paciente pago pelo SUS para os hospitais que tratam esse câncer de pulmão não foi alterado até hoje. Na prática, as instituições recebem R$ 1.100,00 por mês por paciente. Mas o custo mensal do gefitinibe está na casa dos R$ 4 mil. Ou seja: a conta simplesmente não fecha. Com isso, muitos hospitais optam por continuar a oferecer o tratamento antigo (a quimioterapia), já que ele se encaixa no orçamento, mesmo que seja menos efetivo, leve a uma expectativa de vida menor e, no final das contas, custe mais para todo o sistema. Isso porque o paciente que faz a químio geralmente tem mais recaídas, precisa de internação, cuidados com os efeitos colaterais... E todos esses procedimentos extras acabam saindo mais caro no final das contas.Ou seja: a quimioterapia sozinha pode até sair mais barata na comparação com o gefitinibe. Mas , além de um efeito pior, ela acarreta em tantas outras coisas que acaba custando mais no final de todo o processo. Vale mencionar que essa diferença de valores entre o que a tabela do SUS estipula e o preço real do tratamento acontece em vários outros tumores. O médico Denizar Vianna, professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), diz que essas diferenças têm a ver com a forma como a rede pública de saúde é financiada e depende de aportes do Governo Federal, dos Estados e dos municípios. "A União estipula um valor que será pago por paciente e entende que Estados e municípios devem inteirar o restante", contextualiza o especialista, que também foi secretário do Ministério da Saúde e ajudou na elaboração do plano de governo de Ciro Gomes (PDT) e fez sugestões à chapa Lula/Alckmin (PT/PSB). "Mas isso gera uma iniquidade muito grande, já que alguns Estados, como São Paulo, têm muito recurso e conseguem fazer esse complemento, o que permite o acesso aos tratamentos mais modernos nesses lugares. Enquanto isso, outros não possuem essa mesma capacidade", compara. Holtz também chama a atenção para falta de padronização nos protocolos de tratamento contra o câncer na rede pública. Esse, aliás, foi tema de uma pesquisa que ela publicou em 2017, em parceria com outros colegas. Intitulado de "Meu SUS é diferente do seu SUS", o projeto analisou como é o tratamento contra os quatro tipos de câncer mais incidentes na população brasileira: os tumores de pulmão, mama, próstata e colorretal. Foram comparados 52 centros oncológicos. Desses, 18 sequer tinham protocolos terapêuticos para essas doenças. Entre aqueles que possuíam alguma diretriz, 16 unidades ofereciam um tratamento contra o câncer de pulmão inferior ao sugerido pelo próprio Ministério da Saúde. O mesmo cenário se repetiu em oito centros que lidavam com tumores de mama. Vale citar que também foram observados centros que possuíam um padrão terapêutico superior ao preconizado pelo Governo Federal. Essa heterogeneidade foi vista como um grande empecilho pelos pesquisadores. "A equidade é um dos princípios do SUS, mas o que vemos na prática é que cada centro faz aquilo que bem entende", critica a psicóloga. "Muitas vezes, é o CEP [Código de Endereçamento Postal] da sua casa que vai definir se você vai ter acesso ao melhor tratamento contra o câncer ou não", resume. Em outras palavras, se você tiver a sorte de ser encaminhado para um centro de referência — como o Instituto Nacional do Câncer (Inca) e o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) — pode conseguir acesso a tratamentos mais modernos, enquanto outros brasileiros não terão a mesma oportunidade. Para o médico Nelson Teich, que foi ministro da Saúde entre abril e maio de 2020, no governo de Jair Bolsonaro (PL), é muito complicado comparar o que acontece com os pacientes com câncer que dependem da saúde pública ou privada no Brasil atualmente. E isso tem a ver com a falta de indicadores que ajudem a entender a real situação do país — ou, preferencialmente, das macrorregiões em que o planejamento da saúde deveria ser feito. "Nós não temos no momento dados de qualidade para fazer esse tipo de avaliação", constata. "O Brasil é continental, tem 117 macrorregiões e 5.568 municípios. Falta ao país um grande programa de informações em saúde", avalia. Para Teich, esses indicadores sobre o câncer precisam ser divididos em quatro grandes blocos: primeiro, a expectativa de novos casos de cada tumor por ano; segundo, a infra-estrutura necessária para diagnosticar e tratar essa estimativa de pacientes; terceiro, os resultados de desempenho desses serviços; quarto, o financiamento, ou como toda essa estrutura será custeada. Ainda segundo o especialista, essas análises precisam ser regionalizadas. "Não podemos assumir que o Brasil funciona na média. Será preciso ter indicadores de cada macrorregião e compará-los com lugares próximos, respeitando a cultura e a economia local", propõe. Embora o acesso a certos tratamentos seja relativamente mais fácil para quem tem plano de saúde, isso não quer dizer que todos os convênios são perfeitos e oferecem tudo para os beneficiários, apontam os especialistas. "O acesso aos tratamentos mais modernos não é igual para todo mundo que tem plano de saúde. Há muitos casos em que apenas os seguros mais caros oferecem essas opções", destaca Bahia. Vianna entende que a principal barreira do sistema de saúde privado está na fragmentação dos serviços. "No SUS, há uma organização determinada, em que a base é a atenção primária. Daí, o paciente só alcança as unidades de atendimento de média e alta complexidade se tiver um encaminhamento para isso", explica ele. "Já na rede privada, o acesso aos especialistas é excessivo. A pessoa consegue rapidamente consultar médicos especialistas, sem passar por um clínico geral antes." "Isso também não é bom, porque deixa o sistema todo fragmentado. O indivíduo vai num lugar fazer exame, em outra clínica para receber o remédio, num terceiro lugar para a consulta… Com isso, não existe um alinhamento e uma padronização dos cuidados em saúde", aponta. A BBC News Brasil procurou o Ministério da Saúde e pediu um posicionamento a respeito dos pontos que foram apresentados pelos especialistas. Nenhuma resposta foi enviada até a publicação desta reportagem. Logicamente, um problema tão complexo como esse depende de uma enorme mudança nas políticas públicas e na forma como o câncer é encarado no país. Os entrevistados pela BBC News Brasil levantaram uma série de sugestões que podem encurtar as desigualdades na oncologia. Bahia acredita que o primeiro passo está justamente em reconhecer a existência do problema. "Precisamos saber que essas coisas acontecem e nos indignar com isso. Não é normal que falte tratamento para algumas pessoas", diz. Maluf destaca que o Instituto Vencer o Câncer elaborou uma série de propostas para os candidatos que participaram das eleições de 2022. "Sugerimos, por exemplo, o aumento de impostos sobre alimentos e bebidas que claramente fazem mal à saúde, a criação de um fundo nacional contra o câncer, a revisão das tabelas de valores do SUS e dos protocolos de tratamento oncológico no país", lista. "Não podemos esquecer da prevenção, até mesmo por meio das vacinas. Os imunizantes contra a hepatite B e o HPV, por exemplo, diminuem drasticamente o risco de tumores no fígado e no útero, respectivamente", acrescenta. Para Filardi, é preciso descentralizar os serviços de oncologia no país. "Temos várias clínicas que poderiam atender o SUS e resolver muitos problemas localmente." O oncogeneticista também acredita que o Brasil deveria ter um programa de incentivo à produção de biossimilares, medicamentos biológicos parecidos aos anticorpos monoclonais "originais" usados contra alguns tumores. "É relativamente fácil fazer isso e baratear o preço dos fármacos", detalha. Holtz entende que seria necessário discutir um orçamento público específico para a oncologia e incentivar a realização de pesquisas clínicas no país, aquelas que testam novos medicamentos. "Também precisamos estabelecer uma 'cesta básica padrão', ou um tratamento mínimo contra os cânceres que seja decente, efetivo e igual para todo mundo", conclui. Vianna indica que centralizar no Ministério da Saúde a negociação para obter insumos e medicamentos pode ser vantajoso. "O ministério tem um grande poder de compra, o que naturalmente representa uma vantagem na hora de negociar os preços", aponta. "Essa compra centralizada já acontece para algumas drogas específicas, mas pode ser ampliada", crê. Teich entende que, antes de pensar em propostas específicas, é preciso organizar o setor — o que envolve necessariamente a criação de todo um sistema de informações que não existe hoje em dia. "Além disso, o grande movimento do Brasil para lidar com o câncer tem que envolver o diagnóstico precoce", propõe o ex-ministro. A lógica é simples: quanto mais cedo o caso é detectado, maiores a chances de tratá-lo e até curá-lo facilmente, sem a necessidade de tratamentos complexos e custosos. "Ao diagnosticar a doença num estágio mais avançado, você invariavelmente precisa de medicamentos novos, que trazem um melhor resultado, mas são muito mais caros", raciocina. Por fim, muitas das ideias para trazer mais saúde e qualidade de vida para quem tem câncer podem vir dos próprios pacientes, como aqueles que foram citados no início desta reportagem. Brasileiro acredita que não há solução longe da saúde pública. "Hoje o único caminho é trabalhar, lutar, debater e defender o SUS." "Só vamos melhorar quando o paciente virar o centro das atenções e dos cuidados", acredita. Já Lima deseja não precisar mais sofrer com a incerteza de receber ou não o tratamento que a mantém viva. "Eu nunca deixaria acabar as medicações. Ficar sem remédio é praticamente uma sentença de morte para nós", finaliza.
2022-10-28
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brasil
Alexandre de Moraes: o presidente do TSE acusado de 'ditador' por Bolsonaro que já foi alvo do PT
É muito pouco provável que no Brasil de hoje haja quem nunca tenha ouvido falar de Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e atualmente presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Em eleições fortemente polarizadas como nunca antes vistas na história do país, o paulistano Moraes, de 53 anos, tornou-se alvo principalmente dos apoiadores do atual presidente Jair Bolsonaro (PL), que tenta a reeleição — eles criticam fortemente as decisões do magistrado e o acusam de favorecer o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O próprio Bolsonaro já chamou Moraes de "patife", "moleque", "canalha", "vagabundo" e "ditador". O mais recente capítulo dessa polêmica envolveu uma acusação do ministro das Comunicações, Fabio Faria, de que Bolsonaro teve 154 mil inserções de rádio a menos que Lula, a maioria das quais na Bahia, Estado que deu vitória ao petista. Moraes deu um prazo de 24 horas, terminado nesta quarta-feira, para mostrar provas dessa suposta fraude. O ministro acabou negando a ação da campanha de Bolsonaro. Segundo Moraes, a ação de Bolsonaro não tem provas e se baseia em levantamento de empresa "não especializada em auditoria". Também apontou possível "cometimento de crime eleitoral com a finalidade de tumultuar o segundo turno do pleito em sua última semana" e mandou o caso para ser avaliado dentro do inquérito das "milícias digitais", do qual ele mesmo é relator no STF. Fim do Matérias recomendadas Encaminhou ainda a decisão à Procuradoria-Geral Eleitoral (PGE) e ao corregedor-geral do TSE. "Para instauração de procedimento administrativo e apuração de responsabilidade, em eventual desvio de finalidade na utilização de recursos do fundo partidário dos autores." Bolsonaro, por sua vez, prometeu recorrer até o fim e disse que seu partido deve contratar uma terceira empresa de consultoria para analisar os casos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Com toda a certeza, nosso jurídico deve entrar com recurso, já que foi para o Supremo Tribunal Federal. Da nossa parte, iremos às últimas consequências, dentro das quatro linhas da Constituição, para fazer valer aquilo que as nossas auditorias constataram, que há realmente um enorme desequilíbrio no tocante às inserções. Isso obviamente interfere na quantidade de votos no final da linha", afirmou Bolsonaro. O presidente também convocou ministros e os três comandantes de Forças Armadas para uma reunião no Palácio da Alvorada antes de se pronunciar. Saiu sem responder a perguntas de jornalistas. Nas redes sociais, grupos bolsonaristas reforçaram o argumento de fraude eleitoral e pediram o impeachment de Moraes. Mas, embora o ministro tenha se tornado hoje o principal alvo da militância bolsonarista, o próprio PT já chamou o magistrado de "despreparado" e "parcial", quando ele foi empossado como ministro do STF, em 2017 (ler abaixo). As principais críticas a Moraes envolvem o que seus opositores chamam de "abuso de autoridade". E entre eles não estão apenas apoiadores de Bolsonaro, mas também juristas. A preocupação gira em torno das decisões de Moraes que chamam de "arbitrárias", especialmente em relação aos inquéritos das fake news e das milícias digitais, dos quais é relator, e de sua atuação como presidente do TSE. Já parte dos juristas e ministros do Supremo argumentam que diante do alto volume de notícias falsas que circulam nessas eleições, Supremo e TSE precisaram dar agilidade à sua atuação e impedir a circulação de ameaças e desinformação. Recentemente, os inquéritos das fake news e das milícias digitais voltaram ao noticiário após a decisão de Moraes de voltar a prender o ex-deputado Roberto Jefferson (PTB), que reagiu disparando contra policiais e atirando granadas na direção deles. O inquérito das fake news investiga ataques por meio de notícias falsas, calúnias e ameaças que atingem o STF, seus ministros e familiares. Já o das milícias digitais investiga uma suposta organização criminosa digital que atua para desestabilizar a democracia divulgando mentiras e atacando ministros do Supremo e as instituições do país. No seu despacho, o magistrado afirmou que decretou a prisão após Jefferson violar os termos de sua prisão domiciliar, mas nas rede sociais bolsonaristas lembraram que a prisão do ex-deputado, em agosto de 2021, por Moraes havia sido "ilegal". Em pronunciamento, o próprio Bolsonaro, embora tenha chamado Jefferson de "bandido" e tentado se desvincular do aliado, repetiu o argumento de que a prisão de Jefferson não teve, em sua origem, "nenhum respaldo na Constituição" e decorreu "sem atuação do MP". "Repudio as falas do Sr. Roberto Jefferson contra a Ministra Carmen Lúcia e sua ação armada contra agentes da PF, bem como a existência de inquéritos sem nenhum respaldo na Constituição e sem a atuação do MP", escreveu Bolsonaro no Twitter. Isso se deve ao fato de que, quando Moraes acolheu pedido da Polícia Federal (PF) para prender o ex-deputado, sua decisão prescindiu da manifestação da Procuradoria-Geral da República (PGR). Segundo ele, porque o MP não havia se pronunciado sobre o pedido dentro do prazo. Na ocasião, a PGR negou a afirmação de Moraes e, em nota, o procurador-geral da República, Augusto Aras, afirmou que "houve, sim manifestação da PGR, no tempo oportuno" e que "em respeito ao sigilo legal, não serão disponibilizados detalhes do parecer, que foi contrário à medida cautelar". Aras também descreveu a prisão de Jefferson como "uma censura prévia à liberdade de expressão". "O entendimento da PGR é que a prisão representaria uma censura prévia à liberdade de expressão, o que é vedado pela Constituição Federal", acrescentou Aras no comunicado. Outra decisão de Moraes que repercutiu negativamente entre bolsonaristas foi a prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), em março deste ano, motivada por vídeo divulgado pelo parlamentar. Na decisão, o ministro do STJ afirmou ser "imprescindíveis medidas enérgicas para impedir a perpetuação da atuação criminosa de parlamentar visando lesar ou expor a perigo de lesão a independência dos Poderes instituídos e ao Estado Democrático de Direito". Naquela ocasião, também destacou que a Constituição não permite a propagação de ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado Democrático nem tampouco a realização de manifestações nas redes sociais visando o rompimento do Estado de Direito. Bolsonaristas, contudo, afirmaram se tratar de 'censura' e cerceamento da liberdade de expressão. Já sobre sua atuação no TSE, Moraes também vem recebendo críticas de aliados de Bolsonaro. Na ocasião, houve também questionamentos de juristas que não apoiam Bolsonaro, mas viram possíveis excessos e ilegalidades na decisão que autorizou a apreensão de celulares e o bloqueio de contas bancárias e de perfis dos empresários nas redes sociais. Em 16 de agosto, quando foi empossado, Moraes havia prometido, em seu discurso, intervenção "mínima, mas implacável" contra abusos. Na semana passada, outro ponto de tensão: foi aprovada uma polêmica resolução afirmando que, em casos de fake news que já tenham sido consideradas irregulares pelos integrantes do tribunal, em decisão colegiada, a determinação de retirada do ar vale também para conteúdos idênticos que sejam replicados na internet. Ou seja, se uma fake news idêntica a uma já julgada pelo TSE começar a circular, o presidente do tribunal pode ordenar que ela saia do ar sem a necessidade de uma nova ação de partidos, do Ministério Público ou uma decisão judicial pedindo isso. O TSE também deu direitos de resposta a Lula em razão de falas ofensivas feitas por comentaristas da Jovem Pan contra o petista. O canal paulista, que dedica boa parte de sua programação diária a críticas ao ex-presidente, disse que foi censurado e orientou que não sejam ditos no ar termos como "ex-presidiário" e "ladrão" em referência a Lula. Outra decisão que provocou discussão se refere a uma frase do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello que seria usada em uma peça eleitoral do presidente e candidato do PL Jair Bolsonaro e foi suprimida. Apesar das críticas dos bolsonaristas, desde o início da corrida presidencial, Moraes deu, proporcionalmente, mais decisões favoráveis a Bolsonaro do que Lula. Até 14 de outubro, o PT teve 55% das ações contra notícias falsas atendidas no tribunal, enquanto a campanha de Bolsonaro, 85%. Vale lembrar que, mais recentemente, Moraes deu nova decisão favorável a Bolsonaro, ao determinar a remoção dos vídeos divulgados pela campanha de Lula reproduzindo falas do atual presidente sobre meninas venezuelanas. No trecho da entrevista reproduzido pela campanha de Lula , Bolsonaro aparece dizendo que, durante um passeio de moto pela comunidade de São Sebastião, nas proximidades de Brasília, avistou meninas de 14 e 15 anos e que "pintou um clima" . Na decisão, o principal argumento de Moraes foi a proteção à liberdade de expressão. Segundo o ministro, a liberdade de expressão não representa um salvo-conduto para a propagação de discursos "sabidamente inverídicos", "agressivos" e "preconceituosos". "Liberdade de expressão não é Liberdade de agressão! Liberdade de expressão não é Liberdade de destruição da Democracia, das Instituições e da dignidade e honra alheias. Liberdade de expressão não é Liberdade de propagação de discursos mentirosos, agressivos, de ódio e preconceituosos!", diz trecho da decisão de Moraes Nesta semana, o senador Lasier Martins (Podemos-RS) voltou a pedir o impeachment de Moraes por "reiterados abusos expressos em crimes de responsabilidade". Embora hoje tenha sua imagem associada ao PT e à esquerda por apoiadores de Bolsonaro, a nomeação de Moraes ao STF, em março de 2017, foi duramente criticada pela Executiva do partido, que a descreveu como "um profundo desrespeito à consciência jurídica do país". Natural da cidade de São Paulo, Moraes nasceu no dia 13 de dezembro de 1968. Ele foi nomeado para o Supremo pelo ex-presidente Michel Temer após a morte do ministro Teori Zavascki em um acidente aéreo. Zavascki havia sido indicado pela ex-presidente Dilma Rousseff em 2012 para o lugar de Cezar Peluso, que se aposentara ao atingir a idade limite, então de 70 anos. Na ocasião, o Senado aprovou a indicação de Moraes por 55 votos a favor e 13 contra. Aos 48 anos, ele passou, então, a integrar a corte. Moraes era, na época, ministro da Justiça de Temer. Ele chegou ao Supremo com apoio do PSDB e era tido como um perfil mais conservador para a corte. Na época, se manifestou, por exemplo, contra a legalização do aborto e da eutanásia, por considerar que essas práticas violavam o direito à vida. Também se posicionou contra a redução da maioridade penal, mas defendeu punições mais duras para menores de 18 anos em caso de crimes graves. O desejo de Moraes de integrar o STF era notório no meio jurídico, mas parecia improvável no curto prazo, já que em 2015 o Congresso elevou a idade máxima para aposentadoria compulsória dos ministros de 70 para 75 anos. Enquanto o sonho estava em suspenso, falava-se nos bastidores de Brasília que seu desejo seria concorrer ao governo de São Paulo pelo PSDB em 2018. Em meio à grave crise política pela qual passava o país, sob o impacto da operação Lava Jato, sua indicação foi alvo de críticas por sua suposta falta de imparcialidade. Para os opositores da sua nomeação, Moraes foi indicado ao Supremo para barrar as investigações contra membros do governo Temer e sua base no Congresso. Moraes negou veementemente essas acusações nas quase 11 horas de sabatina com senadores e destacou não ser o primeiro indicado ao STF com histórico de atividade política. Na ocasião, salientou também que os coordenadores da Lava Jato elogiaram sua indicação publicamente. Em sua fala inicial, chegou a dizer que atuaria no Supremo "com imparcialidade, coragem, dedicação e sincero amor à causa pública". Depois, ao responder pergunta sobre sua tese de doutorado, em que defende que presidentes não deveriam poder indicar integrantes do governo para a Corte, prometeu: "Jamais atuarei entendendo que minha indicação ou eventual aprovação por vossas excelências tenha qualquer ligação de agradecimento ou favor político", afirmou. Em 15 anos, Alexandre de Moraes saiu do Ministério Público e deu início a uma trajetória que incluiu cargos de destaque na prefeitura e no governo de São Paulo. Foi promotor de Justiça da Cidadania e assessor do procurador-geral do Estado entre 1991 e 2002, quando, aos 33 anos, se tornou o mais novo secretário de Justiça e Defesa da Cidadania do Estado, escolhido por Geraldo Alckmin (PSDB), com quem voltaria a trabalhar anos depois. Em 2005, foi escolhido para integrar a primeira composição do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), ocupando a vaga reservada para um representante da Câmara dos Deputados. Após a passagem pelo CNJ, entre 2005 e 2007, trabalhou na gestão de Gilberto Kassab (PSD) na Prefeitura de São Paulo entre 2007 e 2010. No período, acumulou os cargos de presidente da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), da São Paulo Transporte (SPTrans) e de secretário de Serviços e de Transportes, o que o transformava numa espécie de supersecretário. Em 2015, voltou a participar de uma gestão de Alckmin, desta vez como secretário da Segurança Pública. Mas embora tenha construído uma carreira acadêmica focada nos direitos humanos, passou a ser visto com grande rejeição por movimentos sociais, que viram uma atuação "truculenta" por parte da polícia durante sua gestão. Próximo de Temer, conquistou sua confiança ao conduzir com absoluta descrição e eficiência uma investigação que prendeu o hacker que invadiu o celular da primeira-dama Marcela e tentou extorqui-la. Acabou nomeado como ministro da Justiça logo após a destituição de Dilma, em maio de 2016. Acumulou desgastes nos meses em que ficou no cargo, mas resistiu a editorais de grandes veículos de mídia brasileiros que pediam sua cabeça. Em um desses episódios, o ministro precisou se explicar após supostamente antecipar uma fase da operação Lava Jato. "Teve a semana passada, e esta semana vai ter mais, podem ficar tranquilos. Quando vocês virem esta semana, vão se lembrar de mim", disse ele a um grupo de pessoas durante campanha eleitoral de prefeito no interior de São Paulo, em setembro passado. No dia seguinte, ele negou que tivesse adiantando ações da Polícia Federal — alegou que a afirmação ocorreu porque houve operações desde que ele havia assumido o cargo de ministro da Justiça. Além da vida política que o projetou nacionalmente, Moraes é um jurista experiente, reconhecido no meio acadêmico. Formado em 1990 pela prestigiada Faculdade de Direito da USP, Alexandre de Moraes obteve o título de livre-docente em direito constitucional na mesma universidade 11 anos depois. Além de dar aulas na mesma USP e na Universidade Mackenzie, escreveu diversos livros jurídicos que se tornaram referência em direito constitucional, direitos humanos, agências reguladoras e legislação penal especial. Apesar do sucesso como autor, enfrentou desgaste diante das acusações de plágio em suas obras. Em 13 de maio de 2004, ganhou a honraria mais alta do Tribunal de Justiça de São Paulo, o Colar do Mérito. Foi o jurista mais jovem a receber a homenagem, aos 35 anos. Atuou também como advogado. Em 2014, defendeu o ex-presidente da Câmara e deputado cassado Eduardo Cunha (PMDB), preso pela Lava Jato, de uma acusação de uso de documento falso — ele acabou absolvido.
2022-10-27
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brasil
Por que gasolina voltou a subir apesar dos atrasos da Petrobras em reajustar preços
O preço da gasolina vendida nos postos do país está em alta há duas semanas consecutivas, segundo dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Isso acontece apesar do atraso da Petrobras em repassar o aumento no preço do litro no mercado internacional para as refinarias locais. Segundo o Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), a estatal está há seis semanas vendendo gasolina nas refinarias abaixo do Preço de Paridade de Importação (PPI). Já o diesel segue sem reajuste há quatro semanas. Na terça-feira (25/10) a gasolina da Petrobras estava 12,27%, ou R$ 0,46 por litro, mais barata que os preços internacionais. O diesel segue 14,13%, ou R$ 0,80 por litro, abaixo do valor. Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil atribuem o aumento do preço médio dos combustíveis nos postos brasileiros a um ajuste natural do mercado motivado pelo crescimento na demanda e à subida nos valores da gasolina e do diesel vendidos pela refinaria privada de Mataripe, na Bahia, responsável por cerca de 14% da capacidade total de refino do país. Fim do Matérias recomendadas "Há primeiro de tudo o que eu entendo como ajustes naturais do mercado. Cada posto tentando recuperar sua margem, dado que tivemos uma redução grande nos últimos meses", diz Pedro Rodrigues, sócio-diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE). Segundo o analista, as diversas quedas seguidas registradas nos meses anteriores aumentaram o consumo entre os brasileiros - de acordo com a ANP, as vendas de gasolina no Brasil pelas distribuidoras no primeiro sementes deste ano cresceram 10,8% em relação ao mesmo período de 2021 -, motivando os próprios postos de gasolina a subirem os preços. Os preços dos combustíveis são livres no Brasil, ou seja, cada posto pode estipular o preço da gasolina, do diesel ou do etanol que desejar. "A defasagem do preço força uma maior demanda. E as empresas acabam repassando esse aumento ao consumidor porque identificam um descompasso dentro do próprio mercado", resume Juliana Inhasz, economista e professora do Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa). Além disso, a refinaria de Mataripe tem sido mais veloz do que a Petrobras para repassar as variações das cotações internacionais aos preços de seus produtos. No início do mês, a refinaria elevou o preço da gasolina em 9,7% e o do diesel S-10, em 11,3%. A empresa diz que seus preços "seguem critérios de mercado, que levam em consideração variáveis como custo do petróleo, que é adquirido a preços internacionais, dólar e frete, podendo variar para cima ou para baixo". Segundo a ANP, que monitora semanalmente os preços dos combustíveis nos postos brasileiros, entre 25 de setembro e 1 de outubro, a média do litro vendido nos postos era de R$ 4,81. Na semana de 16 a 22 de outubro, porém, o preço médio avançou para R$ 4,88, o que já representava uma alta de 0,41% frente à semana anterior (R$ 4,86). Entre 16 a 22 de outubro, o valor mais alto do litro encontrado pela agência foi de R$ 6,90. No mesmo período, a região onde a gasolina está mais cara é o Nordeste, com uma média de preço de R$ 5,10. A alta atingiu também o diesel, que registrou nos mesmos dias seu primeiro aumento desde o fim de junho. O preço médio do litro avançou de R$ 6,51 para R$ 6,59 em uma semana, um aumento de 1,22%. Os preços estão subindo apesar da Petrobras estar vendendo gasolina nas refinarias abaixo do preço praticado no mercado internacional. A Paridade de Preço Internacional (PPI), adotada pela estatal desde 2016, determina que a petroleira cobre, ao vender combustíveis para as distribuidoras brasileiras, preços compatíveis com os do exterior. "A Petrobras, em teoria, continua seguindo a paridade internacional, mas passou a repassar muito rapidamente as quedas de preço e está demorando mais para repassar as altas", diz o economista Rafael Schiozer, professor de finanças da FGV EAESP. A defasagem ocorre porque desde setembro as cotações internacionais do petróleo e derivados voltaram a subir, devido a cortes na oferta por países produtores reunidos na Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep). Antes disso, porém, o preço dos combustíveis no Brasil estava em queda devido, principalmente, à redução do valor do barril de petróleo no mercado internacional e da taxa de câmbio. Em junho, o governo também aprovou medidas tributárias para reduzir o preço dos combustíveis, como a lei que limita o ICMS sobre itens como diesel, gasolina, energia elétrica, comunicações e transporte coletivo e o corte dos impostos federais Cide e PIS/Cofins sobre esses produtos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Além dos ajustes naturais do mercado devido ao aumento da demanda, o crescimento nos preços pode estar sendo influenciado pelos repasses da refinaria de Mataripe, na Bahia. Dado que a empresa é hoje responsável por cerca de 14% da capacidade total de refino do país, um aumento nos valores praticados por ela tem influência na média de preços nacional e, especialmente, nos valores repassados pelos postos de gasolina na região Nordeste. Para Schiozer, a variação na taxa de câmbio também pode estar agindo sobre o preços dos combustíveis, já que o petróleo é comercializado em dólares no mercado internacional. "O câmbio interfere no preço da gasolina importada e, indiretamente, na que é refinada no Brasil", diz. "O dólar ficou rondando os R$ 5,10 por um bom tempo e agora está em R$ 5,32, são quase 5% de aumento." Na terça-feira (25), a moeda americana ganhou 0,26% frente ao real, a R$5,316 na compra e a R$5,317 na venda. Juliana Inhasz, do Insper, afirma ainda que as variações recentes no câmbio também podem estar por trás da decisão da refinaria de Mataripe de aumentar seus preços. "O câmbio deveria influenciar mais os preços praticados pela Petrobras do que pelas refinarias, mas existe um impacto também", diz. "O câmbio pode intervir principalmente no aumento do custo para trazer a matéria-prima para o Brasil." Na opinião de Pedro Rodrigues, do CBIE, a defasagem da Petrobras em relação aos preços internacionais pode estar sendo motivada por um desejo de evitar reajustes constantes provocados por um mercado muito volátil. "A velocidade dos repasses faz parte da política de cada direção da estatal. E a lógica muitas vezes é de esperar para subir o preço até o limite das possibilidades comerciais e financeiras da empresa para não reduzir o consumo", diz. Mas para Rafael Schiozer, da FGV EAESP, a demora em repassar os valores pode ter também ligação com as eleições marcadas para o próximo domingo (30/10), quando o presidente Jair Bolsonaro (PL) disputa a reeleição contra Luiz Inácio Lula da Silva (PT). "Depois das eleições, é provável que a Petrobras repasse os valores que segurou até agora", diz o economista. Segundo uma reportagem do jornal O Globo, técnicos da estatal e parte da diretoria afirmam que já seria necessário reajustar os preços, mas que o governo tem pressionado para evitar um aumento de preços antes do segundo turno das eleições, marcado para domingo (30). Em entrevista neste mês ao canal epbr, o diretor-executivo de Exploração e Produção da Petrobras, Fernando Borges, afirmou que a estatal beneficia a sociedade brasileira ao demorar mais para elevar os preços dos combustíveis. O executivo ponderou que há atualmente um momento de volatilidade grande no mercado internacional de petróleo dentro de um mesmo dia e que a empresa evita repassar esses movimentos de imediato ao mercado interno. Mas reconheceu que a companhia reduziu preços em velocidade maior do que considera para elevar preços. Segundo Schiozer, o governo do atual presidente escalou o atual presidente da estatal, Caio Mário Paes de Andrade, já com a intenção de atrasar os reajustes para fins eleitorais. "Ele não pode dizer que não vai seguir a paridade, mas ele pode ter algum poder discricionário para controlar a velocidade com que faz os ajustes." Já Juliana Inhasz aposta em uma combinação dos fatores mercadológicos e políticos. "Há claramente um represamento de preços para evitar aumentos às portas do segundo turno", diz. "Ao mesmo tempo, vimos recentemente oscilações grandes no preço do petróleo - e a Petrobras pode estar tentando evitar mudanças e estresses desnecessários na economia esperando um pouco mais para reajustar o preço".
2022-10-27
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brasil
Eleições 2022: 6 perguntas sobre acusações de Bolsonaro no caso das inserções de campanha
Na reta final do segundo turno das eleições presidenciais, o comando da campanha à reeleição do presidente Jair Bolsonaro (PL) recorreu ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) alegando que a sua chapa teria sido alvo de "fraude eleitoral". A suposta fraude teria ocorrido porque rádios das regiões Norte e Nordeste teriam deixado de veicular milhares de inserções (pequenas peças publicitárias) da campanha do presidente, prejudicando o candidato à reeleição. A Justiça Eleitoral, no entanto, negou o pedido de investigação feito pela campanha. Em decisão divulgada na noite desta quarta-feira, o presidente do TSE, Alexandre de Moraes, afirmou que as supostas irregularidades "são inconsistentes" e carecem de "base documental crível." Moraes ainda afirmou que as alegações de fraude têm a "finalidade de tumultuar o segundo turno" e que pediria à Corregedoria-Geral Eleitoral para investigar os autores da denúncia por suposto cometimento de desvio de finalidade do fundo eleitoral — as empresas que fizeram a auditoria usada pela campanha foram contratadas com o dinheiro do fundo enviado ao PL, partido de Bolsonaro. Após a decisão, Bolsonaro convocou a imprensa e, em um pronunciamento em Brasília, afirmou que vai recorrer no Supremo Tribunal Federal (STF). Fim do Matérias recomendadas "Nós iremos às últimas consequências dentro das quatro linhas da Constituição para fazer valer aquilo que as nossas auditorias constataram", afirmou. Nas redes sociais, o ministro das Comunicações, Fábio Farias, falou sobre a suposta fraude. "Essa é uma grave violação do sistema eleitoral! Estamos indignados e estamos tomando as medidas cabíveis junto ao TSE. Nós, que preservamos a democracia e direito de igualdade, queremos uma campanha limpa e justa", disse. Desde então, a militância bolsonarista vem se referindo ao caso como uma evidência de que a campanha do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) teria sido privilegiada. O petista lidera as principais pesquisas de intenção de voto. Confira abaixo seis perguntas sobre as acusações feitas pela campanha do presidente. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A ação movida pelos advogados da coligação de Bolsonaro diz que empresas de auditoria contratadas constataram que rádios da região Norte e Nordeste deixaram de veicular inserções de 30 segundos da campanha à reeleição do presidente. A legislação prevê que emissoras de rádio devem dividir por igual o tempo destinado às inserções de candidatos que disputam o segundo turno. A tese da defesa de Bolsonaro é de que, na medida em que inserções de sua candidatura não teriam sido veiculadas, sua campanha foi prejudicada. Segundo a ação, na região Nordeste, na semana entre os dias 7 e 14 de outubro, 12.084 inserções da campanha de Bolsonaro não teriam sido veiculadas. Isso totalizaria, ainda de acordo com a ação, 100 horas de conteúdo nas rádios de toda a região. No Norte, segundo os advogados do presidente, 1.807 inserções de 30 segundos de Bolsonaro teriam deixado de ser veiculadas, totalizando aproximadamente 15 horas de conteúdo. Para os advogados do presidente, a suposta desproporção no volume de inserções detectada pelas empresas de auditoria contratadas seria um "fato gravíssimo capaz de assentar (comprometer) a legitimidade do pleito, se não corrigido imediatamente". Em seu pronunciamento, Bolsonaro afirmou que sua campanha foi prejudicada e que vai recorrer ao STF. "Houve um enorme desequilíbrio no tocante às inserções e isso obviamente interfere na quantidade de votos no final", disse. O presidente acrescentou que pretende contratar uma terceira auditoria para verificar as inserções. Inserções são peças publicitárias que podem ter 30 ou 60 segundos, de acordo com a legislação eleitoral. Também são chamadas de "pílulas" porque são menores do que os blocos mais longos do horário eleitoral gratuito. Pela legislação, as campanhas devem enviar essas inserções a um pool (grupo) de emissoras de rádio e TV. As emissoras de rádio de todo o país devem procurar esse pool para ter acesso ao material e veicular as inserções de acordo com as normas eleitorais. No dia seguinte ao início da ação, o TSE divulgou uma nota afirmando que não cabe ao órgão fazer a distribuição do material de campanha das candidaturas às emissoras de rádio do país. "É importante lembrar que não é função do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) distribuir o material a ser veiculado no horário gratuito. São as emissoras de rádio e de televisão que devem se planejar para ter acesso às mídias e divulgá-las seguindo as regras estabelecidas", disse a nota. O TSE disse ainda que não cabe é responsabilidade do órgão fazer a fiscalização ostensiva da veiculação da propaganda eleitoral gratuita. Segundo o tribunal, essa fiscalização cabe aos partidos, coligações e candidatos que, caso se sintam prejudicados, devem procurar a Justiça Eleitoral. "Em caso de a propaganda não ser transmitida pelas emissoras, a Justiça Eleitoral, a requerimento dos partidos políticos, das coligações, das federações, das candidatas, dos candidatos ou do Ministério Público, poderá determinar a intimação [...] da emissora para que obedeçam, imediatamente, às disposições legais vigentes e transmitam a propaganda eleitoral gratuita", disse outro trecho da nota. Na noite desta quarta, o presidente do TSE, Alexandre de Moraes, negou o pedido de investigação feito pela campanha de Bolsonaro, afirmando que não há indícios de que as denúncias sejam verdadeiras. "Não restam dúvidas de que os autores — que deveriam ter realizado sua atribuição de fiscalizar as inserções de rádio e televisão de sua campanha — apontaram uma suposta fraude eleitoral às vésperas do segundo turno do pleito sem base documental crível, ausente, portanto, qualquer indício mínimo de prova", escreveu o ministro. "Assim, o que se tem é uma petição inicial manifestamente inepta, pois nem sequer identifica dias, horários e canais de rádio em que se teria descumprindo a norma eleitoral — com a não veiculação da publicidade eleitoral", continuou Moraes, na decisão. Além de pedir que os autores da auditoria sejam investigados por desvio de finalidade do fundo eleitoral, Moraes também determinou que caso seja investigado no âmbito do inquérito das fake news que corre no STF — ele apura a atuação de milícias digitais que agem contra a democracia. Na segunda-feira, Moraes já tinha criticado a ação movida pela campanha de Bolsonaro. Ele disse que a defesa da coligação do presidente não apresentou documentos que pudessem fundamentar a acusação de fraude. Segundo ele, a defesa utilizou apresentou um relatório apócrifo (sem identificação) para embasar as acusações e disse que não houve indicação precisa sobre quais as rádios, horários e dias em que as inserções teriam deixado de ser veiculadas. O ministro tinha dado 24 horas para que a defesa de Bolsonaro apresentasse os dados alegando que apresentar acusações sem provas era um fato "grave" e que poderia ser interpretado como crime eleitoral. "Tal fato é extremamente grave, pois a coligação requerente aponta suposta fraude eleitoral sem base documental alguma, o que, em tese, poderá caracterizar crime eleitoral dos autores, se constatada a motivação de tumultuar o pleito eleitoral em sua última semana", disse o presidente do TSE. Na terça-feira (25/10), a defesa da coligação enviou uma nota petição ao TSE informando que, ao contrário do que Alexandre de Moraes havia dito, o relatório que embasava a ação não era apócrifo e teria sido produzido por uma empresa de auditoria de mídia chamada "Audiency Brasil Tecnologia LTDA", sediada em Santa Catarina. A defesa também repassou um link em um serviço de computação em nuvem onde estariam armazenados os dados produzidos pela auditoria. A campanha anexou, ainda, documentos com detalhes sobre a metodologia usada pela empresa de auditoria e pediu que o TSE suspendesse a veiculação das inserções da campanha de Lula em todo o Brasil. Na quarta-feira, o jornal "Folha de S. Paulo" publicou uma reportagem sobre a demissão de um funcionário do TSE que teria sido exonerado por estar supostamente atrapalhando o trabalho do órgão para responder a ação movida pela campanha de Bolsonaro. Ainda de acordo com a reportagem, o funcionário se chama Alexandre Gomes Machado e, segundo a publicação, teria procurado a Polícia Federal onde prestou depoimento informando que, desde 2018, ele teria informado o TSE sobre falhas na fiscalização da veiculação de propaganda eleitoral. Segundo o jornal, Machado disse que teria procurado a PF por temer represálias após sua exoneração. A BBC News Brasil tentou, mas não conseguiu localizar Machado. No início da tarde de quarta-feira, o TSE divulgou uma nota informando que a exoneração de Machado se deu pela suposta prática de "assédio moral, inclusive por motivação política" e que as alegações feitas por ele à PF seriam "falsas e criminosas". Ainda segundo a nota, o TSE disse que a reação de Machado teria sido uma tentativa de evitar sua futura responsabilização sobre o caso. "Ao contrário do informado em depoimento, a chefia imediata do servidor esclarece que nunca houve nenhuma informação por parte do servidor de que desde o ano 2018 tenha informado reiteradamente ao TSE de que existam falhas de fiscalização e acompanhamento na veiculação de inserções de propaganda eleitoral gratuita", disse o TSE.
2022-10-26
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brasil
Como eleição é encarada em bairros marcados pela violência
A violência costuma ser citada em pesquisas como uma das principais preocupações dos brasileiros. Mas como o tema influencia as escolhas eleitorais de moradores de favelas dominadas pelo crime organizado, ou de brasileiros que tiveram parentes mortos em operações policiais? Apresentado pelo repórter João Fellet - e com a produção deste episódio a cargo de Tatiana Lima -, o podcast aborda como pessoas de diferentes grupos sociais - como jovens evangélicas, executivos do mercado financeiro e brasileiros que se identificam como pardos - se posicionam diante de conflitos políticos atuais. O podcast busca ainda entender como os brasileiros chegaram ao atual grau de divisão na política e se há possibilidade de diálogo entre grupos divergentes. Fim do Matérias recomendadas Em 2010, uma série de operações policiais marcou a história do Rio de Janeiro. A polícia e as Forças Armadas ocuparam favelas que eram dominadas há várias décadas pelo crime organizado. Daquela vez, as autoridades prometiam que os agentes de segurança tinham chegado para ficar. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As operações abriram o caminho para a instalação das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadoras). A estratégia deu certo por um tempo. Na véspera da Copa do Mundo de 2014 e da Olimpíada de 2016, favelas com fama de violentas chegaram a hospedar turistas estrangeiros. Mas, em poucos anos, o crime organizado voltou a dominar os territórios. "Disseram que estavam combatendo, mas, na verdade, eles estavam alimentando um novo modelo de crime", diz ao podcast Brasil Partido a artista plástica Mariluce Mariá, uma líder comunitária de 40 anos que vive no Complexo do Alemão, uma das maiores favelas do Rio. Ela diz que, nos últimos anos, os confrontos no Complexo do Alemão entre facções criminosos e a polícia têm se tornado mais violentos. Antigamente, diz ela, os moradores conseguiam se abrigar quando a polícia subia o morro atrás de traficantes. Hoje, porém, ela afirma que os armamentos usados por policiais e traficantes são tão potentes que derrubam paredes. "Em qualquer guerra existe o campo de refugiados", diz Mariá. "Nas favelas, não existem, a gente já tomou tiro do alto do helicóptero", ela afirma. Desde 2021, aconteceram três das quatro operações policiais que causaram mais mortes na história do Rio - uma delas no próprio Complexo do Alemão, em julho de 2022, quando 17 pessoas morreram. Entre as pessoas mortas estavam um policial militar e uma moradora de 50 anos atingida pela polícia. Os outros 15 mortos, segundo a polícia, foram alvejados enquanto trocavam tiros com os agentes de segurança. Mas a informação não pode ser confirmada de forma independente, já que, segundo a Defensoria Pública do Rio, a polícia não preservou os locais das mortes. Maia reconhece que o crime organizado é parte desse confronto, mas diz que "quem me deve um exemplo e uma satisfação é (a) quem eu pago meus impostos (governo), então tem que cobrar deles mais trabalho de inteligência". O Complexo do Alemão, onde Mariá mora, ganhou os holofotes após uma visita de Lula num ato de campanha, em outubro. Na visita, o ex-presidente vestiu um boné com a sigla CPX. O presidente Jair Bolsonaro e vários de seus apoiadores passaram então a divulgar que a sigla CPX seria uma referência ao crime organizado. Também disseram que Lula só tinha conseguido visitar o Complexo do Alemão porque teria tido o aval do tráfico, segundo eles. Mas CPX quer dizer "complexo", e essa é uma sigla usada por moradores de vários outros complexos de favelas do Rio. Maia diz que ela foi uma das primeiras pessoas a usar a sigla nas redes sociais, para mapear casos de violência na comunidade. Ela diz que achou ofensiva a fala de Bolsonaro relacionando a visita de Lula a uma suposta afinidade do ex-presidente com criminosos. "Bandido tem em todo lugar: tem bandido armado, bandido de caneta, e bandido só com palavra", afirma. "Existem pessoas que matam mais gente com uma só palavra do que com qualquer outra coisa." Mesmo assim, Maia diz que pretende anular o voto. Ela diz que Bolsonaro não promoveu melhorias para quem vive em favelas nem na gestão da segurança pública. Por outro lado, também é crítica às gestões de Lula e Dilma Rousseff e lembra que os dois, enquanto eram presidentes, ofereceram o apoio das Forças Armadas para operações nas favelas. Para ela, o uso da força só acirrou o problema, e governos deveriam apostar na inteligência policial e investimentos em educação para combater a violência nas favelas. Mariá lembra ainda que a deputada federal Benedita da Silva, uma das fundadoras do PT, era vice-governadora na gestão que levou os chamados "caveirões" para as favelas cariocas. Caveirão é o nome popular de um veículo blindado usado pela Polícia do Rio - o apelido se deve ao símbolo do BOPE (Batalhão de Operações Especiais da PM fluminense) que o veículo exibe na lataria, uma faca fincada numa caveira. Segundo Mariá, a chegada do caveirão ampliou a escala dos confrontos e deixou os moradores sob riscos ainda maiores. Benedita era vice de Anthony Garotinho e chegou a assumir o governo por 9 meses, em 2002, quando o governador deixou o posto para concorrer à Presidência. Procurada pela BBC, ela não quis se pronunciar sobre as críticas de Mariá nem sobre o uso do caveirão nas favelas. Maia vive uma rotina de insegurança há décadas e está desiludida com a política, pois viu vários governantes entrarem e saírem sem que o problema se resolvesse. Mas e cariocas que só começaram a viver essa situação recentemente? A técnica de enfermagem Lucia Martins, de 42 anos, narra ao podcast Brasil Partido como, há cerca de um ano, a internet da Claro foi cortada no bairro Engenho da Rainha, na zona norte do Rio, onde ela mora. Martins diz que, após entrar em contato com a operadora na ocasião, foi informada de que técnicos da empresa não poderiam fazer a manutenção da rede por falta de segurança. Dias depois, a imprensa carioca noticiou que o tráfico de drogas estava por trás da ação. Hoje, moradores que queiram acessar a internet no bairro precisam recorrer a um serviço de menor qualidade, oferecido por uma empresa desconhecida. Essa é uma prática comum em bairros do Rio dominados pelo tráfico ou pela milícia, que têm nesses serviços alternativos de internet uma fonte de financiamento. Martins diz que se surpreendeu com o corte da internet porque, embora essa seja uma prática comum em favelas, seu bairro não é uma favela. O Engenho da Rainha é um bairro de classe média e bem localizado, próximo do metrô e de vias que dão acesso à zona oeste e ao centro do Rio. Contatada pela BBC, a Claro não respondeu por que deixou de operar no bairro. "A violência, hoje, eu acredito que está no Rio de Janeiro todo, mas aqui a gente tem presenciado cada vez mais perto", diz Martins. Ela afirma que são cada vez mais comuns as ocasiões em que é despertada pelo barulho de tiroteios ou por helicópteros policiais em voos rasantes. Martins diz ter votado em Bolsonaro em 2018, mas se arrependeu - principalmente por conta da gestão da pandemia. "Eu acredito que muita gente morreu pela demora da vacina", afirma. Ainda assim, pretende votar outra vez no presidente por considerar Lula uma opção ainda pior. "Eu acredito, sim, que o governo do PT teve culpa em boa parte de todas as acusações que foram feitas, que teve um roubo muito grande no país e não gostaria que ele voltasse", diz. No primeiro turno, Bolsonaro recebeu 47% dos votos no município do Rio, contra 43,5% de Lula. A disputa entre os dois também foi parelha quando só se consideram os votos das maiores favelas da Grande Rio. Segundo uma reportagem do Jornal Extra, Lula venceu em oito dessas favelas, e Bolsonaro ficou na frente em sete. Ou seja, entre moradores de favelas do Rio de Janeiro, que são um dos grupos que experimentam mais violência no Brasil, não existe uma preferência clara por um dos dois candidatos. Mas como a violência extrema influencia posições políticas em outras partes do Brasil? Camila Fiuza tem 34 anos e vive em Salvador. Em 2014, o irmão dela, Davi Fiuza, desapareceu após uma abordagem policial no bairro de São Cristovão, na periferia da capital baiana. Ele tinha 16 anos na época. Fiuza diz que era muito próxima do irmão: quando Davi era bebê, era ela quem cuidava dele. "Então ele também me chamava de mamãe quando era pequeno", diz Fiuza. Ela afirma que, após o desaparecimento de Davi, "o pânico se instalou na comunidade". "Aconteceram várias mortes sequenciais na região, e as pessoas ficavam em pânico e ninguém queria falar", ela diz. Em 2018, quatro anos após o desaparecimento do Davi, o Ministério Público acusou sete policiais militares por participação no caso. A Justiça aceitou a denúncia, e agora, oito anos depois do desaparecimento, a família aguarda a realização das primeiras audiências sobre o caso. Contatada, a Polícia Militar da Bahia não quis se manifestar sobre o caso. Na época do desaparecimento, o governo da Bahia era chefiado por Jaques Wagner, do PT. "Eu tenho uma crítica muito forte ao governo do PT da Bahia", diz Fiuza. "O governo simplesmente não deu nenhuma resposta para nossa família, eles agem de forma cínica", afirma. Wagner também não quis se pronunciar sobre o caso à BBC. Apesar das críticas às gestões do PT no Estado, Fiuza diz ter motivos de sobra para votar em Lula na disputa para a Presidência. "Em boa parte do Nordeste, nós vivemos muito esquecidos, marginalizados e precarizados por muito tempo. E o Lula trouxe políticas públicas muito importantes que nos afetaram de forma muito positiva, como o Bolsa Família, como as cotas", ela diz. Graças à política de cotas, Fiuza foi a primeira pessoa da família a se formar na universidade - ela cursou Jornalismo na Universidade Federal da Bahia. Ela diz que, quando há mais negros na universidade, também passa a haver mais negros em postos que são historicamente ocupados por brancos no Brasil - como no topo dos governos e das polícias -, o que pode ajudar a combater o racismo nessas instituições, segundo ela. Mas, pra Fiuza, esse movimento precisa ser acompanhado por outro: criar uma consciência racial entre negros. "As pessoas, muitas pessoas, elas não têm noção da cor da sua pele, elas não têm noção que são negras e fazem parte de um grupo alvo da polícia", diz. Em julho, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, uma organização não governamental, lançou seu 16º anuário sobre as estatísticas nacionais de violência. O anuário revelou que 15,8% das pessoas mortas pela polícia no Brasil em 2021 eram brancas, e 84,1% eram negras. O fato de Fiuza ser adepta do candomblé acrescenta outra camada à dor da família. Isso porque, como o corpo de Davi nunca foi encontrado, ela diz que a família nunca pode fazer os rituais fúnebres para garantir que o espírito do irmão descansasse. Fiuza afirma que, segundo sua crença, os mortos voltam para Nanã, orixá que forneceu o barro para a criação dos humanos e para quem os corpos voltam após a morte. "A gente sabe que o meu irmão não foi para esse lugar que deveria voltar", ela diz. "A gente não sabe onde ele está, o que de fato potencializa ainda mais o sofrimento".
2022-10-26
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63381233
brasil
A igreja evangélica que manda fiéis votarem nulo: 'Se não aceitarem, procurem outra'
Está registrado no credo oficial da Igreja Batista Renovada Moriá, artigo 29: "Cremos que a igreja e seus membros não devem envolver-se em política — votando ou sendo votado". Está na fala do pastor: "Esclarecemos aos que em nosso meio querem votar em Bolsonaro qual é a nossa posição sobre o voto. Se não quiserem aceitar, devem procurar uma igreja como pensam". E ele vai além: "Quem, porém, defender Lula, tem que sair sem conversa (…) Quem simpatiza com o petismo tem que nascer de novo e ser liberto das trevas. Sem isso, não deve ir para qualquer igreja". Um dos fiéis contextualiza a proibição ao exercício do voto a membros da igreja, que tem 14 templos em Fortaleza (CE), sob condição de anonimato. "Na minha igreja, não podemos votar. O voto precisa ser anulado", diz à BBC News Brasil. Fim do Matérias recomendadas "Mas o pastor tem muita simpatia pelo Bolsonaro. A orientação é a saída da igreja para quem vota em Bolsonaro e, para quem vota em Lula, não ir para nenhuma igreja porque, segundo o pastor, essa pessoa não é filha de Deus." O direito universal ao voto, direto e secreto, é garantido no Brasil pela Constituição e pelo Código Eleitoral. Glauco Barreira Magalhães Filho, pastor e presidente da igreja, também é advogado, professor de Direito na Universidade Federal do Ceará e membro da Academia Cearense de Letras Jurídicas. A reportagem o procurou insistentemente por e-mail, telefone e redes sociais. Ele não atendeu às ligações, não respondeu às mensagens e bloqueou o repórter em seus perfis online. Em textos autorais, Barreira diz que fiéis não devem "dar voto a nenhum dos candidatos", nem aceitar "qualquer aproximação entre igreja e política partidária". Mas no Facebook, onde tem 4,9 mil amigos e 1.928 seguidores, ele publica críticas a ministros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral e a favor de um golpe militar e, em contraste com o veto à liberdade de voto na igreja, mostra simpatia pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), enquanto compartilha imagens qualificando Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como "rato barbudo". A BBC News Brasil também procurou a reitoria da Universidade Federal do Ceará (UFC) e a direção da Faculdade de Direito. Ambas não comentaram a conduta religiosa do professor. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em artigo publicado em jornal ligado à igreja em 2011, o pastor e professor afirma que fiéis não podem votar, nem apoiar candidatos ou concorrer a cargos. "Pelo fato de a política deste mundo estar sob a influência de Satanás, o príncipe deste mundo (João 14:30) e Deus deste século (II Cor. 4:4), não devem os cristãos se envolver com ela, quer sendo cabo eleitoral, candidato ou eleitor." Ele completa: "Devemos ir às urnas em obediência às autoridades, mas não devemos dar o nosso voto a nenhum dos candidatos, pois o reino de Deus não é deste mundo". Especialistas em Direito Eleitoral consultados pela BBC News Brasil dizem que violações às normas eleitorais por líderes e associações religiosas e candidatos podem levar à aplicação de multas e, em casos graves, a sentenças de prisão e até cancelamento do registro de candidaturas. O veto da igreja de Fortaleza à liberdade de voto aos fiéis, sob ameaça de saída compulsória da igreja, poderia representar violação do artigo 301 do Código Eleitoral, que proíbe "coagir alguém a votar, ou não votar". "Vai se examinar se o grau de coação é um grau importante. Se aquele fiel pensa que, se for expulso da igreja, irá para o inferno, ou coisa do tipo, isso pode ser uma coação grave. Isso tem que ser examinado caso a caso", explica um ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral à BBC News Brasil. A pena sugerida no artigo 301 é de reclusão de até quatro anos e pagamento de 5 a 15 dias-multa. O magistrado também cita lei 9.840, que define compra de votos, entre outros temas. "É vedado. Você não pode coagir uma pessoa a votar de uma forma ou votar de outra forma. É ilícito", ele afirma. A sede da Igreja Batista Renovada Moriá em Fortaleza fica num casarão amarelo emoldurado com pedras e um mosaico azul, verde, marrom e roxo. Atrás do portão, uma placa de madeira traz o nome do pastor e professor universitário: "Rev. Glauco Barreira Magalhães Filho". A denominação, que completou 30 anos em Fortaleza em 2018, teria aproximadamente 500 fiéis, segundo relato de um dos seguidores à BBC News Brasil. A igreja se autodenomina anabatista, mas não integra grupos históricos deste movimento cristão, como os amish e os menonitas. Nos 48 tópicos registrados em seu credo há regras rígidas: "Cremos que o homem deve ter cabelo curto e a mulher deve ter cabelo longo", diz o tópico 18. "Cremos que joias, pinturas e atavios devem ser repudiados", afirma o seguinte. "Cremos que anticonceptivos artificiais e cirurgias para evitar filhos são pecaminosos", continua o texto. Glauco Barreira é mestre em direito e doutor em sociologia pela Universidade Federal do Ceará. Durante a graduação, era visto como "sério, estudioso, ligado em filosofia", segundo relato de um ex-colega de faculdade à BBC News Brasil. Nas palavras do contemporâneo, com o tempo teria se tornado "uma Damares (Alves) da Academia", em referência à senadora bolsonarista eleita pelo Distrito Federal. Coordenou cursos de Direito em faculdades privadas e seu currículo na plataforma Lattes inclui pesquisas em Filosofia do Direito, Hermenêutica jurídica, Teoria do Direito, Direitos Fundamentais e Imaginário Jurídico. Entre suas áreas de atuação está o direito Constitucional - área dedicada a estudar a Constituição Federal, onde está estabelecido que todos os cidadãos brasileiros têm direito ao voto livre e secreto. Barreira ganhou projeção nacional em 2013, como professor, quando escreveu no site da faculdade de Direito da UFC que o reconhecimento do casamento homoafetivo pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) seria um "golpe de estado". Neste texto, Barreira associou a atuação do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), citando o então ministro Joaquim Barbosa, ao comportamento de Adolf Hitler. Atualmente, publica diariamente opiniões sobre as eleições em suas redes sociais. Recentemente, o professor e pastor divulgou montagem com um retrato do líder da revolução chinesa Mao Tsé-tung junto ao logotipo do TSE, junto aos dizeres: "Mao TSE Tung". Em outra, a imagem de uma boca costurada sob as letras "STF" e o seguinte texto: "Muito em breve, se nada for feito, nosso direito sagrado à liberdade de expressão será totalmente tolhido pelo STF", diz a legenda. Em um álbum de fotos, incluiu cópia da primeira página do jornal Correio da Manhã de 3 de abril de 1964 - dois dias após o golpe militar. Um texto adicionado ao facsímile apoiava um novo golpe, convocando pessoas para um ato chamado "clamor pela intervenção" na avenida Paulista, em 2019: "A história demonstra claramente. Por causa do povo em massa nas ruas é que houve intervenção militar". Entre diversas falas antivacina, o pastor e professor estimulou seguidores que tomaram imunizantes e tiveram covid a processarem suas empresas. As dezenas de publicações diárias também promovem suas atividades como pastor. Caso do anúncio de um culto especial que presidiu sobre "O que a bíblia diz sobre a condenação eterna (inferno)?". A reportagem perguntou ao pastor e professor de Direito Glauco Barreira Magalhães Filho: - Por que o senhor veta a seus fiéis - textualmente e durante cultos - a liberdade de voto, sob ameaça de saída compulsória da igreja? - O Código Eleitoral, como sabe, tipifica como crime "ameaça para coagir alguém a votar, ou não votar". Condicionar a presença na igreja ou não à anulação do voto foi entendido como infração à lei, na avaliação de uma autoridade entrevistada pela reportagem. Qual é a sua reação? - O senhor é professor Associado I da escola de Direito da Universidade Federal do Ceará. É membro da Academia Cearense de Letras Jurídicas. Vê contradição entre sua atuação religiosa e o que ensina e como atua profissionalmente? Nenhuma das perguntas foi respondida, nem os pedidos de entrevista por telefone foram atendidos. O artigo 29 do credo da igreja liderada por Batista diz que "membros não devem envolver-se em política (votando ou sendo votado)". O trecho inclui uma série de passagens bíblicas como suporte à regra, entre as quais "A nossa cidadania, porém, está nos céus, de onde esperamos ansiosamente o Salvador, o Senhor Jesus Cristo" (FL 3:20). O pastor e professor definiu a igreja num artigo publicado em novembro de 2016. No texto, ele reitera a relação da denominação que preside com a política. "A Igreja Batista Renovada Moriá é anabatista. Nem todos os batistas são anabatistas (...) Os anabatistas distinguem-se deles por não aceitarem qualquer aproximação entre a igreja (ou os crentes individuais) e a política partidária." À reportagem, um dos fiéis da igreja liderada por Barreira narra um rígido processo seletivo para entrada na agremiação. "Antes de qualquer pessoa ingressar na igreja, ela passa por uma fase de estudos. Caso esteja de acordo e queira ser membro, é submetido a uma entrevista." "Se você convencer os pastores e líderes da sua convicção, será aceito." A avaliação pode acontecer por escrito ou por meio de entrevistas. Segundo a pessoa entrevistada, caso as regras da igreja sejam descumpridas - a obrigatoriedade de voto nulo nas eleições, inclusive -, o fiel é imediatamente afastado. "Durante o convívio na comunidade, se o seu comportamento ou atitudes demonstrar o contrário do regulamento interno aceito, o seu nome é expulso do rol de membros." A pessoa entrevistada se mostra constrangida pelo posicionamento político do pastor e professor da universidade cearense. "O pastor determina nossa salvação em relação à nossa simpatia por A ou B, como está escrito na nota dele", ela diz. Diz que está "em desacordo com a doutrina" porque vê contradição entre a postura pessoal do pastor e o que ele prega no púlpito. "Eu acho esquisito o pastor demonstrar tanta simpatia pela direita e ficar sempre debatendo em palestras, encontros, e páginas sociais", diz. "Já começou a ditadura nas igrejas."
2022-10-26
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63351457
brasil
Darcy Ribeiro: 100 anos do visionário que lutou por indígenas, pela educação e fugiu de UTI para concluir livro
"Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu." Esse trecho do discurso que o antropólogo, etimólogo, educador, escritor e político Darcy Ribeiro (1922-1997) proferiu na Universidade Sorbonne, em Paris, quando recebeu o título de Doutor Honoris Causa, resume a singular e brilhante carreira do intelectual mineiro que não ficou circunscrito aos limites da academia. Nesta quarta-feira (26/10), sua vida e obra são celebradas e relembradas por ocasião de seu centenário de nascimento. Ele mesmo costumava dizer que era um homem com muitas vidas. Suas expedições acabaram virando livros e filmes, e são vistas hoje por acadêmicos e por seus seguidores como uma das etapas "visionárias" na sua trajetória. "Visionário" foi a definição citada tanto pelo indigenista Toni Lotar, conselheiro da Fundação Darcy Ribeiro (Fundar), no Rio de Janeiro, que observou a preocupação do antropólogo com os indígenas e o meio ambiente, como pelo professor argentino da Universidade San Martin (Unsam), de Buenos Aires, Andrés Kozel, coautor do livro Os futuros de Darcy Ribeiro (Elefante Editora), lançado neste ano. Fim do Matérias recomendadas "Darcy estudou muitos assuntos que hoje estamos vivendo", disse Kozel. Seu amigo e escritor Eric Nepomuceno, que o visitou até os últimos de seus dias, disse à BBC News Brasil por que entende que Darcy foi um intelectual diferente. "Darcy foi um desses pouquíssimos exemplos de intelectual que não fica de longe examinando números e estudando situações para depois teorizar soluções. Não, não: ele, que ao lado de Celso Furtado foi o intelectual brasileiro que mais peso e influência exerceu na América Hispânica na segunda metade do século 20, jamais ficou na contemplação", diz Nepomuceno. "Foi à luta, foi à realidade. Era um visionário, talvez, mas um visionário que foi para as trincheiras batalhar pelo que acreditava", complementa. Quando tinha 24 anos, mudou-se de São Paulo para uma comunidade indígena no Pantanal, no Mato Grosso do Sul. Mais tarde, moraria com outros indígenas entre o Pará e o Maranhão. Eram os anos 1940 e 1950, e Darcy, ex-estudante de medicina, queria entender a vida dos povos originários. Não exatamente pelos estudos específicos da Medicina, mas por seu interesse pelos povos. Conta que acabou se apaixonando pela questão e ficou amigo dos indígenas. "Eu fiz uma coisa pelos índios que foi criar o Parque do Xingu (no Mato Grosso). Mas eles fizeram mais por mim. Eles me deram dignidade, e hoje posso ir a qualquer país do mundo falar de índio", disse. No Diários Índios, ele relata sua experiência com os Urubus-Kaapor, na região amazônica. A convivência com esse povo foi transformada num filme do alemão Heinz Forthmann, que Darcy convidou para acompanhá-lo em algumas expedições amazônicas. "Darcy identificou que os Urubus-Kaapor eram os últimos tupinambás, descendentes diretos deles", afirmou a antropóloga Gisele Jacon de Araújo Moreira, que trabalhou sete anos com o intelectual, desde os tempos em que ele foi senador até seu falecimento. Entre os fatos públicos que marcaram a vida política de Darcy Ribeiro está a presença do cacique xavante Mario Juruna, que teve seu apoio para ser o primeiro indígena eleito deputado federal. Juruna, que foi do Partido Democrático Trabalhista (PDT), gravava, com um pequeno gravador, todas as declarações dos políticos. Era uma forma de poder cobrar depois que as palavras fossem cumpridas. Em dezembro de 1994, então com 72 anos, Darcy ficou internado em uma Unidade de Tratamento Intensivo (UTI), no Rio de Janeiro, e quase morreu. Diferentes tribos indígenas fizeram rituais por sua cura. Ao chegar à casa dos 30 anos, após sua vida com os indígenas e sua aproximação com os irmãos sertanistas Villas-Bôas, Darcy conviveu com o educador Anísio Teixeira e passou a ter paixão pela educação. Foi um defensor contumaz da educação pública e gratuita para todos, como um dos lemas fundamentais no Brasil. "Se os governantes não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios", disse num discurso no início dos anos 1980. Darcy dizia que, sem a educação, os colonizadores acabariam vencendo. "Darcy era sociólogo, antropólogo, escritor, romancista, político e estadista", afirma o presidente da Fundação Darcy Ribeiro (Fundar), José Ronaldo Alves da Cunha. Foi ministro da Educação e chefe da Casa Civil no governo de João Goulart (1961-1964), derrubado pelo golpe militar. Nesse período, o projeto inovador da Universidade de Brasília, sem segmentação por departamentos, regrediu, recorda o presidente da Fundar. Por isso, naquele discurso na Sorbonne, Darcy disse ter "fracassado" ao citar a universidade. Com a ditadura, Goulart e Darcy se exilaram em países da América Latina, e o intelectual foi convidado para dar palestras em várias universidades da região. O tempo no exílio acabou tendo influência na sua obra. Era a "Pátria Grande", dizia ele, expressão citada por governos de centro-esquerda e de esquerda da América do Sul para se referir à região. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Darcy foi filiado ao PDT, vice-governador do Rio de Janeiro no governo de Leonel Brizola e senador da República quando criou o projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação. A lei, aprovada em 1996, é chamada de Lei Darcy Ribeiro e estabelece pontos para a formação dos profissionais de educação, para garantir o acesso de toda a população à educação gratuita e de qualidade, para valorizar os profissionais da educação e do dever da União, do Estado e dos municípios com a educação pública. A lei continua em vigor. "Darcy era um homem político. E ele fazia política no melhor sentido da expressão", disse José Ronaldo. Ele se construiu buscando as "matrizes" brasileiras, com os indígenas, com os movimentos negros, com a educação e com a política. Ex-integrante do Partido Comunista, nos tempos da juventude, onde dizia ter aprendido muito sobre a importância de conceitos como, por exemplo, a educação e a reforma agrária, ele não demonstrava convicção plena no comunismo e acabou se afastando do partido. Entre seus amigos, já na idade adulta, estava o arquiteto Oscar Niemeyer, comunista declarado, com quem compartilhava interesses de inclusão social. Foi já nos anos 1980, no governo Brizola, que concretizou o projeto dos Centros Integrados de Educação Pública (Cieps). Ele acompanhava as obras das escolas, o currículo escolar e defendia a cultura local, recorda Gisele Jacon. O legado de Darcy Ribeiro também inclui o Parque Nacional do Xingu (hoje Parque Indígena do Xingu), o Museu do Índio, o Memorial da América Latina, a Universidade Nacional de Brasília (que, por ideia dele, tem um "beijódromo"), o Monumento a Zumbi dos Palmares e o Sambódromo do Rio de Janeiro (que, por ele, seria utilizado como escola nos períodos fora do Carnaval). Um mês após a internação na UTI, considerado um paciente terminal, em janeiro de 1995, Darcy foge do hospital para concluir em uma casa de praia em Maricá (RJ) seu livro O Povo Brasileiro - a Formação e o Sentido do Brasil, um clássico sobre a identidade e as muitas diversidades regionais brasileiras e que virou documentário. "Eu não queria morrer sem terminar esse livro. Eu passei 30 anos e 40 dias escrevendo esse livro", recordou três meses depois daquela fuga. "Das pouquíssimas brigas sérias que tivemos, uma delas foi porque me recusei a ajudar o Darcy a fugir do hospital. Depois estive um sem-fim de vezes com ele na casa de Maricá, uma praia perto do Rio, onde se abrigou", recordou Nepomuceno. Sobre o livro, Darcy contou em 1995 em entrevista ao programa Roda Viva que queria saber "por que o Brasil não deu certo. Por que perdemos? Por que mais uma vez a direita ganhou? Porque o Brasil não deu certo do ponto de vista do seu povo?". Para ele, o país era algo novo e que merecia ser estudado, compreendido. "O Brasil é um gênero novo humano. Fundir herança genética e cultural índia, negra, europeia num gênero humano novo. Numa coisa nova. Nunca houve. Isso é a aventura brasileira", disse. Ele morreu dois anos depois, em 1997, em Brasília, e naqueles dois últimos anos de vida ainda escreveu a autobiografia Confissões. Para o presidente da Fundação Darcy Ribeiro, o antropólogo e educador era otimista, mas sofria muito com o que ele enxergava do futuro. "Aquilo que o Brasil poderia ser (...) e ele sofria pelo que o Brasil ainda não era", afirmou. Ao mesmo tempo era definido como otimista, Darcy era também inconformado ou indignado, como dizia. "A classe dominante sempre se deu bem e continua se dando bem. Mas o povão tá aí, com uma fome que é espantosa. Por que há fome nesse país?", disse e escreveu há quase 30 anos. Ele provocou prantos no discurso que fez no enterro do cineasta Glauber Rocha, em 1981, ao afirmar que, certa vez, o artista chorava e dizia "o país que não deu certo". "Glauber chorava a dor que todos os brasileiros deveriam chorar, a dor das crianças com fome no Brasil, a dor do país que não deu certo. Glauber chorava a estupidez, a brutalidade, a mediocridade, a tortura." Ao buscar entender a humanidade e, especialmente o Brasil, Darcy Ribeiro dizia que buscava e constatava "beleza". Nepomuceno diz que o intelectual deixou um legado imenso, mas lamenta que o Brasil seja um país "desmemoriado". "Recorro ao próprio Darcy para chamar à lembrança os três pontos cruciais de tudo que ele fez, que moveram sua luta perene: educação para todos, salvar os indígenas e a floresta, reforma agrária. Criar uma sociedade com plena e palpável noção de seus direitos, distribuir a consciência da necessária cidadania. Entender, como defendeu com clareza um de seus amigos, o escritor uruguaio Eduardo Galeano (autor de As Veias Abertas da América Latina), que a história não pode se limitar a ser herança, tem de ser construída", disse.
2022-10-25
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brasil
'Se tivesse ficado no Irã, não teria futuro', diz iraniana que mora no Brasil e fugiu de perseguição
"República Islâmica do Irã e direitos humanos são como água e óleo, não se misturam", assegura Parnaz Imani, iraniana que vive em Manaus, no Amazonas, há quase 40 anos. Segundo ela, os protestos que varrem seu país natal desde meados de setembro foram apenas o "estopim" de décadas de repressão das autoridades contra uma população que reivindica maior liberdade. As manifestações no Irã tiveram início há cerca de um mês, após a morte de Mahsa Amini, uma mulher de 22 anos presa pela polícia da moralidade na capital Teerã em 13 de setembro por supostamente violar as regras rígidas do Irã que exigem que as mulheres cubram os cabelos com um hijab (tipo de véu islâmico). Imani tem 52 anos e diz que ela mesma vítima de perseguição religiosa, motivo pelo qual decidiu deixar o Irã ainda adolescente, acompanhada da irmã mais velha e do cunhado. "Não sou muçulmana e professo a fé bahá'í (religião monoteísta que enfatiza a união espiritual de toda a humanidade). Sempre fomos perseguidos, mas depois da Revolução Islâmica, essa perseguição foi institucionalizada", diz ela por telefone à BBC News Brasil em alusão ao regime dos aiatolás, no poder desde 1979. Fim do Matérias recomendadas "Os bahá'ís passaram a ser perseguidos, presos e mortos. Tomaram nossa casa e nossos bens. Éramos tratados como seres inferiores. Não tínhamos os mesmos direitos. Não podíamos estudar, por exemplo, e minha mãe perdeu a aposentadoria. Vivíamos escondidos. Se ficássemos lá, não teríamos futuro", conta. Em agosto deste ano, especialistas da ONU pediram às autoridades iranianas que parem "com a perseguição e o assédio às minorias religiosas" e que deixem de usar a religião como pretexto para "restringir o exercício dos direitos fundamentais". "Estamos profundamente preocupados com as crescentes prisões arbitrárias e, em algumas ocasiões, desaparecimentos forçados de membros da fé Bahá'í e a destruição ou confisco de suas propriedades, o que traz todos os sinais de uma política de perseguição sistemática", disseram. Eles afirmaram que os atos "não são isolados", mas fazem parte "de uma política mais ampla para atingir qualquer crença ou prática religiosa dissidente, incluindo cristãos convertidos, dervixes gonabadi e ateus". Segundo o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), a "comunidade bahá'í está entre as minorias religiosas mais severamente perseguidas no Irã", com um aumento acentuado nas prisões neste ano. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Imani fala rápido e em português fluente com pouco sotaque. Foi em busca de um futuro melhor que ela chegou à capital amazonense em 1986, após um breve período como refugiada no Paquistão. "Deixamos o Irã sem nada, só com a roupa do corpo e uma mala com nossos pertences", lembra. Imani, sua irmã e o cunhado foram ajudados pela Organização das Nações Unidas (ONU), e a opção por Manaus se deu pelos laços com a comunidade bahá'í, já estabelecida na cidade e envolvida na agricultura. O Brasil passou então a ser sua nova casa e de outras 200 famílias iranianas bahá'ís. "A adaptação não foi tão difícil. Eu não sabia falar uma palavra sequer em português. Não tenho facilidade para outros idiomas, mas eu era adolescente e tinha aquela energia típica da idade, então, foi uma aventura para mim. Os brasileiros e iranianos têm muito em comum, somos muito hospitaleiros e alegres", diz. "Apesar disso, quando você está no seu país, você conhece como tudo funciona. Aqui no Brasil, eu não sabia nada. Por exemplo, sempre tive uma habilidade mais técnica, mas não sabia sobre a escola técnica profissionalizante. E acho que isso acabou impactando o meu futuro profissional." No Brasil, Imani estudou Química, Processamento de Dados, formou-se em Administração, casou, teve um filho — agora com 28 anos e formado — e se divorciou. Ela trabalha como funcionária pública. Mas, apesar de contabilizar mais tempo de vida no Brasil do que em seu país natal, não poupa críticas ao autoritarismo do governo iraniano, em que religião e política se misturam. "No Irã, as pessoas não têm liberdade para fazer suas próprias escolhas. Defendo uma sociedade em que as pessoas sejam livres para fazer o que querem — e sejam, portanto, responsáveis por essas ações. Mas isso não é o que acontece por lá", opina. "Além disso, desde a Revolução Islâmica, o desejo do governo é que a mulher case e fique em casa. A grande maioria das mulheres tem nível universitário, mas poucas conseguem entrar no mercado de trabalho. Você não pode decidir qual roupa quer usar. E qualquer movimentação para romper com as tradições é punida com veemência", conta. Foi o que aconteceu com Mahsa Amini, que foi presa pela polícia da moralidade em Teerã. Houve relatos de que os policiais bateram na cabeça dela com um cassetete. A polícia disse que ela sofreu um ataque cardíaco. Para sustentar esse argumento, as autoridades divulgaram imagens de Amini desmaiando em uma delegacia de polícia, mas a gravação — junto com imagens dela em coma — enfureceu os iranianos. Os primeiros protestos ocorreram após o funeral de Amini na cidade ocidental de Saqqez, quando mulheres arrancaram, em um ato de solidariedade, os lenços que usam para cobrir suas cabeças. Desde então, os protestos aumentaram, com demandas de mais liberdades à derrubada do Estado, e se espalharam ao redor do mundo, com muitas mulheres cortando o cabelo e queimando o véu para demonstrar apoio. No Irã, as mulheres não podem mostrar seu cabelo (são obrigadas a usar o véu islâmico), cantar e dançar em público, andar de bicicleta, assistir a um jogo de futebol, viajar sem o consentimento de seus maridos ou usar maquiagem e esmalte nas escolas. "Foi o estopim. Não se trata mais de um protesto de mulheres para mulheres. Os iranianos estão insatisfeitos com a falta de liberdade e querem mudança", opina. Desde que emigrou para o Brasil ainda adolescente, Imani já voltou ao Irã algumas vezes. Em uma delas, conta ter vivido na pele a repressão do regime, em suas palavras, "autoritário" — e que muitos iranianos que participam dos protestos vêm sofrendo atualmente. "Viajei ao Irã com minha irmã e meu sobrinho, que é brasileiro. Estávamos em Teerã e nos vimos em meio a um protesto estudantil. Não sabíamos do que se tratava e nem estávamos ali para aderir à manifestação. Mesmo assim, fomos agredidos pela Guarda Revolucionária." "Havia policiais dos dois lados da rua e uma espécie de 'corredor polonês'. Meu sobrinho, que nunca tinha passado por situação semelhante, ficou sem entender nada. Batiam em nossas coxas e em nossas pernas com cassetetes. Estávamos ali na hora errada". "A questão da democracia no Irã nunca foi muito liberal, no sentido de poder discordar do governo e dizer o que pensam. Mas, após a Revolução, nos foi tirada a liberdade de poder viver e ter sonhos". "Ou seja, poder ter no horizonte algum futuro promissor. Infelizmente, no Irã de agora, esse tipo de pensamento não é mais possível. Principalmente, para os bahá'í. Os bahá'í sobrevivem". "A vida de todos fica comprometida. Você vive sem perspectivas". E ela conclui a entrevista em tom emocionado. Conta que, após tantos anos vivendo em território brasileiro, já se acostumou à vida do Brasil, com exceção do "verão amazônico" ("Dentro de casa, às vezes, a temperatura chega a 37ºC"), mas sente muita falta "da convivência familiar". "A convivência é do que mais sinto falta. Uma parte do conhecimento e de sabedoria da vida, você aprende não nos livros, mas na convivência. Então, muita coisa que vivo, penso, analiso e reflito, aprendi com meus pais. E meus pais aprenderam com os pais deles. Ou com seus tios ou avós. E tudo isso é transmitido pela convivência. E fico muito triste de saber que meu filho não teve esse privilégio. Porque é algo que não tem volta."
2022-10-25
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63321168
brasil
Lula é 'inteligentíssimo' e Bolsonaro, 'mais autêntico': o que pensa Igor Coelho do podcast Flow
Após o Flow Podcast atingir sua maior audiência histórica ao vivo no episódio com participação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o dono e apresentador do programa, Igor Coelho, não estava celebrando os números, mas se sentindo "um pouco frustrado". Em entrevista à BBC News Brasil concedida dois dias depois (20/10), ele se mostrou incomodado com a decisão da equipe do petista em encerrar logo a conversa, que durou cerca de uma hora e meia, menos de um terço do episódio com o presidente Jair Bolsonaro (PL), que teve mais de cinco horas. Para Coelho, isso impediu que abordasse alguns temas espinhosos, como a suposta relação do PT com governos considerados autoritários na América do Sul. Além disso, a forma como trechos do programa foram usados na propaganda eleitoral de Lula também o incomodou, pois, na sua visão, deu a impressão de que ele seria "fã" do ex-presidente. O saldo do episódio, diz, reforçou sua impressão de que campanha de Lula é "bem mais profissional" que a de Bolsonaro. O que, para Coelho, não é propriamente uma vantagem. Segundo o apresentador, o petista é "inteligentíssimo" e "muito habilidoso". Já Bolsonaro é "mais autêntico", algo que vê como um trunfo do presidente. Fim do Matérias recomendadas "A impressão que eu fiquei do Lula é que amplificou a ideia que eu tinha de que ele é muito safo. Ele é inteligentíssimo, ele é muito hábil, ele comete poucos erros, até em um ambiente livre, sabe? Ele se compromete pouco na fala, muito habilidoso", disse Coelho. "Mas a maneira como a política é feita no PT, de uma forma geral, na campanha e tudo mais, só confirmou o que eu imaginava mesmo, que é muito controlado. É tudo muito cuidadoso e é meio plástico, meio artificial", criticou ainda. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em contraponto ao "profissionalismo" petista, Coelho destaca a capacidade de Bolsonaro de se conectar com uma parcela do eleitor por meio de seu jeito "cru", embora o apresentador reconheça que muitas declarações do presidente são reprováveis e inapropriadas para o cargo. "No dia do Bolsonaro, que é o presidente da República, não tinha ninguém enchendo o saco dele pra ele parar de falar. Ele falou um monte de coisas que podem ser reprováveis, e ninguém se meteu. Então, nesse sentido, eu acho que sim, é mais autêntico", avaliou. "Eu acho que na posição de presidente da República, um cuidado maior com as palavras faz-se necessário. Mas, a ausência desse cuidado comunica alguma coisa também. Eu acho que isso o aproxima do povo, sabe? Eu acho que ele falar do jeito chucrão dele lá, e cru, e sem pensar muito, dá a impressão que ele está falando o que está na cabeça dele. Portanto, a gente sabe exatamente o que tem na cabeça dele. E é melhor isso do que uma fala muito bem estudadinha, que nem, sei lá, do Alckmin", acrescentou. Na entrevista à BBC News Brasil, Coelho também criticou a decisão do Tribunal Superior Eleitoral de desmonetizar (impedir ganhos com publicidade) canais do YouTube e suspender o lançamento de um filme sobre a facada da qual Bolsonaro foi vítima na eleição de 2018. Na sua avaliação, a medida seria censura prévia. Já o TSE considerou que esses canais propagam informações falsas em apoio a Bolsonaro e contra Lula. Para a Corte, a suspensão da monetização desses canais é uma forma de proteger a lisura da eleição. O apresentador comentou ainda a saída de Bruno Aiub, conhecido como Monark, do Flow, após ele ter defendido a possibilidade de um partido nazista existir legalmente no Brasil. Embora discorde dessa declaração, Coelho considera "absurdo" Monark ser tratado como nazista e ter perdido o direito de ter um canal monetizado no YouTube. Devido a essa restrição, Aiub deixou o programa para que o Flow não perdesse as receitas com o canal. A entrevista com Lula, aliás, gerou bom retorno financeiro. Segundo Coelho, até o início da tarde de quinta-feira (20/10), o Flow havia recebido ao menos R$ 50 mil do YouTube, recursos que vêm principalmente de anúncios exibidos para o público que assistiu ao episódio. Confira a seguir os principais trechos da entrevista concedida por vídeo-chamada. BBC News Brasil - A entrevista com o ex-presidente Lula bateu mais de um milhão de views simultâneos. Essa audiência te surpreendeu? Igor Coelho - Surpreendeu sim. Eu já tinha visto o desempenho do Lula em eventos online antes, em comparação com eventos do pessoal do Bolsonaro. Então, eu estava chutando assim: Bolsonaro fez 590 mil, eu acho que o Lula vai ter uns 300 mil e pouco. Só que aconteceu uma mobilização na internet de vários influenciadores, todo mundo se movimentando com o único objetivo de bater o número que o Bolsonaro tinha feito. Isso gera algumas distorções, inclusive nos nossos (dados) analíticos. Por exemplo, a retenção (da audiência na live) é mais baixa do que naturalmente é. O tempo que as pessoas ficam no vídeo também é menor. Então, tem algumas distorções que me mostram que esse número não é real. Mas, mesmo se a gente cortar pela metade, ainda é muita gente de verdade assistindo. Meu objetivo não era fazer uns números absurdos. Eu queria mesmo conversar com o Lula, até porque faz dois anos que a gente está correndo atrás dele. Aí a gente teve essa rápida chance. BBC News Brasil - E no caso da entrevista com Bolsonaro? Igor Coelho - Não estou dizendo que aquele número do Bolsonaro também é absolutamente real. Mas tem algumas diferenças. A gente também já está conversando com ele faz um tempo, desde o ano passado. Como a gente não sabia se ele ia vir de verdade, a gente só soltou a agenda no mesmo dia, às 13h, então não teve tanto tempo assim para a galera se mobilizar. Portanto, eu acho que aqueles números do Bolsonaro são menos inflados que os números que aconteceram com o Lula. A gente queria fazer a mesma coisa para manter todo o mundo nas mesmas condições. Então, com a Simone Tebet a gente também soltou às 13h o aviso que ela ia estar [no Flow]. Já no caso do Lula, o [deputado André] Janones soltou [antes]. Alguém vazou pra ele, e ele começou a mobilização uns dois dias antes do programa. BBC News Brasil - O podcast é um formato de entrevista com linguagem diferente do jornalismo que tem ganhado muito espaço nessas eleições. Isso atrai uma audiência maior? Igor Coelho - Eu acho que as pessoas gostariam de ver esses caras, que são profissionais em enganar a gente, de uma forma mais humana, sentado numa mesa, conversando de igual para igual, com outro cara que se coloca na posição de um cidadão comum. Essa é a verdade. Quando eu vou conversar com eles, as perguntas que eu formulo são coisas que me interessam na minha vida prática. Todas aquelas firulas que eles falam, os ataques uns aos outros e tal, eu tô menos interessado nisso. Então eu acho que as pessoas estão querendo entender melhor a mente desses caras. E um formato longo e livre, o mais livre possível, eu acho que ajuda bastante nisso. E por isso que eu acho que tem um interesse aí. Tem também toda a ideia dessa guerra pessoal que eles estão travando. Então, no caso do Lula, eu percebi que, quando chegou 1 milhão de pessoas assistindo, eles [celebraram] "ah, tá, batemos o recorde do Bolsonaro". O pessoal da campanha dele [quis terminar a participação do Lula após o recorde], não o Lula pessoalmente. Eu fiquei um pouco frustrado e, mais uma vez, não com o Lula, mas com o bastidor da coisa. Eu estudei pra caramba e eu não consegui usar nem 30% do que eu anotei. Ficou parecendo que eu estava ajudando o Lula. Porque, assim, [críticos vão dizer] "ah, você não questionou isso, não questionou aquilo". Não, eu tentei falar umas coisas aqui, mas não deu tempo de construir nada. Com uma hora de programa, [a equipe do Lula] já estava pedindo para terminar. Assim, eu entendo que com o Bolsonaro foi muito longo. O Lula é dez anos mais velho que o Bolsonaro, está numa campanha intensa, reta final. Não queria ficar cinco horas com Lula, mas é que uma hora e meia é muito pouco. Não dá para desenvolver nada. Então, nesse ponto eu fiquei meio frustrado. BBC News Brasil - Uma crítica comum ao formato do seu podcast é que seria uma conversa muito livre e que não haveria um preparo seu para rebater quando a pessoa fala algo que não é verdade. Como foi sua preparação para o podcast do Lula e do Bolsonaro? Igor Coelho - Eu acho que confunde-se eu ser, com o perdão da palavra, escroto com o cara e pressionar e colocar contra a parede, com não perguntar ou não pôr os pontos que podem ser incômodos. Se você assistiu ao programa com o Bolsonaro, vai ver que na maioria do tempo eu estou levantando pontos incômodos. O que eu não estou sendo é desrespeitoso e escroto com o Bolsonaro. Então, independente do que eu ache, tem um ser humano ali, que, inclusive, pessoalmente, parece meu tio. É uma sensação meio comum em todo o mundo que eu já vi que conversou com o Bolsonaro pessoalmente. Parece que em toda família tem um Bolsonaro. Então, daí a ele ser presidente e pôr em prática essas coisas [que ele fala], aí já é uma outra discussão. Mas o que eu estou dizendo é eu não me coloco na posição realmente de ser escroto com cara. Porque eu preciso que seja uma conversa. Se não for uma conversa, ele não vai se sentir confortável para me dizer o que eu quero saber. Por exemplo, tem coisas que o Bolsonaro fala e que o Paulo Guedes fala durante o programa aqui que eu fiquei impressionado de não ter ninguém repercutido essas coisas, [e em vez disso] repercutindo coisas muito menores, sabe? Ele fala inclusive que ele sabe que a cloroquina não tem comprovação científica. Ninguém repercute esse tipo de coisa. Com o Lula, não deu tempo de construir nada de verdade ali. Aí pegaram uma fala do Lula e estão transformando num crime absurdo. Estão chamando Lula de transfóbico, é forçar a barra. Eu queria também que as redes sociais tivessem o mesmo fervor para desmentir esses absurdos como estão tendo com Lula, que eu acho que é um absurdo mesmo, mas para todos os seres humanos, porque eles só estão a fim de desmentir quem está de fato ali alinhado com a narrativa deles. [Nota da redação - A fala acusada de transfobia a qual Igor Coelho se refere ocorreu quando Lula trouxe exemplos hipotéticos de mentiras que, na sua visão, poderiam ser criadas na campanha contra ele. É esse trecho: "As coisas absurdas que eles inventam todos os dias não têm critérios. Eles são capazes de dizer que você nasceu mulher e, depois, virou homem. São capazes de dizer que vacas voam e que cavalo tem chifre"]. BBC News Brasil - E essa é uma crítica que você faz aos dois lados, tanto ao bolsonarismo como ao lulismo? Igor Coelho - Com certeza. Tirando a pessoa dos candidatos, eu considero as campanhas bem parecidas. Ataques semelhantes, mentiras dos dois lados. Não dá para dizer que a campanha do Lula não mente, porque mente. Não dá para dizer que a campanha do Bolsonaro não mente, porque mente. E são ataques raivosos. Cancela aqui, cancela ali. Eu acho as campanhas muito parecidas, apesar de achar a campanha do Lula bem mais profissional, e eu não estou dizendo que isso é bom. Eu sinto que, com o Bolsonaro, pelo menos eles [a equipe do presidente] parecem estar empenhados em deixar ele aparecer. Já o Lula parece ter um cuidado [da equipe] para não falar m****. BBC News Brasil - Mesmo entre apoiadores de Lula, há críticas de que esse profissionalismo da campanha criaria uma imagem que o distanciaria do "povão", embora Lula seja uma figura com apelo nas grandes massas populares. Você concorda que talvez o Bolsonaro acaba tendo uma imagem mais autêntica? Igor Coelho - Sem dúvida nenhuma. Eu acho que essa é a principal diferença da campanha dos dois. Pô, o que aconteceu aqui na conversa com o Lula foi por causa deles [a equipe da campanha]. No dia do Bolsonaro, que é o presidente da República, não tinha ninguém enchendo o saco dele pra ele parar de falar. Ele falou um monte de coisas que podem ser reprováveis, e ninguém se meteu. Então, nesse sentido, eu acho que sim, é mais autêntico. BBC News Brasil - Há pessoas que criticam quem coloca Lula e Bolsonaro no mesmo patamar. Elas dizem que Bolsonaro é uma ameaça à democracia e não consideram que Lula seja uma ameaça. Lula conseguiu atrair antigos adversários, como Geraldo Alckmin e Simone Tebet, justamente por verem essa diferença dele em relação a Bolsonaro. Você concorda com essa visão? Igor Coelho - Eu concordo até certo ponto com isso. Realmente eles não são parecidos, mas eu não sei se é porque o Bolsonaro é uma ameaça à democracia. Eu acho que o Bolsonaro é uma ameaça à maneira como as coisas funcionam, não necessariamente democracia. O que eu quero dizer com isso: ele é meio errático, sabe? A sensação que eu tenho é que você não sabe o que você espera do Bolsonaro. O Lula é um político experiente, muito mais hábil. Então, espera-se que ele vá fazer determinadas alianças e conversar com determinados setores e tal. O Bolsonaro é um pouco mais difícil de prever. O Lula, por outro lado, ele é muito mais hábil e isso também é perigoso porque ele consegue se entranhar pelo poder e espalhar os tentáculos do PT, por exemplo, pelo poder, como, aconteceu nos anos em que o PT ficou no poder. Eles estavam no meio da máquina pública. E o Bolsonaro, eu acho que ele nem é capaz disso. Ele não é sofisticado o suficiente para conseguir esse tipo de manobra. Então, pra mim, os dois são um problema. Na verdade, se eu pudesse escolher apertar um botão "segundo turno não vai ter nenhum dos dois", eu apertava. Então, eu acho que a questão com o Bolsonaro é muito mais de não conseguir prever nem nada, do que de fato ser uma ameaça. Ele nem tem apoio popular, nem apoio das Forças Armadas eu acho, para dar esse golpe que estão falando que ele vai dar. Eu só estou curioso para saber, no caso da vitória do Lula, se o Bolsonaro vai estar lá para passar a faixa, que isso vai ser uma cena interessante. BBC News Brasil - Ou se ele vai dar uma de Donald Trump, que não passou a faixa para o Joe Biden? Houve aquele episódio lastimável de invasão do Capitólio por apoiadores de Trump, com mortes. Acha que um confusão do tipo envolvendo apoiadores do Bolsonaro pode ocorrer aqui? Igor Coelho - Eu acho, eu acho. Para você ter uma ideia, numa escala bem menor claro, quando anunciou-se que o Lula ia vir aqui, os seguidores do Bolsonaro se organizaram nos grupos deles e começaram a soltar umas mensagens de vir geral aqui, fazer uma movimentação e fazer uma manifestação contra o Lula. Então, eu acho que o sentimento que o Bolsonaro propõe e causa é capaz de mover as pessoas a fazer umas loucuras, como a invasão do Capitólio. Mas acho que não passa disso. Não estou dizendo que tudo bem acontecer, mas é que eu acho que um golpe militar é [algo que está] muito longe [de acontecer]. BBC News Brasil - Você falou que não gostaria de ter que escolher entre Lula e Bolsonaro. Mas, sendo esse o segundo turno, decidiu votar em algum deles? Igor Coelho - Eu não voto desde 2012. Eu justifico [ao TSE não ter comparecido para votar] ou voto nulo. E agora que eu tenho conversado mais com políticos em geral, eu voto menos ainda. Porque agora que eu vejo os caras fazendo as coisas que eu considero sujas e desumanas. Eu não estou falando nesse caso de Lula e Bolsonaro. Eu já conversei com todos os candidatos à Prefeitura de São Paulo em 2020. Vira e mexe eu converso com ministro, com deputado, senador. Nem é nada específico de nenhum deles. Mas é que eu vejo umas conversas com assessores ou conversa entre assessores [nos bastidores das conversas realizadas no Flow] que eu não sei, me desmotivam cada vez mais. Eu já não acreditava neles. Agora eu acredito menos ainda. E tem um outro aspecto que que eu considero muito importante: o Flow foi concebido como um ambiente neutro. Eu não estou falando neutro de opinião, estou falando neutro de ouvir todo mundo. Então, eu já tenho muita dificuldade de conversar com a esquerda. Por exemplo, não é o caso [real], mas se falo que eu vou votar no Ciro, os petistas vão ficar p**** e não vão no meu programa. Então, esse ambiente neutro precisa ser preservado e para mim é muito fácil, porque eu não acredito neles [nos políticos] mesmo. BBC News Brasil - Já que você tem essa opinião bem negativa dos políticos em geral, porque decidiu trazê-los ao seu podcast? Igor Coelho - Porque a estrela do meu programa não sou eu, a estrela do meu programa é a conversa, o que acontece ali. Um dos principais olhares que eu tenho pra quem eu vou trazer no meu programa é o quão relevante ele é para a sociedade. Então, acho que independente do que eu acredito, nessa questão de votar nulo ou não, as eleições podem ser um momento de virada da sociedade. Eu acho que é importante quem está decidindo quem vai ganhar [o eleitor] ouça o que eles [os candidatos] têm pra dizer. Eu estou te falando que acho que as pessoas deviam votar nulo, mas no programa eu falo que as pessoas deviam ouvir o que acontece ali [na conversa do podcast] e votar com consciência. Por isso que, na minha opinião, o protagonista do programa é a conversa, que as pessoas pegam aquilo ali, formam as suas próprias opiniões, idealmente, e se tornam mais conscientes. BBC News Brasil - Após as conversas com Bolsonaro e Lula, qual foi a impressão que ficou de cada um deles? Mudou algo na sua opinião? Igor Coelho - A impressão que eu fiquei do Lula é que amplificou a ideia que eu tinha de que ele é muito safo. Ele é inteligentíssimo, ele é muito hábil, ele comete poucos erros, até em um ambiente livre, sabe? Ele se compromete pouco na fala, muito habilidoso. Está fazendo isso há muito tempo e tal. Mas a maneira como a política é feita no PT, de uma forma geral, na campanha e tudo mais, só confirmou o que eu imaginava mesmo, que é muito controlado. É tudo muito cuidadoso e é meio plástico, meio artificial. É a sensação que eu tenho. Eles soltaram um vídeo nas redes sociais hoje [20/10] da participação do Lula no Flow. E aquele vídeo ali, cara, se você está com um olhar meio desatento, parece que eu estava numa posição de fã do Lula. Do jeito que o corte foi feito e colocaram ali. Até fiquei meio: "caraca, o que faço com isso aqui, o que eu digo?". Parece que estava combinado [na equipe do Lula] de ele chegar, falar um monte de coisa, os caras gravarem, fazer aquele vídeo que ia sair depois. Então, parece muito profissional. Eu tô com medo, inclusive, da minha galera que me acompanha aqui ficar achando que eu estava puxando o saco do Lula, porque naquele vídeo parece pra caramba. Toda carinha de que vai rodar aí esse vídeo. Já o Bolsonaro, ele é muito mais uma pessoa... Eu imagino, assim, como é que esse cara virou presidente? Tinha um sentimento antipetista tão forte que foi capaz de colocar ele ali. Eu nem acho que foi porque a galera gostava de verdade do Bolsonaro, sabe? Então, a minha sensação pessoal com o Bolsonaro é que ele é um cara que ele tem uma ideia, e a gente pode considerar uma ideia retrógrada e meio fora do seu tempo e tal, mas ele parece que está tentando aplicar aquela ideia ali da maneira que ele acha que... Por exemplo, tu pergunta de economia para o cara, o cara desde sempre, não é nem segredo: "pô, pergunta lá pro Paulo Guedes". Tem certas coisas que ele não tá ligado, que ele só não sabe mesmo. Então, pessoalmente, eu não acho ele um monstro. Eu acho que muitas coisas que o tornam um monstro na mídia foram amplificadas, até pela forma como ele fala, muito menos cuidadoso, muito menos habilidoso do que o Lula. Tem gente que considera isso positivo, inclusive, porque pelo menos a gente sabe o que tem na cabeça dele. Mas eu não acho que ele seja o monstro que está todo mundo dizendo que ele é não. Ele só tem umas ideias muito esquisitas assim que a gente pode, inclusive, não concordar tranquilamente. Eu não concordo, sei lá, com a maioria. BBC News Brasil -Não seria uma visão um pouco condescendente com ele? Ele é o Presidente da República e acaba sendo muitas vezes extremamente grosseiro com as pessoas. No caso das meninas venezuelanas, por exemplo, eu vi que você considerou exagerado tratá-lo como pedófilo por usar a expressão "pintou um clima". Mas, pela forma como ele parece usar politicamente uma situação de vulnerabilidade dessas meninas, não é natural que gere uma repulsa e críticas graves a ele? Igor Coelho - É natural e necessário. Eu não acho que um Presidente da República pode falar, mesmo num momento de raiva, pô, que não é coveiro. Então eu tenho, sim muitas críticas à maneira como ele se porta, e não só a maneira como ele se porta, tenho críticas também à maneira como ele conduziu o governo, ainda que em alguns pontos. É natural, acho que as pessoas precisam mesmo ter essas críticas e pensar um pouco sobre o que está acontecendo. E eu concordo contigo. Eu acho que na posição de Presidente da República, um cuidado maior com as palavras, faz-se necessário. Mas, a ausência desse cuidado comunica alguma coisa também. Eu acho que isso aproxima do povo, sabe? Eu acho que ele falar do jeito chucrão dele lá, e cru, e sem pensar muito, dá a impressão que ele está falando o que está na cabeça dele. Portanto, a gente sabe exatamente o que tem na cabeça dele. E é melhor isso do que uma fala muito bem estudadinha, que nem, sei lá, do Alckmin, entendeu? Então não estou defendendo, estou dizendo que essa percepção é muito possível. Eu sei porque tem gente na minha família que me diz isso. Tem gente da minha família que me diz o contrário, mas eu consigo entender por que isso conecta tanto. Concordo que não é adequado, mas a gente precisa concordar que comunica alguma coisa também, essa essa maneira como ele se coloca. BBC News Brasil - Sim, tanto que ele tem uma rejeição alta, mas tem também um apoio bem engajado e mobilizado, bem expressivo. Dessas duas entrevistas, Lula e Bolsonaro, você acha que algum deles teve saldo melhor? Igor Coelho - Eu acho que o Bolsonaro teve um saldo melhor, porque, apesar de também achar que a maioria das pessoas que estava assistindo ali era da base dele, ele falou por mais tempo. E tempo, numa corrida presidencial, é importante. Por isso que eu fiquei um pouco chocado, inclusive, dos caras quererem tirar o Lula ali tão rápido. Porque é tempo com um montão de gente vendo. Por mais que tenha uma galera da base ali, eu conversei com algumas pessoas depois do programa do Bolsonaro que me disseram que são bolsonaristas e falaram "pô, eu queria ver o que o Lula tem para falar". E eu não duvido que algumas dessas pessoas estavam assistindo, ou estão assistindo agora [na live gravada] o que o Lula tem para falar. Mas quanto menos ele fala, pior, eu acho. Então, nesse sentido, eu acho que o Bolsonaro, apesar de ter falado várias coisas que podem comprometê-lo, e tal, ele teve mais tempo exposto, sabe? E nesse sentido, eu acho que foi o mais positivo para ele. BBC News Brasil - Qual pergunta, por exemplo, ficou faltando fazer ao Lula que você queria muito ter feito? Igor Coelho - Cara, tem um monte. Eu queria aprofundar um pouco mais sobre o lance da regulação das mídias. O que ele acha desse monte de censura do TSE. Eu queria perguntar qual é o custo político e, por que ele paga, por essa aproximação com os ditadores da América do Sul. Eu queria falar um pouco mais sobre economia e tal. Eu li também que o PT não quis lançar o plano de governo para não ameaçar alianças, e eu queria entender melhor isso aí, mas não deixaram o cara falar. BBC News Brasil - Qual sua visão sobre a atuação do TSE, como a decisão de desmonetizar canais? Igor Coelho - Eu acho um absoluto. É que da outra vez eu não tava tão engajado, mas eu não lembro do TSE se metendo tanto no que sai por aí nas últimas eleições. Teve um lance, um documentário do Brasil Paralelo que é chamado "Quem mandou matar Jair Bolsonaro?", alguma coisa assim, sobre a facada e tudo mais, que nem saiu e os caras já censuraram. Até então tinha rolado de mandar tirar conteúdo e suspender conta de X pessoas e tal. Mas censura prévia eu não tinha visto ainda não. Acho muito perigoso. Eu acho que o poder que a gente está dando como sociedade para o TSE, para o Alexandre de Moraes, talvez esteja passando dos limites. E eu queria muito saber o que esses caras pensam. Porque é muito fácil você bater palma quando está atrapalhando um lado, mas uma hora vai atrapalhar teu lado. É natural, vai acontecer isso. BBC News Brasil - O argumento do outro lado é que haveria um grande problema de fake news que seriam capazes de realmente mudar o curso das eleições. Dessa forma, derrubar essas fake news e canais que propagam fake news não seria censura, mas uma questão legal para não distorcer o resultado das eleições. Como você vê esse argumento? Igor Coelho - Mas a censura prévia ao documentário que nem saiu, esse é [caso] o mais grave de todos, na minha opinião. Todos os outros dá para a gente debater, discutir. Esse, de um material que nem saiu, eu não consigo ver um argumento que defenda isso. Parece que está voltando no tempo. BBC News Brasil - Gostaria de abordar a saída do Monark do Flow, após ele defender a possibilidade de existir legalmente um partido nazista. Isso gerou uma reação fortíssima que culminou na saída dele do programa. E depois ele tentou criar outro canal, mas, como o YouTube não permitiu a ele monetizar o conteúdo, ele foi para outra plataforma. Você acha que houve algum exagero ou essa reação se justifica? Igor Coelho - Eu tenho alguns problemas com isso aí. Bom, eu já falei outras vezes que eu concordo que Monark usou um exemplo que é muito perigoso, que ele podia ter dito a mesma coisa usando outras palavras. Isso, na verdade, é uma conversa que eu já tinha tido com Monark várias vezes e eu sei o que ele quis dizer. Ele quis dizer que, se existe um partido como o PCO, que é um partido de extrema-esquerda, por que não pode existir qualquer outro partido? E aí ele usou o [exemplo] do partido nazista. Pessoalmente, eu discordo. Eu não acho que devia ter o Partido Nazista, porque o partido nazista, ele pressupõe morte. Na verdade, divergências políticas a gente pode ter, o que a gente não pode é pregar a morte de qualquer que seja qualquer pessoa, que é o que o Partido Nazista faz. Então, ele errou aí demais. Agora, o que aconteceu é que as pessoas transformaram o Monark em nazista. E isso não é verdade. E eu sei também que houve uma gigantesca má vontade com o Monark, inclusive ele já era o inimigo público das redes sociais antes, por outras colocações. Ele fala um bagulho mal elaborado e isso custou bastante coisa pra ele. Teve o lance que ele estava conversando com o [advogado] Augusto de Arruda Botelho [em posts públicos no Twiiter] sobre racismo, que ele acabou pegando a alcunha de racista também ali. BBC News Brasil - Acho que ele colocou uma pergunta: "racismo deveria ser crime?". Igor Coelho - Não, o que ele escreveu foi: "ter uma opinião racista é crime?". Ele falou isso querendo dizer que "pô, o cara que está ali sendo racista na dele, mas ele tem uma opinião racista, esse cara devia ser preso mesmo sem tomar atitude nenhuma?". Assim, por que a gente não pode debater isso? Você pode concordar ou discordar. Achar que é crime mesmo, o cara pensar e ficar quieto é crime, não sei. Dá pra gente debater isso tudo, mas aí começaram a chamar o moleque de racista. E, depois dessa aí no Flow, começaram a chamar de nazista, é muito pior. E aí ele virou o nazista na internet. Assim, foi muito rápido. É uma daquelas mentiras absurdas que eu gostaria que as pessoas na verdade tratassem da mesma maneira de todos os lados, porque, no fim das contas, ele não é nazista. Eu considero bastante injusto, na verdade, o que aconteceu, tudo o que eu fui forçado a fazer, inclusive, para salvar tudo aqui. Tudo aconteceu baseado na premissa de que o Monark é nazista. Eu ficou triste, inclusive, que o YouTube não permite que ele esteja na plataforma. Ele está desmonetizado pra sempre. BBC News Brasil - O YouTube permite que o Monark esteja na plataforma, ele só não pode receber dinheiro com isso. Igor Coelho - É, exatamente, exatamente. Mas daí isso inviabiliza um monte de coisa. Imagina se ele fica no Flow: se ele fica no Flow, não tem Flow. Então, tem um monte de problema, é a mesma coisa que tirar ele de uma vez da plataforma, porque, no fim das contas... BBC News Brasil - Fazendo um contraponto: ele deu outras declarações anteriores também complicadas no próprio Flow, em uma conversa dele com o Antonio Tabet, do Porta dos Fundos, ele de certa forma minimizava o problema da homofobia. Igor Coelho - O Monark é exatamente isso aí, é um monte de declaração difícil, porque ele joga a parada ali e aí vamos debater sobre isso. Só que ele joga da pior maneira possível. Isso daí é algo que a gente conversou em 2018. BBC News Brasil - Você não acha que vale uma reflexão? São coisas tão sérias. Por exemplo, você falou que talvez o nazismo seria mais grave que o racismo. Nem sei se poderíamos colocar dessa forma. O racismo está na base da escravidão que matou uma quantidade gigantesca de negros no Brasil. Igor Coelho - É gravíssimo também. BBC News Brasil - E tem marcas até hoje. Então, será que dá para falar "ah, é mal colocado" simplesmente. Ele também não tem que tentar evoluir disso? E talvez doer no bolso não seja necessário para isso? Igor Coelho - Eu acho que sim. Vou te explicar: quando a gente começou, a gente queria ter uma conversa de bar mais humana possível, que fosse a mais real possível com cinco câmeras miradas na nossa cara. Só que a gente não levou em consideração o fato que a gente estava se tornando cada vez mais relevante, mais influente, e as coisas que são ditas aqui... Não é que a gente não pode mais levantar assuntos espinhosos ou discordar de senso comum e tudo mais. Mas eu preciso fazer isso de maneira mais bem elaborada, sabe? E esse espaço que a gente tinha de falar de maneira leviana e superficial de algumas coisas ele está muito diminuído. Então, eu não me sinto nem mais confortável trazendo esses assuntos dessa mesma forma descompromissada. Então, sim, eu acho que à medida que a gente foi se tornando grande, foi se tornando relevante, a gente devia ter também se tornado um pouco mais cuidadoso. E eu já te adianto que essa é uma visão que o Monark discorda. E não estou dizendo que Monark é um monstro. O que eu estou dizendo é que na cabeça dele isso seria um ataque à liberdade de expressão, dentro dos moldes da Primeira Emenda Americana, etc, que ele fala pra caramba. BBC News Brasil - Então, você tem um senso de responsabilidade, mas fiquei com a sensação na sua resposta que também há um sentimento de uma perda, que isso pode podar de alguma forma o fluxo das conversas. Igor Coelho - Sim, sim, sim. Mas essa ideia de perda é uma ideia do Monark para ser sincero. Mas não é a minha opinião, não. Essa era a minha opinião antes dessa M* acontecer, bem antes. Mas eu fui percebendo que a gente falava e as coisas repercutiam. E aí eu fui mudando o jeito de eu falar. E assim fui tomando cuidado, por exemplo, com as pessoas cortarem o que eu vou falar, ir para a internet de um jeito M*. Por exemplo, se eu tenho uma ideia que ela é controversa, eu construo ela de um jeito que o corte vai ficar ridículo. Se o cara quiser cortar, vai fica muito claro que o cara tá cortando pra me sacanear. Eu vou continuar, inclusive, levantando pautas espinhosas aqui, porque eu acho que é o meu trabalho, mas eu pretendo fazê-las da forma que eu tenho feito, elaborando melhor o que eu quero dizer, até para eu me defender mesmo. BBC News Brasil - Na conversa com o Bolsonaro, por exemplo, teve um momento em que ele fez uma piada homofóbica envolvendo a criação de uma vacina da varíola. Você riu, ele ficou brincando que você não tinha entendido, e você disse "eu entendi". Por exemplo, nesse tipo de momento, você não acha que caberia fazer uma pontuação: "presidente, não é bem assim"? Igor Coelho - Depois, eu fiquei sabendo que eu entendi errado. BBC News Brasil - E o que você tinha entendido? Igor Coelho - Eu entendi que ele [ao dizer] "ah, pô, tu se amarra numa vacina", talvez tivesse uma conotação sexual no "se amarra numa vacina". Mas depois é que eu fui ver que tinha um lance que quem estava tomando essa vacina era majoritariamente o povo homossexual. BBC News Brasil - É um discussão de que essa doença [a chamada varíola dos macacos] estaria atingindo um maior proporção os homossexuais, embora seja uma doença que possa ser transmitida para qualquer pessoa. Igor Coelho - Mas assim, de qualquer forma, não sei te dizer, se eu tivesse entendido exatamente isso aí, eu não sei o que meu coração ia mandar fazer na hora. Vou pensar sobre isso. BBC News Brasil - Durante a live com o Lula, algumas pessoas enviavam dinheiro para o Flow. Que tipo de montante movimenta uma live dessa? Igor Coelho - Eu posso te dizer que uma live como essa do Lula aí realmente dá dinheiro pra cacete. Eu posso te dizer que na última vez que eu olhei ali, deu um número meio assustador inclusive. Se eu não me engano, acho que uns R$ 50 mil. BBC News Brasil - As pessoas fazem envios de dinheiro na hora. Como que funciona exatamente? Elas ganham direito a alguma coisa? Igor Coelho - Só o fato de ter muita gente assistindo, passa muito anúncio, e isso gera bastante dinheiro. O super chats que as pessoas mandam ali, no nosso programa, a gente já avisa há anos que a gente não faz nada com aquele super chat. Porque a gente meio que briga com o YouTube, de uma forma geral, o YouTube me sacaneia. Então, a gente tem uma plataforma paralela que as pessoas, por essa plataforma, elas mandam perguntas para gente. O YouTube, por exemplo, se você manda R$ 10 no YouTube, o YouTube pega três e eu recebo sete. Lá na minha plataforma, eu pago o custo do banco e acabou. Então, as perguntas que eu leio no final do programa, elas chegam pela plataforma, mas não consegui ler nenhuma com o Lula. Não deu tempo. BBC News Brasil - Então, o grosso vem dos anúncios? Igor Coelho - É, o grosso vem pelos anúncios mesmo. Sem dúvida, sem dúvida.
2022-10-25
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63353233
brasil
Vídeo, Como caso Roberto Jefferson incendeia eleição às vésperas do 2ª turnoDuration, 6,22
A última semana antes do segundo turno teve um início explosivo com o ex-deputado Roberto Jefferson, aliado próximo do presidente Jair Bolsonaro, resistindo à prisão, disparando tiros de fuzil e jogando granadas contra agentes da Polícia Federal. Embora parte de seus seguidores tenha iniciado uma defesa do ex-deputado, Bolsonaro condenou o ato e passou a dizer que não teria nem sequer fotos ao lado de Jefferson, o que foi rapidamente desmentido nas redes sociais e em reportagens. Aliados começaram então a usar postagens e fotos para ligar Roberto Jefferson a Lula, lembrando o escândalo do Mensalão, esquema de compra de apoio de deputados na Câmara. Neste vídeo, nossa repórter Nathalia Passarinho conta o que aconteceu e qual a relação de Bolsonaro com o ex-deputado, além de relembrar seu passado com Lula. Assista e confira.
2022-10-25
https://www.bbc.com/portuguese/media-63385331
brasil
A nova 'Lei dos Netos' que facilita cidadania europeia para descendentes de espanhóis
Uma nova lei, publicada na quinta-feira (20/10) no Diário Oficial da Espanha e chamada oficialmente de Lei da Memória Democrática, está sendo apelidada de "Lei dos Netos" por muitos veículos de comunicação. Isso porque a nova legislação estende o acesso à nacionalidade espanhola a milhares de descendentes de espanhóis nascidos no exterior. O regulamento estende as condições estipuladas na lei aprovada pela Espanha em 2007, que estabelecia a possibilidade da aquisição da nacionalidade por filhos de mãe ou pai de origem espanhola. O benefício também poderia ser passado para os netos, desde que esses fossem menores de idade. Com a mudança, porém, netos maiores de idade e familiares de vítimas da Guerra Civil Espanhola e do subsequente governo militar de Francisco Franco também podem ser beneficiados. Fim do Matérias recomendadas A nova lei facilita a obtenção de passaporte espanhol para três grupos: O documento especifica que este procedimento deve ser formalizado no prazo de dois anos a contar da entrada em vigor da lei. "No final deste período, o Conselho de Ministros pode acordar em prorrogá-lo por um ano", diz o texto. A nova lei foi aprovada pelo Senado espanhol com 128 votos a favor, 113 contra e 18 abstenções. Até sua aprovação, os netos de espanhóis cujos pais, nascidos fora da Espanha, obtiveram a nacionalidade tinham as seguintes restrições de idade para acessar a cidadania: Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A imprensa latino-americana, como o jornal Clarín da Argentina, destaca que, diferentemente da lei de 2007, que estabeleceu um prazo adicional para processar a nacionalidade espanhola até que os órgãos oficiais estivessem preparados para receber os novos pedidos e não está mais em vigor, a legislação vigente não criou nenhum período para preparação dos interessados. Segundo especialistas em imigração, os países de onde se espera o maior número de requerimentos de cidadania a partir da mudança na legislação são Argentina, Cuba e México. Mas brasileiros que se enquadram nos novos requisitos também podem fazer a sua solicitação. A imigração espanhola para o Brasil ocorreu em distintos momentos da história nacional, mas a principal onda se deu no final do século XIX e início do século XX. Porém, durante a década de 1930, com a eclosão da Guerra Civil Espanhola, o afluxo de espanhóis ao Brasil também aumentou, principalmente com a vinda dos derrotados pelas forças franquistas.
2022-10-24
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63378420
brasil
Quem não votou no primeiro turno pode votar no segundo; entenda
Os eleitores que não votaram no primeiro turno das eleições, em 2 de outubro, podem votar no segundo turno das eleições, no domingo (30/10), se estiverem em situação regular com a Justiça Eleitoral. O órgão explica que "cada turno de votação é uma eleição independente, e o não comparecimento à primeira etapa de votação não impede o comparecimento às urnas no segundo turno". No primeiro turno, a abstenção chegou a 20,95%. O voto é obrigatório para maiores de 18 anos e facultativo para analfabetos, maiores de 70 e pessoas com 16 e 17 anos. Fim do Matérias recomendadas Além da escolha do próximo presidente da República, o segundo turno também definirá governadores de 12 estados. O segundo turno ocorrerá ao mesmo tempo nos 5.570 municípios do país: das 8h às 17h, pelo horário de Brasília. O horário unificado de votação nos 26 estados e no Distrito Federal - que já ocorreu no primeiro turno -, é uma novidade da eleição de 2022. De acordo com a mudança, decidida pelo TSE em dezembro de 2021, os municípios com fusos diferentes precisaram se adequar ao horário da capital federal, para que todas as seções eleitorais funcionem simultaneamente. Só as 181 localidades de votação no exterior em que ocorrerá eleição seguirão o horário original (das 8h às 17h) de acordo com o fuso local. Quem não comparecer nos dias de votação é obrigado a justificar a ausência no prazo de 60 dias. Ou seja, o eleitor que não comparecer às urnas nos dois turnos deverá apresentar duas justificativas à Justiça Eleitoral. Os prazos para apresentar justificativa em relação às eleições de 2022 são: - Até 1º de dezembro de 2022 para ausência no primeiro turno (2/10) - Até 9 de janeiro de 2023 para ausência no segundo turno (30/10) O TSE esclarece, no entanto, que mesmo o eleitor que ainda não tiver justificado sua ausência no primeiro turno não está impedido de votar no segundo turno.
2022-10-24
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63375140
brasil
Ziraldo, 90 anos: a genialidade da obra do 'velhinho maluquinho'
O Menino Maluquinho, Flicts,O Joelho Juvenal… São inúmeras as criações de Ziraldo que não só povoam o imaginário infantil por gerações como têm um reconhecimento acadêmico de grandeza e qualidade. Para especialistas, ele já é um clássico e sua obra pertence ao primeiro escalão do cânone cultural brasileiro. Nascido em Caratinga (MG) há exatos 90 anos, Ziraldo Alves Pinto está recluso. Sua saúde debilitou-se bastante depois de três acidentes vasculares cerebrais sofrido de 2018 para cá. De acordo com a família, por ordens médicas, ele não pode conceder entrevistas. O que não impede que amigos e fãs celebrem seu aniversário com alegria e, principalmente, reconhecimento. Fim do Matérias recomendadas Neste mês O Menino Maluquinho se tornou série de animação do serviço de streaming Netflix, há o relançamento, em edições especial, de duas de suas obras — O Bichinho da Maçã e Menina Nina. E ainda um livro-homenagem, preparado pelo cartunista Edra, com 45 cartuns e 45 depoimentos de pessoas que foram influenciados por Ziraldo: 90 Maluquinhos por Ziraldo - Histórias e Causos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em um dos seus mais recentes vídeos, gravado em 2019 para divulgação de uma exposição dedicada a ele, Ziraldo comentou que não estava triste, ao se desculpar pela voz um tanto abatido. Era a idade que havia chegado. "Vocês podem achar que eu estou um pouco triste, falando devagar, porque não é meu estilo. Acontece que eu de repente fiquei velho. Foi outro dia. Eu acordei de manhã e estava velho", disse ele, vestindo um de seus indefectíveis coletes. "Mas eu estou alegre, estou feliz da vida." Ziraldo virou "o Velhinho Maluquinho". Em depoimento por escrito enviado à reportagem, o quadrinista Mauricio de Sousa, criador da Turma da Mônica comentou que "falar do Ziraldo é chover no molhado", já que "todo mundo tem um grande carinho por ele e seus personagens". Mauricio cita a obra de ambos para ressaltar que "nossa história se entrelaça junto com as crianças e nossos personagens". "Ziraldo sempre diz que o mais importante é ler. Mas para que isso aconteça, cada vez mais, é preciso ter autores como ele para arrebatar milhões de crianças leitoras", comenta ele, desejando "90 anos de sorrisos e muito mais" ao amigo e colega de profissão. A cartunista Laerte define Ziraldo como "uma referência total, um mestre". "Por todos os motivos possíveis. Ele é alguém que fez parte da formação de todos nós, cartunistas e quadrinistas da geração seguinte, vamos dizer", comenta. "E sempre foi uma pessoa muito disponível: sempre nos recebeu, sempre nos ajudou, sempre nos apoiou e deu opinião. É uma pessoa que sempre foi muito aberta." Ela diz que Ziraldo é alguém "que nunca se atrapalhou com nada, jamais teve qualquer empecilho como autor, como artista gráfico, como pessoa absolutamente genial". "Ele presta atenção aos detalhes em que é bom prestar atenção. E ensinou a gente a prestar atenção nessas coisas", afirma. Renomado autor de best-sellers infantojuvenis, Pedro Bandeira acredita que "o talento, o patriotismo e a coragem de Ziraldo construíram um Brasil bem maior". Bandeira diz que acompanha o trabalho do cartunista desde a sua própria infância. "Até tornar-me seu amigo, acompanho os talentos deste artista desde meus 10 anos, curtindo seus trabalhos como quadrinista, escritor, jornalista, caricaturista, ilustrador e, principalmente, como patriota. E olhe que, quando eu tinha 10 anos, Ziraldo tinha apenas 20 e já era um quadrinista de primeira!", afirma. "Logo, quando a ditadura arrasava e dentre seus ataques impunha-nos uma censura que me prejudicava especialmente, porque eu vivia do jornalismo e atuava como ator de teatro, Ziraldo publicou o mais lindo poema gráfico da história do Brasil: Flicts, que veio para dar força aos injustiçados, aos exilados, aos expropriados pelo fascismo brasileiro", acrescenta Bandeira, sobre o livro que conta a história de uma cor que não era aceita pelas outras. Segundo o escritor, em Flicts Ziraldo enxugou "nossa lágrima, ao dizer que, em algum lugar, talvez na Lua, ainda haveria esperança para nosso desespero". "Quando eu lia o livro para meu filho, parecia ouvir a voz do Ziraldo: 'Calma, a arte um dia vencerá a injustiça'. Eu entendi, Ziraldo. E há de vencer novamente", diz. Bandeira avalia que "Ziraldo é mestre, mas não é imitável". "Ninguém pode ser Ziraldo. Quando ele ilustra, o livro inteiro cresce, explode e se magnifica. Numa Bienal ou numa feira de livros, Ziraldo é cercado pelas crianças e adultos que o leem como se fosse um Papai Noel distribuindo brinquedos", analisa. "E ele aceita ficar por horas autografando para seus leitores, tirando fotos e fazendo caricaturas nos livrinhos." "Todos nós, escritores para crianças e jovens, somos fãs do auditório do Ziraldo", acrescenta. "Os textos de Ziraldo não têm vilões. Todos seus pequenos heróis, como o Menino Maluquinho, flutuam pelas histórias como se dançassem em seus próprios sonhos. Só Ziraldo sabe como as crianças sonham", comenta Bandeira. O escritor comenta que desde a pandemia está "enfurnado" mas que tem saudades de conviver com o amigo. "Falamos por telefone, trocamos carinhos, mas nada consola minha vontade de ouvir novamente sua voz, ver seu sorriso quando acolhe algum leitorzinho de olhos arregalados de admiração", diz. "Nós, que o amamos, jamais poderemos oferecer tanto amor quanto ele já espalhou pelo Brasil." Presidente da Associação dos Cartunistas do Brasil, José Alberto Lovetro, mais conhecido como JAL, define Ziraldo como alguém que "tem o DNA da cultura brasileira". "Não só por sua arte no humor gráfico, mas também por criar personagens que invadem a vida das pessoas como se fossem da família de cada um. Agrada crianças de até 100 anos de idade", comenta. JAL conta que quando era bastante jovem encantou-se pelo jornal 'O Pasquim', semanário alternativo que circulou durante a ditadura militar e que teve Ziraldo no time. "Quando eu era ainda garoto já era absorvido pelo Pasquim. De ameba fui descobrindo o que era política. E Ziraldo sabe conquistar a inteligência das pessoas", recorda. "Fiquei inebriado por aquela linguagem engraçada e ao mesmo tempo cheia de estilo. Virei desenhista." Responsável pela publicação da obra dele na Editora Melhoramentos, a editora Leila Bortolazzi avalia que trabalhar com ele "nunca foi muito complicado". "Mas claro que, como todo artista compulsivo, obsessivo em atingir a perfeição, ele costumava fazer várias revisões em textos e ilustrações", lembra ela. "Tudo era muito bem cuidado, ia e voltava, sempre era assim." Ela recorda que antes de o trabalho ser feito por meio de digitalização, "era sempre um evento" quando, com a pastinha debaixo do braço, o autor ia pessoalmente até a editora para levar seu trabalho e defender as ilustrações. "Quando chegava um livro novo dele era sempre uma novidade, porque ele sempre foi muito criativo, muito original, muito único. Acho que isso faz a obra dele ser tão perene: a originalidade, a criatividade dele", comenta. "Fica até difícil comparar, não tem como falar 'tem influência disso e daquilo'. Ele é muito original mesmo, seu trabalho e seu traço é único e bem marcante." Bortolazzi começou a trabalhar na Melhoramentos em 1981, ou seja, sua trajetória na empresa é praticamente tão longa quanto o sucesso de Ziraldo no mundo dos livros — O Menino Maluquinho, seu maior sucesso, foi lançado em 1980; hoje acumula 18 edições, 135 reimpressões e já vendeu mais de 4,1 milhões de exemplares. Com mais de 200 livros publicados, Ziraldo tem diversos outros best-sellers. Uma Professora Muito Maluquinha, de 1995, já vendeu mais de 500 mil exemplares. Menina Nina, de 2002, 140 mil. O Bichinho da Maçã, de 1982, mais de 300 mil. O Planeta Lilás, de 1984, 200 mil. O Menino Quadradinho, de 1989, 120 mil. Flicts, de 1984, mais de meio milhão de exemplares. Ziraldo começou sua carreira em 1954 no jornal Folha da Manhã — hoje Folha de S. Paulo. Ele tinha uma coluna de humor. Depois passou pela revista O Cruzeiro e pelo Jornal do Brasil. Em 1960 lançou o primeiro gibi brasileiro feito por um só autor, a Turma do Pererê — a publicação acabou descontinuada a partir de 1964, por conta da ditadura militar. Durante o regime autoritário, foi um dos idealizadores e parte integrante da equipe do semanário de contracultura O Pasquim, que fez sucesso e acabou marcando uma geração. Ele acabou sendo preso no dia seguinte a promulgação do Ato Institucional Número 5, em dezembro de 1968. Figura sempre ligada à esquerda, ele foi membro do Partido Comunista Brasileira. Em 2005 ele se filiou ao recém-criado Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e desenhou o logo da agremiação. Nas últimas eleições, declarou apoio a candidatos do Partido dos Trabalhadores (PT), como nas duas vezes em que Dilma Rousseff ganhou a eleição e, na última, quando Fernando Haddad ficou em segundo lugar. Professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autora do livro Articulação Textual na Literatura Infantil e Juvenil, Leonor Werneck dos Santos considera "impossível falar de literatura infantil brasileira sem falar de Ziraldo". "Ele deu grande impulso à literatura infantil no Brasil, trouxe a literatura infantil para um lugar de destaque, inclusive academicamente", avalia. Ela acredita que isso se deu por um conjunto de fatores, como a criatividade, a atualidade dos temas, a "linguagem que toca fundo no leitor de todas as idades, "o traço e o projeto gráfico que parecem tão simples mas são cuidadosamente pensados e dialogam com a proposta de cada livro". "Tudo faz com que a obra ultrapasse a época em que é produzida. Por isso se torna um clássico", afirma Santos. Criadora do projeto Grandes Livrinhos, no Instagram (@grandeslivrinhos), a jornalista Giovana Franzolin acredita que são muitas as razões que fazem da obra de Ziraldo tão importante para as crianças — e resistentes ao tempo, conseguindo ter o mesmo peso hoje que tinha quando os sucessos foram criados, décadas atrás. "Entendo que isso acontece porque os personagens retratam uma infância atemporal, de criança arteira, feliz, com alegrias, dificuldades... não é tão somente a infância dele próprio ou uma infância datada, tem um pouco da infância de todo mundo", comenta ela. "Além disso, ele fala com a criança sem didatismo, sem ser moralizante, mesmo abordando temas mais 'cabeludos'. Ele consegue desenvolver qualquer temática com leveza, sensibilidade e criatividade. Por exemplo, vejo que o Menino Maluquinho, o personagem mais emblemático e mais conhecido, é uma alegoria da infância, a criança sapeca e 'maluquinha', que não era nada mais que uma criança feliz." Franzolin aponta algumas características do autor como fundamentais para definir sua genialidade. Primeiro, o pioneirismo, pois ele escreveu "para o universo da literatura infantil numa década em que o mercado mal existia". E também pelo cuidado com os aspectos gráficos. Nesse sentido, ela ressalta que Flicts foi uma obra "disruptiva, ousada para a época". "Além disso, pelo conjunto da obra. São dezenas e dezenas de títulos representando uma densidade impressionante para qualquer autor", aponta a jornalista. "Mas mais do que tudo, creio que Ziraldo se consolidou por saber como nenhum outro representar a infância, com seus prazeres e agruras. Ele consegue representá-la com seriedade e leveza, ao mesmo tempo em que não foge de temas mais difíceis ou tabus, como morte, separação dos pais, rejeição... Ele toca a alma das crianças e dialoga com elas como nenhum outro, no meu ponto de vista. E ao fazer isso, emociona também os adultos, reacende neles as memórias das próprias infâncias." A jornalista comenta que Ziraldo, mesmo com 90 anos, "parece um eterno menino". "Escreve com naturalidade, fala da infância sem esforço", diz. "Interesso-me em especial pelo texto, me emociona toda vez que leio. Apresenta camadas de interpretação, de subjetividade, que captamos conforme a maturidade e o momento da vida." Doutora pela Universidade de São Paulo (USP) e colaboradora da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, a professora de literatura Vânia Maria Resende diz que a "grandeza de Ziraldo está na singularidade da linguagem plástica genial, vibrante, forte, exuberante". E, não só. Também "na força da poesia e do humor em equilíbrio", na "dimensão lúdica que flui em sintonia com a naturalidade infantil". "Acrescente-se a isso, o diálogo versátil de seus livros com repertório de textos visuais, gráficos, verbais dos mais diferentes autores e fontes, não restritamente infantis, o que abre amplas perspectivas culturais para os leitores", diz ela, que é autora dos livros Ziraldo e o Livro para Crianças e Jovens no Brasil e O Menino na Literatura Brasileira. "Além da beleza visual que é fator de sedução estética, importante observar a riqueza simbólica, até mesmo de narrativas aparentemente mais simples, o que significa dizer que sua literatura não se reduz a mero entretenimento. Finalmente, destaco a grandeza do poder de comunicação da obra do artista com leitores de diferentes idades, não apenas os infantis." Resende acredita que "a concepção peculiar de livro infantil de Ziraldo" é o seu maior legado. Esse conceito foi favorecido "por traços específicos da sua formação de escritor-desenhista-artista gráfico" e, ao mesmo tempo, compatível "com o pensamento complexo da contemporaneidade". Para ela, Flicts é o marco desse formato, afirmando-se com "a peculiaridade do estilo verbo-visual, de direcionamento de leitura simultaneísta, com apoio semiótico, diferentemente da pura leitura linguística." Para a pesquisadora Monica Rebecca Ferrari Nunes, professora na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e doutora em semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), "Ziraldo trabalha com personagens que têm universalidade". E isso explica a "força de seus personagens", de "forma que esses textos que ele constrói são longevos na cultura". "Há uma emoção quase que universal que possibilita a permanência através do tempo", comenta ela. Nunes ainda ressalta a habilidade do autor na "hibridização da linguagem". "Ele faz a mistura de signos em que o verbal vai se misturando ao imagético, e o imagético ao verbal. E constrói uma linguagem de alta complexidade que, ao mesmo tempo, tem um efeito muito rápido na compreensão", comenta ela.
2022-10-24
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63371610
brasil
'Ilegal' e 'sem atuação do MP'? A cronologia da prisão de Roberto Jefferson
A prisão de Roberto Jefferson (PTB) pela Polícia Federal (PF) neste domingo (23/10) teve forte repercussão nas redes sociais a uma semana do segundo turno das eleições, dividindo inclusive apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL). Muitos deles acreditam que a prisão de Jefferson é "ilegal", decorrente de um inquérito "ilegal" e "que não tem participação do MP" (ler abaixo), mas se dividiram quanto à reação do ex-deputado, que atirou nos policiais e lançou granadas contra os agentes. Enquanto alguns, como o blogueiro bolsonarista Allan dos Santos, falaram de "legítima defesa", outros ponderaram que o ex-deputado "perdeu a razão" ao resistir à prisão. Fato é que o episódio causou cisão entre os apoiadores de Bolsonaro, com alguns chamando-o de "frouxonaro" nas redes sociais. Em uma transmissão ao vivo, o próprio Bolsonaro chamou Jefferson de "bandido" e tentou se desvincular do aliado. Apesar disso, repetiu o argumento de que a prisão do ex-deputado não teve "nenhum respaldo na Constituição" e decorreu "sem atuação do MP". Fim do Matérias recomendadas "Repudio as falas do Sr. Roberto Jefferson contra a Ministra Carmen Lúcia e sua ação armada contra agentes da PF, bem como a existência de inquéritos sem nenhum respaldo na Constituição e sem a atuação do MP", escreveu Bolsonaro no Twitter. Mas por que Jefferson foi preso dessa vez? E por que ele estava antes em prisão domiciliar? O argumento de Bolsonaro faz sentido? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O ex-deputado Roberto Jefferson foi preso pela Polícia Federal na noite deste domingo (23) e levado para a Superintendência da corporação no Rio de Janeiro. Ele chegou ao local por volta das 21h, depois de ter deixado sua casa, em Levy Gasparian, no interior do Estado, em um carro descaracterizado da PF. Antes, ele reagiu à abordagem e atirou contra os policiais. De acordo com a investigação, o ex-deputado disparou mais de 20 tiros de fuzil e também lançou granadas na direção dos agentes. Dois policiais ficaram feridos, atingidos por estilhaços. Eles receberam atendimento médico e foram liberados. De dentro de sua casa, Jefferson fez vídeos dizendo que não se entregaria. "Eu vou enfrentá-los", afirmou em vídeo gravado dentro de casa. Em outro vídeo, o vidro dianteiro do veículo da PF aparece estilhaçado. "Mostrar a vocês que o pau cantou. Eles atiraram em mim, eu atirei neles. Estou dentro de casa, mas eles estão me cercando. Vai piorar, vai piorar muito. Mas eu não me entrego", disse. Jefferson já estava em prisão domiciliar. No domingo, ele foi alvo da ação policial da PF por determinação do ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal). Moraes determinou a prisão preventiva de Jefferson por ele ter descumprido as medidas impostas pelo Supremo dentro de uma ação penal em que ele é réu por incitação ao crime e ataque a instituições. Além disso, Moraes também ordenou a realização de busca e apreensão na residência de Jefferson. Em sua decisão, Moraes aponta que Jefferson recebeu visita e repassou orientações a dirigentes do PTB, concedeu entrevista à rádio Jovem Pan e divulgou notícias fraudulentas contra ministros do Supremo. Além disso, ele teria descumprido novamente as medidas ao atacar a ministra Cármen Lúcia e compará-la a "prostitutas", "arrombadas" e "vagabundas". A partir desta terça-feira (25/10), Jefferson não poderia mais ser detido, uma vez que a legislação eleitoral impede qualquer prisão que não seja em flagrante cinco dias antes das eleições. À noite, Moraes ordenou nova prisão contra Jefferson por tentativa de homicídio, devido ao ataque contra os policiais. Neste caso, por ser um flagrante, o mandado poderia ser cumprido independentemente de horário ou da lei eleitoral. Jefferson foi preso em 13 de agosto de 2021 por decisão de Moraes no âmbito do inquérito das milícias digitais, do qual ele é relator do processo. O inquérito investiga uma suposta organização criminosa digital que atua para desestabilizar a democracia divulgando mentiras e atacando ministros do Supremo e as instituições do país. Naquela ocasião, o pedido para prender o ex-deputado foi feito pela PF e acatado por Moraes. No pedido de prisão, a PF listou vários vídeos e publicações de Jefferson nas redes sociais em que atacava e ameaçava agentes públicos. Moraes disse ter tomado a decisão mesmo sem manifestação da Procuradoria-Geral da República (PGR) porque esta não havia se pronunciado sobre o pedido dentro do prazo. A PGR, no entanto, negou e, em nota, o procurador-geral da República, Augusto Aras, afirmou que "houve, sim manifestação da PGR, no tempo oportuno" e que "em respeito ao sigilo legal, não serão disponibilizados detalhes do parecer, que foi contrário à medida cautelar". "O entendimento da PGR é que a prisão representaria uma censura prévia à liberdade de expressão, o que é vedado pela Constituição Federal", acrescentou Aras no comunicado. Esse é o ponto nevrálgico do imbróglio jurídico que alimenta o argumento de Bolsonaro e de seus apoiadores de que a prisão de Jefferson por Moraes foi "sem nenhum respaldo na Constituição e sem a atuação do MP". No entanto, no fim daquele mês, a própria PGR apresentou denúncia contra Jefferson por incitação ao crime e por homofobia. Araújo pediu na ocasião a "apreciação do pedido de prisão domiciliar do acusado". Em janeiro deste ano, Moraes atendeu a pedidos da defesa de Jefferson e substituiu sua prisão preventiva de Jefferson por domiciliar, por razões médicas, durante a investigação. Como de praxe, impôs para isso uma série de condições, uma vez que o ex-deputado continuava preso, mas em sua casa. Algumas delas: tornozeleira eletrônica, proibição de contato exterior e de redes sociais; proibição de visitas (exceto familiares) ou entrevistas sem autorização legal; comunicação com outros investigados. No entanto, Jefferson violou várias vezes essas regras — a tal ponto que o STF intimou a defesa do ex-deputado e pediu laudo à PF sobre reportagens que noticiavam que ele estava recebendo visitas em casa e coordenando, por vídeo, a estratégia política do PTB. Em setembro, por exemplo, ele concedeu entrevista à emissora Jovem Pan sem autorização prévia da Justiça. Antes de determinar a prisão preventiva de Jefferson, Moraes chegou a fixar multa por dia caso o ex-deputado descumprisse as condições de sua prisão domiciliar — uma medida considerada menos interventiva. Apesar disso, Jefferson seguiu violando as regras e, por fim, publicou vídeo com ataques à ministra Cármen Lúcia. "Este não é um caso de liberdade de expressão. Não caiam nessa. É o caso de um preso que conseguiu um benefício, e então abusou dele dolosa e calculadamente, com o objetivo escalar o conflito com o STF, obter publicidade para si e vantagens para seu aliado Jair Bolsonaro", escreveu Rafael Mafei, professor da Faculdade de Direito da USP e pesquisador do LAUT (Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo), em sua conta pessoal no Twitter. Bolsonaro tentou se afastar do aliado. Em live neste domingo, o presidente afirmou que não havia uma foto dos dois juntos, o que não é verdade. "Não tem uma foto dele comigo, nada", disse. Mas imagens dos dois juntos estão registradas e foram divulgadas pelo PTB, partido de Jefferson. Na mesma live, Bolsonaro leu uma postagem que havia feito horas antes em suas redes sociais. "Repudio as falas do Sr. Roberto Jefferson contra a ministra Cármen Lúcia e sua ação armada contra agentes da PF, bem como a existência de inquéritos sem nenhum respaldo na Constituição e sem a atuação do MP [Ministério Público]", escreveu. Mais tarde, Bolsonaro anunciou a prisão de Jefferson e o chamou de "bandido". "Como determinei ao ministro da Justiça, Anderson Torres, Roberto Jefferson acaba de ser preso. O tratamento dispensado a quem atira em policial é o de bandido. Presto minha solidariedade aos policiais feridos no episódio", disse. À noite, voltou a dizer que não existe qualquer ligação entre ele e Jefferson e afirmou haver uma notícia-crime contra ele protocolada por Jefferson. Já o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que a reação de Jefferson não foi adequada e representa um risco à democracia do país. "Não é um comportamento adequado, não é um comportamento normal", disse o petista à imprensa neste domingo, em São Paulo, após conversa com influenciadores. Segundo o ex-presidente, Bolsonaro "conseguiu criar neste país uma parcela da sociedade brasileira raivosa, com ódio, mentirosa, que espalha fake news o dia inteiro". Jefferson foi o delator do chamado "mensalão", um esquema de compra de apoio político ocorrido no primeiro mandato de Lula como presidente — parlamentares recebiam dinheiro em troca de votarem a favor dos projetos do governo. Seu partido, o PTB, fazia parte da base aliada. Em 2003, primeiro ano do governo Lula, Bolsonaro era, coincidentemente, filiado ao PTB, de Jefferson. Quando o mensalão estourou, em junho de 2005, o atual presidente era filiado ao PP (Partido Progressista), outra legenda envolvida no centro do escândalo.
2022-10-24
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brasil
O que nova onda de covid na Europa significa para o Brasil
"Ainda que não estejamos na mesma situação que passamos há um ano, está claro que a pandemia de covid-19 não acabou. Infelizmente, vemos os indicadores subirem de novo na Europa, o que sugere o início de uma nova onda de infecções." Agora, porém, a preocupação vem em dose dupla: com a chegada do outono e, mais pra frente, do inverno no Hemisfério Norte, as autoridades da região também preveem uma temporada de alta transmissão do influenza, o vírus causador da gripe. "A potencial cocirculação da covid-19 e da gripe colocará pessoas vulneráveis em maior risco de sofrer com doenças graves e morte, com um provável aumento da pressão sobre hospitais e profissionais de saúde, já esgotados por quase três anos na linha de frente da pandemia", antevê o texto. A melhor estratégia para lidar com essas ameaças, apontam as instituições, é reforçar a vacinação, especialmente dos grupos mais vulneráveis. Fim do Matérias recomendadas Mas o que revelam os números atuais da covid-19 no continente europeu? E o que eles podem representar para o Brasil e para o resto do mundo? Em resumo, a situação exige cuidados e reforços dos imunizantes, especialmente em idosos e outros grupos mais vulneráveis. Os pesquisadores temem que a onda que se inicia no outono europeu chegue ao Brasil entre dezembro e janeiro, provocando um novo aumento nos casos e nas mortes por covid. Esse fenômeno, aliás, aconteceu em períodos anteriores. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Toda semana, a OMS divulga um relatório em que atualiza a situação da covid-19 no mundo. Foi registrado um aumento de 8% nas infecções em 5/10, com duas quedas seguidas em 12/10 (-3%) e 19/10 (-11%). Mesmo assim, dos cinco países que detectaram mais casos de covid-19 nos últimos sete dias, três são europeus: Alemanha (583 mil novas infecções), França (337 mil) e Itália (288 mil). Os outros dois são China (328 mil) e Estados Unidos (251 mil). Atualmente, as nações localizadas no centro e na região Mediterrânea do continente estão entre aquelas com a maior taxa relativa de casos de covid-19 em comparação com o resto do mundo. "Esse aumento de casos observado não só na Europa, mas também na Ásia, acende um sinal de alerta e não há menor dúvida que é algo importante", constata o epidemiologista Paulo Petry, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A mudança nos cenários epidemiológicos motiva, inclusive, discussões sobre a volta de certas medidas preventivas. Com aumento de casos e até de hospitalizações, alguns Estados da Alemanha, por exemplo, avaliam a reintrodução da obrigatoriedade do uso de máscaras em lugares fechados ou o reforço das campanhas de testagem. "Mesmo assim, a direção para a qual estamos caminhando não é boa", avalia. Para a infectologista Raquel Stucchi, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é preciso acompanhar essa onda por mais tempo para entender os efeitos que ela terá. "A tendência, e o nosso desejo, é que ela seja menos impactante que as anteriores, até pela vacinação e a quantidade de pessoas que já tiveram a covid-19", aponta. "Mas será necessário conferir isso na prática para ter certeza se essas infecções vão causar hospitalizações e, infelizmente, mortes", complementa. Mas o que explica essa possível nova onda que começa a se formar na Europa? O último relatório da OMS aponta que, no último mês, 98,7 mil sequências genéticas do coronavírus foram compartilhadas nas bases de dados públicas. As análises mostram que a variante ômicron BA.5 continua a ser dominante e aparece em 78,9% das amostras. A seguir, são observadas outras linhagens da ômicron que são "primas-irmãs", como a BA.4 (6,7%) e a BA.2 (3,9%). Uma nova variante que começa a chamar a atenção das autoridades é a XBB, que mescla mutações da BA.2.10.1 e da BA.2.75. Ela já foi detectada em 26 países — e alguns trabalhos iniciais sugerem que a nova versão tem uma grande capacidade de escapar da imunidade, obtida por meio da vacinação ou de infecções prévias. Mas é preciso ponderar que, por ora, o número de amostras da XBB é tímido: falamos aqui de pouco mais de 800 sequenciamentos genéticos dela feitos ao redor do mundo. "Ainda que essa linhagem recombinante mostre sinais de vantagem em comparação com as variantes descendentes da ômicron, ainda não há evidências de que ela leve a uma maior gravidade da doença", esclarece a OMS. Com as evidências disponíveis até o momento, portanto, o aumento de casos percebidos na Europa parece ser causado pela "família" ômicron. O virologista Fernando Spilki, professor da Universidade Feevale, do Rio Grande do Sul, explica que "ainda não foi encontrada uma nova variante" que ajude a explicar o atual cenário. "Mas isso pode ser questão de tempo se olharmos o que está ocorrendo, especialmente em países como Alemanha", avalia. Ou seja: quanto mais o coronavírus circula, mais chance tem de sofrer mutações que sejam benéficas para ele. E isso, por sua vez, abre alas para variantes mais transmissíveis, agressivas ou com capacidade de driblar o sistema imune. A situação na Europa, por ora, parece estar relacionada ao completo relaxamento das medidas restritivas — como era natural que acontecesse com a melhora da situação pandêmica. Mas a proximidade entre as pessoas no trabalho, nos eventos e nas ocasiões sociais — que acontecem cada vez mais em lugares fechados, por causa do frio — facilita a troca de vírus respiratórios. E isso desemboca num aumento da transmissão comunitária do patógeno, que pode gerar complicações e até matar, especialmente os indivíduos mais vulneráveis, como idosos e imunossuprimidos. Spilki aponta que, mesmo com esse aumento de casos no início do outono no Hemisfério Norte, "atualmente não há espaço para debate sobre grandes medidas de restrição". Na avaliação das autoridades locais, com vacinas e remédios amplamente disponíveis no continente, parece impraticável e até desnecessário resgatar as medidas drásticas do passado, como o lockdown. "A preocupação deveria estar em completar o calendário de vacinação daqueles que estão com doses atrasadas", sugere o virologista. Com a vacinação como a principal política pública de saúde, muitos países europeus já começaram a aplicar a quarta dose — ou a segunda dose de reforço — em parte da população. O imunizante que está sendo oferecido nas últimas semanas traz uma novidade importante: a formulação do produto foi atualizada para proteger melhor contra as variantes mais recentes, como a ômicron BA.1. O mesmo processo inclusive, acontece todos os anos com as vacinas contra o influenza. "Nossa mensagem é simples: a vacinação salva vidas. Ela diminui as chances de ser infectado e o risco de sofrer com as consequências mais severas da covid e da gripe sazonal", escrevem os representantes da OMS e da ECDC. "Não há tempo a perder. Nós encorajamos todo mundo que for elegível, especialmente os mais vulneráveis, a tomar as doses assim que possível", complementam. Cada país da região adota critérios próprios para definir o público-alvo da atual campanha de vacinação contra a covid. No Reino Unido, por exemplo, a segunda dose de reforço já está disponível para todos com mais de 50 anos, gestantes, indivíduos imunossuprimidos, cuidadores de idosos e profissionais da saúde e da assistência social. Stucchi, que também integra a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), destaca a necessidade de educar as pessoas, para que elas entendam quando estão numa situação de risco ou se elas fazem parte daqueles grupos em que a covid-19 pode ser mais grave. "Com isso, o indivíduo pode avaliar a situação, usar máscaras em locais fechados, tomar as doses de vacina e se isolar se estiver com algum sintoma de infecção respiratória", propõe. Por ora, a situação no país parece rumar para uma diminuição dos indicadores mais importantes relacionados à crise sanitária. Desde julho, a média móvel de casos de covid está em redução e passou de 59,8 mil em 15/7 para 4,9 mil em 23/10 — uma queda proporcional de doze vezes. Algo similar acontece com as mortes. O último pico foi registrado em fevereiro, com uma média móvel de 951 óbitos em 11/2. O número despencou para 60 em 23/10. Para Petry, esse platô brasileiro também deve ser visto com precaução. "Não estamos numa situação confortável. Por trás desses números, temos a vida das pessoas e o impacto às famílias", avalia. O momento de maior calmaria, porém, deveria ser visto como uma oportunidade para fazer o planejamento dos próximos meses, com o objetivo de manter os números nessa tendência descendente, apontam os especialistas. "Nosso receio é que se repita o panorama de outros anos, em que a onda de casos no outono europeu se refletiu numa elevação de infecções e mortes por covid em dezembro e janeiro no Brasil", analisa Spilki. "Para evitar isso, precisamos observar os efeitos das vacinas atualizadas nos países que já adotaram essa estratégia e pensar na campanha de reforço por aqui para o início de 2023", propõe o virologista. Stucchi pondera que nem sempre os fenômenos são importados do exterior e têm o mesmo efeito no país. "A variante delta foi ruim na Europa e tínhamos medo do que ela faria quando chegasse. Mas o impacto aqui foi bem menor", compara. Até o momento, porém, não há nenhuma sinalização de que o tema da atualização das vacinas está sendo discutido no país. Os pesquisadores também chamam a atenção para a falta de medicamentos específicos para tratar a covid — alguns deles já liberados para uso no país. O documento afirma que, "apesar do número de hospitalizações e óbitos por covid-19 ter sido reduzido com o avanço da vacinação, somente em setembro 7.321 brasileiros" morreram de covid, "sendo que muitos deles poderiam se beneficiar de medicações terapêuticas ou estratégias preventivas contra a infecção". A instituição aponta que fármacos como o nirmatrelvir/ritonavir, o baracitinibe, o molnupiravir e o rendesivir já receberam a avaliação positiva da agência regulatória brasileira, mas não foram distribuídos na rede pública e não há clareza de quando eles podem ser prescritos na prática. A BBC News Brasil entrou em contato com o Ministério da Saúde para solicitar um posicionamento a respeito dos pontos apresentados sobre a vacinação e os medicamentos. Não foram enviadas respostas até a publicação da reportagem. Por fim, Spilki destaca a necessidade de "monitorar melhor os casos". "Precisamos trabalhar com busca ativa e fazer um rastreamento para termos o alerta precoce de uma nova onda", diz. "O diagnóstico e o monitoramento da covid continuam num patamar muito baixo no país", lamenta. Stucchi concorda e afirma que o Brasil "é um péssimo aluno". "A gente não aprende com os erros do passado. Ainda precisamos de um sistema de vigilância que consiga detectar com antecedência a circulação de vírus respiratórios para planejarmos as ações de saúde", conclui.
2022-10-24
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brasil
'Pintou um clima': como fala de Bolsonaro sobre meninas venezuelanas repercutiu no WhatsApp
A declaração do presidente Jair Bolsonaro (PL) de que "pintou um clima" com meninas venezuelanas adolescentes teve mais repercussão em grupos de WhatsApp do que outros episódios de grande compartilhamento nas redes nos dias anteriores — a visita de Bolsonaro a Aparecida (SP) e a ida do candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, ao Complexo do Alemão. A constatação é da pesquisadora Andressa Costa, doutoranda em Ciência Política na Universidade de Lisboa, que monitora 15 mil grupos públicos no WhatsApp — a maioria composta por apoiadores do presidente, mas também grupos sobre outros temas. O pico de envio de mensagens sobre Bolsonaro e as meninas venezuelanas ocorreu no domingo da semana passada (16/10), quando 576 a cada 200 mil mensagens faziam menção ao tema, segundo Costa. No pico de mensagens sobre Bolsonaro em Aparecida, foram 202 mensagens a cada 200 mil sobre o tema. E, sobre a ida de Lula no Complexo do Alemão, foram 330 a cada 200 mil. Veja a comparação no gráfico elaborado por Costa, em que o eixo vertical mostra a quantidade de mensagens sobre cada tema a cada 200 mil. Fim do Matérias recomendadas "Ficamos surpresas, porque a gente já tinha feito um levantamento sobre a questão da visita do Bolsonaro em Aparecida, que tinha repercutido bastante na rede, assim como a questão do Lula no Complexo do Alemão, e essa questão da fala do Bolsonaro sobre as venezuelanas conseguiu ter um volume ainda maior", disse Costa. Esse total de mensagens considera as que apoiam e as que atacam o presidente, além das neutras — que incluem principalmente o envio de uma notícia sem um comentário que expresse uma opinião ou juízo de valor. A análise de Costa sobre o teor dessas mensagens mostra que, no pico (16/10), 58,8% das mensagens foram neutras, 35,8% negativas e 5,9% positivas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A distribuição não é muito diferente do que aconteceu no dia do pico de mensagens (13/10) sobre Bolsonaro em Aparecida, quando 62% das mensagens foram neutras, 32,6% negativas e 5,4% positivas. Sobre a ida de Lula ao Complexo do Alemão, no pico de mensagens (13/10), 41,1% foram positivas, 30,8% neutras e 28,1% negativas, mas nos outros dias as menções negativas superaram. Ao comparar as mensagens que atacavam Bolsonaro pela fala sobre as meninas venezuelanas e aquelas que defendiam o presidente no mesmo episódio, Costa disse que notou uma diferença no tipo de mensagem compartilhada. Nas mensagens contra Bolsonaro, ela identificou um envio de mensagens variadas sobre o tema, enquanto nos conteúdos que defendem o presidente, houve um compartilhamento maior das mesmas mensagens. "As mensagens contra Jair Bolsonaro apresentaram uma grande variedade, sendo produzido muito conteúdo sobre o tema, centralmente através de imagens e vídeos focados na fala de 'pintou um clima' de Bolsonaro", diz o relatório produzido pela pesquisadora. "Observou-se que essas mensagens não circulam apenas em grupo de apoiadores de Lula, mas também em grupos que não têm finalidade política, como grupos locais. Em relação às mensagens em defesa de Bolsonaro, não houve grande variedade, sendo o conteúdo baseado na live do presidente explicando o episódio e relatando que, à época, a visita à casa das venezuelanas foi transmitida ao vivo pela CNN, estando esta transmissão também presente nas mensagens, que circularam apenas em grupos de apoio ao presidente." Costa diz que identificou uma mudança na estratégia das mensagens de usuários de esquerda no primeiro turno e no segundo, passando de uma postura reativa para uma postura mais ativa. "O que se viu no primeiro turno era mais o lado da esquerda se defendendo dos ataques do bolsonarismo, especialmente na questão da religião, no primeiro turno. No segundo turno, a gente já está vendo uma postura diferente dentro das redes sociais — tem esse lado mais ativo de pegar o que está acontecendo, pegar a fala do Bolsonaro e realmente construir uma narrativa para trabalhar isso dentro das redes sociais", disse a cientista política. David Nemer, professor da Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos, e pesquisador de antropologia da tecnologia que acompanha 122 grupos bolsonaristas no Telegram, destaca a importância do tema na mobilização dos grupos bolsonaristas. "A pauta de costumes, ele (Bolsonaro) entende que é uma coisa que fala diretamente com a questão do eleitorado dele", disse à BBC News Brasil. "A questão da pedofilia dentro do ecossistema bolsonarista é (tema) bem pesado, já que demonizar o inimigo como pedófilo sempre foi uma arma na narrativa deles. Em 12 de outubro, Dia das Crianças, foi um tema muito falado, de uma forma em que Bolsonaro combateria a pedofilia. A questão das crianças venezuelanas veio dois dias depois, então teve um pico muito forte de engajamento sobre esse assunto. Só que muda a característica do tom — não mais Bolsonaro sendo quem combate, mas uma defensiva de que Bolsonaro não é pedófilo." Candidato à reeleição, Bolsonaro disse, em fala a um podcast em 14 de outubro, que "pintou um clima" durante visita a um grupo de meninas venezuelanas no Distrito Federal. Na ocasião, ele associou as adolescentes à exploração sexual: "Tinha umas 15, 20 meninas, sábado de manhã, se arrumando, todas venezuelanas. Eu pergunto: meninas bonitinhas, 14, 15 anos, se arrumando no sábado para quê? Ganhar a vida." A fala teve grande repercussão, com críticas pelo uso do termo "pintou um clima" pelo presidente da República associado a adolescentes e pela atitude dele diante do que considerou uma situação suspeita. A cantora Daniela Mercury, por exemplo, repudiou o episódio no Twitter. "Essa situação é absurda. Como assim? Pintou um clima? O que isso significa? É preciso investigar imediatamente tudo que aconteceu dentro daquela casa. Ele é presidente da República e tinha a obrigação de defender as adolescentes contra qualquer tipo de exploração, ou crime", escreveu. Depois do episódio, houve uma série de defesas do lado de Bolsonaro: apoiadores do presidente disseram que sua fala foi tirada de contexto e acusaram a esquerda de fake news. A primeira-dama, Michelle Bolsonaro, afirmou no domingo que Bolsonaro tem "mania" de falar "se pintar um clima". Segundo levantamento da revista piauí, em nenhuma das 181 lives que fez entre março de 2019 e setembro de 2022 Bolsonaro usou a expressão "pintou um clima". E o próprio presidente gravou vídeo para se defender das críticas que recebeu, ao lado de Michelle e de Maria Teresa Belandria, representante no Brasil do autoproclamado governo de Juan Guaidó. No discurso, ele pede perdão caso as frases tenham sido "mal compreendidas" ou causado "algum tipo de constrangimento a nossas irmãs venezuelanas". A cientista política Camila Rocha, que é pesquisadora da nova direita no Brasil no Cebrap e autora de Menos Marx, Mais Mises - O liberalismo e a nova direita no Brasil, diz que Bolsonaro busca "humanizar a própria imagem" ao pedir desculpas. Ela diz que o pedido de desculpas é algo inédito. "É uma estratégia de humanizar a figura dele porque quem faz o marketing do Bolsonaro percebeu que tem um impacto importante no sentido de afastar as pessoas do voto no Bolsonaro. Ainda que a gente saiba que seja algo meio que para inglês ver - porque ele nunca fez isso antes, vai fazer agora aos 45 do segundo tempo - mas pode dar algum resultado, sim. No sentido de alguém que até gostaria de votar no Bolsonaro, aí viu o 'pintou um clima', ficou assustado, mas daí fala 'tudo bem, ele pediu desculpa, ou fez alguma coisa a respeito'." Sobre o vídeo em que Bolsonaro fala das venezuelanas, Rocha diz que não chegou a medir especificamente o impacto da fala entre os grupos de eleitores que acompanha, mas avalia que esse tipo de frase "mais afasta o voto do Bolsonaro do que jogam necessariamente para votar no Lula". Ou seja, pode até fazer com que essa pessoa não vote no Bolsonaro, mas "se ela vai votar no Lula, são outros quinhentos". David Nemer também destaca que não identificou virada de voto. "A questão de pautar dentro desses grupos não significa virar voto. Acho muito difícil isso ter acontecido nesses grupos fechados com o Bolsonaro", disse. Ele destaca, no entanto, que percebe um "desânimo" em alguns casos. "Um desânimo de 'não é possível que Bolsonaro entrou nessa também, será que ele realmente representa a gente também?'. Esse desânimo leva à desmotivação para sair de casa e votar."
2022-10-24
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brasil
Após ataque violento, homem estuda medicina aos 39 anos e tem rosto reconstruído por colegas
Em 2010, Picasso Rodrigues, na época com 38 anos, saiu com amigos para uma lanchonete em Maringá, no Paraná, para comemorar a promoção que havia conseguido na empresa de telefonia onde trabalhava. "Dei dinheiro para um guarda ficar de olho no meu carro e fui tranquilo. Quando voltei para ir embora, levei uma pancada na cabeça e não lembro de mais nada." Picasso foi encontrado no dia seguinte, no canteiro de uma obra, com o rosto completamente desfigurado por politraumatismo facial, que parecia ter sido causado por um ataque violento com uma pedra. "Os pedreiros me encontraram sem sinais vitais aparentes. Eu perdi parte da audição do ouvido esquerdo e da minha visão, hoje não tenho mais a capacidade de perceber detalhes como as características do rosto de alguém em uma distância a partir de dois metros. Além disso, fiquei sem olfato e paladar permanentemente", revela. Picasso passou por 22 cirurgias e ficou internado no hospital durante três meses. Fim do Matérias recomendadas "Todo mundo quer saber de você nos primeiros dias. Depois que passam várias semanas, só a família mesmo. Não que eu não tivesse bons amigos, mas a própria rotina consome as pessoas", diz ele. "Quando eu finalmente saí do hospital, tinha dificuldade para caminhar, e, como não podia dirigir por não enxergar direito, não conseguia mais trabalhar no mesmo emprego. Eu não podia voltar a ser quem eu era, precisava ressignificar minha vida." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Foi quando Picasso passou a reconsiderar um sonho antigo, de infância, de se tornar médico. "Esse desejo me assustou um pouco, nem a molecada afiada conseguia passar no vestibular, que é muito concorrido, e eu já tinha 39 anos na época." Inscrito em um cursinho, ele ficou quatro anos seguidos se dedicando aos estudos para o vestibular. "A partir do segundo ano, eu passei para algumas universidades, mas meu objetivo era estudar na PUC Curitiba, então segui batalhando. Mas depois de algum tempo, decidi fazer a inscrição na UNOESC (Universidade do Oeste de Santa Catarina). Cursei alguns meses, e no mesmo ano, fui visitar minha mãe em Maringá. Ela me incentivou a tentar entrar na universidade que era minha primeira escolha." Picasso conseguiu uma vaga na PUC de Londrina, mais perto da mãe, em Maringá — mas, no ano seguinte, ela faleceu. "Um cardiologista que era coordenador do curso me ajudou a fazer a transferência para a unidade de Curitiba em janeiro de 2018. Aí eu pude dizer que realizei completamente meu projeto de vida." Durante os dois últimos anos de medicina é comum que os alunos de medicina fiquem mais focados na experiência prática, passando por diferentes especialidades. "Quando fiquei trabalhando na área de otorrinolaringologia, fiz amizade com as residentes, e depois de algum tempo, elas perguntaram o que tinha acontecido com o meu rosto — que ainda era bastante deformado." Depois de algum tempo, as médicas disseram que se ele aceitasse, a PUC e o Hospital Universitário Cajuru, onde a equipe trabalhava, gostariam de reconstruir esteticamente sua face. "Em janeiro de 2022, uma cirurgia extensa, de nove horas, foi feita pelo meu professor e minhas amigas no hospital em que estou me tornando médico, que é parceiro da universidade em que sempre sonhei entrar. Significou muito." Gabriel Zorron Cavalcanti, professor de Picasso, é responsável pela área de cirurgia crânio-facial dentro do departamento de otorrinolaringologia — e conta alguns detalhes sobre o procedimento. "Ele tinha várias placas de cirurgias antigas infeccionadas e gerando rejeição, que estavam comprometendo a função do rosto. Como ele teve múltiplas fraturas, quem tentou reconstruir inicialmente colocou placas sem o osso [que já era inexistente] por baixo, deixando o nariz sem formato." O cirurgião conta que a face foi novamente aberta, as placas antigas foram retiradas, e uma vasta limpeza com soro fisiológico e antibióticos foi feita dentro do rosto dele. Para a reconstrução, foi usado o material mais biocompatível possível: um enxerto ósseo [parte do osso de outro local do corpo. "Em casos de reconstrução de face, um bom material é a cartilagem da costela. Focamos não só na estética, mas em toda a funcionalidade do nariz — e fizemos uma reconstrução completa", explica Buco. Como aluno, ele afirma que Picasso é muito perseverante apesar de sua dificuldade aumentada por conta dos traumas que sofreu na face. "Ainda assim ele consegue superar, em muito, a média dos estudantes", afirma. Depois da cirurgia, Picasso diz ter recuperado parte da sua autoestima perdida no ataque. "Eu olhava no espelho e não me reconhecia. Hoje vivo procurando espelhos." Em menos de um mês, Picasso vai se tornar médico. "Não foi fácil fazer faculdade na minha idade, com as limitações que eu tenho… Mas quando eu lembrava o que havia me levado até ali, tudo fazia sentido." No início do curso, o desejo era se tornar psiquiatra. "Foram três as pessoas que me agrediram, mas [de acordo com as investigações], só uma quase me matou. Eu entrei na faculdade para entender o que seria um psicopata, mas no decorrer das aulas, aprendi outras coisas pelas quais me apaixonei", conta. Ele decidiu se tornar médico de família e comunidade para "atender no postinho mesmo, da criança à vovó, conhecer a realidade de cada um, e ajudar não só na saúde física, mas no espectro social daquelas pessoas". "O que me realiza é que, pelo fato de eu ter ficado no hospital, e agora estar na beira do leito, eu entendo que posso levar alguma esperança. Meus amigos falam: 'Você vai para o hospital e volta sorrindo'. Não é que eu não tenha sensibilidade, mas me alegra poder contribuir." Picasso diz contar sua história aos pacientes sempre que tem a oportunidade. "Eu vejo que isso inspira as pessoas. Muitos pensam: 'Esse cara ficou todo bagunçado e conseguiu realizar um sonho. Acho que dá para mim também'."
2022-10-22
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brasil
A matemática dos votos para a vitória de Lula ou Bolsonaro
Depois de ficar próximo de ganhar as eleições presidenciais no primeiro turno, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pareceu confiante de que sua vitória era inevitável. Na noite daquele domingo, o ex-presidente disse que a nova rodada de votação seria "apenas uma prorrogação" e declarou: "Nós vamos ganhar". Será mesmo? Lula teve 57.256.053 votos, ou 48,43% dos votos válidos (quando são descontados os brancos e nulos), enquanto o presidente Jair Bolsonaro (PL) recebeu 51.070.958 votos, ou 43,20% — ou seja, a diferença entre eles foi de quase 6,19 milhões, ou 5,23% dos votos válidos. Para ganhar, um dos candidatos precisava ter 50% dos votos válidos mais um. Como houve 118.227.018 votos válidos no primeiro turno, seriam necessários 59.113.510 para um deles se eleger. Isso significa que Lula ficou a 1.855.395 votos de vencer no primeiro turno (1,57% dos votos válidos mais um), enquanto Bolsonaro precisaria de 8.042.233 (6,8% mais um). Fim do Matérias recomendadas Agora, eles se enfrentam em um segundo turno. Mas quantos votos são necessários para vencer exatamente? Pode parecer a princípio uma conta simples, porque afinal bastaria ter mais da metade dos votos válidos, e sabemos quantos votos cada um recebeu na primeira votação. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas ela se complica porque não há garantias de que eles conseguirão manter todos os seus votos e há fatores que não se mantêm estáveis de um turno para o outro. Um deles é a abstenção. O número de eleitores que não vão votar é determinante, porque altera a quantidade de votos que estão em disputa. Também é preciso levar em consideração os votos brancos e nulos, que influenciam diretamente o patamar de votos válidos necessários para a vitória. Outra incógnita é para quem irão os eleitores dos candidatos que ficaram pelo caminho, especialmente de Simone Tebet (MDB) e Ciro Gomes (PDT), que tiveram uma votação mais expressiva no primeiro turno. Por isso, Lula e Bolsonaro vêm costurando apoios para expandir seu eleitorado, enquanto tentam roubar votos um do outro. Mas os desertores das campanhas petista e bolsonarista terão algum efeito sobre o resultado? Para entender como todas essas variáveis podem influenciar o resultado em 30 de outubro, a BBC News Brasil levantou dados das cinco últimas eleições presidenciais, de 2002 a 2018 e os comparou com este primeiro turno. Também foram ouvidos cientistas políticos para compreender quais fatores são mais importantes e as chances de Lula obter um terceiro mandato ou de Bolsonaro conseguir uma virada até hoje inédita em eleições presidenciais. O percentual dos que não votaram no primeiro turno de 2022, de 20,95%, ou 32,77 milhões de eleitores, foi o mais alto nesta rodada de votação nas eleições presidenciais desde 2002. Em tese, reduzir essa abstenção ao convencer esses eleitores a irem agora às urnas poderia ajudar Lula e Bolsonaro a conquistar os votos necessários para ganhar. Mas o problema é que acontece justamente o contrário. Historicamente, o número de eleitores que não votam aumenta no segundo turno. Seu dispositivo não consegue visualizar essa imagem No período analisado, entre 2002 e 2018, a abstenção no segundo turno cresceu no mínimo 0,97 ponto porcentual, em 2018, e no máximo 3,35 pontos, em 2010. Cientistas políticos explicam que isso acontece porque a maior parte dos que não votam no primeiro turno costumam fazer o mesmo no segundo, e outra parte dos eleitores acaba se desmotivando, porque o candidato que escolheram não passou para o segundo turno. Ou ainda porque as eleições locais foram totalmente resolvidas na primeira votação, o que gera menos mobilização para levá-los a votar. "Em Estados onde há segundo turno para governador, o comparecimento tende a ser 2,5 pontos percentuais maior do que nos Estados onde não há", diz o cientista político Fernando Meireles, pesquisador do Centro de Análise e Planejamento (Cebrap). Neste aspecto, parece haver um equilíbrio entre os dois candidatos. Nos 15 Estados onde a eleição para o governo local foi decidida no primeiro turno (e a abstenção tende a ser maior), Lula ganhou em oito e Bolsonaro, em sete. Nos outros 12 que terão uma nova votação (e mais eleitores devem votar), cada um chegou à frente em seis. George Avelino, coordenador do Centro de Política e Economia do Setor Público da Fundação Getúlio Vargas (Cepesp-FGV) avalia que a abstenção deve aumentar entre os dois turnos, como nas eleições mais recentes. "A abstenção aumentou nesta eleição, mas não foi tanto assim. Na verdade, podemos dizer que se estabilizou em relação ao ritmo de crescimento que vinha sendo registrado antes. Mas é difícil imaginar que não vá aumentar agora de novo", afirma o cientista político. Uma maior abstenção pode favorecer Bolsonaro, porque estudos apontam que ela é maior entre os eleitores de menor escolaridade e renda, que têm mais dificuldades para ir votar — e é entre essa parte da população que Lula obtém os maiores índices de apoio. Uma pesquisa da consultoria Quaest divulgada em 13 de outubro apontou nessa direção ao indicar que, entre os que não devem votar, 45% são eleitores de Lula e 27% optariam por Bolsonaro. "Um eleitorado mais ideológico, como é o caso dos apoiadores de Bolsonaro, tende a comparecer mais", explica Meireles. Mas há dois fatores que vão na contramão das pretensões do presidente. Primeiro, é comum entre eleitores de maior renda, entre os quais Bolsonaro se sai melhor nas pesquisas, aproveitar a eleição para viajar. "Especialmente quem trabalha nos finais de semana. E esse comportamento tende a ser mais comum nas capitais", diz Meireles. No primeiro turno, Bolsonaro ganhou em 16 capitais e Lula, em 11. O número de abstenções também pode crescer porque a segunda votação ocorrerá entre dois feriados. A sexta-feira imediatamente anterior é Dia do Servidor Público, com ponto facultativo nas repartições, e o Dia de Finados, um feriado nacional, cai na quarta-feira seguinte. Os analistas dizem ser difícil estabelecer qual seria o patamar de abstenção que poderia dar a vitória a Bolsonaro. "Ainda não tem dados suficientes do perfil do eleitorado para saber quem foi mais penalizado pela abstenção", diz Meireles. Avelino calcula que, para cada ponto percentual a mais de abstenção, Bolsonaro conseguiria tirar apenas 0,2 ponto da dianteira de Lula. Além disso, uma maior abstenção, mesmo que ocorra mais entre os eleitores de Lula, não seria exatamente uma ótima notícia para Bolsonaro, porque ele ficou em segundo na votação passada. "Embora Bolsonaro pudesse tirar alguns décimos com o aumento da abstenção, isso também é ruim para ele porque Bolsonaro precisa ganhar eleitores para tirar a diferença de cinco pontos para Lula, e a abstenção maior reduziria o número de eleitores disponíveis." Meireles avalia que, mesmo que a abstenção aumente, ela não deve ter um impacto significativo no resultado. "Para mudar o quadro, a abstenção teria que prejudicar muito mais o Lula", afirma. O percentual de votos brancos e nulos neste primeiro turno foi na direção contrária à da abstenção e atingiu seu menor patamar em relação às últimas eleições presidenciais. Foram ao todo 4,41%, quase metade do registrado há quatro anos, por exemplo. Meireles acredita que a polarização contribuiu para isso. "O primeiro turno foi uma antecipação do segundo, com duas candidaturas muito consolidadas, tanto que as opções da terceira via desidrataram", afirma. O cientista político avalia que esse público pode ser mais importante para as pretensões de Lula e Bolsonaro do que os eleitores que se abstiveram. "Quem votou branco ou nulo já foi votar, então, tem um custo menor para as campanhas converterem essas pessoas em seus eleitores", diz. Seu dispositivo não consegue visualizar essa imagem A tendência histórica é que o número de brancos e nulos caia de um turno para outro. Foi assim de 2002 a 2014, com uma redução que variou entre 1,94 e 3,3 pontos percentuais. A exceção foi justamente em 2018, quando Bolsonaro derrotou o petista Fernando Haddad. Naquele ano, houve um aumento de 0,78 ponto percentual. "Foi a única vez que o nulo aumentou — o branco nunca aumentou — e foi porque teve uma campanha 'nem Bolsonaro, nem Haddad'", diz o cientista político Alberto Carlos Almeida, sócio-diretor da empresa de pesquisa e consultoria Brasilis. Se isso se repetir neste ano, poderia ser positivo para Lula, porque o número de votos válidos necessários para ganhar seria menor do que no primeiro turno, e isso favorece quem chegou à frente na primeira votação (caso não perca muitos votos entre turnos). No entanto, Almeida acredita que, embora o patamar de brancos já esteja muito baixo, ele pode cair ainda mais. "Muitos votos nulos se devem ao fato que as pessoas acabam errando na hora de votar. Agora, será uma votação mais simples, metade dos eleitores só votarão para presidente. Isso faz com que o nulo despenque." Em tese, uma queda de brancos e nulos seria boa para Bolsonaro, porque haveria mais eleitores disponíveis para ele conquistar para tentar anular a vantagem de Lula. Mas esse cenário pode favorecer também Lula. "Há uma relação estreita com o perfil do eleitor, porque tem a ver com a escolaridade. Quem tem menos estudo tende a anular porque tem uma dificuldade para votar e operar a urna", diz Meireles. Por sua vez, Avelino acredita que há chances de o percentual de nulos e brancos se manter no mesmo patamar ou mesmo crescer um pouco, porque os eleitores dos outros candidatos podem votar para marcar posição e rejeitar tanto Lula quanto Bolsonaro. O pesquisador diz que não será fácil para as campanhas conquistar essas pessoas. "Esse eleitor é o pior para convencer, porque ele já te rejeitou, já disse que não gosta de você." Simone Tebet e Ciro Gomes ficaram em terceiro e quarto lugar, respectivamente, no primeiro turno. Juntos, tiveram pouco mais de 8,5 milhões de votos, ou 7,2% dos votos válidos. Isso é mais do que a diferença de votos entre Lula e Bolsonaro. Cientistas políticos apontam que uma virada do presidente depende de ele conquistar a grande maioria desse eleitorado. "Bolsonaro terá que conseguir quase todos esses votos, mais de 80%, é muita coisa", diz Almeida. Conta a favor do presidente que a tendência histórica aponta que o segundo colocado consegue geralmente ampliar mais sua votação do que o primeiro. Foi assim com Haddad contra Bolsonaro em 2018, Aécio Neves (PSDB) contra Dilma Rousseff (PT) em 2014, com José Serra (PSDB) contra Dilma em 2010 e com Serra contra Lula em 2002 (embora a diferença aqui tenha sido a menor no período analisado). A única exceção foi Geraldo Alckmin, então candidato do PSDB e hoje vice na chapa Lula pelo PSB. Em 2006, o ex-governador perdeu mais de 2,4 milhões de votos entre os dois turnos na disputa contra Lula. "Foi um caso raríssimo, é muito difícil de isso acontecer", diz Avelino. Mas Bolsonaro deve ter dificuldades para repetir o desempenho de outros segundos colocados, porque tanto Tebet quanto Ciro já declararam apoio a Lula. Até o momento, as pesquisas apontam Lula à frente nas intenções de voto dos eleitores de ambos os candidatos. "O caso do Ciro é mais complicado, porque ele refugou muito em seu apoio, mas a Tebet está se engajando com a campanha do Lula e pode mobilizar mais o seu eleitor", diz Avelino. Meireles acredita, no entanto, que uma parcela dos eleitores de Ciro deverá votar em Lula. "Não acho que todo o eleitorado dele ou mesmo boa parte irá para Bolsonaro, porque tem pessoas que são de esquerda e não estariam dispostas a votar nele", diz. O pesquisador do Cebrap considera improvável que Bolsonaro consiga repetir o desempenho de Aécio em 2014. Naquela eleição, o tucano conquistou mais de 16,1 milhões de votos no segundo turno e ficou próximo de conseguir uma virada contra Dilma, que ampliou sua votação em "apenas" 11,2 milhões. "Agora, Lula já está com um percentual de votos muito alto e, com o apoio formal de Tebet e do PDT, espera-se que aumente, enquanto, do lado do Bolsonaro, ele pode subir, mas não consigo ver como vai conseguir aumentar tanto como o Aécio. Seria surpreendente. O mais provável é que a distância entre os dois fique como está", diz, Uma diferença importante entre as eleições de 2014 e 2022 é que Dilma e Aécio somados tiveram o apoio de 54,72% do eleitorado total, enquanto Bolsonaro e Lula receberam 69,24% neste primeiro turno. Esse é o maior percentual em um primeiro turno nas últimas cinco eleições presidenciais. Seu dispositivo não consegue visualizar essa imagem "Tem poucos votos disponíveis, sem levar em consideração que a abstenção ainda deve aumentar. Conseguir mais de 80% dos votos que sobram não é algo trivial. Bolsonaro vai ter que tirar votos do Lula", diz Almeida. As campanhas têm travado uma batalha intensa para tentar aumentar a rejeição ao adversário e tentar virar votos a seu favor. Mas analistas não acreditam que os desertores de Lula e Bolsonaro têm força para desequilibrar a votação para um lado ou para o outro. George Avelino aponta, em um estudo realizado com os cientistas políticos Guilherme Russo e Jairo Pimentel Junior, que consultas feitas após as eleições presidenciais e para governos estaduais de 2002 a 2014 pelo Centro de Estudos de Opinião Pública, da Universidade Estadual de Campinas, indicam que só 6% dos eleitores trocaram de lado entre um turno e outro. "Um eleitor pode mudar de lado, mas isso não quer dizer que vai tudo na mesma direção. O que se observa é que é um grupo pequeno e que metade vai para um lado e metade para o outro. No fim, isso tende a se anular, não faz diferença", diz Avelino. Fernando Meireles avalia que o perfil das duas candidaturas, de um político de esquerda e outro de direita, e a forte polarização já no primeiro turno dificultam essa migração de votos. "Pesquisas feitas após as eleições indicam não ser comum um voto passar de uma ponta do espectro ideológico para outra. Além disso, para a maioria do eleitorado que já escolheu um dos dois candidatos, simplesmente não é viável votar no outro", diz. As pesquisas também apontam neste sentido ao indicar que mais de 90% dos eleitores já se decidiram e não cogitam mudar de voto. Avelino acrescenta que particularidades desta eleição contribuíram para a cristalização dos votos. "Estamos há quase um ano nessa disputa entre dois candidatos carismáticos. É talvez a campanha mais longa de todas, porque não tivemos a Copa do Mundo no meio do ano, o que normalmente faz com que as atenções só se voltem para a eleição de agosto em diante. O eleitor se engajou muito cedo." Alberto Carlos Almeida avalia que esse cenário é ruim para Bolsonaro, já que Lula ficou muito próximo de vencer no primeiro turno. "Quem deposita um voto no primeiro turno dificilmente muda de ideia. Todo mundo já sabe quem são Lula e Bolsonaro e quem vota em um não vota no outro. Tem uma rigidez aí que torna Lula favorito", diz. Além de todas essas variáveis, existe um fator que é preponderante nas estimativas de chances de Lula confirmar sua vitória ou de Bolsonaro conseguir uma virada inédita: a votação no primeiro turno. George Avelino, Guilherme Russo e Jairo Pimentel Junior desenvolveram um modelo matemático para calcular essa probabilidade com base nos votos recebidos por cada candidato e a distância entre eles. "Tentamos adicionar outras variáveis, mas elas contribuíram pouco para melhorar a capacidade de previsão", explica Avelino. O cientista político diz que esse método leva em conta a chamada preferência revelada. "Uma coisa é você fazer uma pesquisa e perguntar em quem a pessoa deve votar, porque ela pode não dizer a verdade ou não ter clareza de quem vai escolher. Outra coisa é a ação concreta, o voto", afirma. O modelo foi criado com base nos dados de 128 eleições presidenciais de 44 países e confrontado com os resultados de 287 eleições para presidente e governador no Brasil, o que apontou uma forte correlação entre o apoio que os dois mais votados receberam no primeiro turno e o resultado do segundo turno. Os cálculos apontam que Lula tem uma probabilidade de 76,7% de vencer a eleição, enquanto Bolsonaro teria 23,3% de chances de virar a disputa. Os cientistas políticos estimam que o petista deve ter 52,4% dos votos válidos. Com uma margem de erro de 1,7%, teria entre 50,7% e 54,1%. Por sua vez, o presidente receberia 47,6% dos votos, com uma variação entre 45,9% e 49,3%. Avelino explica que Lula tem mais chances de ganhar porque ele chegou muito perto dos 50%, a soma dos seus votos e de Bolsonaro é muito grande, e a distância entre eles foi significativa. "Mesmo se o Lula estivesse próximo dos 50%, se a votação tivesse ficado 48% para ele e 47% para o Bolsonaro, por exemplo, a conversa seria diferente. Mas tem menos de 8% do eleitorado sobrando, e Bolsonaro precisa tirar uma desvantagem de pouco mais de 5%", afirma. "Essa é uma situação dramática para Bolsonaro. Ele precisaria fazer mágica, precisaria de um fato novo, algo extraordinário para virar." Ao mesmo tempo, com tantos votos consolidados e tão poucos eleitores disponíveis, tampouco Lula conseguirá abrir uma vantagem muito maior do que teve no primeiro turno, diz o cientista político. "Lula não vai estourar de votos, porque não tem muito voto para ele pegar. O resultado vai ser apertado."
2022-10-21
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63323543
brasil
Censura? As decisões polêmicas do TSE sobre eleições, fake news e Jovem Pan
Recentes decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre fake news nas redes sociais e a abordagem da emissora Jovem Pan a respeito do ex-presidente e candidato petista Luiz Inácio Lula da Silva vêm provocando debates entre juristas e especialistas em torno da atuação da corte. Nesta quinta-feira (20/10), foi aprovada uma resolução afirmando que, em casos de fake news que já tenham sido consideradas irregulares pelos integrantes do tribunal, em decisão colegiada, a determinação de retirada do ar vale também para conteúdos idênticos que sejam replicados na internet. Ou seja, se uma fake news idêntica a uma já julgada pelo TSE começar a circular, o presidente do tribunal pode ordenar que ela saia do ar sem a necessidade de uma nova ação de partidos, do Ministério Público ou uma decisão judicial pedindo isso.  O TSE também deu direitos de resposta a Lula em razão de falas ofensivas feitas por comentaristas da Jovem Pan contra o petista. O canal paulista, que dedica boa parte de sua programação diária a críticas ao ex-presidente, disse que foi censurado e orientou que não sejam ditos no ar termos como "ex-presidiário" e "ladrão" em referência a Lula. Outra decisão que provocou discussão se refere a uma frase do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello que seria usada em uma peça eleitoral do presidente e candidato do PL Jair Bolsonaro e foi suprimida. Fim do Matérias recomendadas Veja abaixo pontos dessas decisões do TSE e o que falam especialistas em direito eleitoral e constitucional sobre o teor delas. O TSE, presidido pelo ministro Alexandre de Moraes, não aguardará pedidos de solicitação de partes atingidas ou do Ministério Público para a retirada de desinformação da internet que já tenha sido alvo de decisão colegiada do tribunal e que esteja sendo replicada por outras pessoas e plataformas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Verificando que aquele conteúdo foi repetido, não haverá necessidade de uma nova representação ou decisão judicial, haverá extensão e imediata retirada dessas notícias fraudulentas", disse Alexandre de Moraes. A resolução também reduziu o prazo para as plataformas retirarem conteúdo considerado enganoso do ar. Ao julgar um conteúdo problemático, a corte determinará sua remoção às plataformas no prazo máximo de duas horas. Esse prazo cai para uma hora de dois dias antes da eleição (que é no dia 30/10) a três dias depois. Segundo Moraes, o objetivo é reduzir o tempo de informações inverídicas no ar. "Uma vez verificado pelo TSE que aquele conteúdo é difamatório, é injurioso, é discurso de ódio ou notícia fraudulenta, não pode ser perpetuado na rede", destacou o presidente do TSE. Cada hora de descumprimento acarretará multa entre R$ 100 mil e R$ 150 mil. Se o mesmo conteúdo reaparecer em outros links e posts, sua derrubada deverá ser feita sem a necessidade de uma nova tramitação judicial. Segundo a resolução, o "descumprimento reiterado de determinações" poderá levar à suspensão do acesso aos serviços da plataforma. "Acho que isso mostra uma preocupação extrema do TSE nessa última semana de campanha. O TSE vê que daqui para frente vai ser na base do tudo ou nada. É elogiável querer proteger o eleitor contra fake news", afirma o advogado Alberto Rollo, especializado em direito eleitoral. "Mas é discutível mudar a regra do jogo aos 40 minutos do segundo tempo." Outro ponto que Rollo vê com reservas é a interpretação de que o TSE agirá "de ofício". "Normalmente o juiz age quando é provocado pelo Ministério Público ou por alguém ofendido. A Justiça tem que agir só quando ela é provocada. Ela não pode tomar a dianteira", diz. Vera Chemim, especialista em direito constitucional, estranha o "poder de polícia" da corte. "Qual é a função típica do Judiciário? É julgar. O poder policial é inerente ao Poder Executivo." Mas ela vê responsabilidade do Legislativo sobre essa situação. "Deveria ter sido feita uma lei anteriormente disciplinando o tema. E quem cria a lei é o Legislativo, não o Judiciário." Projetos que tratam de fake news e desinformação ainda estão sob análise no Congresso. Amplamente usados na eleição de 2022 na disputa eleitoral, os anúncios políticos pagos para veiculação em redes sociais e sites deverão ser suspensos no período de 48 horas antes do dia da votação até 24 horas depois. Na última segunda-feira (17/10), sessão do TSE concedeu mais três direitos de resposta à campanha de Lula após comentários considerados ofensivos ou distorcidos sobre ele proferidos na rede Jovem Pan. Os comentaristas da emissora não poderão repetir que o ex-presidente mente e que não foi inocentado no processo da Lava Jato — sob pena de multa de R$ 25 mil. O pedido da coligação de Lula cita que foi falado no ar durante um dos programas que "o petismo é uma escória". Além disso, foi também determinado pelo corregedor-geral da Justiça Eleitoral, ministro Benedito Gonçalves, investigar se há falta de isonomia da Jovem Pan em sua cobertura, com favorecimento a Bolsonaro. A emissora divulgou comunicado interno proibindo que seus comentaristas usem termos como "descondenado" e "chefe de organização criminosa" em referência ao candidato petista. Na quarta-feira (19/10), a Jovem Pan veiculou um editorial afirmando que "justamente aqueles que deveriam ser um dos pilares mais sólidos da defesa da democracia estão hoje atuando para enfraquecê-la e fazem isso por meio da relativização dos conceitos de liberdade de imprensa e de expressão, promovendo o cerceamento da livre circulação de conteúdos jornalísticos, ideias e opiniões". "Não há outra forma de encarar a questão: a Jovem Pan está, desde a segunda-feira, 17, sob censura instituída pelo Tribunal Superior Eleitoral." A Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão) emitiu nota afirmando que vê receio de interferência na programação das emissoras por parte do TSE. Alberto Rollo afirma que "rádios e TVs são concessões públicas e têm que cumprir a lei. Não é falar o que quer porque 'a TV é minha, a rádio é minha'. Concessão você tem regras, e a lei eleitoral diz que rádio e televisão não podem dar tratamento privilegiado em época de eleição. Ou seja, não pode falar só bem de um e só mal de outro". Sobre as expressões proferidas pelos comentaristas da emissora, o advogado considera que "se algum dia eu fosse condenado por alguma coisa pela qual eu pudesse ser chamado de ladrão e o meu processo fosse anulado, estaria errado me chamar de ladrão empiricamente. Ladrão é aquele que foi condenado em transitado em julgado [quando não há mais possibilidade de recursos]." "A mesma coisa a expressão 'ex-presidiário'. Juridicamente está errado porque Lula esteve preso preventivamente, não cumpriu pena de prisão." Já Vera Chemim considera que a decisão "fere o direito à liberdade de expressão, de pensamento e de opinião. A Constituição garante esses direitos plenamente fundamentais. Ela atropelara o direito constitucional de comunicação". "A despeito das críticas serem extremamente duras, ácidas e até grosseiras, elas se inserem no exercício da liberdade de expressão, ainda mais quando se trata da liberdade de comunicação social." A especialista em direito constitucional vê censura na decisão. "A Constituição garante, posteriormente a uma ofensa, um direito de resposta e uma indenização por danos materiais e morais ou pessoal. Se aconteceu, existe esse mecanismo". Um trecho de 7 segundos de uma entrevista com o ex-ministro do STF Marco Aurélio, que seria veiculado em uma propaganda eleitoral de Bolsonaro na quarta (19), foi substituído por um QR Code que levava a um canal de tira-dúvidas eleitorais no WhatsApp e uma frase em que se lia "suspenso por infração eleitoral". Na entrevista, concedida à Band, Marco Aurélio dizia: "O Supremo não o inocentou [Lula]. O Supremo assentou a nulidade dos processos-crime, o que implica o retorno à fase anterior, à fase inicial". O corte do trecho foi feito com base em uma decisão do ministro do TSE Paulo de Tarso Sanseverino proibindo que Lula fosse mencionado como "verdadeiro ladrão" e "corrupto" pelo locutor do programa de Bolsonaro, palavras que não foram usadas pelo ex-STF. "Acho que aí o TSE errou, foi um exagero", diz Rollo. "Lula realmente não foi absolvido. A Justiça analisa se tem prova ou não para condenar alguém ou decidir se foi absolvido. O caso da anulação da condenação foi porque a vara competente não era Curitiba, essa foi a questão." Chemim afirma que a anulação da condenação diz respeito a "normas de caráter processual e não sobre o mérito" e também criticou a decisão do TSE sobre o spot eleitoral. Marco Aurélio, ao jornal O Estado de S. Paulo, disse que "os tempos são estranhos. Não podemos permitir censura a quem quer que seja". À Folha de S. Paulo, o TSE informou que "a corte não pratica censura e que todas as decisões são avaliadas em casos concretos". O ministro Alexandre de Moraes, que conduz o processo eleitoral à frente do TSE, declarou que houve um crescimento de 1.671% na divulgação de conteúdo considerado falso se comparado com a votação de 2020 e uma alta de 436% nos episódios de violência política via redes sociais em relação a 2018. O tribunal vem tendo que lidar com desafios como a propagação de fake news sobre as urnas eletrônicas, a necessidade de garantir segurança ao eleitor em meio à votação mais tensa em décadas e a ameaça de violência na contestação do resultado das eleições. "É um papel extremamente ingrato [para o TSE] nesse momento político que o Brasil vive, dividido meio a meio, em que se eu não concordo com a outra metade, acham que eu não presto, sou uma pessoa ruim", afirma Rollo. "É um papel complicado, principalmente porque no processo do direito eleitoral não se pode decidir daqui a um ano, quando as coisas estiverem mais calmas. Tem que ser na hora e às vezes acaba errando." "Decidiu na hora, decidiu errado, voltou atrás depois. Mas a decisão tem que ser na hora." O ministro Raul Araújo, autor da decisão, acabou por derrubar a própria liminar em que mandou censurar os atos no festival dois dias depois. "Há agora um ambiente de tensão, tanto institucional quanto no que diz respeito a cidadão de maneira geral", diz Chemim. "Mas acho que o TSE anda pesando a mão. Acho perigoso, na minha opinião, porque agilizar a remoção de notícias falsas para dar uma resposta rápida e repentina pode levar em algum contexto a uma sugestão de caráter antidemocrático."
2022-10-21
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63338642
brasil
É perigoso usar religião como instrumento de poder, alerta dom Odilo Scherer
O cardeal arcebispo de São Paulo, dom Odilo Pedro Scherer, figura aos 73 anos no alto da hierarquia católica. Com um currículo sólido, ele mantém um relacionamento muito próximo com os que vivem no Vaticano — papa Francisco, inclusive. Scherer comanda a Arquidiocese de São Paulo desde 2007 e, no mesmo ano, foi feito cardeal — atualmente, há apenas oito brasileiros nesse seleto grupo da alta cúpula da Igreja. Em tempo de nomeação, só perde para o arcebispo-emérito de Salvador, dom Geraldo Majella Agnelo, que ascendeu ao colégio de purpurados em 2001. No último domingo (16/10), Scherer foi alvo de ataques nas redes sociais motivados pelo atual clima político do país, em que a religião vem ganhando cada vez mais espaço na campanha eleitoral. Ele foi criticado por seguidores porque, em sua foto no Twitter, usa trajes religiosos vermelhos. De acordo com os detratores, isso significaria um apoio ao Partido dos Trabalhadores (PT), do candidato Luiz Inácio Lula da Silva, pela coincidência com a cor da legenda. "Se alguém estranha minha roupa vermelha, saiba que a cor dos cardeais é o vermelho (sangue), simbolizando o amor à Igreja e a prontidão ao martírio, se preciso for. Deus abençoe a todos", escreveu ele. Fim do Matérias recomendadas Ainda na rede social, Scherer demonstrou preocupação com o atual momento político. "Tempos estranhos esses nossos! Conheço bastante a história. Às vezes, parece-me reviver os tempos da ascensão ao poder dos regimes totalitários, especialmente o fascismo. É preciso ter muita calma e discernimento nesta hora!", postou no mesmo dia. Em entrevista à BBC News Brasil na quarta-feira (19/10), dom Odilo explicou como vê a cena política atual. "Os ânimos estão muito acirrados. Há um envolvimento muito claro, eu diria assim, com as religiões. As igrejas, sobretudo as cristãs, foram arrastadas para dentro do debate. Não só do debate, o que seria legítimo, mas para a briga política." Na visão do cardeal, há sinais de fascismo na cultura brasileira atual. "É uma doutrinação, eu diria até mesmo, de ideias fascistas ou fascistoides, que agora se expressam de alguma forma dentro dessa polarização política", afirma, citando o exemplo do debate político em que candidatos são retratados como "o bem" e "o mal". "Existem claramente causas em que precisamos ter uma definição: não podemos ser mais ou menos a favor da vida, mais ou menos a favor da justiça; a gente precisa ser a favor. Porém, isso não nos deve levar a demonizar quem pensa diferente ou quem tenha argumentos diferentes". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Dom Odilo vê riscos para a democracia do Brasil, mas diz esperar que ela resista. "Tem havido manifestações, não agora simplesmente neste momento, mas de mais tempo para cá que apontam para esse risco. Por exemplo, o questionamento das instituições. Não um questionamento qualquer, mas uma forma de ameaça às instituições democráticas", afirma. "Isso, sim, indica um risco, um risco para as instituições democráticas. Mas eu espero que isso não aconteça. O Brasil tem resistido a essas, digamos, ameaças. Creio que nossa democracia aguentou bastante e vai aguentar também essa. E vai se sair melhor." Ao longo de toda a conversa, Scherer demonstrou um especial cuidado em não mencionar, nominalmente, nem o candidato a reeleição Jair Bolsonaro (PL), nem o seu oponente, Lula. "Os clérigos, aí me refiro aos diáconos, aos padres, aos bispos, eles devem se abster de expressar opção partidária e até mesmo por candidatos." Confira a seguir os principais trechos da entrevista. BBC News Brasil - Nos últimos dez dias, observamos uma série de acontecimentos de natureza político-partidária no meio da Igreja Católica. Houve a confusão quando a comitiva de Bolsonaro esteve na Basílica de Aparecida, no dia 12 de outubro, missas interrompidas por manifestações partidárias e, no último domingo, o senhor foi atacado porque demonstrou preocupação com acirramento dos ânimos no contexto eleitoral. O que está acontecendo com os cristãos brasileiros? Dom Odilo Scherer - Estamos em campanha eleitoral, este é o contexto. E o que está acontecendo é que os cristãos acabaram sendo envolvidos na polarização político-ideológica que é geral, que não é só brasileira, e isso está se expressando agora de maneira toda especial na proximidade do segundo turno das eleições presidenciais. Os ânimos estão muito acirrados. Há um envolvimento muito claro, eu diria assim, com as religiões. As igrejas, sobretudo as cristãs, foram arrastadas para dentro do debate. Não só do debate, o que seria legítimo, mas para a briga política. BBC News Brasil - No Twitter, o senhor citou uma preocupação como avanço do fascismo no Brasil. Que setores fascistas seriam esses? O que seria esse avanço? Scherer - Existem sinais, que não são de agora, naturalmente, que vêm de mais tempo, de certa tendência fascista, sim, que está na cultura. É uma doutrinação, eu diria até mesmo, de ideias fascistas ou fascistoides, que agora se expressam de alguma forma dentro dessa polarização política. Isso se expressa de forma muito especial nessa absolutização de um pensamento sem permitir interlocução serena com quem pensa diferente. Essa absolutização é configurada como luta entre "o bem" e "o mal", de modo genérico, e como tal se apresenta alguém que é detentor ou identificado como aquele que é promotor "do bem" e outro identificado como o promotor "do mal". E quem adere politicamente ao que promove "o bem" é tido como "do bem". E quem é identificado como apoiador de quem supostamente promove "o mal" é tido como "do mal". Isso é absurdo. O próprio papa Francisco tem dito que o bem não está todo de um lado nem o mal está todo de um lado. A coisa não é tão simples nem tão clara, tão preto no branco. Existem claramente causas em que precisamos ter uma definição: não podemos ser mais ou menos a favor da vida, mais ou menos a favor da justiça; a gente precisa ser a favor. Porém, isso não nos deve levar a demonizar quem pensa diferente ou quem tenha argumentos diferentes e levar à instrumentalização das massas em função do pensamento, digamos, ideológico e, claro, com o objetivo de alcançar o poder, tornar as massas irrefletidamente fanáticas em torno de uma proposta ou de um determinado projeto. Isso claramente não está dentro do esquema democrático, está indicando mais para regimes totalitários do que para sistemas democráticos, abertos, que aceitam o contraditório e que aceitam conviver com o plural, sem a pretensão de eliminar, pelo menos culturalmente ou idealmente, quem pensa diferente. Nossa sociedade é pluralista em todos os aspectos, temos de reconhecer e aceitar. A manipulação da religião é o que está acontecendo muito fortemente. A meu ver este é um fator preocupante. O que se queria evitar de nossa parte, pelo menos da parte da Igreja Católica, acabou acontecendo: o envolvimento mais explícito, até mesmo de clérigos, que devem se abster. Isso não significa que o povo católico não tenha posição política, partido, candidato… Claramente, é um direito do povo católico fazer isso. Mas os clérigos, aí me refiro aos diáconos, aos padres, aos bispos, eles devem se abster de expressar opção partidária e até mesmo por candidatos. Isso é da norma da Igreja, porque divide a comunidade. Temos de promover a comunhão da comunidade na sua pluralidade e não podemos pôr a perder valores maiores por causa de uma disputa política. BBC News Brasil - A manifestação partidária de clérigos é inclusive proibida pelo Código de Direito Canônico, certo? Scherer - Sim. É contrário às normas da Igreja. BBC News Brasil - E o que vem sendo feito, no caso da sua arquidiocese, para coibir ou punir casos de padres e bispos que estejam se manifestando a favor de algum candidato? Scherer - As coisas estão acontecendo. Depois de acontecidas, a gente vai resolver o que faz. Naturalmente, estamos no fervor dos fatos, mas isso merecerá claramente uma reflexão de nossa parte, na medida que estiver em nosso alcance. A gente está tentando justamente controlar isso, mas, claramente, fugiu do controle. BBC News Brasil - Existe punição prevista para casos assim? Scherer - O uso [político-partidário] da palavra na igreja, no púlpito, na hora da celebração é proibido, até pela lei [eleitoral] brasileira. E, portanto, tem sim, sanções canônicas que podem ser de uma censura até de uma suspensão se o caso for para tal. BBC News Brasil - Os casos concretos ainda serão analisados? Scherer - Claro, os canonistas precisam olhar claramente. Mas, no momento, não estamos, porque, claramente, o assunto ainda está acontecendo. Não tem como fazer isso agora… Esta iniciativa será tarefa para depois. BBC News Brasil - No mês passado, o senhor esteve no Vaticano com o papa Francisco. Ele demonstrou alguma preocupação com o período eleitoral brasileiro? Scherer - Certamente o papa está muito informado sobre o que vem acontecendo em todo o mundo e, portanto, antes que nós falássemos, ele já sabia. Está acompanhando o que está acontecendo com o Brasil. Isso foi assunto também de nossa conversa com o papa em nossa visita a ele. BBC News Brasil - Algo de concreto dessa conversa pode ser tornado público? Odilo Scherer - Não há nada de especial a não ser informações sobre o que se passa na campanha eleitoral, sobre as tendências que estão presentes e como o povo católico está se posicionando… Essas questões… BBC News Brasil - Voltando à questão de que os padres não podem se manifestar partidariamente: em um contexto em que determinados religiosos estão pedindo votos abertamente, quem fica em silêncio não pode dar a entender que toda a Igreja está fechada com determinado candidato? Qual a postura mais adequada, então, nesse caso específico? Scherer - Permanece válido o que a Igreja continua a dizer. Infelizmente, nem sempre isso é observado. No calor da campanha eleitoral, muitas vezes se esquece essa recomendação, que não é só uma recomendação, para os padres. Agora, a Igreja não deve ser identificada somente como os clérigos. A Igreja é o povo. E o povo tem o direito e até o dever de participação política, partidária, de se manifestar em favor de candidatos. Isso está no pleno direito do povo católico. São os clérigos — os diáconos, os padres e os bispos — que não devem, para não dividir a comunidade. BBC News Brasil - Em períodos eleitorais, acabam sendo explorados com mais força alguns temas que são caros à doutrina católica, como o aborto e o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Como tratar disso? Scherer - Nas igrejas, essas temas são tratados como temas morais, e, naturalmente, a posição da Igreja em relação a eles é conhecida. E, mesmo em tempo de campanha eleitoral, nada impede que se trate e continue a tratar desses temas, que são temas morais, não são temas políticos em primeiro plano. Claro que, no tempo da campanha eleitoral, acabam sendo politizados, o que é uma pena. Pareceria que quem ganha a eleição então ganha a posição política em relação a determinado tema. Não, os valores morais são universais, não são valores de partido ou de governo. São valores universais que devem valer para todos os partidos, independentemente de quem ganha a eleição. Por isso, é uma pena que se faça politização de valores morais. Esses deveriam valer para todos, e não simplesmente serem trazidos para a campanha político-partidária. Mas é inevitável que isso aconteça. Então, ao se falar de valores e posições da Igreja em relação a valores morais, nem por isso a Igreja está fazendo campanha partidária. Está falando de suas convicções e de sua doutrina, e isso vale tanto para clérigos quanto para leigos. BBC News Brasil - Mas há alguma orientação aos católicos, no sentido dos valores morais, para ajudar a nortear a escolha dos candidatos? Scherer - Como em tudo, a moral não se impõe. Ela se propõe. Como uma questão de princípio. E cada um deve escolher, em sua consciência, e aderir a esses valores em consciência e depois responder em consciência, diante de si, diante dos outros e diante de DEus. BBC News Brasil - O posicionamento da Igreja é o mesmo quando a gente coloca a questão do armamentismo? Scherer - Certamente. Esta também é uma questão moral, sim. BBC News Brasil - Muitos cristãos que defendem o porte de armas acabam citando uma passagem do evangelho de Lucas, onde Jesus orienta seus seguidores a venderem suas capas e comprarem uma espada. Como explicar esta passagem à luz do atual debate? Scherer - Tem que estudar melhor o significado dessa expressão no contexto do Evangelho. Jesus não justifica de forma nenhuma o armamentismo com isso. Jesus, naquele momento, fala da força interior que se deve ter para testemunhar em favor da fé, do Reino de Deus que ele está trazendo e convidando a aderir. Jesus não está convidando ninguém a fazer guerra contra os outros. BBC News Brasil - Por que a pauta religiosa se tornou tão preponderante neste ano eleitoral? Scherer - Na verdade, ela aparecia antes também. Mas acredito, interpretação minha, que é porque o uso da religião, do nome de Deus e assim por diante é muito frequente por parte de um dos candidatos. Isso é público e é conhecido. E isso se tornou argumento da campanha eleitoral. BBC News Brasil - Este mesmo candidato, que o senhor não cita nominalmente, insiste que há uma perseguição a cristãos no Brasil. O senhor concorda? Scherer - Existe, de fato, sim. Ultimamente, tem aparecido. Até na Basílica de Aparecida, houve uma forma de desrespeito ao momento religioso, ao momento de culto dentro da Basílica [aqui, Scherer se refere aos apoiadores do candidato à reeleição Jair Bolsonaro que causaram confusão durante as celebrações de Nossa Senhora Aparecida no feriado alusivo a ela, no último dia 12]. Há outros momentos em que pessoas interrompem missas para provocar ou, então, criar arruaça dentro da celebração. Isso são manifestações de intolerância, se não são de perseguição. São de intolerância. E a intolerância é muito preocupante. Por isso mesmo é perigoso tornar a religião de alguma forma instrumento de busca do poder e argumentar com base em argumentos religiosos para conseguir o voto das pessoas. Isso é perigoso e pode desencadear consequências incontroláveis depois. BBC News Brasil - Consequências incontroláveis? O senhor enxerga algum risco para a democracia no Brasil? Scherer - Tem havido manifestações, não agora simplesmente neste momento, mas de mais tempo para cá que apontam para esse risco. Por exemplo, o questionamento das instituições. Não um questionamento qualquer, mas uma forma de ameaça às instituições democráticas. Um poder contra outro poder. Ou até pretender ter um controle total sobre o Judiciário, por exemplo. Isso, sim, indica um risco para as instituições democráticas. Mas eu espero que não aconteça. O Brasil tem resistido a essas, digamos, ameaças. Creio que nossa democracia aguentou bastante e vai aguentar também essa. E vai se sair melhor. BBC News Brasil - Qual o papel da Igreja Católica na contribuição ao fortalecimento desse processo democrático? Scherer - Primeiramente, a Igreja tem um papel próprio. Não é um papel político-partidário. A Igreja, e aí também a Conferência dos Bispos [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a CNBB], não é um partido, não é uma facção a favor ou contra o governo. A Igreja é povo. E, na Igreja, existem pessoas de várias cores partidárias, legitimamente. A Igreja, por isso mesmo, é inclusiva. Não é seletiva de ideologias ou de partidos, de posições partidárias. A Igreja está no meio do povo, é o povo. É dos que aderem a ela e estão batizados, portanto, fazem parte dela. Por isso, a Igreja está na sociedade, é parte dela, e, através da ação da Igreja, ela procura educar — a palavra parece meio inadequada neste contexto, mas o trabalho de evangelização é, sim, um trabalho de formação das pessoas em função de valores, de reconhecimento do próximo e da dignidade humana, dos valores de justiça e retidão. Este é o papel formador que a Igreja tem na sociedade. A Igreja, através de suas múltiplas formas de presença, está na sociedade como colaboração. Ela não substitui nem a sociedade nem o governo. A Igreja não é uma coisa separada da sociedade, está dentro da sociedade, com creches, hospitais, escolas, com inúmeras iniciativas de presença junto aos pobres, doentes, etc. Então, dessas formas, a Igreja está colaborando, contribuindo para uma vida melhor na sociedade. Com o governo, a Igreja está disponível para colaboração naquilo que é legítimo e possível. E aí não tem o governo A ou B. Com qualquer governo, quando isso seja possível e coerente com aquilo que é a sua convicção. BBC News Brasil - E qual o papel da Igreja no período eleitoral? Scherer - A Igreja tem dado orientações quanto a parâmetros, balizas que devem orientar a busca do voto, ou então a quem dar o voto. A escolha dos candidatos, quais os critérios que, segundo a convicção da Igreja, deveriam ser levados em consideração na escolha. Isso a Igreja faz, tem feito. Damos, naturalmente, critérios que possam ajudar os cristãos que queiram ter referências. E o povo espera isso, pede, quer referências para a escolha dos candidatos. Claro que o povo queria muitas vezes ouvir "vote em A", "vote em B". Normalmente, não fazemos isso, porque a gente sabe que a nossa indicação já introduziria a divisão na comunidade. Oferecemos critérios pelos quais as pessoas devem se orientar. São aqueles que normalmente já são conhecidos. Primeiramente, olhar a capacidade, a idoneidade moral do candidato que se apresente. Depois a sua, diria assim, sua ficha, seu histórico, se ele merece a nossa confiança, se ele representa nossas convicções. Depois, por outro lado, claro, aquele programa que ele tem ou defende, ele ou o partido ou o conjunto de partidos. Esse programa vai bem? Ele contraria nossas convicções? São essas coisas que a gente propõe normalmente. Além de ter oferecido critérios que, esperamos, tenham todos, agora a gente está fazendo o papel de acalmar os ânimos. Para evitar que, no calor da campanha, se produzam lacerações nas relações sociais, humanas e até mesmo dentro das famílias, comunidades cristãs que, depois, dificilmente serão superadas. Entendemos que há valores que vão além de uma campanha eleitoral. Claro que, em uma campanha, temos muitas coisas em jogo e muitas coisas apreciáveis. Porém, depois da eleição, temos de continuar vivendo, temos de continuar a viver juntos. E só um pode ganhar. Quem ganha deve governar, e esperamos que governe bem. E quem perde vai para a oposição, que controle quem governa e faça seu papel. Por outro lado, é preciso compreender que, no Brasil, temos um regime democrático, republicano, presidencialista. Não somos parlamentaristas e muito menos imperial, portanto o presidente não pode tudo. O presidente não governa de maneira absoluta, e nem queremos que governe de maneira absoluta. Tem de levar em conta os outros dois poderes, o Congresso e o Judiciário. E levar em conta a população. O grande poder é o povo, e o próprio povo deve controlar quem governa, em todas as instâncias e acompanhar as ações do governo e ver se estão de acordo com aquilo que o povo pretende. Que o povo se manifeste também depois das eleições. Nosso voto é apenas uma parte do processo político. Nossa participação política não termina na urna. Ela continua depois, ao longo de todo o governo. BBC News Brasil - Quando o senhor diz "nossa participação", inclui também a Igreja como instituição? Scherer - Exatamente, o papel político dos organismos da Igreja é legítimo, não é negado. Ele é previsto e reconhecido pelas instituições da sociedade. Gostaria de acrescentar uma palavra que o papa Francisco tem usado e que se aplica bem ao período eleitoral: que os adversários não sejam considerados inimigos. Adversários políticos pensam diferentes. Mas não devem ser considerados inimigos, porque isso depois cria situações realmente não só constrangedoras, mas insuportáveis e insustentáveis. Deve prevalecer a amizade social, o respeito e a tolerância. E cada um que lute por aquilo que acredita. Esperamos que seja assim.
2022-10-20
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63334190
brasil
Quanto ganha o presidente do Brasil?
Quem quer que seja eleito pelos brasileiros em outubro receberá quase R$ 31 mil brutos por mês. Ou, com os descontos obrigatórios, pouco mais de R$ 24 mil, de acordo com dados do Portal da Transparência. O salário coloca o presidente entre o 1% da população mais bem paga do Brasil, um país conhecido pela desigualdade. Mas comparado a chefes de Estado pelo mundo, o salário do brasileiro não é dos mais altos. Entre os líderes do G-20, o presidente do Brasil está entre os cinco menos bem remunerados. Convertendo os valores para a moeda brasileira, o mandatário americano, por exemplo, recebe cerca de R$ 160 mil por mês. No Japão, o salário do primeiro ministro fica em torno de R$ 87 mil mensais. Na América Latina, o Chile paga R$ 43 mil reais ao seu presidente. Já a Argentina, R$ 29 mil. Fim do Matérias recomendadas O eleito para governar o Brasil ainda tem direito a outros benefícios importantes, incluindo duas moradias em Brasília e plano de saúde. Mas nenhum benefício presidencial atrai tanta polêmica quanto o cartão corporativo, um recurso com o qual o presidente banca despesas como sua alimentação, a gasolina da frota, cuidados com a moradia oficial e os gastos em viagens. O benefício é uma espécie de cartão de crédito de limite elástico, bancado com impostos e cujas despesas não são transparentes. Em média, Bolsonaro gastou R$ 875 mil por mês até agora. De acordo com um levantamento do jornal O Globo, em seus 3 primeiros anos, Bolsonaro gastou quase 20% a mais do que ao longo dos 4 anos do mandato anterior, divididos por Dilma e Temer. Bolsonaro, no entanto, não quer dizer como gastou esse dinheiro e colocou sigilo de cem anos sobre a fatura do cartão corporativo. Uma investigação do Tribunal de Contas da União mostrou que ele gastou quase R$ 100 mil por mês em comida. A BBC News Brasil questionou o Planalto o porquê do sigilo e como o dinheiro foi gasto, mas não obteve resposta até a publicação desse texto.
2022-10-20
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63304814
brasil
Sumiço de idosa em excursão a Aparecida completa 10 anos e segue como mistério
"É uma situação bastante estranha. Mesmo com tanto tempo e com tanta divulgação, não tivemos nenhuma resposta", diz o químico João Winck, de 63 anos, sobre o desaparecimento da mãe. Nesta sexta-feira (21), o mistério sobre Beatriz Winck completa uma década. "São 10 anos sem resposta. Às vezes desanima e dá vontade de desistir [da busca por respostas], porque não houve evolução na investigação", declara João à BBC News Brasil. Beatriz, que na época tinha 77 anos, sumiu durante uma excursão ao Santuário Nacional de Aparecida, no interior de São Paulo. Segundo os familiares, ela foi vista pela última vez enquanto esperava o marido, o aposentado Delmar Winck, que estava em uma loja do local. A Polícia Civil de São Paulo investiga o caso, mas até hoje não foi encontrado nenhum indício sobre o paradeiro de Beatriz. João, o primogênito dos quatro filhos de Beatriz e Delmar, é o principal responsável por buscar notícias da mãe. Desde 2012, ele começou a fazer investigações por conta própria e ações para divulgar o desaparecimento dela. Fim do Matérias recomendadas Atualmente, uma página no Facebook com milhares de seguidores e um site são as principais formas que ele usa para compartilhar o caso e receber possíveis novas informações. Ao longo dos últimos 10 anos, ele já recebeu inúmeras mensagens sobre o possível paradeiro dela e diversas imagens de idosas que poderiam ser Beatriz. O químico afirma que deu atenção a todas as suspeitas que chegaram e as encaminhou às autoridades policiais. "Mas nunca houve nada que se tratasse realmente dela", lamenta. Beatriz morava em Portão, no interior do Rio Grande do Sul, e viajou a Aparecida (SP) com o marido em uma excursão. Eles, que eram casados havia cerca de 60 anos, costumavam viajar com frequência a diferentes lugares com grupos de idosos. "Os meus pais estavam sempre juntos. A minha mãe não fazia nada sem o meu pai", diz o primogênito do casal. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Pouco antes da viagem a Aparecida, conta João, Beatriz passou por exames que mostraram que ela não enfrentava problemas sérios de memória ou algo que a impedisse de ter a autonomia de participar de excursões com o marido. No dia em que a aposentada desapareceu, ela e o marido haviam acabado de chegar a Aparecida. Segundo Delmar relatou na época, ele e a esposa decidiram caminhar pelo Santuário, que na data estava lotado de turistas. Ainda conforme Delmar contou na época, ele pediu que a esposa o esperasse na porta de uma loja de artigos religiosos enquanto ele aguardava em uma fila para pagar pelos itens que havia comprado. "Ele pagou e saiu da loja, mas não encontrou mais a minha mãe", detalha João. Nos registros de segurança do Santuário, conta João, não havia imagens do momento em que a idosa desapareceu. "Descobrimos que as filmagens ali eram feitas uma em cima da outra. Então nada ficava registrado." Em nota à BBC News Brasil, o Santuário Nacional de Aparecida afirma que colaborou com com tudo o que foi "solicitado e direcionado" pela polícia em relação ao desaparecimento de Beatriz. O Santuário afirma, ainda em nota, que "possui estrutura e protocolos que são acionados quando as pessoas se desencontram de seus familiares, sendo efetivo o reencontro ainda no mesmo dia." Desde o desaparecimento da idosa, os familiares já tentaram diversas formas de encontrar respostas sobre o que aconteceu com Beatriz: distribuíram milhares de panfletos na região de Aparecida, tiveram o apoio de diversos voluntários que se mobilizaram na cidade para procurar Beatriz e divulgaram o caso intensamente por meio da imprensa. A aposentadoria dela, segundo a família, logo foi bloqueada para evitar que o dinheiro pudesse ser usado por outras pessoas, caso ela tivesse sido vítima de algum tipo de crime. A polícia também começou a fazer buscas por Beatriz. João não descarta que a mãe possa ter ficado desorientada, tenha tido algum problema de saúde ou até tenha sido vítima de um crime. Mas ele frisa que nunca soube de nenhum caso de idosa desmemoriada, perdida ou internada em um hospital que pudesse ser associado a Beatriz. "Acho muito estranho o desaparecimento dela. A gente fez de tudo, divulgou de todas as formas possíveis e nunca surgiu uma informação concreta, absolutamente nada. Alguém poderia ter visto ela, mas até hoje não temos nada concreto ou qualquer indício. Isso me deixa com a pulga atrás da orelha." O primogênito de Beatriz estima que recebeu, ao longo dos anos, cerca de 200 fotos de idosas que as pessoas suspeitavam que poderia ser aposentada. Naquelas em que realmente havia alguma característica semelhante à mãe, ele dava mais atenção. O químico diz ter viajado a dezenas de cidades brasileiras em busca de asilos, hospitais ou qualquer possível pista da mãe, além de ter entrado em contato com autoridades locais em diversas cidades. Nos últimos anos, diz João, as mensagens com possíveis pistas de Beatriz diminuíram cada vez mais. "Agora são cerca de duas ou três por mês", estima. Desde o desaparecimento, ele costuma se apegar a qualquer tipo de informação que possa indicar o paradeiro dela. "Ontem recebi uma mensagem de uma menina que disse que viu uma reportagem sobre a minha mãe. Ela disse que tem um pouco de mediunidade e que acredita que minha mãe pode estar em uma determinada cidade", conta João. "Eu me apego a tudo, a qualquer possibilidade. Ela me mandou mensagem ontem e já pesquisei a cidade e mandei e-mail para a Prefeitura", detalha ele, que conta que ainda não recebeu uma resposta. João diz que mantém a esperança de descobrir o que aconteceu com Beatriz. "Tenho certeza de que vou encontrar a minha mãe e continuo na busca. O meu sentimento diz que vou encontrá-la viva, mas tenho que estar consciente de que talvez não seja possível. Hoje ela teria 87 anos e a família dela é muito longeva, sempre viveram quase 100 anos. Mas estou consciente de que ela não é mais uma pessoa jovem", diz. Para João, esclarecer o desaparecimento da mãe é também uma forma de dar uma resposta ao pai dele. "O meu pai completa 92 anos daqui a duas semanas e está acamado após alguns AVCs (Acidente Vascular Cerebral) nos últimos cinco anos. Ele não consegue ficar em pé sem um apoio, mas está lúcido e tem consciência do desaparecimento da minha mãe. Ele me pergunta às vezes sobre isso e eu digo para ele que isso é responsabilidade minha." "É um assunto que a gente não toca mais com ele, porque ele começa a chorar quando fala disso", acrescenta. Em nota à BBC News Brasil, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo afirma que continua apurando o desaparecimento de Beatriz por meio da Delegacia de Polícia de Investigações sobre Pessoas Desaparecidas. Segundo a pasta, ainda são feitas buscas para tentar localizar a aposentada. "Qualquer informação que possa contribuir com o trabalho policial pode ser fornecida via Disque Denúncia (181)", orienta a secretaria.
2022-10-20
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63323583
brasil
Líder religioso que usa culto para pedir voto arrisca multa e, em casos de ameaça, prisão
Dois dias após o primeiro turno das eleições presidenciais, o presidente Jair Bolsonaro (PL) participou de um culto na Assembleia de Deus Ministério do Belém, na zona leste de São Paulo, ao lado da primeira-dama Michelle Bolsonaro e de outros parlamentares. Durante a celebração, que reunia centenas de fiéis, o pastor José Wellington Bezerra da Costa, presidente da Convenção Fraternal das Assembleias de Deus do Estado de São Paulo (Confradesp), defendeu a campanha à reeleição do atual mandatário. O líder religioso pediu que os presentes falassem com "o nosso povo, com as famílias, com as mulheres" e com "parentes no Nordeste" para angariar votos para Bolsonaro. "Espero em Deus que no dia 30 de outubro estaremos confirmando o nosso voto e reelegendo o presidente da República", disse. No mesmo culto, outros líderes religiosos criticaram o ex-presidente e adversário de Bolsonaro, Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O próprio mandatário e a primeira-dama tiveram espaço para falar com o público. "Precisamos convencer aqueles que ainda não sabem em quem votar. A igreja não pode ser omissa neste momento", disse Michelle. Fim do Matérias recomendadas Os pedidos de voto aconteceram apesar da proibição do uso de templos religiosos para propaganda eleitoral. Ganhos eleitorais dentro de igrejas, templos ou terreiros também podem ser considerados prática de abuso de poder econômico pelas campanhas. A BBC News Brasil entrou em contato com a Assembleia de Deus e com a Confradesp para esclarecimentos sobre o culto de 4 de outubro, mas não obteve resposta. A reportagem também não encontrou no sistema de consulta eletrônica do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decisões relacionadas ao episódio até a publicação deste texto. Segundo especialistas em Direito Eleitoral consultados pela reportagem, violações às normas eleitorais por líderes e associações religiosas e candidatos podem levar à aplicação de multas e, em casos graves, a sentenças de prisão e até cancelamento do registro da candidatura. O último caso, porém, nunca foi aplicado para campanhas à Presidência da República e requer infrações muito graves. Entenda a seguir o que pode e o que não pode ser feito na campanha eleitoral por templos e líderes religiosos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Templos religiosos, tais como igrejas, terreiros, sinagogas e mesquitas, são considerados "bens de uso comum" pela lei brasileira. E segundo a Lei das Eleições, de 1997, "é vedada a veiculação de propaganda de qualquer natureza" nesses locais. "Falar bem de um determinado candidato não é propaganda eleitoral, mas comparar dois nomes e dizer, por exemplo, que um representa o bem e o outro o mal, pode ser considerado propaganda", explica o advogado eleitoral Alberto Rollo. A lei estabelece como propaganda eleitoral não apenas declarações, mas também exposição de placas, faixas, cavaletes, pinturas ou pichações. O mesmo vale para ataques a outros candidatos — a chamada campanha negativa. O descumprimento da norma pode gerar multa de R$ 2 mil a R$ 8 mil. "A multa é aplicada para quem fez a propaganda ou para o candidato beneficiado", diz Rollo. "Por vezes, alguns acham que vale a pena praticar a ilegalidade já que o valor da multa não é tão alto, principalmente quando se trata de campanha para presidente ou governador." Segundo o ex-ministro do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e presidente do Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral (Ibrade), Marcelo Ribeiro, o TSE costuma analisar caso a caso para determinar o que será ou não considerado propaganda. "Pelo entendimento do TSE, um líder religioso não pode transformar o culto em um comício, mas poderia manifestar pessoalmente preferência por um dos candidatos", disse à BBC News Brasil. "É preciso analisar casos de exagero e de desvio de função, ou seja, de transformação de uma celebração religiosa em outra coisa." Templos religiosos também são considerados pessoas jurídicas e, pela lei, nenhum candidato pode ser financiado por empresas. Por isso, transgressões são consideradas abuso de poder econômico e podem levar ao cancelamento do registro da candidatura ou à perda do cargo dos candidatos envolvidos e a multa para a instituição. São exemplos de transgressões a distribuição de materiais impressos ou organização de eventos financiados por igrejas, propaganda nas redes sociais oficiais do templo religioso ou até o uso do espaço religioso, cadastrado em um CNPJ, para propaganda. Pessoas físicas, porém, estão isentas da regra. Dessa forma, líderes religiosos podem individualmente fazer doações a campanhas. A norma está prevista na Lei Complementar nº 64, de 1990. O Artigo 22 do texto estabelece que casos suspeitos devem ser investigados pela Justiça Eleitoral, com a apresentação de provas e testemunhas e direito a defesa. A lei estabelece ainda que, para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade do fato alterar o resultado da eleição, mas a gravidade das circunstâncias. Segundo Marcelo Ribeiro, isso significa que infrações pequenas ou de menor repercussão tendem a não levar à cassação. "Se um candidato a governador, por exemplo, participou de um ato de campanha com mil pessoas presentes em que se identificou abuso, mas ele foi eleito com 1 milhão de votos a mais que o adversário, o bom senso leva a crer que não se deve cassar a candidatura." "Em casos de campanhas à Presidência, é ainda mais difícil que se chegue a uma cassação. Um caso assim requeriria um movimento nacional, todo irregular", diz o ex-ministro do TSE. O Artigo 22 da lei de 1990 também se aplica a casos de utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, incluindo os religiosos, que também não podem atuar em benefício de um candidato ou partido político. Em 2020, o TSE julgou a possibilidade de ampliar o Artigo 22 e incluir também a proibição de "abuso de poder religioso" na lei. O tribunal, porém, rejeitou a tese. Há ainda um caso mais grave de infração, relacionado ao uso de violência ou grave ameaça para coagir alguém a votar, ou não votar, em determinado candidato ou partido. A infração está prevista no Código Eleitoral, Artigo 301. A pena sugerida é de reclusão de até quatro anos e pagamento de 5 a 15 dias-multa. "Nesses casos estamos falando de um crime. Um líder religioso que ameaça expulsar um fiel da igreja ou ameaça aplicar um corretivo em quem votar em determinado candidato, por exemplo", diz Alberto Rollo. O Artigo 299 do Código fala ainda na proibição de "dar, oferecer, prometer, solicitar ou receber, para si ou para outrem, dinheiro, dádiva, ou qualquer outra vantagem, para obter ou dar voto". Nenhum dos dois artigos menciona nominalmente líderes ou templos religiosos, mas as normas se aplicam também nesse contexto, segundo os advogados. Os especialistas consultados pela BBC News Brasil explicam, porém, que líderes religiosos são livres para manifestar sua opinião política ou pedir votos para candidatos em suas redes sociais ou relações pessoais. "O debate público sobre política é normal e a população deve ter liberdade para discutir esses temas", diz Marcelo Ribeiro. O advogado lembra, porém, que mesmo para as redes sociais há regras. O TSE estabelece que a propaganda eleitoral paga na internet deve ser feita somente por candidatos e partidos, e precisa ser identificada como tal onde for exibida. O tribunal não considera propaganda eleitoral publicações com elogios ou críticas a candidatos feitas por eleitores em suas páginas pessoais. Mas os apoiadores não devem recorrer ao impulsionamento pago para alcançar maior engajamento. Também é proibido contratar pessoas físicas ou jurídicas para fazer posts de cunho político-eleitoral. "Os pastores são cidadãos e pessoas físicas, não jurídicas, portanto aquilo que dizem em suas redes sociais pessoais não está sujeito a essa lei. Mas essas declarações não podem acontecer nas redes sociais da própria igreja, por exemplo", complementa Alberto Rollo.
2022-10-19
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63320704
brasil
'Pauta moral é o voto de cabresto religioso', diz diretor de política da CNBB
A religião tornou-se um dos pontos centrais do debate político nacional no segundo turno das eleições brasileiras, com grande polêmica em torno de pautas sobre moralidade. O padre Paulo Adolfo Simões acompanha atentamente o fenômeno. Diretor do Centro Nacional de Fé e Política Dom Helder Câmara (Cefep), organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), ele afirma que o uso político das pautas religiosas se tornou uma espécie de "voto de cabresto religioso" — em referência à prática de abuso de poder econômico de agentes (como coronéis ou fazendeiros) para obrigar eleitores a votarem nos seus candidatos. No caso da religião, essa coersão se daria por meio de líderes religiosos, que utilizam o discurso da moralidade para influenciar o voto de seus seguidores. "Surge esse novo perfil de religiosos, que foi construído também com algumas intenções. Eles trazem para o debate a pauta moral, que é para capturar os votos desses rebanhos. É o voto de cabresto religioso. Os fiéis de determinada igreja (...) vão todos para aquele candidato", afirma. De seu escritório em Brasília, Simões atendeu à reportagem da BBC News Brasil nesta terça-feira (18/10), em uma conversa de quase duas horas por videoconferência onde fez críticas ao presidente Jair Bolsonaro (PL), que disputa a reeleição contra Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Fim do Matérias recomendadas "Ele se diz católico, mas é tudo ao mesmo tempo. A pauta dele não é dos católicos, não e dos evangélicos. A pauta dele é dele, é da extrema-direita. E onde dá voto, ele vai", comenta Simões, que disse apoiar Lula, por ele apresentar "uma proposta que tem mais a ver com o evangelho". O padre comenta também diferentes episódios de acirramento dos ânimos por conta de discussões relogiosas — como a visita de Bolsonaro à Aparecida no dia 12; um padre que teve a missa interrompida no Paraná; e o assédio virtual ao cardeal arcebispo de São Paulo, dom Odilo Pedro Scherer, por conta de suas vestes vermelhas, cores litúrgicas correspondentes ao seu posto. "É muito fácil chamar todo mundo de comunista. Sobrou até para o cardeal dom Odilo, que, aliás, se defendeu muito bem. Achei a fala dele muito boa, alertando para o crescimento do nazifascismo no Brasil", afirma o diretor do Cefep. O padre lembra que a CNBB, que acaba de completar 70 anos de história, nunca se furtou a posicionar-se politicamente. O organismo foi ativo na oposição a ditadura militar que comandou o país de 1964 a 1985, defendeu o impeachment de Fernando Collor de Mello, em 1992, e tem publicado diversos posicionamentos contra atos do governo Bolsonaro, especialmente quando afetam políticas públicas de amparo social ou de proteção a minorias. Além disso, anualmente, a instituição promove a Campanha da Fraternidade, que de forma recorrente debate temas sociais e políticos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A seguir, os principais trechos da entrevista. BBC News Brasil - Muitos católicos, de certa forma para se proteger, estão optando por não falar em política, não se manifestar politicamente. Como é ser político dentro da Igreja? Padre Paulo Adolfo Simões - Não tem nada mais político do que se dizer apolítico. Quem fica em cima do muro toma uma posição. Construímos um projeto [de conscientização] com foco nas eleições, mas é mais amplo: o projeto Encantar a Política. O ponto de partida é exatamente isso: existe uma noção de que política é só militância partidária, eleitoral. E outra ideia de que política é coisa muito suja, que não dialoga com religião. Qual a percepção que a gente tem? Que as duas ideias não são espontâneas, são uma construção de quem está no poder. Sempre para que o povo não participe das decisões que afetam sua vida, é como se deixássemos nas mãos da mesma elite que vem desde o Brasil colonial definindo os destinos do país ou, em outra leitura, uma certa elite de iluminados que goste mais de política. Entendemos que a militância partidária e, sobretudo, eleitoral, é fundamental. É importante o cristão e a cristã que se sente chamado assumir isso com todo o ônus que isso traz. Mas não é a única forma de fazer política. Você faz política de muitas formas, como nos sindicatos, nas associações, nos conselhos de direitos e até no ato de ir à igreja, de não ir, de participar de um evento social, de pronunciar-se ou se calar diante de alguma questão. São atos políticos. A grande pergunta que a gente tem de fazer é a seguinte: minha militância política é em favor de quem? Aí é a pergunta de Paulo Freire [educador brasileiro que viveu entre 1921 e 1997]: é a favor dos opressores ou dos oprimidos? Estou a favor da maioria empobrecida ou a favor de manter o status quo? E às vezes isso se mistura um pouco. Na prática, de repente, você está defendendo a causa dos pobres e mantendo um grupo no poder. Ou, de repente, você está ajudando a manter um grupo no poder e, de alguma forma, também beneficiando os pobres. As coisas são muito complexas, mas o importante é isso. Não dá para separar fé de política. O Frei Betto [frade dominicano e escritor] tem uma frase muito interessante. Ele fala que nós somos seguidores de um preso político, que é Jesus. Jesus Morreu por uma condenação política, e não religiosa. Jesus não morreu atropelado por um camelo nas ruas de Jerusalém, nem de gripe na cama. Ele morreu por uma condenação política. Ele não morreu condenado religiosamente, morreu por uma questão política. Isso não nos permite sermos omissos. Podemos até errar nas opções, mas precisamos fazê-las. BBC News Brasil - Por falar em opções, como o senhor vê a polarização atual da política brasileira? Simões - A gente tem falado que a polarização em si não é tão ruim, pois através de dois polos você pode fazer uma síntese. E sempre tivemos no Brasil uma polarização. O problema é essa polarização violenta, que faz com que alguns até deixem de se posicionar por medo de alguma reação, risco até de violência física ou de contaminar o ambiente familiar, de trabalho. Essa é uma questão muito séria. A percepção internacional é que essa polarização é uma forma da extrema-direita dar um cala-boca em quem pensa diferente, criando justamente isso de que as pessoas, em nome da boa convivência, evitem falar em política, evitem se posicionar. No Brasil, eu percebo que, politicamente, não temos uma polarização. Temos uma extrema-direita, violenta e tal, mas não temos uma extrema-esquerda, ao menos não uma extrema-esquerda que seja representativa. Não temos ninguém defendendo a invasão de terras, ninguém defendendo a estatização de bancos, nada disso. Temos um campo representado pelo candidato Lula [Luiz Inácio Lula da Silva], pelo PT, que congrega outros partidos e inclui hoje muitos que defendem políticas liberais, que são mais de centro. São políticas de centro. Não temos uma extrema-esquerda militante, então a polarização é complicada de ser analisada. Percebo que é mais uma tentativa de inviabilizar o discurso político e propiciar uma ascensão da extrema-direita, que é, inclusive como [o cardeal arcebispo de São Paulo] Odilo Scherer alerta, o surgimento, o crescimento do nazifascismo no Brasil. Uma coisa muito séria, muito grave. BBC News Brasil - É esta gravidade que fez com que houvesse união em torno do Lula, em sua opinião? Simões - O [ex-presidente] Fernando Henrique ao lado de Lula é muito simbólico. Até o [fundador do partido novo, João] Amoêdo, quando manifesta o voto em Lula. A questão que une todo esse grupo é a defesa da democracia, que é um bem maior, que está acima das ideologias e do modelo econômico. Porque num sistema democrático você pode discutir o modelo de país. Se não tem o sistema democrático, não sabemos se vai poder discutir alguma coisa. Esta é a grande questão. […] O crescimento desta extrema-direita, inclusive católica e religiosa, indica que o brasileiro, em geral, é conservador. E até os governos populares, com alguns avanços, acabaram ferindo o pensamento dessas pessoas que agora querem se manifestar. […] O momento é importante par a gente enfrentar e mostrar para essa extrema-direita, sobretudo cristãos católicos que estão se posicionando nesse espectro, que há outro pensamento, outra possibilidade. Que não podemos cair no extremismo. E as pessoas precisam entender o que é fascismo. BBC News Brasil - Mas esse discurso chega à população? Simões - Não sei muito se esse discurso de democracia e fascismo interessa à população em geral, que quer ter comida na mesa. O pessoal está preocupado se tem alguma coisa na geladeira, se sobra um dinheirinho no fim de semana, se vai dar para tirar férias. Se isso vem da democracia ou de uma ditadura, para o povo, pouco importa. Aí vem um fator interessante, preocupação da Cefep: a falta de discussão política que nós temos. Precisamos trabalhar mais, as pessoas não só não querem atuar politicamente como não querem discutir política, fogem disso. Precisamos formar o nosso povo, trabalhar para que as pessoas percebam que, num sistema democrático, com um governo mais progressista, a comida chega na mesa para todos e para todas. E os direitos estão garantidos para as minorias. No outro sistema a gente não sabe se um dia vai chegar [a comida]. Mas tanto a Igreja Católica quanto os campos progressistas, acho que ainda não conseguimos falar com o povão de forma direta, sobretudo usando as mídias sociais. E a extrema-direita faz isso muito bem. BBC News Brasil - Grupos de WhatsApp de católicos, mesmo aqueles criados com o objetivo de promover rezas comunitárias e confraternizações entre pessoas da mesma paróquia, estão dominados por posts em defesa de Bolsonaro e com críticas a um suposto comunismo. Há até vídeos, que viralizam, de padres fazendo novenas e pedindo orações a favor da reeleição do atual presidente, citando-o nominalmente. Há alguma orientação da Igreja para que padres não se posicionem dessa forma? Simões - Sim. Tem inclusive uma posição do próprio [Código de] Direito Canônico que diz que padres e bispos não devem manifestar apoio a candidatos. O papel da Igreja é orientar a consciência do cristão, dar informação para que as pessoas possam tomar a sua posição. O que temos no Brasil de hoje é que enquanto sempre se tomou muito cuidado com quem se posiciona a favor de alguma proposta política de esquerda, não se toma cuidado com quem se posiciona a favor da direita. Não se tem nenhum cuidado com quem se posiciona a favor do candidato Bolsonaro. Aí ficamos numa situação complicada. Parece que somos muito ingênuos ainda com relação a isso, embora tenha essa orientação, a extrema-direita já trouxe essa questão para o centro do debate. E, nesse momento eleitoral, seria muito ingenuidade não nos posicionarmos. Isto [este silêncio] está contribuindo para que os católicos pensem que todos os padres, bispos e religiosos estão com Bolsonaro. BBC News Brasil - Mas se está previsto no Direito Canônico, esses padres podem ser punidos? Simões - O bispo [da diocese onde ele atua] pode tomar posição com relação a eles. Mas até agora não foi tomada nenhuma posição, então parece que os bispos ou estão temerosos, ou estão a favor [desse tipo de manifestação bolsonarista]. BBC News Brasil - O bispo pode suspender ou apenas advertir? Simões - Seria uma advertência. Tenho notícia de que alguma diocese, depois que padres bolsonaristas se posicionaram, outros tomaram posição também [a favor de Lula]. O bispo tentou conversar com todo mundo. […] Aí houve um acordo entre eles e aceitaram a orientação do bispo. BBC News Brasil - Por que nestas eleições a religião assumiu papel tão importante? Simões - São vários fatores que se entrelaçam. Um deles é que esta extrema-direita sabe que o eleitor evangélico segue um determinado pastor. E o eleitor católico que pertence a um grupo tradicionalista, normalmente ligado à Renovação Carismática [movimento ultraconservador do catolicismo], esse eleitor é muito fiel a seu chefe. Ele vota em quem manda o padre, o pastor, o guru. Diferentemente do católico em geral que escuta o que diz o padre, o bispo, mas vota de acordo com sua consciência, que é aquilo que a teologia moral ensina: o católico tem de seguir sua consciência. Então surge esse novo perfil de religiosos, que foi construído também com algumas intenções. Eles trazem para o debate a pauta moral, que é para capturar os votos desses rebanhos. É o voto de cabresto religioso. Os fiéis de determinada igreja, de determinado coletivo de católicos vão todos para aquele candidato. E então entra o populismo: o político percebe qual a índole do seu eleitorado e passa a assumir o discurso daquele grupo. Nem sempre ele acredita nisso. O Bolsonaro, por exemplo, é contra o aborto, mas já defendeu a liberdade do casal de abortar. […] Enfim, [os políticos] não acreditam nessas pautas. Essa é uma questão. É um eleitorado fácil de ser comprado, isso se percebe claramente. Esse eleitorado é composto por grupos normalmente com baixa formação cristã no sentido crítico. É uma formação que vai mais na linha de um treinamento para repetir alguns chavões. Até usam, por exemplo, a Doutrina Social da Igreja [conjunto de orientações sociais do magistério católico] para dizer que a Igreja condenou o comunismo, mas também não definem o que é o comunismo. Repetem à exaustão uma fala do papa Pio 11 [que comandou a Igreja de 1922 a 1939], uma fala muito específica e [ignoram que] depois esse pensamento evoluiu. Isso é muito claro: é um grupo muito fácil de ser manipulado. BBC News Brasil - E a pauta de costumes parece "colar"… Simões - Eleitoralmente é o principal. Quando você traz a pauta de costumes, fala que um candidato é a favor do aborto, fala que um candidato vai colocar banheiro unissex nas escolas, fala essa bobeira toda, essas fake news de grupos de WhatsApp, você não discute as grandes questões do país. Não se discute a fome, a pobreza, o desmonte das políticas públicas, o desmonte e o descrédito das instituições que é o mais sério que essa extrema-direita faz. Isso é muito grave. A pauta de costumes é a cortina de fumaça para que não se pautem questões sérias e, mais ainda, não se apresentem programas de governo. Para mim, é discurso para enganar bobo. Você pode ser contra tudo isso, mas nenhuma lei vai obrigar tudo isso. É uma democracia. A gente depende da democracia, uma lei que possibilita que quem quer, faça, mas que dentro da Igreja, da comunidade, eu possa ser contra, orientar meus fiéis. Mas politicamente é tudo irrelevante. A gente não está discutindo de fato o que leva a morte das pessoas, que é a pobreza, que é a economia. BBC News Brasil - Afinal, a Igreja tem alguma orientação no sentido de que os fiéis não votem em candidatos que defendam questões que vão contra a doutrina da própria Igreja? Um católico deve escolher o político conforme o catecismo? Simões - Papa Francisco, quando veio ao Brasil [em 2013], na entrevista ocorrida no avião um jornalista perguntou para ele se ele não ia falar contra o aborto. Ele respondeu que todo mundo já sabe que a Igreja é contra o aborto e não precisamos repetir isso à exaustão. Todos os assuntos são muito complexos. A Igreja é contrária a essas pautas, mas se você vai votar ou não em candidato que defende essas pautas, é outra questão. Tem muito padre dizendo que católico não pode participar de partido de esquerda. Mas o cristão, em geral, é chamado a ser missionário, a viver o evangelho. O missionário está em todo lugar que possibilite a fala. Muitos cristãos vêm conversar e se manifestar dizendo que pela fala de alguns padres, católicos não podem participar de partidos de esquerdas porque estes são comunistas. Primeiro precisa definir o que é comunismo e o que são comunistas. Porque se você pega os Atos dos Apóstolos [livro do Novo Testamento, que narra os acontecimentos vividos pelos primeiros seguidores de Jesus logo após a morte dele], a proposta da Bíblia é comunista. Até mais radical. Por exemplo, Maria no Magnificat [cântico cuja autoria é atribuída à mãe de Jesus, conforme citação no Evangelho de Lucas] fala não só para colocar comida nas mesas dos pobres como para despedir os ricos de mãos vazias. O comunismo não chegou a isso. Então Maria era mais comunista do que eles. O cristão católico — e a doutrina da Igreja vai nesta linha — é sobretudo um missionário. O missionário fala em todos os espaços em que é permitida a fala. Ele só não deve estar nos espaços onde a fala é tolhida. E aí temos bons cristãos católicos e de outras denominações religiosas, de outras igrejas, que militam tanto em partidos de esquerda quanto em partidos de direita. Não sei se os de extrema-direita são cristãos de verdade, mas de direita a gente conhece. BBC News Brasil - Ou seja: para ter liberdade de fala, é preciso democracia… Simões - Vejo como pauta fundamental a questão da democracia versus autoritarismo, inclusive dentro dos partidos. Porque uma coisa é você militar ou votar para candidatos ou partidos que têm uma pauta que não contempla as propostas da Igreja Católica, mas que lá dentro é um partido democrático, permite a discussão, a conversa, vai ouvir a sociedade. Outra coisa é você estar em um partido que também defende pautas contra a Igreja Católica, ou não defende pauta nenhuma, e que impõe um modelo, não permite a discussão. Onde é possível conversar, discutir, é fundamental que o cristão católico esteja presente e leve sua contribuição. BBC News Brasil - E o aborto, padre? Simões - Quando a gente fala da pauta de aborto, a gente tem uma sensação que os movimentos chamados pró-vida foram captados por uma extrema-direita. Por quê? Eles se contentam em dizer que são pró-vida só defendendo que as pessoas nasçam, mas eles não defendem a vida dos que já nasceram. E o papa Francisco, em uma exortação apostólica sobre a santidade, ele fala que os cristãos devem defender de forma clara e apaixonada a vida dos nascituros, mas também defender com a mesma ênfase a vida de todos os que já nasceram e que se debatem na pobreza. Então ser cristão pró-vida não é só ser contra o aborto. Mas a gente não pode ser ingênuo de entrar nessa questão porque muitas vezes essas pautas são cortina de fumaça para desviar o assunto do que é essencial. BBC News Brasil - Podemos dizer então que é mais interessante para o cristão estar em um lado político em que haja debate do que estar em um campo que simplesmente vete o que for contrário à doutrina católica? Simões - Exato. Podendo expor seu ponto de vista, debater, conversar, ouvir o contraditório, a ciência. A grande defesa que o evangelho faz é a defesa da vida, sempre. E às vezes tem discurso que pode parecer pró-vida mas, na verdade, não redunda na vida. Tudo isso é importante de ser ouvido. Por isso o debate é importante. É a história: Jesus debateu com todo mundo, conversou com fariseus, pecadores, com todos. […] É uma mesa na qual cabe todo mundo. BBC News Brasil - E o que justifica um cristão defender o armamentismo, o porte de armas? Não é contra o evangelho? Simões - Eu diria, e esta é uma posição minha, que defender porte de armas é um absurdo do ponto de vista humano. Nenhum ser humano tem o direito de pensar na hipótese de tirar a vida do outro. Questiono a humanidade dessas pessoas. Quem defende o porte de armas está se desumanizando. Esta é a primeira questão. Se a gente vai falar com gente conservadora que defende o porte de armas, é preciso lembrar o quinto mandamento: não matar. Olha, você vai matar outra pessoa para defender sua propriedade? Você mata e vai para o inferno em seguida, isso é muito tranquilo para mim, não tenho dúvidas. BBC News Brasil -Bolsonaro tem origem católica e se diz católico, mas frequenta cultos evangélicos e, em geral, aparece muito mais ao lado de pastores evangélicos do que no meio católico. A pauta dele é evangélica ou católica? Tem diferença? Simões - A pauta dele é dele. Da extrema-direita. Onde dá voto ele vai. BBC News Brasil - Essa postura dele e de seus seguidores tem acirrado a rivalidade entre católicos e evangélicos no Brasil? Simões - Li em 2019, não me lembro quem falou, que no futuro a divergência entre os cristãos não seria mais entre evangélicos e católicos, mas entre fundamentalistas e progressistas dos dois campos. Claro que acaba existindo esse discurso contra evangélicos, que a gente faz até meio sem querer, mas, por outro lado, estamos muito próximos dos campos evangélicos progressistas, embora eles sejam minoria. Nas próprias igrejas, se um pastor se posiciona contra Bolsonaro, muitas vezes ele é tirado do ministério. Enfim, são minoria e sofrem muita retaliação. Quando falamos em campo evangélico no Brasil, a gente tem de tomar cuidado. Não é homogêneo. […] E todos esses pastores midiáticos que estão com Bolsonaro, eles estiveram com Lula e com Dilma. BBC News Brasil - Têm uma relação fisiológica com o poder? Simões - Exato. Bolsonaro tem o projeto dele. E essas igrejas têm o projeto delas. Isso é muito sério. Mas a discussão é a divergência entre progressistas e fundamentalistas. BBC News Brasil - Até dentro da Igreja Católica? Simões - Claramente. BBC News Brasil - Nos últimos 10 dias, houve uma nota crítica da CNBB ao uso político da religião, a confusão da visita de Bolsonaro e seus apoiadores à Basílica de Aparecida, um padre no Paraná que teve a missa interrompida por um bolsonarista e o cardeal de São Paulo atacado nas redes sociais por conta da cor vermelha de suas vestes litúrgicas. Como se manifestar sem ser taxado de partidário? Qual a orientação da CNBB neste contexto? Simões - Historicamente, a religião cristã como um todo sempre se pautou por uma mística. Então aquilo que fortalece o cristão militante, que clareia suas posições, é ter uma mística. Vai muito além de ter momentos de oração e de reflexão, mas inclui também isso. É conhecer o evangelho, ter familiaridade com isso, dar espaço para a palavra de Deus, a meditação, a participação da comunidade na sua vida. Nos seus posicionamentos, neste momento de segundo turno, está necessariamente o apoio não a um dos dois candidatos e projetos, mas às causas de suas propostas. Eu não defendo o Lula pelo Lula. Não defendo o PT pelo PT. Defendo porque, a meu ver, neste momento, ele apresenta uma proposta que tem mais a ver com o evangelho. É mais coerente do que o outro candidato, que é católico, mas é tudo ao mesmo tempo e tem uma incoerência muito grande, por exemplo, quando fala da família tradicional. Ele pode representar a família tradicional de qualquer um, menos a minha, que e tradicional. Eu não tenho aquele perfil de família. E são muitas contradições. O essencial do evangelho é o pobre. Nossa defesa é dos pobres, dos empobrecidos. E também as pautas em relação a minorias. Mas a defesa do pobre, em geral, porque os pobres são o centro do reino de Deus. E volto para o Magnificat, "derrubou dos seus tronos os poderosos, exaltou os humildes, saciou de bens os famintos, despediu os ricos de mãos vazias". É muito fácil chamar todo mundo de comunista. Sobrou até para o cardeal dom Odilo, que, aliás se defendeu muito bem. Achei a fala dele muito boa, alertando para o crescimento do nazifascismo no Brasil. Este é o modus operandi, essa violência extremista.
2022-10-19
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63292458
brasil
O passado comum de fundadores do MST e fazendeiros de soja do Mato Grosso
Fazendeiros de soja de Mato Grosso e militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) hoje estão em lados opostos do debate político. Os grandes produtores de soja são um dos grupos mais fiéis ao presidente Jair Bolsonaro e viram sua influência política e econômica crescer exponencialmente nos últimos anos. Já os sem-terra estão ao lado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, um aliado do MST desde seus primórdios e que atendeu várias demandas do movimento em seu governo. No passado, no entanto, várias das pessoas que formaram os dois grupos viviam situações bastante semelhantes: muitos eram agricultores pobres, filhos e netos de imigrantes europeus que perambulavam pelo Rio Grande do Sul em busca de terras para criar os filhos. Como um mesmo contexto foi capaz de criar dois movimentos políticos antagônicos? Fim do Matérias recomendadas Apresentado pelo repórter João Fellet, o podcast aborda como pessoas de diferentes grupos sociais — como evangélicas, executivos do mercado financeiro e brasileiros que se identificam como pardos — se posicionam diante de conflitos políticos atuais. O podcast busca ainda entender como os brasileiros chegaram ao atual grau de divisão na política e se há possibilidade de diálogo entre grupos divergentes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Uma das pessoas entrevistadas no episódio é a professora Maria Salete Campigotto, uma das primeiras militantes do MST. Campigotto é neta de agricultores que deixaram a Itália rumo ao interior do Rio Grande do Sul em busca de melhores condições de vida. Mas não havia no Estado terras para todos imigrantes que chegavam. Nos anos 1970, agricultores gaúchos sem terra começam a formar acampamentos para pressionar o governo por uma reforma agrária. Campigotto foi para um desses acampamentos, erguido numa fazenda no município gaúcho de Ronda Alta, e passou a participar das Comunidades Eclesiais de Base, que eram grupos organizados pela Igreja Católica. O grupo era liderado pelo padre Arnildo Fritzen, ligado à Teologia da Libertação, uma corrente católica que interpreta a fé cristã à luz de problemas sociais como a pobreza e a desigualdade. Não por acaso, Campigotto diz que, em seus primórdios, o movimento sem-terra tinha muitos símbolos cristãos: sinos eram uma ferramenta de comunicação entre os acampados, e uma cruz foi construída para simbolizar "o peso e a dificuldade" enfrentados pelos sem-terra. Campigotto já conseguiu um pedaço de terra, mas nunca abandonou o MST. Aos 68 anos, ela segue visitando acampamentos e participando de projetos educacionais entre assentados. "Já estou aposentada como professora estadual e, nas madrugadas, vou com um colchão nas costas e sem ganhar um centavo, porque é questão de militância mesmo trabalhar pela reforma agrária", afirma. "A gente nunca deixa de ser sem terra, sabe?" Mas um acontecimento quase mudou a história da professora. Foi em 1981, quando estava acampada em Ronda Alta e a ditadura militar enviou ao local Sebastião Rodrigues de Moura, o major Curió, para acabar com a ocupação. Curió já era bem conhecido naqueles anos por ter sido um dos militares responsáveis pela repressão à Guerrilha do Araguaia, nos anos 60 e 70. Ela conta que Curió cercou o acampamento para forçar a dispersão do grupo. Das cerca de 600 famílias presentes, ele conseguiu convencer 300 a migrar para Lucas do Rio Verde, em Mato Grosso. Os demais se mudaram para uma área próxima, comprada pelo movimento graças a doações. Os acampados ficaram nessa área até serem assentados pelo governo gaúcho, em 1983. A migração de agricultores sem terra sulistas para o Centro Oeste foi incentivada pela ditadura militar. A ideia dos militares era aliviar a pressão por terras no Sul e, ao mesmo tempo, reforçar a soberania brasileira na região. Uma das famílias que aceitou a missão foi a de Gilmar Dell'Osbel, também entrevistado pelo podcast Brasil Partido. Ele tinha 8 anos de idade quando deixou o Rio Grande do Sul com a família, em 1972. Assim como a família de Salete Campigotto, os Dell'Osbel eram descendentes de italianos que se deslocavam pelo Rio Grande do Sul em busca de mais espaço para a família. Até que um projeto de colonização fundado pelo pastor luterano Norberto Schwantes fez a família se mudar para Canarana, em Mato Grosso. "Todo mundo falava que estávamos fazendo uma loucura. Sair para o Mato Grosso… até o nome Mato Grosso assustava as pessoas, e, na verdade, foi um passo em busca de um futuro melhor para a família", afirma. Seguindo as orientações do pastor luterano, a família pegou um empréstimo no Banco do Brasil com juros subsidiados para comprar um lote de 400 hectares. As primeiras famílias a chegar em Canarana trabalhavam em mutirão e dividiam os poucos equipamentos disponíveis. "Meus pais derrubavam o cerrado com o trator e a gente ia catando de mão e fazendo um monte para depois queimar", conta. Até que um acontecimento deixou a família à beira da falência. Foi quando, depois de três anos de cultivo, o solo se esgotou e deixou de produzir. A família teve então de suspender as parcelas do empréstimo no Banco do Brasil. "Nós fomos pra cidade trabalhar de pedreiro, a família toda. Não sabia nem como fazer, mas tinha de aprender para sobreviver", ele conta. A situação só ficou confortável quando o Banco do Brasil passou a financiar o cultivo de soja naquela região, no início dos anos 80. "Aí os negócios foram acontecendo. A gente, com muita luta, foi prosperando e comprando terra", diz. Hoje Dell'Osbel tem cerca de 5 mil hectares de terra, que ele administra com dois sócios. Junto com o sucesso econômico, também veio o poder político. Ele virou presidente do sindicato rural de Querência (MT) e se tornou um dos dirigentes da poderosa Associação Nacional dos Produtores de Soja (Aprosoja). Hoje a Aprosoja é uma das entidades mais próximas a Bolsonaro. Segundo Del'Osbell, praticamente 100% dos filiados apoiam a reeleição do presidente. "Eu vejo que em muitas obras, tanto ligadas ao setor agrícola, escoamento de produção, logística, infraestrutura, ele se dedicou bastante. E obras que estavam paradas, ele terminou", afirma. Bolsonaro teve forte votação na maioria das regiões com produção de soja e na chamada fronteira agrícola, que são as áreas onde a floresta nativa tem dado lugar a pastagens e plantações. O presidente se elegeu em 2018 prometendo paralisar as demarcações de terras indígenas — e cumpriu. Bolsonaro também agiu para combater o que chama de "excessos" de órgãos ambientais. No governo atual, ficou mais difícil pra esses órgãos destruírem equipamentos apreendidos em operações contra o desmatamento ilegal, por exemplo. Analistas afirmam que os discursos e atitudes de Bolsonaro explicam a forte alta nos índices de desmatamento na Amazônia nos últimos quatro anos. Indagado se concordava com a correlação, Dell'Osbel diz que a destruição da floresta é promovida por pessoas que andam "fora da lei" e não fazem parte de sua categoria. "Essas pessoas são favorecidas com esse discurso (de Bolsonaro), mas o produtor, ele sabe que, se ele fizer alguma coisa ilegal, ele é travado perante esses órgãos fiscalizadores, e ele não consegue tocar a atividade dele", afirma. Dell'Osbel elogia as mudanças legais promovidas por Bolsonaro que facilitaram o acesso a armas para agricultores — uma das principais bandeiras eleitorais do presidente. "Porque nós estamos na propriedade, longe da cidade. Às vezes até o sistema de segurança lá da cidade, a polícia ficar sabendo, o bandido já cometeu o crime e já está muito longe", diz. Outro ponto positivo do governo atual, na visão dele, foi o abandono da política de criar assentamentos de reforma agrária. "O que a gente vê na prática é que, quando o governo cria esses assentamentos, a maioria das pessoas vai lá, adquire um pedaço de terra e vende para ir para novas invasões", afirma. Já Salete Campigotto, do MST, diz que a afirmação de Dell'Osbel é preconceituosa. Para ela, é natural que, ao longo dos anos, alguns assentados resolvam deixar os lotes e migrar para outras regiões. Campigotto diz que Bolsonaro "é uma pessoa que não dá nem para descrever, dada a fragilidade humana". Ela diz esperar que, caso Lula vença a eleição, possa haver uma "distribuição de terra para quem tenha interesse em produzir alimentos saudáveis". "É muito mais fácil o governo resolver o problema de fazer assentamento do que resolver as cidades abarrotadas de problemas." "Por que não se investe esse dinheiro para comprar a terra e dar condições para que o povo possa trabalhar e viver melhor?", questiona.
2022-10-19
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brasil
Pastores fazem pressão por voto e ameaçam fiéis com punição divina e medidas disciplinares
Em um vídeo com mais de 300 mil visualizações no Instagram, a ministra evangélica Valnice Milhomens instiga os fiéis a não votarem em candidatos à Presidência que apresentam "um programa contrário ao reino de Deus". Toda vestida de verde, amarelo e azul, ela afirma que cada fiel "vai responder diante de Deus pelo seu voto". Milhomens tem 320 mil seguidores no Instagram e 137 mil inscritos em seu canal no YouTube. Ela é uma das muitas líderes religiosas evangélicas que têm feito campanha pelo presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL). A ministra e presidente da Igreja Nacional do Senhor Jesus Cristo não menciona Bolsonaro nominalmente em suas postagens e discursos, mas as cores escolhidas para os vídeos e o discurso são os da campanha do atual mandatário. Ela também já participou de celebrações religiosas ao lado do presidente e sua família. Milhomens ainda tem promovido um movimento de oração e jejum nos dias que antecedem o segundo turno das eleições presidenciais. Em um guia divulgado no site do Conselho Apostólico Brasileira (CAB), os fiéis podem seguir um roteiro de orações, entre as quais há uma com o nome de Jair Bolsonaro. Fim do Matérias recomendadas O programa de 21 dias vai até 29 de outubro e tem sido divulgado nas redes sociais por diversos pastores de diferentes denominações. Já o pastor André Valadão é muito mais direto em seus pronunciamentos. "Vamos para cima! A vitória do Bolsonaro nesse segundo turno tem que ser grande!", diz em um dos vídeos postados em seu Instagram, onde acumula 5,3 milhões de seguidores. "Tem que votar certo, se não você não é crente não", afirmou também em um vídeo gravado ao lado do atual presidente, usando o bordão que se popularizou em suas redes sociais. Valadão é fundador da Lagoinha Orlando Church, na Flórida, nos Estados Unidos, e cantor gospel. Em suas redes, responde com frequência perguntas de fiéis e seguidores sobre religião e política. E tão comum quanto as postagens que exaltam Bolsonaro, são as que criticam a esquerda e, em especial, o ex-presidente e candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Em uma postagem do dia 4 de outubro, pouco após o primeiro turno das eleições, uma usuária mandou o seguinte comentário para o perfil do pastor: "Sou cristã e não votei no Bolsonaro #forabolsonaro". Valadão respondeu: "Você pode até ser cristã, mas é desinformada. Ou talvez escolhe caminhar na ignorância, sem entender que tudo o que a esquerda oferece é tudo que é fora dos valores cristãos". Em reação a outra pergunta, o religioso escreveu que crente que vota em Lula é "um absurdo". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O discurso político combativo se repete entre outros pastores que possuem uma ampla gama de seguidores, algumas vezes até com ameaças contra os fiéis que se recusam a seguir a orientação de voto. Um vídeo em que um pastor da Assembleia de Deus afirma que os evangélicos que declararem voto em Lula serão proibidos de tomar a Santa Ceia circulou nas redes sociais em agosto. "Eu ouço crentes dizendo: vou votar no Lula. Você não merece tomar a ceia do Senhor se você continuar com esse sistema", diz o pastor Rúben Oliveira Lima, da Assembleia de Deus em Botucatu, interior de São Paulo. Em outro momento do vídeo, ele afirma, se referindo ao ex-presidente Lula: "Se eu souber de um crente membro dessa igreja que votou nesse infeliz, eu vou disciplinar". Ele não deixa claro o que quer dizer com disciplinar. Um documento discutido em plenário durante uma assembleia em 4 de outubro da Convenção Fraternal das Assembleias de Deus do Estado de São Paulo (Confradesp), um dos braços mais fortes da Assembleia de Deus, fala de "aplicação de medidas disciplinares" contra membros que adotem filosofias que, segundo eles, entram em choque com os princípios cristãos. O texto a que a BBC News Brasil teve acesso afirma que a Convenção não aceitará em seus quadros ministros que defendam, pratiquem ou apoiem, por quaisquer meios, ideologias contrárias aos princípios morais e éticos defendidos por ela. O documento cita um posicionamento contrário à "Desconstrução da Família Tradicional, Erotização das Crianças, Ampla Liberação do Aborto" e outros. "Os Ministros que comprovadamente defenderem pautas de esquerda, dentro da cosmovisão marxista, serão passíveis de representação perante o Conselho de Ética e Disciplina, assegurado o contraditório e a ampla defesa", diz a carta. A resolução foi aprovada pouco depois de o presidente Jair Bolsonaro participar de um culto para os fiéis presentes à assembleia, na Assembleia de Deus Ministério do Belém, na zona leste de São Paulo. Durante esse mesmo culto, diversos líderes religiosos falaram a favor do presidente e a primeira-dama Michelle Bolsonaro cobrou das igrejas evangélicas um posicionamento no segundo turno das eleições de 2022. "A gente queria vitória, sim, no primeiro turno. Mas a gente entendeu, irmãos, que se a gente tivesse recebido a vitória no primeiro turno, talvez a igreja não estivesse preparada para isso. A gente precisa se voltar ao Senhor. A igreja precisa se posicionar, a igreja precisa aprender", disse ela. A Confradesp é liderada por José Wellington Bezerra da Costa, um dos pastores mais influentes do Brasil. Seu filho, o também pastor e líder da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil (CGADB) José Wellington Costa Junior, disse em um culto no início de maio que o ex-presidente Lula não deve ser recebido nas igrejas que ele comanda. "O inferno não tem como entrar em lugar santo. Aqui é lugar santo", disse, em referência ao PT e a Lula. "É bom que nos conscientizemos disso. Você, pastor, vai ser procurado sorrateiramente [por petistas], dizendo que é só uma visita. É um laço do Diabo!". Outro líder religioso que declarou seu apoio à candidatura de Bolsonaro foi o apóstolo Estevam Hernandes, pastor da Renascer em Cristo e idealizador da Marcha para Jesus. Ele é hoje um dos principais cabos eleitorais do atual presidente. O apóstolo, que é dono do canal de televisão Rede Gospel e apresenta um programa de rádio e televisão na emissora, utiliza frequentemente as cores verde e amarelo durante cultos e nas fotos e vídeos que posta nas redes sociais. Em sua página no Instagram, que tem 1 milhão de seguidores, o líder religioso utiliza uma foto de perfil em que aparece ao lado de Bolsonaro. Ele também compartilha com frequência cliques ao lado de outros candidatos, entre eles o aspirante a governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos). Em suas participações na televisão, o apóstolo não cita nominalmente nenhum candidato, mas fala de temas como a "destruição da família" e o "apoia ao aborto". Ele também costuma divulgar eventos com a participação de outras lideranças religiosas em que se discute política e o apoio a Bolsonaro. À BBC News Brasil, Hernandes afirmou que ele e sua igreja defendem "os valores cristãos, mas não vamos impor nossa vontade a ninguém". "Acredito que ele defende os mesmos valores que nós cristãos, da importância da família, e contra o aborto, por exemplo", disse sobre o atual presidente. "Eu acredito que temos o direito de defender os candidatos que representam os valores e demandas da igreja, mas de maneira nenhuma fazemos disso uma imposição. Da mesma forma, tenho o direito de me posicionar em minhas redes sociais sobre o que acredito. Mas não estamos impondo nada a ninguém e nem usando o púlpito para isso", afirmou o fundador e líder da Igreja Renascer em Cristo em respostas enviadas por escrito à reportagem. Assim como a ministra Valnice Milhomens, o apóstolo tem divulgado o programa de jejum e oração para o período que antecede o segundo turno das eleições. O líder religioso afirma que sua igreja realiza jejuns com frequência desde a sua fundação. "O objetivo do jejum é ter um período especial de consagração em que buscamos orar e estar ainda mais próximos de Deus. Neste jejum, em especial, estaremos orando também pelo país e pelas próximas eleições, mas, como falei, jejuamos sempre." Bolsonaro não é o único que recebeu apoio de lideranças religiosas. O ex-presidente Lula também tenta reunir votos do eleitorado cristão por meio de pastores e padres. O petista também vem tentando reforçar sua imagem como cristãos em suas campanhas e redes sociais, rebatendo algumas das críticas e acusações feitas contra ele. Mas enquanto o atual presidente recebeu apoio de grandes igrejas e denominações e de pastores midiáticos com uma ampla rede de seguidores, Lula é apoiado principalmente por quadros dissidentes e igrejas menores. O petista tem ao seu lado, por exemplo, Paulo Marcelo Schallenberger, que se identifica em suas mídias como "o pastor solitário de Lula". O religioso faz parte da Assembleia de Deus, mas afirma ter sido afastado dos cultos formais na igreja por conta de seus posicionamentos. Hoje se dedica principalmente a palestras em outras igrejas. "Passei a me posicionar primeiro contra o governo Bolsonaro, só depois me aliei publicamente ao Lula. Mas sempre votei nele e na ex-presidente Dilma [Rousseff]", disse à BBC Brasil. Além de pastor, Schallenberger concorreu a deputado federal neste ano pelo Solidariedade, mas não foi eleito. Ele afirma guardar as discussões de políticas e suas opiniões pessoais para discussões após o culto ou fora da igreja. "Há um exagero na discussão de política dentro das igrejas, especialmente entre aqueles que cultivam uma certa idolatria em relação ao Bolsonaro." O pastor também usa as redes sociais com frequência para falar da corrida eleitoral. Em uma postagem compartilhada no Instagram após o primeiro turno das eleições, Bolsonaro é classificado como "falso cristão". O post cita a relação do atual presidente com a Arábia Saudita e o príncipe Mohammad bin Salman. "Um cristão não pode se comportar da forma que ele se comporta, seja na forma de falar ou na vida", diz. "Não tem como se dizer cristão e não sentir empatia, se solidarizar ou derramar uma lágrima sequer por quem morreu na pandemia." Há cerca de duas semanas, o pastor também publicou em suas redes sociais um vídeo adulterado em que o atual presidente afirma que a primeira-dama cumpriu três anos de prisão por tráfico de drogas. Trata-se de um áudio falso, manipulado a partir de uma declaração dada em 2019. Na realidade, Bolsonaro comentava sobre a avó de sua esposa. Questionado pela reportagem sobre o post, o líder religioso afirmou que não sabia que se tratava de uma fake news quando postou, mas que foi avisado posteriormente. "Já apaguei do meu Twitter, mas alguém da minha equipe deve ter esquecido de deletar do Instagram. Vou verificar", disse. O vídeo foi apagado posteriormente. Outra liderança religiosa que declarou seu voto em Lula foi o bispo Romualdo Panceiro, ex-número 2 da Universal e atual líder da Igreja das Nações do Reino de Deus. A Aliança de Batistas do Brasil, uma organização que prega a "livre interpretação da Bíblia", a "liberdade congregacional" e a "liberdade religiosa" para todas as pessoas, também se posicionou a favor do petista, afirmando ser contra o "governo perverso e mau que está no poder". Segundo a lei eleitoral, é proibido veicular propaganda eleitoral de qualquer natureza em templos religiosos. Esses espaços são definidos como "bens de uso comum", assim como clubes, lojas, ginásios e estádios. "Falar bem de um determinado candidato não é propaganda eleitoral, mas comparar dois nomes e dizer, por exemplo, que um representa o bem e o outro o mal, pode ser considerado propaganda", explica o advogado eleitoral Alberto Rollo. A Lei das Eleições, de 1997, estabelece como propaganda eleitoral não apenas declarações, mas também exposição de placas, faixas, cavaletes, pinturas ou pichações. O mesmo vale para ataques a outros candidatos - a chamada campanha negativa. O descumprimento da lei pode gerar multa de R$ 2 mil a R$ 8 mil. "A multa é aplicada para quem fez a propaganda ou para o candidato beneficiado", diz Rollo. O especialista explica ainda que igrejas são consideradas pessoas jurídicas e, pela lei, nenhum candidato pode ser financiado por empresas. Transgressões são consideradas abuso de poder econômico e podem levar ao cancelamento do registro da candidatura ou à perda do cargo. Veículos ou meios de comunicação social, incluindo os religiosos, também não podem atuar em benefício de candidato ou de partido político. Segundo Rollo, porém, declarações feitas nas redes sociais pessoais de líderes religiosos não se enquadram na regra. "Os pastores são cidadãos e pessoas físicas, não jurídicas, portanto aquilo que dizem em suas redes sociais pessoais não está sujeito a essa lei. Mas essas declarações não podem acontecer nas redes sociais da própria igreja, por exemplo." Há também, no Código Eleitoral, um artigo que proíbe o uso de ameaças para coagir alguém a votar, ou não votar, em determinado candidato ou partido, sob pena de reclusão de até quatro anos e pagamento de multa. Pastores moderados e lideranças religiosas criticam o uso da religião e do palanque de igrejas para fazer campanha e coagir fiéis a darem seus votos para determinados candidatos. A pastora Romi Bencke, secretária-geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic), ressalta que para além de qualquer proibição da lei eleitoral brasileira, fazer uso da posição de autoridade, de celebrações ou de canais de televisão religiosos para esse fim não é ético. "Não creio que seja correto que lideranças religiosas se utilizem de sua autoridade perante os fiéis para estimular votos em candidatos específicos", diz. "As lideranças religiosas são respeitadas, escutadas e têm uma legitimidade em suas comunidades." Para Valdinei Ferreira, professor de teologia e pastor titular da Primeira Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo, há uma linha muito tênue que separa as convicções pessoais de pastores e outros religiosos de seu papel público. "Mas devemos evitar cruzar essa linha e usar a autoridade religiosa para respaldar ou legitimar nossa opção político partidária", afirma. "Eu me sinto tentado a me pronunciar em alguns momentos, mas resisto a fazer isso na condição de pastor e mais ainda usando o púlpito e o culto." Ferreira critica ainda o uso de discursos camuflados para apoiar determinadas ideologias políticas a partir de preceitos religiosos. "Há valores tanto da direita quanto da esquerda que são compatíveis com o evangelho. Dizer que cristão não vota em candidatos de uma determinada ideologia é manipulação", afirma. "No dia 30 de outubro [dia do segundo turno], não vamos votar no presidente de uma igreja ou no novo papa, mas no presidente do Brasil. As mobilizações precisam ser laicas, até porque a pessoa eleita vai governar ao longo de quatro anos um Brasil que é plural em termos de religião", completa Romi Bencke.
2022-10-19
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63209750
brasil
'Perseguição contra cristãos já começou no Brasil. Só que dentro da igreja'
"A gente se sentiu descartável." "É como se nós, cristãos, estivéssemos vivendo a própria ditadura dentro do templo." "Não reconheço mais a Igreja hoje." "O pastor abandonou a Bíblia pra falar de comunismo." "É triste ver um lugar sagrado sendo corrompido." "A perseguição contra os cristãos já começou no Brasil. Só que dentro da própria igreja." Uma pesquisa do Datafolha sugere que seis em cada dez evangélicos brasileiros pretendem votar em Jair Bolsonaro (PL) no segundo turno. As frases acima foram ditas por cristãos que não fazem parte deste grupo majoritário. Apesar de representarem parte expressiva da comunidade evangélica — quatro em cada dez, segundo o levantamento mais recente do instituto —, aqueles que discordam do presidente raramente têm chance de expressar sua opinião. Principalmente dentro das igrejas, eles contam. À BBC News Brasil, eles dizem que, enquanto muitos de seus irmãos de fé apoiam Bolsonaro por medo de enfrentarem episódios futuros de intolerância religiosa no Brasil, a perseguição contra cristãos já existiria no país. Fim do Matérias recomendadas Nas palavras dos entrevistados, ela acontece dentro dos próprios templos, puxada principalmente por líderes religiosos que ameaçam com castigo divino ou punição dentro da própria igreja aqueles que discordam da fusão entre política e religião que tem marcado estas eleições. A BBC News Brasil pediu esclarecimentos a todas as igrejas citadas nesta reportagem: Igreja Quadrangular, Igreja Batista, Assembleia de Deus e Santuário católico de São Miguel Arcanjo. Nenhuma respondeu às solicitações de comentários. Enquanto pastores influentes como André Valadão e Silas Malafaia dizem que igrejas devem ter posição política clara e fazem campanha pela reeleição do atual presidente, a BBC News Brasil recebeu mais de 100 relatos de cristãos, principalmente evangélicos, que narram episódios de pressão ou intimidação dentro dos templos na reta final da eleição. Muitos pediram anonimato, com medo de consequências para si próprios ou suas famílias dentro das igrejas. Outros já sofreram consequências. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Alisson Santos diz ter sido expulso junto à esposa da igreja evangélica que frequentava desde 2019 em Aracaju (SE). Até o início de outubro, ambos trabalhavam como evangelizadores de jovens no templo. Em entrevista à BBC News Brasil, ele diz que o apoio de pastores a Bolsonaro e seus aliados sempre existiu, mas se intensificou no segundo semestre, quando um dos pastores se candidatou a deputado estadual. "A partir daí, em todas as reuniões a gente tinha que orar por esse pré-candidato e fazia reuniões para falar sobre isso", ele conta. "Diziam que Bolsonaro é o único candidato que defende a liberdade religiosa, o único que vai manter igrejas abertas. E que, se Lula for eleito, ele vai fechar as igrejas, queimar as igrejas". Ele conta que viu frequentadores da igreja sendo expostos no altar por discordarem dos candidatos apoiados pela igreja. "Ele (o pastor), antes do culto, procurou pessoas para perguntar em quem elas votariam. Algumas pessoas disseram que votariam num candidato diferente do dele. Na hora do culto ele usou essas pessoas como exemplo do que não fazer", ele diz. "Ele fez isso durante a Palavra, duas semanas antes da eleição." Para o jovem, o tom violento adotado em alguns cultos contradiz o propósito dos templos religiosos. "Teve um culto em que o pastor chegou e falou que se o candidato Lula fosse eleito e fossem queimar as igrejas, ele ia mandar queimar primeiro quem votou nele. Isso não foi fora da igreja, não foi nos corredores, foi na frente da igreja toda", ele diz. Questionado na ocasião sobre sua opinião em relação ao aborto, que hoje condena veementemente, o então deputado respondeu: "Tem que ser uma decisão do casal". Ambas as imagens viralizaram recentemente nas redes sociais e foram usadas por opositores para ilustrar mudanças no discurso religioso de Bolsonaro ao longo das últimas duas décadas. "Foi justamente por esse vídeo que eles marcaram uma reunião da diretoria", conta o jovem. "Ele (o pastor) disse: 'Se vocês que não querem seguir o posicionamento da igreja, procurem outro lugar'. E isso pra mim foi um absurdo. E não foi nem particularmente, foi em frente a toda a diretoria." Os dois deixaram seus cargos e não frequentam mais a igreja desde então. "É muito triste. Minha esposa só chora desde o ocorrido. Ela só chora porque é o lugar que sempre nos acolheu", afirma. "A perseguição contra os cristãos já começou no Brasil. Só que dentro da própria igreja." Marta vive numa capital nordestina. Muito religiosa, ela também diz que se viu obrigada a deixar a igreja que frequentava há décadas por discordar da pressão de pastores por apoio ao presidente. "Sinceramente, eu me senti pressionada. Fiquei muito triste, decepcionada primeiramente. E, sinceramente, não tenho vontade de retornar para o templo mais porque Jesus não é isso. Ele não veio para fazer pressão", diz. "Você passa a ser perseguido dentro do próprio templo pelos irmãos, na fé e pelos próprios pastores. Porque, se você não obedece, se você não segue aquele político que eles escolheram para votar, você não é cristão. A sua fé, ela está sendo colocada à prova." Durante toda a entrevista, Marta cita trechos e ensinamentos da Bíblia. "Não é assim que Jesus nos ensinou, que a gente fosse agressivo, que a gente que se armasse e partisse para cima do nosso adversário. Não é isso que a palavra do Senhor ensina. A Palavra de Deus diz que a gente tem que mostrar o amor, a misericórdia, a bondade", afirma. " Jesus, ele é amor, é bondade. Ele veio para curar, salvar e libertar, e não para colocar medo nas pessoas." Mãe de uma criança pequena e de um adolescente, ela conta que a pressão política e o consequente afastamento da Igreja abalou toda a família. "Isso mexe muito com a família, porque temos uma base religiosa, uma base cristã. Você fala para os seus filhos, você prega para os seus filhos sobre a sua doutrina que você crê. E, de repente, o seu filho pergunta 'Mãe, que Cristo é esse'? 'Que doutrina é essa'? 'Que religião é desse jeito? Sobre pressão, sobre ditadura, sobre não poder escolher?'" Quase 3 mil quilômetros separam Marta de Deloana, uma assistente social de Osasco (SP) que frequentava a Assembleia de Deus há 12 anos. A história, no entanto, se repete. "Sinto que perdi uma referência. De verdade. Sempre acreditei em Deus. Sempre gostei de ficar na igreja. Sempre gostei de participar dos grupos. Era realmente algo que fazia parte da minha vida", ela conta por videoconferência. "E eu sinto que isso se perdeu. Não reconheço mais a Igreja hoje como a que conheci há dez anos. Por mais que a Igreja sempre tenha tido um posicionamento conservador, tenha a questão da doutrina, eu vejo as coisas hoje de forma muito violenta. Se penso de forma diferente, vem uma palavra de condenação. É como se eu pudesse ser punida por um pensamento que seja contrário." A punição, na prática, aconteceu. Tudo começou quando seu marido, que frequentava a igreja desde criança, procurou um presbítero após um culto após se sentir ofendido por algumas de suas falas. "Meu esposo terminou o ensinamento dos adolescentes e os levou para o final da aula para adultos. Esse homem estava finalizando a aula. Ele começou a passar alguns slides, colocando como se fosse o antes e depois dos jovens que entram nas universidades públicas. Era uma espécie de alerta para os pais que estavam ali", ela conta. As imagens, segundo Deolana, mostravam um "antes e depois" de jovens que entram em universidades públicas. "O jovem todo arrumado em um primeiro momento, e depois ele fazendo uso de droga ou se 'tornando homossexual' dentro da universidade e coisas desse tipo. Querendo deixar bem claro que a universidade pública era um ambiente perigoso para os jovens." Eles disseram ao religioso que aquele discurso era inapropriado e que o próprio marido de Deolana estuda em uma universidade pública. "Ele já se alterou bastante, pelo que eu entendi, por ter sido questionado por uma fala. Como se ele já não admitisse ser questionado. E aí chegou o momento de ele falou: 'Estou vendo que você é de esquerda e sinto muito por você'", conta a assistente social. "E ele falou como se fosse um posicionamento que fosse trazer uma condenação para a gente, como se fosse algo absurdo. Em momento algum o meu marido falou dessa questão de política, de esquerda e de direita. Ele estava querendo focar na fala dele em relação a universidade em si, e aí ele misturou vários assuntos." O casal não conseguiu mais ir à Igreja depois do episódio. "A gente se sentiu descartável, né? Ficamos com essa visão de que é um ambiente em que a gente não vai ser bem-vindo por causa da forma que a gente pensa. O que me chateou mais a gente foi essa intolerância. Que o pensamento contrário seja colocado dessa forma, como se fosse pecado ou coisas do tipo", ela diz. "E com isso a gente não retornou mais, nem ninguém procurou a gente. Então, ninguém se importou, essa é a verdade, com a nossa saída." João* e a esposa moram em São Paulo (SP) e, diferente de Alisson, Marta e Deloana, vão continuar frequentando a igreja, apesar da pressão pelo voto em Bolsonaro — em quem o casal não pretende votar. "O nome de Bolsonaro é citado normalmente (nos cultos). Os irmãos, eles se dirigem ao presidente como o candidato correto. É o candidato do bem. E os demais candidatos, todos, independente da ideologia, são os adversários. São candidatos do mal, digamos." Ele conta que, além do voto para presidente, pastores chegaram a indicar nomes e números de candidatos a cargos legislativos no primeiro turno dentro do templo. "Geralmente a gente tem essa parte dos avisos no final dos cultos. Então, o pastor comentou que alguns irmãos tinham perguntado para ele alguma sugestão de candidatos para deputados de senadores (…) Então ele falou que, para quem quisesse, estava sendo montada uma lista de candidatos de deputados de que fosse, que seria disponibilizada para os irmãos que procurassem." Frequentes nos comentários ouvidos pela reportagem, os relatos sobre indicações de votos dentro e fora de templos não vem só de evangélicos. Católica, a paranaense Paula Izidro diz que essa foi a gota d'água. "Eu tinha o costume de participar de uma caminhada com peregrinos da região ao Santuário de São Miguel Arcanjo. E na porta do santuário estavam entregando o santinho de um candidato. Toda aquela coisa da peregrinação de fé acabou para mim ali", ela diz. "Aquilo me deixou indignada, porque eles usaram o santuário de palanque. O padre fala abertamente sobre engajar na eleição, posta foto com Bolsonaro, e isso me deixa muito, muito deprimida. Logo ele que defende tortura, pena de morte, que não se importou com as pessoas na pandemia e tudo mais. Não condiz com o contexto religioso", ela diz. Enquanto muitos dos cristãos ouvidos pela reportagem contam que decidiram se afastar de suas igrejas e buscar outras opções, onde sua posição política seja respeitada, Luiz Fernando, que vive no interior da Bahia e era evangélico desde os 12 anos, tomou decisão mais drástica. "Durante todos os anos que eu estive na Igreja, passamos por eleições presidenciais, por eleições municipais e nunca, até 2018, foi abordada essa questão de 'vote em tal candidato'. Era uma coisa que deixava todo mundo muito à vontade. Você não sabia se o seu irmão da cadeira da frente era a favor do partido A ou do partido B. Não sabia se a pessoa ao seu lado era a favor de partido A ou partido B. Tinha essa liberdade de voto e ninguém era recriminado por isso", ele lembra. "Em 2018, eleição presidencial em que Jair Bolsonaro apareceu como o candidato cristão, que levantava a bandeira da família, da religiosidade, aquela coisa toda, eu percebi que a entonação dos cultos, o direcionamento dos cultos da igreja modificou. O pastor líder, em culto, no púlpito, falou: 'Vamos como cristãos votar em Jair Bolsonaro, pois ele representa a família e ele representa a nós cristãos. Aí, naquele momento eu entendi e falei 'não'. A política entrou na Igreja." "Aí eu simplesmente percebi que tudo o que eu tinha vivido, aquela coisa de paz, de amor ao próximo, de tentar conquistar através do amor, foi tudo por água abaixo, porque eu vi o ódio presente nas pessoas, nos meus amigos que eram da igreja. Eu vi essa coisa de guerra. Então eu falei: 'não, não dá mais, me desiludi com a religião. Eu simplesmente deixei de ir'." A decepção o levou a, pela primeira vez na vida, se declarar "sem religião". "Depois desse governo que se diz cristão, eu não consigo mais me relacionar com Deus intimamente. Na última pesquisa do IBGE, eu já declarei que não tenho fé. (Perguntaram) 'Você é crente, você é católico, qual é a sua religião?' Eu falei: 'Não, não tenho religião'. Então não sei o que eles colocaram. Se agnóstico ou ateu, alguma coisa assim. Mas eu já não me coloquei mais como cristão, não me representa. Isso já não me representa mais." "Eu percebi que para eu voltar a ter um relacionamento com Deus, a Igreja precisa mudar. E eu vejo que a Igreja não quer mudar." *Nome alterado a pedido do entrevistado
2022-10-18
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63285936
brasil
A origem do uso do vermelho pela esquerda que incomoda aliados de Lula
Um esforço recomendado pela senadora Simone Tebet fez com que o PT (Partido dos Trabalhadores) pedisse aos apoiadores que usassem branco em vez do clássico vermelho que representa o partido em ato que ocorreu em 11 de outubro em Belford Roxo (RJ). Para Tebet, é preciso "tirar o vermelho da rua", pois as imagens assustariam eleitores do "interior de SP" e de "Estados no Centro-Oeste, Sul e Norte", conforme noticiado pela coluna da Mônica Bergamo, no jornal "Folha de S.Paulo". A BBC News Brasil questionou o Partido dos Trabalhadores sobre se há uma orientação clara de mudança dentro do partido, mas a assessoria de imprensa não respondeu até a publicação desta reportagem. Adotado pelo PT como a principal cor, o vermelho, em diferentes tons, foi utilizado por partidos comunistas, socialistas, trabalhistas e sociais democratas em uma origem que remonta ao século 19. O uso inicial do vermelho pela esquerda se deu quando a cor passou a estampar a bandeira do Partido Comunista — e por isso ainda é ligada à uma esquerda radical, embora já tenha sido incorporada por partidos socialistas e sociais-democratas. Fim do Matérias recomendadas Em 1789, no episódio que culminou na Revolução Francesa, a assembleia constituinte francesa colocou bandeiras vermelhas nos cruzamentos das ruas para mostrar que as manifestações públicas estavam proibidas. Quebrando a regra, milhares de parisienses se reuniram para exigir a destituição do rei Luís 16, no Campo de Marte em 1791. O então prefeito de Paris, Bailly, ordenou que uma grande bandeira vermelha fosse colocada no alto para reiterar a ordem. Mas uma multidão tomou a praça e a polícia entrou em conflito com os manifestantes, matando mais de 50 pessoas. Em seu livro Le petit livre des couleurs ("Pequeno livro das cores"), o historiador e antropólogo francês Michel Pastoureau afirma que a mesma bandeira vermelha que era usada para impedir que o povo francês se manifestasse, passou desde então a ser o emblema do povo oprimido e da revolução em marcha. Ele diz que isso é uma "surpreendente inversão simbológica". "Temos vários outros episódios históricos, como Primavera do Povos [revolta contra regimes autocráticos em diferentes países europeus] e a Revolução Russa de 1917, onde a bandeira vermelha também foi usada como símbolo de luta", diz o professor de história contemporânea Lincoln Secco, que leciona na Universidade de São Paulo (USP). "Mas com o passar dos anos, os partidos operários e sociais democratas que existem até hoje aderiram à bandeira vermelha." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Secco, que é autor do livro A História do PT, explica que o uso de outras cores na campanha do partido não é exatamente uma novidade. Oficialmente, o PT tem uma bandeira vermelha com uma estrela branca, que às vezes aparece também em amarelo. "A cor do partido foi escolhida pelo grupo ter surgido no campo da esquerda, como resultado de uma confluência de vários grupos socialistas, trabalhistas, comunistas, mas também com setores da igreja… É um partido bastante plural." Parte do eleitorado de Bolsonaro propaga agora a narrativa de que a bandeira do Brasil seria substituída por uma "bandeira vermelha", e que o país se tornaria comunista caso o PT fosse eleito. "Esse é um discurso já bastante antigo, muito mais antigo do que o próprio PT. Durante a ditadura militar, por exemplo, era muito comum falar, pejorativamente, que algumas pessoas eram 'verde e amarelo por fora e vermelho por dentro' — o que significava que eram traidores da pátria. É uma alegoria que tem lá a sua eficácia em determinados grupos", diz o cientista político Cláudio Couto, coordenador do Mestrado Profissional em Gestão e Políticas Públicas da FGV. A ditadura militar passou a usar símbolos nacionais, como a camisa da seleção brasileira de futebol. "Fizeram isso tentando forjar uma unidade nacional que era falsa, porque é claro que todas as pessoas são brasileiras e compõem o mesmo país, mas elas não têm que ter a mesma opinião política", avalia Secco. Em 1989, o ex-presidente Fernando Collor de Mello, durante a primeira eleição presidencial pós-ditadura, seguiu essa tendência, mas usando uma narrativa mais específica: era a bandeira verde e amarela contra a bandeira vermelha do PT. Para contrapor-se à ideia de um governo de esquerda radical, como os adversários tentavam pregar, Secco explica que o PT procurava moderar o tom dos discursos e acrescentar outras cores e simbologias às campanhas, o que vemos acontecer de novo agora. "O partido nunca aboliu o vermelho completamente das campanhas, mas durante algumas eleições, houve a produção de camisetas do Lula sem nenhum tom de vermelho", diz o historiador. Outro exemplo dado pelo professor é a campanha de Luiza Erundina, do PT, para o cargo de prefeita da cidade de São Paulo em 1996. "Dentro do partido, ela estava em uma posição mais moderada, sutilmente mais à direita. Então ela passou a usar um slogan que dizia 'Diga sim', contrapondo a ideia de que o PT seria um partido de grande rejeição. Historicamente, o partido misturou cores e slogans para se aproximar do eleitor de centro." Na avaliação de Cláudio Gonçalves Couto, a orientação de troca de cores nesta altura da disputa, há poucos dias do segundo turno, tem mais relação com o envolvimento de aliados de Lula do que com a intenção de angariar novos votos. "Se formou, ao lado de Lula, uma frente ampla. Acredito que [o uso do branco] seja muito mais uma questão de acenar a eles. Várias lideranças, economistas, Simone Tebet, e o próprio vice, Geraldo Alckmin, estão historicamente fora do espectro de esquerda. As cores da campanha, para os eleitores, é mais um detalhe, mas é representativo para essa frente ampla. Avalio que é nesse caminho que essa mudança tenha peso. " Assim como Couto, Lincoln Secco acredita que a estratégia tenha efeito muito limitado na conquista de novos votos. Para os analistas, eleitores "mais impressionáveis" com a narrativa de que o vermelho representa comunismo ou parte do eleitorado de Tebet, que teve 4,16% dos votos no primeiro turno, podem se agradar com a mudança. "Não existe pesquisa científica que comprove que uma mudança do tom de cor na campanha resultaria em muitos novos votos. No caso da esquerda, ela serve como uma identificação de grupo dos próprios militantes, então não deixará de ser usada, e quem já é antipetista não vai mudar o voto porque mudou a cor", aponta Secco. Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil acreditam que, caso eleito, o PT transforme esse aceno ao centro em uma forma mais moderada de governar. "A figura do Alckmin como vice já é um indicativo disso, e o movimento não fica só na campanha. Uma das razões para isso é que o PT é um partido com pouca representatividade no Congresso Nacional, o que requer que façam alianças com lideranças que hoje chamamos de 'centrão', mas que são historicamente de partidos de direita ou centro-direita", afirma Couto. "Então será um governo de centro, social-democrata, e podemos dizer que em certos pontos, é de se esperar até que seja social-liberal, em termos de políticas públicas." Para Lincoln Secco, há uma grande parcela do espectro político central que está comprometida com a democracia, e embora alguns desaprovem as políticas do PT, essa parcela se "assustou mais" com o governo Bolsonaro. Historicamente, o professor Secco avalia que, embora o PT tivesse um discurso mais próximo à esquerda radical nos primeiros anos de existência e quando chegou ao poder, as políticas foram mais voltadas ao centro, e em alguns casos, até mesmo liberais. "Até o período de 2016, que os historiadores chamam de Nova República, havia um jogo de oposição entre o PT e o PSDB e os aliados de ambos para conquistar cargos, mas na realidade havia muita convergência especialmente no modelo econômico." Como exemplo, ele cita que o Partido dos Trabalhadores não aboliu o tripé de política econômica do governo de Fernando Henrique Cardoso e manteve o governo de responsabilidade fiscal, mas deu mais peso para as políticas sociais. "O PT não é um partido de esquerda radical. Pelo contrário, se tornou cada vez mais moderado exatamente por causa da crise política e para conquistar o espaço onde não coube a extrema direita, que está cada vez mais radicalizada."
2022-10-18
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63260840
brasil
Por que app citado por Bolsonaro não alfabetiza alunos 'em 6 meses'
Durante o mais recente debate presidencial exibido no domingo (16/10) pela Band TV, os candidatos Jair Bolsonaro (PL) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) responderam a perguntas feitas por jornalistas sobre diferentes temas, como educação. Quando os candidatos foram questionados sobre o que fariam para diminuir a defasagem educacional dos quase 10 meses sem aula durante a pandemia — o que atingiu principalmente os estudantes mais pobres — Bolsonaro citou um aplicativo focado em alfabetização como parte da solução encontrada pelo seu governo. "Nós já estamos fazendo. O nosso Ministro da Educação tem um aplicativo que foi aperfeiçoado e já está há um ano em vigor, chama-se GraphoGame. Ou seja, num telefone celular se baixa o programa e a garotada fica ali. Letra A, ela aperta o A e aparece o som de A. Vai para sílabas. C e A: Ca. No passado, no tempo do Lula, a garotada levava três anos para ser alfabetizada. Agora, em nosso governo, leva seis meses." O aplicativo citado por Bolsonaro é o GraphoGame, um app finlandês que foi adaptado para a língua portuguesa por pesquisadores do Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul (InsCer) da PUC-RS para ser utilizado em escolas brasileiras. O jogo começa com exercícios que trabalham a associação entre letras e sons da linguagem. Passando de nível, os exercícios ficam mais difíceis, trabalhando sons de sílabas e de palavras inteiras. Fim do Matérias recomendadas O Ministério da Educação (MEC) recomenda o GraphoGame Brasil para todos os estudantes do 1º e do 2º ano do ensino fundamental e para aqueles com defasagens no aprendizado da leitura. Mas em nota à BBC News Brasil, a PUCRS disse que o GraphoGame não é um app de alfabetização — como sugeriu Bolsonaro — e sim apenas uma ferramenta de apoio ao ensino. "A universidade explica que o aplicativo pode ser uma ferramenta de apoio, mas que sozinho não é capaz de alfabetizar. Este não foi e não é o objetivo da iniciativa e dos pesquisadores em nenhum momento. Para uma criança ser alfabetizada ela precisa de instrução sistemática e consistente, precisa de vivências e sem dúvida alguma do apoio da Escola e especialmente de educadores", afirma a nota da PUCRS. De acordo com a universidade, foram investidos R$ 100,5 mil pelo MEC para a adaptação do jogo feita pelo InsCer. A BBC News Brasil tentou contato com Augusto Buchweitz, o principal pesquisador responsável pela adaptação do aplicativo para o Brasil, que não tem mais vínculo com a PUCRS. Ele disse preferir não se manifestar. Dados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) mostram que, entre 2019 e 2021, o percentual de crianças do 2º ano que não sabem ler e escrever mais que dobrou: passou de 15% para 34%, de acordo com os dados do Saeb Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb). "É importante contextualizar o GraphoGame nesse cenário", diz Maria Alice Junqueira, coordenadora de projetos da ONG Cenpec, que trabalha com educação pública no país. Junqueira rechaça a ideia de que o app seja efetivo para alfabetizar crianças em seis meses. "Se o aplicativo, que começou a rodar 2020, tivesse esse poder, os índices estariam melhores, e não piores", diz Junqueira. Outro ponto levantado pela especialista é que o aplicativo precisa de internet para ser baixado — e depois pode ser usado offline. Mas muitas crianças de famílias mais pobres sequer possuem celular ou computador. "É um problema pensarmos que a solução é uma única ferramenta, como o GraphoGame." Para a especialista do Cenpec, as escolas precisam avaliar quem são os alunos com dificuldade na alfabetização e oferecer reforços com materiais que já existem nas escolas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para a professora da Escola de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em alfabetização Silvia Gasparian Colello, o jogo é uma "prova do quanto o Bolsonaro está mal assessorado na Educação". Segundo ela, por associar a alfabetização a um game, o grande público tem a falsa impressão de modernização do ensino, quando na verdade o governo estaria reproduzindo práticas de ensino já superadas. "O jogo talvez fosse eficiente para alfabetizar papagaios, mas certamente não para ensinar sujeitos pensantes", diz a professora. "É chocante constatar que em pleno século 20 a alfabetização seja vista apenas como correspondência mecânica entre fonemas e grafemas. É um pressuposto que aniquila o que a língua tem de mais precioso — que é a possibilidade de comunicação. Dessa forma, ensinar a língua escrita vem na contramão do direito das crianças se expressarem e interagirem com a sociedade." No jogo de associação mnemônica, em sua análise, o usuário não tem oportunidade de se encantar com a língua ou de formar o hábito da leitura. Isso só acontece se a alfabetização acontece a partir da literatura e do aprendizado com contexto. "Tira a oportunidade, por exemplo, de fazer a criança escrever uma cartinha pro coelho da Páscoa e contar a sua própria história." Colello avalia que as recompensas do jogo, como o ganho de estrelas, pouco servem para a aprendizagem, e considera que o cenário do aplicativo, marcado por montanhas e tiros de canhão nas letras, ficam distantes do dia a dia dos estudantes. No entanto, os autores apontam que "a alfabetização é um empreendimento social e, portanto, o aplicativo idealmente precisa ser usado em conjunto com atividades de leitura ou nos lares para que todo o seu potencial seja realizado". A maioria das evidências coletadas foi de alunos com dificuldade de aprendizagem, como aqueles que têm dislexia. É também o que recomenda o MEC no manual de uso: "Lembrem-se, o GraphoGame funciona melhor quando um adulto interage com a criança, ou quando integrado a atividades de literacia". Em outra parte do documento, o MEC acrescenta: "Estudos mais recentes mostram que o GraphoGame é ainda mais eficaz quando utilizado em conjunto com atividades de sala de aula, com um programa de alfabetização e com um currículo rico em linguagem oral".
2022-10-18
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63294813
brasil
Santa Edwiges: a nobre que se tornou santa porque pagava dívidas de quem não podia
Conta-se que isso tenha ocorrido quando ela já era uma senhora viúva e havia decidido morar em um mosteiro — em Trzebnica, atual Polônia. Habituada a praticar obras de caridade, Edwiges de Andechs (1174-1243) foi visitar um presídio e surpreendeu-se ao saber que boa parte dos detidos ali havia perdido a liberdade pelo mesmo motivo: incapacidade de pagar dívidas. Ela fez disso uma missão. Passou a saldar os calotes em nome dos presidiários e, em alguns casos, negociar o perdão com os credores. Assim, entendia ela, aqueles homens poderiam recomeçar suas vidas, sem deixar desamparadas suas famílias. Ciente de que apenas isso não seria suficiente, Edwiges também ajudava esses ex-prisioneiros a conseguir emprego. Canonizada em 1267 pelo papa Clemente 4º (1190-1268), Santa Edwiges tornou-se a padroeira dos pobres e endividados. "Adquiriu fama como protetora dos endividados porque, quando algumas pessoas estavam nessa situação, ou presos, não podendo pagar os débitos financeiros que haviam contraído, ela saldava as dívidas com seu próprio dinheiro, ou obtinha o perdão para os devedores", ressalta o padre Antônio Lúcio da Silva Lima, autor do livro Santa Edwiges - Novena (Paulus Editora). Ao que tudo indica, esse comportamento de auxiliar financeiramente os pobres, embora intensificado depois dessa visita ao presídio, já era parte de seu dia a dia. De origem nobre, ela se casou aos 12 anos com Henrique 1º, o Barbudo (1165-1238), príncipe da Silésia — hoje parte da Polônia. Isso fez dela uma mulher poderosa. Mas os relatos da época indicam que ela colocava seus bens materiais à disposição de quem mais precisasse. "Santa Edwiges tornou-se conhecida no mundo inteiro como a mãe dos pobres e padroeira dos endividados, pois a ninguém ela negou auxílio e proteção. É invocada como a padroeira dos endividados em razão da benevolência com que tratava os súditos, que não tinham como pagar as obrigações a ela devidas", comenta o escritor e teólogo J. Alves, autor do livro Santa Edwiges — Novena e Biografia (Editora Paulinas). Fim do Matérias recomendadas "Tantas foram as dívidas perdoadas que o capelão, administrador de seus bens, um dia reclamou dizendo que, se continuasse aquela situação, pouco sobraria para seus servidores. Santa Edwiges disse-lhe para não se preocupar, pois para as pessoas consagradas como ele, Deus haveria de prover", conta Alves. "Ela própria acompanhava os acertos de contas dos súditos, determinando que fossem tratados com benevolência todos os que se achavam em desespero, por não conseguir pagar as dívidas." Nascida em Andechs, na Baviera — atualmente, parte da Alemanha —, Edwiges era filha de um duque. "Sua infância e pré-adolescência se deu em ambiente de luxo e riqueza", pontua José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor na Universidade Estadual Vale do Acaraú, no Ceará. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Segundo padre Lima, "desde pequena" ela dava "sinais de seu despego material". Do casamento com o príncipe Henrique 1º, nasceram sete filhos — ou seis, conforme cada biógrafo. "Humilde, inteligente, esposa dedicada e temente a Deus, ela cuidou da formação religiosa dos filhos e do marido", acrescenta Lira. "Conta que ela teve forte influência nas decisões políticas tomadas pelo marido, interferindo na elaboração de leis mais justas para o povo e, junto com ele, construiu igrejas, mosteiros, hospitais, conventos e escolas." Essa postura religiosa e social teria sido praticada pelos nobres enquanto política a partir do oitavo ano do casamento deles. "Edwiges sentiu o chamado de Jesus e, após conversar com o marido, os dois decidiram seguir o Senhor e construir hospitais, mosteiros, escolas e igrejas", diz o padre Lima. J. Alves ressalta que, mesmo sendo "riquíssima e cheia de privilégios", Edwiges "despojou-se de seus bens e viveu como se nada possuísse". "Educada na disciplina monástica, distinguiu-se pelo amor à oração, à leitura da Bíblia e à eucaristia. Submetia-se, em segredo, a rigorosas penitências, mortificando o corpo com frequentes jejuns e cilícios [objetos para incomodar a pele] de crina de cavalo sob as vestes." Quando ela tinha 32 anos, atendendo ao que acreditava ser uma orientação divina, decidiu fazer votos de castidade. "Obteve o respeito do marido", frisa Lira. "O voto teria sido feito diante de um bispo." De acordo com Alves, a decisão foi tomada em comum acordo pelo casal. "Passaram a morar em residências separadas e só se encontravam por ocasião de atos políticos e sociais importantes. Henrique, a exemplo dela, adotou um estilo de vida simples e austero, vestindo-se como monge, despojando-se do ouro. Deixou a barba crescer, à moda dos convertidos, sendo por isso chamado de Henrique, o Barbudo", comenta ele. "Em toda a sua vida, Edwiges praticou a caridade. Quando ficou viúva, em 1238, foi morar no mosteiro de Trzebnica, acatando os votos da vida religiosa. Dedicando-se a Deus, à oração e aos mais necessitados, trilhando a estrada que a levou ao paraíso e a constituiu padroeira dos pobres, da família e dos endividados", diz Lira. "[No mosteiro], continuou a servir os carentes e enfermos", recorda Lima. "Uma vida dedicada à caridade. Ela tinha o dom da profecia e [praticava] milagres em enfermos. Era conhecida por ajudar os mais pobre se carentes, reconhecida por quitar dívidas de pessoas que recebiam sua assistência." A casa religiosa, mantida por monjas da ordem cisterciense, havia sido fundada graças ao empenho dela mesma junto ao marido. Segundo consta o texto do Martirológio Romano, na sinopse biográfica que justifica sua canonização, na ocasião a abadessa era uma de suas filhas, chamada Gertrudes. Alves conta que o mosteiro, o primeiro feminino da região, foi desde o princípio transformado por Edwiges em um lugar "de caridade, de esmola e de proteção aos pobres". "Ela não apenas sustentava as monjas, mas ali abrigava numerosos religiosos, doentes, viúvas e crianças desamparadas", afirma o teólogo. A devoção a Santa Edwiges foi trazida ao Brasil pela colonização portuguesa. "Quando o Brasil foi 'descoberto', ela tinha pouco mais de 230 anos de canonizada. A divulgação dos santos católicos era muito forte naquela época e Portugal era extremamente católico, logo a devoção deve ter vindo com os primeiros colonizadores e se popularizado por conta do testemunho de vida dela e da proteção aos endividados", analisa Lira. Aqui, ela se tornou uma das mais famosas santas do catolicismo. Lira acredita que isso se deu devido "ao forte apelo" por conta de sua "proteção aos endividados". Alves observa que a devoção a ela, dentre os católicos brasileiros, cresce "em todas as classes sociais". Como ela é celebrada em 16 de outubro, é comum que sempre no dia 16 de cada mês, "os devotos depositam a seus pés", ou seja, aos pés das imagens alusivas a ela no interior de igrejas, "pedidos e agradecimentos pelas graças alcançadas". "Encontram nela o carinho e a proteção da mãe que, no desespero, acolhe o filho", comenta o teólogo. "São numerosos os testemunhos de pessoas que, na aflição de não conseguir pagar as próprias dívidas, a ela recorreram e, prontamente, foram atendidos", acredita Alves. "Infelizmente, em um país em que o número dos endividados só tende a aumentar a cada dia, é natural que os devotos recorram àquela que passou a vida inteira ajudando os pobres e visitando os prisioneiros que não tinham como pagar suas dívidas." Padre Lima destaca que, em "tempos difíceis na economia", a santa "continua sendo invocada com muita fé pelos devotos". "Ela que, sendo de família nobre, fez-se pobre para assistir aos necessitados, não deixa de ser uma referência para tantas pessoas que suplicam sua proteção e ajuda", destaca ele. "Basta sairmos de nossas casas, sobretudo nas grandes cidades, e enxergarmos um cenário de muita miséria: tropeçamos em pessoas que vivem nas ruas, nas praças, debaixo dos viadutos, em tendas… Elas não têm com quem contar, a não ser suplicar aos céus, por intercessão de Santa Edwiges, para que surja uma 'luz no fim do túnel' para terem de volta a sua dignidade de filhos e filhas de Deus resgatada", afirma Lima. O cenário de pobreza favorece esse tipo de devoção, sobretudo quando o poder público não cumpre o necessário para dar condições dignas de vida aos mais pobres. "Os nossos políticos, ainda mais agora em tempo de eleição, falam bonito e prometem o impossível. Na verdade, os despossuídos de vida e dignidade continuam povoando as ruas por não terem as condições mínimas que a Constituição prescreve e lhes garante", diz ele. "Quando não se pode contar com os seus governantes e nem com o poder público, recorre-se aos céus. E, especificamente, a Santa Edwiges." Na opinião dos especialistas, a mensagem que a vida de Santa Edwiges deixa para o mundo contemporâneo é a de que todos podem fazer o bem. E, assim, ajudar a transformar o mundo. "Ela nos ensina que devemos ter um olhar compassivo e misericordioso para com todas as pessoas, sobretudo aquelas que perderam tudo, também sua dignidade como ser humano, e ajudá-las concretamente", pontua Lima. "Apenas comover-se com a realidade de miséria, pobreza e endividamento que assolam o nosso Brasil não vai resolver a questão. São necessárias políticas concretas para ajudar essa massa de anônimos e invisíveis da nossa sociedade." "Santa Edwiges nos ensina, com a própria vida, a passarmos das boas intenções e bons propósitos a atitudes concretas", acrescenta o padre. "Ela, sendo nobre, não desprezou os pobres e necessitados. Servia-se dos seus bens materiais e dinheiro para aliviar o sofrimento das pessoas que estavam sobrevivendo à margem da vida. Ela nos pede para deixarmos de lado os nossos palavrórios vazios e inúteis e partirmos para ação concreta." Para o professor Lira, a vida dessa santa é a prova de que "ser da nobreza e rica não impede uma pessoa de praticar a caridade, desenvolver o amor a Deus e a ele confiar sua existência auxiliando àquelas que mais necessitam material e espiritualmente". "A mensagem de Santa Edwiges vai além das preocupações financeiras, do endividamento monetário que, durante algum tempo, podem nos tirar o sono e nos fazer entrar em desespero", argumenta Alves. "Sua vida nos ensina que a dívida maior a ser resgata em nossa vida é a do amor a Deus e aos nossos irmãos e irmãs. Mostra que cada um de nós é devedor do amor e da misericórdia de Deus. Todos temos uma dívida impagável de amor para com Jesus que, por amor, deu sua vida por nós e pelo próximo. Temos também uma imensa dívida de amor para com o próximo, a quem podemos amar e por ele ser amados."
2022-10-15
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63264547
brasil
Região Sul lidera denúncias de assédio eleitoral no país, mostra MPT
A região Sul do Brasil lidera as denúncias de assédio eleitoral — quando empregadores ameaçam ou prometem benefícios para que os funcionários votem ou deixem de votar em determinado candidato —, com 144 registros, segundo dados do Ministério Público do Trabalho (MPT). O Paraná aparece em primeiro lugar nessa lista com 50 registros até o início da noite desta sexta-feira (14/10), seguido por Santa Catarina (48) e Rio Grande do Sul (46). Em todo o país já foram feitas 324 denúncias de assédio eleitoral até o momento. De acordo com o MPT, os registros da prática ilegal têm aumentado desde o início do segundo turno. Em todo o pleito de 2018, segundo o MPT, foram registrados 212 casos de assédio eleitoral em 98 empresas em todo o país. Neste ano, conforme o órgão, os registros feitos até o momento envolvem cerca de 300 empresas. Procuradores do MPT acreditam que, a pouco mais de duas semanas do fim do pleito, as denúncias devem subir ainda mais. Fim do Matérias recomendadas Entre os casos noticiados recentemente pela imprensa estão os de uma fabricante de máquinas e implementos agrícolas e uma prestadora de serviços de manutenção em máquinas da indústria de transformação do plástico, ambas no interior do Rio Grande do Sul. As empresas, cujos donos defendem a reeleição do presidente Jair Bolsonaro (PL), enviaram cartas aos seus fornecedores nas quais informaram possíveis cortes nos orçamentos e nas atividades a partir de 2023 caso o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vença. Essas empresas foram alvos do MPT do Rio Grande do Sul, que investigou os casos e ajuizou ações civis públicas contra elas na Justiça do Trabalho. "Tivemos um aumento significativo de denúncias, principalmente desde a semana passada, após o primeiro turno. Não que isso não existisse antes, porque tivemos casos em eleições passadas. Mas isso praticamente dobrou ou triplicou nas últimas semanas", diz o procurador-chefe do MPT do Rio Grande do Sul, Rafael Foresti Pego. O aumento dessas denúncias em todo o país chama a atenção de autoridades e causa preocupação. Presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o ministro Alexandre de Moraes convocou uma reunião com representantes do Ministério Público Eleitoral e do MPT para debater sobre um combate mais efetivo a esse tipo de crime. "Lamentavelmente, no século 21, retornamos a uma prática criminosa que é o assédio eleitoral", declarou Moraes, na quinta-feira (13/10). "Não é possível que ainda se pretenda coagir o empregado em relação ao seu voto", acrescentou o ministro, que classificou a prática como "nefasta". Nas redes sociais, circulam vídeos de empresários de diversas regiões do Brasil dizendo que seus funcionários deveriam votar em Bolsonaro. Em muitos desses registros, eles afirmam que as empresas devem enfrentar problemas econômicos em caso de vitória do candidato petista. O MPT afirma que todos os vídeos que foram encaminhados para o órgão ou ganharam notoriedade nas redes são alvos de investigações. O assédio eleitoral se trata de um caso de constrangimento ou humilhação a um funcionário em seu ambiente de trabalho. "É uma forma de manipular o voto no ambiente de trabalho. É uma intimidação, uma ameaça no ambiente de trabalho para que o empregado vote em determinado candidato. Isso não pode ocorrer. Essa violência no trabalho precisa ser combatida", declara o procurador-geral do Trabalho do MPT José de Lima Ramos Pereira. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Uma fala ou uma mensagem que cause constrangimento ao trabalhador por seu posicionamento político é um caso de assédio eleitoral, explica o procurador. Isso pode ocorrer por meio de declarações feitas pessoalmente ao empregado ou por meio de mensagens. "Dentro da relação de trabalho há uma subordinação. Quando o empregador faz isso com falas de convencimento com oferta de dinheiro, pode até configurar como crime eleitoral de compra de voto", explica Adriane Reis de Araújo, procuradora regional do Trabalho. "Isso também pode ocorrer fora do ambiente de trabalho, mas desde que vinculado ao trabalho, como em via pública por meio de convocação do empregador ou de seus representantes", explica.Adriane, que acompanha as denúncias em todo o país por ser coordenadora nacional da Coordenadoria Nacional de Promoção da Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho (Coordigualdade) do MPT. As principais ameaças, segundo os procuradores, são as de desemprego. "Dizem que se determinado candidato não for eleito pode haver redução de pessoal ou até de fechamento da empresa. Há também ameaça de dispensar determinados trabalhadores que apoiam candidatos oponentes, o que é uma clara discriminação política", diz Adriane. A reportagem apurou que há casos de ameaças de cortes de benefícios dados aos trabalhadores, como o de cestas básicas, ou até mesmo de corte do 13° salário. Os procuradores afirmam que não comentam sobre casos específicos e não detalham sobre a quais candidatos se referem as denúncias que têm recebido. A segunda região com mais denúncias até o momento é o Sudeste (91), com Minas Gerais na primeira posição com 53 denúncias. Em seguida aparecem Campinas e região (15), São Paulo e Rio de Janeiro (ambas com 8) e Espírito Santo (7). Depois aparece o Nordeste, com 51 registros até o momento: Piauí (9), Alagoas e Pernambuco (8), Sergipe e Rio Grande do Norte (6), Ceará (5), Maranhão (4), Paraíba (3) e Bahia (2) No Centro-Oeste foram 20 registros: Mato Grosso (9), Distrito Federal (7), Mato Grosso do Sul (3) e Goiás (1). Já na região Norte foram 18 até o momento: Rondônia (7), Pará (5), Tocantins (4), Acre (1) e Amazonas (1). Não houve registros, até o momento, no Amapá e em Roraima. Os procuradores ouvidos pela BBC News Brasil afirmam desconhecer o real motivo para que a região Sul lidere esse tipo de denúncia. Um dos motivos para que as denúncias tenham aumentado de modo geral neste ano, avaliam os procuradores, é o intenso esclarecimento sobre o assédio eleitoral por meio de campanhas de divulgação e até mesmo alguns Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) assinados por empresários que fizeram esse tipo de pressão e precisaram se retratar em vídeos nas redes sociais. "Em parte, esse número (de 2022) ocorre em razão da conscientização da ilegalidade dessa prática em 2018, quando havia casos de procedimento padrão entre várias empresas com materiais em apoio a determinados candidatos", diz a procuradora Adriane Reis. "É importante conscientizar as pessoas de que o voto é secreto e é um direito fundamental do cidadão. Cada eleitor tem o direito de tomar decisões com base simplesmente em suas convicções, sem ameaças", declara o procurador Rafael Foresti.
2022-10-14
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63265922
brasil
Dia do Professor: menos da metade dos brasileiros creem que docentes são respeitados
A maioria dos brasileiros, 74%, acreditam que ser professor é tão ou mais difícil do que ser médico, engenheiro ou advogado — mas apenas 25% da população considera que os docentes são tão valorizados quanto aqueles profissionais. Este descompasso entre um enorme reconhecimento pela população da importância do professor e a percepção de que eles são pouco valorizados em suas comunidades foi revelado por uma pesquisa realizada pelo IPEC e pelo Instituto Península e divulgado na véspera do Dia do Professor, celebrado neste sábado, 15 de outubro. A partir de uma amostra de entrevistados com características semelhantes à população brasileira, a pesquisa estimou que nada menos de 98% dos brasileiros acreditam que bons professores são capazes de transformar a vida de uma pessoa e 86% que esses profissionais estão sempre agindo no melhor interesse dos estudantes. Mas, para a maioria dos entrevistados, 53%, os docentes não têm carinho e respeito dos colegas, alunos e famílias no ambiente escolar. Para 45% dos entrevistados, os professores são sim respeitados e cuidados no ambiente escolar. Segundo Heloisa Morel, diretora executiva do Instituto Península, o objetivo da pesquisa foi quantificar como os professores são vistos pela sociedade brasileira, algo do qual pouco se sabia. E, para ela, alguns dos resulatdos foram surpreendentes. Fim do Matérias recomendadas "Foi uma grata surpresa saber o quanto as famílias e a sociedade de fato reconhecem a importância do professor e o quanto elas têm clareza sobre a complexidade dessa profissão", afirmou Morel à BBC News Brasil por telefone. "Levando em consideração alguns estudos que nós fizemos durante a pandemia, temos a percepção de que, quando a escola entrou para dentro da casa das famílias (com aulas remotas, por conta do isolamento social), isso deixou muito evidente, quase palpável para cada um dos brasileiros a real complexidade do que é ser professor." Para a diretora do instituto, formada em engenharia química e com uma carreira anterior na área de negócios, a mesma sociedade que entende a importância do professor considera que as condições para o trabalho dele não são favoráveis. "O sistema educacional e as escolas não oferecem todas as melhores condições de trabalho para que o professor possa exercer o ofício dele da melhor maneira. Então não é uma questão da sociedade não enxergar o professor. É que se você olha para as condições de trabalho do professor, para o desenvolvimento profissional e o reconhecimento dele, você vê que tem algumas peças faltando nesse tabuleiro", diz Morel. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Quando você pergunta para os professores o que significa a valorização profissional, eles falam do reconhecimento das famílias, eles falam de salário, claro, mas eles também falam de formação continuada, eles falam do ambiente escolar, eles falam de jornada de trabalho", acrescenta, enumerando diferentes fatores que influenciam o desenvolvimento profissional e o reconhecimento dos professores. Para Morel, a percepção majoritária de que os professores não são cuidados e respeitados por colegas, alunos e famílias não é um reflexo apenas de casos de agressões — verbais ou físicas — contra docentes. "Os casos extremos, com toda razão, recebem muita divulgação, mas eles não representam o dia-a-dia da escola. A minha percepção é que a gente ainda tem um universo importante de crianças, estudantes e pais que respeitam profundamente os professores." Uma questão prática que é parte do cotidiano de boa parte dos professores brasileiros e pode explicar alguma "peça faltando" na relação entre colegas é o acúmulo de trabalho em diferentes escolas — com professores trabalhando em duas, três ou até mais escolas. "Esse profissional tem menos tempo de planejamento das aulas, menos tempo de engajamento na comunidade escolar e de troca com colegas. Muitas vezes, o professor se sente muito solitário." O professor é o foco do Instituto Península, fundado em 2010 pela família de Abilio Diniz, que se propõe apoiar iniciativas que lidem com o desenvolvimento emocional, cognitivo, relacional e social desses profissionais. A pesquisa foi realizada pelo IPEC no início de junho e contou com 2 mil participantes, entrevistados pessoalmente.
2022-10-14
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63265581
brasil
'Maior caso de corrupção do planeta'? Qual a gravidade do Orçamento Secreto
O debate sobre o chamado Orçamento Secreto voltou a esquentar depois que viralizou na quinta-feira (06/10) um vídeo sobre o tema da senadora Simone Tebet (MDB-MS), candidata derrotada à Presidência da República. Na gravação, Tebet destaca a falta de transparência desse instrumento e diz que "podemos estar diante do maior esquema de corrupção do planeta Terra". A fala é um trecho de uma entrevista concedida ao podcast Flow ainda durante a campanha, em agosto. Após ficar em terceiro lugar no primeiro turno, com 4,16% dos votos válidos, ela declarou apoio ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que disputa o segundo turno contra o presidente Jair Bolsonaro (PL). No vídeo, Tebet lembra que o chamado Orçamento Secreto deve contar com R$ 19,4 bilhões em 2023, segundo a proposta de lei orçamentária encaminhada pelo presidente ao Congresso. Ela ressalta que esses recursos são enviados por parlamentares para gastos pelo Brasil sem transparência e com baixa capacidade de fiscalização pelos órgãos de controle. A senadora cita ainda casos com fortes indícios de desvios públicos revelados pela revista Piauí em junho. Essa reportagem mostrou como municípios do Maranhão inflaram artificialmente os números de atendimento pelo SUS para receber uma fatia maior das emendas do relator (nome oficial do chamado Orçamento Secreto), que passaram a contar com bilhões de reais a partir de 2020. Fim do Matérias recomendadas Após uma investigação do Ministério Público Federal para apurar as suspeitas reveladas na reportagem, a Polícia Federal realizou nesta sexta-feira (14/10) uma operação contra o esquema, com 16 mandados de busca e apreensão em cinco cidades do Maranhão e duas do Piauí. Duas pessoas foram presas temporariamente, acusadas de serem os responsáveis pela inserção de dados falsos nos sistemas do SUS. Os recursos do chamado Orçamento Secreto são chamados oficialmente de emendas do relator porque é o parlamentar que relata a lei orçamentária que controla formalmente a distribuição desses recursos no ano seguinte. O deputado Hugo Leal, do PSD do Rio de Janeiro, relatou em 2021 a lei que define o orçamento deste ano e tem a caneta para gerir os R$ 16,5 bilhões reservados para essas despesas em 2022. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A destinação dos recursos, porém, é definida a partir da negociação com o Palácio do Planalto e outras lideranças do Congresso, em especial os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Uma crítica recorrente a esse processo é que não há transparência sobre qual parlamentar solicitou quais recursos para qual finalidade e quais pedidos foram atendidos ou não. "O relator, ele vai sozinho comandar R$ 19 bi (em 2023). Pro (Poder) Executivo, (o pedido do relator para liberar) esse dinheiro vai, mas ele vai sem rubrica, sem autoria (do parlamentar que definiu o uso do dinheiro). Ele é secreto porque eu não sei (quem está por trás da decisão do gasto)", disse Tebet ao podcast. "Podemos estar diante do maior esquema de corrupção do planeta Terra. Exemplo: numa cidade do interiorzinho do Maranhão, (a população) fez mais exame de HIV que toda a cidade de São Paulo, de 12 milhões de habitantes. Tem uma cidade que diz que extraiu num único ano 540.000 dentes, (uma cidade) pequenininha. Significa ter tirado 14 dentes de cada boca, de cada cidadão da cidade, inclusive do bebê recém-nascido que não tem dentes", continuou, ao citar os casos revelados pela revista Piauí. Na avaliação da senadora, esses números não fazem sentido e podem significar uso de "nota fria" para desviar recursos que não foram de fato utilizados nesses procedimentos de saúde. "Pode ter dinheiro saído de Brasília, chegado lá, ido pro bolso de alguém. Não tem sentido as menores cidadezinhas do Maranhão receberem os maiores recursos desse orçamento. E aí você vai puxar a fila (da autoria dos gastos), porque ele é secreto, não sei de onde saiu, quem foi o autor, e eu não consigo controlar", conclui na gravação que viralizou. O chamado "Orçamento Secreto" começou a funcionar a partir do Orçamento federal de 2020, após o Congresso aprovar em 2019 a Lei Orçamentária do ano seguinte prevendo, pela primeira vez, R$ 30 bilhões a serem gastos por meio das emendas de relator. Inicialmente, o presidente Jair Bolsonaro vetou essa novidade no Orçamento. Depois, porém, ele aceitou negociar com o Congresso e cerca de metade dos R$ 30 bilhões foram mantidos para as emendas do relator de 2020. A partir de então, o chamado Orçamento Secreto passou a ser um instrumento importante para construir uma base de apoio ao governo no Parlamento e afastar o risco de um processo de impeachment, avalia a cientista política Beatriz Rey, pesquisadora visitante da Universidade Johns Hopkins, em Washington, estudiosa do funcionamento do Poder Legislativo no Brasil e nos Estados Unidos. Os possíveis desvios revelados pela revista Piauí não são os únicos indícios de corrupção envolvendo o chamado Orçamento Secreto. A novidade não tem nem três anos de duração e já houve uma série de denúncias reveladas pela imprensa brasileira, em especial pelo jornal O Estado de S. Paulo, primeiro veículo a destrinchar o funcionamento das emendas de relator. Em reportagem de maio de 2021, por exemplo, o jornal revelou que ao menos R$ 271,8 milhões foram usados para aquisição de tratores, retroescavadeiras e equipamentos agrícolas, em geral por valores bem acima dos previstos na tabela de referência para compras do governo, num indício de compras superfaturadas. Na avaliação da Transparência Internacional Brasil, organização focada no combate à corrupção, não é possível dizer se o Orçamento Secreto é o maior esquema de desvios de recursos do planeta. Bruno Brandão, diretor executivo da organização, afirma que não há parâmetros para cravar isso justamente porque nem toda corrupção praticada é descoberta, de modo que não há números oficiais que permitam comparar diferentes esquemas pelo mundo. Ainda assim, ele diz que é possível afirmar que o chamado Orçamento Secreto é "extremamente grave". Para a Transparência Internacional, trata-se do "maior processo de institucionalização da corrupção que se tem registro no país". O termo "institucionalização da corrupção" é usado, explica Brandão, porque, no caso das emendas do relator, está sendo usado um mecanismo institucional, que existe dentro da lei orçamentária, para dar um "verniz legal" a uma "prática corrupta". "O que a gente chama de institucionalização da corrupção é uma forma de dar um verniz legal, institucional, a uma prática absolutamente corrupta na sua essência, que é a apropriação do erário público para interesses privados, sejam eles políticos, de reprodução de poder, ou pecuniários mesmo, interesses materiais", disse à BBC News Brasil. "E, nesse caso, com imensa escala", destacou ainda. Desde 2020, já são cerca de R$ 45 bilhões empenhados pelo governo para gastos das emendas de relator, segundo levantamento da revista Piauí. O valor empenhado é aquele que já foi de fato reservado para o pagamento. A grande dimensão desses valores tem levado críticos do atual governo a comparar o Orçamento Secreto com escândalos de corrupção dos governos no PT. No caso do chamado Mensalão, o Ministério Público concluiu em 2012 que foram desviados ao menos R$ 101 milhões, por meio de fraudes envolvendo contratos de publicidade de órgãos públicos. Já no caso do chamado Petrolão, R$ 6 bilhões desviados da Petrobras foram devolvidos após acordos de colaboração, leniência e repatriações. As dezenas de bilhões do chamado Orçamento Secreto têm sido usadas pelos parlamentares para gastos e investimentos em seus redutos eleitorais, como obras, compras de equipamentos e realização de procedimentos médicos. Não se sabe quanto desse total pode estar sendo desviado em esquemas de corrupção. Na avaliação de Bruno Brandão, da Transparência Internacional Brasil, a falta de controle sobre esses recursos abre espaço para que uma grande parcela esteja sendo roubada. "Esse esquema permite isto (desvios de recursos) numa escala talvez não conhecida até hoje e numa forma de pulverização da corrupção, porque é um recurso do orçamento federal jorrando para as localidades que têm menor capacidade institucional de controle. E ainda, além disso, desviando dos mecanismos regulares de transparência e controle do ciclo ordinário orçamentário", afirma. Para Brandão, porém, o problema não está apenas no desvio de recursos públicos. Na sua avaliação, há outros pontos graves envolvendo o Orçamento Secreto. Um deles é o fato de, num Orçamento já escasso, uma parcela grande de dinheiro estar sendo retirada de outras despesas importantes para bancar gastos de interesse dos parlamentares. Um exemplo disso, cita o especialista, é o corte previsto de 59% nos recursos para parcela gratuita da Farmácia Popular, que inclui medicamentos do tratamento da asma, hipertensão e diabetes. Segundo reportagem do jornal Estado de S Paulo, enquanto a proposta de orçamento para 2023 prevê aumento dos recursos destinados às emendas de relator, a proposta do governo Bolsonaro para a Farmácia popular é de R$ 842 milhões, o que representa um corte de R$ 1,2 bilhão no valor previsto para 2022 (R$ 2,04 bilhões). Na sua visão, esse tipo de troca — recursos retirados de programas de Estado para engrossarem as emendas — reduz a "eficiência do gasto público". O problema, diz, é agravado pela falta de critério na hora de distribuir os recursos pelo país, já que uma cidade que talvez tenha mais carência de investimentos pode estar perdendo recursos para outras que são reduto eleitorais de deputados e senadores aliados do governo. O diretor da Transparência Internacional Brasil cita ainda outro elemento preocupante envolvendo as emendas do relator: a distribuição desses recursos afeta o equilíbrio na disputa eleitoral, enfraquecendo a própria democracia brasileira. "Talvez esse seja o aspecto mais profundo (do Orçamento Secreto): perverter o processo democrático. Quem se apropriou desse recurso público utilizou para ganhar favores políticos e apoio nessas bases e assim ganhar eleições e se manter no poder. E são justamente as forças mais corruptas que tiveram esse benefício. O resultado agora já mostrou que deu certo. (Esses parlamentares) se mantiveram no poder, o que há de mais corrupto, mais podre na nossa classe política", critica. Levantamento da revista Piauí publicado na sexta-feira (07/10) mostrou que "os principais partidos do Centrão (PL, Republicanos, PTB, União Brasil, PSC, PP e Patriota) contaram com mais de R$ 6,2 bilhões de recursos das emendas de relator - uma bolada que ajudou a garantir a reeleição de pelo menos 140 parlamentares". "Esse valor é superior aos R$ 5,7 bilhões de recursos do fundo eleitoral distribuído entre todos os partidos. Só no PL, de Bolsonaro, 60 deputados reeleitos puderam destinar às suas bases R$ 1,6 bilhão vindos das emendas de relator", diz ainda a reportagem. O levantamento mostra ainda a discrepância da distribuição de recursos entre parlamentares de diferentes partidos. "Cada deputado reeleito desse Centrão expandido teve, em média, R$ 42,8 milhões de orçamento secreto. O montante é 470% acima da média recebida pelos deputados reeleitos pela coligação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT, PCdoB, PV, Psol, Rede, PSB, Avante, Solidariedade, Pros) - R$ 7,5 milhões cada", afirma a reportagem da Piauí. Os valores analisados pela revista, porém, incluem apenas uma parte do chamado Orçamento Secreto, já que não há transparência total sobre esses recursos. "A base de dados analisada pela piauí só leva em conta R$ 19 bilhões, dentro de um valor global de R$ 45 bilhões já empenhados (reservados para gasto), restando ainda outros R$ 8 bilhões a empenhar até o fim do ano. Esses R$ 19 bilhões são valores somados entre indicações que se tornaram públicas depois que o Supremo Tribunal Federal determinou transparência e outras planilhas internas do governo obtidas pelo repórter ao longo dos últimos dois anos", diz a reportagem, assinada por Breno Pires. Após o Orçamento Secreto ser questionado no Supremo Tribunal Federal, a Corte determinou que o Congresso desse total transparência às emendas do relator. Em resposta, a Comissão Mista de Orçamento criou um portal em que os pedidos passaram a ser registrados. Mas, para especialistas em transparência, a ferramenta ainda é insuficiente. Um dos problemas apontados é que é possível inserir como autor do pedido não apenas nomes de parlamentares, mas também pessoas, entidades e órgãos de fora do Congresso. A organização Contas Abertas fez um levantamento dos dados disponíveis e encontrou uma série de inconsistências. "Dentre os R$ 12,3 bilhões das indicações dos 'autores', cerca de R$ 4 bilhões, ou seja um terço das indicações, são atribuídas a 'usuários externos'. Dentre os usuários externos, existe um classificado simplesmente como 'assinante', que indicou R$ 23,6 milhões em emendas de relator", exemplificou o economista Gil Castello Branco, diretor da organização Contas Abertas, em resposta por escrito à BBC News Brasil em setembro. Outro problema, acrescentou Castello Branco na ocasião, é que esses dados continuam fora dos sistemas que permitem fiscalizar melhor os gastos do governo federal, como Siga Brasil e Portal da Transparência. "Os dados mostram que os recursos bilionários são distribuídos sem qualquer critério técnico ou parâmetro socioeconômico, o que distorce as políticas públicas e amplia as desigualdades regionais e municipais", ressaltou. Bolsonaro tem buscado se distanciar do tema, insistindo que o chamado Orçamento Secreto é uma iniciativa do Parlamento. "Pelo amor de Deus, para com isso. O orçamento secreto é uma decisão do Legislativo que eu vetei, e depois derrubaram o veto", disse, ao ser questionado por uma jornalista nesta segunda-feira (02/10). Na sequência, ao ser interpelado sobre ter recuado do veto, respondeu com irritação e deixou o local da entrevista: "Quem recuou do veto? Ah, eu desvetei? Desconheço 'desvetar'". Já o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), costuma defender as emendas de relator dizendo que o parlamentar conhece melhor a realidade dos municípios e, por isso, estaria mais preparado para decidir onde aplicar os recursos federais do que as equipes dos ministérios — argumento que é refutado por estudiosos da administração, como a professora da FGV e procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo Élida Graziane. Na semana passada, ele voltou a usar esse argumento e sustentou também que o novo instrumento orçamentário terminou com o "toma lá dá cá" entre Planalto e Congresso. "Emendas de relator são lícitas, constitucionais e democráticas. São, além de tudo, uma posição do Parlamento contra as práticas que levaram a crimes do mensalão, captação de apoio político por compra de votos no Congresso. Isso que não pode voltar", disse Lira em entrevista à Rádio Bandeirantes. "Usar isso como bandeira de campanha é um erro, vai prejudicar muitas pessoas que tiveram melhorias em suas vidas. É melhor o parlamentar fazer as indicações porque sabe mais das necessidades do povo, do que um ministro que não teve um voto e não conhece o Brasil. Essa prática libertou o Congresso do toma lá dá cá", afirmou também. Já o relator do Orçamento, deputado Hugo Leal (PSD-RJ), refutou que as emendas do relator sejam um "Orçamento Secreto", em entrevista do final de setembro ao portal de notícias O São Gonçalo, veículo da baixada fluminense. "E sobre a famosa polêmica das emendas do relator que passou a ser chamada fora do Congresso de 'Orçamento Secreto', eu digo que não existe absolutamente nada de secreto. Se tivesse o 'orçamento secreto' o Supremo não deixaria fazer e o TCU também não. O que existe é a discussão de critérios de distribuição, mas não existe o orçamento 'secreto'. Ele passa por toda a análise pública dos três poderes, e obviamente da Câmara e do Senado", argumentou. A BBC News Brasil entrou em contato com o Palácio do Planalto, os presidentes da Câmara e do Senado e o relator Hugo Leal, mas eles não quiseram se manifestar para essa reportagem.
2022-10-14
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63208754
brasil
Candidato que não vê elo entre educação e economia não ajuda Brasil, diz diretor da OCDE
A atual corrida presidencial tem sido dominada pela economia e por temas como religião e pauta de costumes. A educação, sempre mencionada como vital para o desenvolvimento do país, tem ficado como coadjuvante no debate, justamente depois de um difícil período sob os fortes efeitos da pandemia de coronavírus e da inconstância no cargo de ministro da área. Para o estatístico alemão Andreas Schleicher, diretor de educação e competências na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e criador do Pisa, avaliação internacional de aprendizagem que se tornou referência, é impossível pensar o futuro econômico do país sem conceber um plano para o ensino e a formação de habilidades para os próximos anos. Schleicher afirma que há pela frente o desafio de modificar o sistema educacional diante das grandes mudanças tecnológicas e das novas demandas do mercado de trabalho. E isso, afirma ele, é especialmente importante para as pessoas das camadas mais pobres. "Se você vem de uma família desfavorecida, só há uma única chance em sua vida, e é uma educação de qualidade. Se você perde esse trem no Brasil, não há uma segunda chance." Na última edição do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa, na sigla em inglês), realizada em 2018, os dados trouxeram cenários de preocupação para o país: dois terços dos brasileiros de 15 anos sabem menos que o básico em matemática e os alunos estagnaram em leitura e compreensão de textos. Fim do Matérias recomendadas Veja abaixo trechos da entrevista com o diretor da OCDE: BBC News Brasil - A educação é mencionada aqui e ali nos debates e na corrida eleitoral, mas é difícil dizer que é a protagonista da atual campanha presidencial. Isso é um sinal de que o Brasil não dá a devida importância à área ou é compreensível que não tenha tanto espaço quanto a economia, por exemplo, dado que o país está em crise? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Andreas Schleicher - A educação de hoje será a economia de amanhã. E se você tem desigualdades na educação, você vai ter desigualdades na sociedade. E com isso, desemprego. Dessa forma, qualquer candidato presidencial que não enxerga a ligação entre as duas coisas ou não acredita nisso, não está fazendo um favor ao futuro do país. Sim, existem muitos problemas urgentes, mas se você ignorar os desafios de amanhã a situação será ainda mais difícil. Na década de 2000, o Brasil avançou muito na educação. A educação era prioridade. Lembro que em 2000, depois de saírem os resultados do Pisa, surgiram muitas iniciativas no Brasil. O país tem todos os recursos e os meios para construir um sistema educacional melhor. BBC News Brasil - Como você avalia esses quatro anos de governo Bolsonaro na educação? Schleicher - É difícil dizer porque os dados que temos do Pisa só vão até 2018. Então não temos uma boa avaliação do que aconteceu nos últimos anos, que também foram muito difíceis por causa da pandemia. O Brasil enfrentou um dos mais longos períodos de escolas fechadas no mundo. Acho que foi uma das coisas mais devastadoras que aconteceram. Na minha opinião foi desnecessariamente longo. Não no sentido de que se considerasse que as crianças fossem menos vulneráveis ao coronavírus, mas elas foram punidas pelas respostas das políticas públicas à pandemia. Acho que o governo colocou foco na alfabetização, algo muito importante porque linguagem é essencial para acessar, gerenciar, integrar, avaliar, transmitir informações, ou seja, para viver na sociedade de hoje. É bom ter o foco nisso, mas no geral, não tenho certeza que a educação tem sido uma grande prioridade no Brasil. BBC News Brasil - Quais são os principais desafios para o país considerando os efeitos da pandemia e o fato de que tivemos cinco ministros da Educação — quatro efetivamente — em menos de quatro anos de governo Bolsonaro? Schleicher - Olha, há diversos "Brasis". Se você olha para o quadro geral, talvez falte um pouco de dinamismo. Mas os dados mostram que alguns Estados brasileiros observaram um enorme progresso em sua educação. Se o Brasil soubesse mais sobre o que funciona na educação de algumas partes do Brasil, vocês teriam um sistema educacional diferente. Há muitos sinais promissores, mas várias coisas precisam acontecer. Uma delas é que, sem uma visão clara do que representa uma educação de qualidade, você não terá um bom sistema educacional. Quando eu examino os dados sobre Brasil que vêm dos resultados do Pisa, a conclusão é que os estudantes brasileiros aprendem muitas coisas, muito conteúdo, mas não são muito bons em extrapolar o que adquiriram e assim aplicar seus conhecimentos em ambientes reais. O problema é que, no mundo moderno, você não é mais recompensado apenas pelo que você sabe. O Google já sabe de tudo. O mundo recompensa pelo que você consegue fazer com o que sabe. Você consegue realmente pensar fora da caixa? Pensar com sua própria cabeça? Você consegue imaginar, construir, criar, resolver tensões e dilemas? E isso só vai acontecer com um ambiente de ensino muito diferente, onde os professores não são apenas instrutores, mas se tornam bons coaches, mentores, facilitadores e, às vezes, bons assistentes sociais. Para isso é preciso valorizar a força de trabalho educacional. Além de melhorar os salários, é preciso tornar o ensino intelectualmente mais atraente, prestigiar o ensino como profissão e construir uma cultura de ensino mais colaborativa. E acho que é importante alinhar melhor os recursos com as necessidades que o Brasil tem como país. O país gasta um dinheiro considerável com educação e os alunos passam longas horas na escola. Mas você sabe que esses recursos nem sempre são usados de forma mais eficaz. Se você vem de uma família rica no Brasil, você sempre encontrará portas abertas, mesmo que não tenha um grande desempenho escolar. Mas se você vem de uma família desfavorecida, só há uma única chance em sua vida, e é uma educação de qualidade. Se você perde esse trem, no Brasil não há uma segunda chance. BBC News Brasil - No próximo ano a expectativa é que o governo encontre um quadro fiscal e econômico com dificuldades. Como é possível trabalhar com um orçamento mais limitado? Schleicher - Dinheiro é importante, mas não é tudo. Além da questão de saber como usar os recursos eu também acredito que é necessário repensar como eles são distribuídos entre os níveis de ensino. O Brasil gasta cinco vezes mais para um graduado universitário do que para alguém na escola primária. Ou seja, para aqueles que sobrevivem até o fim do sistema escolar, você dá tudo. E para aqueles que não conseguem chegar lá sobra pouco de apoio. E, bom, se há recursos limitados, você tem que quebrar a cabeça sobre como gastá-los melhor. Eu gostaria que o Brasil investisse mais em educação, mas não acho que mais dinheiro seja a resposta. Eu realmente acho que a resposta é reconfigurar espaço, tempo, pessoas, tecnologia, relacionamentos na educação. Não apenas para melhorar, mas para fazer de uma forma realmente diferente. BBC News Brasil - E por que o senhor acha que é mais importante privilegiar a educação básica do que a superior? Schleicher - É uma questão difícil. Minha resposta seria apenas que a sociedade deveria investir nas crianças mais novas por que é dessa forma que você lança as bases para todo o resto. Se você perder o trem nos primeiros anos de educação, não há chance de você recuperar esse atraso mais tarde para a universidade. E eu não acho que o governo precisa pagar por tudo isso. Na verdade, acho que é possível fazer empréstimos aos alunos dependendo da renda e, mais tarde, quando você começa a ganhar dinheiro, paga isso de volta. Acho que existem bons modelos para que nossa sociedade possa realmente compartilhar os custos e benefícios da educação universitária de forma mais justa. Só não tenho certeza se tudo precisa estar nos ombros do governo. Mas quando se trata dos primeiros anos da educação primária, a construção de uma base sólida, eu acho que é extremamente importante. E é claramente aí que o Brasil está subinvestido. Os gastos atuais são muito concentrados em uma fase posterior do ensino. BBC News Brasil - O Brasil voltou a conviver com o problema da fome. E a escola representa muitas vezes a oportunidade de fazer uma ou duas refeições por dia para algumas crianças, ou seja essa é a principal razão para estar lá. Como isso deve ser considerado quando se pensa em educação no Brasil? Schleicher - Devemos olhar para as escolas como instituições sociais, não apenas como uma fábrica de diplomas. Devemos olhar para as necessidades das crianças: as cognitivas, sociais, físicas e emocionais. Saber lidar com a raiva que, por exemplo, uma criança está sentindo. Então, é preciso encarar as escolas mais como centros comunitários que realmente dão aos jovens um lar onde eles possam crescer fisicamente, intelectualmente, emocionalmente, principalmente em bairros desfavorecidos. É por isso que acho importante reforçar nos professores a ideia de alguém que tem alguém que tenha um interesse genuíno em se perguntar: quem são meus alunos? Quem eles querem se tornar? Como posso acompanhá-los em sua jornada ao invés de apenas ensinar o que está na cartilha? Então eu acho que esse interesse dos professores pelos alunos, esse entendimento de que todo aluno pode aprender, que eles aprendem de forma diferente, e que eu preciso encontrar é o futuro do ensino. A maior ameaça à educação não é apenas sua ineficiência, é a perda de relevância. Muitos jovens hoje pensam que a educação não diz respeito a eles, à vida e ao futuro deles. E isso é muito, muito perigoso. BBC News Brasil - Qual país em desenvolvimento, sem tantos recursos, que está indo numa direção correta em sua visão? Schleicher - O Vietnã. Dez anos atrás o Vietnã poderia alcançar o Brasil só nos sonhos. Hoje os resultados são o que vemos na Europa, um forte conjunto de resultados de aprendizagem. E eles não pensaram que a ideia era superar cada estágio de desenvolvimento. Foi de transformar radicalmente nosso ambiente de aprendizado. Em vez de avaliar a formação de professores, eles mostram se estão aptos a ensinar e aí sim vão para a sala de aula. Eles procuraram a pessoa mais inteligente da aldeia e ela se tornava a professora daquela comunidade. Vamos ter os melhores professores do país e ainda fazê-los professores ainda melhores Os vietnamitas foram muito criativos, muito imaginativos, usaram recursos de sua comunidade e fizeram da educação uma prioridade. Eu acho que isso também é muito, muito importante. Nenhum país terá um sistema educacional de primeira classe se isso não estiver no topo da sua agenda. BBC News Brasil - Quais desafios mais característicos do século 21 devem ser encarados? Schleicher - Não devemos pensar apenas no futuro da educação que mais provavelmente vai se materializar ou o futuro que desejamos. Na verdade, deveríamos ser muito melhores em imaginar futuros diferentes para a educação. E sob as dificuldades atuais, há uma diferença entre reformar a educação e transformá-la. Reformar é mudar os instrumentos, os meios, as ferramentas para melhorar o quadro. Transformar é mudar os objetivos. É sobre reconfigurar espaço, tempo, pessoas, relacionamentos de novas maneiras? Nesse momento de grandes dificuldades, temos que pensar no futuro e em um mundo mais bem integrado entre aprendizagem e o mundo do trabalho. Nós costumávamos aprender a trabalhar e, de repente, aprender se tornou o trabalho. Basicamente, devemos pensar, como podemos tornar o aprendizado interessante, relevante? É dar aos jovens do Brasil oportunidades de trabalhar em projetos de verdade com pessoas de verdade. No Brasil educação vocacional, pensar o desenvolvimento dos estudantes de forma individual, é quase sempre o último recurso. Precisa ser mais a primeira escolha para ajudar as pessoas a terem um acesso melhor ao seu próprio futuro. Então não dá para simplesmente dizer "ah, vamos consertar o nosso sistema atual e aí sim começamos a pensar no século 21". Vamos ter que usar esse espaço, esse momento, essa crise para reimaginar a educação. A mudança real geralmente nasce em uma crise profunda. BBC News Brasil - E há sempre a expectativa após a conclusão dos estudos de acessar o mercado de trabalho, uma área também que está em profunda transformação atualmente. Schleicher - Nós devemos nos tornar melhores para antecipar quais são os conhecimentos, as habilidades, as atitudes e os valores que importarão para o futuro. Na matemática, aprender fórmulas e equações pode ser menos importante hoje, mas ser capaz de pensar como um matemático e entender o conceito de probabilidade ou risco são elementos que ajudarão a moldar o futuro. A mesmo coisa na ciência: você pode ensinar física e química e conhecimento é muito importante, mas você não ensina os alunos a pensar como um cientista. A fazer experimentos e a distinguir questões quais questões podem ser exploradas cientificamente e questões que não são. É assim que nós criamos o futuro. Não conseguimos saber ao certo quais são os empregos do futuro, mas temos que desenvolver as capacidades humanas de como é possível moldar o futuro. E isso tem a ver com a sua capacidade de transformar seu pensamento, de resolver problemas complexos, gerenciar tensões e resolver dilemas. O mundo não é mais preto e branco, e é possível desenvolver essas novas técnicas não apenas em sala de aula, mas em ambientes de aprendizado autênticos, baseados em problemas, baseados em projeto e de cocriação entre alunos e professores. BBC News Brasil - Numa era de uma crise de saúde mental gigantesca, que atinge especialmente os jovens, como escola e professores podem ajudar? Schleicher - Os professores precisam ter tempo suficiente para trabalhar com os alunos como indivíduos. Para serem bons coaches, bons mentores, para passar tempo fora da sala de aula com os alunos. A gente tem uma sociedade que foi organizada e dividida em professores, assistentes sociais, psicólogos, mas precisamos criar um conjunto mais amplo de responsabilidades e habilidades para lidar com questões relacionadas ao bem-estar mental. Se você como estudante não sente que é escutado, não sente significado no que você faz, é aí que a crise domina. Os professores precisam colocar esse tipo de coisa em seu radar e que a responsabilidade não é apenas de ensinar algo, mas de entender quem são seus alunos e encontrar tempo e espaço para trabalhar com eles. Há mais espaço para a escola cuidar da saúde mental e do bem-estar dos alunos. As escolas costumam dizer que não podemos resolver todos os problemas da sociedade, mas eu acho que a escola foi inventada para resolver os problemas da sociedade.
2022-10-14
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63251734
brasil
Os trunfos de Bolsonaro para tentar virada inédita e vencer no 2º turno, segundo cientista político
Para o cientista político Creomar de Souza, fundador da consultoria política Dharma, que analisa risco político, o segundo turno das eleições presidenciais entre Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro (PL), que acontecerá no dia 30 de outubro, pode ter margem apertada, se tornando uma disputa "decidida no detalhe". Com o país fortemente dividido em suas preferências políticas e uma diferença pequena no resultado do primeiro turno (de pouco mais de cinco pontos percentuais), a menor margem histórica entre dois candidatos à presidência que foram para 2º turno, o cenário não parece imutável na percepção do cientista, deixando espaço para uma possível virada inédita em eleições brasileiras. "Não se pode desprezar a capacidade do bolsonarismo de comparecer no dia 30 de outubro e nem o interesse do presidente da República usar a máquina pública para fazer campanha. Também não se pode ignorar o interesse de forças políticas que hoje apoiam o presidente da República de criarem 'bondades' [anúncios de políticas públicas voltadas à conquista de eleitores] diversas nessas próximas semanas para que eles tenham resultados favoráveis a eles", disse de Souza, que também é professor na Fundação Dom Cabral Entre as "bondades" citadas pelo analista, está a estratégia adotada pelo governo de antecipar o calendário de pagamentos do Auxílio Brasil em outubro. Os repasses estavam previstos entre o dia 18 e 31, conforme o Número de Identificação Social (NIS) dos beneficiários. Agora os pagamentos serão feitos a partir do dia 11 e terminarão no dia 25, cinco dias antes do segundo turno das eleições. Bolsonaro também prometeu pagar o 13º salário a mulheres chefes de família e anunciou um programa de renegociação de dívidas da Caixa. O banco também reduziu a taxa de juros a micro e pequenas empresas, o que, na visão do especialista, visa captar mais votos. Fim do Matérias recomendadas A diferença de votos entre Bolsonaro e Lula foi de 6,2 milhões no primeiro turno. Para conseguir o que seria uma virada inédita no segundo turno, Bolsonaro precisa aumentar sua votação — atraindo votos de eleitores que optaram por outros candidatos (como Ciro Gomes e Simone Tebet), dos que não votaram no primeiro turno e também de eleitores que votaram em Lula. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Uma das possíveis estratégias de Bolsonaro no segundo turno é atrair votos dos eleitores que optaram por Simone Tebet. Apesar de Tebet ter declarado apoio a Lula, o cientista político considera que parte da base de eleitores da candidata derrotada do MDB é de centro-direita — e que eles rejeitam Lula e o PT, podendo possivelmente votar em Bolsonaro no segundo turno. Para Creomar de Souza, a pergunta decisiva do segundo turno é: "o Bolsonaro candidato é maior ou menor que o número de eleitores de direita no Brasil?" "Com os dados do primeiro turno, ficou claro que Bolsonaro é menor do que a direita [ou seja, não é o favorito de todos dentro desse espectro político], já que tivemos a terceira colocada como uma candidata de centro-direita, a Simone Tebet, que levou 4,16% dos votos." Mas Bolsonaro é, segundo o analista, o ponto de coesão não só de boa parte da direita, como também alcança parte dos eleitores do centro, que também rejeitam Lula. "Creio que para conquistar o voto de eleitores que não optaram por Bolsonaro no primeiro turno, sua militância vai tentar estabelecer com o máximo de força possível uma ideia de que o bolsonarismo é a última barreira de contenção a um retorno do petismo, e isso pode fazer com que eleitores conservadores que optaram por outros candidatos anteriormente engajem na campanha e deem votos a Bolsonaro nessa corrida final." "As pesquisas mostram que eleitores de Ciro e Tebet, que são votos em disputa entre Lula e Bolsonaro, ainda estão bastante divididos entre as duas campanhas. Para conquistá-los, a tentativa foca na desconstrução do Lula em relação a valores morais. Isso trafega por um discurso que já estamos vendo em uso pelos bolsonaristas - o de que é uma disputa daqueles que tem religião contra aqueles que não tem religião." Como fatores que beneficiam Lula, de Souza avalia que o candidato do PT conseguiu romper uma barreira ideológica ao conseguir apoios de figuras consideradas da centro-direita. "Nomes como Simone Tebet e Fernando Henrique Cardoso, que não votaram no PT, isso é uma novidade no quadro político. Já os apoios que o Bolsonaro recebeu até agora são mais do mesmo. Não há ninguém que entrou no palanque que possamos dizer 'esse eu não esperava'." Mas o desafio para Lula, na análise de Creomar de Souza, é aumentar a taxa de transferência dos votos que Tebet recebeu para o candidato do PT — já que parte desse eleitorado tende a votar nulo ou a até a migrar sua escolha para Bolsonaro. "A resposta para isso é quanto ela vai se engajar na campanha, já que ela é a boa novidade dessa campanha eleitoral, mostrando-se articulada, corajosa e disposta a discutir temas importantes. Vai depender de o quão grande será seu poder de convencimento com o seu eleitor", afirma. Entre os pontos que contribuem para deixar o resultado 'em aberto' até este momento da disputa, está, na opinião de Creomar de Souza, a divulgação intensa de conteúdos que pretender manchar a imagem de um ou de outro candidato. "Segundos turnos são historicamente momentos de decisões acirradas, mas este, especificamente, está bastante intenso, o que gera uma tendência de que a qualidade do debate caia", aponta o analista. Discussões que colocam em pauta a religião, como o discurso feito por Bolsonaro em loja maçônica, assim como uma declaração antiga do presidente sobre o aborto ser uma decisão do casal, foram muito compartilhadas pelo eleitorado da esquerda, o que na análise do cientista, é uma novidade no 'jogo político'. "Durante a eleição de 2018, a ala bolsonarista se sentiu muito confortável com a ideia de que só ela podia jogar esse tipo de jogo, em adotar essa estratégia que também é muito usada pelo MBL (Movimento Brasil Livre) [movimento liberal de direita]. Mas nessa eleição a esquerda também passou a compartilhar esse tipo de conteúdo, embora ainda o faça menos." Para ele, é possível que os conteúdos contribuam para prejudicar a imagem principalmente de Bolsonaro, já que grande parte do eleitorado do presidente tem perfil ou admira uma postura conversadora. "Essa questão da maçonaria, por exemplo, causou desconforto a ponto de Bolsonaro vir a público dizer 'Sou presidente de todos.' Há alguns que são bolsonaristas ou petistas 'raiz', que não mudam de lado por nada. Agora, em um segundo turno tão apertado, cada voto conta, e para isso, há duas missões. Uma é fazer com que aquele que não votaria em você, vote, e a outra, é fazer com que mesmo que determinado eleitor não te escolha, ele também se desiluda com oponente -- e para isso os mensagens como essas, que prejudicam a imagem dos candidatos, podem criar um risco." O analista aponta que os institutos de pesquisa acertaram, dentro da margem de erro, sobre a quantidade de votos que Lula poderia receber, mas tiveram dificuldade em medir o desempenho de Bolsonaro, que causou surpresa ao alcançar um resultado um tanto quanto mais expressivo do que as pesquisas indicavam.
2022-10-13
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63205895
brasil
Por que mãe de Jesus entrou para a História com mais de mil nomes
São muitos nomes, muitas "nossas senhoras". Mas elas todas se referem a uma mesma pessoa, uma mesma santa católica? A resposta é sim. O que significa que Nossa Senhora Aparecida, cuja data se comemora em 12 de outubro é uma representação diferente da mesma santa que também pode ser chamada de Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora de Guadalupe, Nossa Senhora de Lourdes e tantas outras. Trata-se de Maria, uma jovem judia nascida em Nazaré há pouco mais de 2 mil anos, quando essas terras ao sul de Israel eram parte do Império Romano. Para o cristianismo, ela tem papel fundamental: tornou-se a mãe de Jesus Cristo. Chamada de virgem por dois dos evangelistas, Mateus e Lucas, acredita-se que ela tinha cerca de 15 anos quando ficou grávida — pela doutrina cristã, por obra do Espírito Santo, ou seja, sem ter tido relações sexuais com homem algum. Na época, Maria já estava prometida em casamento a José, um carpinteiro da mesma cidade, mais velho, já na casa dos 30 anos. Fato é que desta gravidez nasceria Jesus, o pilar fundador do cristianismo. Mas por que a tradição católica não rende a essa mulher apenas o título de Santa Maria, e são tantas as representações dela pelo mundo? Fim do Matérias recomendadas "Os nomes dedicados a Nossa Senhora dependem muito da forma como ela apareceu. Normalmente são dados pelo nome do lugar onde ela apareceu ou pelas condições em que se deram o aparecimento", esclarece o padre Arnaldo Rodrigues, assessor da Arquidiocese do Rio de Janeiro. Conforme explica a cientista da religião Wilma Steagall De Tommaso, coordenadora do grupo de pesquisa Arte Sacra Contemporânea - Religião e História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e membro do Conselho da Academia Marial de Aparecida, essas nomenclaturas acabam variando a "cada povo, cada região, cada cultura", por conta de "títulos que correspondem aos eventos decorrentes de inúmeras situações". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ela lembra que muitos desses títulos são os chamados dogmáticos. É de onde vem, por exemplo, a nomenclatura de Nossa Senhora da Imaculada Conceição — bula assinada pelo papa Pio IX "declara Maria imune da mancha do pecado original", ressalta a pesquisadora — ou mesmo a ideia de chamá-la de Virgem Maria, já que "o Concílio de Latrão, em 649, preconiza como verdade a virgindade perpétua", da mãe de Cristo. "Há ainda as denominações decorrentes dos lugares onde houve uma manifestação que deu origem à devoção local, muitas vezes ampliada a outros povos e locais, como Aparecida, Guadalupe, Lourdes, Fátima, Loreto, Montserrat, etc.", complementa ela. "Nomes diferentes são atribuídos à Virgem Maria pois estão ligados ao lugar onde ela apareceu", acrescenta a vaticanista Mirticeli Medeiros, pesquisadora de história do catolicismo na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. "Não existe algo que determine que ela precise, necessariamente, 'ser batizada' com o nome do território da visão, mas como inicialmente as aparições são uma manifestação de religiosidade popular, antes mesmo de passar por toda a análise canônica de praxe, é o povo que acaba difundindo, num primeiro momento, esses títulos." "Os tantos títulos que lhe dão todos têm uma razão. É Nossa Senhora de Fátima, porque apareceu lá. É Nossa Senhora do Bom-Parto porque auxilia espiritualmente as parturientes. É Nossa Senhora do Bom-Conselho porque tem sempre uma orientação a dar aos seus filhos", afirma o pesquisador José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor da Universidade Estadual Vale do Aracaú, do Ceará. "E todos esses títulos são de uma só mãe, porque é mãe de toda a humanidade e em todos os lugares, os povos a chamam e representam conforme seus costumes, suas tradições. É claro que para uma veneração pública é necessária a aprovação da Igreja." A devoção a Nossa Senhora, contudo, remonta ao princípio do cristianismo. Por princípio, a ideia é que ela funcione como um canal direto ao próprio Cristo — dentro da premissa que pedido de mãe ninguém nega. Uma passagem importante do próprio evangelho reforça essa ideia. Trata-se da narração do milagre das bodas de Caná, que aparece exclusivamente no texto de João, no qual Jesus faria aquele que é considerado seu primeiro milagre. Na festa de casamento, onde ele estava junto a sua mãe como convidado, os anfitriões notam que havia acabado a bebida. Maria chama Jesus de lado e explica o drama. Ele, então, transforma água em vinho e garante a continuação da celebração. "Seria um escândalo para o casal se acabasse a bebida antes de a festa terminar. Quando Maria pede a Jesus que tome uma providência, fica importante o papel dela como intercessora", analisa padre Rodrigues. A devoção mariana também se baseia em outro momento dos textos bíblicos. Quando Jesus está agonizando na cruz, segundo o relato, ele teria dito algumas palavras para sua mãe e também para seu apóstolo João. Ali, teria utilizado o seguidor como representante toda a humanidade, considerando Maria a mãe dele — e, por extensão, a mãe de todos. "Nesta ação, João representa toda a humanidade. Maria se tornou a mãe nossa. A nova Eva, uma Eva livre do pecado, como a Igreja nos ensina. Assim, Maria Santíssima cuida da humanidade como mãe e mãe zelosa", analisa o hagiólogo Lira. Segundo estudos do padre Valdivino Guimarães, mariologista e ex-prefeito de Igreja do Santuário Nacional de Aparecida, os registros mais antigos dessa crença no poder da mãe de Cristo remontam ao século 2. "Indícios arqueológicos demonstram a veneração dos primeiros cristãos. Nas catacumbas de Priscila, se vê pinturas marianas do segundo século, em local onde os primeiros cristãos se reuniam", afirma ele. "Nas catacumbas, encontramos o afresco considerado, até agora, a mais antiga imagem da Virgem Maria com o Menino Jesus", comenta De Tommaso. "Esse afresco deixa evidente que os primeiros cristãos entendiam que a vinda de Jesus fora prenunciada nos livros sagrados do povo hebreu. E Maria, a mulher que disse o sim e que tece em seu ventre o corpo do Salvador. Há um ícone muito antigo conhecido como Maria, a tecelã." A mais remota das aparições remontam ao ano 40 e seria um episódio de bilocação, na verdade, pois Maria ainda era viva. Segundo a tradição cristã, ela teria aparecido ao apóstolo Tiago na atual cidade de Zaragoza, hoje Espanha, onde ele estava pregando. Fato é que há registros da construção de uma pequena capela ali, desde os primórdios do cristianismo. Outro relato sempre citado por pesquisadores é o de Nossa Senhora das Neves, uma aparição de agosto de 352, em Roma. Foi por conta desse episódio que foi erguida a Basílica de Santa Maria Maior. "Maria é venerada desde os primórdios do cristianismo. Em muitos escritos, e inclusive na própria iconografia primitiva, ela recebe um lugar de destaque. A mais antiga antífona mariana que se tem notícia é do século 2, que é chamada, em latim, de Sub tuum presidium, ou Sob tua proteção. O Concílio de Éfeso, em 431 d.C, analisa e aprova a tese teológica de que Maria também era mãe de Deus, entre outras atribuições que ocorreram mais à frente", pontua Medeiros. "O tema de Maria está presente em todos os períodos da história do cristianismo. Há uma tradição que aponta que a primeira aparição de Maria teria acontecido na Espanha, em 40 d.C, cujo vidente teria sido São Tiago, apóstolo de Jesus, considerado o evangelizador do território", prossegue a especialista. "O título adotado foi o de Nossa Senhora do Pilar, já que, segundo o relato, Maria teria mostrado ao apóstolo uma coluna, pedindo que ele construísse um santuário naquele lugar." Ao longo dos séculos, contudo, esses relatos passariam a ser constantes. De acordo com padre Rodrigues, estima-se que hoje sejam cerca de 1,1 mil nomes pelos quais a santa é conhecida. "Bom, falando do ponto de vista histórico, as aparições acontecem em períodos muito particulares", diz Medeiros. "Não cabe a nós, enquanto historiadores, julgarmos se elas são verídicas ou não, mas o fato está que muitas acontecem em meio a um determinado contexto político-social. É o caso de Fátima, cuja mensagem é muito interessante, e condiz com a postura da que a Igreja vai adotar, frente ao comunismo, nos anos posteriores. Temos o caso de Aparecida, por exemplo, cuja imagem é achada em meio ao debate em torno da abolição da escravatura. Temos o caso de Guadalupe, onde a virgem Maria, com traços indígenas, é um símbolo da luta contra a desigualdade. E por aí vai." Mas nem sempre a Igreja aprova essas manifestações. "Nem todas as aparições que ocorrem hoje foram oficialmente reconhecidas pelo catolicismo. Há um protocolo a ser seguido. Sem contar que algumas são reconhecidas totalmente e diante de outras, ainda em fase de análise, foi permitida somente a liberdade de culto", lembra ela. "O que a suposta Virgem Maria diz, no caso, precisa condizer totalmente com os princípios da Igreja Católica e até a idoneidade moral e psicológica dos videntes é analisada." Autora do livro 21 Nossas Senhoras que inspiram o Brasil, a jornalista Bell Kranz conta que a devoção mariana foi trazida ao Brasil já pelas esquadras de Pedro Álvares Cabral — em um dos barcos foi trazida uma imagem da santa. "[A tradição] chegou essencialmente pelos portugueses, pelos colonizadores", explica. "O Tomé de Sousa [primeiro governador-geral do Brasil] chegou à Bahia já com uma imagem da santa na bagagem… Nossa Senhora da Conceição! E logo erigiu uma capelinha em Salvador, que hoje é a grande catedral Conceição da Praia [Basílica Nossa Senhora da Conceição da Praia]." "Eu diria que o Brasil foi escolhido por Nossa Senhora, não é fanatismo dizer isso", comenta Lira. Para ele, há uma "predileção especial de Nossa Senhora para com esta terra". "Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhora das Candeias (a mesma da Candelária e da Purificação), Nossa Senhora Aparecida (que é a mesma Conceição), penso que são as mais importantes para o Brasil pela veneração que o povo lhes atribui", acrescenta o hagiólogo. "É claro que cada Estado brasileiro tem sua devoção. Por exemplo, na Bahia há uma forte devoção à Nossa Senhora da Boa-Morte. Em Minas Gerais, Nossa Senhora da Piedade que é a mesma Nossa Senhora das Dores e por aí vai. No Pará, em Belém, temos a linda manifestação à Nossa Senhora de Nazaré que anualmente leva milhões ao Círio de Nazaré. Aqui no Ceará é interessantíssima a devoção a Nossa Senhora das Dores, em Juazeiro do Norte, por exemplo. E qual a razão? Não dá para explicar concretamente. É algo meio que filial mesmo. Amor de filho à sua mãe e uma mãe que é mãe de todas as mães, pais e filhos." Kranz atenta para o fato de que, dada a religiosidade católica inerente à própria construção da nação brasileira, "desde a colonização, Nossa Senhora está presente em todos os momentos de nossa história". E a ligação brasileira com a santa é umbilical. Isto porque, como bem lembra a jornalista, em 1646 o então rei português dom João 4º"consagrou todo o reino, incluindo aí as colônias, a Nossa Senhora". "Aí, 217 anos depois do descobrimento do Brasil, ela apareceu lá para os pescadores [Nossa Senhora Aparecida]", acrescenta Kranz. Maria se tornou "Nossa Senhora", assim chamada, somente no fim do período medieval. Mas, historicamente, a Igreja já a reconhecia como "Mãe de Deus" muito antes — mais precisamente a partir do século 5, depois do Concílio de Éfeso, em 431. "[É quando] Maria recebe o título de Thotòkos, a Mãe de Deus, dogma que define explicitamente a maternidade divina de Maria. Daí em diante, ela passa a ocupar, por exemplo, o posto principal, o conteúdo da imagem do presépio se amplia e praticamente esse ícone resume a história da salvação", esclarece De Tommaso. De acordo com o mariologista Guimarães, Maria "ganha destaque sociológico, cultural e religioso" no período medieval. É quando ela adquire "caráter de poder", tornando-se "aquela que destrói o mal". Assume características fortes, "ganha rosto de rainha". Assim, passa a ser invocada como "guerreira", "a mulher que combate o mal e, com poder militar, destrói as heresias". "Maria passa da dimensão cultural para a política", compara ele. "No período feudal, diante da opressão, Maria se torna a padroeira para os que nela buscam auxílio, e em troca de proteção, o fiel a louva com oração e atos de caridade." A santa passa a ser invocada "como a mãe que protege diante da ira de Deus, por algum pecado cometido, não só de forma individual mas também comunitária". "Com o surgimento das ordens mendicantes, Maria se aproxima das pessoas, ela é tirada do trono de realeza, onde fora colocada pela teologia monástica, e se faz irmã, pobre e vizinha das pessoas", diz Guimarães. Ao fim do período medieval, Maria já era um ícone consolidado dentro do catolicismo, tema constante das pregações e protagonista de tradições como medalhinhas, procissões, novenas e outras manifestações.
2022-10-12
https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-58875081
brasil
Por que a maçonaria inspira tantas teorias da conspiração
Uma hora é um livro novo, outra hora uma declaração política. Teorias e conspirações envolvendo a maçonaria, uma sociedade que sempre teve sua aura de mistério, povoam desde ficções best-sellers como O Símbolo Perdido, de Dan Brown, até as campanhas eleitorais brasileiras. Mas o que é a maçonaria, afinal? Com cerca de 170 mil membros no Brasil, trata-se de uma sociedade outrora secreta, de caráter filosófico e filantrópico. Seus integrantes defendem os princípios da liberdade, da democracia, da igualdade e da fraternidade, além de serem entusiastas do aperfeiçoamento intelectual. Calcula-se que haja 3,6 milhões de maçons no mundo. O grupo, então, nasceu assim: como um maneira de garantir a hegemonia do conhecimento e, ao mesmo tempo, possibilitar um intercâmbio de informações entre essa confraria de construtores. Aos poucos, outros temas foram introduzidos nas conversas. O que eram apenas convescotes laborais, portanto, foram ganhando importância em termos de debate. Como sociedade filosófica e filantrópica, a maçonaria foi fundada em 24 de junho de 1717, na Inglaterra. Foi ideia de dois pastores protestantes, James Anderson e J. T. Desaguliers, alinhados com os princípios do livre pensamento que nortearam o movimento conhecido como iluminismo. Fim do Matérias recomendadas Historicamente, a sociedade só aceita homens. De acordo com eles, é uma questão de tradição: como a maçonaria teve origem nas corporações de ofício dos pedreiros medievais - e eles eram estritamente masculinos -, a regra foi mantida. O poder veio nos Estados Unidos. Ali, os maçons tiveram participação importante na Independência americana e, não à toa, dos 55 signatários da Declaração de Independência, nove vinham da maçonaria. Dos 39 que aprovaram a Constituição, 13 eram maçons. Benjamin Franklin era maçom. George Washington, o primeiro presidente americano, também. Na virada do século 18 para o século 19, a maçonaria era um 'clube' que reunia as mentes mais influentes e antenadas do planeta. Os maçons também influenciaram a Revolução Francesa - conta-se que a Marselhesa, hino da França, foi composta na loja maçônica de Marselha. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na América do Sul, não foi diferente. Conforme estudos do pesquisador inglês Andrew Prescott, autor de A História da Maçonaria da Marca, a sociedade participou dos processos de independência de todos os países sul-americanos. Na lista dos ilustres maçons libertadores, estão o venezuelano Simon Bolívar, o argentino José de San Martín e o chileno Bernardo O'Higgins. Além, é claro, de D. Pedro 1º. "A maçonaria influenciou o processo de independência e, depois do Sete de Setembro, reuniões em lojas maçônicas pediam ajuda aos irmãos para que D. Pedro fosse reconhecido como imperador constitucional do Brasil", afirma o historiador Paulo Rezzutti, autor da biografia D. Pedro - A História Não Contada. A maçonaria brasileira nomeou Pedro 1º grão-mestre da sociedade. E ele assumiu a alcunha de Guatimozin - nome dado pelos cronistas espanhóis ao último imperador asteca. Não foi só a Independência. A República também veio por meio de um maçom, marechal Deodoro da Fonseca. O terreno fértil para conspirações tem dois motivos: o fato de a maçonaria ser uma sociedade exclusiva, ou seja, um clube onde só entram convidados e cujas reuniões são a portas fechadas; e por causa do alto número de celebridades da História que já fizeram parte da sociedade. Dessa junção de fatores veio também a conhecida teoria conspiratória sobre a suposta "Nova Ordem Mundial". De acordo com essa lenda, seria um plano para que o mundo tivesse um governo único, planejado e comandado por maçons. Na prática, não faz sentido: nem as lojas maçônicas são únicas, do ponto de vista organizacional; cada casa é independente e abriga confrades com pontos de vista diferentes. A Confederação Maçônica Brasileira (Comab) esforça-se para combater os mitos acerca da sociedade. Segundo a organização, os maçons não são anticatólicos, tampouco "racistas e elitistas", como muitos acreditam. "Quanto ao racismo, a maçonaria estabelece explicitamente a igualdade entre os homens sem considerar raça, credo ou cor. Se considerarmos que apenas são convidados a participar da maçonaria homens virtuosos e representantes da sociedade, pode-se dizer que ela é uma elite, embora o correto seja afirmar que ela impõe critérios rigorosos para a iniciação de um novo membro", frisa a Confederação. Para se tornar um maçom é preciso receber um convite ou se candidatar - hoje em dia, as associações maçônicas costumam disponibilizar formulários de interesse nos seus sites. A sociedade só permite homens maiores de idade, com endereço fixo e renda própria. Ter religião não é obrigatório, mas é preciso acreditar em Deus. Se o sujeito for casado, tem de contar com a anuência da família. O iniciante passa por uma avaliação que pode durar até um ano. "Tenha paciência. Esse processo pode demorar algum tempo e nós precisamos ter certeza de que você será um elemento útil à nossa Instituição, assim como você também deverá ter certeza de que sua decisão será benéfica para você e sua família", informa a Grande Loja Maçônica do Estado do Rio de Janeiro, em recado aos interessados. Tudo pode ser investigado: vida financeira, ficha policial, círculo de amizades, relações de trabalho. O nome é submetido aos outros membros e o candidato precisa ser aprovado por unanimidade. Uma vez dentro, o novato precisa fazer o pacto de silêncio. Ou seja: nada do que é conversado ali dentro pode ser divulgado. Os maçons costumam fazer trabalhos voluntários em instituições filantrópicas e também se ajudam uns aos outros em caso de necessidade. Historiadora da Universidade de São Paulo, Solange Ferraz de Lima conta que se surpreendeu com a rede maçom quando estudou a vida e a obra do pintor e decorador italiano Oreste Sercelli. Ela percebeu que ele conseguiu rapidamente destaque nos círculos sociais brasileiros, tão logo chegou ao país. Logo, encontrou a explicação: ele era ligado à maçonaria - e, portanto, contava com o apoio dos confrades. "A história da maçonaria é bem interessante. É impressionante como eles estão presentes em tudo", afirma a historiadora. "Eles têm essa capacidade de articular, é uma rede muito poderosa. Mas, curiosamente, não é muito estudada - porque eles são muito fechados." É uma irmandade. E exclusivamente masculina. Mulheres e filhos são bem-vindos nos trabalhos sociais e eventos festivos - nunca nas reuniões ordinárias. Segundo os maçons, o veto às mulheres é uma questão de tradição: como a maçonaria teve origem nas corporações de ofício dos pedreiros medievais - e eles eram estritamente masculinos -, a determinação foi mantida. Apesar de todas essas regras e esse imaginário, acredita-se que a sociedade esteja muito mais aberta do que no passado. Crítico da ordem, o ex-maçom britânico Martin Short escreveu, no livro Inside The Brotherhood, que a maçonaria passa por essa transição. Segundo ele, o que era uma sociedade secreta, hoje é uma sociedade discreta. Mas, em breve, o autor acredita, a maçonaria será uma sociedade civil aberta.
2022-10-12
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brasil
O movimento contra o feminismo que divide evangélicas
Conforme o feminismo avançava pelo Brasil nas últimas décadas, um grupo de fiéis evangélicas organizou uma reação. Baseando-se em interpretações bíblicas sobre o papel da mulher no casamento e sobre o aborto, essas mulheres passaram a abraçar um movimento contrário, o antifeminismo, e a difundir suas ideias em igrejas, congressos e redes sociais. Mas essa contra-ofensiva já vive fissuras dentro do próprio universo cristão, conforme jovens evangélicas passam a contestar essas interpretações da Bíblia e a demonstrar afinidade com algumas bandeiras feministas. Fim do Matérias recomendadas O podcast busca ainda entender como os brasileiros chegaram ao atual grau de divisão na política e se há possibilidade de diálogo entre grupos divergentes. Muitas das brasileiras que militam contra o feminismo nas redes sociais — algumas delas com centenas de milhares de seguidores — costumam se classificar em seus perfis também como cristãs, conservadoras e apoiadoras de Jair Bolsonaro. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Uma delas é a dona de casa Ingrid Lobato, de 28 anos. Ela diz ao podcast Brasil Partido que passou a militar contra o feminismo em 2016, quando houve o impeachment da então presidente Dilma Rousseff. "Ali foi levantada muito forte uma narrativa do feminismo que dizia que a presidente estava sendo impichada por ser mulher, quando, na verdade, não, é porque ela era incompetente mesmo", afirma. Em julho de 2022, Lobato foi uma das palestrantes do 1º Fórum Antifeminista do Rio Grande do Norte, um evento que atraiu 60 mulheres a um hotel da capital potiguar. Ela se casou aos 18 anos e é mãe de dois meninos. Frequenta igrejas evangélicas desde criança e teve os primeiros contatos com o feminismo quando fazia faculdade de ciências contábeis. Lobato diz que se opôs ao movimento desde o início por conta da posição de feministas sobre o aborto. Uma das principais bandeiras do feminismo é que mulheres devem ter o direito de abortar. "Eu não sou a favor do aborto em circunstância alguma, a não ser que você tenha que escolher ali entre a mãe e o bebê", diz Lobato. Outra questão que fez Lobato se afastar do feminismo é pessoal. Filha de pais separados e criada pelo pai , ela diz se sentir incomodada quando feministas apontam os homens como vilões. "Eu conheço muitos homens bem casados que dão a vida pelas suas famílias. E meu pai, ele não foi um pai perfeito, mas ele assumiu ali a responsabilidade. Ele enfrentou coisas que a minha mãe, por alguma razão, não fez." Lobato trata de outra questão crucial que divide feministas e antifeministas: uma passagem bíblica que diz como as mulheres devem se comportar no casamento. O texto está nas Cartas de Paulo aos Efésios e defende que "as mulheres submetam-se aos seus maridos como ao Senhor, porque o marido é a cabeça da mulher". Para Lobato, o trecho é "mal compreendido" e não postula que a mulher seja escrava do marido. "Você está sendo ali submissa em um lar e na sua família para o seu esposo, porque na verdade você está recebendo algo em troca", ela diz. Para explicar a posição, Lobato cita outro trecho bíblico, segundo o qual o homem deve amar sua esposa assim como Cristo amou a igreja. "Então você ser submissa a este tipo de homem é um privilégio, não é uma coisa ruim, porque você está com um homem que está ali disposto a dar a vida por você e pela sua família", afirma. Para Lobato, o antifeminismo é um escudo contra ideias que, na visão dela, buscam fragilizar a família e doutrinar mulheres para que votem em partidos de esquerda. Segundo ela, mulheres são expostas a essas teorias desde que entram na escola — como a teoria de que ser mulher não é uma questão biológica, mas sim uma construção social. Lobato diz que conceitos como esse levam mulheres a abrir mão de serem esposas e mães — e que, quando elas deixam de assumir esses papéis, ficam vulneráveis à manipulação política. "A mulher, hoje ela está sendo recrutada pelo feminismo, inserida em partidos políticos com ideologias de esquerda, para, no final, serem manobrados por esses interesses", afirma. Mas nem todas as mulheres religiosas acham que cristianismo e feminismo são inconciliáveis. Com 22 anos e mais de 30 mil seguidores no TikTok, a evangélica Thaís Cerqueira era tão dedicada à igreja que foi convidada a dar aulas sobre a Bíblia para fiéis mais jovens. Mas ela tinha um desconforto. Ao mesmo tempo em que considerava o Cristianismo o norte de sua vida, ela se incomodava quando pastores minimizavam comentários que ela fazia sobre a opressão às mulheres na sociedade. "Se alguém tentasse falar sobre isso, era automaticamente tachado de feminista, então não existia uma posição muito sóbria", afirma. Conforme o desconforto crescia, Cerqueira passou a buscar teólogos evangélicos americanos que tinham outras visões sobre o lugar da mulher no cristianismo. Como muitas dessas teorias jamais foram traduzidas para o português, ela passou a ler em inglês mesmo — e foi aprendendo a língua inglesa por conta própria, enquanto estudava os escritos. Cerqueira começou a divulgar nas redes sociais interpretações bíblicas que destoavam das que ouvia na igreja — como a ideia de que homens deviam ser os "provedores" da família. Mas logo as postagens chamaram a atenção dos líderes da igreja. "O meu pastor me chamou e falou para mim que eu tinha duas opções: eu tinha a opção de parar de falar ou sair. E aí eu falei: 'Tá, então eu saio'." Cerqueira prefere não revelar o nome da igreja — diz apenas que era uma denominação pentecostal. Após a ruptura, ela aprofundou os estudos sobre as mulheres no Cristianismo e passou a contestar a noção de que as esposas devem ser submissas aos maridos. Cerqueira afirma que várias Igrejas, inclusive a Católica, já deixaram de interpretar literalmente aquele trecho das Cartas de Paulo. Para ela, quando Paulo diz que as mulheres devem ser submissas, ele está sugerindo a cristãos como ele que seguissem os códigos impostos pelo Império Romano para evitar serem perseguidos pelo regime. Afinal, ela afirma que, no Império Romano, mulheres não podiam ter cargos de liderança. Outra crítica da Thaís às antifeministas trata da posição delas em relação ao aborto, ainda que ela seja pessoalmente contra a prática. "Existe um problema muito grande, principalmente porque a grande parte dessas mulheres que chegam a realizar um aborto são, em sua grande maioria, pobres. E eu não consigo, como cristã, também dizer: 'Não, elas precisam ser presas'", afirma. Para Cerqueira, o tema do aborto é o grande obstáculo à aproximação entre religiosas e feministas hoje. Ela diz que cristãs simpáticas ao feminismo que expressem ressalvas ao aborto são duramente reprimidas por feministas. "Eu acho que precisaria um pouco mais de compreensão do lado feminista, porque a gente é formada com base em princípios um pouco diferentes", afirma. Para Cerqueira, "o feminismo hoje está dialogando com uma certa elite". Ela própria não se considera plenamente feminista. "Eu gosto de ter opiniões livres sobre os assuntos, mas eu consigo compreender plenamente a ideia do feminismo". Sobre a disputa eleitoral, diz que "Bolsonaro tenta passar a imagem de que ele é cristão, mas ele na verdade não é". "Ele encontrou no meio cristão uma forma de angariar pessoas de forma muito maldosa", afirma, citando as frequentes menções de Bolsonaro a trechos bíblicos. Sobre Lula, Cerqueira diz discordar de suas "pautas morais", mas que "para o momento político do Brasil, ele seria uma opção mais viável". Para a escritora feminista Ruth Manus, o feminismo ainda é um movimento elitizado — algo que muitas mulheres têm tentado combater. "É muito fácil se sentir excluído do movimento, sobretudo quando ele é liderado por mulheres brancas e muitas vezes por mulheres negras que também são professoras doutoras, o que é ótimo, mas não torna o debate inclusivo", afirma. "Acho que o feminismo tem que estar aberto a essas críticas e tem que estar aberto a ouvir essas pessoas, porque são realidades que a gente não conhece", diz. Apesar das falhas que Manus vê no feminismo, ela contesta a noção de que o movimento é incompatível com o Cristianismo. Para ela, é possível até a existência de um "feminismo evangélico", desde que o grupo busque aprimorar a situação das mulheres na sociedade. Até mesmo a oposição das evangélicas ao aborto, segundo Manus, não deveria ser um impeditivo para que pertençam ao movimento. "Eu acho que é possível, sim, se considerar uma feminista, mas que tenha uma ressalva em relação a um assunto. Mulheres que são contra o aborto, mas que, mesmo assim, elas acreditam na liberdade da mulher, de escolha, de muitos outros assuntos", diz. Ainda assim, para ela, mulheres que se opõem ao aborto por razões religiosas não deveriam obrigar "uma sociedade inteira a estar sujeita à mesma Bíblia que você e ao mesmo Deus no qual você crê". Segundo Manus, feministas e religiosos têm muitas bandeiras comuns. "Existe na verdadeira alma cristã que reside em muitos católicos e em muitos evangélicos, existe um denominador que luta por igualdade, que luta por combater a marginalização. Então, se a gente não fizer essas pontes, a gente às vezes está lutando até por uma coisa comum que a gente não consegue enxergar", afirma.
2022-10-12
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63139355
brasil
Das 62 universidades brasileiras em ranking internacional, 51 são públicas
O segundo lugar no continente ficou com a Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), classificada entre as 500 melhores do mundo. A Pontifícia Universidade Católica do Chile aparece no mesmo grupo. O Brasil é o país do continente melhor representado na publicação, com 62 universidades na lista — 51 delas são universidades públicas (federais ou estaduais) e 11 são privadas. O ranking da Times Higher Education incluiu neste ano 1799 universidades de 104 países. A publicação tradicional classifica as universidades internacionais desde 2004. Para o ranking mundial, são avaliadas 13 métricas independentes em áreas como ambiente de aprendizado, transferência de tecnologia no ambiente universitário e quantidade de pesquisas e citações. A publicação define a posição exata apenas das 100 primeiras universidades na lista. A partir desse patamar, as universidades são agrupadas por centenas (as 250 melhores, 50 melhores, etc). Fim do Matérias recomendadas O ranking global de 2023 tem oito universidades brasileiras entre as mil melhores do mundo. Além da USP (entre as 250 melhores) e Unicamp (entre as 500 melhores), estão classificadas também entre as 800 melhores instituições do mundo a UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e a Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). A UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), a UFS (Universidade Federal de Sergipe), a PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) e a PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul) completam a lista de brasileiras até a milésima posição. A Universidade de Oxford, no Reino Unido, é a número 1 do ranking mundial de 2023, seguida pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Os Estados Unidos têm 34 universidades entre as 100 melhores do mundo, mas o número já foi maior — chegou a 43 instituições nessa posição em 2018. Este ano teve um recorde de 140 universidades da América Latina entre as quase 1800 universidades classificadas na lista. Há instituições da Colômbia, do Peru, do México e da Argentina, entre outros países. O executivo da THE Phil Baty afirmou que "é muito bom ver" o número de universidades da América Latina subindo no ranking, no entanto ainda é preciso que as instituições transformem seu engajamento e visibilidade em melhorias na performance. "Perder espaço pode gerar um ciclo vicioso de perda de acesso a parcerias e a talentos globais", disse ele. Confira as dez melhores universidades do mundo segundo a THE:
2022-10-11
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63211643
brasil
'Bolsonaro adota medidas do manual de Chávez': entenda semelhanças e diferenças entre Brasil e Venezuela
A reportagem abaixo, publicada originalmente em agosto de 2021, voltou a circular em outubro de 2022, depois que o presidente Jair Bolsonaro disse que recebeu propostas para aumentar o número de ministros do Supremo Tribunal Federal e que pode discutir o tema após as eleições. A sugestão foi comparada por muitos - inclusive pelo empresário João Amoêdo (Novo), candidato à presidência em 2018 - ao que aconteceu na Venezuela. Em 18 de outubro de 2018, poucos dias antes do segundo turno da eleição presidencial que o confirmaria como o novo presidente do Brasil, Jair Bolsonaro foi ao Twitter e se dirigiu aos brasileiros. "Sempre dissemos que não existe salvador da pátria, mas graças a união do brasileiro temos a chance real de não virarmos a próxima Venezuela. Juntos, daremos o pontapé para fazermos do Brasil uma das mais respeitáveis potências mundiais", escreveu o então candidato pelo PSL. Ali, ele repetia um dos temas mais frequentes em sua campanha eleitoral: o medo dos brasileiros de que a crise política, econômica e social que assolou o país vizinho em decorrência das políticas do regime chavista pudessem se replicar no Brasil. No imaginário da população brasileira, o colapso da Venezuela ganhava cores cada vez mais vivas com a chegada em massa de migrantes do país via Pacaraima, em Roraima, em fuga da fome. "Vamos vencer e quebrar a engrenagem que quer nos tornar uma Venezuela!", tuitou o candidato em 10 de outubro de 2018, em outro exemplo dentre as dezenas de mensagens sobre o assunto que ele disparou naquele ano. Mais de dois anos e meio após a posse de Bolsonaro, no entanto, especialistas em política latino-americana ouvidos pela BBC News Brasil dizem que o atual presidente brasileiro é o líder mais próximo ao estilo de Hugo Chávez que o Brasil já teve no período democrático recente. "Bolsonaro se cercou de militares, cria embate com outros poderes, desacredita o processo eleitoral e tenta calar a imprensa. Todas medidas tiradas do manual chavista", afirmou à BBC News Brasil Jorge Castañeda, ex-ministro de Relações Exteriores do México e professor da New York University. Fim do Matérias recomendadas As semelhanças entre ambos não se esgotam nas coincidências biográficas ou no modo como souberam explorar as redes sociais e a imagem de outsiders para conquistar os eleitores. Com mais ou menos sucesso, ambos operaram avanços sobre as Supremas Cortes e apostaram nos embates com instituições democráticas, especialmente com a imprensa. Ambos ainda incentivaram ou promoveram o armamento da população civil e militarizaram o Estado ao mesmo tempo em que interferiam em órgãos investigativos, expurgavam servidores públicos não alinhados e tentavam levar os dados oficiais a apoiar narrativas de seus governos, nem sempre condizentes com a realidade. "Em 2018, baseado no meu trabalho sobre líderes populistas e militares na democracia na América Latina, eu já dizia que Bolsonaro era a figura que mais se parecia com Chávez no Brasil e isso se mantém", afirmou à BBC News Brasil Harold Trinkunas, especialista em política latino-americana da Universidade Stanford e da Brookings Institution. Trinkunas explica: "Apesar de defenderem ideologias obviamente diferentes, os dois são líderes populistas. Os populistas alegam conhecer e defender a vontade do povo e argumentam que são as instituições e as elites os empecilhos para que eles as coloquem em prática. O viés antielites e anti-instituições em Bolsonaro é tão claro quanto era em Chávez". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Embora tenha adotado Chávez como um de seus antagonistas principais na eleição presidencial, Bolsonaro admitiu em 1999 beber da fonte chavista em sua formação política. Em uma entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o então deputado federal afirmou que "Chávez é uma esperança para a América Latina e gostaria muito que essa filosofia chegasse ao Brasil". Na ocasião, o deputado admitiu que pretendia ir ao país vizinho para tentar ser recebido em visita no Palácio Presidencial de Miraflores. "Acho que ele [Chávez] vai fazer o que os militares fizeram no Brasil em 1964, com muito mais força. Só espero que a oposição não descambe para a guerrilha, como fez aqui", analisou o então deputado federal Bolsonaro, filiado ao PPB, atual PP. Em 2020, já presidente, Bolsonaro repetiu, em uma live, que achou "maravilhoso" ver Chávez vencer as eleições. "Depois fez besteira, e virei opositor, como sou ao governo Maduro", disse. Chávez e Bolsonaro têm origem parecida. Ambos nasceram em cidades pequenas e de interior de seus países, tiveram infância simples e ingressaram jovens em academias militares, onde fariam carreira. O primeiro chegou a coronel. O segundo, a capitão. E os dois incorreram em faltas disciplinares graves, o que os afastou da carreira nas Forças Armadas e os lançou definitivamente na política. No caso de Chávez, em 1992, como tenente-coronel, ele comandou subordinados na tentativa de dar um golpe de Estado na Venezuela. O ato, mal-sucedido, o levou à prisão por dois anos. Posteriormente, Chávez acabaria anistiado. Bolsonaro se manifestou publicamente por melhorias salariais para as Forças em 1986, uma tomada de posicionamento político público que lhe rendeu 15 dias de prisão. No ano seguinte, ainda em protesto, teria arquitetado um plano para explodir adutoras de abastecimento de água do Rio de Janeiro. Em 1988, foi julgado pelo Superior Tribunal Militar, que considerou não haver provas suficientes para condená-lo. Naquele mesmo ano, ele passou à reserva e se elegeu como vereador no Rio de Janeiro. Depois de sua tentativa de golpe, Chávez levaria mais seis anos para se converter no "Comandante", como era chamado já na Presidência de seu país. Para Bolsonaro, o caminho foi mais longo: levou 30 anos até que ele se convertesse em "Mito" e passasse a ocupar o Palácio do Planalto. Há, no entanto, uma enorme coincidência de contextos que favoreceram as vitórias presidenciais de cada um deles. "Ambos são políticos que chegam ao auge do poder em uma terra arrasada. Há um profundo sentimento de fim de festa nos dois países, uma aguda crise econômica, política e social que explica essa ascensão", afirma a cientista política Daniela Campello, da Fundação Getúlio Vargas. No fim dos anos 1990, a Venezuela já não era um dos países mais ricos do mundo, como fora entre 1950 e 1980, período que lhe rendeu o apelido de "Venezuela saudita". Nos anos 1970, graças às suas reservas petrolíferas, os venezuelanos tinham o maior poder de compra entre os países América Latina — quase três vezes maior que o dos brasileiros —, segundo um índice da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Tudo mudou na década de 1980, com a flutuação do preço do petróleo. Com menos dinheiro, problemas históricos ficaram evidentes: a falta de acesso à educação para a população de baixa renda, o aumento da pobreza em meio à escalada da inflação, a corrupção e o desvio de dinheiro público das elites políticas do país. Em 1989, o Exército é chamado a reprimir uma enorme manifestação popular em Caracas, o Caracaço. Uma multidão revoltada e faminta, que saqueava e depredava tudo o que havia, acabou massacrada pelos militares. Chávez surge nesse contexto, como um outsider, alguém que propõe mudanças e lidera uma recém-criada agremiação, o Movimento Quinta República, com a qual se elege e derrota os dois partidos que polarizavam a eleição havia quatro décadas na Venezuela. Chávez só viria a formalizar um partido próprio em 2006, o Partido Socialista Unido da Venezuela. Do mesmo modo, Bolsonaro encerra um período de mais de duas décadas de vitórias presidenciais de PT e PSDB, cujas imagens sofreram fortes abalos após as investigações da Operação Lava Jato. Mas não era só: o país também enfrentava a pior recessão econômica desde 1948. E embora Bolsonaro fosse deputado por quase três décadas, jamais tivera expressão nacional e surgia como uma figura alternativa, à frente de um até então partido nanico, o PSL, cuja sigla os brasileiros mal conheciam. "Não estou dizendo nem vagamente que os dois são a mesma pessoa, mas não dá pra ignorar que existem traços claros de poder em Chávez que deságuam em Bolsonaro e que, em certa medida, superam esses dois personagens e remontam a toda uma tradição política latino-americana", afirma o correspondente da BBC na América Latina Will Grant, autor do recém-lançado Populista: the rise of Latin America's 21st Century Strongman, ou, em tradução livre, Populista: a chegada ao poder dos caudilhos da América Latina no século 21, em cuja capa Chávez e Bolsonaro se encaram. "Sou apenas um homem, um soldado, um patriota". A frase, que pelo estilo e pelos valores que evoca facilmente caberia na boca de Bolsonaro, na verdade foi enunciada por Chávez. "O soldado que vai à guerra e tem medo de morrer é um covarde!" A afirmação poderia ser atribuída à Chávez, mas foi dita por Bolsonaro, em seu terceiro ano de mandato como presidente, em meio ao embate contra o Tribunal Superior Eleitoral sobre a impressão do voto. "Uma vez no poder, tanto Bolsonaro quanto Chávez mantêm a retórica do maniqueísmo, do bem contra o mal, para surfar os sentimentos da população contra o establishment, e a estratégia de manter vivo o conflito institucional para tentar esticar os limites de seus poderes", afirma o cientista político Fernando Bizzarro, da Universidade Harvard. Um dos alvos centrais de ambos os presidentes em suas investidas contra as instituições são as Supremas Cortes de cada país. Chávez acusava o Tribunal Constitucional venezuelana de golpismo e corrupção e dizia que os juízes da Corte atentavam contra os interesses nacionais. Em 2003, ele finalmente conseguiu fazer com que a Assembleia Nacional aprovasse, em plena madrugada, uma lei que permitia o aumento do tribunal de 20 para 32 ministros. Além de povoar a corte com aliados, Chávez conseguiu também que a nova lei permitisse o afastamento de outros ministros por decisão do governo em casos em que suas condutas ferissem "o interesse nacional". Na prática, a regra se tornou um salvo-conduto para que Chávez e, posteriormente, seu sucessor Nicolás Maduro tirassem juízes que tomassem medidas que os desagradassem. Durante a campanha eleitoral, Bolsonaro chegou a defender o aumento no número dos juízes, dos 11 atuais para 21. "É uma maneira de você colocar dez isentos lá dentro porque, da forma como eles têm decidido as questões nacionais, nós realmente não podemos sequer sonhar em mudar o destino do Brasil", disse Bolsonaro em entrevista, em julho de 2018, à TV Cidade, de Fortaleza. Já no governo, em 2020, o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, chegou a dizer em uma reunião ministerial que ministros do STF deveriam ser presos. O próprio presidente colecionou duros embates com diversos ministros da Corte. O mais recente deles tem sido com o ministro Barroso, a quem já chamou de idiota e mentiroso, e com Alexandre de Moraes, a quem qualificou como "ditatorial" e alertou que "a hora dele vai chegar". Bolsonaro não ficou só em ataques verbais. Em seu primeiro ano de governo, tentou emplacar na Reforma da Previdência uma regra que retirava a especificação de idade-limite para a aposentadoria dos integrantes do STF. A ideia seria determinar uma nova idade, menor do que a atual, via lei complementar. Assim, ele abriria uma grande quantidade de vagas para nomear nomes alinhados aos seus interesses. A manobra, no entanto, foi detectada pelo Congresso, que a desmontou. Esse ano, conforme a previsão legal, Bolsonaro deverá nomear seu segundo ministro (o primeiro foi Kássio Nunes Marques), em substituição a Marco Aurélio Mello. O indicado é André Mendonça, ex-advogado-geral da União e ex-ministro da Justiça sob Bolsonaro. Em outra frente, Bolsonaro desfez regras tácitas sobre a definição dos comandos de órgãos de investigação e controle. Ele ignorou a lista tríplice do Ministério Público Federal, na qual os procuradores indicam três lideranças da carreira aptas a assumir o posto de Procurador-Geral, e nomeou para o posto um aliado, Augusto Aras. Embora seja uma prerrogativa do presidente, uma intervenção como essa no órgão de investigação não acontecia desde o início do governo de Lula, em 2003, e foi recebida como um golpe sobre a autonomia investigativa do órgão. Do mesmo modo, o então ministro da Justiça de Bolsonaro, Sergio Moro, se demitiu acusando o presidente de tentar interferir na autonomia investigativa da Polícia Federal. De acordo com Moro, Bolsonaro queria trocar a chefia nacional e o comando de superintendências estaduais da PF, como a do Rio de Janeiro, sem apresentar uma justificativa plausível para isso. O presidente reiterou que a mudança era uma prerrogativa de seu cargo. Desde a posse de Bolsonaro, já houve quatro nomeações para chefes da PF, além de afastamentos locais, como o do delegado Alexandre Saraiva, ex-superintendente do Amazonas, retirado do cargo um dia após pedir que o STF investigasse o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, um dos mais fiéis aliados ao presidente. Bolsonaro, no entanto, não inventou a estratégia. Em 2000, Chávez conseguiu aprovar na Assembleia Nacional seu então vice-presidente, Isaías Rodriguez, para o posto equivalente ao de procurador-geral, desalojando da cadeira um servidor que questionara a legalidade de algumas ações de seu governo. De acordo com a oposição ao regime chavista, os órgãos de investigação passaram a se comportar de maneira totalmente comprometida com os interesses do mandatário. A nova procuradoria sob Chávez passou a considerar críticas ao governo como atentados aos interesses nacionais. No Brasil de Bolsonaro, algo semelhante aconteceu. O então ministro da Justiça, André Mendonça, pediu à Polícia Federal investigação de críticos do governo sob a alegação de que feriam a Lei de Segurança Nacional. Um dos alvos foi o ex-ministro Ciro Gomes, investigado por ter dito que "Bolsonaro para mim é um boçal, irresponsável e criminoso. E ladrão". Inquéritos semelhantes também surgiram por iniciativa de polícias locais. A Polícia Civil do Rio chegou a abrir apuração contra o youtuber Felipe Neto por ele ter chamado Bolsonaro de "genocida". "O melhor exército que pode existir para conseguir a liberdade é o povo armado. Eu não quero ditadura no Brasil, quero liberdade", disse Bolsonaro, durante reunião ministerial, em 2020. E seguiu: "Eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta pra impor uma ditadura aqui! Que é fácil impor uma ditadura! Facílimo!" Desde o início do governo, Bolsonaro tem editado decretos que facilitam o acesso da população civil ao armamento. Boa parte deles têm sido barradas no STF. Ainda assim, o número de armas entre civis no Brasil bate recorde. Nos dois primeiros anos do governo do governo Bolsonaro, 274 mil novas armas de fogo foram registradas, um aumento de 183% em relação ao total de novos registros no biênio anterior e o maior patamar da série histórica, medida desde 2009. As justificativas dadas por Bolsonaro para expandir o acesso ao armamento à população civil — a necessidade de defender a liberdade do povo e a soberania do país — ressoam àquelas dadas por Chávez, em 2006, quando deliberadamente iniciou a formação de uma milícia, que hoje conta com quase 1 milhão de civis, como ele mesmo planejava. "A Venezuela precisa ter 1 milhão de homens e mulheres bem equipados e bem armados", disse o líder venezuelano, após ter negociado a importação de 100 mil fuzis da Rússia e fechar acordo bilionário com a Espanha para a compra de equipamentos militares. "Peço permissão para comprar outro carregamento de armas, porque os gringos querem nos desarmar. Temos de defender nossa pátria", complementou Chávez. A milícia de Chávez é uma espécie de exército paralelo e político e foi gestada depois da tentativa de golpe sofrida por ele em 2002, quando ficou claro que apenas o Exército poderia não ser o bastante para assegurá-lo no comando. Os alistados na milícia são pessoas comuns, que recebem um treinamento de 5 dias de tiro, disciplina militar e doutrina nacional. Na prática, funcionam também como olheiros do regime para qualquer sinal de sublevação social. O governo Chávez também distribuiu armas para os chamados coletivos, grupos paramilitares politicamente alinhados aos partidos e que já se envolveram em atos mais extremos. "A comparação tem limites porque embora haja a flexibilização para acesso a armas no caso de Bolsonaro, não há um planejamento, uma organização hierárquica orientando o contingente de pessoas que compra essas armas. No caso de Chávez, não. Ele realmente preparou a população para a Guerra Civil", diz Rafael Ioris, cientista político da Universidade do Colorado. A despeito do discurso favorável ao armamento de grupos específicos e aliados, Chávez lançou campanha de redução à circulação de armas entre a população em geral, restringindo o acesso a elas às Forças Armadas, às milícias e aos coletivos. A tentativa de desarmamento foi, aliás, uma das raras pautas em que chavistas e a oposição concordaram e trabalharam juntos. A gestão Chávez ficou marcada por perseguições a funcionários públicos não alinhados ao regime. Em novembro de 2006, o canal televisivo RCTV chegou a transmitir imagens do então ministro da Energia de Chávez dizendo aos funcionários da empresa estatal de petróleo, a PDVSA, que eles deveriam se demitir se não apoiassem a agenda política do presidente. No Brasil, situações semelhantes têm acontecido. Uma das mais notórias foi a demissão, em 2019, do então diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) Ricardo Galvão. Embora tivesse um mandato, Galvão foi dispensado depois de divulgar dados sobre o desmatamento na Amazônia que desagradaram Bolsonaro. Na ocasião, o presidente chegou a afirmar que Ricardo Galvão estava "agindo a serviço de uma ONG". "Com toda a devastação que vocês nos acusam de estar fazendo e de ter feito no passado, a Amazônia já teria se extinguido", declarou Bolsonaro. Em outro caso com paralelo na Venezuela sob Chávez, Bolsonaro tem descumprido uma regra tácita, que vigorava desde os anos 1990, de nomeação do reitor de universidades federais. Historicamente, o nomeado é eleito pelos professores, funcionários e alunos das instituições. Bolsonaro, no entanto, tem optado por exercer o direito de escolher seus nomes preferidos, eventualmente até mesmo fora da lista tríplice elaborada pelas universidades. Segundo cálculo da Folha de S.Paulo, isso já aconteceu ao menos em um quarto das nomeações. Embora não haja uma explicação oficial para tais decisões, a leitura das universidades é de que há interferência política na gestão universitária. Em março de 2019, Bolsonaro deixou claro que agiria conforme suas possibilidades e se justificou: "O ambiente acadêmico com o passar do tempo vem sendo massacrado pela ideologia de esquerda que divide para conquistar e enaltece o socialismo e tripudia o capitalismo. Neste contexto, a formação dos cidadãos é esquecida e prioriza-se a conquista dos militantes políticos". Também em 2019, o sucessor de Chávez, Nicolás Maduro, obteve uma vitória no Tribunal Supremo do país para alterar as regras de votação de reitores de universidades nacionais e retirar o peso dos professores na escolha. O ambiente acadêmico venezuelano é considerado pelo governo como um dos últimos bastiões de oposição à chamada revolução bolivariana. Em maio de 2020, o governo de Nicolás Maduro anunciou o que foi tomado como um "absurdo" pela Universidade John Hopkins: a Venezuela teria tido, até então, apenas 10 mortos por covid-19. O líder venezuelano defendia que seu combate à pandemia — baseado em parte no uso da cloroquina, um medicamento cuja ineficácia foi comprovada e que também foi adotado por Bolsonaro como tratamento para covid-19 no Brasil — era um grande sucesso. A médica da Universidade Jonh Hopkins Kathleen Page, que entrevistou equipes de saúde venezuelanas para o relatório da instituição sobre a pandemia, disse à AFP que se tratava de um dado falso. Em uma estimativa conservadora, segundo ela, o número de óbitos pelo vírus no país chegaria "em pelo menos 30 mil" naquele momento. Os dados sobre mortalidade da covid-19 se tornaram apenas o exemplo mais recente da falta de confiabilidade das estatísticas do governo Chávez-Maduro. O problema se acentuou conforme o país se aprofundava na crise. A Venezuela passou ao menos dois anos sem publicar dados sobre mortalidade infantil, por exemplo, para não dar munição aos que criticam o regime. Chávez chegou a expulsar do país integrantes de organismos internacionais, como a Human Rights Watch, que denunciavam os problemas nos dados, entre outras críticas ao governo venezuelano. No caso brasileiro, o governo Bolsonaro foi duramente criticado quando, na gestão do ministro Eduardo Pazuello, tentou alterar o cálculo de vítimas da covid-19 no Brasil. Em junho de 2020, o governo deixou de divulgar os dados completos de mortalidade e o histórico de vítimas da pandemia, e manteve acessíveis apenas os dados sobre óbitos registrados nas 24h anteriores, o que reduzia drasticamente o dado. Alterou ainda o horário de divulgação dos boletins epidemiológicos, das 19h para as 22h. Ao comentar o assunto pela primeira vez, Bolsonaro afirmou: "Acabou matéria no Jornal Nacional." Diante do apagão de dados, o site da Universidade John Hopkins chegou a tirar o Brasil de sua contagem. E órgãos de imprensa criaram um consórcio para apurar os números junto aos Estados. Os dados do Conselho Nacional de Secretarias de Saúde (Conass) passaram a balizar as análises. Diante da pressão, o governo recuou. Essa, no entanto, não foi a primeira vez que a gestão Bolsonaro se debateu com dados oficiais negativos. Como mostra o caso da demissão do diretor do Inpe, o governo federal tentou repetidas vezes alterar a forma de cálculo e divulgação dos dados sobre a devastação ambiental. Recentemente, chegou a anunciar que o monitoramento ficaria sob responsabilidade do Ministério da Agricultura. Diante das críticas — já que o desmatamento é impulsionado justamente por atividades de parcela do setor ruralista — o governo voltou atrás. Há outros exemplos. No fim de julho, o ministro da Economia, Paulo Guedes, atacou o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) diante da nova estatística de desemprego — que aponta 15 milhões de brasileiros sem emprego. Segundo Guedes, o IBGE "está na idade da pedra lascada" e seu dado não deveria ser considerado. O governo também não destinou recursos suficientes para realização do Censo populacional, atrasado em dois anos. "A chegada de Chávez e Bolsonaro à Presidência marca também o retorno, com força, dos militares à máquina do Estado. A verdade é que até esse momento, os militares já não faziam parte da política cotidiana nem no Brasil, nem na Venezuela", afirma Fernando Bizzarro, da Universidade Harvard. Tanto Venezuela quanto Brasil viveram períodos de ditadura militar. Mas no caso venezuelano, o regime havia se encerrado em 1958, o que significa que os militares estavam fora do centro nervoso político há mais de 40 anos quando Chávez ascendeu. O histórico brasileiro é mais complexo. A ditadura se encerrou em 1984, e o retorno dos militares a funções centrais no Estado é iniciado pela gestão de Michel Temer. Impopular e diante de uma crise econômica, Temer recria o GSI, um órgão de segurança nacional que controla a Abin (Agência Brasileira de Inteligência) extinto em 2015. Para o comando da pasta, ele nomeou Sérgio Etchegoyen, que até então ocupava o cargo de Chefe do Estado-Maior do Exército e passou a ser uma das vozes mais influentes do círculo do presidente. Esse teria sido o ponto de início de um processo que Bolsonaro aprofundaria de maneira que não encontra paralelos nem com a própria ditadura brasileira. Um levantamento feito pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em 2020 identificou 6.157 militares da ativa e da reserva em cargos civis no governo Bolsonaro. O número é mais que o dobro do que havia em 2018, na gestão Temer (2.765) e supera as cifras registradas durante os governos militares no período 1964-84. Mais do que isso, em fevereiro de 2020 a BBC News Brasil mostrou que, naquele momento, o Brasil tinha mais militares na chefia de ministérios do que a própria Venezuela. E embora esse número possa flutuar, o dado aponta o patamar de importância que as Forças Armadas adquiriram no governo de Jair Bolsonaro, já que a manutenção do regime chavista se fia hoje basicamente no apoio militar que ainda detém. Segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, no entanto, a presença de militares na gestão Chávez foi aumentando ao longo dos anos, como resposta a diferentes crises que o governo enfrentava: a tentativa de golpe contra Chávez ou uma greve geral na PDVSA (a estatal petrolífera venezuelana). Em contraponto, eles afirmam, Bolsonaro já iniciou a gestão cercado de militares. O resultado, no entanto, é bastante semelhante. Assim como Bolsonaro, Chávez também investiu no aumento da educação militar no país, nomeou um general para o comando da petroleira estatal, do mesmo modo que Bolsonaro, em 2021, com a Petrobras, e alocou um militar até no Ministério da Saúde, o que Bolsonaro repetiria anos mais tarde com Eduardo Pazuello à frente da pasta. "Ambos também foram operando expurgos nas Forças Armadas para deixar em melhor posição os seus aliados", afirma Daniela Campello, da FGV, citando o caso da demissão do então ministro da Defesa, Fernando de Azevedo e Silva, e dos três chefes das forças em março de 2021. Para o lugar de Azevedo e Silva, Bolsonaro indicou o general Walter Braga Netto. Braga Netto se envolveu em ao menos dois episódios recentes vistos por parlamentares e analistas políticos como intromissão das Forças Armadas na política brasileira. O primeiro, quando admoestou o senador Omar Aziz, por nota, junto aos demais chefes das forças, por comentários do presidente da CPI acerca da "banda podre das Forças Armadas". A CPI investiga o possível envolvimento de militares que ocupavam cargos no Ministério da Saúde em esquemas fraudulentos de compras de vacina. O segundo quando se posicionou, também por nota, em favor do voto impresso, posição também apoiada pelos Clubes Militares. Bolsonaro tem afirmado publicamente que se não houver voto impresso nas eleições de 2022, não haverá o pleito. No caso da Venezuela, o preço do apoio dos quartéis a Chávez foi alto. Além do loteamento de cargos estatais, o chavismo franqueou aos comandantes aliados generosos espaços em diferentes setores da economia venezuelana. O grupo de militares, chamado de "boliburguesia", a burguesia bolivariana, assumiu o controle da cadeia de produção petroleira, além da extração de outros minérios, incluindo ouro. Empresas vinculadas aberta ou sigilosamente a comandantes militares firmaram contratos públicos para atuar em ramos tão diversos quanto produção de alimentos e bens de consumo a serviços de coleta de lixo. Esses laços ajudariam a explicar porque o regime se mantém, a despeito da enorme crise. A oposição venezuelana tem acenado com anistia para que os militares troquem de lado. No caso do Brasil, os militares como classe já experimentam benefícios bem palpáveis: foram excluídos da reforma da previdência, que impôs mais anos de trabalho e menor benefício à população brasileira, e são a única categoria que poderá receber reajuste salarial em 2021. Em meio à crise fiscal, o orçamento do Ministério da Defesa tem sido relativamente preservado e chegou a patamares semelhantes ao do Ministério da Educação, por exemplo. Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam ser impossível saber o grau de compromisso das Forças Armadas com o projeto de poder de Bolsonaro e o quão dispostas estariam em bancar alguma eventual tentativa de ruptura democrática. "Acredito que isso não aconteceria. Mas, veja, só o fato de estarmos discutindo aqui o que querem as Forças Armadas do Brasil, que deveriam ser totalmente subordinadas aos civis, já é extremamente preocupante", aponta Trinkunas, da Universidade Stanford. Braga Netto tem negado que haja uma politização das Forças Armadas. "Hugo Chávez foi o primeiro presidente na América Latina a ter perfil consistente nas redes sociais, comunicação que Bolsonaro dominaria anos mais tarde", afirma Campello, da FGV. Enquanto Bolsonaro tem encontro direto com o eleitor toda quinta-feira, em lives de Facebook, Chávez costumava comandar um programa televisivo dominical batizado de Alô, Presidente. Em 2020, a equipe de comunicação de Bolsonaro chegou a lançar um piloto de programa no qual Bolsonaro responderia a perguntas de eleitores, batizado igualmente de Alô, Presidente. A revelação pela imprensa de que os supostos entrevistados nesse piloto na verdade não existiam, e que suas fotos eram imagens genéricas compradas de agência, aliada à comparação com o programa de Chávez, no entanto, fizeram com que a Secretaria de Comunicação abandonasse a ideia. Nos programas de Chávez e Bolsonaro, o governo se faz ao vivo. O presidente venezuelano chegou a anunciar, em 2008, na TV que enviaria batalhões do Exército para a fronteira com a Colômbia, gerando uma crise diplomática séria com o país vizinho. Já Bolsonaro usa seus programas para endossar aliados fustigados por denúncias, fornecer interpretações sobre fatos políticos que possam ser usados como propaganda por sua militância ou defender medidas que quer adotar no governo. No fim de julho, passou mais de duas horas em uma live em defesa do voto impresso, para a qual não conta com votos no Congresso nem respaldo no Supremo, e apelou até para notícias falsas para argumentar que o atual sistema eleitoral brasileiro não é seguro, Por causa do episódio, Bolsonaro está sob investigação no inquérito das Fake News no STF. Além disso, como o evento foi retransmitido pela emissora estatal TV Brasil, Bolsonaro foi alvo de notícia-crime enviada ao STF por parlamentares petistas, que o acusam de a improbidade administrativa, propaganda eleitoral antecipada e abuso de poder político e econômico. A ministra Carmen Lúcia qualificou as acusações como "graves" e pediu parecer à Procuradoria-Geral da República. A comunicação direta com o eleitor não é só uma preferência dos dois líderes, mas também uma forma de driblar perguntas incômodas da imprensa, com quem Chávez e Bolsonaro acumularam embates. Em 2020, Bolsonaro chegou a pôr em dúvida a renovação da concessão pública da TV Globo, emissora mais vista do país. "Vocês vão renovar a concessão em 2022. Não vou persegui-los, mas o processo vai estar limpo. Se o processo não estiver limpo, legal, não tem renovação da concessão de vocês, e de TV nenhuma. Vocês apostaram em me derrubar no primeiro ano e não conseguiram", disse, acusando a cobertura de seu mandato de ser "porca"e uma "patifaria". Chávez foi mais longe. "Não será renovada a concessão para este canal golpista de televisão que se chama Radio Caracas Televisión (RCTV)", anunciou em 2006, cumprindo ameaças que fazia não apenas porque o veículo trazia reiteradas denúncias contra seu governo como também porque não dava destaque às manifestações a favor de Chávez na cobertura. A emissora saiu do ar em 2007. A RCTV chegou a ter alguma sobrevida como canal por assinatura, mas mesmo isso acabou em 2010. Uma determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos ordenou, em 2015, que a TV fosse reaberta, mas o regime chavista ignorou a decisão. O governo de Chávez também abriu investigações administrativas contra outros veículos de imprensa quando avaliava que a cobertura não lhe era favorável, segundo relatórios da ONG Human Rights Watch. Tais processos resultaram algumas vezes em sufocamento financeiro desses órgãos de imprensa. Em outras situações, o governo usou seu poder de financiamento por meio de compra de anúncios para obter a simpatia de veículos em sua cobertura. Entre 2003 e 2019, ao menos 200 órgãos de imprensa, entre emissoras de rádio e televisão e jornais, tiveram seus trabalhos interrompidos. E, de acordo com o levantamento do Instituto Prensa y Sociedad, que monitora as condições de trabalho da imprensa no país, houve ao menos 213 violações ao trabalho jornalístico apenas no primeiro semestre de 2021, entre elas dez prisões arbitrárias de repórteres. Pela primeira vez em 20 anos, o relatório da ONG Repórteres sem Fronteiras colocou o Brasil na zona vermelha, a mais restrita em termos de liberdade de imprensa, a mesma em que está a Venezuela. No relatório, no entanto, a ONG destaca que a situação venezuelana (em 148º lugar num ranking de 180 países) segue sendo pior do que a do Brasil (111ª posição). "O trabalho da imprensa brasileira tornou-se especialmente complexo desde que Jair Bolsonaro foi eleito presidente, em 2018. Insultos, difamação, estigmatização e humilhação de jornalistas passaram a ser a marca registrada do presidente brasileiro", afirma o relatório de 2021 da organização. As relações de Bolsonaro com a imprensa se revelam também por meio da maneira como o governo federal aloca seus recursos publicitários. Um relatório do Tribunal de Contas da União de 2020 mostrou que, sem demonstrar os critérios para as decisões, a gestão Bolsonaro cortou em 60% a verba destinada à propaganda federal na TV Globo, líder de audiência. Por outro lado, os repasses para SBT e TV Record, cuja linha editorial é considerada menos crítica ao governo, aumentaram em cerca de 25% para cada uma delas. Além disso, investigações da Polícia Federal e da Procuradoria-Geral da República sobre atos antidemocráticos apontaram que 12 canais no YouTube de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro receberam cerca de US$ 1,1 milhão em monetização dos vídeos. O valor, que vai de junho de 2018 a maio de 2020, corresponde a cerca de R$ 4,2 milhões em valores convertidos com o câmbio médio da época. Esses canais são conhecidos por disseminação de conteúdo falso e já sofreram diferentes sanções de plataformas como Youtube e Facebook. Ao menos 3 aspectos são centrais para entender os limites do uso do manual chavista por Bolsonaro: a popularidade presidencial, a quantidade de recursos disponíveis e a força das instituições desafiadas. "Quando Bolsonaro chega ao poder, chega com bem menos do que os mais de 60% dos votos que Chávez teve em sua primeira eleição. E também teve o caminho facilitado na vitória porque Lula foi impedido de concorrer. Então há, de saída, uma diferença no grau de popularidade deles", afirma Jorge Castañeda, da New York University. Chávez aproveitou o embalo das urnas e a insatisfação popular no país para lançar uma Constituinte, na qual 9 em cada 10 membros eram aliados a ele. Era o início do que o cientista político Luis Vicente Léon chamou de um processo de "colonização das instituições". O próprio Léon, porém, observa que a forte popularidade de Chávez nos anos iniciais do regime dispensou a necessidade de qualquer tipo de fraude eleitoral para que ele vencesse as eleições presidenciais de 2000, 2006 e 2012 e os pleitos legislativos de 2000, 2005 e 2010. Sua única derrota aconteceu em 2007, quando ele tentou aprovar por referendo popular um terceiro mandato. Dois anos mais tarde, o presidente refez a consulta e venceu. Mas, afinal, o que fez de Chávez um presidente tão popular a despeito de seus ataques a instituições democráticas? O período dele no poder coincide com uma alta histórica no preço do petróleo, base primordial da economia venezuelana e cuja receita se concentra na mão do Estado, já que o recurso é explorado por uma estatal. Chávez encaminhou a abundância de verba para a população mais pobre do país e de fato gerou impacto imediato na vida de milhões de pessoas. De acordo com o Instituto Nacional de Estatísticas, em 1999, 20,1% dos venezuelanos viviam na extrema pobreza. Em 2007, o índice havia caído para 9,5%. Suas políticas, no entanto, não eram estruturantes e quando o preço do barril de petróleo voltou a cair, a pobreza retornou com mais força do que antes ao país. De forma semelhante, Bolsonaro experimentou o incremento de popularidade que a transferência direta de renda pode trazer. O auxílio emergencial federal de R$ 600 durante a pandemia alavancou seus índices de popularidade a 37% em agosto, segundo o Datafolha (ante aos atuais 24%). Seis vezes maior que a economia da Venezuela, a do Brasil é também muito mais diversa, dinâmica e muito menos atrelada ao Estado. "Além disso, o governo enfrenta uma crise fiscal, o que reduz muito as possibilidades de gastos do governo", afirma Daniela Campello, da FGV. Justamente o Orçamento apertado forçou a redução e interrupção do auxílio, que Bolsonaro tenta relançar até o fim do ano como um substituto ao programa Bolsa Família. Agora, o valor seria de R$ 400 (hoje é de R$ 190) e o nome do programa seria Auxílio Brasil. Dada a falta de recurso público para fazer esse aumento, o ministro da Economia, Paulo Guedes, sugeriu que o governo estuda formas de não cumprir os pagamentos dos precatórios, dívidas do Estado chanceladas judicialmente, para bancar o programa, o que causou alarme nos mercados e derrubou a bolsa na semana passada. "É importante lembrar que Bolsonaro partiu de uma pauta bastante elitista, de austeridade fiscal, e chegou a ser contra o auxílio emergencial de R$ 500, até que se deu conta de que isso lhe trazia ganhos de popularidade. Ele tenta agora uma reedição disso, mas é muito difícil dada a situação da economia", afirma o cientista político Rafael Ioris, especialista em América Latina da Universidade do Colorado. Por fim, o Brasil possui instituições e uma oposição política consideradas mais sólidas do que as da Venezuela pelos especialistas. "Na Venezuela, o descrédito das instituições democráticas, da classe política, da elite empresarial entre 1999 e 2003 era muito maior do que hoje no Brasil. Logo, é mais difícil para Bolsonaro intervir nas regras do jogo", afirma Castañeda, para quem as tentativas de Bolsonaro de lançar descrédito sobre as urnas eletrônicas têm poucas chances de levar a algum resultado prático em 2022. No início de agosto, a Proposta de Emenda Constitucional do voto impresso, encampada por Bolsonaro, foi derrotada na comissão especial da Câmara onde era analisada. Ainda assim, deve ser levada ao plenário da Câmara, onde também se espera uma derrota. Will Grant, da BBC, também chama a atenção para a condição da oposição tanto no Brasil quanto na Venezuela. Em quase todo o período que esteve no poder, de 1999 a 2013, Chávez contou com maioria folgada na Assembleia Nacional, o equivalente ao Congresso brasileiro, e com controle sobre a Suprema Corte do país. O que não conseguiu fazer manipulando os outros dois Poderes, ele fez por meio de referendos. Bolsonaro, apesar de ter sido o presidente que mais liberou recursos para emendas parlamentares, segundo levantamento do jornal O Estado de S. Paulo, foi também o presidente que menos aprovou seus projetos no Congresso nos últimos 18 anos. No STF, a interlocução com os ministros foi interrompida após os insultos que o presidente lançou contra alguns membros da Corte. E enquanto na Venezuela, os partidos contrários a Chávez tiveram que lidar com a quase impossibilidade de se financiar, já que a maior parte dos recursos que a economia girava passavam diretamente pelo governo, no Brasil, essa questão não existe. O fundo eleitoral público de R$ 4 bilhões será distribuído entre os partidos para o pleito de 2022 e o principal beneficiário dos recursos é o PT, partido do principal adversário de Bolsonaro nas urnas, o ex-presidente Lula. Em forma de protesto contra as condições de competição política, a oposição venezuelana optou por boicotar eleições-chave, como ao Legislativo em 2005, o que na prática apenas facilitou a permanência de Chávez no poder. "Na Venezuela, Chávez passou a ser o próprio Estado. Ou os políticos e grupos de oposição da sociedade civil encontravam espaço político para operar dentro da revolução bolivariana, ou não havia espaço real fora dali. No caso brasileiro é diferente, Bolsonaro não tem o domínio das instituições e tem como antagonista um personagem forte, Lula. Em última instância, isso o impede de realmente ser capaz de assumir as rédeas do poder no Brasil por mais de dois mandatos", afirma Grant. Ioris, da Universidade do Colorado, vai mais longe. Para ele, a escalada de tensão do presidente brasileiro em relação às demais instituições por meio de ataques verborrágicos é um dos poucos recursos que sobram a Bolsonaro nesse momento. "Diferente de Chávez, o governo Bolsonaro sequer chega a ter uma agenda muito clara. Defende acabar com muitas coisas, mas não sabe bem o que colocar no lugar. Então escolhe questões pontuais pra defender. Devemos ver cada vez mais lives raivosas", aposta. Elas, no entanto, podem ter um efeito negativo para o próprio presidente. A live de duas horas em que defendeu o voto impresso e disseminou informação falsa sobre o sistema eleitoral renderam a Bolsonaro a abertura de inquéritos tanto pelo Tribunal Superior Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal. Se o Judiciário concluir que houve abuso de poder econômico e político e crime eleitoral, Bolsonaro poderá até mesmo ser barrado da disputa presidencial em 2022. "Há mais consciência dos perigos do populismo autoritário na América Latina, do que havia com Chávez, no começo dos anos 2000. Todos nós já vimos esse filme. Sabemos como isso termina. E essa consciência, tanto dentro quanto fora do Brasil, é certamente uma das diferenças mais importantes entre as situações dos países de Chávez e Bolsonaro", resume Jorge Castañeda, da New York University.
2022-10-11
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58124049
brasil
Brasileiro que desapareceu nos Alpes é dado como morto; o que se sabe sobre o caso
Um brasileiro de 35 anos que desapareceu nos Alpes suíços no fim de setembro não pôde ser encontrado até o momento e está sendo dado como morto. Henrique Cortez Pires de Campos passava férias no país desde o começo de setembro e sumiu na região de Lauterbrunnen, vilarejo no cantão de Berna conhecido por receber praticantes de esportes radicais. O esportista desapareceu após sair sozinho para fazer uma trilha conhecida por ser de alto risco, que envolve a travessia de fendas sobre geleiras. Ele informou à pousada onde estava hospedado que iria passar duas noites fora para fazer uma rota a pé em direção a um dos picos mais populares entre praticantes de base jump — na região, há uma formação rochosa apelidada de "o buraco". Henrique foi visto com vida pela última vez por dois alpinistas na trilha em direção à cabana "Rottal-Hütte" no dia 22 de setembro. Fim do Matérias recomendadas O paulista era praticante de base jump, modalidade que consiste em pular de grandes alturas com um traje especial, que permite planar no ar. O salto pode ser de prédios, antenas, pontes, montanhas ou penhascos e exige do esportista destreza para saber o momento e posição certa para pular, considerando riscos como a velocidade do vento e obstáculos no caminho. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Considerado praticante experiente do esporte, o brasileiro estava em boa forma física e se sentia à vontade em situações de perigo. Familiares que conversaram com a BBC News Brasil disseram acreditar firmemente que ele ainda viria a ser encontrado com vida, pois estava acostumado a desafios em condições inóspitas. Henrique é engenheiro naval e trabalhava embarcado nas plataformas de petróleo da Petrobras em alto-mar. O esportista já havia visitado o vilarejo de Lauterbrunnen outras vezes. A área, que é apelidada de "Vale da Morte", é um local onde muitos atletas já perderam a vida inesperadamente. Entre 2000 e 2021, mais de 60 pessoas morreram praticando base jump na região, segundo dados do site swissinfo.ch. Parentes de Henrique chegaram a viajar à Suíça para acompanhar as buscas, que se estenderam por vários dias, mas terminaram infrutíferas. O mau tempo não ajudou, fazendo com que os esforços de resgate fossem atrasados por causa da neve. Amigos do mundo todo se mobilizaram através de uma vaquinha virtual, levantando praticamente 150 mil reais para ajudar à família. Sem encontrar Henri, porém, o pai e o irmão deixaram o país alpino na segunda semana de outubro, após cederem amostras dos seus códigos genéticos para as autoridades suíças. Caso a polícia venha a encontrar algum corpo no futuro, o DNA dos familiares será utilizado na identificação. As investigações estão suspensas, pendentes até a descoberta de novos indícios. A proprietária do estabelecimento onde ele se hospedou disse à BBC News Brasil que se recorda de outras visitas. "Sim, ele já esteve hospedado conosco antes umas três ou quatro vezes" afirmou Elsbeth von Allmen-Müller, da pousada Gästehaus im Rohr. "Recebemos bastante brasileiros e gostamos muito deles, as turmas de viajantes costumam vir no verão [do Hemisfério Norte], em julho e agosto". De acordo com ela, o brasileiro já havia passado pela pousada nesta temporada e era conhecido e querido por outros praticantes do base jump. A Suíça é muito popular entre os esportistas que gostam de saltar de penhascos e montanhas por conta dos inúmeros picos rochosos dos Alpes. A formação rochosa famosa à qual Henrique se dirigia quando desapareceu é considerada perigosíssima. O desafio dela é saltar de um pico mais alto e, planando com destreza, atravessar durante o voo a estreita fenda entre duas rochas. "Ele me prometeu que não iria tentar pular, disse que queria apenas caminhar até lá para ver como era", contou Elsbeth. Segundo ela, o plano de Henrique era sair da pousada e seguir por uma longa trilha que levava do vilarejo à formação rochosa. Estima-se que ele deixou a pousada na quarta-feira (21/09) por volta das 7h da manhã. No caminho ele pernoitaria em chalés rústicos mais próximos ao topo. Deveria estar de volta depois de duas noites Na véspera da partida, na terça-feira à noite, ele chegou a comprar mantimentos para a caminhada no mercadinho local, conforme revelam registros do cartão de crédito. A família obteve em juízo o direto a quebra de sigilo do celular do brasileiro para saber a última localização dele, mas a informação não foi útil para avançar nas investigações. "Ele disse que voltaria na sexta-feira, mas como não apareceu, ficamos preocupados e alertamos as autoridades locais", conta Elsbeth. Buscas começaram a ser feitas em solo na sexta-feira, dia 23 de setembro. No dia seguinte, foram realizados voos sobre a região da trilha na montanha de Stechelberg. As buscas por terra, porém, não puderam ser completadas efetivamente, porque parte do trajeto é sobre uma geleira e só pode ser atravessado com bom tempo. Por e-mail, a polícia do cantão de Berna, onde fica Lauterbrunnen, informou à BBC News Brasil que realmente não foram encontrados vestígios que servissem de pistas concretas sobre o paradeiro dele. A BBC foi informada da conclusão das buscas por meio de um breve comunicado emitido por WhatsApp pelo pai de Henrique, no domingo, 11 de outubro. "Buscas encerradas. Não há mais nada a fazer. Creio que nosso Henri escolheu a montanha para descansar".
2022-10-11
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63056316
brasil
'Boicote internacional ao agro é risco e acabar com ilegalidades deve ser prioridade sob Lula ou Bolsonaro', diz Roberto Rodrigues
Ex-ministro da Agricultura de 2003 a 2006 no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e importante liderança do agronegócio, Roberto Rodrigues acompanha duas movimentações internacionais que podem ser prejudiciais ao setor agropecuário brasileiro. A primeira delas é a possibilidade de que, na COP-27 — a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2022, que será realizada de 6 a 18 de novembro no Egito — possa ser aprovado um acordo para impedir a compra de soja de áreas desmatadas do Cerrado brasileiro a partir de janeiro de 2025. A segunda é a proposta, aprovada em setembro pelo Parlamento Europeu, de um projeto que proíbe a entrada naquele mercado de commodities originários de áreas desmatadas após 31 de dezembro de 2019. O texto ainda precisa ser validado pelos 27 países da União Europeia. "O boicote [aos produtos agrícolas brasileiros] é um risco que pode ser implementado se nós não cuidarmos do que é essencial: acabar com ilegalidades. O desmatamento ilegal, incêndio criminoso, invasão de terra — tudo que for ilegal tem que ser coibido no país", diz Rodrigues, em entrevista à BBC News Brasil. Atualmente coordenador do Centro de Agronegócio na Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (EESP FGV), o ex-ministro se diz grato a Lula, mas elogia as políticas de Jair Bolsonaro (PL) para o setor agrícola. Ele diz que não vai declarar voto para o segundo turno e avalia que a democracia brasileira "não corre o menor risco". Fim do Matérias recomendadas Rodrigues tem defendido que o mundo vive uma transição inequívoca da economia convencional para a economia verde e a descarbonização. Questionado sobre as perspectivas para essas agendas sob um eventual governo Lula com um Congresso muito mais conservador do que em 2003, ou sob um segundo mandato de Jair Bolsonaro, ele afirma que a questão ambiental será inescapável. "Qualquer que seja o governo em janeiro, a questão ambiental tem que ser tratada com muita atenção, com muito zelo, sob pena de o país perder espaço por causa de uma imagem deturpada. Então acredito que as coisas vão acontecer qualquer que seja o governo." Para Rodrigues, são sete os principais desafios para o setor agropecuário no governo que se inicia em 2023. O primeiro é garantir infraestrutura logística para as regiões de fronteira agrícola no Centro-Oeste e Matopiba (região de cerrado dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), o que dependeria de investimentos privados e da realização de reformas estruturais para dar segurança aos investidores. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O segundo desafio, segundo o líder do agronegócio, é a abertura de mercados formais através de acordos comerciais bilaterais ou multilaterais, incluindo a venda não só de produtos, mas de tecnologia e conhecimento para a produção em países tropicais. Ainda na área comercial, ele defende a necessidade de se agregar valor às commodities brasileiras, o que depende da negociação em nível governamental, no âmbito da OMC (Organização Mundial do Comércio), para que a escala tributária seja mitigada, permitindo a venda de produtos de maior valor. O terceiro ponto, segundo Rodrigues, é o investimento em tecnologia. "Nenhum país pode avançar sem inovação tecnológica, sem investimentos vigorosos em pesquisa", diz o ex-ministro, destacando a importância dos órgãos federais e estaduais de pesquisa para a melhoria da produtividade e da qualidade da produção. A política de renda para o campo é a quarta prioridade, na visão do especialista, que defende o avanço do seguro rural. Segundo ele, isso estimularia a adoção de tecnologia no campo e a evolução do crédito privado ao setor, reduzindo a dependência de recursos públicos. Rodrigues defende ainda a evolução da defesa sanitária, através da autorregulação do setor privado; o apoio à organização privada de cooperativas; e a "embalagem" de todas essas medidas sob uma perspectiva de sustentabilidade, com o combate das ilegalidades. Questionado sobre como avalia a gestão do presidente Jair Bolsonaro com relação às políticas para o setor agrícola, Rodrigues elogia as gestões da ex-ministra Tereza Cristina e do atual ministro Marcos Montes. "Tereza Cristina é uma ministra maravilhosa, que está sendo sucedida por um outro ministro extraordinário, que é o Marcos Montes", diz o ex-ministro. Ele cita como medidas positivas da atual gestão o Plano ABC+, de políticas para a agricultura de baixo carbono; o crédito rural abundante; e a atuação firme do governo frente à escassez de fertilizantes no mercado, em decorrência da guerra entre Rússia e Ucrânia. "O governo correu para resolver o assunto e conseguiu um resultado importante, num ano complexo como foi esse. Então, eu faço uma avaliação positiva", afirma. Rodrigues discorda das críticas de pesquisadores da área de soberania alimentar, que consideram haver um desmonte nas políticas voltadas à agricultura familiar nos últimos anos, com a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário e o desfinanciamento de programas como o de Aquisição de Alimentos, de Cisternas e de Assistência Técnica Rural. "Acho que houve atenção igual para todo mundo e o processo de desenvolvimento da agricultura familiar tem o mesmo empenho da atividade de exportação, só que a segunda aparece mais por razões óbvias", diz, argumentando ainda que a distribuição de títulos de propriedade sob a atual gestão foi maior do que em outros governos. Questionado quanto aos erros e acertos dos governos petistas em relação ao setor agro, Rodrigues cita seus feitos como ministro durante o primeiro governo Lula. Lembra que conseguiu forte apoio da Frente Parlamentar da Agropecuária, conseguindo com esse apoio aprovar a Lei do Seguro Rural e a lei que dispôs sobre títulos do agronegócio, visando reduzir a dependência do setor com relação ao crédito público. Ele cita ainda a aprovação da Lei de Biossegurança; a reforma da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento); o Programa de Fortalecimento e Crescimento da Embrapa (PAC Embrapa); a criação de 23 câmaras setoriais por cadeias produtivas; a criação de uma rede de adidos agrícolas em diversas embaixadas brasileiras; e o desenvolvimento do biodiesel. Em diversas de suas falas recentes, quando questionado sobre a resistência do agronegócio ao PT, o ex-presidente Lula tem destacado que, quando assumiu, as exportações agrícolas brasileiras somavam pouco menos de US$ 25 bilhões, chegando a US$ 76 bilhões ao fim do seu segundo mandato em 2010. As exportações continuariam crescendo nos anos seguinte até superarem os US$ 100 bilhões nos últimos anos. Questionado sobre por que, apesar do crescimento da agropecuária nas gestões petistas, há tanta resistência ao partido no setor até hoje, Rodrigues cita dois motivos principais. "Não existe resistência, existe preocupação com alguns fatos. Por exemplo, algumas informações que correm de que haverá tributação sobre exportações agrícolas, o que seria um erro", afirma. "Também a questão da garantia da propriedade privada, com as invasões de terra, assusta um pouco o produtor rural. São preocupações com relação a temas de campanha." Rodrigues reforça que, por ter sido ministro de Lula, jamais "cuspirá em prato que comeu". "Não seria ético, eu sou grato pela oportunidade que tive de fazer coisas boas para o setor que mais amo. Então não vou criticar ninguém, nem defender ninguém. Não me force a fazer isso." Para o ex-ministro, a transição para economia verde é um tema "irrecorrível". "O mundo caminha para essa economia verde e nós vamos caminhar também, não há o que discutir em relação a isso", afirma, reforçando a importância de uma estrutura oficial de crédito e de regulação que permita essas pautas — como o mercado de créditos de carbono — avançarem. "São temas que terão que ser resolvidos e fatalmente serão a base da agricultura de qualquer país do mundo que se queira competitivo. A sustentabilidade hoje é condição prévia para a competitividade, então nós vamos caminhar para isso, não tem outra alternativa, qualquer governo, qualquer Congresso, qualquer estrutura tem que caminhar para isso." Rodrigues avalia que o tema ambiental é uma questão central da humanidade no século 21 e será cada vez mais relevante. "O produtor rural também sabe disso, que o patrimônio dele, que é a terra dele, tem que ser cuidada ambientalmente, se não ele acaba perdendo patrimônio", afirma. "Agora, o que não pode é essa questão central, relevante, determinante para toda a humanidade, ser usada como barreira não tarifária ao comércio. Isso é uma hipocrisia."
2022-10-10
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63209410
brasil
Vídeo, Jornalista brasileiro da BBC é surpreendido ao vivo na TV por explosões em KievDuration, 2,26
O jornalista brasileiro Hugo Bachega, correspondente da BBC em Kiev, capital da Ucrânia, fazia uma entrada ao vivo na TV quando várias explosões atingiram a cidade na manhã desta segunda-feira (10/10). Ele e equipe precisaram encontrar proteção quando mísseis russos explodiram no início da manhã. O bombardeio é uma aparente retaliação russa à explosão de ponte que leva à península da Crimeia, que pertencia à Ucrânia e foi anexada pela Rússia em 2014. O governo de Vladimir Putin acusa a Ucrânia – os ucranianos, porém, não reivindicaram a autoria do ataque à ponte. Várias cidades ucranianas foram atacadas nesta segunda. Passado o susto, a BBC restabeleceu contato com Bachega. Neste vídeo, ele conta à BBC News Brasil o que aconteceu e por que foi surpreendente.
2022-10-10
https://www.bbc.com/portuguese/media-63204181
brasil
Proposta de ampliar vagas no Supremo é 'saudosismo' da ditadura, diz ex-presidente do STF que declarou voto em Bolsonaro
O ministro aposentado e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello, que declarou voto em Jair Bolsonaro (PL) em agosto, descreveu como "saudosismo puro" e "arroubo de retórica que não merece o endosso dos homens de bem" a proposta do atual presidente de ampliar o número de integrantes da suprema corte do país se reeleito. "Saudosismo puro. No regime de exceção houve o aumento para 16 (AI-2). Logo a seguir a razão imperou. Arroubo de retórica que não merece o endosso dos homens de bem. O meio justifica o fim e não o inverso", afirmou Mello à BBC News Brasil, ao ser questionado sobre a polêmica proposição de Bolsonaro. Ele disse se considerar um "arauto da resistência democrática e republicana". Em entrevista ao portal de notícias Uol em agosto, Mello disse que votaria em Bolsonaro contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em um eventual segundo turno das eleições em outubro. Na ocasião, ele afirmou não ser "bolsonarista", mas, em sua opinião, o atual presidente buscou "dias melhores". Indicado para compor o STF em 1990 pelo então presidente Fernando Collor de Mello, de quem é primo, Marco Aurélio Mello se aposentou da corte em julho do ano passado, quando atingiu a idade limite para a aposentadoria compulsória, de 75 anos. Ele foi substituído pelo jurista, magistrado e pastor presbiteriano André Mendonça, indicado por Bolsonaro. Mendonça havia sido advogado-geral da União e ministro da Justiça e Segurança Pública. A proposta de ampliar o número de ministros do STF não é nova na política brasileira. Fim do Matérias recomendadas Durante a ditadura militar (1964-1985), por meio do Ato Institucional nº 02 (AI-2), de 27 de outubro de 1965, a composição da Suprema Corte passou de 11 para 16 integrantes — a Constituição de 24 de janeiro de 1967 confirmou esse acréscimo. "Já chegou essa proposta para mim e eu falei que só discuto depois das eleições. Eu acho que o Supremo exerce um ativismo judicial que é ruim para o Brasil todo. O próprio Alexandre de Moraes instaura, ignora Ministério Público, ouve, investiga e condena. Nós temos aqui uma pessoa dentro do Supremo que tem todos os sintomas de um ditador. Eu fico imaginando o Alexandre de Moraes na minha cadeira. Como é que estaria o Brasil hoje em dia?", disse Bolsonaro em entrevista à revista Veja. Ainda durante a ditadura militar, com base no Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, foram aposentados, em 16 de janeiro de 1969, três ministros do STF: Vítor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva. O presidente da Corte, Gonçalves de Oliveira, renunciou em protesto. No mesmo ato, foi aposentado o general Pery Bevilacqua, ministro do Superior Tribunal Militar (STM) e considerado um liberal. Além dos magistrados, foram cassados 32 deputados e dois senadores. Em 31 de dezembro de 1968, já haviam sido cassados, com base no AI-5, 11 políticos, incluindo o ex-governador Carlos Lacerda, da antiga UDN, um dos articuladores da derrubada do então presidente João Goulart (1961-1964). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em fevereiro de 1969, após as cassações, o então presidente Artur da Costa e Silva editou o Ato Institucional nº 6, retornando ao formato de 11 ocupantes, dos quais dez tinham sido indicados depois do início da ditadura militar. O 11°, Luiz Otávio Galloti, era leal aos militares e tornou-se presidente do STF. Durante o regime militar, a Corte nunca deixou de funcionar, mas houve um enfraquecimento do STF. "Apesar da pressão constante dos militares sobre a Corte — inclusive na nomeação de novos ministros — não era interessante ao regime chegar ao ponto de fechá-lo, porque isso configuraria a ditadura na sua forma mais primitiva. Por isso, o Supremo permaneceu aberto, mas sob a extrema ingerência dos militares", diz o site do STF. Além de André Mendonça, Bolsonaro indicou outro ministro para a corte, Kassio Nunes Marques, para o lugar de Celso de Mello, que também se aposentou. O próximo presidente eleito, Bolsonaro ou Luiz Inácio Lula da Silva, deverá escolher mais dois ministros, uma vez que Rosa Weber e Ricardo Lewandowski, indicados em governos petistas, se aposentarão.
2022-10-10
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63202816
brasil
Esquerda precisa focar em emprego contra 'identitarismo de maioria' de Bolsonaro, diz pastor
O pastor Alexandre Gonçalves, um dos fundadores do Movimento Cristãos Trabalhistas, ligado ao PDT, diz que "emprego, saúde e trabalho têm que ser o foco para a esquerda". "Porque se for entrar com a luta identitária, o Bolsonaro ganha com o identitarismo de maioria." Ele se refere à substancial fatia da população brasileira que é evangélica e conservadora e se reúne em torno do ideal de "defesa da família" — associado a plataformas contra o aborto e o casamento gay. Projeção do doutor e pesquisador em demografia José Eustáquio Alves aponta que os evangélicos serão o maior grupo religioso do Brasil em dez anos. Gonçalves considera que atualmente há uma ênfase excessiva do que ele chama de "nova esquerda" na questão identitária (luta contra a discriminação racial, feminista e LGBT) em lugar de temas sociais, ligados a mais garantias e bem estar dos trabalhadores. Para o pastor, que aconselhou o candidato derrotado Ciro Gomes (PDT) no primeiro turno, isso, somado a uma atitude que ele chama de "condescendente" da esquerda em relação aos evangélicos, leva os neopentecostais conservadores a cerrar fileiras pela candidatura de Jair Bolsonaro (PL). Fim do Matérias recomendadas Gonçalves decidiu declarar voto em Luiz Inácio Lula da Silva (PT) por sua oposição ao atual presidente, que considera o introdutor de uma "seita pseudocristã chamada 'bolsonarismo dentro da igreja'". "Nós estamos indo para o caminho de uma ex-nação." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Carioca de 52 anos, ele é pastor da Igreja de Deus, uma denominação pentecostal, fundada em 1836 nos Estados Unidos, "conservadora e tradicional" e "que de 2014 para cá vem tendo umas ideias muito erradas em relação à questão política". "Mesmo com todas as dificuldades, problemas e as nossas contradições, me mantenho ali porque ainda acredito que é um ambiente que a gente ainda pode de alguma forma viver sem que fique insalubre." Em meio a pressões na igreja, Gonçalves deixou de ser pastor em tempo integral e desde 2004 é concursado da Polícia Rodoviária Federal. Mora hoje em Santa Catarina. O Movimento Cristãos Trabalhistas, que ele ajudou a fundar no final de 2017 e do qual foi presidente, inicialmente era formado apenas por evangélicos de igrejas como Assembleia de Deus, Presbiteriana, Batista e Quadrangular, e mais tarde agregou católicos. O grupo ainda vai se reunir para definir a posição conjunta sobre o segundo turno — a declaração de voto em Lula é um anúncio pessoal de Gonçalves. Veja abaixo os principais trechos da entrevista com o pastor: BBC News Brasil - Por que Lula e a esquerda têm dificuldades de obter o voto evangélico? Pastor Alexandre Gonçalves - Se você pergunta para os evangélicos se eles querem ter saúde e escola públicas de qualidade, um transporte público ágil para não ficar 3 horas no trânsito e direitos trabalhistas como férias, eles vão dizer que sim. É dessa forma que a gente consegue se conectar com as igrejas. Se você inicia um diálogo com temas transversais, ainda que eles tenham a sua importância, mas que são dominados por um identitarismo de minoria, isso acaba fazendo surgir um identitarismo de maioria. Isso faz muito bem à direita. A direita ganha nesse campo. A prioridade hoje da chamada nova esquerda, que a gente acredita que é oriunda de uma tendência norte-americana, é de defesa de um identitarismo que entendemos ser raso e dissociado da luta universal dos trabalhadores em prol de sua emancipação. E se você quer impor através do Estado conceitos de família, seja o conceito cristão tradicional ou o conceito liberal da esquerda, você vai causar conflito. Emprego, saúde e trabalho têm que ser o foco para a esquerda ganhar alguma eleição majoritária. Porque se for entrar com a luta identitária, o Bolsonaro ganha com o identitarismo de maioria. É só saber matemática. BBC News Brasil - Quais são os problemas de comunicação da esquerda com essa fatia da população? Gonçalves - Se uma pessoa fala qualquer termo que não está de acordo com a linguagem da nova esquerda, o que acontece com essa pessoa? Ela não é ensinada: ela é massacrada. Não há uma pedagogia para essa pessoa. Ela não é, com amor, induzida a mudar o seu modo de pensar, ela é destruída. Querem mudar uma estrutura brutal de opressão mudando a linguagem, ou seja, de fora para dentro. Eles acham que alterando a forma vão conseguir alterar o conteúdo. Primeiro, você tem que mexer lá dentro, no conteúdo. A forma vem depois. Isso é ensinamento de Jesus: "Lave o copo por dentro". Ou seja, primeiro é ali dentro, tem que mexer nessa estrutura. E como mexe nessas estruturas? Justamente mexendo na economia. A esquerda fica mais preocupada em falar "vamos legalizar o aborto". Não estou dizendo que essas pautas não sejam importantes. Elas têm a sua importância. Mas não vão resolver o problema estrutural. Qual é o motivo que faz as pessoas abortarem? Qual o motivo que faz com que pessoas transsexuais sejam discriminadas? BBC News Brasil - Mas por que denúncias de corrupção relacionadas ao governo e à família Bolsonaro, além de declarações do presidente que afrontam valores das igrejas cristãs, como a defesa do aborto feita no passado, não afetam o apoio majoritário dos evangélicos a ele? Gonçalves - Aí são dois problemas: um na esquerda e outro dentro da igreja. No Brasil, entre os anos 1950 e 1960, entraram duas teologias: a do domínio e a da prosperidade, uma com ligação à outra. A do domínio pregava que o reino de Deus será estabelecido aqui na Terra pela igreja. Daí o nome. E como é esse domínio? A igreja tem que exercer influência nas principais áreas da sociedade: política, economia, cultura, arte, tudo. E aí uma grande parte das igrejas, principalmente as neopentecostais, tomaram essa teologia podre, que veio para cá importada dos EUA, e colocaram na vida política. Vários falam para mim: "Bolsonaro não é cristão, a gente sabe que ele não é. A gente sabe que ele tem um monte de erros, mas ele defende os valores cristãos". Bom, mas você não vota num governante para que ele imponha princípios cristãos à sociedade. Você vota no governante para que ele possa administrar o bem público de forma que todos possam se beneficiar. Isso se inverteu na cabeça de grande parte dos evangélicos, principalmente por causa do aumento das igrejas mercantilistas massivas. E a igreja evangélica tem o olhar reducionista sobre a esquerda: diz que todo mundo é comunista e não consegue separar entre sociais-democratas, trabalhistas etc. Reduz a esquerda a casamento gay, aborto e maconha. A esquerda, por sua vez, se sente superior, tem um olhar condescendente com os evangélicos. BBC News Brasil - Há como a esquerda usar uma linguagem, usando as palavras do senhor, "menos condescendente" e defender temas como o combate à violência homofóbica e a legalização do aborto? Gonçalves - Não numa eleição majoritária. Candidatos a presidente, a governador, não tem que entrar nessas pautas. Quem tem que entrar, quem vai entrar, são os candidatos a cargos proporcionais. É esse o ponto. Até porque o presidente não pode fazer nada sobre isso. Presidente não pode legalizar o aborto. Isso é tarefa do Congresso Nacional. Um candidato a presidente tem que fugir dessas cascas de banana. Numa campanha majoritária você não quer só o voto da esquerda, você quer o voto da maioria da população. Nós temos um Brasil de interior com muita gente que não tem a mentalidade das grandes cidades. E mesmo dentro das grandes cidades, nas periferias, há pessoas com um pensamento muito diferente do que se vê nas novelas, nos filmes, na arte… e eles são brasileiros. O caminho é não falar e deixar isso para as representações legislativas. Houve eleição de representantes transsexuais para a Câmara Federal. Essas pessoas terão que levar debates, por exemplo, sobre se o SUS [Sistema Único de Saúde] poderá bancar cirurgias de mudança de sexo, fazer projetos de lei e, dentro da democracia do país, ou seja, no Congresso Nacional, levar isso à votação, que será aprovado ou não. BBC News Brasil - Na última sexta-feira (7/10), Lula afirmou ser contra o aborto e que a discussão sobre o assunto é "papel do Legislativo". O que achou do anúncio? Gonçalves - Eu acho que é a declaração correta. Ele falou aquilo que ele pensa. Com toda certeza se outra pessoa declarasse isso seria cancelada para o resto da vida na internet. Mas como é o Lula não tem problema, ele pode falar. BBC News Brasil - Qual é a visão do senhor como pastor sobre o casamento gay e a comunidade transsexual? Gonçalves - Nós temos uma posição clara no nosso movimento dos Cristãos Trabalhistas que não somos contra a união civil de pessoas do mesmo sexo e a existência de qualquer pessoa. Isso são fundamentos do Estado laico. Não somos contra que possam estabelecer seus direitos previdenciários, de plano de saúde, tudo. O que nós nos colocamos contra é uma imposição para que, dentro das igrejas, pastores sejam obrigados a efetuar o casamento religioso de pessoas do mesmo sexo. Eu acho que aí deve ser de acordo com a consciência de cada pastor. Tem igrejas que fazem e tem igrejas que não fazem. É uma questão teológica, doutrinária, que diz respeito à liturgia dentro de cada igreja, e elas devem ter essa independência, que é um pressuposto do estado laico. As pessoas num estado laico são livres para o que anteriormente se via como escolha e hoje pode ter uma força biológica. Isso não é algo que a igreja tenha que se intrometer. Essas pessoas têm todo o direito de existir e ter a sua plena cidadania. Dentro do movimento a gente tem bastante respeito. BBC News Brasil - Como o senhor vai se posicionar no segundo turno? Gonçalves - O nosso movimento está para se reunir, mas a minha posição pessoal é de voto silente no Lula. E as minhas razões não são de cunho econômico ou social porque eu entendo que Lula e Bolsonaro têm o mesmo modelo. É por conta de que, embora eles causem mal ao país de maneiras diferentes, Bolsonaro introduziu o que a gente chama de uma seita pseudocristã chamada "bolsonarismo dentro da igreja". É um mal que ele causa à igreja, muito maior do que o mal que, de maneira abstrata, Lula poderia causar. O mal do Bolsonaro é concreto porque tem entrado na estrutura da igreja usando símbolos cristãos em nome do poder. Não há como não me posicionar contra ele. E o que tem hoje contra ele é o Lula. Então, a minha posição é o voto em Lula.
2022-10-10
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63165499
brasil
Cupulate, o 'primo' do chocolate que pode ajudar no desenvolvimento da Amazônia, segundo pesquisadores
A barra se quebra com facilidade entre os dedos, sem aquele estalo que ouvimos quando partimos um chocolate. Na boca, os pedaços se dissolvem mais rapidamente, e sua textura é incrivelmente aveludada. A aparência, o aroma e o sabor lembram chocolate, mas leves notas cítricas, amendoadas e amadeiradas, e um gosto distinto, indefinível, confundem o paladar. Estamos falando do cupulate, um "primo" do chocolate que não contém cacau. É feito com a semente da fruta amazônica cupuaçu (Theobroma grandiflorum, na nomenclatura científica), que pertence ao mesmo gênero que o cacau (Theobroma cacao). Ao leitor, uma dica: o cupulate não deve ser confundido com bombons feitos de cacau e cupuaçu vendidos há algumas décadas em supermercados pelo Brasil afora. O legítimo cupulate é um produto que muitos brasileiros ainda desconhecem mas que, na opinião de pesquisadores, pode cumprir um papel importante no desenvolvimento da floresta e contribuir para a economia do Brasil. Para isso, dizem, precisa vencer um desafio: encontrar uma identidade própria, distante do primo famoso e bem sucedido. Duas marcas de cupulate se destacam hoje no Brasil. A amazônica De Mendes, que desenvolveu seu cupulate a partir de uma receita tradicional usada por mulheres de uma comunidade agroextrativista do Pará. E a baiana Amma, que foi pioneira e comercializa seu cupulate orgânico há quase uma década. Fim do Matérias recomendadas Ambas entraram no mercado oferecendo, inicialmente, chocolates artesanais feitos com cacau fino, de altíssima qualidade. O dono da Amma, Diego Badaró, de 41 anos, pertence à quinta geração de uma família de fazendeiros de cacau que, em 1989, tiveram suas lavouras devastadas por um fungo. Ele recuperou a saúde das plantações seguindo as práticas do suíço Ernst Gotsch, especialista em regeneração de terras degradadas. E começou a vender sua linha de chocolates finos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Um dia, se encantou com o cupuaçu. "Fui visitar uma fazenda de cupuaçu, vi os grãos e fiquei muito interessado, curioso", conta Badaró em entrevista à BBC News Brasil. A árvore do cupuaçu, o cupuaçuzeiro, pode chegar a 15 metros de altura. Seu fruto pode alcançar 25 cm de comprimento e entre 10 e 13 cm de diâmetro. Rico em vitamina C, vitaminas do complexo B e sais minerais, o cupuaçu é muito apreciado pelos amazônicos, que o consomem nas formas mais variadas, como sucos, cremes, sorvetes, licores e geleias. Sua popularidade fora da Amazônia, no entanto, contrasta muito com a de duas outras frutas nativas da floresta - o cacau, estrela consagrada, e o açaí (Euterpe oleracea Mart), em ascensão meteórica. Badaró conta que resolveu fazer uma experiência: usar as sementes da fruta para criar um alimento análogo ao chocolate. "Decidi fermentar os grãos e secar, como fazemos com o cacau. Não ficou muito interessante", relembra. Mas ele insistiu. "Resolvi testar novamente, já com fábrica em Salvador. E percebi que a fermentação do cupuaçu era mais longa. É o mesmo processo, só que leva mais tempo do que o do cacau." Uma barra de cupulate não deve deixar ninguém acordado à noite. Ele não contém cafeína nem teobromina, estimulantes naturais presentes no chocolate. E sua textura cremosa se deve à composição da semente da fruta, explica Badaró. "O grão do cacau tem 50% de sólidos e 50% de óleo. O do cupuaçu é 80% óleo, tem poucos sólidos, então dá essa textura. É incrível, não?", comenta. Os cupulates da Amma e da De Mendes são do tipo meio amargo, ou seja, contêm somente semente de cupuaçu e açúcar mascavo. Nascido e criado na Amazônia, o macapaense César de Mendes, de 59 anos, conhecia bem o cupuaçu e já tinha provado cupulate, mas conta que não via muita graça naquilo. Ele ressalta, inclusive, que a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) desenvolveu e patenteou o cupulate na década de 1980. "O nosso existe há dois anos. Eu não coloquei pra rodar antes porque não estava satisfeito com o resultado. Tinha provado o da Embrapa, mas eu não gostava." Especialista em engenharia de alimentos, Mendes trabalhou como consultor no ramo do cacau antes de abrir sua própria fábrica. A De Mendes faz chocolates à base de cacau nativo da Amazônia, colhido por comunidades da floresta em regiões, muitas vezes, isoladas. Isso talvez explique a visão crítica que César tinha sobre o cupulate. Para ele, era como se faltasse uma personalidade própria a esse primo do chocolate. "Você coloca (um produto como esse) no mercado, e as pessoas tendem a comparar com o chocolate", explica. "Então, não tinha estímulo nenhum para fazer." Uma xícara de uma bebida saborosa tomada à sombra de uma árvore nas imediações do rio Tapajós, no Pará, fez Mendes mudar de opinião. Ele conta que provou a bebida quando visitava a associação de mulheres agroextrativistas Amabela, no município de Belterra. "Era cupulate", diz. "Tomei numa xícara e gostei, como nunca tinha gostado antes." Mendes conta que perguntou às mulheres se elas concordariam em compartilhar com ele o processo de fabricação - um conhecimento transmitido entre gerações na comunidade. Com a permissão do grupo, testou a receita em casa."Gostei muito. Pensei, 'está na hora de lançar uma barra de cupulate'." Ele diz que o cupulate da De Mendes tem um sabor único. Tão gostoso que, depois de prová-lo, muitos clientes desistem de comprar chocolate e encomendam apenas cupulate. Mas gostoso como? "Pra mim, é fácil porque quem nasce na Amazônia entende esse gosto", ele responde. "Mas, quando vou falar com uma pessoa de fora, tenho que dar referências. Por exemplo, quando você mastiga, sente um perfume muito característico do cupuaçu. E, no sabor, percebe o azedinho, a lembrança da fruta, da polpa da fruta." Mas quem ficou com vontade vai ter um certo trabalho para provar. Os cupulates da De Mendes e da Amma são vendidos principalmente nos sites das marcas. Também podem ser encontrados em algumas lojas de produtos orgânicos e em supermercados independentes, mas é inegável que a distribuição ainda pode ser melhor. Na década entre janeiro de 2011 e dezembro de 2021, as exportações de açaí pelo Estado do Pará (responsável por 94% do total exportado pelo Brasil) cresceram quase 150 vezes (14.380%), segundo dados da Associação Brasileira de Produtores Exportadores de Frutas e Derivados, Abrafrutas. Ainda segundo a entidade, a quantidade exportada subiu de 41 toneladas em 2011 para 5.937 toneladas em 2021. Em 2020, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o país produziu 1.478.168 toneladas de açaí, com rendimento à economia brasileira de R$ 4,75 bilhões. Dados do instituto para 2017 (os mais recentes disponíveis) mostram que, naquele ano, a produção de cupuaçu foi de 21.240 toneladas, com um faturamento de R$ 54,82 milhões. Os dados são de anos diferentes, o que dificulta comparações. Além disso, os pesquisadores enfatizam que os números variam muito de ano para ano. Ainda assim, a diferença no desempenho das duas frutas é imensa. Será que o cupulate poderia mudar o destino do cupuaçu para fazer dele mais uma estrela da Amazônia? Quase uma década após ter lançado o seu cupulate, Diego Badaró, da Amma, diz não ter dúvidas sobre a viabilidade do produto. "Já está há nove anos no mercado, já se provou." Aliás, bem antes de Badaró e Mendes investirem no cupulate, outros já haviam identificado o potencial comercial do produto - inclusive no exterior do país, e nem sempre de forma legítima. Na década de 2000, o cupuaçu esteve no centro de uma batalha judicial internacional envolvendo a empresa japonesa Asahi Foods e o governo do Brasil. Em um caso clássico de biopirataria, a empresa japonesa patenteou as marcas "Cupuaçu" e "Cupulate". O caso resultou na campanha "O cupuaçu é nosso", e as patentes foram revogadas. Mas o sucesso do cupulate no mercado não interessa apenas a empresários. O cupuaçu é visto por um grupo de cientistas brasileiros como um produto com grande potencial de promover o desenvolvimento econômico da Amazônia para que a floresta em pé gere riquezas para o Brasil. O caminho para isso, dizem, seria aliar os saberes da floresta (como é o caso, por exemplo, da receita de cupulate das mulheres da Amabela) a tecnologias de ponta (para permitir que os próprios produtores façam o beneficiamento da fruta, agregando valor ao produto). Finalmente dando suporte a tudo isso, políticas governamentais. Mendes conta que foi convidado pelo climatologista Carlos Nobre, líder do grupo de cientistas, a colaborar com esse plano, batizado de Amazônia 4.0. Ele explica que foi chamado por ser um especialista em cacau. "Conheço a cadeia, conheço as comunidades, produzo. Conheço a floresta", diz. "Por isso me chamaram." Mas o cupulate teria o mesmo potencial comercial que o chocolate? "O chocolate é um produto que tem uma cultura de consumo em massa de cem anos. É um sabor consagrado no mundo todo. Você vai contrastar (o chocolate) com um outro produto, é delicado de fazer uma projeção", responde. "Vejo potencial. Mas depende da forma como (o cupulate) vai ser entregue para o mundo. Se for feita essa aproximação com o chocolate, vai ser muito difícil evoluir."
2022-10-09
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62665457
brasil
As ideias de Simone Tebet que Lula prometeu pôr em prática
Em 5 de outubro, três dias depois de ter terminado a disputa à presidência em terceiro lugar, com 4,16% dos votos, a senadora Simone Tebet (MDB), declarou apoio a Luiz Inácio Lula da Silva para o segundo turno, que acontecerá em 30 de outubro. "Meu apoio não é por adesão. Meu apoio é por um Brasil que sonho ser de todos, inclusivo, generoso, sem fome e sem miséria, com educação e saúde de qualidade, com desenvolvimento sustentável", disse Tebet em transmissão exibida ao vivo em suas redes sociais e também em carta disponibilizada em seu site. "Depositarei nele [Lula] meu voto, porque reconheço o compromisso de Lula com a democracia e a Constituição. O que não reconheço no atual presidente (Jair Bolsonaro, candidato à reeleição pelo PL)", afirmou. Para concretizar o apoio, Tebet colocou como condição a adesão do PT e de Lula a cinco propostas dela, considerando a necessidade de haver "responsabilidade fiscal como meio de alcançar o social". Em seu discurso, Tebet destacou as ideias: Lula respondeu às propostas afirmando que são "completamente plausíveis" e disse desejar que a senadora participe de sua agenda de campanha, viajando com ele para diferentes partes do Brasil na próxima semana. Fim do Matérias recomendadas O ex-presidente enfatizou que Tebet se tornou um nome nacional, crescendo muito durante a campanha à Presidência. O aceno a uma possível relação mais longeva fez com que analistas considerassem que a senadora pode ganhar um cargo de ministra caso Lula seja eleito, mas até o momento, não há nada anunciado. Tebet e Lula fizeram sua primeira aparição pública juntos na tarde desta sexta-feira (7/10). Ao jornal Folha de S.Paulo, a agora aliada de Lula e da Coligação Brasil da Esperança afirmou que o "erro fatal" de Lula, que o impediu de vencer no primeiro turno, foi não ter detalhado seu plano de governo e ter apenas focado seus feitos do passado. Agora, ela espera que esse erro seja corrigido. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Simone Tebet somou quase cinco milhões de votos, uma fatia nada desprezível do eleitorado, sobretudo em uma disputa tão polarizada quanto a atual. A diferença entre Lula e Bolsonaro no primeiro turno, vale lembrar, foi de aproximadamente seis milhões de votos. Na avaliação do cientista político Creomar de Souza, fundador da consultoria política Dharma, Lula conseguiu romper uma barreira ideológica ao conseguir apoios de figuras consideradas da centro-direita. "Nomes como Simone Tebet e Fernando Henrique Cardoso, que não votaram no PT, isso é uma novidade no quadro político. Já os apoios que o Bolsonaro recebeu até agora são mais do mesmo. Não há ninguém que entrou no palanque que possamos dizer 'esse eu não esperava'." Mas o desafio para Lula, na análise de Creomar de Souza, é aumentar a taxa de transferência dos votos que Tebet recebeu para o candidato do PT — já que parte desse eleitorado tende a votar nulo ou a até a migrar sua escolha para Bolsonaro. "A resposta para isso é quanto ela vai se engajar na campanha, o quão grande será seu poder de convencimento com o seu eleitor", afirma.
2022-10-07
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63179263
brasil
Como falta de medicamentos no SUS empurra 10 milhões de brasileiros à pobreza por ano
Mais de 10 milhões de brasileiros caem na pobreza por ano devido a gastos com saúde, segundo estudo do Banco Mundial. Os medicamentos são o maior peso nesta despesa, representando 84% do dispêndio com saúde feito do próprio bolso pelas famílias mais pobres do país. Entre 2013 e 2019, a proporção de usuários do SUS (Sistema Único de Saúde) que não conseguiram nenhum medicamento no serviço público de saúde aumentou 7,8 pontos percentuais, para 44,2%. Estes problemas podem se agravar a partir de 2023, alertam os pesquisadores, diante do corte pelo governo federal de 59% no orçamento do Farmácia Popular, programa que atende mais de 21 milhões de brasileiros, com remédios gratuitos ou a baixos preços. Fim do Matérias recomendadas Após a repercussão negativa às vésperas da eleição, o governo federal indicou a intenção de recompor o orçamento do Farmácia Popular para 2023 e incorporou cinco novos medicamentos ao programa. "Sem acesso a medicamentos, há primeiro um impacto econômico para a renda da população, que precisa gastar mais dinheiro. Isso gera empobrecimento, o que piora a situação de saúde", observa Adriano Massuda, médico sanitarista, professor da FGV e um dos autores do estudo que mostrou a queda no acesso a medicamentos através do SUS entre 2013 e 2019. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Do ponto de vista sanitário, pode haver um agravamento dos problemas de saúde, gerando internações, que representam uma despesa adicional ao SUS. Também gera um aumento de mortes que poderiam ser prevenidas. É um efeito cascata", diz o membro do FGV-Saúde. Além da crescente dificuldade de acesso a remédios no SUS, o país também enfrentou este ano falta de medicamentos nos hospitais e farmácias, e de insumos na indústria farmacêutica. Levantamento feito em julho pelo CRF-SP (Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo) mostrou que, naquele momento, 98% dos estabelecimentos farmacêuticos consultados enfrentavam dificuldade de abastecimento, com medicamentos básicos como amoxicilina, azitromicina, dipirona, ibuprofeno e paracetamol entre os que estavam em falta. Segundo o CRF-SP, o problema foi causado por instabilidades nas cadeias farmacêuticas, devido aos lockdowns na China decorrentes da covid-19 e à guerra da Ucrânia, e o abastecimento já tem se normalizado desde então. Para o conselho, porém, a situação revela a necessidade de o país investir na sua indústria farmacêutica, reduzindo a dependência de importações. Procurado pela BBC News Brasil, o Ministério da Saúde não respondeu a pedido de posicionamento. A POF é uma pesquisa que mapeia a composição do gasto das famílias. Ela é atualizada a cada seis ou sete anos pelo IBGE e é usada, por exemplo, como referência para a cesta de consumo do IPCA e INPC, os índices oficiais de inflação do país. O estudo do Banco Mundial usa a POF mais recente. Excluindo despesas com planos de saúde privados, o gasto com saúde consome em média 10,5% do orçamento das famílias — chegando a 11,6% para as famílias mais pobres, comparado a 7,7% para as famílias mais ricas. "Os mais ricos gastam mais com plano de saúde e os mais pobres, mais com remédio", observa Edson Correia Araújo, economista sênior do Banco Mundial e um dos autores do estudo, ao lado de Bernardo Dantas Pereira Coelho. Em média, os medicamentos representam 46% do gasto com saúde das famílias brasileiras. Para os mais pobres, o peso é de 84%, quase três vezes a média das famílias mais ricas (29%). Segundo Araújo, o peso elevado dos medicamentos no gasto com saúde das famílias é um fenômeno global e dois aspectos principais explicam isso. "O primeiro é a desregulamentação, a venda de remédios sem receita. O outro é a baixa cobertura dentro do setor público", diz o economista sênior do Banco Mundial. "É claro que o Brasil avançou um pouco com o Farmácia Popular, mas sabemos que há ainda um grande vazio a ser preenchido em termos de garantir a oferta e o acesso a medicamentos." Os especialistas do Banco Mundial fazem, então, duas análises: se as despesas com saúde representam para as famílias um "gasto catastrófico", isto é, uma despesa que compromete outros gastos fundamentais, como a compra de alimentos; e se esse gasto leva as famílias abaixo da linha de pobreza. Analisando os dados da POF, os pesquisadores observam que um terço da população brasileira (33,4%) gasta mais de 10% do orçamento familiar com saúde. Entre os mais pobres, 37% superam esse patamar, considerado de "gasto catastrófico", comparado a 8% entre os mais ricos. Para avaliar o empobrecimento, os pesquisadores analisam se o gasto com saúde leva a capacidade de consumo da família abaixo de 60% da média nacional. O que eles encontraram é que, anualmente, 10 milhões de brasileiros são empurrados para a pobreza devido aos gastos com saúde, o que representa 4,9% da população do país, acima da média mundial (2,5%) e de países da América Latina e Caribe (1,8%). Se o Farmácia Popular — criado em 2004, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e ampliado em 2011 sob Dilma Rousseff — representou um avanço no acesso a medicamentos, as restrições orçamentárias impostas pelo Teto de Gastos (Emenda Constitucional 95/2016) têm reduzido esse acesso através do SUS em anos recentes, mostra o estudo da UFSC, Fundação Osvaldo Cruz, UFPel, Griffith University, FGV e Harvard. Os pesquisadores utilizaram as edições de 2013 e 2019 da PNS (Pesquisa Nacional de Saúde) do IBGE, analisando dados de indivíduos que tiveram medicamentos prescritos em atendimento de saúde realizado no SUS nas duas semanas anteriores à entrevista. "Escolhemos esses dois momentos porque, entre 2013 e 2019, tivemos muitas mudanças na gestão do sistema de saúde, várias trocas de ministros e, sobretudo, a adoção em 2016 de políticas de austeridade fiscal de longo prazo que impactaram o orçamento federal para a saúde, não só em termos de volume de recursos, mas também da maneira como esses recursos são alocados, com grande aumento das despesas por meio de emendas parlamentares", explica Adriano Massuda, da FGV e um dos autores do estudo. Preocupados com a forma como a mudança no financiamento do SUS poderia impactar a oferta e a prestação de serviços, os pesquisadores analisaram especificamente o acesso a medicamentos, um dos serviços prestados pelo sistema público de saúde. Analisando pesquisas anteriores, até 2013, eles observaram que, por conta das políticas públicas, houve um aumento do percentual da população que conseguiu acesso a medicamentos pelo Farmácia Popular e assistência direta do SUS, e uma redução do percentual da população que precisava arcar com medicamentos com recursos próprios, relata o pesquisador. "O sistema de saúde tem três grandes funções: melhorar a situação de saúde da população; atender as necessidades de saúde que a população apresenta; e garantir proteção financeira, ou seja, fazer com que as pessoas não precisem gastar dinheiro do próprio bolso", observa Massuda. "O que nós encontramos é que, desde 2013, houve um aumento nas despesas diretas da população com medicamentos. E, pelos dados, a população justifica que precisou comprar porque não conseguiu acessar esses medicamentos por meio do SUS e do Farmácia Popular", afirma o pesquisador. Segundo o estudo, entre 2013 e 2019, a proporção de pessoas que não conseguiu nenhum medicamento no SUS aumentou 7,8 pontos percentuais e na Farmácia Popular, 5,1 pontos. Ao mesmo tempo, a proporção de pessoas que reportou ter comprado algum ou todos os medicamentos prescritos subiu de 49,4% para 56,4%. "Estamos diante de um processo de enfraquecimento do SUS. Isso afeta a população que mais precisa dele, que é a população que mora em regiões mais pobres, dos grupos populacionais mais vulneráveis, que têm mais dificuldade de acessar os serviços de saúde e ficam mais expostos", observa o professor da FGV. Segundo Massuda, essa situação se agrava a partir de 2016, com o aumento do financiamento do SUS através de emendas parlamentares. "Quanto maior o percentual executado por meio de emenda parlamentar, menos recursos para áreas programáticas. Menos sobra para áreas estratégicas do Ministério da Saúde, como atenção básica, urgência e emergência. O Ministério da Saúde tem menos capacidade de dirigir o recurso para essas áreas de necessidade", acrescenta. Segundo o pesquisador, o corte de 59% no orçamento do Farmácia Popular em 2023 tende a agravar a dificuldade de acesso da população a medicamentos. Conforme a Nota de Política Econômica da UFRJ, a verba para o programa caiu de R$ 2,04 bilhões no orçamento de 2022, para R$ 804 milhões no projeto de 2023 enviado ao Congresso no final de agosto — um corte de R$ 1,2 bilhão. Edson Correia Araújo, do Banco Mundial, concorda com essa avaliação, mas defende que seria necessário também um redesenho do programa. "Sem dúvida, o programa precisa de uma reformulação, pois muita gente está tendo um gasto com medicamentos que não está sendo protegido pelo Farmácia Popular. Nosso estudo é uma forma de ajudar a fazer esse redesenho, de forma a garantir que quem está caindo abaixo da linha da pobreza hoje seja protegido", defende o economista. Para além desse quadro estrutural de mudança no financiamento do SUS, o país passou esse ano por uma situação conjuntural de desabastecimento de medicamentos, que atingiu hospitais e farmácias públicos e privados, além da própria indústria farmacêutica. Além da falta de medicamentos registrada em 98% dos estabelecimentos farmacêuticos verificada em julho, o CRF-SP identificou em agosto que, entre indústrias, distribuidoras e importadoras de insumos farmacêuticos, 56% relatavam desabastecimento de IFAs (insumo farmacêutico ativo), 17% de excipientes (ingredientes inativos) e 12,5% de insumos para manutenção de máquinas. "Essa falta iniciou-se em decorrência primeiro do lockdown na China, depois da guerra na Ucrânia", diz Adriano Falvo, secretário-geral do CRF-SP, lembrando que o Brasil importa 90% dos IFAs para vacinas e medicamentos da China e Índia. A produção nacional só alcança 5% dos princípios ativos de medicamentos. Segundo Falvo, a falta de medicamentos atingiu antibióticos, anti-histamínicos, antitussígenos, analgésicos e antitérmicos, mas já há uma estabilização gradual da produção. Para Massuda, da FGV, ainda que tenha sido fruto de um problema global, o desabastecimento revela a falta de gestão do Ministério da Saúde sobre o complexo industrial da saúde no Brasil. "Cabe ao governo federal se preocupar com isso, fazer um monitoramento dos insumos necessários e de como está a capacidade de produção. Não se preocupar só com o abastecimento final na ponta, mas como estamos produzindo insumos que são essenciais e não podem faltar", diz Massuda. "Há uma falta de monitoramento, de planejamento, de acompanhamento por parte do Ministério da Saúde da produção desses insumos." O representante do CRF defende que o Brasil deve buscar a autossuficiência em medicamentos de alto consumo. "O custo dos insumos farmacêutico ativos na China e Índia é muito mais baixo. A produção no Brasil, mesmo com isenções de impostos, teria custo mais elevado", observa Falvo. "Mas, diante do que passamos, de uma pandemia que foi extremamente traumática para o país, não só em decorrência das mortes, mas também pelo desabastecimento de medicamentos, está na hora de o Ministério da Saúde começar a pensar na autossuficiência de medicamentos de alto consumo, como anti-hipertensivos e antidiabéticos, de forma a evitar uma falta como essa, que leva ao comprometimento da saúde da população."
2022-10-07
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63137412
brasil
Por que Bolsonaro perdeu votos em capitais e cresceu em cidades do interior?
Um fenômeno foi observado por especialistas ao fim do 1º turno das eleições presidenciais: os votos em Jair Bolsonaro (PL) migraram das capitais e grandes cidades para municípios menores na comparação com 2018, quando ele assumiu a Presidência. E isso se deu com mais força naqueles lugares onde ele recebeu poucos votos há quatros anos, segundo Fernando Meireles, pesquisador de pós-doutorado em Ciência Política no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Em cidades com menos 50 mil eleitores no Nordeste e no Norte, por exemplo, o atual presidente, que concorre à reeleição, melhorou sua votação média em mais de três pontos percentuais. Nos maiores, ao contrário, perdeu mais que isso. No Nordeste, o percentual de votos válidos em Bolsonaro cresceu por todo o interior dos Estados. No Norte, especificamente, esse padrão quase não teve exceções. Mas o mesmo não foi observado em praticamente nenhuma das capitais: Bolsonaro se saiu "pior" do que na eleição anterior. Fim do Matérias recomendadas Na cidade de São Paulo, por exemplo, Bolsonaro teve 37,99% dos votos válidos, contra 47,54% de Lula. Em 2018, Bolsonaro teve 60,38% dos votos válidos contra 39,62% de Haddad na capital paulista. Meireles lembra que o atual presidente teve um desempenho excepcional nas grandes metrópoles em 2018, muito melhor que o de Aécio Neves no 1º turno de 2014. Mas o que poderia explicar esse voto em Bolsonaro em cidades menores? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Esse fenômeno de interiorização de votos em Bolsonaro ainda não é inteiramente compreendido por especialistas. Mas há hipóteses. Uma delas é o pagamento do Auxílio Brasil. Ou seja, Lula foi, de forma geral, o grande vencedor nesses municípios. Mas cruzando os dados dos resultados do 1º turno do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o pagamento do Auxílio Brasil, Meireles mostrou que há uma relação mais forte entre os municípios que receberam mais repasses per capita do Auxílio Brasil e a votação em Bolsonaro na comparação com 2018 sobretudo no Norte, mas também no Nordeste e no Centro-Oeste. No Sudeste, essa relação também parece existir em algumas cidades, mas no Sul, não. Ou seja, "no nível agregado", municípios deram mais votos a Bolsonaro justamente nos locais mais beneficiados pelo Auxílio, contrabalançando a perda das grandes cidades, segundo Meireles. Tome-se como exemplo o caso de Serrano do Maranhão, no Maranhão, que tem 34% do seu PIB ocupado por rendimentos vindos do Auxílio Brasil, segundo um estudo recente realizado por Ecio Costa, professor titular de economia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).Ali, Lula foi o grande vitorioso. Nove em cada dez pessoas votaram nele. Mas Bolsonaro melhorou seu desempenho em relação a 2018. Há quatro anos, recebeu 6,86% dos votos válidos, ou 359 votos. Neste ano, teve 8,71% dos votos válidos, ou 564 votos. Porém, não se pode dizer, ressalva Meireles, que foram os beneficiários que votaram mais em Bolsonaro: podem ter sido outros eleitores beneficiados indiretamente; ou eleitores de Lula que se abstiveram mais. Para se saber isso, seria necessário analisar uma pesquisa de boca de urna, que não houve neste ano. "É muito provável que o Auxílio tenha influenciado a decisão de voto. Talvez a pessoa que recebeu o benefício considerou votar mais no Bolsonaro, talvez ela já votaria no Bolsonaro, mas talvez não compareceria. Mas talvez tenha ficado mais propensa a comparecer, pois quer 'ajudar' o governo para que o benefício continue sendo pago." "É preciso lembrar que o efeito do Auxílio Brasil no município não incide somente para as pessoas que recebem o benefício. Se a gente pensar num município do interior, quando há muitas pessoas pobres que de uma hora para outra passam a receber o Auxílio Brasil, o comércio local muda, várias pessoas passam a ter outro perfil de consumo. A realidade das famílias também, e isso altera várias dinâmicas de socialização dessas pessoas." Meirelles afirma que, por exemplo, as pessoas podem se encontrar mais, fazer mais almoços de família e se preocupam menos com desemprego, com mais acesso a lazer e cultura. "O Auxílio Brasil tem efeitos que vão além do eixo do benefício individual da renda. Ou seja, afeta a população de um município como um todo", diz o pesquisador. "Não dá para cravar, portanto, se o Auxílio Brasil teve um efeito diretamente sobre o beneficiários ou se foi por outras razões que Bolsonaro aumentou sua votação. Mas o que os dados mostram é essa relação entre a maior votação em municípios menores e o pagamento do benefício nas regiões Norte, Nordeste e Centro Oeste, principalmente." Outra possível explicação para essa interiorização de votos em Bolsonaro é a comunicação direta que o presidente tem com o eleitor dessas cidades menores. O analista Bruno Carazza, autor do livro Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro, afirma que, de modo geral, o interior do país — tanto do Sudeste quanto do Sul e do Centro-Oeste — tem sido negligenciado por acadêmicos, analistas e imprensa. Dessa forma, deixa-se de compreender um conjunto de valores e anseios diferentes dos que predominam nos grandes centros urbanos, bem como como de representá-los corretamente do ponto de vista estatístico, argumenta ele. "Todo mundo — acadêmicos, analistas, imprensa — há muito tempo não tem olhado com atenção ao interior do país, onde a agroindústria cresce e atrai gente para trabalhar, com uma forte cultura de prosperidade e valores diferentes dos grandes centros urbanos. 2018 já foi um alerta e a gente não captou, e agora o alerta vem novamente. E Bolsonaro sabe se comunicar muito bem nessa região, o que ficou explícito na votação para Câmara e Senado (com alta votação de nomes do bolsonarismo)", assinala. Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil também falam sobre a força das igrejas em municípios menores — ali pastores evangélicos têm um papel mais preponderante como lideranças locais e também são mais próximos do poder, como prefeitos ou vereadores, instrumentais para as eleições presidenciais em termos de "captação de votos". Bolsonaro tem a preferência do eleitorado evangélicos ante a Lula. Em entrevista à BBC News Brasil, a brasilianista Amy Erica Smith, da Universidade Estadual de Iowa (Estados Unidos), diz acreditar que "é possível que a campanha dentro das igrejas ou nas redes sociais direcionada aos fiéis evangélicos tenha tido um papel relevante nos resultados". Smith é autora do livro Religion and Brazilian Democracy: Mobilizing the People of God ("Religião e Democracia Brasileira: Mobilizando o Povo de Deus", em tradução literal). Por fim, cidades maiores costumam sofrer mais as consequências diretas da inflação e do desemprego — o que também poderia explicar por que o voto em Bolsonaro caiu nas grandes cidades na comparação com 2018, em termos porcentuais, segundo Meireles.
2022-10-07
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63148665
brasil
Com mais armas circulando, Brasil 'começa a colecionar' casos de tiros em escolas, vê especialista
Em menos de dez dias, foram registrados dois ataques a tiros dentro de escolas no Brasil. Ambos os crimes foram cometidos com armas obtidas, a princípio, legalmente — uma delas pertencia a um CAC (colecionador, atirador desportivo ou caçador) e a outra era de um policial militar. O caso mais recente aconteceu na manhã de quarta-feira (5/10), quando um adolescente de 15 anos atirou contra três estudantes em uma escola na cidade de Sobral, no Estado do Ceará. As informações foram passadas pela assessoria de imprensa da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado à BBC News Brasil. Duas das três vítimas foram atingidas na cabeça. Ambas estão em estado grave. Uma delas tinha quadro estável no início da tarde, enquanto a outra estava entubada. A terceira foi atingida na perna e não teve os detalhes de seu quadro clínico divulgados. Ainda não há informações sobre como o adolescente teve acesso à arma. A diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carol Ricardo, afirma em entrevista à BBC News Brasil que o número de armas adquiridas por CACs mais do que triplicou de 2018 a 2022. Hoje, há mais de 1 milhão de armas em circulação em relação à 330 mil, quatros anos atrás. Fim do Matérias recomendadas A advogada e socióloga, Carol Ricardo, diz que três fatores principais contribuem para que esses incidentes com armas em escolas se tornem recorrentes. "O primeiro é o aumento das armas em circulação. O segundo é a falta de fiscalização e controle por parte do Exército e o terceiro é o incentivo e a banalização ao armamento por parte do poder público. Há um discurso de que ter uma arma e guardá-la em casa não oferece risco", afirma. De acordo com informações preliminares da Polícia Civil do Ceará, o estudante que abriu fogo contra três colegas de classe em Sobral usou uma arma dele, que é CAC, para cometer o crime. Segundo a Delegacia Municipal de Sobral da Polícia Civil, o adolescente planejou o ataque após ter sido vítima de bullying na escola. Em agosto, um menino de 8 anos matou o próprio cunhado de maneira acidental com uma arma deixada no banco de trás do carro onde ele estava sentado. A vítima, de 27 anos, era CAC e tinha ido buscar o filho de 2 anos em um colégio em Jacareí, no interior de São Paulo. Quando os três estavam no carro, o menino de 8 anos pegou a pistola, carregada com 12 balas, e disparou contra a cabeça do cunhado. Quando o socorro chegou ao local, ele já estava morto. A especialista disse que, durante a gestão do presidente Jair Bolsonaro (PL), foram aprovados diversos projetos de lei que não apenas facilitam o acesso a armas, mas também alguns permitem que sejam comprados armamentos mais potentes e munição em maior quantidade. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No dia 26 de setembro, um adolescente de 14 anos matou a tiros uma aluna cadeirante em Barreiras, no oeste baiano. De acordo com a polícia, a arma usada no crime foi um revólver calibre 38 que ele pegou do pai dele, que é policial militar. O adolescente teria encontrado a arma embaixo do colchão, onde o pai costumava guardá-la. Ele entrou encapuzado pelo portão principal do colégio e fez os disparos contra a aluna no pátio da escola. Carol Ricardo, do Sou da Paz, diz que é preocupante como o Brasil "começa a colecionar" casos de atiradores em escolas, como ocorre com mais frequência nos Estados Unidos. "Toda vez que tem um ataque nos Estados Unidos, ocorre essa discussão de controle de arma. Aqui também alertamos sobre os riscos desse amplo acesso às armas de fogo. A gente deve continuar vendo casos assim com mais frequência por conta dessa facilidade ao acesso." Para ela, esse caso deixa claro que, mesmo em posse de agentes de segurança, há riscos de a arma ser usada para praticar crimes. Ela diz que os argumentos para liberar mais armas não têm fundamento e que os recorrentes casos de incidentes revelam que não há cuidado com a maneira como elas são armazenadas. "A narrativa que busca legitimar o uso é a de que a arma é um bem e quem mata é o homem. Mas não há nenhuma informação ou treinamento sobre como elas estão sendo armazenadas. É uma situação grave, aliada a um sistema que não fiscaliza e não controla a distribuição desse armamento", afirmou. Para ela, as políticas que permitem um acesso mais fácil a armas para CACs estão causando tragédias. Ela afirma que a legislação sofreu constantes mudanças que facilitaram a compra desse armamento. "Nessa categoria, mesmo antes do Bolsonaro, já via-se um crescimento de compra porque é mais fácil se cadastrar e conseguir armas com o Exército do que com a Polícia Federal. Mas agora está muito mais fácil", afirmou. Ela alertou para que as escolas tenham mais preparo para discutir essa escalada da violência e os casos de bullying. "Não estou acusando a escola, mas hoje sabemos que a violência nas escolas e o bullying são uma realidade e que isso gera novas formas de agressões entre os estudantes. É necessário que as escolas entrem nessa discussão o quanto antes".
2022-10-05
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63152623
brasil
Tebet e Ciro com Lula, governadores com Bolsonaro: apoios podem definir eleição?
Os últimos dias foram marcados por intensas movimentações de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro (PL) para costurar os acordos com novos aliados na disputa pela Presidência. A senadora Simone Tebet (MDB) anunciou na quarta-feira (5/10) apoio a Lula, que também terá ao seu lado Ciro Gomes e seu partido, o PDT. Os dois foram respectivamente o terceiro e quarto colocados no primeiro turno e receberam juntos 8,5 milhões de votos. Bolsonaro conseguiu o apoio dos governadores de Minas Gerais e São Paulo, os dois maiores colégios eleitorais do país, além de outros nomes importantes da política nacional. A diferença entre Lula e Bolsonaro ficou em 6 milhões de votos no primeiro turno. O petista recebeu 48,43% dos votos válidos, e Bolsonaro, 43,20%. Para ganhar, eles precisam de 50% mais um. A disputa foi mais apertada do que indicavam as pesquisas, o que torna os apoios fechados agora especialmente importantes e bem-vindos, mas isso não deve ser o fiel da balança para a vitória de Lula ou de Bolsonaro, dizem cientistas políticos ouvidos pela BBC News Brasil. Fim do Matérias recomendadas Lula conseguiu o apoio do PDT. O diretório nacional do partido tomou a decisão por unanimidade. O seu candidato à Presidência, Ciro Gomes, que teve 3,04% dos votos, falou que vai seguir o seu partido. Mas ele se mostrou bastante contrariado e não citou Lula ao anunciar o apoio. "É a última saída. Lamento que a democracia brasileira tenha afunilado a tal ponto que reste para o brasileiro duas opções, a meu ver, insatisfatórias", disse. "Ao contrário da campanha violenta da qual fui vítima, nunca me ausentei ou me ausentarei da luta pelo Brasil. Sempre me posicionei e me posicionarei na defesa do país contra projetos de poder que levaram o país a essa situação grave e ameaçadora." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A senadora Simone Tebet (MDB) confirmou a sinalização que já havia dado após o primeiro turno quando disse que "já tinha lado" e declarou apoio a Lula. "Apesar das críticas que fiz, depositarei nele o meu voto. Seu compromisso é com a democracia e a Constituição, o que desconheço no atual presidente. Não anularei meu voto, não votarei em branco, não cabe omissão", afirmou Tebet. Seu partido optou pela neutralidade. "Por ampla maioria, o MDB decidiu dar liberdade para que cada um se manifeste conforme sua consciência", declarou a legenda em um comunicado. O governador Helder Barbalho (MDB), reeleito no Pará no primeiro turno com 70,41% dos votos, disse que está com Lula. Barbalho, que já tinha o PT em sua coligação no Estado, onde Lula ganhou com 52,22% enquanto Bolsonaro teve 40,27%. Outro governador do MDB, Ibaneis Rocha (DF), reafirmou seu apoio a Bolsonaro. O governador reeleito do Paraná, Ratinho Júnior (PSD), fez o mesmo. Tanto no Estado quanto no Distrito Federal, Bolsonaro ganhou de Lula. Da federação tripartidária que tinha Tebet como candidata, o Cidadania disse que apoia Lula. Já o PSDB ficou neutro e liberou seus diretórios para apoiar quem acharem melhor. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, fundador do PSDB, já havia sinalizado apoio a Lula no primeiro turno, mas desta vez foi mais enfático, mencionando o nome do candidato petista. "Neste segundo turno voto por uma história de luta pela democracia e inclusão social. Voto em Luiz Inácio Lula da Silva", disse o tucano. Outros líderes históricos do PSDB, como o senador Tasso Jereissati (CE), Aloysio Nunes e José Anibal, também apoiaram o petista. Eles também criticaram o "apoio incondicional" a Bolsonaro declarado pelo governador de São Paulo, Rodrigo Garcia (PSDB). Garcia foi adversário de Fernando Haddad (PT) na eleição e ficou em terceiro, atrás do petista e de Tarcísio de Freitas (Republicanos), o candidato apoiado pelo presidente. São Paulo é o maior colégio eleitoral do país, e Bolsonaro ganhou ali de Lula por 47,71% a 40,89%. O presidente também já tem um apoio importante no terceiro maior colégio, o Rio de Janeiro. O governador Cláudio Castro, que é do seu partido (PL) e foi reeleito no primeiro turno com 58,67% dos votos, reforçou que está com Bolsonaro. O presidente venceu no Rio no primeiro turno com 51,09% contra 40,68% de Lula. O ex-juiz Sergio Moro (União Brasil), eleito senador pelo Paraná com 1,9 milhão de votos, também declarou apoio ao presidente. Moro foi ministro da Justiça e Segurança Pública e saiu do governo acusando Bolsonaro de tentar interferir na Polícia Federal. O presidente nega. Bolsonaro disse agora que as desavenças entre os dois estão "superadas". "O passado é o passado, não temos contas a ajustar", afirmou o presidente para jornalistas. O governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), reeleito no primeiro turno com 56,2% dos votos, foi um dos primeiros a declarar que está com Bolsonaro. Minas é um Estado-chave para a eleição presidencial, porque é o segundo maior colégio eleitoral. Nenhum presidente eleito desde a redemocratização venceu sem ganhar em Minas. Neste primeiro turno, a votação ali espelhou quase exatamente o resultado nacional. O Partido Social Cristão, comandado pelo Pastor Everaldo, anunciou seu apoio formal ao presidente. "Bolsonaro é o candidato que defende as bandeiras conservadoras do PSC: defesa da família e da vida desde a concepção, da segurança, das mulheres e da liberdade econômica", disse. É um começo melhor para o presidente, avalia o cientista político Cláudio Couto. "Acho que Bolsonaro sai um pouco na frente porque conseguiu apoios mais significativos", diz o professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Isso é relevante porque pode influenciar a percepção do eleitorado sobre as candidaturas. "O mais importante é essa percepção do conjunto de apoios. O eleitor vai ver quem está conseguindo atrair mais, e isso conta", afirma o cientista político Rafael Cortez, da consultoria Tendências. Mas os analistas avaliam que os apoios anunciados até agora não devem trazer os votos que Bolsonaro precisa para virar o jogo, porque muitos dos eleitores dos seus "novos aliados" provavelmente já votaram nele no primeiro turno. "Tem um valor mais simbólico do que prático. Além disso, Rodrigo Garcia, por exemplo, se tivesse uma grande capacidade de influência não teria ficado em terceiro lugar", diz Cortez. O apoio de Zema tem mais peso, avalia Couto. "Mas não são nomes que inflamam paixões, não estamos diante de lideranças carismáticas", afirma. "O Zema é um gestor bem avaliado, e isso ajudou ele a se reeleger facilmente, então, é claro que é bom ter o apoio, porque pode deixar os eleitores que votaram em Lula mais pensativos, mas não acredito que vai virar tudo de cabeça para baixo." A cientista política Maria do Socorro Sousa Braga ressalta que "Minas é quase um Brasil" e isso limita quantos votos Bolsonaro pode conquistar no Estado. "Claro que vai conseguir um pouco, mas é um colégio eleitoral imenso, e as regiões do Norte de Minas votam em Lula, ele venceu muito forte ali." Do lado de Lula, o apoio resignado de Ciro também não ajuda muito, diz Couto. "Porque não é o Carlos Lupi (presidente do PDT) que vai conseguir trazer votos para Lula. Pode ajudar um pouco se houver articulações das lideranças locais, mas o eleitorado não tem uma identificação com o partido." O apoio de Tebet, se confirmado, também não deve ser suficiente para garantir a vitória petista, segundo Braga. "Entre os novatos, a Tebet é quem sai com maior capital político, mas ainda não tem capacidade de fazer uma grande transferência, leva tempo para um político conquistar isso, ainda mais entre campos antagônicos como ela e o PT." Mas a cientista política avalia que isso pode ter um efeito dentro de um partido bastante dividido como o MDB e fazer a legenda pender para o lado de Lula. "O partido já tem vários segmentos que apoiam Lula, e isso deve se ampliar com o apoio da Tebet", diz Braga. O MDB é o partido que está à frente do maior número de prefeituras no país. Os analistas dizem que, tanto de um lado quanto do outro, as transferências de votos não são automáticas e que vai depender muito mais das campanhas conseguirem mudar a percepção sobre os candidatos para conseguir os votos que faltam para vencer. Bolsonaro vai precisar reduzir a sua rejeição, e Lula tem que desfazer as desconfianças sobre como ele deve governar nas áreas econômica e de costumes. Mas, em uma eleição disputada, os votos conquistados com as novas alianças podem ter um impacto maior do que antes. "É o pouco que pode significar muito", diz Couto.
2022-10-05
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63140205
brasil
Petista mata amigo bolsonarista a facadas em discussão política; veja outros casos
Um apoiador do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) confessou ter matado um apoiador do presidente Jair Bolsonaro (PL) em Itanhaém, litoral de São Paulo, após uma discussão política. O caso foi confirmado pela Polícia Civil paulista à BBC News Brasil. "Um homem, de 42 anos, foi preso em flagrante após matar outro, de 59, na tarde desta terça-feira (4/9), na Av. Santo André, em Itapel, Itanhaém, no litoral paulista", disse a polícia em um comunicado. "Policiais militares foram acionados para ocorrência de agressão e, no local, apuraram que a vítima foi esfaqueada após uma discussão política. O Samu foi acionado e constatou a morte. Foi solicitado perícia ao local e a faca apreendida, além de exame de IML à vítima. O caso foi registrado como homicídio na DIG de Itanhaém." Segundo o jornal Folha de S.Paulo, o eletricista Luiz Antonio Ferreira da Silva disse em depoimento que a briga começou após o estilista José Roberto Gomes Mendes afirmar que "todo petista é ladrão". No momento do ocorrido, os dois almoçavam na casa onde moravam juntos. Silva teria então respondido: "Você está comendo a comida que o petista comprou", segundo a Folha. Ele afirmou que foi atacado com uma faca e que usou a mesma arma ao reagir em meio a uma luta corporal. Fim do Matérias recomendadas De acordo com o portal G1, o boletim de ocorrência aponta que os "motivos e quantidades de facadas descartam, por ora, o eventual reconhecimento de legítima defesa" por parte de Silva. Este é o quinto assassinato por possível motivação política ocorrido nestas eleições. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em julho, um apoiador de Bolsonaro, o policial penal Jorge Guaranho, de 38 anos, matou a tiros o guarda municipal Marcelo Arruda, que comemorava o aniversário de 50 anos com uma festa alusiva ao PT em Foz do Iguaçu, no Paraná. Em setembro, o trabalhador rural Rafael Silva de Oliveira, de 24 anos, apoiador de Bolsonaro, matou a facadas Benedito Cardoso dos Santos, de 42 anos, em Confresa, no interior do Mato Grosso, após uma discussão sobre política. Santos apoiava Lula, segundo disse Oliveira à Justiça. No mesmo mês, em Cascavel, no Ceará, Edmilson Freire da Silva, apoiador de Bolsonaro, entrou em um bar perguntando quem era eleitor de Lula e esfaqueou o caseiro Antônio Carlos Silva de Lima, que disse votar no ex-presidente. Ainda em setembro, um apoiador de Bolsonaro, Hildor Henker, foi esfaqueado por um apoiador do PT em uma briga em uma bar em Rio do Sul, no interior de Santa Catarina. Segundo informações da polícia, os homens teriam começado a discutir por conta de "política e desavenças familiares antigas".
2022-10-05
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63152266
brasil
Eleições 2022: quais são as propostas de Lula e Bolsonaro?
Após um primeiro turno disputado, os brasileiros voltarão às urnas no dia 30 de outubro para decidir entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente Jair Bolsonaro (PL). A BBC News Brasil preparou um especial interativo com suas propostas em oito áreas. Elas foram levantadas a partir dos programas divulgados pelas campanhas até o momento.
2022-10-05
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63117592
brasil
'Quando acordei, não andava mais': sobrevivente da pólio faz apelo por vacinação
Zuleide Verpa Degasperi brincava no chão da área externa de sua casa em Londrina, aos 18 meses de idade, quando, depois de se assustar com o barulho dos carros, foi colocada pela mãe para tirar uma soneca. "Quando acordei, eu não andava mais", conta ela, com base nas memórias compartilhadas pela mãe. Uma vizinha da família tinha sofrido paralisia geral por causa de poliomielite, e assim surgiu a suspeita, logo confirmada, de que Zuleide havia sido contaminada pelo mesmo vírus. O ano era 1961, e a primeira campanha nacional de imunização contra a poliomielite foi lançada oficialmente só em1980 no Brasil. Ela iniciou o tratamento imediatamente, e quando tinha cerca de três anos, mudou-se para a casa de uma tia em São Paulo para começar a ser acompanhada por um médico especialista. Quatro anos depois, Zuleide já conseguia andar sozinha, mas ficou com sequelas permanentes de falta de força na perna esquerda. Fim do Matérias recomendadas "As pessoas desconhecem o efeito da doença porque não viram pessoas com poliomielite. Depois da vacina não se depararam com as dificuldades de uma pessoa durante o tratamento, que é bem complicado. Eu, por exemplo, vivi em função de fisioterapia, natação, e cirurgias — ao longo da vida, fiz seis, e sei que tem gente que fez muito mais", diz Zuleide, que hoje tem 63 anos. Ela faz uso de órtese somente quando precisa fazer caminhadas longas. "Não tenho uma grande deficiência hoje em dia. O que tenho é falta de força na perna esquerda. Manco um pouco, mas tem horas que é difícil porque tenho dores e não tomo medicamentos por me deixarem sonolenta, Mas eu tive muita sorte de ter encontrado pessoas que se preocuparam comigo e se dedicaram a achar o melhor para mim." Zuleide tem quatro filhos e se esforçou para sempre manter a carteira de vacinação deles em dia. "Principalmente contra a poliomielite, porque eu sabia o que ela poderia causar na vida deles — as dificuldades durante a adolescência e a vida adulta e as dores terríveis. Para os pais que hesitam em vacinar seus filhos, Zuleide deixa uma mensagem. "Vacinar é essencial para que essas pessoas possam ter uma vida normal no que diz respeito às escolhas profissionais e a simplesmente correr e pular. Eu não tive nada disso. Na minha infância, minha 'aula de educação física' foi dentro da AACD [Associação de Assistência à Criança Deficiente], fazendo fisioterapia e nadando." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A faixa de cobertura vacinal recomendada para a poliomielite, de acordo com a Fiocruz, é de 80%. Mas dados oficiais da campanha deste ano, que começou em 8 de agosto e foi prorrogada até 30 de setembro, mostram que somente 54% das crianças entre um e quatro anos — população-alvo da campanha — receberam o reforço da vacina contra a doença no Brasil. Ainda é possível, se estiver na faixa etária recomendada para o imunizante, receber a vacina em postos de saúde ao decorrer de todo o ano. Muitas vezes, a infecção não causa efeitos graves. No entanto, em um grupo menor, especialmente crianças com menos de cinco anos, a doença pode resultar em paralisia total ou parcial e até levar à morte. O Brasil registra sucessivas quedas na taxa de vacinação contra a poliomielite desde 2016 e que a pandemia agravou o cenário: em 2021, o país registrou a pior cobertura dos últimos 25 anos, quando menos de 75% dos bebês foram imunizados. De acordo com Juarez Cunha, presidente da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações), uma das razões prováveis da queda vacinal é a falsa sensação de proteção de doenças que as pessoas desconhecem e as quais não viram as sequelas. "A poliomielite, junto com sarampo, já foi uma das principais doenças da infância em índice de sequelas e de mortes, mas os pais e tutores de hoje em dia são de uma geração que foi muito vacinada, e por isso, não têm experiência com a doença", aponta Juarez Cunha. Mônica Levi, diretora da SBIm, avalia que as fake news também são responsáveis por uma parcela da população não ter se vacinado. "Para uma mãe de um bebê que fica com pulga atrás da orelha por conta de notícias falsas, por exemplo, é mais fácil para ela correr o risco da doença, que ela acha que não vai chegar até seu filho, do que arriscar um suposto efeito colateral gravíssimo logo após a vacinação. O movimento antivacina ficou mais organizado pós-pandemia e tem sido efetivo em causar hesitação." Ledson Alexandre Sathler tinha dois anos quando foi contaminado pelo vírus da poliomielite, em 1954, muito antes da vacina estar disponível no Brasil. Ele foi o único da família a ficar doente, mas se lembra de ter visto outras pessoas que sofreram com a pólio durante sua infância. "Uma vizinha da minha família também pegou, mas o caso dela foi mais grave, o vírus subiu para a cabeça [atingiu o sistema nervoso]." Ledson ficou com uma atrofia permanente na perna direita, uma sequela causada pelo vírus. Apesar da limitação de movimentos, ele conta que seus pais sempre o deixaram "à vontade", para que se movesse, largavam-o "solto", e o deixavam tentar se levantar sozinho se caísse. Na visão dele, isso o ajudou a se tornar mais independente. "Na época da infância, faziam brincadeiras comigo, piadas, mas eu nunca liguei para isso." Em 1992, ele passou por uma operação para tentar melhorar a funcionalidade da perna, mas acabou não tendo bons resultados com o procedimento e adquiriu uma infecção no hospital. Três anos depois, ele conseguiu uma órtese que o auxilia para caminhar até hoje. Depois de adulto, Ledson se formou em agronomia, casou-se e teve um filho, com quem compartilha o mesmo nome. "Desde que ele nasceu, sempre esteve com a carteira de vacina atualizada, para se proteger da poliomielite e também de outras doenças. Não pensei duas vezes antes de dar a imunização e é algo que eu incentivo até hoje." Ele conta que tem familiares que, mesmo sabendo do que a polio causou nele e suas consequências perigosas, decidiram por não vacinar os filhos. "Acho que isso é alienação de pessoas que acham que nada vai acontecer com elas, que só os outros ficarão doentes." "Essas famílias precisam pensar bem direitinho, lembrar que muitas pessoas enfrentaram problemas sérios por essas doenças. Se alguém não vacinado pega o vírus, o sofrimento de todos é muito grande."
2022-10-05
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63094020
brasil
PT tem que lembrar que apoio de artista e reunião em universidade não ganham eleição, diz Chomsky
Pela janela, Noam Chomsky, de 93 anos, assiste à motociata pró-Bolsonaro rasgar a rua, preenchendo o ambiente com bandeiras verde e amarelas e o ronco alto dos motores das motocicletas. Casado com uma brasileira, o filósofo e linguista americano, um dos mais citados pensadores vivos na atualidade, tem passado temporadas no Brasil. Ativista político que se autodenomina um socialista libertário, Chomsky diz seguir "com grande interesse" aquela que tem sido descrita como a eleição mais tensa no país desde a redemocratização. Suas reflexões, ele ressalta, não são as de um especialista. "Não me leve muito a sério", diz, antes de emendar observações afiadas sobre a política brasileira. Chomsky nota que, se as motociatas de Bolsonaro têm ocupado espaços públicos ao redor do Brasil, o mesmo não tem acontecido com a campanha do petista Luiz Inácio Lula da Silva, que tenta voltar à presidência e impedir que o atual presidente conquiste mais quatro anos no Palácio do Planalto. Para o pensador, a esquerda deixou de ocupar as ruas de modo organizado. "No Brasil, minha impressão é que o PT simplesmente falhou nos últimos 20 anos em se organizar como movimento de base. Então, só para ilustrar, a gente conversa com as pessoas e as pessoas não sabem que se beneficiaram dos programas que o Lula criou, não sabem que ele foi o responsável por seus filhos poderem entrar na faculdade, por terem conseguido abrir um pequeno negócio. É Deus, é sorte, ou algo assim. Não o PT", aponta Chomsky. Segundo ele, assim como o partido Democrata nos Estados Unidos, o PT se afastou do trabalhador, do mais pobre. Ao abraçar agendas neoliberais, perdeu a conexão histórica com seu eleitorado. E isso abriu espaço para que movimentos de direita radical capturassem essa audiência. Fim do Matérias recomendadas "(O PT vai fazer) uma grande reunião do partido para tentar responder ao que aconteceu (no primeiro turno), uma reunião na universidade, onde estarão artistas e escritores. Enquanto isso, as pessoas comuns (seguem) dizendo (sobre o PT): 'nos livramos dos bandidos'", avalia Chomsky, que conversou com a BBC News Brasil, por vídeo chamada, na tarde de segunda-feira (03/10), menos de 24 horas após a definição de segundo turno entre Lula, que conquistou 48,43% dos votos válidos, e Bolsonaro, com 43,20% dos votos. Segundo Chomsky, um defensor incondicional da liberdade de expressão, a falta de capilaridade de base do PT e da esquerda brasileira explica a eficácia que têm algumas fake news na campanha, como a de que Lula planeja fechar templos religiosos. "Se você tivesse um partido político ou qualquer organização geral defendendo os trabalhadores e os pobres, eles poderiam reagir a isso (fake news) na base, via organização local. Os Democratas não têm. E acho que não existe nada parecido no Brasil. O PT simplesmente não está se organizando na base, no chão de fábrica", afirma Chomsky. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O filósofo, aposentado pelo Massachussets Institute of Technology (MIT) e atualmente professor da Universidade do Arizona, afirma que pautas como o aborto e o armamento civil são estratégias diversionistas para que a população mais pobre não perceba que as políticas econômicas dos governos são desfavoráveis a seus interesses. E afirma que o "pior crime de Bolsonaro é destruir a Amazônia", algo que pode colocar em risco a sobrevivência da humanidade como um todo. Chomsky vê muitos paralelos entre a política nos EUA e no Brasil: desde o erro das pesquisas eleitorais ao medir as performances dos candidatos populistas de direita ao risco de uma repetição da invasão do Capitólio à brasileira. Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Noam Chomsky à BBC News Brasil, editada por concisão e clareza. BBC News Brasil- Como o senhor avalia o quadro político do Brasil hoje, à luz dos resultados do primeiro turno, que mostraram Lula a 1,5 ponto percentual de ganhar no primeiro turno mas com Bolsonaro apenas 5 pontos percentuais atrás dele, mostrando um vigor que as pesquisas não detectaram e que surpreendeu muita gente? Noam Chomsky - Em primeiro lugar, isso é apenas uma parte do quadro político. Tem outra parte que eu acho ainda mais reveladora, que é que os candidatos de direita, os candidatos de Bolsonaro, realmente varreram a maior parte do Brasil muito além do que se esperava para o Congresso e entre os governadores. E foi bastante surpreendente ver o que aconteceu com as pesquisas, dá pra supor que é bastante semelhante ao que está acontecendo nos Estados Unidos (onde as pesquisas demonstraram erro fora do esperado em antever a votação trumpista). Eles foram exatos em Lula, quase precisos. Mas subestimaram muito Bolsonaro e também seus candidatos. Isso é exatamente o que acontece com Trump. As pesquisas subestimam o apoio popular a ele e aos que ele apoia. E suspeito que o motivo seja o mesmo. A parte da população que está inclinada a votar em Trump ou Bolsonaro provavelmente é tão anti-elite que não confia nos pesquisadores, acha que eles fazem parte dessa conspiração de esquerda que está tentando destruir a família, a igreja. Eles simplesmente não respondem. Eu não ficaria surpreso se o mesmo estivesse acontecendo aqui. Houve uma tonelada de publicidade negativa nos anúncios da campanha de Bolsonaro em relação ao Lula. "Livre-se do ladrão". "Livre-se da corrupção". "Eles estão apenas roubando você". E a impressão que dá ao falar com as pessoas nas ruas é que isso teve um grande efeito. Que o grupo de Bolsonaro seja corrupto até o pescoço não é o que as pessoas têm ouvido ou captado no WhatsApp. Então, o papo das pessoas conversando na rua é 'vamos nos livrar dos corruptos, dos ladrões'. Novamente um fenômeno bastante semelhante tem acontecido nos Estados Unidos. BBC News Brasil - Mas por que a esquerda não consegue reagir a isso? Chomsky - O Partido Democrata, que você poderia supor ser a oposição (a Trump e aos republicanos nos EUA), na verdade praticamente se juntou à onda neoliberal no início dos anos 1980. Eles abandonaram a classe trabalhadora e os pobres apenas para seguir a guerra de classes de (Ronald) Reagan. Muito parecido com o Partido Trabalhista na Inglaterra, onde a piada era que Tony Blair havia se tornado uma versão light de (Margareth) Thatcher. O resultado final é que esse público não é de ninguém. Não há nenhum partido político que esteja de fato defendendo os direitos e interesses dos trabalhadores, dos pobres. Eles (os trabalhadores e os pobres) são facilmente desviados para outras preocupações quando alguém como Trump, nos EUA, aparece no palco segurando em uma mão dizendo uma faixa que diz "eu te amo" enquanto que com a outra mão, ele te apunhala pelas costas. Eles apenas olham para o "eu te amo", não para o programa de governo. No Brasil, minha impressão do que aconteceu é que o PT simplesmente falhou por 20 anos em se organizar na base. Então, só para ilustrar, a gente conversa com as pessoas e as pessoas não sabem que se beneficiaram dos programas que o Lula criou, não sabem que ele foi o responsável por seus filhos poderem entrar na faculdade, por você ter conseguido abrir um pequeno negócio. É Deus, é sorte, ou algo assim. Não o PT. Vimos isso em discussões pré-eleitorais de ativistas do partido, falávamos sobre como eles tiveram um grande apoio de artistas e de alguns movimentos sociais, mas não são essas pessoas que vão votar e vencer a eleição. Na verdade, (minha esposa) acabou de me dizer que haverá uma grande reunião do partido para tentar responder ao que aconteceu (no primeiro turno), uma reunião na universidade, onde estarão artistas e escritores. Enquanto isso, as pessoas comuns (seguem) dizendo que nos livramos dos bandidos. Essa é uma observação superficial, mas essa é a impressão que tenho há muitos anos. BBC News Brasil - A direita radical tem ganhado terreno entre grupos que antes eram considerados esquerdistas, como trabalhadores sindicalizados, os mais pobres. Esse é inclusive um objetivo declarado deles, como disse recentemente Steve Bannon à BBC News Brasil. Por que isso está acontecendo? Chomsky - Devo dizer que, embora acompanhe de perto os assuntos brasileiros, não estou intimamente envolvido neles, então posso dar apenas julgamentos superficiais. Mas me parece muito com o que aconteceu nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha. Então, vamos dar uma olhada nos Estados Unidos: o chamado neoliberalismo não tem praticamente nada a ver com mercados ou qualquer coisa assim, é apenas uma guerra de classes massiva e selvagem, muito concentrada e bem planejada, o capitalismo selvagem em seu extremo. Na década de 1970, o mundo dos negócios viu uma oportunidade de reverter as odiadas medidas do New Deal, as medidas social-democratas, que eram significativas. Eles foram fortemente apoiados por alguém como (o presidente americano republicano Dwight) Eisenhower, mas a comunidade empresarial nunca gostou e, no início dos anos 1970, houve uma crise econômica e uma oportunidade para os empresários de basicamente ir na jugular dessas medidas e lançar uma grande guerra de classes. Reagan embarcou. Margareth Thatcher, na Inglaterra, fez o mesmo. Tanto eles quanto seus conselheiros pelo menos entenderam que era apenas uma guerra de classes. A primeira coisa que fizeram foi ir atrás de destruir os sindicatos. Esse é o único mecanismo de defesa que os trabalhadores têm, isto está bem compreendido ao longo de mais de um século. Você tem que destruir os sindicatos se quiser levar a cabo uma guerra de classes. Divida a população e faça com que ela se desvie, se afaste das questões econômicas. Não queremos que olhem para isso porque estamos apunhalando-na pelas costas. Em vez de olhar para a economia, olhe para o aborto ou para armas ou qualquer coisa. Isso começou com (o republicano) Richard Nixon com o que foi chamado de Estratégia do Sul (um discurso político que explorava eventuais episódios de violência em protesto antirracismo e advogava pela insegurança da população branca nas cidades), quando ele percebeu que podia conquistar os democratas do Sul que se opunham aos direitos civis (dos negros), apresentando-se como o partido racista. Claro, Nixon não dizia: 'sou racista'. O que fazia era dar indicações, os chamados apitos de cachorro, que são códigos para fazer as pessoas entenderem que você está do lado da supremacia branca. E no momento em que chega a Reagan, não eram nem apitos de cachorro, era um racista aberto. Ao mesmo tempo, os republicanos foram percebendo que se fingissem ser contrários ao aborto - apenas fingissem - poderiam ganhar o enorme voto evangélico. Se a gente voltar para a década de 1960, os líderes do Partido Republicano eram pró-escolha da mulher. Reagan, George H. W. Bush faziam parte basicamente dos apoiadores de Roe versus Wade (a decisão da Suprema Corte que liberou o aborto em todos os EUA até ser derrubada pela Corte este ano). Reagan, como governador da Califórnia, passou uma das leis mais abrangentes para garantir o acesso ao aborto (em 1967). Os estrategistas do Partido Republicano de meados dos anos 1970 que perceberam que, se fingissem ser anti-aborto, poderiam obter o enorme voto evangélico e o voto católico do norte. E num estalar de dedos, todos eles se tornaram apaixonadamente anti-aborto. Isso está acontecendo agora no Brasil, o grande voto evangélico vai para Bolsonaro também. Novamente, (a estratégia de investir nas) questões culturais. Você olha para as eleições de 2018 no Brasil, nas quais suspeito que Steve Bannon esteve muito envolvido, e as mensagens que vinham no WhatsApp, que é o que a maioria das pessoas olham, é que o PT ia destruir as igrejas, ia transformar seus filhos em homossexuais e assim por diante. Esse é o problema. Desta vez, eles são todos ladrões corruptos que atacam a igreja, e por aí vai. Se você tivesse um partido político ou qualquer organização geral defendendo os trabalhadores e os pobres, eles poderiam reagir a isso (fake news) na base, via organização local. Os Democratas não têm. E acho que não existe nada parecido no Brasil. O PT simplesmente não está se organizando na base, no chão de fábrica. O que eles estão fazendo é como quando os democratas nos Estados Unidos se reúnem para ir a uma das festas chiques de (Barack) Obama, onde podem ouvir Beyoncé cantando e discutir. Se os republicanos querem apelar à classe trabalhadora, o que eles fazem é mandar que George W. Bush vá a um bar e peça uma cerveja e finja ser um "Zé" da classe trabalhadora comum. O que os democratas fazem: John Kerry vai praticar windsurf. Isso realmente não vai agradar aos trabalhadores. O PT e os Democratas se tornaram partidos de pessoas abastadas, que vão às universidades discutir o que fazer. E aí já está perdido. De outro lado, os republicanos estão já bastante esgotados com os seus principais apoiadores, os setores corporativos, que não gostam deles. Assim como a classe empresarial no Brasil não gosta da vulgaridade e crueldade de Bolsonaro. Mas ainda assim, os dois grupos acham melhor isso do que ter outro petista ou democrata no poder. BBC News Brasil - O senhor está traçando muitos paralelos entre os EUA e o Brasil. Há quem acredite que o país pode viver uma situação como o 6 de janeiro de 2021, quando trumpistas invadiram o Capitólio pra contestar os resultados eleitorais. O senhor vê esse risco no Brasil? Chomsky - O tumulto das motociatas do Bolsonaro dão uma ideia do que poderia ser. E olha que era apenas um desfile pelas ruas da cidade. Acho que os próximos serão meses muito difíceis. Bolsonaro fez declarações alegando possíveis fraudes tão extremas que a comunidade diplomática internacional se opôs fortemente. Então eu acho que eles vão se abster desse tipo de movimento. Mas é perfeitamente possível que eles possam replicar o 6 de janeiro. Lembre-se, o 6 de janeiro chegou muito perto de um golpe e só não o foi porque meia dúzia de pessoas decidiram diferente. Teria sido um golpe se (o vice de Trump) Mike Pence e (o então líder da maioria no Senado) Mitch McConnell estivessem dispostos a ver o sistema democrático formal derrubado. Foi muito perto. Se aconteceu nos EUA, há um risco muito grande de que aconteça no Brasil. O país está obviamente muito dividido e Bolsonaro está despejando armas na mão de pessoas que se organizariam facilmente para dar um golpe. Não é preciso muita imaginação para pensar que os mesmos que participam da motociara também poderiam pegar em armas se for o caso. Como Trump, Bolsonaro disse muito explicitamente que ele não vai ser derrotado, quem sabe o que ele quer dizer? BBC News Brasil - Se Lula vencer, o que ele deveria fazer em seu terceiro mandato? Chomsky - Bom, a essa altura está meio tarde, mas eles precisam começar a se organizar entre a população em geral. Não basta ter artistas do seu lado, ou ter acadêmicos, é preciso sair às ruas e se organizar para realmente ter forças populares reais ali. Não é que faltem pessoas (nesse campo da esquerda). Houve grandes manifestações populares (contra Bolsonaro), mas meio espontâneas. Eu não acho que eles tinham uma organização unificada ou um conteúdo político direto, exceto o "fora Bolsonaro" ou algo assim. Isto não é suficiente. BBC News Brasil - Como o governo Bolsonaro se compara ao de Trump? Chomsky - Uma das semelhanças é voltar a atenção do público para outro lugar. Essa técnica de apontar pro outro lado e gritar 'olha lá o ladrão', pra se livrar de questionamento sobre o aumento da fome e da pobreza, sobre as mortes da pandemia. Mas o pior crime de Bolsonaro, não só para os brasileiros, mas para o mundo inteiro, é destruir a Amazônia. Mais alguns anos com o atual avanço da extração ilegal da madeira, do agronegócio e da mineração e chegaremos em pontos de inflexão irreversíveis, no qual a floresta se converte em savana. Sabe-se que isso acontecerá mais cedo ou mais tarde, mas essa possibilidade se aproximou muito por causa desses ataques destrutivos. É um desastre para o Brasil, uma catástrofe para o mundo inteiro. Em vez de tratar disso, vamos fazer campanha em outra coisa: 'olha aí, os ladrões do PT, tentando enganá-lo', 'eles vão destruir a família', 'vão atacar a igreja cristã'. Enquanto isso, nos aproximamos mais e mais do ponto em que não vamos mais sobreviver.
2022-10-05
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63142103
brasil
Como institutos de pesquisa explicam Bolsonaro subestimado nas sondagens
Institutos de pesquisa, que já eram alvo de contestação durante a campanha, entraram na berlinda após a divulgação dos resultados do primeiro turno. Isso porque o saldo das urnas revelou que o desempenho do presidente Jair Bolsonaro (PL) ficou acima do que indicavam as principais sondagens eleitorais. Ele obteve 43,2% dos votos válidos (desconsiderados votos brancos e nulos) e vai disputar o segundo turno contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que obteve 48,4%, terminando em primeiro lugar. Em entrevista coletiva na noite de domingo, Bolsonaro afirmou, quando questionado pelos jornalistas, que o resultado da eleição "desmoralizou de vez os institutos de pesquisa" por prever votação menor do que recebeu. "Isso vai deixar de existir, até porque acho que não vão continuar fazendo as pesquisas, esse pessoal", afirmou. "A credibilidade dos institutos, que já era colocada em xeque pelos bolsonaristas, agora é colocada pelo resto da sociedade. Seguramente não é manipulação, mas é uma limitação [dos institutos] que a gente precisa entender", disse à BBC News Brasil. Fim do Matérias recomendadas Os institutos Ipec, Datafolha e Quaest insistem que pesquisas eleitorais são retratos da intenção do eleitor no momento das entrevistas. Segundo os institutos, as sondagens não servem de prognóstico para o resultado das urnas porque o eleitor pode mudar seu voto até o momento que digita os números de seus candidatos na cabine de votação. Datafolha e Ipec deram 14 pontos de vantagem para Lula em seus levantamentos divulgados na véspera da votação, enquanto a Quaest mediu 11 pontos de diferença. Os três institutos realizam pesquisas presenciais. Considerando a margem de erro, as três sondagens não permitiam cravar se a disputa presidencial terminaria ou não no primeiro turno. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O saldo das urnas mostrou uma vantagem mais apertada para o petista. Com 99,99% das urnas apuradas, ele obteve 48,4% dos votos válidos, contra 43,20% de Bolsonaro — uma diferença de cinco pontos percentuais. Simone Tebet (MDB) ficou em terceiro, com 4,16%, seguida de Ciro Gomes (PDT), com 3,04%. Em nota enviada à BBC News Brasil, o Ipec destacou os acertos do instituto. "Especificamente com relação a estas eleições presidenciais, nossa última pesquisa mostrou que não era possível afirmar se a eleição acabaria ou não no primeiro turno. Assim se confirmou. A pesquisa Ipec apontava Lula como o candidato que ficaria melhor posicionado no 1º turno. Isto também se confirmou. Já o presidente Jair Bolsonaro obteve 6 pontos a mais do que a pesquisa mostrava", destacou o comunicado. Segundo o instituto, o desempenho do presidente foi resultado de uma migração de votos de última hora, que vieram de parte dos que pretendiam votar em Ciro e Tebet, além de eleitores que estavam indecisos e optaram por Bolsonaro. "Em nossa avaliação, isto (a votação maior de Bolsonaro) ocorreu por tendências também já apontadas pela pesquisa: 3% que ainda estavam indecisos; Ciro Gomes, que na pesquisa aparecia com 5% e obteve 3% dos votos na apuração; além do índice de Simone Tebet que também ficou um ponto abaixo do que a pesquisa mostrava (obteve 4% na apuração contra 5% na pesquisa)", argumenta a nota do Ipec. A diretora do Datafolha, Luciana Chong, fez análise semelhante em entrevista ao canal de notícias Globo News. "Acreditamos que teve um movimento de decisão de última hora, especialmente de eleitores de Ciro, Simone Tebet, indecisos e os que poderiam votar branco e nulo, e esse movimento acabou sendo mais em favor de Bolsonaro. Por isso que ele ficou com um resultado maior do que a pesquisa tinha captado na véspera da eleição", afirmou. Chong não atendeu ao pedido de entrevista da BBC News Brasil, assim como Felipe Nunes, da Quaest. O Ipec disse ainda por meio da nota que está em constante reavaliação de duas metodologias. "O Ipec é associado à ABEP [Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa], segue o código de ética da ESOMAR [associação internacional do setor] e os mais altos padrões adotados internacionalmente nos métodos utilizados em suas pesquisas. Além disso, está empenhado e comprometido em sempre analisar, identificar e aplicar melhorias técnicas e metodológicas que contribuam para o avanço e a acuracidade do resultado de suas pesquisas, pois sabe que este processo é contínuo", destacou. Já Andrei Roman, presidente da AtlasIntel, empresa que chamou atenção neste ano ao realizar pesquisas eleitorais com entrevistas online, avaliou que houve sim erro dos institutos de pesquisa. "Não, as pesquisas erraram! Atlas chegou mais próximo que qualquer outra e mesmo na nossa pesquisa Bolsonaro foi subestimado em 2pp [pontos percentuais] e Lula superestimado 2pp. A diferença de 9 pontos no Atlas acabou sendo de 5 pontos no resultado. Precisamos encarar esse desfecho com honestidade", escreveu no Twitter, em resposta a um comentário da colunista do jornal Folha de S. Paulo Mônica Bergamo argumentando que as pesquisas acertaram. A última pesquisa AtlasIntel indicou que Lula tinha 50,3% dos votos válidos, contra 41,1% de Bolsonaro. Além da transferência de votos de Ciro e Tebet para Bolsonaro, Roman acredita que o resultado melhor de Bolsonaro foi puxado por uma mobilização mais "aguerrida" do seu eleitorado devido à possibilidade de Lula ganhar já no primeiro turno, indicada nas pesquisas. Isso, avalia, reduziu a abstenção dos eleitores do presidente. "A pesquisa Datafolha mostrando uma possível vitória de Lula no primeiro turno assusta o eleitorado de uma forma que eles comparecem em massa", acredita. Além disso, Roman também considera que Ipec e Datafolha superestimaram em suas amostras de entrevistas o peso do eleitor de menor renda, que tende a apoiar mais Lula. Ambos não usam cotas de renda para buscar uma proporção fixa de entrevistados com determinada remuneração, pois avaliam que os ganhos familiares são muito instáveis no Brasil, ou seja, a renda das famílias teria grandes oscilações. Com isso, os levantamentos de Ipec e Datafolha costumam entrevistar mais de 50% de pessoas com renda familiar de até dois salários mínimos, enquanto o dado mais recente do IBGE, de 2021, indica que esse grupo representa 38% da população. O cientista político Antonio Lavareda, presidente do Conselho Científico do Ipespe (Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas), instituto que realiza pesquisas por telefone, também considera que a maior mobilização do eleitor de Bolsonaro parece ter feito a diferença no resultado das urnas. Lavareda, porém, não considera que as pesquisas erraram, como faz Roman. Em manifestação no Twitter, ele também repetiu que pesquisas não são prognóstico do saldo das urnas e destacou que as sondagens não conseguem medir qual será a abstenção no dia da votação e como isso afetará os resultados. O cientista político propôs em seu Twitter uma análise comparando as intenções de votos totais medidas na última pesquisa do Ipespe e o resultado total das urnas, em vez de comparar os votos válidos. Considerando essa leitura, que não descarta votos brancos, nulos e pessoas que dizem não saber em quem votar, o Ipespe mediu um apoio de 46% dos eleitores a Lula, e de 33% a Bolsonaro. Já o resultado do TSE, levando em conta brancos, nulos e abstenções, mostra que o petista recebeu os votos de 36,60% de todos os eleitores aptos a votar, contra 32,64% de Bolsonaro. Os demais candidatos somados, por sua vez, apareciam com 16% na última pesquisa Ipespe, e ficaram com apenas 6,33%, sempre considerando os votos obtidos no total de eleitores aptos a votar. Nessa análise de Lavareda, não foi a votação de Bolsonaro que a pesquisa Ipespe "errou" para menos, mas a de Lula que teria sido superestimada. "No dia deu-se uma abstenção de 20,95% que essa pesquisa e nenhuma outra conseguiria medir. Lula perdeu 9 pontos e os candidatos não competitivos outros 9 pontos. Lula por conta da vulnerabilidade — custo de votar — do seu eleitorado mais pobre. Os demais candidatos certamente por não serem competitivos", escreveu em sua conta no Twitter. "Lógico que pode ter havido movimentos de voto útil. Mas o fato é que a sua resiliência deve ser creditada, sobretudo, ao perfil socioeconômico dos seus apoiadores e à 'taxa de entusiasmo' dos mesmos, como se pode depreender das manifestações que convoca. Ou seja, a pesquisa estimou Bolsonaro praticamente igual ao seu desempenho. Enquanto parte dos votos de Lula foram tragados pela abstenção", acrescentou Lavareda. Além das discrepâncias no cenário nacional, candidatos bolsonaristas tiveram votações expressivas em algumas disputas por governos estaduais. Em São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) ficou em primeiro lugar e vai disputar o segundo turno contra Fernando Haddad (PT), que liderava as pesquisas. Já no Rio Grande do Sul, Onyx Lorenzoni (PL) também teve desempenho melhor do que se esperava, vencendo o primeiro turno, e vai disputar o segundo contra Eduardo Leite (PSDB), que liderava pesquisas antes do pleito, mas acabou quase ficando de fora do segundo turno. Resultados como esses levaram o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP), a voltar a defender que o Congresso aprove uma regulamentação com regras para os institutos. "Nós tínhamos pesquisas que mostravam o Tarcísio 10 pontos atrás e a realidade da eleição mostra o Tarcísio na frente. As votações e expressões da população brasileira deixam claro que as empresas de pesquisa não devem ser usadas para conduzir o eleitorado", defendeu em entrevista ao canal de notícias Globo News. No início do ano, uma proposta chegou a ser debatida no Congresso, mas não avançou. A proposta inicial previa que os institutos deveriam informar um percentual de acertos das pesquisas realizadas nas últimas cinco eleições. Além disso, proibia a divulgação de pesquisas na véspera da votação. Antonio Lavareda, do Ipespe, também refuta que tenha havido erros nas pesquisas estaduais. Na sua avaliação, a forte polarização entre Lula e Bolsonaro afetou a decisão final dos eleitores nas disputas estaduais, levando a um alinhamento entre o voto para presidente naquele Estado e a escolha do candidato ao governo apoiado por ele. "Na quase totalidade dos Estados onde a eleição de Governador foi decidida nesse domingo as pesquisas anteciparam essa tendência. Sobre as mudanças de última hora, elas foram exatamente isso. Movimentos finais que ocorreram depois dos últimos resultados de pesquisas serem divulgados." "Precisamente como a teoria do voto estratégico supõe: eleitores que utilizam os dados dos últimos levantamentos para alterar seu comportamento. Em Estados como São Paulo, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul, e Bahia, é nítido um processo de 'alinhamento' com a disputa nacional super polarizada", disse ainda.
2022-10-04
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63128876
brasil
As hipóteses para explicar os votos de Bolsonaro que as pesquisas não previram
A votação acima do previsto pelos institutos de pesquisas do presidente Jair Bolsonaro (PL) e de outros candidatos associados ao bolsonarismo gerou surpresa e debates. Na véspera do primeiro turno, as pesquisas Datafolha e Ipec mostravam uma vantagem de cerca de 14 pontos percentuais de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre Bolsonaro. O Datafolha estimou em 36% o número de votos válidos de Bolsonaro, e o Ipec, em 37%, o que daria, em uma conta simples, em torno de 42 milhões dos 118,2 milhões de votos válidos computados no último domingo (2/10) pelo Tribunal Superior Eleitoral. Mas o atual presidente teve, na realidade, 51 milhões de votos válidos, ou seja, 43,2%, acima da margem de erro das pesquisas, de dois pontos percentuais. No rescaldo do primeiro turno, especialistas levantam hipóteses que - isoladamente ou em conjunto - podem ajudar a explicar as discrepâncias. Fim do Matérias recomendadas Ao mesmo tempo, representantes dos institutos de pesquisa dizem que as sondagens captam o momento e não são uma previsão de futuro. Retrato mais fiel da composição da população brasileira, o Censo está desatualizado: os dados consolidados mais recentes são de 2010. A coleta de dados atualizados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) deveria ter acontecido em 2020, mas foi adiada duas vezes - por conta da pandemia e por falta de verbas - e só começou em agosto de 2022. E qual o impacto eleitoral disso? É que os institutos conduzem suas pesquisas de opinião com base em amostras de recortes da população - de renda, idade, classe social ou religião, por exemplo. Se essas amostras estatísticas forem embasadas em conjuntos populacionais desatualizados, isso pode impactar o resultado das pesquisas eleitorais, segundo estatísticos. Os institutos de pesquisa, é claro, têm ciência das limitações impostas pelo Censo e usam dados adicionais para calibrar suas amostragens - como os da Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar (Pnad) ou do Tribunal Superior Eleitoral. Mesmo assim, analistas veem a possibilidade de certos grupos teoricamente mais alinhados a Bolsonaro estarem subestimados. Os evangélicos, por exemplo, eram 22% no Censo de 2010, mas pesquisas do Datafolha já sinalizavam que esse público havia subido para 31% da população em 2019. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A campanha entre o eleitorado evangélico na reta final, por sinal, pode ter feito diferença em favor de Bolsonaro, avaliou a brasilianista Amy Erica Smith, da Universidade Estadual de Iowa. Ela agregou que é comum que nos dias que antecedem o pleito ou no próprio domingo de votação, líderes religiosos defendam candidatos em sermões ou redes sociais. "Com isso, pode haver mudanças de última hora em favor do candidato apoiado pelas igrejas", disse. "Alguns chamam isso de clientelismo, mas não é bem por aí, porque não há necessariamente compra de votos. O que acontece é que muitas pessoas ainda estão indecisas e acabam tomando a decisão no último dia, influenciadas pelas igrejas". Outra possibilidade para esse grupo não ter sido plenamente captado pelos institutos de opinião é que "Bolsonaro em vários momentos pregou certa desconfiança em relação às pesquisas. Isso pode ter feito com que alguns de seus eleitores não respondessem aos questionários e pesquisadores", avalia Smith. "As pessoas estão mais informadas em relação ao perigo das fake news do que estavam em 2018, quando muitos foram pegos de surpresa. Mas certamente esse tipo de desinformação com fundo religioso terá grande impacto no resultado", disse à BBC News Brasil, antes das eleições, Magali Cunha, pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser) e editora-geral do Coletivo Bereia, especializado em checagem de notícias falsas com teor religioso. Esse fenômeno se baseia em uma teoria de comunicação de massa conhecida como "espiral do silêncio", segundo a qual o indivíduo tende a omitir sua opinião quando ela contraria a opinião dominante, por medo de isolamento social. Nos meses anteriores à votação, o cientista político Antonio Lavareda, presidente do Conselho Científico do Ipespe (Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas), levantou a hipótese de haver voto envergonhado em Bolsonaro entre camadas do eleitorado em que Luiz Inácio Lula da Silva se manteve majoritário, por exemplo nas camadas de baixa renda e escolaridade. Lavareda disse na ocasião que discrepâncias entre resultados de pesquisas de intenção de voto presenciais (quando as pessoas podem se sentir mais inibidas a falar diante de pessoas conhecidas) e por telefone poderiam sugerir uma subnotificação de votos bolsonaristas. O cientista político Felipe Nunes, do instituto de pesquisas Quaest, disse que, na verdade, seus levantamentos haviam identificado o contrário: um possível voto envergonhado em Lula, explicável pelo medo de sofrer violência ou por ser associado aos escândalos de corrupção atribuídos ao PT. Outros institutos de pesquisa, como Ipec e Datafolha, disseram não ter identificado evidências de subnotificação, mas já adiantavam que só depois das eleições seria possível ter certeza se a "espiral do silêncio" de fato aconteceria ou não. Outro fator que vai ser debatido na campanha do segundo turno é o destino dos votos dos candidatos atrás de Bolsonaro e Lula nas pesquisas, em especial Simone Tebet (MDB) e Ciro Gomes (PDT). A campanha de Ciro, em particular, desidratou na reta final do primeiro turno. O candidato, que se apresentava como a principal alternativa para a polarização no país, acabou com 3,5% dos votos válidos (3 pontos percentuais a menos do que nas pesquisas), atrás de Tebet, com 6,34%. Houve muito esforço da militância petista para tentar migrar votos de Ciro para Lula ainda no primeiro turno. Na avaliação de Felipe Nunes, do Quaest, porém, tudo indica que Bolsonaro é quem se beneficiou dessa desidratação cirista ainda no primeiro turno. "O voto útil que a gente observou na reta final do (eleitor do) Ciro foi todo na direção de Bolsonaro", disse ele em entrevista ao UOL. O outro lado dessa equação, porém, é que, caso esse movimento a favor de Bolsonaro já tenha de fato acontecido, o saldo restante de votos em Ciro provavelmente tem mais chances de migrar para Lula no segundo turno, na avaliação de Nunes. Mas, para o analista Bruno Carazza, autor de Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro, ainda é cedo para cravar para onde foram os votos de Ciro, uma vez que Lula pode ter herdado parte desses votos no primeiro turno. No Twitter, Filipe Campante, professor na Universidade Johns Hopkins (EUA), também acha possível que o voto útil possa já ter beneficiado o próprio Lula. "Impressionante como muita gente está assumindo que o voto útil não funcionou, quando é perfeitamente possível que tenha sido o que salvou Lula e o manteve à frente", escreveu ele no Twitter. Um dos destaques do primeiro turno foi a votação expressiva do ex-ministro bolsonarista Tarcísio de Freitas (Republicanos) a governador em São Paulo. Ele estava em segundo lugar nas pesquisas de opinião, mas acabou com mais votos válidos (42,3% a 35,7%) do que Fernando Haddad (PT), com quem vai disputar o segundo turno. Uma possibilidade é que Tarcísio tenha recebido voto útil de parte dos eleitores do atual governador, Rodrigo Garcia (PSDB). Mas seu desempenho sinaliza algo também para a disputa nacional: que Bolsonaro e aliados se beneficiaram ainda mais do que o previsto do sentimento antipetista em Estados onde Lula mantém alta rejeição, como nos da região Sudeste, que abriga o maior colégio eleitoral do país. Em São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo, Bolsonaro ganhou com folga de Lula no primeiro turno - à frente por cerca de 7, 10 e 12 pontos percentuais, respectivamente. Nessa região, Lula só venceu em Minas Gerais (por 5 pontos percentuais), apesar de as pesquisas de opinião terem previsto uma vantagem de Lula no Sudeste - o Datafolha previa vantagem de 8 pontos percentuais do candidato petista na região. De modo geral, o interior do país - tanto do Sudeste quanto do Sul e do Centro-Oeste - tem sido negligenciado por acadêmicos, analistas e imprensa, avalia Carazza. Dessa forma, deixa-se de compreender um conjunto de valores e anseios diferentes dos que predominam nos grandes centros urbanos, bem como como de representá-los corretamente do ponto de vista estatístico, aponta o analista. "E o Bolsonaro se comunica muito bem nessa região, algo que ficou explícito na votação (expressiva de aliados do presidente) para Câmara e Senado". Na Câmara, por exemplo, o PL, partido de Bolsonaro, terá a maior bancada. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) apontou que a abstenção no último domingo foi de 20,9%, ou seja, 32 milhões de brasileiros aptos a votar não compareceram às urnas. É uma porcentagem parecida à de 2018 (de 20,3%), mas ainda assim a maior das últimas duas décadas em pleitos presidenciais. Outro tema que tem despertado debates é quanto a se os institutos de pesquisa estão conseguindo captar com precisão a opinião de determinados públicos, como o conservador. "Não é uma surpresa que teremos segundo turno, mas é uma surpresa que será um segundo turno competitivo", disse à BBC News Brasil o brasilianista Brian Winter. "Está claro que o Brasil, assim como os Estados Unidos, tem um eleitor conservador que não aparece de forma adequada nas pesquisas. Como na Itália, Suécia, Estados Unidos e Reino Unido, há uma população conservadora muito energizada que a mídia e outros consistentemente subestimam." Nos EUA, em 2020, lembra ele, as pesquisas eleitorais davam ao democrata Joe Biden uma vantagem muito mais ampla sobre Donald Trump do que mostrou o resultado nas urnas. "Essa sensação de sentar em frente à TV, observar a divulgação de resultados e ficar surpreso com o número de votos conservadores é um déjà vu que passamos dez vezes ao longo dos últimos seis anos, desde a eleição de Trump [em 2016]", diz Winter. Ele ressalta que os próprios conservadores podem ser mais reativos a dar entrevistas aos institutos de pesquisa, porque muitos acham que o sistema está contra eles. Agora, é preciso entender o quanto esse fenômeno pode estar se repetindo entre o público conservador no Brasil, avalia Bruno Carazza. Alguns afirmaram no Twitter terem "boicotado" os institutos de pesquisa (o que, vale destacar, podem ser apenas casos isolados, sem impacto na qualidade dos dados coletados). Felipe Nunes, do Quaest, rebateu as críticas às pesquisas de opinião. "A gente passou a campanha inteira dizendo que pesquisa não é prognóstico (do que vai acontecer), é diagnóstico, (mas) chega a eleição, as pessoas esquecem disso e cobram das pesquisas algo que elas são incapazes de fazer, que é adivinhar o que o eleitor vai fazer", disse ele em entrevista ao UOL nesta segunda-feira. O papel da pesquisa, agregou ele, é "nos ajudar a entender os movimentos que estão por vir", disse ele, destacando que a votação de Lula esteve dentro da margem de erro prevista pelas pesquisas e que a de Bolsonaro pode ter se beneficiado de movimentos como o voto cirista. Na semana anterior à votação, Luciana Chong, diretora do Datafolha, disse também ao UOL que a serventia da pesquisa eleitoral é "trazer várias fotografias" dos momentos que antecedem a eleição. Com reportagem de Paula Adamo Idoeta, Luis Barrucho, Julia Braun e Thais Carrança, da BBC News Brasil em Londres e São Paulo - Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-6311639
2022-10-03
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63111639
brasil
Do estrelato nacional ao sumiço do Twitter após escândalos, como Aécio Neves se reelegeu
A trajetória de Aécio Neves (PSDB) na política é pouco convencional. Em carreira arrebatadora, o tucano de 62 anos conquistou alguns dos cargos mais importantes do Brasil e acumulou recordes de votação até 2014, quando começou a derreter e, pouco a pouco, desaparecer do debate público e das redes sociais. No domingo (2/10), após ser governador duas vezes, senador e quase presidente da República, Aécio se reelegeu deputado federal com um terço dos votos que recebeu aos 26 anos, em sua estreia como deputado federal, em 1986. O encolhimento reflete a trajetória da presença do mineiro em redes sociais: Aécio abandonou o Twitter - plataforma preferida por políticos em todo o país - e manteve presença apagada no Facebook, onde é seguido por 3,5 milhões de pessoas. No TikTok, Aécio tem pouco mais de 6,5 mil seguidores e menos de 100 curtidas em boa parte de suas publicações. A título de comparação, Nikolas Ferreira, deputado mais votado de Minas Gerais nesse ano, tem 1,9 mihão de seguidores e centenas de milhares de curtidas em seus posts no TikTok. Fim do Matérias recomendadas A curva política ascendente de Aécio Neves se chocou com uma sequência de escândalos de corrupção. Em ação movida pela Procuradoria Geral da República, em maio de 2020, Aécio foi acusado de receber R$ 65 milhões em propina das construtoras Andrade Gutierrez e Odebrecht. Segundo a Polícia Federal, os supostos crimes teriam ocorrido em contratos para a construção de usinas hidrelétricas em Rondônia e obras envolvendo a estatal mineira Cemig e a federal Furnas. Aécio sempre negou qualquer irregularidade. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em agosto deste ano, o PGR Augusto Aras recuou da denúncia, pedindo que o Supremo Tribunal Federal rejeitasse a ação por conta de impedimentos legais em denúncias com base em delações. Mas a acusação mais famosa acontecera 3 anos antes, em 2016, quando Aécio chegou a ser afastado temporariamente da função de senador após uma gravação mostrar o tucano pedindo R$ 2 milhões ao empresário Joesley Batista, da JBS. De acordo com procuradores, à época, Aécio, a irmã Andrea Neves e o primo Frederico Pacheco de Medeiros teriam recebido dinheiro do empresário em troca de favores políticos. Andrea e Frederico chegaram a ser presos. Aécio dizia que os R$ 2 milhões seriam na verdade um empréstimo pessoal para pagar advogados. Em março deste ano, Aécio foi absolvido pela Justiça Federal de SP pela acusação de recebimento de propina de Joesley, alegando que não havia provas de que o mineiro tivesse usado seu cargo para beneficiar o empresário. O político comemorou a decisão e disse, em nota, "depois de cinco anos de explorações e injustiças, foi demonstrada a fraude montada por membros da PGR e por delatores que colocou em xeque o estado democrático de direito no país". Vindo de uma família rica mineira, neto do ex-presidente Tancredo Neves, Aécio foi eleito pela primeira vez deputado federal em 1986 e participou da construção da Constituição de 1988. Foi deputado federal até 2002, quando se elegeu pela primeira vez governador de Minas Gerais com a maior votação da história do Estado até então: 5.282.043 votos. Em 2006, foi reeleito ao governo e bateu o próprio recorde: 7,4 milhões de votos. Em 2010, ganhou 100 mil novos apoiadores e foi o terceiro senador mais votado do Brasil, com 7,5 milhões de votos. Em 2014, o mineiro era um dos políticos mais influentes do país. Tentou a presidência da República e alcançou impressionantes 51 milhões de votos no segundo turno. Teve 48,36% do total e perdeu para a petista Dilma Rousseff, que alcançou 54,5 milhões de votos. Em 2015, Aécio tentou contestar, sem sucesso, o resultado da eleição que o derrotara. E foi a partir daí que a curva ascendente de Aécio mudou. Em 2018, o tucano recuou, fechou-se novamente em seu Estado de origem e disputou a Câmara dos Deputados por Minas Gerais. Teve apenas 1,4% dos votos que amealhara 12 anos antes como governador: 106.702, o que o tornou o 19° deputado mais votado no Estado naquele ano. Agora, em 2022, Neves recua mais um pouco: 85.341 votos, 21 mil a menos que na eleição anterior. Reeleito, ele caiu para 34° na lista de deputados mais votados em MG. Quatro anos após declarar R$ 6.152.994 de patrimônio, em 2018, Aécio declarou R$ 1,9 milhão em 2022 - uma queda de R$ 4,2 milhões. Enquanto concorrentes como Andre Janones (Avante), segundo deputado federal mais votado em Minas Gerais, chegam a ter média superior a 10 tuítes por dia, o perfil de Aécio na rede preferida por políticos segue abandonado desde 2018. No Facebook, rede em que é mais popular, Aécio chegou a passar mais de 10 dias sem nenhuma nova publicação - mesmo no auge da campanha. Nikolas Ferreira, o campeão de votos no Estado, publica entre 4 e 8 mensagens diárias na mesma rede. A rede em que Aécio se manteve mais presente foi o Instagram, onde celebrou o Dia Internacional do Idoso, na véspera da votação, e costuma publicar memes com sua foto e seu número nas urnas: 4545. Recentemente, em um vídeo, ele compartilhou com seguidores quais seriam suas três músicas favoritas: Deixa a Vida me Levar (Zeca Pagodinho), Por Você (Barão Vermelho) e Tocando em Frente (Almir Sater). Destoando de outros candidatos, que apostam em publicar intensamente fotos com eleitores e visitas a campo, Aécio postou poucas imagens de campanha nas ruas, incluindo visitas a cidades mineiras como Contagem, São João Del-Rei, Lagoa Dourada e Francisco Sá. No TikTok, mesmo com baixo engajamento e poucos seguidores, Aécio se arriscou a dançar e participar de desafios virais. O último grande momento de Aécio Neves nas redes sociais foi sem querer. Em meio ao racha que fez o PSDB ficar sem candidato à presidência pela primeira vez em sua história em 2022, Aécio virou meme ao aparecer com o rosto mudado em uma foto ao lado de Paulinho da Força e Eduardo Leite (PSDB). Segundo a imprensa mineira, a estratégia de Aécio seria voltar gradualmente ao debate nacional até 2026, quando tentaria novamente um cargo de maior expressão: um eventual terceiro mandato em Minas ou no Senado Federal. Para tanto, o político vai precisar reverter a trajetória de queda de votos que vem enfrentando desde 2018.
2022-10-03
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brasil
Bolsonaro teve só 1 voto em Cuba: veja destaques da votação no exterior
Em Cuba, um dos países mais citados no bangue-bangue eleitoral brasileiro, o presidente Jair Bolsonaro (PL) teve apenas 1 voto, ou 3,23% do total, enquanto Luiz Inácio Lula da Silva (PT) venceu com 28 votos, ou 90,32%. Completam a modesta votação brasileira na ilha socialista Ciro Gomes (PDT), com 1 voto, e Luiz Felipe D'Avila (Novo), também com 1. Segundo o Tribunal Superior Eleitoral, o ex-presidente petista foi o vencedor geral do primeiro turno entre os brasileiros que vivem no exterior. Com 99,15% das urnas apuradas, Lula obteve 47,13% dos votos válidos lá fora, enquanto Bolsonaro, que busca a reeleição, 41,63%. Em números absolutos, Lula teve mais de 137,6 mil votos no exterior, enquanto Bolsonaro, 121,6 mil. Fim do Matérias recomendadas Ciro Gomes foi o terceiro, com cerca de 13,2 mil votos e Simone Tebet (MDB), a quarta, com 13,05 mil. Em Israel, cuja bandeira é uma das mais frequentes em manifestações de apoio ao presidente no Brasil, Bolsonaro ganhou com 45,98% em Tel Aviv, contra 39,37% para Lula. Há 4 anos, no 1º turno, Bolsonaro alcançou 66,5% dos votos ali, enquanto Fernando Haddad teve só 6,8%. De forma geral, o petista foi o preferido por brasileiros na Europa e Oceania. Bolsonaro venceu no Oriente Médio, EUA e Japão. A disputa foi mais acirrada na América Latina, África e na Ásia. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No maior colégio eleitoral de brasileiros no exterior, Lisboa (Portugal), Lula venceu com 61,6% dos votos (contra 30,58% de Bolsonaro). Em Miami (EUA), segundo maior colégio, Bolsonaro ganhou com 74,3%, contra 16,24% de Lula. Boston (EUA) abriga a terceira maior comunidade de eleitores brasileiros. Por lá, Bolsonaro teve 69,89% e Lula teve 23,04%. Em Tóquio, no Japão, Bolsonaro ganhou com 66,94% dos votos. Em Nagoia, o atual presidente teve 75,47% dos votos. Em Hamamatsu, terceiro e últimos posto de votação no Japão, Lula teve apenas 11,59% dos votos, enquanto Bolsonaro ganhou 75,37%. Na Itália, quarto país em número de brasileiros votando, Lula venceu com 50,18% dos votos em Milão e 54,76% em Roma. Lula ganhou nos três locais de votação na Alemanha, quinto maior colégio eleitoral: em Berlim, teve 79,65% dos votos (contra 11,14% para Bolsonaro). Em Frankfurt, Lula teve 64%, ante 22,84%. E em Munique, o petista registrou 60,16% contra 24,73. Segundo o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), mais de 697 mil eleitores estavam aptos a votar no exterior neste ano - um aumento de 39,21% em relação a 2018. Com 58,54%, mulheres são a maioria do eleitorado cadastrado no exterior. A maior parte dos eleitores brasileiros que vivem fora tem entre 35 e 44 anos.A votação estava prevista para ocorrer em 181 cidades em todo o mundo. No continente europeu, Lula foi o mais votado em países como Portugal, Espanha, Holanda, França, Alemanha, Reino Unido e Irlanda. A exceção foi a Grécia, onde Bolsonaro venceu com 46,9% dos votos. Em Portugal, Lula teve 60,5% dos votos no Porto, 61,6% em Lisboa e 49,1% em Faro. No Reino Unido, onde a votação foi realizada apenas em Londres, Lula ganhou com 55,18% dos votos contra 34,94% de Bolsonaro. Na Espanha, Lula venceu com 52,27% em Madri e 70,2% em Barcelona. Na França, o petista teve 77,23% dos votos. Na Hungria, liderada pelo aliado de Bolsonaro Viktor Orbán, Lula teve 80,89% dos votos contra 11,86% de Bolsonaro. Na Rússia, o petista teve 53,57% contra 33,33% de Lula. Não houve votação em Kiev, na Ucrânia. Já em países africanos, o ex-presidente ganhou em mais países, incluindo Angola, Costa do Marfim, Gana, Guiné-Bissau, Quênia, Cabo Verde, Marrocos, Senegal, Egito e Tunísia. Mas a votação de Bolsonaro foi expressiva no maior colégio eleitoral brasileiro no continente: Pretória, na África do Sul, com 63,7% dos votos. Bolsonaro também venceu em Moçambique, com 51,55% dos votos contra 40,21% de Lula. Na República Democrática do Congo, Bolsonaro venceu com 82,35% dos votos. Em Angola, Lula teve 52,54% dos votos contra 39,41% de Bolsonaro. No Marrocos, Lula venceu com 64,5% dos votos. Na Costa do Marfim, o petista ganhou com 45,65% dos votos. Na Tanzânia, Lula ganhou com 75% dos votos. Entre os vizinhos latino-americanos, Lula ganhou na Argentina, Colômbia, Chile, Cuba, Jamaica, México e Nicarágua. Já Bolsonaro venceu em Paraguai, Equador, Bolívia, Peru, Guiana, Suriname, Honduras, Rep Dominicana, Haiti, Bahamas e El Salvador. Na Argentina, Lula ganhou com 64,68%. Já na Bolívia, terra de Evo Morales, aliado histórico de Lula, Bolsonaro ganhou em todas as cidades. O petista venceu no Chile, com 44,86%, O resultado também foi positivo para Lula na Colômbia, com 52,82%. No Equador, Bolsonaro teve vitória expressiva, com 60,31% dos votos contra 28,72% de Lula. A disputa no México foi mais equilibrada, mas Lula venceu por 44,2% contra 42,84%. Já no Paraguai, Bolsonaro teve 67,54% dos contos, contra 22,4 de Lula. Ásia Na Ásia, Bolsonaro ganhou no Japão, onde teve votação expressiva em todas as cidades japonesas aonde brasileiros foram votar. Em Pequim, na China, Lula venceu por 63,16%. Já em Hong Kong, Bolsonaro ganhou por 48,31%, contra 30,9% de Lula. Bolsonaro também teve mais votos nas Filipinas (55,56% contra 31,75%) e Indonésia (60% contra 32%), e venceu em Taiwan e Timor Leste. Mas em outra grande economia do continente, Lula teve vitória expressiva na Índia, com 65,85% contra 29,27% de Bolsonaro em Nova Déli e 75% contra 16,67% em Mumbai. O petista também ganhou em locais como Coreia do Sul (62,8% contra 25,6%), Malásia (47,37% contra 42,11%), Singapura (46,67% contra 24,87%), Tailândia (43,81% x Bolsonaro 40%) e Vietnã (65% contra 20% de Bolsonaro). Na Oceania, o petista foi o mais bem votado na Austrália e na Nova Zelândia. Em Sydney, Lula teve 54,35% dos votos contra 29,42% de Bolsonaro. Na capital Canberra, Lula teve 56,01% e Bolsonaro teve 27,24%. Na Nova Zelândia, Lula teve 72,95% e Bolsonaro teve 15,74%. No Oriente Médio, Bolsonaro venceu nos Emirados Árabes Unidos, Omã, Catar, Kuwait e Israel. Já Lula obteve mais votos no Líbano, Jordânia, Árabia Saudita e territórios palestinos. Na América do Norte, a votação foi dividida. Como esperado, Bolsonaro ganhou nos Estados Unidos, com votação expressiva em Miami e Boston, mas teve menos votos que Lula em algumas cidades americanas: na capital Washington (45,33% contra 41,7%), Chicago (51,44% contra 33,69%), Los Angeles (45,53% contra 42,43%) e San Francisco (53,95% contra 33,35%). Lula foi o mais bem votado no Canadá, com 60,73% dos votos em Montreal, 50,86% em Ottawa, 50,56% em Toronto e 55,29% em Vancouver. .
2022-10-03
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brasil
Ciro, Tebet e Soraya: como saem os derrotados das eleições?
Os resultados do primeiro turno das eleições presidenciais neste domingo (2/10) confirmaram o que as pesquisas de intenção de voto vinham apontando há meses em relação às principais apostas da chamada "terceira via": Ciro Gomes (PDT), Simone Tebet (MDB) e Soraya Thronicke (União Brasil). As candidaturas tentaram, mas não conseguiram se contrapor ao duelo entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente Jair Bolsonaro (PL). Enquanto Lula e Bolsonaro se preparam para o segundo turno, especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam quais os caminhos possíveis dentro da política para Ciro, Simone e Soraya. O consenso entre os entrevistados é o de que a senadora Tebet sai das eleições "maior do que entrou" e desponta como um provável concorrente para as eleições de 2026. Soraya, eles avaliam, conseguiu algum destaque, mas teria menos chances em projetos nacionais na comparação com sua colega de Senado. Fim do Matérias recomendadas Ciro, porém, seria o grande derrotado da terceira via. Segundo os especialistas, a forma como o ex-governador do Ceará conduziu sua campanha e os números que obteve devem dificultar novas candidaturas à Presidência. Tebet foi, segundo os especialistas entrevistados pela BBC News Brasil, a principal surpresa das eleições presidenciais deste ano. Ela obteve 4,16% dos votos válidos, terminando com um total um pouco inferior a 5 milhões de votos. Eleita pelo Estado de Mato Grosso do Sul em 2014, ela bancou seu projeto presidencial contra a vontade de algumas das principais lideranças do MDB como o senador Renan Calheiros (AL) e o ex-senador Eunício Oliveira (CE). "Eu fui uma das que escrevi que a candidatura não seria uma boa jogada política, mas me enganei redondamente. Simone sai muito maior do que entrou nessa eleição", diz a doutora em Ciência Política pela PUC de São Paulo, Deysi Cioccari. Ela diz que, dado o perfil conciliador do MDB e o bom desempenho de Tebet nas eleições, uma possibilidade seria a acomodação dela em um eventual novo governo do PT. "Ela desponta como um bom nome para o ministério da Agricultura de um possível governo de Lula. Já em relação a Bolsonaro, não consigo vê-la compondo com ele", disse a professora. Desde o fim do primeiro turno, Tebet passou a ser procurada pelo PT para obter o seu apoio na disputa contra Bolsonaro. Ela chegou a ter um almoço com o candidato a vice-presidente na chapa de Lula, Geraldo Alckmin (PSB), para conversar sobre a declaração de apoio. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na quarta-feira (5/10), a senadora fez um pronunciamento anunciando seu apoio à candidatura de Lula no segundo turno. Em seu discurso, ela disse que, diante da atual conjuntura, não lhe caberia se omitir. "Não anularei meu voto, não votarei em branco. Não cabe a omissão da neutralidade", disse. Tebet afirmou que apoia Lula por entender que o petista teria compromisso com a democracia. "Depositarei nele o meu voto porque reconheço nele o seu compromisso com a democracia e com a Constituição, o que desconheço no atual presidente", disse Tebet. O doutor em Ciência Política e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) de São Paulo, Marco Antônio Teixeira, concorda com Deysi o desempenho da senadora na corrida presidencial. "Ela [Simone Tebet] só ganhou nessas eleições. Simone era pouco conhecida nacionalmente e se tornou a principal liderança visível do partido. Ela deu continuidade ao um processo de ganhar visibilidade que começou com a CPI da Pandemia", afirmou Teixeira. O professor de Ciência Política da Universidade Federal de São Carlos (UFScar) Fernando Azevedo diz acreditar que a projeção alcançada pela senadora nestas eleições a coloca como um nome praticamente certo nas eleições presidenciais de 2026 dentro do campo liberal. "Simone Tebet é liberal na economia e mais aberta em temas culturais e comportamentais. Ela fez uma campanha de centro, com um rosto mais apropriado para uma terceira via. A sua campanha a projetou nacionalmente e certamente será um nome competitivo no campo liberal e de centro para o pleito de 2026", disse Azevedo. Marco Antônio Teixeira pontua apenas um obstáculo para as ambições de Simone: o MDB. "O MDB é um partido muito heterogêneo e com lideranças regionais fortes. A própria campanha de Tebet não foi consenso. Ela tem condições de liderar o partido, mas é preciso saber se o partido se deixará ser liderado por ela", disse. Deysi Cioccari avalia que se o MDB impuser dificuldades a Simone Tebet em seus futuros projetos, haveria outros partidos de centro-direita que poderiam abrigá-la. "Eu vejo ela, perfeitamente, dentro do PSD de Gilberto Kassab. Ela teria bastante espaço e seria um nome de expressão dentro do partido", disse. Para os cientistas políticos ouvidos pela BBC News Brasil, Soraya Thronicke conduziu sua candidatura em uma linha tênue e arriscada. Ao apostar em frases de efeito, atualmente chamadas de "lacração", Soraya teria corrido o risco de ser ridicularizada, mas, segundo eles, a senadora conseguiu se sair bem ao longo da campanha. Ela obteve 0,51% dos votos válidos, com um total de pouco mais de 600 mil votos. "Ela fez uma jogada arriscada e que deu certo: tornar-se visível pela lacração. Mas ela não é igual a candidatos como o Padre Kelmon [PTB] ou outros políticos que já vimos. Ela definiu o seu território e construiu uma marca em torno de uma proposta [a do imposto único]. Independentemente de quem ganhar, ela sairá maior do que entrou", diz Deysi Cioccari. Marco Antônio Teixeira, da FGV-SP, pontua que Soraya conseguiu alguma projeção nacional, mas em menor grau que a obtida por Simone Tebet. Ele avalia que a campanha teria sido um sucesso para ela e para o União Brasil. "Para ela e para o partido, foi um ótimo negócio. Ela ganhou projeção nacional e o União Brasil ganhou uma liderança, um rosto forte que pode liderar o partido", avaliou. Fernando Azevedo sustenta que a candidatura de Soraya teve o objetivo de manter o União Brasil neutro na disputa entre Lula e Bolsonaro e que o desempenho da senadora deverá cacifá-la para projetos regionais no estado de Mato Grosso do Sul. "Provavelmente, ganhe quem ganhar, o partido [União Brasil] deverá apoiar pragmaticamente o próximo presidente exercendo o papel de um Centrão do B. Essa visibilidade que ela alcançou vai reforçar o seu nome para projetos eleitorais no seu estado", disse Azevedo. Diferentemente de Simone Tebet, porém, Soraya Thronicke não deu indicações de que irá dar seu apoio a algum dos concorrentes do segundo turno. "Nenhum desses bandidos merece meu apoio", disse a senadora em uma resposta a um seguidor sobre o segundo turno. Após sua quarta tentativa frustrada de se tornar presidente da República, Ciro Gomes é, segundo os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, o principal derrotado da terceira via. Ele obteve 3,04% dos votos válidos, com um total de quase 3,4 milhões. A avaliação tem como base tanto a expectativa que havia em torno do seu nome no início da campanha, quanto pela forma turbulenta com a qual ele teria conduzido sua candidatura. Ciro chegou às eleições de 2022 após obter 12,47% dos votos em 2018. Cultivando uma imagem de estudioso dos problemas do país e defendendo ser uma alternativa à suposta polarização entre Lula e Bolsonaro, Ciro fez críticas pesadas tanto a Bolsonaro quanto a Lula. Seu comportamento é um dos pontos que fez com que os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliem que suas chances de alçar voos nacionais no futuro são limitadas. "Ciro disse que desistiria da presidência se perdesse essa eleição. Eu acho difícil ele desistir. Mas o fato de ele não ter conseguido estabelecer diálogo com ninguém ao longo da campanha faz com que a possibilidade de um projeto nacional fique comprometida", disse Deysi Cioccari. "O futuro dele no curto prazo é complicado. Não vejo ele conseguindo compor ou se juntando a Lula ou a Bolsonaro no segundo turno. Ele ficou isolado", diz a especialista. Na terça-feira (4/10), o PDT anunciou seu apoio à candidatura de Lula no segundo turno. O comunicado foi feito pelo presidente nacional do partido, Carlos Lupi. No anúncio, ele disse que Ciro havia concordado com a decisão do partido. Horas mais tarde, em um vídeo divulgado em suas redes sociais, Ciro Gomes anunciou que iria acatar a decisão do seu partido. Em seu discurso, porém, Ciro não fez nenhuma menção ao nome de Lula. Segundo ele, a democracia no Brasil estaria diante de duas opções "insatisfatórias". "Lamento que a democracia brasileira tenha afunilado a tal ponto que reste para o brasileiro duas opções, a meu ver, insatisfatórias", disse. "Ciro saiu muito menor do que entrou. Sua candidatura desidratou com campanha pelo voto útil do PT. Mas para além disso, tem o seu comportamento. Ele se isolou de tal forma que perdeu até o apoio dos irmãos em seu estado, o Ceará. Ele ainda tem estatura para projetos políticos, mas para voos maiores, ele precisará mudar totalmente o seu comportamento", avalia Marco Antônio Teixeira. Para Fernando Azevedo, se Lula vencer as eleições, Ciro poderá ser relegado ao "ostracismo". "A estratégia adotada por Ciro de criticar duramente o Lula não funcionou e ele sai da eleição provavelmente menor do que o seu tamanho político e eleitoral em 2018. Sua presença na cena nacional deverá ser esmaecida e, em caso de vitória de Lula cairá no ostracismo", disse o professor.
2022-10-03
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'Com bom resultado de bolsonaristas, crise institucional é agora menos provável', diz especialista em América Latina
O resultado melhor do que o esperado para Jair Bolsonaro (PL) e seus apoiadores neste primeiro turno das eleições torna uma crise institucional no país menos provável, avalia Richard Lapper, pesquisador associado ao King's College de Londres e autor do livro Beef, Bible and Bullets - Brazil in the Age of Bolsonaro ("Carne, Bíblia e Balas - O Brasil nos Tempos de Bolsonaro", em tradução livre, sem edição em português). "Bolsonaro vinha ameaçando não reconhecer o resultado das eleições, mas é improvável que ele não reconheça uma eleição em que seus apoiadores tiveram um desempenho tão positivo", diz o ex-correspondente no Brasil do jornal britânico Financial Times e especialista em América Latina. Entre os apoiadores de Bolsonaro eleitos neste domingo (2/10) estão Damares Alves (DF), Hamilton Mourão (RS), Marcos Pontes (SP), Cleitinho (MG) e Tereza Cristina (MS) no Senado; o deputado mais votado do Brasil Nikolas Ferreira (PL-MG), além de Carla Zambelli, Eduardo Bolsonaro e Ricardo Salles em São Paulo, maior colégio eleitoral do Brasil; e candidatos a governadores como Cláudio Castro (RJ), eleito em primeiro turno, Capitão Contar (MS), Onyx Lorenzoni (RS) e Tarcísio (SP), que surpreenderam ao passar ao segundo turno liderando as votações em seus estados. "Isso significa que Lula terá menos espaço para manobra e que um eventual governo Lula será muito mais conservador do que seria em outra circunstância", diz Lapper. Segundo o analista, o bom resultado dos bolsonaristas nas urnas cria um bom momento para o presidente na disputa de segundo turno. Fim do Matérias recomendadas "Parece que muitas pessoas que iam votar em Simone Tebet ou Ciro Gomes votaram em Bolsonaro e muitos que estavam indecisos também." Lapper vê no resultado desse domingo (2/10) no Brasil um paralelo com o plebiscito para aprovação da nova Constituição no Chile, realizado em setembro deste ano. Por lá, o "rechaço" ganhou sobre a "aprovação" com uma vantagem de 24 pontos, quando as pesquisas indicavam intervalo bem menor, entre 4 e 12 pontos. "Isso indica que o apoio à direita e às ideias socialmente conservadoras têm muito respaldo", diz o analista, destacando, no Brasil, a força de Bolsonaro no interior do país, como no Centro-Oeste. Para Lapper, o desencontro entre as pesquisas e o resultado das urnas parece revelar um voto "envergonhado" em Bolsonaro, de eleitores que não querem admitir sua escolha pelo presidente, mas que não gostam do PT. "São pessoas que dizem preferir Tebet ou Ciro Gomes, mas no final das contas, votam em Bolsonaro. Acredito que o antipetismo e o antiesquerdismo é muito forte no Brasil, um legado da Lava Jato", avalia. Para Lapper, também contribui para essa resistência à esquerda a fragmentação desse campo político, que na sua visão não tem um projeto coerente. "O problema na esquerda é uma combinação entre esquerda identitária, que não tem ressonância, e uma esquerda digamos 'dura' e anacrônica, de Venezuela e Cuba, com a qual Lula está de alguma forma identificado e que é atualmente bastante impopular." Para o pesquisador, a realidade da esquerda brasileira talvez seja a de uma democracia social mais conservadora do que, por exemplo, a social democracia americana, onde questões de identidade, como gênero, raça e teoria da justiça social são muito fortes. Além disso, a esquerda deve focar-se no tema socioeconômico como prioridade, defende, avaliando que isso explica o êxito de Lula até aqui, apesar da identificação de parte do PT com uma esquerda latino-americana considerada por ele anacrônica. Com um Congresso bastante conservador, Lapper avalia que um possível governo Lula enfrentará muita dificuldade e será muito dependente do Centrão. "Não serão as mesmas condições de 2003, quando PT teve resultado forte no Congresso, sobretudo na Câmara. Isso implica que um eventual governo Lula será mais conservador, sem dúvida, com muito menos espaço para manobrar e para fazer os projetos que realmente importam para ele." Na avaliação de Lapper, uma vitória de Bolsonaro também é possível, caso ele consiga atrair os votos de Simone Tebet e Ciro Gomes, que ainda não declararam seus apoios para o segundo turno. Por fim, o pesquisador destaca as novas perdas sofridas pelo PSDB, que perdeu o comando do governo de São Paulo após 28 anos. No Rio Grande do Sul, Eduardo Leite conseguiu um segundo lugar sofrido, atrás do bolsonarista Onyx Lorenzoni, e com pouco mais de 2 mil votos de vantagem sobre o terceiro colocado, o petista Edegar Pretto. "O partido tradicional da centro-direita sofreu grandes perdas este domingo. É uma tendência que vimos ter início com a Lava-Jato, a partir de 2013, com partidos como MDB e PSDB, que estiveram no centro da política brasileira desde a redemocratização, perdendo espaço", afirma. "Há uma reconfiguração da política brasileira e, neste momento, parece não haver espaço para a centro-direita."
2022-10-03
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63113080
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Campanha de última hora dentro de igrejas evangélicas pode ter ampliado votos de Bolsonaro, diz cientista política americana
O desempenho do presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL) no primeiro turno das eleições pode ter sido influenciado por campanhas de última hora realizadas dentro de igrejas evangélicas, afirma a brasilianista e cientista política americana Amy Erica Smith, da Universidade Estadual de Iowa. "É possível que a campanha dentro das igrejas ou nas redes sociais direcionada aos fiéis evangélicos tenha tido um papel relevante nos resultados", diz a professora, que é autora do livro Religion and Brazilian Democracy: Mobilizing the People of God (Religião e Democracia Brasileira: Mobilizando o Povo de Deus, em tradução literal). Segundo a cientista política, é comum que nos dias que antecedem o pleito ou no próprio domingo de votação, líderes religiosos defendam candidatos em seus sermões ou nas redes sociais. "Com isso, pode haver mudanças de última hora em favor do candidato apoiado pelas igrejas", afirmou à BBC News Brasil. "Alguns chamam isso de clientelismo, mas não é bem por aí, porque não há necessariamente compra de votos. O que acontece é que muitas pessoas ainda estão indecisas e acabam tomando a decisão no último dia, influenciadas pelas igrejas". Fim do Matérias recomendadas A eleição presidencial de 2022 será decidida em 30 de outubro, após um primeiro turno com uma diferença mais apertada do que previam as principais pesquisas de intenção de voto. Com 99,9% das urnas apuradas, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) obteve 48,43% do total dos votos válidos e Bolsonaro, 43,20%. Pesquisas divulgadas nos dias anteriores à eleição mostram Bolsonaro com ampla vantagem sobre Lula entre eleitores evangélicos. Na pesquisa Datafolha divulgada em 29 de setembro, o presidente ampliou sua vantagem numérica entre o grupo. Ele manteve os 50% registrados no levantamento anterior, mas viu Lula cair de 32% para 30% - uma diferença de 20 pontos porcentuais. Nas redes sociais também são muitos os líderes e personalidades religiosas que apoiaram o atual mandatário. Os evangélicos correspondem a cerca de 25% da população brasileira, de acordo com pesquisas de intenção de voto do Ipec. Amy Erica Smith ressalta ainda a forma como as pesquisas de opinião não foram capazes de mensurar corretamente o apoio de Bolsonaro entre os eleitores brasileiros. Na véspera do pleito, pesquisas Datafolha e Ipec mostravam Lula com ampla vantagem sobre Jair Bolsonaro nos votos válidos. Na pesquisa Ipec, o petista tinha 51% dos votos válidos e o atual presidente, 37%. No Datafolha, Lula tem 50% dos votos válidos, contra 36% de Bolsonaro. "Bolsonaro em vários momentos pregou certa desconfiança em relação às pesquisas. Isso pode ter feito com que alguns de seus eleitores não respondessem aos questionários e pesquisadores", diz Smith. "Mas as agências de pesquisa certamente passarão as próximas três semanas tentando entender o que deu errado - esse será o grande desafio" Na opinião da cientista política, Lula ainda é favorito no segundo turno, mas a também ampla base de apoio de Bolsonaro pode representar problemas para o petista. "O cenário atual é justamente o que Lula queria evitar", diz. "Muitas pessoas já diziam que se os resultados [dos dois candidatos] fossem próximos, seria mais fácil para Bolsonaro dizer que as eleições foram fraudadas. O fato das pesquisas terem subestimado o apoio a ele, pode fortalecer esse discurso." Reportagem da BBC Brasil mostrou que o mandatário já atacou o sistema de votação mais de 100 vezes. Durante a maior parte do seu mandato e da corrida eleitoral, Bolsonaro levantou dúvidas, sem apresentar evidências, de que a urna eletrônica não seria à prova de fraudes.
2022-10-03
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63113137
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'Derrota dos institutos de pesquisa': como aliados de Bolsonaro reagiram ao resultado do 1º turno
"Vergonha", escreveu o ministro das Comunicações Fábio Faria ao compartilhar uma imagem com resultados de pesquisas eleitorais que mostravam o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) com cerca de 10 pontos à frente do presidente Jair Bolsonaro (PL). A publicação de Faria foi feita pouco após o resultado do primeiro turno da eleição, realizado no domingo (02/10) — Lula obteve 48,4% dos votos válidos, enquanto Bolsonaro teve 43,2%. A diferença menor do que a apontada por muitas pesquisas foi ressaltada por aliados de Bolsonaro e até pelo próprio presidente ao comentar o resultado da disputa. Eles têm atacado institutos como Datafolha, Ipec e Quaest. "Onde será o velório dos institutos de pesquisa?", diz um tuíte compartilhado por Fabio Wajngarten, membro da campanha de Bolsonaro, pouco antes do fim da apuração. Bolsonaro teve 43% dos votos válidos na eleição presidencial, enquanto a pesquisa do Datafolha divulgada na véspera da eleição, com 12,8 mil entrevistados em 310 municípios brasileiros, captava 36% — uma diferença fora da margem de erro de dois pontos percentuais. Já a pesquisa Genial/Quaest apontava o atual presidente com 38% dos votos válidos, disparidade também fora da margem de erro em relação ao resultado das urnas. Fim do Matérias recomendadas Em entrevista coletiva na noite de domingo, Bolsonaro afirmou, quando questionado pelos jornalistas, que o resultado da eleição "desmoralizou de vez os institutos de pesquisa" por prever votação menor do que recebeu. "Isso vai deixar de existir, até porque acho que não vão continuar fazendo as pesquisas, esse pessoal", afirmou. Uma das principais lideranças religiosas ligadas a Bolsonaro, o pastor Silas Malafaia afirma que o resultado deste domingo é a "derrota" de institutos de pesquisas que, segundo ele, "influenciam o voto do povo mais pobre". "Cadê São Paulo em que o Haddad (candidato ao governo, que aparecia em primeiro nas pesquisas, mas ficou em segundo lugar neste domingo) estava em primeiro? Isso é uma bandidagem, é uma vergonha. Isso induz, isso influencia, isso é uma covardia", diz Malafaia à BBC News Brasil. "Eu cansei de avisar a imprensa que nem Datafolha e nem IPEC conseguem mensurar o voto evangélico. não estão computando o voto evangélico que é muito grande", acrescentou o líder religioso. O discurso de aliados de Bolsonaro contra os institutos de pesquisa tem sido reforçado por muitos outros apoiadores do presidente nas redes sociais. Para eles, que acreditam na vitória do presidente, o resultado diferente daquele apontado por muitos institutos de pesquisa é o grande destaque do primeiro turno. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Tem muitas coisas que podem ter acontecido. Vai ser necessário olhar com calma para entender. Mas não houve nenhum fato novo [nos últimos dias de campanha] para explicar esse salto na diferença. Não acho que o eleitor tenha mudado o voto de última hora, porque tudo estava muito consolidado", disse Ortellado. "Essa explicação não é suficiente. Pode ser que um pedaço do voto indeciso tenha ido para o Bolsonaro, mas um pedaço que certamente não explica o que aconteceu. Pode ter sido o voto envergonhado. Pode ter havido boicote dos bolsonaristas na participação das pesquisas, havia uma campanha muito dura contra os institutos de opinião", acrescentou. Para Ortellado, será necessário "rever métodos e fazer discussões entre especialistas para ver o que aconteceu". Ele afirmou que "alguma coisa aconteceu e é preciso descobrir".
2022-10-03
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63113290
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Eleitores de Bolsonaro vão da euforia à decepção no Palácio da Alvorada
O segundo lugar do presidente Jair Bolsonaro e a ida da eleição para o segundo turno foram recebidos com decepção por boa parte dos apoiadores que acompanharam a apuração do lado de fora do Palácio da Alvorada, em Brasília. Alinhados com o discurso do presidente e desconsiderando a maior parte das pesquisas, muitos ali diziam esperar que Bolsonaro liquidasse a eleição no primeiro turno. O início da apuração reforçou essa expectativa, conforme Bolsonaro saltou à frente do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Alguns apoiadores soltaram fogos e rojões, enquanto outros passavam de carro, buzinando e agitando bandeiras do Brasil. A BBC News Brasil esteve na frente do Alvorada a partir das 16h30, quando algumas dezenas de apoiadores do presidente aguardavam o início da apuração. O clima era tranquilo, e havia muitas crianças e idosos entre os presentes. Conforme Bolsonaro subia nas primeiras parciais, o público festejava. Um segurança com crachá do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência animou o grupo ainda mais ao dizer que, "pelo jeito, vai ser no primeiro turno". Fim do Matérias recomendadas Havia grande expectativa de que Bolsonaro aparecesse para saudar os apoiadores uma vez que sua vitória se consolidasse. No entanto, à medida que eram contabilizados os votos do Nordeste e Lula reduzia a distância para Bolsonaro, o humor do público mudou. Uma apoiadora do presidente disse a pessoas ao lado que Bolsonaro deveria "parar de pagar o Auxílio Brasil" para punir o Nordeste, região do país onde grande parte da população recebe o benefício. Outros passaram a levantar dúvidas sobre a lisura do processo eleitoral, ecoando falas do presidente. "Não é possível que o Lula só suba, e o Bolsonaro só caia", disse um apoiador. Um eleitor exaltado tentou estimular outros a sair do Alvorada para protestar diante do Congresso, mas não teve sucesso. Quando Lula ultrapassou Bolsonaro, parte considerável do público foi embora. Às 22h, quando mais de 98% das urnas já estavam apuradas e era certo que Lula e Bolsonaro disputariam o segundo turno, alguns ainda aguardavam diante do palácio, na esperança de que o presidente aparecesse. "Estamos com ele até o fim", disse um apoiador.
2022-10-03
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63113362
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Mudanças que população deseja podem 'vir para pior', diz Bolsonaro sobre segundo turno
O presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL) afirmou na noite de domingo (02/10) que o segundo turno das eleições será a oportunidade para que a sua campanha mostre, segundo ele, que as mudanças que o eleitor brasileiro sinalizou desejar podem "vir para pior". ""Vencemos a mentira do Datafolha, que dava 51% e a 30 e poucos, temos um segundo turno pela frente onde tudo passa a ser igual entre os dois candidatos, e vamos agora mostrar melhor para a população brasileira, em especial a parte mais afetada, que é consequência da política do fique em casa e a economia a gente vê depois, de uma guerra lá fora, temos o segundo turno pela frente e vamos mostrar agora à população brasileira que as mudanças que alguns querem, pode ser [para] pior", afirmou, em entrevista concedida em Brasília, horas após a divulgação pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) do resultado da votação do primeiro turno. "Existe o sentimento de parte da população de que a vida dela não ficou como estava antes da pandemia, ficou um pouquinho pior. A tendência é culpar o chefe de Executivo. Neste segundo turno a gente vai mostrar para eles que a mudança que eles estão buscando pode ser para pior", afirmou, citando repetidamente como exemplos de tal mudança para pior as economias da Argentina e da Colômbia. A eleição presidencial de 2022 será decidida em segundo turno, disputado entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente Jair Bolsonaro (PL) — após um primeiro turno com uma diferença mais apertada do que previam as principais pesquisas de intenção de voto. No primeiro turno, com 96,93% das urnas apuradas, Lula (PT) estava em primeiro com 54.887.668 votos (47,85% do total dos votos válidos) e Bolsonaro, em segundo, tinha 50.117.086 votos (43,70% dos válidos) — o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) já considerava, então, a eleição matematicamente encaminhada para um segundo turno. Fim do Matérias recomendadas Bolsonaro também afirmou, quando questionado pelos jornalistas, que o resultado da eleição mostra que "desmoralizou de vez os institutos de pesquisa", que previam votação menor do que a que recebeu o presidente. "Isso vai deixar de existir, até porque acho que não vão continuar fazendo as pesquisas, esse pessoal", afirmou. Bolsonaro disse que um dos objetivos da campanha será mostrar para os eleitores os dados que ele considera positivos do seu governo, como a deflação e a queda do preço dos combustíveis e da energia elétrica, e que pretende participar das sabatinas e debates. "Para convencer as pessoas sobre qual é o melhor lado para eles". Questionado sobre eventuais apoios para o segundo turno, Bolsonaro disse que sua campanha entrou em contato hoje com interlocutores do governador eleito de Minas Gerais, o Romeu Zema (Novo). "As portas estão abertas", disse, sobre eventuais contatos futuros com outras candidaturas. "Esse pessoal todo vai ser convidado a conversar conosco e se empenhar durante a campanha. É natural os candidatos se preocuparem muito mais com as campanhas deles do que o presidencial. Agora a campanha deles é a nossa. O ex-presidente Lula venceu em 14 Estados do país no primeiro turno disputado neste domingo. Já Bolsonaro (PL) venceu em 12 Estados e no Distrito Federal. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A candidata do MDB à Presidência, Simone Tebet, se pronunciou na noite deste domingo e afirmou que "jamais" se omitiria em relação ao segundo turno. "Há muito, sim, o que refletir, mas jamais nos omitir", disse, pouco após o resultado do pleito. Simone teve cerca de 4,2% dos votos válidos na disputa, aproximadamente 4,9 milhões de votos. "A vontade soberana do povo brasileiro se fez presente nas urnas. O povo falou através do voto. E nós, obviamente, acatamos a vontade soberana do povo", declarou Tebet sobre o seu desempenho na disputa, ao lado de sua vice, Mara Gabrilli (PSDB). O candidato do PDT, Ciro Gomes, deixou em aberto quais serão seus próximos passos e disse que vai falar com pessoas próximas e do partido para uma definição. "Eu peço a vocês que me deem mais algumas horas para conversar com meus amigos, conversar com meu partido para que a gente possa achar o melhor caminho, o melhor equilíbrio para bem servir o povo brasileiro. Portanto, muito obrigado a vocês por terem vindo e boa noite por hoje", afirmou aos jornalistas.
2022-10-03
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63112390
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Lula e Bolsonaro se enfrentarão em 2º turno após disputa mais apertada do que previam pesquisas
A eleição presidencial de 2022 será decidida em segundo turno, disputado entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente Jair Bolsonaro (PL) — após um primeiro turno com uma diferença mais apertada do que previam as principais pesquisas de intenção de voto. No primeiro turno, com 96,93% das urnas apuradas, Lula (PT) estava em primeiro com 54.887.668 votos (47,85% do total dos votos válidos) e Bolsonaro, em segundo, tinha 50.117.086 votos (43,70%dos válidos) — o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) já considerava, então, a eleição matematicamente encaminhada para um segundo turno. Bolsonaro chega ao segundo turno com uma tarefa inédita na história eleitoral brasileira: ultrapassar o primeiro colocado e vencer a disputa. Serão quase quatro semanas até a próxima votação, em 30/10. Em entrevista coletiva realizada na noite deste domingo (2/10), o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, comemorou o que classificou como uma eleição segura e transparente. Fim do Matérias recomendadas "Houve intercorrências, mas como houve em qualquer outra eleição. Chegamos ao final desse dia com a certeza de que a Justiça Eleitoral cumpriu sua missão constitucional de garantir segurança e transparência nas eleições", afirmou. O ministro também disse que poderá haver acirramento político no segundo turno das eleições presidenciais, mas disse acreditar que "a era de ataque" à Justiça Eleitoral é coisa do "passado". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "O acirramento das candidaturas, das campanhas no segundo turno é o acirramento político e sendo assim não acredito que haja ataques maiores à justiça eleitoral já que a justiça eleitoral mostrou sua competência e transparência na apuração [...] acredito que a era de ataque à justiça eleitoral é passado", disse Alexandre de Moraes. Há desafios para Bolsonaro, como a vantagem numérica de Lula no primeiro turno, alta rejeição do eleitorado, baixo potencial de atrair eleitores de outros candidatos, verba restrita para campanha e lenta recuperação da economia. Por outro lado, especialistas afirmam que Bolsonaro deve conseguir atrair o apoio de diversos setores da direita que estavam pulverizados nos Estados e na disputa presidencial. E também ampliar a campanha negativa contra Lula e o PT baseada acusações de corrupção e na pauta de costumes. Entenda abaixo cinco dos principais desafios para Bolsonaro na disputa contra Lula. "Lula, ao contrário de Bolsonaro, tem entre os eleitores uma memória de um legado muito positivo, embora manchada pela corrupção. E a personalidade de Lula é oposta à de Bolsonaro em relação à moderação, à negociação e ao trânsito político. Lula tem talvez a maior capacidade política do país de tecer um arco de alianças é realmente muito plural, diverso", afirmou a socióloga e professora Esther Solano Gallego (Unifesp). Como dito acima, todos os candidatos que chegaram na liderança ao segundo turno acabaram vitoriosos nas eleições. Bolsonaro tem, portanto, duas saídas: 1. atrair a ampla maioria dos votos dos candidatos que ficaram para trás no primeiro turno, como Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB), e 2. tirar votos de Lula. Mas quantos votos ainda estão "em disputa" entre Lula e Bolsonaro? Como não é possível prever o comparecimento dos eleitores nem quantos votarão em brancos e nulos, o "saldo" de votos a ser disputado no segundo turno seria a soma de todos os outros candidatos. Mas pesquisas realizadas no primeiro turno apontavam que Lula liderava como segunda opção nas urnas entre eleitores de Ciro Gomes e Simone Tebet. Segundo pesquisa Datafolha realizada no fim de setembro, por exemplo, 38% dos eleitores de Ciro tinham Lula como segunda opção e 18% tinham Bolsonaro como segunda opção. No caso dos eleitores de Tebet, 34% tinham Lula como segunda opção e 18% tinham Bolsonaro como segunda opção. Isso não significa, obviamente, que todas essas pessoas votarão em Lula ou em Bolsonaro no segundo turno. A segunda saída, tirar votos de Lula, parece ainda mais difícil para Bolsonaro. O único candidato que teve menos votos no segundo turno do que no primeiro foi Geraldo Alckmin em 2006. O então presidenciável do PSDB teve quase 2,5 milhões de votos a menos na segunda votação. Seu adversário naquela eleição, Lula, teve quase 12 milhões de votos a mais no segundo turno. Curiosamente, Alckmin (agora no PSB) se tornou o vice de Lula na chapa presidencial deste ano. Um dos principais obstáculos de Bolsonaro durante toda a campanha eleitoral era a alta taxa de rejeição dos eleitores. Pesquisa realizada pelo Ipec no fim de setembro apontava que 51% dos eleitores não votariam de jeito nenhum em Bolsonaro. Em comparação, 35% afirmavam que não votariam de jeito nenhum em Lula. Segundo o Datafolha, em pesquisa no fim de setembro, as taxas mais altas de rejeição a Bolsonaro estavam entre mulheres, jovens, classes mais pobres, desempregados, estudantes, funcionários públicos e moradores das regiões Sudeste, Norte e Nordeste. Especialistas apontam que esses números não são absolutos nem consolidados. Mas eles ficaram bastante estáveis ao longo do primeiro turno, o que aponta dificuldades para revertê-los. Para alguns analistas, Bolsonaro ainda pode se beneficiar de elementos que o ajudaram a se eleger em 2018, como o antipetismo. Neste ano, esse sentimento estava diluído entre diversos candidatos no primeiro turno, e uma disputa agora concentrada em Lula e Bolsonaro pode reunir novamente esses eleitores antipetistas em torno de Bolsonaro, como ocorreu há quatro anos. Outros especialistas afirmam que a rejeição de Bolsonaro tem um outro lado importante para ele: a mobilização constante de seus eleitores. Ou seja, estima-se que a taxa de comparecimento às urnas dos apoiadores de Bolsonaro deve ser maior do que a de outros candidatos. Por outro lado, Solano Gallego avalia que Bolsonaro deve ter dificuldade para ampliar sua base de apoio porque o eleitorado não tem respondido à agenda da mesma forma positiva que fez em 2018. "Nesta eleição, há um cansaço e uma saturação entre os eleitores evangélicos com a excessiva politização dos âmbitos religiosos, dos púlpitos. Mesmo com sua ofensiva de pânico moral, Bolsonaro já parou de crescer entre os evangélicos. É claro que ele continuará apostando nisso, colocando o PT como se fosse o destruidor da família, dos costumes, da fé e da moral." Uma das principais apostas de Bolsonaro durante o primeiro turno era que a melhora da economia brasileira impulsionaria sua campanha pela reeleição. Isso porque a economia era considerada o principal problema do país por grande parte dos eleitores. Especialistas apontam que o cenário econômico menos pior tem beneficiado os números de Bolsonaro, tanto daqueles que declaram voto nele quanto daqueles que aprovam seu governo. Mas a velocidade da recuperação tem sido bem mais lenta do que esperava o presidente. A inflação, por exemplo, está em queda após seguidos aumentos. No acumulado dos últimos 12 meses, a inflação no país é de 10,07%, mesmo com a queda registrada em julho de 0,68% no IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo), segundo o IBGE. Economistas do mercado financeiro consultados pelo Banco Central têm reduzido semana a semana as projeções da inflação para 2022. Atualmente, a previsão média de mais de cem instituições financeiras é de que a inflação feche o ano de 2022 abaixo de 6%. Mas apesar de todas essas quedas, o Brasil ainda tem a 4ª maior taxa de inflação entre os países do G20, grupo que reúne as maiores economias do mundo, segundo dados do início de agosto da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Ao longo da campanha, muitos analistas repetiram a expressão "jogar dinheiro do helicóptero", cunhada pelo economista americano Milton Friedman, para falar das medidas bilionárias adotadas por Bolsonaro antes e durante a campanha eleitoral. As duas principais foram o aumento do Auxílio Brasil (de R$ 400 para R$ 600) e a redução de impostos para abaixar os preços dos combustíveis. Segundo especialistas, no segundo turno Bolsonaro não tem praticamente mais margem de manobra no orçamento federal para criar ou turbinar medidas com potencial eleitoral. Os dados do fim de setembro apontavam que a campanha presidencial de Lula havia reunido R$ 89 milhões, quase tudo repassado pelo PT a partir do fundo eleitoral. Àquela altura, a campanha de Bolsonaro havia recebido quase R$ 17 milhões do PL e arrecadado outros R$ 12 milhões em doações privadas (principalmente de empresários). Para o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), coordenador da campanha de seu pai à reeleição, a falta de dinheiro era um "ponto crítico" e já afetava a quantidade de viagens que Bolsonaro faria pelo país, por exemplo. A enorme diferença entre os repasses do PT e do PL para as campanhas presidenciais reflete as estratégias de cada partido. Enquanto o PT priorizou a eleição de Lula, o PL se concentrou nas campanhas de candidatos ao Senado e à Câmara dos Deputados. Entre outros motivos porque o tamanho da bancada de deputados federais é uma das referências usadas para definir quanto cada partido receberá dos cofres públicos. Além disso, a transferência de Bolsonaro para o PL foi acompanhada por diversos parlamentares, o que acirrou ainda mais a disputa interna pelas verbas do partido para a campanha eleitoral de 2022. Mas Bolsonaro não enfrenta apenas falta de verbas dentro de sua base partidária. Há relatos de falta de apoio também. A popularidade elevada de Lula na região Nordeste, por exemplo, fez com que muitos aliados de Bolsonaro não fizessem campanha para ele com medo de afastar eleitores. Um levantamento do jornal Folha de S.Paulo em agosto apontou que um terço dos candidatos a governador que estavam formalmente aliados com o PL nas eleições não publicavam imagens ou faziam referências a Bolsonaro nas redes sociais. Para a socióloga e professora Esther Solano Gallego (Unifesp), a própria personalidade de Bolsonaro, "considerada por muitos brasileiros como instável, agressiva e intolerante", atrapalha o acerto de alianças políticas para garantir sua governabilidade e ampliar seus palanques ao redor do país. "(Bolsonaro) não conseguiu sequer ter um partido potente por trás, o que dizer de alianças eleitorais ou institucionais. Essa personalidade antidemocrática está fazendo com que o mundo institucional democrático brasileiro esteja dando as costas para ele." A cientista política e professora Maria do Socorro Braga (Unicamp), por outro lado, afirma que Bolsonaro deve conseguir turno atrair no segundo o apoio de diversos setores da direita brasileira. Ela cita os exemplos da direita neoliberal, do partido União Brasil (fusão do DEM com o PSL), que no primeiro turno estava formalmente ligado à candidatura presidencial de Soraya Thronicke (União Brasil-MS), e de setores do PSDB, formalmente ligados à candidatura presidencial de Simone Tebet (MDB-MS). "No segundo turno, o ex-presidente Lula terá muito maior dificuldade de arregimentar esses setores mais à direita. Os Estados serão fundamentais para fortalecer o Bolsonaro, especialmente no Sudeste e no Sul", diz Braga. Para a pesquisadora, haverá também aproximação de aliados de Bolsonaro no Congresso que não fizeram campanha para o presidente no primeiro turno, sob o temor de perderem votos em regiões onde Lula lidera com folga, mas que estarão de certa forma mais desimpedidos para apoiá-lo no segundo turno presidencial.
2022-10-03
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63059143
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EUA parabenizam o Brasil pelo 'bem sucedido' primeiro turno da eleição no Brasil
O Secretário do Departamento de Estado dos Estados Unidos, Antony J. Blinken, usou as redes sociais para parabenizar o Brasil pelo "bem sucedido" primeiro turno das eleições presidenciais de 2022. A mensagem foi postada no Twitter às 10h da noite de Washington D.C., depois que tanto o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) quanto o presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL) já tinham se manifestado reconhecendo o resultado das urnas. No mesmo tom, a Embaixada dos EUA no Brasil também usou as redes para dar os "parabéns às autoridades eleitorais e ao povo brasileiro pelo 1º turno bem-sucedido, livre e transparente". "Os EUA apoiam o livre exercício do direito democrático de escolher seu próximo líder. Estamos certos de que o 2º turno será conduzido da mesma maneira", segue a nota da embaixada. A eleição no Brasil teve longas filas e atrasos na apuração, mas, a despeito da tensão e da polarização política, episódios de violência foram pontuais e isolados. Ao longo de toda a campanha e pré-campanha, autoridades americanas reiteraram a confiança no processo eleitoral brasileiro, a despeito das repetidas acusações de fraude — sem provas — disparadas pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), candidato à reeleição. Fim do Matérias recomendadas Na última segunda, 26/09, em sabatina na TV Record, Bolsonaro chegou a dizer que o TSE é "parcial". "Não mando no TSE. Não tem como convencê-los. Por exemplo, estou proibido de fazer 'live' dentro da minha casa oficial, tenho que ir para casa de alguém. Perseguição política", afirmou Bolsonaro. A mensagem dos americanos ainda na noite da eleição é uma forma de marcar que estão atentos ao processo e pronto para atuar de modo a desencorajar qualquer eventual tentativa de desrespeito às urnas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A mesma resolução, porém, ia além mais longe. Introduzida pelo senador Bernie Sanders e outros cinco senadores democratas, a medida apoiava rompimento de relações e assistência militar entre os dois países em caso de "um golpe". "Não estamos tomando lado na eleição brasileira, o que estamos fazendo é expressar o consenso do Senado de que o governo dos EUA deve deixar inequivocamente claro que a continuidade da relação entre Brasil e EUA depende exclusivamente do compromisso do governo do Brasil com democracia e direitos humanos. O governo Biden deve deixar claro que os Estados Unidos não apoiam nenhum governo que chegue ao poder ao Brasil por meios não democráticos e assegurar que a assistência militar é condicional à democracia e transição pacífica de poder", afirmou Sanders. A medida não contava com apoio declarado de nenhum republicano, mas, pelas regras da Câmara Alta, se nenhum senador objeta a um texto de resolução em plenário, ele é aprovado por unanimidade na casa. "É imperativo que o Senado dos EUA deixe claro por meio desta resolução que apoiamos a democracia no Brasil", disse Sanders. "Seria inaceitável que os EUA reconhecessem um governo que chegou ao poder de forma não democrática e enviaria uma mensagem horrível para o mundo inteiro. É importante que o povo brasileiro saiba que estamos do lado deles, do lado da democracia. Com a aprovação desta resolução, estamos enviando essa mensagem". Não foi só o Senado americano que se manifestou sobre a democracia no Brasil nos dias que antecederam a ida dos brasileiros às urnas. Na segunda-feira que precedeu a eleição, o porta-voz do Departamento de Estado, Ned Price, disse à BBC News Brasil que "como parceiro democrático, os EUA acompanharão as eleições de outubro com grande interesse". "Esperamos que as eleições sejam conduzidas de maneira livre, justa e confiável, uma prova da força duradoura da democracia brasileira", acrescentou o porta-voz. Na terça, apenas cinco dias antes do pleito, a porta-voz da Casa Branca afirmou em coletiva de imprensa que os americanos "monitorariam" a eleição e expressou preocupação com a escalada de violência política nas ruas. A maior parte dos episódios teve petistas como vítimas de ataques de bolsonaristas. "Os EUA condenam toda forma de violência e pedem aos brasileiros que se manifestem pacificamente. Isso é importante nesta eleição", afirmou Karine Jean-Pierre. A manifestação também explicita a prioridade que a questão da saúde democrática tem na agenda do governo americano sob Joe Biden. O próprio Biden, eleito em 2020, se viu como alvo de acusações infundadas do então candidato à reeleição Donald Trump, aliado de Bolsonaro, de ser um presidente "ilegítimo", alçado ao poder em eleições fraudadas. Diante das alegações de Trump, Bolsonaro levou semanas a reconhecer o presidente eleito dos EUA. Ele foi o último dos líderes do G-20 a fazê-lo e chegou a ecoar as declarações de Trump sobre fraude no pleito americano. A retórica de Trump gerou um caldo de insatisfação entre seus apoiadores que chegaram a invadir o Capitólio em 6 de janeiro de 2021, enquanto o Congresso certificava a vitória de Biden. O episódio — que acabou com cinco mortos — trincou a autoimagem do país e ajuda também a explicar a cautela que eles adotaram diante do pleito brasileiro, no qual identificavam elementos semelhantes ao que viveram há apenas dois anos.
2022-10-02
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63113357
brasil
'Tenho lado e vou me pronunciar no momento certo', diz Simone Tebet
A candidata do MDB à Presidência, Simone Tebet, se pronunciou na noite deste domingo (2/10) e afirmou que "jamais" se omitiria em relação ao segundo turno entre Jair Bolsonaro (PL) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT). "Há muito, sim, o que refletir, mas jamais nos omitir", disse, pouco após o resultado do pleito. Simone teve cerca de 4,2% dos votos válidos na disputa, aproximadamente 4,9 milhões de votos. "A vontade soberana do povo brasileiro se fez presente nas urnas. O povo falou através do voto. E nós, obviamente, acatamos a vontade soberana do povo", declarou Tebet sobre o seu desempenho na disputa, ao lado de sua vice, Mara Gabrilli (PSDB). "As urnas nos trazem uma reflexão. É preciso entender o recado", afirmou Tebet. Ela pediu que os presidentes dos partidos da sua coligação tomem a decisão sobre o apoio no segundo turno em até 48 horas. Fim do Matérias recomendadas "Só não esperem de mim, eu que tenho uma trajetória de vida de luta nesse país que tanto precisa de nós, não esperem de mim omissão. Tomem logo uma decisão, porque a minha já está tomada", disse. "Eu tenho um lado e vou me pronunciar no momento certo", acrescentou. "Eu vou me pronunciar (sobre o apoio no segundo turno), porque tenho a responsabilidade, junto com a Mara, não porque tivemos 4,2%, mas porque representamos também uma grande parte do eleitorado e da população brasileira que são as mulheres", declarou Tebet. Durante a coletiva, Tebet também citou que sua candidatura com Mara Gabrilli foi fruto de "muita resiliência". "Apesar de tudo e contra tudo e contra todos, saímos do zero, demos a cada dois passos um passo para trás. A todo momento tínhamos que justificar que nossa candidatura é para valer, que nossa candidatura seria homologada no colégio dos partidos políticos", disse. Ela também afirmou que ficou muito feliz com o resultado que obtiveram. "Mais que uma campanha eleitoral, era uma campanha política, uma trajetória de marcar posições, de que daqui pra frente as mulheres brasileiras não vão mais ser eco, vão ser vozes na política brasileira", declarou.
2022-10-02
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63113287
brasil
Institutos de pesquisa precisarão rever metodologias, diz professor da USP
O desempenho do presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL), acima do projetado pelas pesquisas na votação do primeiro turno, além de uma série de resultados surpreendentes nos Estados nas corridas para governador e senador, aumentam a pressão sobre o trabalho dos institutos de opinião, diz o professor de gestão de políticas públicas na USP e pesquisador do eleitorado bolsonarista Pablo Ortellado. Bolsonaro obteve 43% dos votos válidos na eleição presidencial enquanto a pesquisa do Datafolha divulgada na véspera da eleição, com 12.800 entrevistados em 310 municípios brasileiros, captava 36% — uma diferença fora da margem de erro de dois pontos percentuais. Pesquisa Genial/Quaest apontava o atual presidente com 38% dos votos válidos, disparidade também fora da margem de erro em relação ao resultado das urnas. Em entrevista coletiva na noite de domingo (2/10), Bolsonaro disse que os resultados "desmoralizaram de vez os institutos de pesquisa", mas evitou questionar a credibilidade dos resultados pela urna eletrônica. Ortellado diz que a "credibilidade dos institutos, que já era colocada em xeque pelos bolsonaristas, agora é colocada pelo resto da sociedade. Seguramente não é manipulação, mas é uma limitação [dos institutos] que a gente precisa entender". Veja abaixo a entrevista: Fim do Matérias recomendadas BBC News Brasil - Qual é a sua avaliação sobre o descompasso das pesquisas e o desempenho de Bolsonaro nas urnas? Pablo Ortellado - Olha, foi uma diferença muito grande, muito grande. Antes havia a discussão sobre as duas metodologias de pequisa, por telefone e presencial, e havia a ideia de que a presencial capturava melhor o fenômeno [de intenção de votos]. Mas, olhando para os estados e para a apuração dos votos presidenciais, as duas [metodologias] erraram feio. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A grande diferença do presencial em relação ao telefone é que a presencial chega aos mais pobres porque esses têm menos telefones e estão no trabalho, com menos disponibilidade para atender à ligação. E a presencial não entra nos condomínios. São essas as limitações das metodologias. Todo mundo sabe disso e tenta contornar essas limitações com métodos estatísticos, com atribução de pesos, mas não estamos falando de uma diferença de poucos pontos percentuais. Foi um erro gigantesco. BBC News Brasil - Já é possível ter uma pista sobre os fatores que levaram a essa diferença que as pesquisas não captaram? Ortellado - Tem muitas coisas que podem ter acontecido. Vai ser necessário olhar com calma para entender. Mas não houve nenhum fato novo [nos últimos dias de campanha] para explicar esse salto na diferença. Não acho que o eleitor tenha mudado o voto de última hora, porque tudo estava muito consolidado. Essa explicação não é suficiente. BBC News Brasil - E como essas diferenças não captadas pelas pesquisas vão se refletir no discurso de Bolsonaro, que costuma descredenciar o trabalho dos institutos? Vai reforçar o discurso do presidente de que 'o que vale é o Datapovo'? Ortellado - Ele vai falar em "Datapovo", vai falar que os institutos forjaram os números e que ele na verdade ganhou porque a eleição foi fraudada. Por essa perspectiva, é um quadro muito ruim porque as pesquisas erraram muito. BBC News Brasil - E como esse quadro influencia o segundo turno entre Lula e Bolsonaro? Ortellado - Vai ser um mês de disputa muito acirrada. O bolsonarismo não teve apenas um desempenho significativo nacionalmente. O bolsonarismo ganhou em vários estados. [Cláudio] Castro ganhou no primeiro turno no Rio e isso não foi captado pelas pesquisas. A mesma coisa na corrida para governador e senador em São Paulo. É uma lista enorme. É bem grave. BBC News Brasil - Como essa lista de projeções que não se concretizaram vai ser absorvida pelos institutos de pesquisa? Qual é o futuro das pesquisas eleitorais no Brasil? Ortellado - É o que aconteceu nos Estados Unidos em 2016 e depois em 2020. Vai precisar rever métodos, fazer discussões entre especialistas para ver o que aconteceu. Agora, com o mapa de votação, é preciso pegar os dados da pesquisa de sábado [o Datafolha com mais entrevistados, 12.800 pessoas] e fazer ajustes, correções, porque a diferença foi grande demais. Alguma coisa aconteceu e é preciso descobrir. Uma pena não tenham feito pesquisa de boca de urna. Ninguém mais faz porque não vale mais a pena, o resultado sai muito rápido. A boca de urna seria melhor para comparar com os resultados. É muito grave porque os institutos estão sob ataque e são ataques infundados. Porque tem muita gente séria nos institutos tentando fazer o melhor, mas eles erraram. BBC News Brasil - Acredita que haja alguma mudança na dinâmica de voto em relação ao passado? Ele está mais volátil e os institutos não estão conseguindo captar? Ortellado - Pode ser que sim. É comum que haja flutuações, mas para presidente não deveria ter nesse nível porque o voto parecia muito consolidado. Tem que pegar os dados e analisar. Só nos próximos dias a gente vai entender o que aconteceu. Mas a credibilidade dos institutos, que já era colocada em xeque pelos bolsonaristas, agora é colocada pelo resto da sociedade. Seguramente não é manipulação, mas é uma limitação [dos institutos] que a gente precisa entender.
2022-10-02
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63112606
brasil
'Vitória de Lula parece provável, mas não é inevitável', diz brasilianista
Uma vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na eleição presidencial de 2022 parecia "inevitável", mas não é mais possível dizer isso depois dos resultados eleitorais deste primeiro turno, avalia o brasilianista Brian Winter, editor-chefe da revista Americas Quarterly. "Ainda acredito que uma vitória de Lula parece provável, mas inevitável? De jeito nenhum", diz Winter, em entrevista à BBC News Brasil. Ex-correspondente da agência Reuters e especializado em América Latina há mais de 20 anos, Winter viveu no Brasil entre 2010 e 2015, voltando ao país regularmente. Ele acompanhou os resultados deste domingo (2/10) a partir de Nova York. "Fiquei muito surpreso", diz Winter. "Cheguei a dizer publicamente que era importante manter um ceticismo em relação às pesquisas eleitorais, mas não esperava um resultado tão apertado." Na véspera do primeiro turno, as pesquisas Datafolha e Ipec mostravam ambas uma distância de 14 pontos percentuais entre Lula e Bolsonaro. Com mais de 99%% das urnas apuradas, a distância entre os dois candidatos era de pouco menos de 5 pontos percentuais, com Bolsonaro superando os 40% de votos, o que também não havia sido previsto pelos principais institutos de pesquisa. Fim do Matérias recomendadas "Não é uma surpresa que teremos segundo turno, mas é uma surpresa que será um segundo turno competitivo", diz Winter. Segundo ele, as pesquisas sugeriam que a vitória de Lula era apenas uma questão de tempo. Mas o que ficou claro é que os levantamentos não são precisos, então não é possível saber o que vai acontecer. "Está claro que o Brasil, assim como os Estados Unidos, tem um eleitor conservador que não aparece de forma adequada nas pesquisas. Como na Itália, Suécia, Estados Unidos e Reino Unido, há uma população conservadora muito energizada que a mídia e outros consistentemente subestimam." Nos EUA, em 2020, lembra ele, as pesquisas eleitorais davam ao democrata Joe Biden uma vantagem muito mais ampla sobre Donald Trump do que mostrou o resultado nas urnas. "Essa sensação de sentar em frente à TV, observar a divulgação de resultados e ficar surpreso com o número de votos conservadores é um déjà vu que passamos dez vezes ao longo dos últimos seis anos, desde a eleição de Trump [em 2016]", diz Winter. "Por alguma razão, nós repetidamente nos esquecemos de que as pesquisas eleitorais não são precisas", diz o brasilianista. Segundo ele, nos EUA, isso parece estar relacionado à mudança na forma de comunicação das pessoas, com a revolução causada pelos smartphones. Mas também é fruto de eleitores conservadores que pensam que o sistema está contra eles e, por conta disso, são relutantes em dizer a verdade sobre em quem vão votar. Para Winter, no Brasil, o erro das pesquisas pode também estar relacionado com a falta de um Censo desde 2010. Segundo ele, talvez por isso o voto evangélico tenha sido subestimado, já que não se sabe atualmente com precisão qual é o tamanho dessa parcela dos eleitores no país. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Diante da forte votação de candidatos conservadores para a Câmara de Deputados, Senado e governo dos Estados, o analista avalia que um eventual governo Lula enfrentará uma situação muito mais desafiadora do que em 2003, quando o petista assumiu a Presidência do país pela primeira vez. "O Brasil é um país mais conservador do que era há 20 anos, quando Lula foi presidente pela primeira vez. É impossível contestar isso agora, então acredito que continuaremos a ter um Brasil muito polarizado e dividido", afirma. Com resultados tão favoráveis a Bolsonaro, Winter avalia que a probabilidade de contestação dos resultados, caso ele venha a perder em segundo turno, se torna relevante novamente. "Não prestarei atenção às pesquisas no segundo turno", diz Winter. "Acabou para mim." De Nova York, Winter diz que ficará de olho nas campanhas e aguardará os resultados do dia 30. "Qual é o instituto de pesquisa confiável para o qual podemos nos voltar agora? Eu não vejo nenhum, depois do que aconteceu hoje. Sei que essas são palavras fortes, mas basta ver as últimas pesquisas antes das eleições." O analista ressalta que não acredita na teoria da conspiração bolsonarista de que há uma combinação dos institutos de pesquisa para "alimentar narrativas". "Não acredito nisso nem um pouco. Mas acredito que, assim como em outros países, incluindo os EUA, algo está errado com as pesquisas atualmente."
2022-10-02
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63113077
brasil
4 razões que explicam por que candidatura de Ciro não decolou
O candidato Ciro Gomes (PDT) encerrou sua participação na disputa presidencial no domingo (02/10), ficando em quarto lugar, com 3,05% dos votos, atrás da candidata Simone Tebet (MDB), que concorreu à Presidência pela primeira vez e terminou com 4,18%. Nas eleições para presidente de 2018, Ciro conseguiu um resultado melhor, anotando 12.47% dos votos. A BBC News Brasil conversou com cientistas políticos que elencam os possíveis motivos que fizeram não só a candidatura de Ciro não decolar, como ter um desempenho pior do que na última disputa. "O Ciro tem um histórico na política brasileira, é um candidato importante. Tem disputado periodicamente, resultando na terceira ou quarta grande força. Mas neste ano ficou em uma posição muito difícil, que o impediu de avançar para o segundo turno", afirma Eduardo Miranda, doutor em Ciência Política e professor da Escola de Educação e Humanidades da PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná). Na análise do professor, Ciro inicialmente projetou sua candidatura para um cenário no qual o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não fosse candidato e que o PT tivesse menos força eleitoral. Fim do Matérias recomendadas "Então, nesse momento, ele tentou atrair o eleitor de esquerda, foi bastante crítico a (Jair) Bolsonaro. Mas Lula foi candidato e ocupou o campo da esquerda e também o da centro-esquerda", complementa o cientista político Carlos Melo, professor do Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa). Melo aponta que, sem conseguir conquistar a ala da esquerda, o espaço da "terceira via" que Ciro tentou ocupar foi sendo esvaziado. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Aí ele parece ter feito outros cálculos. Considerando que Bolsonaro pudesse chegar muito enfraquecido na eleição,começou a se colocar como o 'anti-Lula'. Mas Bolsonaro tem uma fatia cativa do eleitorado." "A Simone Tebet (MDB), por exemplo, optou pela candidatura do centro. Não fez esses movimentos de 'bater' em um ou em outro para tentar cativar eleitores de diferentes lados. Já o Ciro oscilou muito em termos de posicionamento político ideológico. Isso faz com que em um determinado momento ele acabe agregando muito pouco na disputa", diz Melo. Na avaliação da professora Maria do Socorro Braga, que leciona Ciência Política na UFSCar, o movimento de isolar-se com ataques fortes aos dois oponentes que representam, mais fortemente as alas ideológicas da direita e da esquerda, faz com que Ciro mantenha sua coerência, mas pode ter causado confusão na mente de um eleitor menos politizado, que poderia ter sido conquistado pelo político, mas que não conseguiu acompanhar seus movimentos. "Além disso, ele não conseguiu fazer alianças com outras forças políticas e partidárias, minando a capacidade de ampliação territorialmente." A professora Maria do Socorro Braga aponta a "polarização" da política brasileira como um dos principais motivos para a candidatura de Ciro não ter alcançado resultados melhores. "É uma disputa resiliente, que não surgiu agora, entre dois lados que incitam emoções fortes no eleitorado. Esse cenário foi tão acirrado, que, em certo ponto, antecipou a disputa do segundo turno para o primeiro. Isso criou grandes desafios para outras candidaturas, não só do Ciro." O voto útil, feito quando um eleitor abre mão de votar no seu candidato preferido e opte por outro para evitar um segundo turno, contribuiu para que Ciro Gomes perdesse ainda mais força na reta final, na opinião dos especialistas entrevistados pela BBC News Brasil. "O eleitor que não queria nem Lula, nem Bolsonaro, existe, mas a maioria só carrega essa escolha até um determinado ponto. Quando essa pessoa percebe que um daqueles candidatos que ela rejeita pode ganhar, vem um outro cálculo: não gosto de um, mas o outro não quero de jeito nenhum — e assim ela encontra o mal maior, e usa seu voto para ir contra ele." Um retrato disso vinha sendo mostrado pelas pesquisas eleitorais nos últimos tempos: Ciro chegou a alcançar 9% das intenções de voto em uma pesquisa do DataFolha divulgada no início de setembro, e Simone Tebet, quarta colocada, tinha 5%. No fim do primeiro turno, eles tinham, respectivamente, 3,05% e 4,18%. Ciro sai das eleições, na visão dos especialistas, enfraquecido. "Ele apostou para manter sua coerência, mas politicamente isso não o beneficiou", afirma Braga. A professora avalia que o político se aproximou sutilmente da direita na reta final das eleições, mostrando mais cordialidade — ou menos ataques diretos — a Bolsonaro do que a Lula. "Não dá para afirmar categoricamente o que vai acontecer, mas caso o apoio a Bolsonaro permaneça, isso poderia, inclusive, criar problemas para ele dentro do PDT, forçando uma possível mudança de partido se ele quiser continuar no jogo político." Para Eduardo Miranda, da PUC-PR, Ciro é um quadro fundamental da política brasileira e seu destino dependerá das movimentações que fará pós-eleição. "Ele é um dos mais, se não o político mais tecnicamente preparado que disputou essa eleição — com propostas mais bem desenhadas para saúde, educação, e na questão fiscal. É estudioso, preparado, mas acho que do ponto de vista político ele é muito novo. Poderia ter se projetado como um pós-Lula, se aliar com a esquerda que voltou a ser forte no país, mas escolheu outro caminho."
2022-10-02
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63069629
brasil
Mapa interativo: veja como foram as votações para presidente e governadores
Mais de 120 milhões de brasileiros foram às urnas neste domingo para votar para os cargos de presidente, governador, senador, deputado federal e deputado estadual. Neste interativo, você pode acompanhar como foi a votação de cada um dos candidatos a presidente e governador em seu Estado e município. Os 11 candidatos à presidência são, em ordem alfabética, Ciro Gomes (PDT), Jair Bolsonaro (PL), José Maria Eymael (DC), Leonardo Péricles (UP), Luiz Felipe d'Avila (Novo), Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Padre Kelmon (PTB), Simone Tebet (MDB), Sofia Manzano (PCB), Soraya Thronicke (União Brasil) e Vera Lúcia (PSTU).
2022-10-02
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63080081
brasil
Eleições 2022: confira os senadores eleitos em cada Estado
Com o avanço da apuração, algumas disputas para o Senado já estão definidas matematicamente. Confira abaixo os vencedores em cada Estado e no Distrito Federal até agora, de acordo com os votos computados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O deputado federal Alan Rick está eleito senador com 37,11% dos votos. Até agora, mais de 98% das seções já foram apuradas. Ney Amorim (Podemos) ficou em segundo com 18,04% até o momento. O ex-governador Renan Filho foi eleito senador com 56,92%. Davi Davino Filho (PP) ficou em segundo lugar, com 42,22% dos votos. O ex-presidente do Senado Davi Alcolumbre está reeleito com 47,73% dos votos e mais de 99% das seções apuradas no Estado. Rayssa Furlan ficou em segundo com 42,66% até o momento. Omar Aziz (PSD) foi reeleito senador pelo Amazonas com 40,99% dos votos. Coronel Menezes (PL), com 39,15% dos votos, ficou em segundo lugar. Otto Alencar renovou o mandato no Senado com 58,25% dos votos. Em segundo lugar, Cacá Leão (PP), ficou com 25,22% dos votos. Camilo Santana (PT), foi eleito senador pelo Ceará com 69,73% dos votos. O segundo lugar ficou com Kamila Cardoso (Avante), que recebeu 26,23% dos votos. Damares Alves, ex-ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, venceu a disputa com 44,98% dos votos. A também ex-ministra Flávia Arruda (PL) ficou em segundo lugar com 27,05%. Magno Malta obteve 41,95% dos votos e superou Rose de Freitas (MDB), que ficou em segundo com 17,25%. Wilder Morais (PL), garantiu a reeleição com 25,25% dos votos, vencendo Marconi Perilo (PSDB), que ficou em segundo lugar com 19,80%. O ex-governando Flávio Dino (PSB) foi eleito com 62,22%. No segundo lugar, Roberto Rocha (PTB) teve 35,72% dos votos. O ex-deputado federal Wellington Fagundes (PL) foi eleito com 63,54% dos votos, superando Antônio Galvan, segundo colocado, que conseguiu 25,95% dos votos. Tereza Cristina, ex-ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, foi eleita no Mato Grosso do Sul. Ela recebeu 60,85% dos votos. O ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta (União) ficou em segundo com 15,12% dos votos. O deputado estadual Cleitinho Azevedo (PSC), que recebeu 41,53% dos votos, derrotou Alexandre Silveira (PSD), que ficou com 35,79% dos votos, e foi eleito senador de Minas Gerais. O ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro foi eleito com 33,50% dos votos. Em segundo lugar, Paulo Martins (PL) teve 29,12%, e Alvaro Dias (Podemos), 23,94%. Efraim Filho (União) foi eleito com 30,82% dos votos, deixando Pollyana (PSB), com 22,84%, em segundo lugar. Beto Faro (PT), que foi deputado federal, conquistou a vaga no Senado com 42,50% dos votos. O segundo lugar ficou com Marcio Couto (PL), que recebeu 35,50% dos votos. Teresa Leitão (PT) foi eleita como a primeira senadora da história de Pernambuco. Ela recebeu 46,12% dos votos. Gilson Machado (PL) ficou em segundo lugar, com 29,55% dos votos. O ex-governandor Wellington Dias (PT) foi eleito com 51,32% dos votos. Dias já exerceu o cargo no Senado, entre 2011 e 2014, ano em que renunciou para assumir o governo estadual. Joel Rodrigues (PP), recebeu 47,62% dos votos, terminando em segundo lugar. O senador Romário (PL) foi reeleito neste domingo com 29,19% dos votos. Alessandro Molon (PSB), ficou em segundo lugar com 21,20% dos votos. O ex-ministro do Desenvolvimento Regional do Brasil Rogério Marinho venceu a disputa com 41,85% dos votos. Carlos Eduardo (PDT) ficou em segundo lugar com 33,40% dos votos. O vice-presidente Hamilton Mourão venceu a disputa com 44,11% dos votos. Olívio Dutra (PT) ficou em segundo com 37,85%. Jaime Begattoli (PL) foi eleito com 35,81% dos votos, vencendo Mariana Carvalho, que recebeu 32,16% dos votos. Dr Hiran (PP) venceu a disputa com 46,43% dos votos. Romero Jucá foi o segundo mais votado, com 35,75%. Jorge Seif (PL), ex-secretário de Bolsonaro, foi eleito com 39,79% dos votos, superando Raimundo Colombo (PSD), que recebeu 16,30% dos votos. Laércio (PP) foi eleito com 28,57% dos votos.O segundo candidato mais votado foi Valadares Filho (PSB), que recebeu 24,65% dos votos. Astronauta Marcos Pontes (PL), ex-ministro de Estado da Ciência, Tecnologia e Inovações do Brasil, foi eleito com 49,68%, superando Márcio França (PSB) 36,27%. Professora Dorinha (União), ex-deputada federal, conquistou a vaga no Senado com 50,42% dos votos. Kátia Abreu (PP) ficou em segundo lugar com 18,50% dos votos.
2022-10-02
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63112775
brasil
Dez momentos que marcaram campanha presidencial
A eleição histórica deste domingo (02/10) teve diversos momentos marcantes desde o início da pré-campanha. Veja abaixo 9 momentos que marcaram até agora as eleições de 2022. Ao longo da campanha, o país registrou assassinatos e agressões devido a discordâncias políticas, como o episódio no interior do Mato Grosso do Sul em que Rafael Silva de Oliveira, apoiador de Jair Bolsonaro, foi preso após matar a facadas o colega de trabalho Benedito Cardoso dos Santos, que defendia Lula. O assassino confesso ainda tentou decapitar a vítima com um machado em 7 de setembro. Outro episódio violento que chocou o país foi o assassinato do guarda municipal e dirigente petista Marcelo Aloizio Arruda durante a sua festa de aniversário cujo tema era o PT. Ele foi morto a tiros pelo policial penal federal Jorge José da Rocha Guaranho, que invadiu o evento em Foz do Iguaçu aos gritos de "Aqui é Bolsonaro!", segundo informações de testemunhas à Polícia Civil do Paraná. Para o sociólogo e professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Gabriel Feltran, o assassinato não foi um"ato isolado", mas sim reflexo da retórica de violência na política que, segundo ele, começou a ganhar força a partir de 2013 e se intensificou no governo Bolsonaro. A violência chegou inclusive às igrejas. No último dia de agosto, um policial militar que é apoiador de Bolsonaro e adepto de uma igreja evangélica em Goiânia deu um tiro em outro frequentador da Congregação Cristã no Brasil durante o culto. Fim do Matérias recomendadas Segundo testemunhas, o crime ocorreu porque a vítima discordava de uma orientação lida pela congregação em cultos de não "votar em candidatos ou partidos políticos cujo programa de governo seja contrário aos valores e princípios cristãos". "Vivemos um período sombrio da nossa história. Temos dois momentos de preocupação (em relação à violência política): domingo (dia da votação) e o que vai acontecer com esse país daqui até 31 de dezembro caso Lula vença", avalia Samira Bueno, diretora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. "Parecia a arca de Noé. A duas semanas da eleição, bichos de todas as espécies políticas se reuniram em torno de Lula. O encontro juntou oito ex-presidenciáveis, do líder dos sem-teto Guilherme Boulos ao banqueiro Henrique Meirelles", escreveu Bernardo Mello Franco, colunista do jornal O Globo, sobre evento de Lula em 19 de setembro de 2022. Ao longo da eleição, muito se falou na imprensa sobre a composição de uma frente ampla na chamada terceira via, nome dado a um grupo de candidatos à Presidência que tentavam vencer Lula e Bolsonaro ao mesmo tempo. Mas foi o próprio petista que conseguiu esse feito depois de já ter atraído para sua chapa o ex-governador Geraldo Alckmin (ex-PSDB, hoje PSB), que foi derrotado nas urnas por Lula em 2006. O prinicipal amálgama da frente ampla de apoio foram os ataques de Jair Bolsonaro às instituições democráticas, em especial ao Supremo Tribunal Federal e ao sistema eleitoral. Um dos nomes de destaque na reta final da campanha foi o ex-ministro do STF Joaquim Barbosa, responsável pelo relatório na Corte que levou à condenação de diversos petistas no julgamento do mensalão. "Nas grandes democracias, Bolsonaro é visto como um ser humano abjeto, desprezível, uma pessoa a ser evitada. Esse isolamento internacional é muito ruim para o nosso país. Nós perdemos muitas oportunidades com isso. É preciso votar já em Lula no primeiro turno para encerrar essa eleição no próximo domingo", disse Barbosa em vídeo divulgado em 27 de setembro de 2022. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No que se refere ao debate político, a campanha foi marcada pela falta de discussões sobre os rumos do país entre os candidatos que lideraram as pesquisas. O PT havia prometido entregar em setembro um plano de governo "aos moldes das candidaturas modernas, enxuto, didático e inovador, com cerca de 50 páginas". Mas não cumpriu a promessa. A equipe do presidente entregou ao Tribunal Superior Eleitoral um documento de 21 páginas, onde não aparecem algumas de suas promessas de campanha, como isenção do imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil. Isso levou a críticas de que Lula esperava votos com um "cheque em branco". Além disso, nem Lula nem Bolsonaro trouxeram detalhes de como pretendem cumprir a promessa de manter o valor mínimo do Auxílio Brasil em R$ 600. Em 29 de agosto, no debate da Band, ambos foram questionados sobre de onde viriam os recursos para financiar o benefício. A resposta do atual presidente foi vaga: "Não roubando, não metendo a mão no bolso do povo", disse, acusando o opositor de corrupção. Lula, por sua vez, disse haver "mentira no ar", já que Bolsonaro prometeu manter o auxílio em R$ 600, apesar disso não estar previsto na Lei de Diretrizes Orçamentárias - que registra uma queda para R$ 400 no benefício a partir de 2023. Assim como Bolsonaro, Lula não explicou como conseguirá financiar o benefício. Em julho de 2022, o presidente Jair Bolsonaro fez uma apresentação para dezenas de embaixadores estrangeiros no Palácio da Alvorada em que repetiu diversas acusações sem provas contra a confiabilidade das urnas eletrônicas, do sistema eleitoral e da Justiça brasileira. O discurso de pouco mais de 30 minutos também foi transmitido por uma emissora pública, a TV Brasil. "Tudo que vou falar aqui está documentado, nada da minha cabeça […] O que mais quero por ocasião das eleições é a transparência. Queremos que o ganhador seja aquele que realmente seja votado." O vídeo acabou derrubado pelo YouTube no mês seguinte e foi alvo de ação da Procuradoria Geral Eleitoral (PGE). "A tentativa de infundir temor no eleitor sobre o respeito efetivo da sua vontade, atribuindo, direta ou subliminarmente, maquinações ou negligência aos que gerem as eleições, não encontra base devidamente demonstrada, despreza argumentos e evidências sólidas em contrário e não atenta para a deliberação do Congresso Nacional de apoio ao modelo adotado", afirmou a PGE. Para o órgão, "o discurso proferido contém informações falsas sobre o sistema eleitoral brasileiro, o que é vedado pelas normas vigentes, e configura propaganda negativa". "Ontem pude olhar nos olhos da Presidenta Dilma e pedir perdão. Perdão por ter propagado o antipetismo, o discurso golpista e o ódio à esquerda", escreveu o influenciador e empresário Felipe Neto em seu perfil no Twitter em 26 de setembro de 2022. O post era acompanhado de uma foto em que Dilma segura os braços dele enquanto conversam. "O amor q ela me deu em retorno foi algo q nem consigo explicar a vcs. É esse amor que vai vencer dia 02." Felipe Neto cobrou, em outra postagem, que veículos da imprensa também pedissem perdão à ex-presidente pela "participação decisiva" dele e de outros na "defesa do golpe na época" da deposição da petista. No dia 28/09, o Senado dos Estados Unidos aprovou por unanimidade uma resolução apresentada pelo senador Bernie Sanders e outros cinco senadores democratas para defender a democracia no Brasil. Em sua defesa da medida, no plenário do Senado, Sanders afirmou que o texto não era favorável a qualquer candidato e sim favorável ao rompimento de relações e assistência militar entre países em caso de um golpe. "Não estamos tomando lado na eleição brasileira, o que estamos fazendo é expressar o consenso do Senado de que o governo dos EUA deve deixar inequivocamente claro que a continuidade da relação entre Brasil e EUA depende do compromisso do governo do Brasil com democracia e direitos humanos." "É a primeira vez em muitas décadas que vemos esse tipo de resolução em relação ao Brasil. Isso não aconteceu nem mesmo durante a ditadura militar", afirmou James Green, historiador da Brown University e presidente do Washington Brazil Institute. A medida não contava com apoio declarado de nenhum político do Partido Republicano (ao qual o ex-presidente Donald Trump é filiado), mas, pelas regras da Câmara Alta, se nenhum senador objeta a um texto de resolução, ele é aprovado por unanimidade na casa. A BBC News Brasil entrou em contato com o Planalto, o Itamaraty e a Embaixada do Brasil em Washington sobre a aprovação do texto. Os dois primeiros não responderam à reportagem. Já a Embaixada, em nota, afirmou que "não compete à embaixada emitir comentários sobre resoluções do Poder Legislativo do país junto ao qual está acreditada". "O senhor não tem medo de ir pro inferno, não?", disse a candidata presidencial Soraya Thronicke (União Brasil) ao candidato Padre Kelmon (PTB) em debate na TV Globo. "O senhor é um padre de festa junina." As frases viralizaram nas redes sociais, como diversos trechos em que Kelmon aparece no debate. Kelmon entrou na disputa depois que o cabeça de chapa, Roberto Jefferson, foi impedido pela Justiça de disputar a eleição. Kelmon é ligado a uma denominação da igreja ortodoxa no Brasil. Por causa da legislação eleitoral, as emissoras são obrigadas a convidar todos os candidatos de partidos com um número mínimo de 5 parlamentares no Congresso Nacional. Mas a participação de Kelmon causou revolta entre os adversários. Lula, que teve um duro embate com ele e o chamou de "impostor", chegou a defender mudanças na lei eleitoral para impedir "candidatos laranja" como Kelmon. O próprio mediador do debate na Globo, o jornalista William Bonner, afirmou que "talvez seja o caso de estabelecer uma regra que aumente a exigência de representatividade política para que um candidato participe dos debates". A ex-ministra e candidata ao Senado Damares Alves (Republicanos) acabou sendo alvo da fake news que ela mesma ajudou a espalhar em 2013. Naquele ano, a então pastora afirmou em um culto sem provas que especialistas da Holanda defenderiam masturbação em bebês para melhorar a vida sexual deles. Nove anos depois, a então candidata ao Senado recorreu à Justiça Eleitoral para derrubar uma versão manipulada do mesmo vídeo que sugere que é a própria Damares que defende a masturbação de bebês. O vídeo foi derrubado pela Justiça Eleitoral em 28 de setembro, segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo. Os temas escolhidos por Damares estavam entre os que mais ressoam com o eleitorado brasileiro, o que ajudaria a explicar a proeminência dela no governo Bolsonaro. "De todos os assuntos políticos, esse é o que mais mobiliza. Um exemplo: o 'kit gay'. Apesar de ser fake news, foi algo muito poderoso, justamente porque essa questão é muito importante para o público evangélico", diz a cientista política americana Amy Erica Smith, referindo-se ao boato infundado que governos do PT tinham planejado a distribuição de materiais que faziam "propaganda" da homossexualidade nas escolas. "O fascismo está saindo do bolsonarismo doente para o petismo fanático. É fascismo puro do Lula e do PT, e isso nós temos que derrotar", afirmou o candidato presidencial Ciro Gomes (PDT) em uma entrevista na Bahia em 14/09. Para ele, o PT promovia "terrorismo e fascismo de esquerda" ao defender o voto útil em Lula. O voto útil, citado pelo político e cada vez mais presente no debate eleitoral, consiste em desistir de apoiar seu candidato preferido para apostar em alguém que pode ter mais chances de vencer as eleições — ou para evitar um segundo turno. "Na reta final da campanha mais vazia da história, embalam tudo no falso argumento do 'voto útil'. Com esta pregação, querem eliminar a liberdade das pessoas de votarem, no regime de dois turnos, primeiro no candidato que mais representa seus valores, e, se for o caso, de optarem depois por aquele que mais se aproxime de suas ideias", disse o Ciro Gomes em pronunciamento no dia 26/09. Essas declarações de Ciro ilustram sua trajetória ao longo desta campanha eleitoral, em que ele tentou pela quarta vez chegar ao segundo turno da eleição presidencial desbancando o PT. Grande parte de sua estratégia foi centrada em atacar Lula e o PT, mas ela não surtiu o efeito desejado entre os eleitores. Para críticos, os ataques de Ciro ao candidato do PT acabaram beneficiando o próprio Bolsonaro. O candidato acabou apelidado nas redes sociais de "Cironaro", "Bolsociro" e "linha auxiliar do bolsonarismo". "Um presente para a mulher que merece e deve ser o que ela quiser. Juntas, estamos construindo um Brasil para elas, com elas e por elas", dizia a primeira aparição em vídeo da primeira-dama Michelle Bolsonaro na campanha televisiva do presidente. Ela entrou na campanha em agosto para tentar reduzir a enorme rejeição das eleitoras a Bolsonaro: 56% das mulheres disseram que não votariam no atual presidente, segundo o Datafolha. Mas por que a gestão de Bolsonaro incomoda um percentual maior de mulheres que de homens? Para a professora de ciência política Malu Gatto, da University College London, há três explicações para isso: o modelo de masculinidade que Bolsonaro representa e que inclui posições criticadas como machistas; a gestão da pandemia; e o estado atual da economia. "Essa questão da masculinidade pode estar indo em ambas as direções, ou seja, diminuindo o apoio das mulheres, mas também aumentando o apoio dos homens. Ele tem uma postura que enfatiza soluções tradicionalmente associadas ao masculino, como uma forma de governar mais agressiva, que inclui o culto à violência e às armas", diz. "Isso gera identificação com parcela dos homens, mas rejeição entre mulheres. Além disso, muitas vezes o presidente classifica mulheres a partir de critérios estéticos, o que novamente o aproxima de um público masculino, mas pode afastar parte das mulheres." Houve também diversas participações de Michelle Bolsonaro em eventos de campanha com evangélicos. Vale lembrar que, no Brasil, a face típica do evangélico é feminina, negra e jovem. Não é possível afirmar qual estratégia de Bolsonaro surtiu efeito, mas o próprio Datafolha apontou no fim de setembro que a diferença de Bolsonaro e Lula entre as mulheres caiu de 21 para 15 pontos percentuais. No levantamento de quinta-feira (29), o petista tinha 50% de intenções de voto no eleitorado feminino, ante 29% do mandatário. No novo, Lula tem 47%, e o rival, 32%.
2022-10-02
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63110657
brasil
Brasileiro com cirurgia marcada consegue dispensa de hospital só para votar em Londres
O paulistano Guilherme Di Giacomo, de 34 anos, dos quais quase seis vivendo em Londres, no Reino Unido, conseguiu receber uma alta temporária do hospital onde está aguardando uma cirurgia no pulmão, devido a uma pneumonia que contraiu, para ir votar neste domingo (2/10). Ele deve ser transferido de hospital e submetido a uma drenagem do pulmão ainda nesta semana. "Exerci meu dever como cidadão. Me considero uma pessoa muito politizada e queria muito votar; então pedi ao médico quando me dei conta de que não sairia do hospital antes do domingo", disse ele à BBC News Brasil por telefone de seu leito no St Mary's Hospital, no oeste de Londres. "O meu voto é um só entre milhões, mas pode fazer a diferença". "Senti até uma comoção maior quando mencionei que o motivo eram as eleições brasileiras. Como se eles soubessem do momento crítico em que estamos", acrescentou. Fim do Matérias recomendadas Di Giacomo disse que votou no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), pois "era a única opção viável para derrotar Bolsonaro", mas não se considera petista. "Fui criado como anti-petista. Mas mudei de opinião quanto ao PT depois do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff". Di Giacomo conta que começou a apresentar febre alta com dores no corpo no dia 12 de setembro e está internado desde 26 de setembro. Foram necessárias quatro idas ao hospital para que os médicos decidissem interná-lo, após um exame mostrar o comprometimento de seu pulmão por causa de uma pneumonia bacteriana. "Estava me sentindo muito cansado, não conseguia fazer as atividades mais simples". Ele fez um teste rápido para covid logo no início, que descartou a presença do vírus. Mais de 34 mil brasileiros residentes no Reino Unido estavam aptos a votar nas eleições deste domingo. A votação ocorreu apenas em um local, uma escola no oeste de Londres, e eleitores tiveram que encarar longas filas. Não houve registro de violência, mas do lado de fora grupos de apoiadores dos dois principais candidatos na disputa à presidência, Lula (PT) e Bolsonaro (PL), se concentraram em lados opostos da rua, entoando cânticos e palavras de ordem. Neste ano, mais de 697 mil eleitores estão aptos a votar no exterior. Eles podem votar somente para presidente da República. O número de eleitores no exterior representa um aumento de 39,21% em relação a 2018. A votação ocorre em 181 cidades estrangeiras.
2022-10-02
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63090409
brasil
Imprensa internacional destaca 'duelo de Titãs'
A imprensa internacional destaca neste domingo (2/10) a magnitude das eleições brasileiras e suas possíveis consequências para a democracia do país e da América Latina. O diário francês Le Monde descreve a disputa entre o atual presidente Jair Bolsonaro e o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva como um "duelo de Titãs", afirmando que o pleito opõe "as duas maiores figuras políticas do país". "Um duelo tão histórico quanto perigoso, em um país polarizado e eletrificado como nunca antes," nota o correspondente do jornal no Rio. "Entre Bolsonaro e Lula, a escolha decisiva sob tensão." Segundo o americano Washington Post, "após anos de expectativa, a votação se resume a uma decisão entre gigantes políticos messiânicos com enormes seguidores que são alvos de desconfiança - e desdém - de grandes porções do eleitorado. Cada um carrega uma bagagem extraordinária." É a primeira vez na história do país que um presidente enfrenta um ex-ocupante do Planalto. Fim do Matérias recomendadas Em Portugal, maior colégio eleitoral no exterior, o Diário de Notícias descreve a eleição como uma disputa entre "a metamorfose ambulante e o Trump dos trópicos". A reportagem do diário português diz que Lula havia usado a canção de Raúl Seixas para se referir à sua trajetória de vida, de origens humildes no sertão de Pernambuco a líder operário no ABC paulista, culminando com a Presidência em Brasília. O espanhol El País afirma que, se vencer as eleições, Lula retornará ao poder "pela porta da frente". O argentino Clarín afirma que a votação é "histórica" e "concentra o olhar de toda a região." Um dos destaques é a sinalização de Lula de um "interesse por retomar a liderança sul-americana, onde algumas economias estão sucumbindo, entre elas a da Argentina." O também argentina La Nación traz uma análise de Ines Capdevila, que observa "o fenômeno da repetição de líderes e ideias" em eleições tanto no Brasil quanto na Argentina. Segundo Capdevila, essa ideia "se baseia e ao mesmo tempo alimenta o personalismo e a polarização que a Argentina pratica há alguns anos mais do que seu vizinho." Em ambos os países, muitos eleitores estão votando contra um candidato, não necessariamente por um deles. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Reportagens publicadas neste domingo e ao longo da semana alertaram para o risco de desordem após às eleições, motivadas pelas ameaças de Bolsonaro às instituições democráticas caso o resultado não lhe seja favorável. Uma análise publicada no New York Times no dia 28 de setembro ressalta o papel das polícias militares em restaurar a ordem nesses casos. "Se o presidente do Brasil tentar um golpe, o que a polícia vai fazer?" questiona a reportagem. O texto observa, entretanto, que apesar de manter "relações amigáveis" com os militares, Bolsonaro "parece não ter o apoio institucional de que ele necessitaria para dar um golpe." Já o diário britânico Guardian ecoa neste domingo temores de que uma derrota do presidente leve seguidores exaltados a atentar contra instituições da república, como o Congresso e o STF. Segundo o jornal, "temores de que uma disputa de segundo turno resulte em semanas de turbulência e violência."
2022-10-02
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63110524
brasil
Abstenção: o que acontece se você não votar e como justificar
Nas eleições presidenciais de 2018, quase 30 milhões de eleitores deixaram de comparecer às urnas, ou 20,3% do eleitorado, o maior porcentual desde 1998. Mas o que pode acontecer se você estiver na faixa do voto obrigatório — de 18 a 69 anos — e não votar? Para começar, é preciso justificar a ausência. E, em alguns casos, pagar multa. Nesse último caso, você pode apresentá-lo nas mesas receptoras de votos ou de justificativas instaladas para essa finalidade nos locais divulgados pelos Tribunais Regionais Eleitorais e pelos Cartórios Eleitorais. Fim do Matérias recomendadas Vale lembrar que não é preciso anexar documentos que comprovem o motivo da ausência quando a justificativa for apresentada no dia da eleição. No entanto, caso você não faça isso, deverá justificar sua ausência em até 60 (sessenta) dias após cada turno da votação. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os prazos são: - até 1º de dezembro de 2022 (ausência no primeiro turno — 02.10.2022); - até 9 de janeiro de 2023 (ausência no segundo turno — 30.10.2022, caso haja). Há três opções: Em qualquer uma dessas opções, será necessário anexar a documentação que comprove o motivo da ausência à eleição para análise da autoridade judiciária da zona eleitoral responsável pelo título. Se a justificativa for aceita, haverá o registro no histórico do título eleitoral. Caso contrário, você vai precisar pagar uma multa. O pagamento pode ser feito pelo site do TSE ou pelo sistema Título Net, usando cartão, Pix, ou com boleto. Se você não votar, não justificar e não pagar a multa, fica em situação irregular com a Justiça Eleitoral. Não poderá, portanto, inscrever-se em concurso público; ser empossado em cargo público; obter carteira de identidade ou passaporte; renovar matrícula em estabelecimento de ensino oficial; obter empréstimos em bancos oficiais; e participar de concorrência pública ou administrativa. Para os servidores públicos há outra punição: ficam sem receber seus salários até regularizarem a situação junto à Justiça Eleitoral. Quem não votar em três eleições consecutivas — considerando isoladamente cada turno como uma eleição — e não justificar sua ausência terá sua inscrição eleitoral cancelada. Portanto, se você faltar ao primeiro turno, você é esperado para o segundo turno, se houver. Se você não puder comparecer mais uma vez deverá justificar sua ausência novamente. Ou seja, a justificativa é feita por turno. Vale lembrar que o acesso ao aplicativo e-Título está disponível somente para quem está com o título eleitoral regular ou suspenso. Como mencionado anteriormente, uma das formas de justificar o voto é pelo aplicativo e-Título. Ele pode ser baixado nas plataformas Android e iOS. Há uma funcionalidade disponível no aplicativo que permite que o eleitor faltoso justifique sua ausência no dia da eleição. Se isso for feito no dia da eleição, não será necessário anexar documento que comprove o motivo do não comparecimento, pois o aplicativo usa tecnologia de geolocalização. Ocorre o mesmo com quem está no exterior, mas ainda possuem inscrição em município do Brasil. Na eleição desse ano, a expectativa é que a abstenção diminua. Por quê? Os institutos de pesquisa têm notado um interesse incomum nessa eleição entre idosos e jovens, que se registraram em número recorde para votar. Uma das possíveis explicações para isso é a forte politização desses dois grupos, segundo Felipe Nunes, diretor do instituto de pesquisas Quaest. "Entre os jovens e mais velhos, o que a gente percebe é que os jovens tendem a ser mais progressistas. Os mais velhos tendem a ser mais conservadores. Também se reflete nas intenções de voto. Na média, jovens votam mais no Lula, enquanto os mais velhos votam mais no Bolsonaro", diz.
2022-10-02
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63080395
brasil
Quando TSE divulga resultado das eleições de 2022 (e onde acompanhar em tempo real)
A expectativa é que brasileiros já conheçam o resultado das eleições de 2022 por volta das 19h00 (horário de Brasília). Não há um horário pré-determinado para a divulgação pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) do resultado oficial, mas a apuração em tempo real começa logo após o fechamento das urnas às 17h (horário de Brasília). Pela primeira vez desde a redemocratização do Brasil, a abertura e o fechamento das seções eleitorais ocorrerão ao mesmo tempo nos 26 estados e no Distrito Federal, das 8h às 17h (horário de Brasília). Em 2018, por exemplo, a notícia de que haveria um segundo turno entre Fernando Haddad (PT) e Jair Bolsonaro (candidato pelo PSL na época) foi divulgado às 20h50 quando 95% das urnas haviam sido apuradas e não havia possibilidade matemática de resultado diferente. A votação no exterior fecha em horários variados de acordo com o fuso horário do país. A primeira conclusão da votação foi na Nova Zelândia, que está 15 horas na frente do Brasil. Fim do Matérias recomendadas No total, cinco cargos estão em disputa neste 1º turno: deputado federal, estadual (ou distrital), senador, governador e presidente da República. Este ano, estarão em disputa uma vaga na Presidência da República, 27 nos governos dos estados e do DF, 27 no Senado Federal, 513 na Câmara dos Deputados, 1.035 nas Assembleias Legislativas dos estados e 24 na Câmara Legislativa do Distrito Federal.
2022-10-02
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63110519
brasil
Cinco fatos que mostram que Brasil vai às urnas para eleição histórica
Mais de 156 milhões de brasileiros estão aptos a comparecer às urnas neste domingo (02/10) para uma eleição considerada histórica, em que votarão para cinco cargos: presidente da República, governador, senador, deputado federal e deputado estadual (ou distrital, no caso do Distrito Federal). Os cargos em disputa são os mesmos a cada quatro anos, mas o pleito de 2022 tem características excepcionais. Pela primeira vez um presidente no exercício do cargo, Jair Bolsonaro (PL), disputa um novo mandato contra um ex-presidente, o petista Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Segundo as principais pesquisas eleitorais, ambos lideram a disputa, com vantagem expressiva para o concorrente do PT. A força popular dos dois acabou bloqueando o espaço para o crescimento de outras candidaturas, como Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB). Outra situação inédita é a fraqueza do atual presidente na corrida eleitoral. As principais sondagens de intenção de voto sugerem que Bolsonaro não deve se reeleger e corre o risco de ser derrotado por Lula já no primeiro turno. Se isso se confirmar, será a primeira vez que um presidente fracassa ao tentar um segundo mandato. A disputa de 2022 é marcada ainda por três novidades preocupantes que, segundo analistas políticos ouvidos pela BBC News Brasil, indicam o enfraquecimento da democracia brasileira: a controversa tentativa das Forças Armadas de participar do processo de votação e contabilização dos votos; a perspectiva de que o presidente, caso seja derrotado, questione o resultado das urnas; e um elevado nível de violência política. Entenda melhor a seguir cada um desses aspectos históricos das eleições de 2022. Fim do Matérias recomendadas Após ser barrado da corrida presidencial de 2018, por estar condenado em segunda instância dentro da operação Lava Jato, Lula reconquistou o direito de disputar eleições depois que seus processos foram anulados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2021. Isso ocorreu porque a mais alta Corte do país entendeu que os direitos do petista não foram respeitados nos processos conduzidos na antiga vara do ex-juiz Sergio Moro. A reviravolta permitiu o embate inédito entre dois concorrentes carismáticos, com forte apelo popular e que já carregam a experiência de governar o país, o que dificultou o crescimento de outras candidaturas ao longo da corrida eleitoral, nota o cientista político Rafael Cortez, da Consultoria Tendências. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Segundo as pesquisas de intenção de voto, a maioria dos eleitores fará neste domingo uma escolha entre Lula e Bolsonaro. Para decidir, os brasileiros devem comparar não só o desempenho que cada um teve no comando do país, mas também o estilo de governar, acredita a socióloga Esther Solano, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). "Eu acho que essa eleição resume-se não só a um comparativo entre dois governos, mas também entre dois homens, entre essas duas personalidades e os símbolos e os valores que as duas representam", afirma Solano, que é estudiosa do eleitor bolsonarista. Na sua avaliação, o forte apelo emocional das duas candidaturas que já ocuparam o Palácio do Planalto reforçou a polarização dessa eleição. "Lula e Bolsonaro são duas grandes figuras que despertam paixões e afetos muito mais do que outras. São dois turbilhões. É muito difícil entre essas duas personalidades você encaixar uma terceira via que não tem esse mesmo capital afetivo", acrescenta. Desde que o Congresso aprovou a possibilidade de reeleição em 1997, todos os presidentes que tentaram um segundo mandato foram reeleitos: Fernando Henrique Cardoso em 1998, Lula em 2006 e Dilma Rousseff em 2014. Como explica o cientista político Rafael Cortez, da Consultoria Tendências, o candidato que tenta a reeleição geralmente tem uma competitividade maior porque tem o poder de tomar decisões concretas que afetem a vida dos eleitores, enquanto os outros tentam atrair o eleitor "basicamente no discurso". Bolsonaro, lembra Cortez, não poupou esforços para impactar positivamente os brasileiros nos meses que antecederam a eleição, como a ampliação de benefícios sociais e ações para baratear os combustíveis. As medidas, porém, não foram capazes de reverter o alto nível de rejeição que o presidente enfrenta. Segundo pesquisa Datafolha do final de setembro, 44% dos brasileiros reprovam seu governo, 23% o consideram regular, e 32% aprovam sua administração. É o pior resultado registrado por um presidente que tenta se reeleger, mostra o histórico de levantamentos do instituto. Fernando Henrique tinha 43% de aprovação e 17% de reprovação em setembro de 2018. Já Lula tinha 46% de aprovação e 18% de reprovação em setembro de 2006. Dilma, por sua vez, tinha 37% de aprovação e 22% de reprovação em setembro de 2014. Os analistas entrevistados apontam uma série de fatores para explicar a reprovação mais alta enfrentada por Bolsonaro. Por um lado, o aumento da pobreza nos últimos anos, período marcado pela pandemia de coronavírus e inflação em alta, piorou a vida de milhões de brasileiros durante sua gestão. Segundo pesquisa divulgada em junho pela Fundação Getúlio Vargas, o percentual de brasileiros em condição de pobreza (renda mensal inferior a R$ 497) chegou a 29,6% em 2021, maior patamar da série histórica iniciada em 2012. Isso representa 62,9 milhões de brasileiros. Em 2018, último ano antes de Bolsonaro assumir, eram 55,7 milhões nessa situação. Para Cortez, as medidas adotadas pelo governo pouco antes da eleição parecem ter sido insuficientes para se contrapor a esse aumento de vulnerabilidade social. "E o eleitor pode ter visto a ação como oportunista, buscando apenas o ganho eleitoral", acrescenta, ao analisar porque a aprovação do governo não se recuperou mesmo com o pacotão social. Outro fator por trás da rejeição alta ao presidente, avalia Esther Solano, foi sua resposta à crise do coronavírus. Bolsonaro não apoiou as medidas recomendadas por especialistas, como isolamento social, uso de máscaras e vacinação. E, em alguns momentos, deu declarações que foram vistas como desrespeitosas, como quando respondeu "Não sou coveiro, tá?" ao ser questionado por jornalistas sobre as vítimas da doença em abril de 2020. Em setembro, durante a campanha, ele se mostrou arrependido dessa declaração: "Dei uma aloprada", disse, em entrevista ao podcast Collab. Mas o recuo não parece suficiente para recuperar a maioria do eleitorado, acredita Solano. "O Bolsonaro cometeu erros que dificilmente serão perdoados pela população. Eu acho que o mais fundamental é a desumanidade da pandemia. Basicamente, no momento em que mais era preciso alguém para cuidar da população, num momento histórico internacional, Bolsonaro não só foi um gestor péssimo da pandemia, como demonstrou uma desumanidade que foi brutal", critica a socióloga. Além disso, a Solano identifica um cansaço da população com a "instabilidade" gerada pelo estilo de governar do presidente, inclusive entre eleitores que votaram nele em 2018. Na sua avaliação, o estilo "disruptivo" de Bolsonaro empolgou parte da população quatro anos atrás, quando havia uma onda contra a política tradicional, mas não funcionou na hora de governar. "Quando faço as entrevistas com os bolsonaristas insatisfeitos, aparece muito a questão da instabilidade. Esse jeito violento, que em 2018 era interessante porque era o jeito do outsider, hoje em dia transformou-se em um fardo, porque é o jeito de alguém que não sabe governar e que jogou o Brasil basicamente numa instabilidade permanente", afirma Solano. Na avaliação da socióloga, Lula acaba se beneficiando do contraste com Bolsonaro nesse campo, já que o petista se apresenta como um político de "conciliação", o "Lulinha paz e amor", que construiu na campanha uma aliança ampla, conquistando, inclusive, o apoio de antigos adversários, como o ex-tucano Geraldo Alckmin, que concorre a vice-presidente ao lado do petista. O cientista político Creomar de Souza, professor da Fundação Dom Cabral, tem uma leitura semelhante. Na sua avaliação, o governo Bolsonaro teve a proposta de "desconstruir" iniciativas anteriores, mas teve dificuldade em construir novas ações. "Há uma incapacidade de fazer política pública de qualidade", resume. "Eu acho que Bolsonaro foi muito eficaz em criar uma base muito coesa de eleitores que, à semelhança do que a gente vê com o PT, vai seguir com o Bolsonaro, independentemente do que aconteça. O problema é que o estilo de administração montado por Bolsonaro até aqui parece ter cansado os outros 70% da sociedade. Em algum sentido, não aguentam mais essa ideia de que você administra o país de uma forma que é um tanto quanto impulsiva, intempestiva", acrescenta. Mais um fator que explica a alta rejeição a Bolsonaro, apontam os analistas, é a percepção de que o presidente não cumpriu sua promessa de combate à corrupção. Com isso, o trunfo que presidente tinha, de se contrapor aos escândalos dos governos petistas, perdeu força em relação à disputa de 2018. Segundo pesquisa Datafolha do final de setembro, 69% dos entrevistados acreditam que há corrupção no seu governo, ante 23% que disseram que não existe e outros 8% que não souberam responder. "Havia a ideia de que Bosonaro iria lutar contra a corrupção. Não só não lutou, mas ele se aliou a setores enxergados como corruptos, como por exemplo o Centrão", ressalta Solano. Bolsonaro tem respondido a esse tipo de crítica dizendo que não é possível governar sem essas alianças. "Se tirar o Centrão, sobram 200 deputados, como vai aprovar um simples projeto de lei se não tiver um acordo, um mínimo de urbanidade com eles?", disse no debate promovido pela TV Globo. Quanto ao aumento da pobreza, ele também tem refutado que a fome seja um problema grave hoje no país. "Fome no Brasil, fome para valer, não existe como é falado. O que é extrema pobreza? É você ganhar até US$ 1,9 dólar por dia, isso dá R$ 10. O Auxílio Brasil são R$ 20 por dia. Então, porventura, quem porventura está no mapa da fome pode se cadastrar (no programa)", afirmou em agosto, no Ironberg Podcast. O pleito de 2022 também é marcado por um nível alto de incerteza e tensão sobre o que acontecerá após o resultado das urnas. Caso se confirme a derrota de Bolsonaro, seja no primeiro ou no segundo turno, não está claro se o presidente reconhecerá a vitória adversária e promoverá uma transição de governo pacífica. Desde o ano passado, Bolsonaro tem intensificado seus questionamentos sobre a segurança da urna eletrônica, sem apresentar provas que comprovem suas alegações de possíveis fraudes no sistema de votação brasileiro. Na última semana, foi divulgado um documento do seu partido, o PL, com resultados de uma suposta auditoria que teria detectado vulnerabilidades do sistema de votação, no que foi visto com uma preparação para contestação do resultado. O TSE classificou as informações do documento como "fraudulentas e atentatórias ao Estado Democrático de Direito e ao Poder Judiciário" e determinou uma investigação. "A definição básica de democracia é que os partidos e os políticos aceitem perder a eleição com a possibilidade de ganhar na próxima vez que concorrerem. Se você tem um presidente não aceitando essa premissa básica, ele está preparando o terreno para fazer algum tipo de contestação pós eleição. O que a gente não sabe é quanto ele vai ter de respaldo", afirma Beatriz Rey, cientista política e pesquisadora visitante da Universidade Johns Hopkins, em Washington. "Uma parte do establishment político está se recusando a participar do jogo. Isso significa que a democracia deixou de ser a única opção na mesa. Quer dizer, tem outras opções sendo circulando. É péssimo", acrescenta. Esse cenário é agravado pelo envolvimento das Forças Armadas, nota Júlio César Rodriguez, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Beneficiados por aumentos de remuneração, expansão do orçamento para gastos de Defesa e acesso a milhares de cargos na gestão federal desde 2019, os militares têm atuado como aliados de Bolsonaro e fizeram uma série de requisitos ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) com o suposto propósito de aumentar a segurança e a transparência do sistema eleitoral. Parte das demandas foi atendida, como a realização de testes de integridade das urnas com eleitores reais, que vão liberar a votação através da sua biometria. Os testes de integridade, realizados desde 2002, são votações simuladas feitas no dia da eleição com urnas reais sorteadas para verificar se os aparelhos estão funcionando adequadamente. Neste ano, o número de urnas foi ampliado de 100 para 640, e a biometria será usada em 5% a 10% do total (32 a 64 urnas). Já após a votação, os militares pretendem fazer a conferência de algumas centenas de urnas, a partir do boletim que é gerado em cada uma delas ao final da votação. Esses boletins, que, além de impressos, estarão disponíveis neste ano também online, servem para checar se os votos contabilizados no TSE batem com os votos registrados nas urnas. É uma informação pública, disponível para qualquer pessoa ou entidade realizar a conferência. No entanto, devido ao forte vínculo das Forças Armadas com o governo, o envolvimento dos militares têm gerado receios de que essa conferência possa ser usada de forma distorcida para apoiar Bolsonaro em uma eventual tentativa de contestar o resultado. Para Rodriguez, o envolvimento das Forças Armadas deveria se limitar ao apoio logístico que os militares há décadas realizam no auxílio ao transporte das urnas até as sessões eleitorais. "Quanto menos envolvimento político (os militares) tiverem, melhor e mais sadia estará a nossa democracia", defende. Na sua leitura, o TSE aceitou parte das demandas das Forças Armadas numa tentativa de distensionar a relação com os militares e também por confiar na segurança do sistema eleitoral. "Me parece que o ministro Alexandre Moraes (presidente do TSE) aceitou (a atuação dos militares) devido à alta confiança que tem nos resultados. Então, nada que será fiscalizado do funcionamento vai sair fora do esperado", afirma. Rodriguez ressalta que há "uma pressão grande das instituições da sociedade para que se obedeça o resultado das eleições" e seria muito custoso para as Forças Armadas se envolver numa contestação. Na sua avaliação, a maior parte do comando militar não quer isso. "O cenário que se avizinha é de derrota (de Bolsonaro). Se embarcarem nessa aventura de contestar o resultado e as Forças Armadas forem os responsáveis por atestar que houve fraude, isso vai ferir um número muito grande de eleitores, que serão majoritários. Então, há um peso para a imagem (das Forças Armadas). Parece que preocupa", analisa. Além da apreensão sobre a atuação dos militares, a expectativa de que apoiadores mais radicais do presidente não aceitem uma possível derrota de Bolsonaro é outro foco de preocupação, em meio a um contexto de escalada da violência política, afirma Samira Bueno, diretora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Nas últimas semanas, o país registrou assassinatos e agressões devido a discordâncias políticas, como o episódio no interior do Mato Grosso do Sul em que o bolsonarista Rafael Silva de Oliveira foi preso após matar a facadas o colega de trabalho Benedito Cardoso dos Santos, que defendia Lula. Segundo uma pesquisa feita pelo Datafolha a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps), 67,5% dos brasileiros afirmam ter medo de serem agredidos fisicamente por causa de suas escolhas políticas ou partidárias. A pesquisa divulgada em setembro também mostrou que 3,2% dos entrevistados disseram ter sido vítimas de ameaças por motivos políticos em julho. "Vivemos um período sombrio da nossa história. Temos dois momentos de preocupação (em relação à violência política): domingo (dia da votação) e o que vai acontecer com esse país daqui até 31 de dezembro caso Lula vença", avalia Bueno. "Porque tudo indica que o Bolsonaro não vai reconhecer o resultado da eleição, vai contestar falando sobre fraude, um pouco da estratégia que o Donald Trump utilizou (ao contestar a eleição de seu adversário, Joe Biden, presidente dos EUA). Assim como eles tiveram lá a invasão do Capitólio (Congresso americano), a gente precisa ficar atento a algum episódio desse tipo que acabe resultando em violência política", alerta. Para Bueno, um agravante é o fato de uma parte dos apoiadores de Bolsonaro ser adepto do uso de armas de fogo, postura que foi incentivada pelo presidente no seu governo. Na tentativa de reduzir os riscos, o TSE proibiu o transporte de armas e munições, em todo o território nacional, por parte de colecionadores, atiradores e caçadores entre sábado e segunda. No caso de outras categorias com direito a porte de armas, também está proibido que circular armado a menos de 100 metros de sessões eleitorais.
2022-10-02
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63098025
brasil
As memórias do cárcere de um sobrevivente do Carandiru
Dos mais de 35,5 mil versículos da Bíblia, o favorito de Sidney Francisco Sales, de 53 anos, é o sétimo do Salmo 91: "Caiam mil ao teu lado, dez mil à tua direita, nada poderá atingi-lo". E não é por acaso. Na tarde de 2 de outubro de 1992, cerca de 340 homens da Polícia Militar de São Paulo receberam ordens para invadir o Pavilhão 9 da Casa de Detenção, mais conhecida como Carandiru, para conter uma rebelião. Por volta das cinco da tarde, Sales subiu às pressas para o quinto andar, onde ficava sua cela, a 504-E, e deu de cara com três policiais militares. "Vai ter que acontecer um milagre em sua vida hoje", disse, em tom de deboche, o soldado que segurava uma argola com cerca de 50 chaves. "Um milagre? Por quê?", perguntou Sales, ainda esbaforido, arregalando os olhos. Fim do Matérias recomendadas "Vou escolher uma dessas chaves", começou a explicar o PM, engatilhando a escopeta calibre 12. "Se a chave abrir o cadeado da cela, você entra e vive. Se não abrir, você fica e morre aqui mesmo no corredor", avisou, apontando a arma para a cabeça do preso. "Vamos executar você!", completou o outro agente da lei. Naquela época, Sales ainda não acreditava em milagres. Pelo sim pelo não, fechou os olhos com força e começou a rezar baixinho o único versículo bíblico que conhecia. Uma semana antes, sua mãe, Maria da Conceição Sales, lhe enviara uma carta, onde copiou, a mão, o bendito salmo. Sales ainda recitava baixinho o texto sagrado quando ouviu o ruído do cadeado se abrindo. Trinta anos depois, ele imita o barulho, estalando a língua. "Minha mãe morreu há uns dois anos. Foi a maior perda que sofri na vida. Nunca desistiu de mim. Sempre repetia: 'Mãe de joelho e filho de pé'!", emociona-se. Em uma das últimas cenas do filme Carandiru (2003), dirigido pelo cineasta argentino Hector Babenco (1946-2016), Sales aparece lendo a carta da mãe. No longa adaptado do livro Estação Carandiru (1999), escrito pelo médico Drauzio Varella, ele é interpretado pelo ator Robson Nunes e se chama Davidson, ou Dada, o craque do time do presídio. O pastor evangélico Sidney Sales é um dos sobreviventes do Massacre do Carandiru, o maior da história do sistema carcerário brasileiro. Estima-se que, em apenas 20 minutos, 111 presos foram mortos e outros 35 ficaram feridos durante uma operação da PM para conter uma rebelião. Os números são da Secretaria de Segurança Público do Estado de São Paulo. Do total de mortos, 102 foram executados por armas de fogo e nove por armas brancas. Segundo estimativas extraoficiais, os números de mortos são ainda maiores. "111 é pouco. Morreram mais de 250. Muitos não tinham pai ou mãe para reclamar seus cadáveres", defende Sales. Nenhum policial foi morto na operação. "Peço desculpas a quem perdeu a família nos campos de concentração nazistas, mas só tinha visto aquilo nos filmes da Segunda Guerra Mundial. Carandiru foi meu Auschwitz", compara. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Paulista de Jundiaí, município a 57 km da capital, Sales chegou à Casa de Detenção do Carandiru, o maior complexo penitenciário da época na América Latina, em 1989. Tinha 19 anos quando foi preso em flagrante pela Polícia Federal por roubo de carga em Osasco e levado para o Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado (Deic), o antigo Departamento Estadual de Investigações Criminais. Condenado a quatro anos de prisão, Sales foi transferido para o Pavilhão 9, que abrigava cerca de 2,5 mil dos quase 8 mil detentos do Carandiru. Para lá, eram mandados os réus primários ou, no linguajar do presídio, os "cabeças de bagre". Os presos de maior periculosidade ficavam no Pavilhão 8. Dos 111 mortos no Carandiru, 88 (80% do total) eram presos provisórios. Ou seja, que ainda não tinham sido julgados pelos delitos que cometeram. Minutos antes da invasão, Sales comemorava a vitória do Cascudinho, time que ajudou a fundar e no qual jogava como zagueiro, por 2 a 1. Por volta de uma e meia da tarde, ouviu dizer que Antônio Luiz Nascimento, o Barba, e Luiz Tavares de Azevedo, o Coelho, tinham se envolvido numa briga no segundo andar do pavilhão. Até hoje, não se sabe ao certo o motivo do desentendimento. Dias antes, Barba tinha vendido fiado para Coelho. Como um não pagou o que devia, o outro resolveu cobrar a dívida. Os carcereiros ainda tentaram apartar a briga, mas os detentos não deixaram. Segundo a lei da cadeia, uma briga entre líderes de facções só termina quando um dos dois morre. Nenhum deles morreu, mas ambos ficaram feridos. Coelho foi transferido para o ambulatório, no Pavilhão 4. Já Barba demorou a ser socorrido pelos agentes penitenciários. As facções, espumando de ódio, declararam guerra entre si. Na confusão, atearam fogo na marcenaria. As chamas se espalharam e chegaram à cozinha. Houve explosão de gás. Com um megafone, o diretor do presídio, José Ismael Pedrosa (1935-2005), tentou acalmar os ânimos. Não conseguiu. Foi quando pediu ajuda à PM para controlar a situação. O então secretário de Segurança Pública de São Paulo, Pedro Franco de Campos, autorizou a entrada dos policiais militares sob o comando do coronel Ubiratan Guimarães (1943-2006). Com a repercussão negativa do caso, Campos deixou o cargo seis dias depois da operação. Participaram da intervenção, além da Tropa de Choque, as Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), o Comando de Operações Especiais (COE) e o Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate). Não havia reféns no Pavilhão 9. Todos os 20 carcereiros, diante da iminente explosão da panela de pressão, deram no pé. A ordem para invadir o Carandiru foi dada às quatro e meia da tarde. À medida que os policiais entravam, armados de fuzis, metralhadoras e escopetas, os presos, munidos de paus, estiletes e facões, fugiam, acuados, para os andares superiores. Os detentos ainda improvisaram uma barricada com móveis e colchões. Mas, de nada adiantou. À princípio, Sales achou que os policiais estivessem usando balas de borracha. Mas, quando o cheiro de pólvora se espalhou pelo ar, viu que estava enganado. Ele e outros presos tentaram procurar abrigo em uma caixa d'água no telhado do prédio, mas o rasante de um helicóptero da polícia cuspindo bala os obrigou a voltar para dentro do pavilhão. No quinto andar, o grupo se trancou em uma das celas. Um policial abriu o guichê (a abertura na porta de ferro) e efetuou disparos a esmo. Um ricocheteou na parede e atingiu a nuca de um preso chamado Estevão. Morreu na hora. Do lado de fora, o policial perguntou quantos presos havia na cela e, em seguida, ordenou que todos tirassem as roupas e saíssem. No corredor de pouco mais de dois metros de largura, Sales se deparou com dezenas de corpos amontoados no chão. Muitos estavam de bruços, com marcas de tiro à queima-roupa. Outros, ainda vivos, gemiam de dor ou gritavam por socorro. Perto da escada que levava para o quarto andar, os policiais improvisaram um corredor polonês e agrediram os presos a golpes de cassetete. Alguns eram arremessados no poço do elevador. Dos 111 mortos, 78 foram executados no segundo andar. Quinze morreram no primeiro andar, 10 no quarto e oito no terceiro. Terminada a operação, os policiais recrutaram alguns presos para recolher os corpos. Sales foi um deles. Enquanto um detento segurava os braços, o outro carregava as pernas. Muitos presos, para escapar da morte, se fingiram de mortos. Sales calcula ter transportado cerca de 30 corpos. Empilhados num canto do pátio, os cadáveres eram removidos, através de rabecões, para o Instituto Médico Legal (IML). Na madrugada do dia 3, os funcionários do IML não tiveram descanso. Os corpos não paravam de chegar ao necrotério. Dos 515 tiros disparados pelos PMs, 254 foram no peito e 126 na cabeça dos presos. Outros 135 foram desferidos nos membros inferiores. Os peritos identificaram ainda sinais de espancamento e de mordidas de cães no corpo das vítimas. Sales estava transportando os últimos corpos quando se deu conta de que um deles estava, havia pouco tempo, fazendo o mesmo serviço. "É queima de arquivo", pensou. "Serei o próximo!". Largou o homem ali mesmo e correu para o quinto andar. Foi quando deu de cara com os PMs que decidiram sua sorte com a argola de chaves. Um dia depois do massacre, Sales foi transferido para Mirandópolis, uma penitenciária no interior do Estado, onde terminou de cumprir sua pena. Em 1993, ganhou a liberdade, mas, negro, dependente químico e semianalfabeto, demorou para arranjar emprego. Bateu em muitas portas, mas nenhuma delas se abriu. "Quando saí da prisão, tinha o Ensino Médio incompleto. As empresas exigiam Word, Excel, Power Point... Não fazia ideia do que era isso. O máximo que eu tinha era um diploma de datilografia". Passados seis meses, Sales voltou a participar de roubos e assaltos. Pior: começou a beber e a consumir drogas. Em um confronto com a polícia, levou seis tiros e foi parar numa cadeira de rodas. Conclusão: mais dois anos de prisão, em regime fechado. "A Lei Áurea foi assinada pela Princesa Isabel, mas ainda não entrou em vigor no Brasil. Eles não libertaram os negros. Apenas trocaram a escravidão pelo encarceramento". Hoje, Sidney Sales mora em Várzea Paulista, no interior de São Paulo, e administra, ao lado da mulher, Adriana, quatro centros de acolhimento para pessoas em situação de rua e duas clínicas de reabilitação para usuários de drogas. Neles, oferece, entre outras, oficinas de costura, panificação e agricultura. Por suas instituições, já passaram mais de 5 mil pessoas. Atualmente, são 150. Não satisfeito, ele ainda dá emprego para outras 50, todas com carteira assinada. "Sou mais um ex-detento que virou pastor no Brasil. Sabe por que isso acontece? Porque a porta da igreja é a única que se abre para quem saiu da prisão e está à procura de uma segunda chance". Em 2007, Sales publicou Paraíso Carandiru — A História do Homem que, Levado ao Inferno, Encontrou a Porta do Céu. No momento, rascunha seu segundo livro, ainda sem título definido. "No primeiro, falo do meu passado. No segundo, do meu presente. Meu passado me condena, eu sei. Mas, meu presente me absolve." Entre outros temas, Sales dá palestra sobre dependência química e ressocialização de presos em colégios, universidades e presídios. Em 2019, participou do Brazil Conference Harvard & MIT, em Boston, a capital de Massachusetts (EUA). Ao lado de Maria Laura Canineu, a representante do Human Rights Watch, e de Flávio Dino, o governador do Maranhão, integrou o painel sobre Transformação do Sistema Carcerário Brasileiro. "Dizem que bandido bom é bandido morto. Discordo. Bandido bom é bandido ressocializado. O problema é que o Estado não ressocializa ninguém. Quem cumpre esse papel são as instituições filantrópicas." No ano em que o Massacre do Carandiru completa três décadas, o sistema prisional brasileiro atinge um recorde histórico: 919,6 mil presos — 867 mil homens e 49 mil mulheres. É, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a maior população carcerária já registrada no país. "Trinta anos depois, nada mudou. Pelo contrário. Piorou. Nosso sistema penitenciário faliu. Dentro dos presídios, o Estado não existe. São as facções criminosas que tomam conta das carceragens no país." Um levantamento do World Prison Brief (WPB), órgão do Instituto de Pesquisa de Política Criminal da Universidade de Londres (ICPR, na sigla em inglês), revela que o Brasil ocupa hoje a terceira posição no ranking dos países com maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos EUA (2 milhões) e da China (1,6 milhão). São 434 presos por cada 100 mil habitantes. A situação carcerária no Brasil só não é ainda pior porque 352 mil mandados de prisão, 24 mil de foragidos, continuam em aberto. Caso contrário, o total de encarcerados já teria chegado a 1,2 milhão de pessoas. "O sistema carcerário brasileiro é, para dizer o mínimo, uma calamidade. Mesmo assim, não desisti de sonhar. Quero prisões mais humanizadas, daquelas em que os presos saem de lá com uma profissão. No Maranhão, por exemplo, os detentos plantam legumes e verduras para creches e escolas. Quando o governador me contou, não acreditei. Achei que estivesse mentindo. Tive que ver com meus próprios olhos para acreditar." Até hoje, nenhum dos 340 policiais que invadiram o Carandiru foi preso. Entre 2013 e 2014, 74 deles foram condenados a penas de até 624 anos de prisão. Mas, o julgamento foi anulado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) em 2016. "Não houve massacre. Houve legítima defesa", declarou um desembargador. Em 2021, o caso sofreu nova reviravolta: uma decisão unânime do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve a condenação dos 74 PMs. Em 2001, o coronel da reserva Ubiratan Guimarães foi condenado a 632 anos de prisão pela morte de 102 dos 111 presos. Com direito a recorrer da pena em liberdade, o comandante da invasão foi eleito deputado estadual em 2002, com 56 mil votos pelo antigo PPB, o Partido Progressista Brasileiro. Foi absolvido em fevereiro de 2006 por decisão do TJ-SP. Em 10 de setembro de 2006, o Coronel Ubiratan foi encontrado morto em seu apartamento nos Jardins. Acusada de sua morte, sua namorada, a advogada Carla Cepollina, foi absolvida por falta de provas. No muro do prédio onde ele morava, picharam a frase: "Aqui se faz, aqui se paga". Quem também morreu assassinado foi o antigo diretor do Carandiru, José Ismael Pedrosa. Aposentado desde 2003, foi executado com dez tiros ao volante de seu Honda Civic em uma emboscada no dia 23 de outubro de 2005. Não andava em carro blindado, nem tinha proteção de escolta. O crime foi cometido por integrantes do Primeiro Comando da Capital (PCC), a maior facção criminosa do país. Os assassinos receberam penas que variaram de 14 a 19 anos de prisão. Quatro anos antes, sua filha, a médica Eulália Pedrosa Almeida, fora sequestrada em Taubaté, no interior de São Paulo. Em vez de resgate, os sequestradores pediram a soltura de líderes do PCC. Em 42 horas, a polícia estourou o cativeiro em São Vicente, resgatou a vítima e prendeu três sequestradores. "Não consigo mais ter raiva de ninguém. Mas reconheço o quanto eles foram incompetentes. Não souberam administrar a situação. Poderiam ter simplesmente cortado o fornecimento de água, luz ou comida. Teríamos nos rendido em dois ou três dias. Se tivessem feito isso, não teria acontecido aquela carnificina".
2022-10-01
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63069128
brasil
‘A ciência não entrou no debate’: entidades criticam falta de propostas de candidatos sobre pesquisa científica
Depois de dois anos e meio imersos na maior pandemia das últimas décadas — em que temas relacionados à ciência ganharam um destaque nunca antes visto — a expectativa entre os pesquisadores era a de que os candidatos à presidência tivessem mais propostas sobre como desenvolver esse setor no Brasil. Na prática, porém, isso não aconteceu como o imaginado: entre aqueles postulantes ao cargo que citam ciência, tecnologia e inovação nos planos de governo, as ideias são genéricas e pouco detalhadas, apontam as análises. Além disso, entidades que representam e reúnem a área acadêmica, de pesquisa e de divulgação científica do Brasil foram pouco consultadas — ou até ignoradas — pelos postulantes ao principal cargo do poder executivo. "Tudo isso é muito triste, a ciência não entrou em debate", observa o advogado e psicólogo Paulo Almeida, diretor executivo do Instituto Questão de Ciência (IQC) "Imaginávamos que, com a relevância que a área ganhou ao longo dos últimos dois anos e meio, teríamos uma qualificação maior das discussões sobre esse tema", lamenta. Fim do Matérias recomendadas "A ciência brasileira se encontra neste momento em uma situação extremamente preocupante de desmonte, e caberá ao próximo governo a sua recomposição estrutural e orçamentária, que devolva aos cientistas um ambiente propício para desenvolverem as pesquisas", avalia o geneticista francês Hugo Aguilaniu, diretor-presidente do Instituto Serrapilheira. Conheça a seguir algumas das ideias e análises das principais entidades e associações científicas do país — e como elas foram recepcionadas pelos candidatos à presidência. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A entidade admite que, dos 12 postulantes registrados à época no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), dez possuíam ideias e projetos direcionados especificamente ao desenvolvimento científico do país. Entretanto, mesmo com a CT&I (Ciência, Tecnologia e Inovação) ganhando algum destaque nas propostas de governos, "as candidaturas em geral ainda pecam por não detalhar como serão realizadas as ações desses governos caso eleitos", aponta o relatório. Nos planos de governo disponibilizados pelos partidos políticos, "a ciência apareceu fortemente atrelada ao cenário empreendedor, como uma frente importante para o desenvolvimento econômico do país", analisa o texto. "A maioria dos candidatos também defendeu o fortalecimento de um sistema nacional para CT&I, o aumento das bolsas de pesquisa disponibilizadas pelos órgãos federais e uma melhor estrutura orçamentária para as universidades públicas." O professor Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC, conta que durante o Encontro Anual da entidade, realizado em julho, foi feito um convite para que os três candidatos com maior intenção de votos — Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Jair Bolsonaro (PL) e Ciro Gomes (PDT) — participassem do evento. "Lula e Ciro aceitaram e estiveram presentes. Bolsonaro não respondeu e, após insistirmos, recebemos uma mensagem que ele não iria", relata. "A prioridade é encarar a ciência como uma política de Estado, e não de governo", resume a biomédica Helena B. Nader, presidente da ABC. O documento, elaborado por mais de uma dezena de acadêmicos, sugere que ao menos 2% do Produto Interno Bruto (PIB) seja investido na ciência nos próximos quatro anos, "como fazem nações bem-sucedidas". A entidade também vê como urgente a necessidade de formar mais mestres e doutores. A meta sugerida é ter, em dez anos, 2.000 pesquisadores a cada um milhão de habitantes. Atualmente, essa taxa está em 900 — valor inferior ao encontrado em outros países da América Latina. Entre as nações desenvolvidas, a proporção é de 4.000 cientistas a cada milhão de indivíduos. A ABC também indica que conselheiros estratégicos em ciência, tecnologia e inovação auxiliem mais ativamente os três poderes — Legislativo, Judiciário e, principalmente, o Executivo — "para que políticas públicas sejam desenhadas com aporte do conhecimento sobre cada tema". "Desde então, não houve contato por parte de nenhuma outra coligação", informam os responsáveis pela entidade. "Até o momento, não recebemos respostas de ninguém", conta Almeida, que também é coordenador do Observatório de Políticas Públicas do instituto. "Alguns assessores de Ciro e Lula até entraram em contato com a gente, mas não tivemos respostas concretas ou convites para conversas", complementa. Segundo Aguilaniu, a ideia foi fazer "uma ação bem-humorada nas redes sociais em que usamos este mascote histórico dos brasileiros, que representa muito bem a saúde pública e a ciência, para conscientizar os eleitores da importância de votar em candidatos que valorizem esta causa". Os representantes ouvidos pela BBC News Brasil destacam que políticas científicas adotadas em décadas anteriores servem como exemplo do que é possível conquistar quando se investe na área. "No início do século 20, tivemos o movimento sanitarista, cujo símbolo foi Oswaldo Cruz. Por meio dele, criamos toda uma política de vacinação e uma série de outras medidas que aumentaram consideravelmente a expectativa de vida da população brasileira", cita Almeida. O especialista também lembra de todo o investimento em pesquisas na área da agricultura — o trabalho da cientista Johanna Döbereiner sobre a fixação de nitrogênio no solo, por exemplo, permite que o país economize bilhões de dólares em plantações e seja uma das potências mundiais do agro. "Não podemos nos esquecer da criação da Embraer, uma empresa de classe mundial que surgiu a partir do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA)", acrescenta Nader, que também é professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). "E foi o Brasil quem mostrou ao mundo que dava para retirar petróleo do pré-sal, quando todos diziam que isso era impossível", completa. Entre os acadêmicos, também chama a atenção o fato de os candidatos à presidência enxergarem a ciência como um meio para alavancar o desenvolvimento econômico do país. Mas será que é válido enxergar a pesquisa sob essa ótica utilitarista, como uma forma de ganhar mais dinheiro? Para Ribeiro, esse tipo de pensamento é natural. "Numa sociedade democrática, você tem que convencer que cada investimento feito com dinheiro público faz sentido", acredita. Na visão do professor, a grande questão está em estimular a ciência básica e experimental, que investiga aspectos e fenômenos que estão ao nosso redor e na qual não se sabe exatamente qual será o resultado prático ou imediato. "Quando iniciaram as pesquisas sobre energia nuclear, ninguém sabia que isso poderia resultar em bombas, eletricidade, tratamentos contra o câncer ou métodos para restaurar obras de arte", exemplifica. "Mas todos esses avanços que existem hoje se devem à ciência básica, da qual não se tinha ideia exatamente o que poderia sair", diz. Almeida dá outro exemplo de como investir nesse ramo da ciência básica traz repercussões ao longo do tempo. "Foi por meio de uma pesquisa básica dentro da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP sobre venenos de cobras que um cientista descobriu a bradicinina, uma molécula que resultou em um dos remédios contra a pressão alta mais prescritos em todo o mundo." Aguilaniu concorda e aponta que investir em ciência básica para buscar resultados financeiros futuros não representa duas noções antagônicas. "Faz sentido enxergar a ciência como um meio para alavancar a economia, até porque isso é verdade". "Não existe geração de riqueza e desenvolvimento econômico sustentável de um país sem a ciência", diz. "Cem anos após o surgimento da física quântica, por exemplo, um estudo da Scientific American mostrou que 30% do PIB dos Estados Unidos eram baseados em invenções que só foram possíveis por essa área da ciência", cita. "Ressalto que, embora seja papel do Estado o investimento em ciência básica, isso não impede que existam eixos estratégicos", complementa o diretor-presidente do Instituto Serrapilheira. "A Alemanha, por exemplo, investiu muito na informação quântica porque julgou que esse era um campo estratégico para o país. O Brasil, da mesma forma, pode ter como eixo de investimento a área de ecologia tropical por causa de seu potencial." Ainda nessa seara, os representantes das entidades destacam a iniciativa de alguns cientistas, que resolveram deixar a bancada dos laboratórios e se candidataram a cargos de deputado federal ou estadual. Será que uma "bancada da ciência" no Legislativo ajudaria a fortalecer e estimular a pesquisa no país? Ribeiro vê o movimento com bons olhos. "Mesmo se for pequena, uma bancada dessas pode ampliar o número de projetos aprovados em prol da ciência", antevê. Nader entende que ter esses profissionais no Congresso "vai enriquecer o debate, mas não soluciona todos os nossos problemas". "Precisamos, porém, de diversidade no Legislativo. De certa maneira, ter representantes lá mostra como a ciência pode funcionar e auxiliar na discussão entre deputados e senadores", acredita. Já Almeida entende que a estratégia para aumentar a relevância da ciência entre os políticos deveria ser um pouco diferente. "Em vez de emplacar candidatos, o primeiro passo deveria ser criar uma pauta unificada e organizada", sugere. "A partir daí, poderíamos ter grupos de lobby e influência profissionais, que conversem com os parlamentares eleitos e possam explicar a necessidade de atender certas demandas do setor", aponta. "Se fizermos isso [a criação de um programa estruturado para que todos os parlamentares se familiarizem com o tema], a bancada da ciência se tornaria o parlamento inteiro", resume Aguilaniu. Questionados sobre o que fariam se tivessem o poder de determinar a política científica do presidente que estiver no cargo a partir de 2023, os representantes das entidades consultados pela BBC News Brasil parecem concordar em um aspecto: o investimento na pesquisa deveria ser uma política de Estado. "Ciência e educação não podem continuar à mercê do governo da vez", diz Nader. "Se não retomarmos os investimentos nessa área agora, e produzirmos uma verdadeira revolução na educação, o Brasil perderá gerações e o estrago será irreversível", complementa a presidente da ABC. "Toda essa conversa sobre ciência precisa ser transformada num projeto de nação", pontua Almeida. Ribeiro, que também vê a necessidade de melhorar a educação básica, acredita que é hora de estabelecer quais são as áreas prioritárias para investimento. "Temos que saber quais são as questões em que o Brasil pode e deve ser protagonista em termos de ciência", propõe. "Um ponto de partida são os nossos biomas. O conhecimento sobre a Amazônia e o Cerrado, por exemplo, nos permitem pensar em centros mundiais de pesquisa sobre essas regiões." "Apesar das limitações, o Brasil tem todas as condições para ser protagonista e produzir com destaque em alguns campos da ciência", crê o presidente da SBPC. Por fim, Aguilaniu entende que é urgente recompor o financiamento científico, frear a fuga de cérebros para o exterior e desenvolver o potencial de liderança do Brasil em combater a crise climática e a devastação de biomas. "Afinal, temos os maiores laboratórios naturais do planeta: nossos ecossistemas. Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica, Pantanal, oceanos… Cada um deles é extremamente rico e diverso e tem o potencial de gerar uma riqueza que se reverte diretamente para a população, a partir de uma economia verde", vislumbra. "O Brasil tem excelentes cientistas, mesmo com as condições precárias para pesquisa e a instabilidade orçamentária. Imagina o que eles serão capazes quando a ciência se tornar de fato uma política de Estado, e não apenas de governo, recebendo o devido valor", finaliza o geneticista.
2022-10-01
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63013001
brasil
O que está em jogo para a China na eleição brasileira
Quando subiu a rampa do Palácio do Planalto, em janeiro de 2019, Jair Bolsonaro (PL) ainda adotava uma retórica abertamente hostil contra a China. O então recém-eleito presidente vaticinava contra o regime comunista de Pequim, que acusava de estar "comprando o Brasil". Fã de Donald Trump, Bolsonaro fazia coro com a retórica americana que fazia uma guerra comercial com a China. No Brasil, temeu-se por laços bilaterais que haviam crescido enormemente nos governos anteriores de esquerda. Quatro anos mais tarde, o quadro geopolítico mudou. Com a partida de Trump, Bolsonaro perdeu seu principal aliado. Os constantes ataques do presidente às instituições brasileiras suscitam preocupações nos Estados Unidos e na Europa. A avaliação é que uma aproximação com Brasília seria problemática na hipótese de uma reeleição. A ironia é que uma situação de isolamento do Brasil em relação ao Ocidente beneficiaria justamente as relações com a China. Para alguns analistas, inclusive, um Brasil isolado sob Bolsonaro seria uma "oportunidade de ouro" para Pequim. Fim do Matérias recomendadas A China é o maior parceiro comercial do Brasil, destino de quase um terço das exportações do país. Além da importância em volume de comércio, o Brasil é também um dos poucos países do mundo que mantêm superávit com Pequim, destaca a diretora-executiva do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), Cláudia Trevisan. Em 2021, a China foi responsável por 66% do superávit comercial do Brasil e neste ano o patamar está em 53%. Até agosto, o Brasil vendeu para o mundo US$ 44 bilhões a mais do que comprou, e a China respondeu por US$ 23,4 bilhões deste saldo. No ano passado, ainda segundo o CEBC, as empresas chinesas investiram US$ 5,9 bilhões em 28 projetos no Brasil, em especial no setor de petróleo e energia. Foi o maior valor desde 2017. Comparado ao ano anterior, quando a pandemia levou a uma queda brusca nos fluxos, o aumento foi de 200%. Enquanto isso, o investimento da China no resto do mundo cresceu apenas 3,6%, totalizando US$ 116 bilhões. O China Global Investment Tracker, uma ferramenta que monitora os investimentos chineses no mundo, estima que o Brasil foi o principal destino desse fluxo em 2021, com participação de 13,6% do total. Historicamente, fica em quarto lugar, atrás apenas dos EUA, Austrália e Reino Unido, afirma Trevisan. Além disso, junto com Rússia, Índia e África do Sul, os dois países são parte dos Brics — o grupo de países emergentes que ajudou a projetar o Brasil na geopolítica mundial. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Apesar dessa importância econômica e estratégica chinesa, no início do governo Bolsonaro a relação sino-brasileira viveu um momento conturbado. O pior momento foi durante a pandemia do coronavírus, quando o presidente chegou a repetir a teoria de que Pequim criara o vírus em laboratório para dominar o mundo. Temeu-se que a troca de farpas prejudicasse o fornecimento de vacinas contra a covid. Os dissabores foram apontados como fator para a decisão chinesa de suspender a importação de carne brasileira em setembro de 2021, oficialmente em consequência da descoberta de dois casos da doença da "vaca louca". Trevisan observa, entretanto, que as tensões não escalaram para além das palavras. "Apesar de toda a retórica anti-China de alguns integrantes do governo Bolsonaro, isso não se traduziu em ações discriminatórias quanto à China no plano econômico," diz. Pelo contrário, o governo brasileiro não cedeu às pressões do governo americano para vetar a participação da Huawei na rede de 5G, atendendo às operadoras brasileiras que alegavam que a impossibilidade de comprar equipamentos da empresa chinesa elevaria custos. Durante a cúpula virtual do Brics em setembro passado, Bolsonaro descreveu a China como "essencial para a gestão adequada da pandemia no Brasil", já que os insumos para aplicação das vacinas contra a covid-19 vinham do país asiático. Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da FGV (Fundação Getulio Vargas) em São Paulo, avalia que os episódios que azedaram a relação no início do governo Bolsonaro estão superados. "Esse aumento dos investimentos mostra que a relação política entre Bolsonaro e a China talvez não seja a melhor [possível], mas deixou de ser ruim a ponto de contaminar a relação econômica", diz Stuenkel à BBC News Brasil. Como resultado, a China se encontra numa posição privilegiada de poder beneficiar-se das relações com o Brasil, independentemente de quem ganhe as eleições. Inclusive se o vencedor for Bolsonaro. No atual quadro geopolítico, o presidente brasileiro está isolado. Por seu discurso em relação à Amazônia e as menções constantes de ruptura institucional, Bolsonaro é visto com suspeição em Washington e nas capitais europeias. Para Stuenkel, o presidente brasileiro se tornou "tóxico" para outros líderes ocidentais, e um segundo mandato seu, mesmo que conquistado de forma legítima, poderia levar a um esfriamento das relações do país no plano internacional. "A expectativa em geral no Ocidente é que, mesmo se Bolsonaro for reeleito de maneira limpa, haverá uma intensificação e uma aceleração de uma possível erosão da democracia, porque os europeus olham para o Brasil e lembram da Venezuela, da Nicarágua, da Hungria, da Turquia, da Rússia. Em todos esses lugares, a erosão pra valer só aconteceu depois da reeleição", afirma Stuenkel. Este sentimento foi reforçado depois da reunião com dezenas de diplomatas no Planalto no dia 18 de julho, na qual Bolsonaro fez críticas às urnas eletrônicas. Várias fontes diplomáticas que conversaram com jornalistas se disseram preocupadas com as intenções do presidente, observando que nunca houve casos comprovados de fraude desde que as urnas eletrônicas entraram em uso em 1996. Em função disso, agrega Stuenkel, "o espaço para preservar os laços [com o Ocidente] seria muito reduzido. Bolsonaro é tão tóxico que qualquer plano por parte do Ocidente de tentar conquistar mais espaço no Brasil estaria fadado ao fracasso." O vácuo poderia ser preenchido por Pequim, argumenta o cientista político. "A concorrência que a China enfrentaria num Brasil isolado seria muito menor do que a concorrência em um país plenamente integrado. É um país onde outros talvez não gostariam de investir, por causa do custo político", diz. Mas enquanto os números demonstram a posição privilegiada da China para se beneficiar da relação com o Brasil, há discordâncias, entre analistas, sobre qual ocupante do Planalto seria mais vantajoso para Pequim. Em um artigo na revista acadêmica americana Foreign Policy, Stuenkel acendeu uma controvérsia ao dizer que o regime comunista chinês preferiria a continuidade de Bolsonaro. À BBC News Brasil, o analista disse que "a China percebe que países isolados do Ocidente são bons parceiros, porque eles não têm outras alternativas". Stunkel nota que "isso não tem a ver com esquerda-direita" e cita os governos da Hungria, Rússia, Nicarágua e Venezuela, países que variam da extrema-direita à esquerda radical. "Todos esses países que acabam sendo isolados diplomaticamente do Ocidente se aproximam de Pequim e Pequim consegue ditar os termos dessa aproximação", diz. "Bolsonaro, por incrível que pareça, é hoje um parceiro que está tão isolado no Ocidente que não tem mais como bater na China. Se amanhã a China invadir Taiwan, Bolsonaro não vai falar nada. Não tem como." Stuenkel crê que um Brasil integrado seria menos dependente da China e tenderia a buscar protagonismo em espaços globais, como o Fórum Econômico Mundial, a ONU (Organização das Nações Unidas) e o G20. Outros analistas discordam dessa avalição, lendo o contexto geopolítico de forma diferente. Atualmente, a China se encontra sob pressão do Ocidente na questão de Taiwan e dos direitos humanos em suas regiões autônomas; sua aliança com a Rússia é afetada pela guerra na Ucrânia; na economia, o país enfrenta a competição de nações vizinhas, como a Índia. Nesse sentido, um Brasil integrado ao mundo seria mais vantajoso para Pequim, inclusive pelo potencial de abrir portas para diálogos comerciais na América Latina. Rodrigo Zeidan, professor de Finanças e Economia da New York University em Xangai e da Fundação Dom Cabral, enfatiza a importância política do Brasil para a China, mais que econômica. Entre 2018 e 2021, embora o comércio bilateral tenha crescido 37%, passando de US$ 99 bilhões para mais de US$ 135 bilhões, o peso do Brasil no total negociado pela China com o mundo ficou estável e até decresceu, em torno de 2%. Na relação geopolítica, porém, as coisas adquirem pesos diferente, afirma Zeidan. "Quando você tem coisas como os Brics, o Brasil tem uma participação muito maior para a política chinesa do que um país como a Indonésia, que tem a mesma população, tem uma economia similar e está do lado da China, mas não faz parte dos Brics", argumenta. "Então nesse sentido o Brasil tem mais importância dentro dos discursos políticos chineses, porque os Brics são uma instituição formal." Para Zeidan, as relações atuais do Brasil com a China são "basicamente frias" e "não se desenvolveram nesses últimos quatro anos como poderiam ter se desenvolvido sem retóricas contra o investimento chinês, retóricas nacionalistas, retóricas anticomunistas". Salientando que o regime chinês é "nacionalista" e prefere não externar preferências políticas por este ou aquele candidato, Zeidan enfatiza o bom histórico das relações bilaterais sob os dois governos Lula. "No caso do Lula, o governo teve excelentes relações diplomáticas, avançou os Brics. Se for pra ter preferência, não tenho dúvida que a China vai preferir a vitória de um presidente que já teve boas relações com a China," diz. Cláudia Trevisan, do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), aponta também a possibilidade de que uma vitória de Lula revigore o Fórum China-Celac (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos), o principal diálogo da China com a América Latina. O Brasil abandonou a Celac em janeiro de 2020 e desde então o fórum perdeu peso. "Uma eventual volta de Lula vai levar ao regresso do Brasil à Celac, o que vai fortalecer o diálogo da China com a América Latina", aponta. Trevisan sublinha, principalmente, que as relações da China com o Brasil são estratégicas e de alto nível, e que o interesse na parceria deve continuar aceso independente de quem ganhe as eleições. "A relação Brasil-China é muito institucionalizada, em um grau que o Brasil tem com poucos parceiros", explica. "Tem mecanismos de diálogo de alto nível que continuaram funcionando durante o governo." O melhor exemplo é o diálogo presidido pelos vice-presidentes da China e do Brasil, através da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (Cosban). A iniciativa tem 11 subcomissões, que abrangem diálogos sobre tecnologia, finanças, agricultura, turismo, cultura e saúde. O planejamento estratégico considera um prazo de dez anos, com cronogramas executivos de cinco. "Então isso faz com que as burocracias dos dois países tenham contato frequente", diz Trevisan. "Não acho que haverá, com Bolsonaro ou Lula, ruptura nessa institucionalidade. Os diálogos com a China vão continuar." Hoje a China é o principal destino para o petróleo brasileiro, um posto anteriormente ocupado pelos EUA. Da mesma forma, o Brasil fornece 20% das importações de alimento da China, tendo desbancado os EUA nas exportações de soja. Mas Trevisan diz que a CEBC tem identificado novos setores estratégicos de cooperação comercial: por exemplo, a área de sustentabilidade, que incluiria finanças verdes, agricultura de baixo carbono e o mercado de carbono, no qual a China precisaria adquirir créditos para compensar seu veloz crescimento. Empresas chinesas já estão presentes no setor de energia solar e eólica, como a China Three Gorges, que possui 17 usinas hidrelétricas e 11 parques eólicos no Brasil. Outras possíveis fontes de investimentos são a área de eletrificação da mobilidade urbana, tecnologia da informação e o comércio eletrônico. Trevisan afirma que o comércio virtual seria um canal importante para diversificar e aumentar o valor das exportações do Brasil para a China no futuro. "A gente avalia que sustentabilidade e tecnologia são dois setores que tendem a atrair cada vez mais investimentos chineses e que podem colocar essa relação no futuro", afirma. "Conectar essa relação com uma agenda do futuro."
2022-10-01
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63094046
brasil
Como estratégia sul-coreana que impulsionou k-pop e cinema pode inspirar o Brasil
Rose Costa tem 56 anos, uma filha de 24, é professora de língua portuguesa do ensino médio e moradora de Guaratiba, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Ela sabe que seu perfil não corresponde ao público mais típico do k-pop, mas fala com orgulho que se considera uma aroha, ou seja, uma seguidora devota da boy band sul-coreana Astro (da mesma forma que os fãs do BTS, o grupo mais famoso do k-pop, são chamados de army, exército). "Durante a pandemia comecei a assistir a uns doramas [termo japonês às vezes usado para novelas coreanas, embora alguns prefiram k-dramas]. Eu gosto de uma boa história. Vi o primeiro, o segundo e o terceiro dorama e, caramba, de repente virou um vício. Foi a minha porta de entrada para o k-pop." Ela conta que suas séries coreanas favoritas são Hae-Ryung, a Historiadora e True Beauty, ambas estreladas pelo ator e cantor Cha Eun-woo — justamente um dos integrantes do Astro. O perfil de fã fora da curva de Rose é uma das diversas mostras de como a cultura pop da Coreia do Sul continua a sedimentar sua influência pelo mundo. Fim do Matérias recomendadas Também recentemente o k-pop virou um fundo de investimentos negociado em bolsa de valores junto a um índice que acompanhará o desempenho de 30 empresas de entretenimento do país asiático. É um sinal de que muitos apostam em espaço para expandir a popularidade do gênero. A Coreia do Sul é citada recorrentemente como um exemplo de sucesso na indústria criativa, com resultados consideráveis para a economia local. Levantamento da Kofice (Fundação Coreana para o Intercâmbio Cultural Internacional) aponta que exportações ligadas a conteúdos produzidos pelo país atingiram US$ 11,69 bilhões no ano passado, incluindo o setor de games, que possui um peso substancial nessa conta. Mais do que os números, há um efeito cascata do fenômeno mundial: com o interesse pelo país em alta, o turismo teve um salto. Há mais demanda internacional pela gastronomia e por produtos alimentícios locais — vide pessoas indo a mercadinhos do bairro paulistano do Bom Retiro, que concentra a comunidade coreana, à procura do biscoito dalgoná de Round 6. Até a indústria da maquiagem sul-coreana vem prosperando — afinal os rostos do k-pop e das séries de TV estão provocando mudanças no padrão de beleza internacional, antes fixado em traços ocidentais. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Tudo isso resulta no chamado soft power: sem uso da força, a Coreia do Sul está ascendendo no cenário internacional e com uma imagem simpática e atraente dentro de diferentes países, do Vietnã ao Brasil, passando por EUA e Alemanha. Essa trajetória é ainda mais surpreendente porque, até a década de 1960, Coreia do Sul era uma nação pobre e subdesenvolvida. Sua produção cultural era tímida, à sombra do vizinho e antigo invasor Japão, até que nos anos 1990 o setor local ganhou papel de destaque entre os objetivos do governo. A ideia era dinamizar sua economia. Investimentos cresceram e ações estatais facilitaram o trabalho de quem atuava na área. O Brasil, que já experimentou no passado êxito mundial tanto na música (a bossa nova na década de 1960) como nas novelas (Escrava Isaura foi hit na Rússia e na China entre os anos 1980 e ajudou a sedimentar a fama brasileira no ramo), poderia alavancar os potenciais adormecidos de sua indústria criativa ao adotar conceitos da política sul-coreana? Pesquisadores sul-coreanos que analisaram a hallyu — "onda coreana" — dizem que políticas culturais bem planejadas e bem aplicadas sempre ajudam. No entanto, alguns enfatizam que o fenômeno só alcançou essa dimensão por causa de uma conjunção mais complexa de fatores. Confira abaixo como foi essa trajetória sul-coreana e também o que brasileiros que lidam com políticas culturais opinam sobre possíveis lições para o país. O século 20 foi especialmente difícil para a península coreana. Foram 35 anos de uma cruel ocupação japonesa seguida de um conflito armado entre as partes norte e sul do território. Era o pano de fundo da nascente Guerra Fria entre as potências Estados Unidos e União Soviética. Só entre civis, 2,5 milhões de pessoas morreram na Guerra da Coreia. A seguir, os sul-coreanos ficaram sob regimes militares por quatro décadas, período em que a censura controlava atividades culturais. A volta de governos eleitos democraticamente no final da década de 1980 também significou a liberação da produção artística, algo importante para a onda coreana tomar forma depois. Mas a principal razão para o governo voltar os seus olhos para a cultura naquela época foi a economia, especialmente após a crise financeira asiática de 1997. O país tentou diversificar seus negócios, concentrados na manufatura, e apostou na indústria criativa. Alessandra Meleiro, presidente do Instituto das Indústrias Criativas e professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), cita o "caso Jurassic Park" para ilustrar o que chamou atenção dos políticos locais. O primeiro filme da série blockbuster, dirigido por Steven Spielberg em 1993, foi citado em um relatório governamental por ter sua bilheteria equivalente à venda de 1,5 milhão de carros da Hyundai. Além do potencial como indústria criativa, havia a questão de como a produção cinematográfica nacional tinha pouco espaço. "Esse filme ocupou todas as salas de cinema da Coreia do Sul por três meses. A coisa foi tão gritante que esse fenômeno de ocupação das salas ligou o sinal de alerta de que alguma política protecionista tinha que ser criada. Então foram adotadas cotas de tela [estabelecimento de um percentual mínimo de produção audiovisual nacional]", diz ela. Meleiro — que cita como referência os trabalhos acadêmicos da ex-Ancine Luana Rufino sobre o sucesso da experiência sul-coreana — conta que a mesma política teve efeitos distintos em um primeiro momento. "No cinema foi um tiro no pé porque eram feitos filmes de baixa qualidade, só para cumprir o requisito de investir em produção nacional. Mas para a TV aberta e TV paga, essa política ampliou o leque de janelas e, portanto, de possibilidades de produção independente. Isso aconteceu no Brasil, com uma lei semelhante, em 2011." O cinema, como já mencionado, viria a dar frutos mais para frente. Desde o cult Oldboy (2003), do diretor Park Chan-wook, até Bong Joon-ho fazer história com Parasita. O k-pop foi tratado como produto de exportação. O Ministério da Cultura foi reestruturado para trabalhar a divulgação de seus artistas. Adotou ações como distribuir milhares de CDs de k-pop a potenciais clientes de mercados internacionais e estimular a participação de empresas de entretenimento em feiras no exterior. O governo organizou e promoveu no ano de 2000 um show da boy band H. O. T. (Highfive of Teenagers) na China. O poderoso vizinho acabou se tornando um dos lugares onde os idols do k-pop criaram seus primeiros fandoms. Por sinal, o termo mais usado para o fenômeno, hallyu, é uma palavra de origem chinesa e não coreana. E com a cultura no alto da agenda do governo, obstáculos eram desemperrados na burocracia quando necessário. O foco se intensificou nos governos seguintes. O presidente sul-coreano da virada do século, Kim Dae-jung, se autoproclamou o "presidente da cultura" e introduziu mais medidas para promover de forma agressiva o setor. Em 2012, a indústria pop do país tomava de assalto o mundo. O vídeo de Gangnam Style, do cantor Psy, subia no YouTube para quebrar recordes e se tornar o mais visto de todos os tempos por anos — hoje tem 4,5 bilhões de views e é o 10° da lista. No topo agora está Babyshark, da empresa Pinkfong, que é... sul-coreana. Jungsoo Kim, professor de administração pública na Universidade Hanyang, de Seul, faz um contraponto. Ele defende em um estudo que houve quatro fatores para o fenômeno sul-coreano com tanto peso quanto a ação governamental: "O mundo da cultura e da arte é muito complexo para ser entendido com um único e simples modelo causal. A real causa do sucesso atual dos K-conteúdos no mercado global é ainda incerto", diz Kim à BBC News Brasil. Ele escreve em seu trabalho: "Construir políticas culturais é como jogar sementes na terra: não se sabe com antecedência qual delas vai frutificar". O primeiro item da lista de Kim é um dos pontos em que a indústria musical local sofre críticas. O k-pop se desenvolveu em torno da cultura do idol, com competições em que jurados e olheiros escolhiam os melhores candidatos à estrela. Além do questionamento "é produto ou cultura?" que alguns críticos fazem, esse cenário de competição asfixiante, em que quase tudo é calculado para entregar o melhor artigo pop, cria uma atmosfera de pressão para chegar e se manter no topo — é conhecida a questão sobre a saúde mental entre grande nomes do gênero. "Esse tipo de preocupação já foi levantada frequentemente na nossa sociedade. Mas não durou muito e não foi forte o suficiente para o governo fazer algo a respeito. Talvez o público em geral tenda a gostar do produto e esquecer de todo o processo", afirma Kim. O modelo de sucesso da Coreia do Sul chegou a ser citado pelo candidato presidencial Ciro Gomes (PDT). Em outubro de 2021, ele publicou um post com elogios aos investimentos públicos do país asiático na área, citava BTS, Round 6 e Parasita e criticava a decisão do governo Jair Bolsonaro de extinguir o Ministério da Cultura, reduzido a uma secretaria ligada à pasta do Turismo. A BBC News Brasil entrou em contato com a Secretaria de Cultura do governo federal e o Planalto para saber se as políticas sul-coreanas poderiam servir de inspiração ao país e se a extinção do MinC prejudicou o setor cultural, mas não obteve resposta. Segundo o site Tela Viva, que acompanha o mercado de mídia, o atual presidente da Ancine (Agência Nacional de Cinema do governo federal), Alex Braga Muniz, manifestou no evento Pay-TV Forum 2022 de agosto que tem simpatia pela adoção do modelo sul-coreano. À reportagem da BBC Brasil, Muniz afirma que "a política sul-coreana é baseada em três eixos: inovação, incentivos e regulação, e é justamente nesses eixos que pretendemos desenvolver a política audiovisual brasileira". "Audiovisual é entretenimento, e entretenimento é indústria de inovação. No campo da atuação, pretendemos uma política industrial, voltada para a ocupação de mercado e para a internacionalização do conteúdo." Ele diz que a Ancine lançou em 5 de maio último "uma linha de crédito de R$ 215 milhões para estimular a aceleração do crescimento do setor audiovisual com foco em novas tecnologias, inovação e acessibilidade e capital de giro". Segundo Muniz, a agência vem retomando políticas de leis de incentivo — mecanismo normalmente criticado pela base bolsonarista, como foi o caso da Lei Rouanet. "O fomento indireto é de fundamental importância para o desenvolvimento da atividade audiovisual, característica evidente da política sul-coreana, a partir dos mecanismos de incentivo", diz. "A eficiência dos mecanismos de incentivo brasileiros é historicamente comprovada em bilheteria e audiência. É a partir dos mecanismos de incentivo que as programadoras começam a planejar lançamentos simultâneos de filmes e séries também nas suas plataformas de streaming." Meleiro, da UFSCar, analisa que "a nossa a nossa lei de incentivo está completamente voltada para o fomento à produção. Lá na Coreia do Sul foi para resolver uma questão estrutural, para a melhoria de infraestrutura da indústria: salas, parque tecnológico, câmeras, estúdios, equipamentos. Ou seja, eles qualificaram o parque produtor". Os gestores anteciparam os desafios que o produto sul-coreano encontraria no mercado internacional: "Eles questionaram 'como melhorar entrega das cópias que vão circular externamente? Como melhorar os efeitos de som e música aqui gravados separadamente do diálogo de forma a pensar na exigência desse mercado internacional [para a dublagem]'". Houve também, diz ela, uma visão transversal do governo sul-coreano que estabeleceu pontes entre o Ministério da Cultura e as pastas da Educação e das Finanças para alcançar esses resultados. O diretor da Ancine, por sua vez, afirma que a agência "abriu consulta pública para regulamentar o financiamento a projetos de capacitação. O objetivo é estimular a infraestrutura técnica voltada para formação e capacitação de mão de obra para a cadeia produtiva do audiovisual". Juca Ferreira, ex-ministro da Cultura nos governos Lula e Dilma, afirma que "a economia da cultura é uma das mais promissoras do mundo: mais dinâmica, mais rápida, com menos tendência a decrescer. Pelo contrário, ela vem num crescimento vertiginoso, mesmo nos momentos de crise de outros aspectos da economia mundial". No entanto, em sua visão é necessário um equilíbrio entre o comercial e o cultural. "A economia da cultura precisa garantir uma harmonia e um equilíbrio entre o valor de uso e o valor de troca das mercadorias e dos produtos culturais", diz. "O capitalismo tende a mercantilizar tudo, mas esse processo de mercantilização dos conteúdos culturais precisa ter o contraponto das políticas que garantam a complexidade e a profundidade do ato criativo como a dimensão necessária da dinâmica social e individual dos cidadãos e cidadãs. Isso é uma política complexa que precisa ser desenvolvida. Senão vira banalização." Ferreira diz que não fala em "repressão à dimensão econômica", mas defende que o Estado precisa evitar o "extrativismo exploratório". "Trabalhar profundamente a questão da memória e do patrimônio cultural e estimular a produção cultural das manifestações tradicionais garantem a base do processo de produção cultural do país. Tudo isso é o que garante que a pujança de uma economia venha acompanhada de crescimento e desenvolvimento da cultura." No caso da professora Rose Costa, a indústria pop sul-coreana serviu de porta de entrada para o elemento mais básico da cultura do país: o idioma, que ela começou a estudar. "É nível básico ainda, mas a gente vai começando a identificar algumas expressões bem características. A questão dos honoríficos, dos títulos, os graus de formalidade e de informalidade. É muito bonito isso na cultura deles, o quanto que valorizam e respeitam a idade e a experiência daquela pessoa."
2022-10-01
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62975564
brasil
Afinidades políticas de policiais e militares colocam em risco atuação na segurança das eleições?
Organizações da sociedade civil têm manifestado preocupação acerca do possível comportamento de setores das forças de segurança nos dias de votação, já que agentes das polícias e das Forças Armadas estão escalados para garantir a ordem e a segurança das eleições a partir deste domingo (02/10), quando ocorre o primeiro turno. São eles que deverão fazer, entre outras atividades, a guarda das urnas eletrônicas e agir em caso da recusa de eleitores a seguirem regras como não levar celulares até as cabines de votação. Em uma reunião no fim de agosto, organizações brasileiras manifestaram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) preocupação com a possibilidade de que as preferências políticas de agentes desviem sua conduta durante as eleições. "Não há garantias em relação ao comportamento das forças de segurança porque muitos de seus membros estão cooptados pelo bolsonarismo", disse Claudia Maria Dadico, da Associação dos Juízes pela Democracia (AJD), em reunião com a presidente do CIDH, Julissa Mantilla. Fim do Matérias recomendadas Também participando da reunião, a constitucionalista Estefânia Barboza, do grupo Demos - Observatório para Monitoramento dos Riscos Eleitorais no Brasil, pediu proteção a mesários e a juízes eleitorais. "Nós temos a preocupação de que mesários possam sofrer algum tipo de violência em zonas eleitorais, e nós não sabemos se as forças policiais e as Forças Armadas se colocarão ao lado da democracia ou ao lado do discurso de fraude, caso o presidente Bolsonaro perca a eleição", afirmou Barboza. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Nesta quinta-feira (29/9), o Ministério Público Federal (MPF) no Rio de Janeiro (RJ) conduziu uma reunião com representantes da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, Polícia Militar e Guarda Municipal pedindo que orientem seus agentes sobre o papel das polícias no processo eleitoral. Um documento do MPF no Estado diz que a iniciativa pretende "prevenir condutas de agentes estatais, especialmente in sito, que por desconhecimento, deficiência instrutória específica, e mesmo negligência causem, ainda que involuntariamente, danos ou ameaças ao regime democrático por práticas ou omissões que atentem contra a ordem e a paz eleitoral". A defesa do regime democrático "não é uma opção para os agentes públicos encarregados da segurança pública e da persecução: é um dever e um compromisso de posse", continua o documento. O MPF no RJ anunciou ainda que, neste fim de semana de votação, seu Núcleo de Controle Externo da Atividade Policial estará de prontidão para reagir a eventuais ocorrências envolvendo agentes de segurança. As medidas foram anunciadas depois que as organizações Pacto pela Democracia, Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Human Rights Watch, Rede Liberdade e Transparência Internacional Brasil pediram à Procuradoria Regional Eleitoral medidas para garantir que as forças de seguranças vão prevenir e coibir eventuais abusos por parte dos agentes. Em caso de condutas irregulares de agentes, os cidadãos podem procurar instituições que estarão de plantão no domingo, como os Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) ou o próprio Tribunal Superior Eleitoral (TSE) — cujo aplicativo "Pardal" permite o envio de denúncias. Os ministérios públicos e algumas representações estaduais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) também terão plantões. Procurado pela reportagem, o presidente do Conselho Nacional de Secretários de Segurança Pública (Consesp) e secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, Júlio Danilo, afirmou por meio de nota que tais preocupações não chegaram a ser discutidas pela entidade, que reúne secretários de segurança de todo o país. Já o Ministério da Defesa não respondeu às perguntas da BBC News Brasil sobre como se posiciona em relação às inquietações de representantes da sociedade civil e como responderia a eventuais condutas inadequadas de militares trabalhando nas eleições. A assessoria de imprensa da pasta enviou uma nota afirmando apenas que "durante as eleições, tradicionalmente, as Forças Armadas atuam no apoio logístico e no transporte de urnas eletrônicas, pessoas e materiais para locais de difícil acesso", além de garantirem que "os processos de votação e de apuração, realizados pela Justiça Eleitoral, ocorram dentro da normalidade". No último dia 21, em reunião com o presidente do TSE, o ministro Alexandre de Moraes, servidores da Justiça Eleitoral também disseram estar preocupados com a atuação dos agentes de segurança nos dias de votação. Presente na reunião com Moraes, Fernanda Lauria, coordenadora da Federação Nacional dos Trabalhadores do Judiciário Federal e Ministério Público da União (Fenajufe), diz que individualmente todo agente de segurança tem direito a ter sua opinião política, mas teme a postura violenta que tem sido demonstrada por parte dos apoiadores de Bolsonaro. Para Lauria, um dos cenários que mais preocupam é relativo à restrição de armas nos locais de votação. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) proibiu o porte de armas no perímetro de 100 metros dos locais de votação nas 48 horas que antecedem e nas 24 horas que sucedem o pleito — com exceção, claro, dos agentes de segurança em serviço. "Para que seja cumprida essa determinação (proibição a armas), obrigatoriamente a polícia vai ter que atuar, e aí a gente realmente depende dela. Como uma pessoa sem arma ficaria em falar com uma pessoa armada que ela não pode entrar naquele local?", diz Lauria, apontando para a vulnerabilidade dos presidentes de mesa e mesários que trabalharão nos locais de votação. "A gente tem receio de que, numa hora dessas, um policial militar que seja bolsonarista não atue como deveria. Mas é uma sensação, o ministro garantiu que isso não aconteceria, porque muitas reuniões com as forças de segurança têm sido feitas", continua a servidora, referindo-se às polícias militares pois elas estarão trabalhando com "contingente máximo" neste fim de semana e são as principais responsáveis pelo policiamento ostensivo. Em 24 de agosto, os ministros Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandowski, do TSE, se reuniram com comandantes-gerais das polícias militares de todo o Brasil. No encontro, o coronel Paulo Coutinho, à frente da Polícia Militar da Bahia e presidente do Conselho Nacional de Comandantes-Gerais (CNCG), garantiu que as PMs estão preparadas para atuar "na garantia do exercício da cidadania e do estado democrático de direito". No dia em que o TSE decidiu que eleitores não poderão levar celulares às cabines de votação, em agosto, o ministro Ricardo Lewandowski disse que os policiais devem garantir que a regra seja cumprida. "Se alguém fraudar essa determinação legal, portando eventualmente um segundo celular ou insistindo em ingressar na cabine indevassável com o celular, ele estará cometendo ilícito eleitoral e deverá ser reprimido pelo mesário, pelo presidente que está, enfim, presidindo os trabalhos da sessão, e se necessário, com auxílio da força policial", afirmou o ministro. O RJ será o Estado com mais municípios recebendo apoio das Forças Armadas: 167 cidades. Em todo o país, 11 Estados que pediram reforço receberão militares — um tipo de apoio que está previsto na legislação desde 1965. Membro do grupo Demos - Observatório para Monitoramento dos Riscos Eleitorais no Brasil, assim como Estefânia Barboza, o professor de direito constitucional Emílio Peluso avalia que, nas últimas semanas, o cenário de uma ruptura institucional e orquestrada na democracia brasileira tem se mostrado mais improvável. Entretanto, Peluso teme que haja distúrbios antidemocráticos "pulverizados" pelo país e afirma que estes são mais prováveis em Estados onde os governadores não têm controle firme de suas polícias. "Em não havendo essa situação, a gente pode ver alguns cenários bem conturbados sobre o que pode acontecer eleitoralmente." "Em geral, vamos ter situações de agressão a esses princípios de hierarquia e disciplina que depois são respondidas com anistias ou conciliações que, ao final, acabam por mostrar que não se confia tanto nesses valores." "Ainda que se veja militares de baixa patente tentando agir em conformidade e sendo responsabilizados através de processos administrativos, você tem exemplos muitos ruins de alta patente agindo em plena desconformidade com o que determina a legislação e o que determinaria princípios básicos de hierarquia e disciplina. Ao longo do governo Bolsonaro, esses exemplos não faltaram", afirma Peluso. "A gente ter uma estrutura na qual o presidente destina 6 mil militares para atuarem em funções que seriam destinadas principalmente à administração pública civil já demonstra que há um certo descolamento ao que se espera das forças." Já Vidal Serrano Nunes Júnior, subprocurador-geral de Justiça do Ministério Público de São Paulo (MP-SP) que tem conduzido reuniões sobre as eleições com representantes de órgãos de segurança do Estado, diz não acreditar que haverá "algo sistêmico" no comportamento indevido de agentes — ao menos do que tem observado em São Paulo. "Se houver algum tipo de conduta de um policial que quebre o seu dever de imparcialidade e de impessoalidade, isso evidentemente vai ser apurado e punido, mas não acredito em algo sistêmico", afirma Nunes Júnior. "As polícias fizeram uma programação grande em relação ao tema e medidas de precaução estão sendo tomadas pela própria secretaria de segurança."
2022-09-30
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63084886
brasil
O que é o 'Orçamento Secreto' e por que virou arma eleitoral contra Bolsonaro?
Por que o uso de bilhões do orçamento federal por deputados e senadores em gastos como obras, compra de equipamentos e procedimentos de saúde com pouca transparência acabou ficando conhecido como Orçamento Secreto? A novidade, que começou em 2020, segundo ano do governo de Jair Bolsonaro (PL), veio acompanhada de indícios de corrupção em gastos para aquisição de tratores, construção de escolas e exames médicos. Por isso, o Orçamento Secreto virou arma de campanha dos adversários do presidente na eleição. Ao ser questionado no Jornal Nacional sobre a relação com o Congresso e o escândalo do Mensalão em seu primeiro governo (2003 a 2006), o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) respondeu: "Você acha que o mensalão, que tanto se falou, é mais grave do que o Orçamento Secreto? Deixa eu lhe falar uma coisa, a vida política estabelecida em regime democrático é a convivência democrática na diversidade. Nenhum presidente da República num regime presidencialista governa se não estabelecer relação com o Congresso Nacional", disse Lula a Renata Vasconcellos, apresentadora do jornal da TV Globo. Bolsonaro tem reagido às críticas dizendo que o Orçamento Secreto é uma invenção do Congresso. Fim do Matérias recomendadas "Orçamento Secreto: eu vetei, o Parlamento derrubou o veto. É lei. O seu partido, Lula, votou para derrubar o veto no tocante ao Orçamento Secreto. Não tenho nada a ver com isso", disse o presidente ao responder à candidata Simone Tebet (MDB), durante debate da TV Bandeirantes com os principais concorrentes ao Palácio do Planalto. E, durante debate entre os presidenciáveis na TV Globo, na noite desta quinta-feira (29/9), Bolsonaro voltou a reafirmar que não tem responsabilidade sobre o chamado Orçamento Secreto. Já o candidato do partido Novo, Felipe D'Avila, descreveu o orçamento e o "mensalão" como "mecanismos perversos" e defendeu um "governo ético" no país. Nessa reportagem, a BBC News Brasil explica esse tema em quatro pontos: a origem do Orçamento Secreto; o papel de Bolsonaro na sua criação; as críticas e os indícios de corrupção envolvendo esses recursos; e como, segundo analistas, é possível ou não compará-lo ao Mensalão. Confira a seguir. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Todo ano o Congresso aprova uma lei com a previsão de gastos do governo federal no ano seguinte, a chamada Lei Orçamentária Anual (LOA). Essa lei estabelece, por exemplo, qual será a verba de cada ministério. Parte dessas despesas é obrigatória, como o salário dos servidores, e outra parte é discricionária, ou seja, o governo vai decidir em quais programas ou obras vai aplicar os recursos. Além disso, uma parte do orçamento fica na mão do Congresso. Isso não é novidade. Há muitos anos existem as chamadas emendas parlamentares, por meio das quais deputados e senadores destinam recursos federais para investimentos em sua base eleitoral. O que mudou a partir do Orçamento de 2020? Antes, o grosso dos recursos controlados pelo Congresso era usado por meio das emendas individuais. Nesse caso, os valores são distribuídos igualmente entre os parlamentares e há total transparência sobre qual deputado ou senador usou cada recurso e para qual finalidade. Em 2022, por exemplo, o valor total das emendas individuais é R$ 9 bilhões, sendo R$ 17,6 milhões para cada parlamentar. No entanto, em 2019, durante a elaboração da Lei Orçamentária de 2020, o Congresso decidiu ampliar em grande volume um outro tipo de emenda parlamentar, as chamadas emendas de relator-geral. Essas emendas já existiam, mas eram usadas apenas para ajustes de pequena monta no Orçamento. Em 2019, porém, o Congresso decidiu alocar R$ 30 bilhões para as emendas de relator-geral, retirando uma fatia grande do orçamento que era gerida pelos ministérios e passando para o Parlamento. Relator é o parlamentar responsável por fazer a versão final da proposta de Lei Orçamentária que é votada pelo Congresso, após o governo enviar uma proposta inicial. Essa versão final é elaborada em negociação com o Palácio do Planalto e as lideranças dos partidos que atuam no Parlamento. Diferentemente das emendas individuais, em que cada congressista escolhe com autonomia para onde vai o dinheiro, no caso das emendas do relator é esse parlamentar que centraliza as demandas dos parlamentares e envia para os ministérios executarem os gastos, numa negociação que passa pelos principais caciques do Congresso, em especial os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). No orçamento de 2022, o relator é o deputado Hugo Leal, do PSD do Rio de Janeiro. É por isso que Lula tem chamado Bolsonaro de "bobo da corte", inferindo que ele já não tem poder sobre o Orçamento e quem manda nos gastos é o Congresso. O presidente tem dito que vetou a ampliação de recursos para as emendas de relator quando sancionou a Lei Orçamentária de 2020. Isso realmente ocorreu. No entanto, quando há um veto do presidente, o Parlamento pode depois derrubar esse veto em uma nova votação. Diante desse risco, o governo aceitou negociar com os parlamentares e o acordo final foi a divisão dos recursos. Com isso, em março de 2020, o Congresso manteve o veto de Bolsonaro, mas o Palácio do Planalto enviou três projetos de lei mantendo cerca de metade dos R$ 30 bilhões sob controle do relator do Orçamento. Segundo parlamentares, esse acordo foi feito nos bastidores com o então ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, que hoje comanda outra pasta, a Secretaria-Geral da Presidência da República. Publicamente, Bolsonaro negava ter negociado com o Congresso, o que irritou muitos parlamentares. "Nós vamos manter o veto 52 (o veto aos R$ 30 bilhões para emendas de relator), só que nos três PLNs (projetos de lei), o senhor Presidente da República, em vários dispositivos, está mandando para cá aquilo que ele vetou. Ele fala uma coisa publicamente, e manda para o Congresso Nacional aquilo que ele condena", discursou o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) no dia da votação. Depois disso, os bilhões em emendas do relator não saíram mais do Orçamento federal. Neste ano, são R$ 16,5 bilhões. Para 2023, o próprio governo sugere R$ 19,4 bilhões. O valor está na proposta de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para o próximo ano enviada por Bolsonaro ao Congresso no dia 31 de agosto. O contexto político por trás do Orçamento Federal E o que explica o Congresso ter conseguido controlar uma fatia tão grande do orçamento? Bolsonaro se elegeu em 2018 com um discurso avesso à política tradicional. Ele atacava os partidos do chamado Centrão e dizia que não faria indicações políticas para os ministérios. No primeiro ano do seu governo, ele manteve uma postura agressiva em relação ao Congresso, mas a partir de 2020 isso começou a mudar. Naquele ano, Bolsonaro se viu acuado por dezenas de pedidos de impeachment e pelo avanço das investigações sobre o suposto esquema de rachadinha (desvio de recursos) que teria sido operado no antigo gabinete de deputado estadual do hoje senador Flávio Bolsonaro. A situação ficou especialmente delicada para a família presidencial em junho de 2020, quando o ex-assessor de Flávio, Fabrício Queiroz, foi preso. Ele é acusado de ser o operador do suposto esquema de rachadinha, em que funcionários fantasmas do gabinete do filho do presidente, então deputado estadual no Rio de Janeiro, devolviam parte de seus salários. Foi nesse contexto que Bolsonaro passou de crítico a aliado do Centrão, um grupo de partidos que costuma apoiar qualquer governo, desde que tenha acesso a verbas e cargos federais. O presidente precisava de apoio no Congresso para evitar um processo de impeachment e aprovar suas propostas, e o Orçamento Secreto se tornou um elemento fundamental dessa equação. Recursos das emendas de relator teriam sido usados em troca de votos para eleger o deputado Arthur Lira, do PP de Alagoas, como presidente da Câmara, em fevereiro de 2021. Em entrevista ao site The Intercept Brasil, o deputado Delegado Waldir, do União Brasil de Goiás, disse que recebeu a promessa de R$ 10 milhões, mas que depois pôde usar apenas uma pequena parte por ter rompido com o governo. Lira não comentou as denúncias na época e, procurado pela BBC News Brasil, não quis se manifestar agora. Para o especialista em contas públicas Leonardo Ribeiro, consultor do Senado, o chamado Orçamento Secreto foi criado pelo Congresso em reação à decisão inicial de Bolsonaro de não aceitar indicações políticas para ministérios que gerenciam gastos importantes em todo o país. Na avaliação de Ribeiro, como a classe política perdeu a gestão de parte do orçamento federal por meio do controle dos ministérios, lideranças do Congresso decidiram então trazer esse orçamento para dentro do Parlamento. Ele lembra que no sistema brasileiro, conhecido como presidencialismo de coalizão, o presidente costuma formar sua base no Congresso negociando acesso a cargos e verbas federais. Ao romper com essa lógica no início do seu governo, Bolsonaro acabou provocando essa reação do Congresso, acredita o especialista. Depois, porém, o presidente acabou aceitando indicações políticas para diversos cargos de primeiro e segundo escalão. O senador Ciro Nogueira, por exemplo, do PP do Piauí, comanda uma das pastas mais importantes, a Casa Civil. Para Ribeiro, o governo que quiser reduzir o orçamento alocado nas emendas de relator, necessariamente terá que nomear ministros indicados por partidos. "O próximo presidente possivelmente vai ter que trazer mais políticos pra Esplanada (de Ministérios) se tentar diminuir esse orçamento, porque o Congresso, necessariamente, vai participar da gestão, ou via emendas ou via ministérios. Tentar sair dessas dessa equação não funciona no Brasil. A gente teria que ter um outro sistema político, um outro arranjo institucional", analisa Ribeiro. As principais críticas às emendas do relator são a falta de transparência e de planejamento nos uso desses recursos. Segundo especialistas, isso acaba dificultando a fiscalização e, como consequência, facilitando esquemas de corrupção. O Orçamento Secreto não tem nem três anos de duração e já houve uma série de denúncias reveladas pela imprensa brasileira, em especial pelo jornal O Estado de S. Paulo, primeiro veículo a destrinchar o funcionamento das emendas de relator. Em reportagem de maio de 2021, por exemplo, o jornal revelou que ao menos R$ 271,8 milhões foram usados para aquisição de tratores, retroescavadeiras e equipamentos agrícolas, em geral por valores bem acima dos previstos na tabela de referência para compras do governo, num indício de compras superfaturadas. As máquinas são destinadas a prefeituras para auxiliar nas obras em estradas nas áreas rurais e vias urbanas e nos projetos de cooperativas da agricultura familiar. Já uma reportagem da revista Piauí mostrou como municípios do Maranhão inflaram artificialmente os números de atendimento pelo SUS para receber uma fatia maior das emendas do relator. No final de agosto, a Justiça Federal do Maranhão bloqueou parte desse repasse de verbas. Após o Orçamento Secreto ser questionado no Supremo Tribunal Federal, a Corte determinou que o Congresso desse total transparência às emendas do relator. Em resposta, a Comissão Mista de Orçamento criou um portal em que os pedidos passaram a ser registrados. Mas, para especialistas em transparência, a ferramenta ainda é insuficiente. Um dos problemas apontados é que é possível inserir como autor do pedido não apenas nomes de parlamentares, mas também pessoas, entidades e órgãos de fora do Congresso. A organização Contas Abertas fez um levantamento dos dados disponíveis e encontrou uma série de inconsistências. "Dentre os R$ 12,3 bilhões das indicações dos 'autores', cerca de R$ 4 bilhões, ou seja um terço das indicações, são atribuídas a 'usuários externos'. Dentre os usuários externos, existe um classificado simplesmente como 'assinante', que indicou R$ 23,6 milhões em emendas de relator", exemplificou o economista Gil Castello Branco, diretor da organização Contas Abertas, em resposta por escrito à reportagem. Outro problema, acrescenta Castello Branco, é que esses dados continuam fora dos sistemas que permitem fiscalizar melhor os gastos do governo federal, como Siga Brasil e Portal da Transparência. Para além das denúncias de corrupção, os especialistas consideram grave a falta de planejamento no uso desses recursos. A distribuição é feita sem critérios objetivos e, embora alguns parlamentares de oposição também tenham tido acesso a parte das emendas de relator, o grosso do dinheiro costuma ir para a base governista. Na prática, cidades que têm maior carência para receber algum investimento em saúde e educação, por exemplo, acabam sendo preteridas em favor de outras em que determinados parlamentares têm mais votos, explicou à reportagem a procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo Élida Graziane. "O Orçamento Secreto balcaniza, pulveriza o dinheiro público, quebrando a racionalidade do planejamento de cada política pública, o que só os ministérios conseguem fazer em âmbito nacional, porque aí a concepção da política pública ela é concentrada em quem tem capacidade de planejar o território inteiro do país, não apenas atender à base eleitoral de um determinado parlamentar", disse Graziane. "A opacidade e a falta de critérios técnicos realmente potencializam em muito o puro e simples desvio de recursos públicos, o enriquecimento ilícito, em última instância, conjugado com estratégias de lavagem de dinheiro", reforçou a procuradora de Contas. Castello Branco tem a mesma leitura. "Os dados mostram que os recursos bilionários são distribuídos sem qualquer critério técnico ou parâmetro socioeconômico, o que distorce as políticas públicas e amplia as desigualdades regionais e municipais", ressaltou. A BBC News Brasil questionou a Secretaria de Comunicação da Presidência da República e as assessorias de Rodrigo Pacheco e Arthur Lira sobre as críticas às emendas do relator, mas os três optaram por não se manifestar. Procurado, o presidente da Comissão Mista de Orçamento (CMO), deputado federal Celso Sabino (União-PA), disse que retornaria à reportagem, mas não o fez até a publicação. Tanto o Orçamento Secreto quanto o Mensalão serviram para que o Palácio do Planalto construísse uma base de apoio no Congresso. Mas, segundo especialistas, há diferenças importantes entre eles. No caso do Mensalão, o Ministério Público concluiu em 2012 que foram desviados ao menos R$ 101 milhões, por meio de fraudes envolvendo contratos de publicidade de órgãos públicos. O STF condenou integrantes da cúpula do PT por entender que esses recursos serviram para o pagamento de "mesadas" a parlamentares da base do governo. Para a procuradora de Contas Élida Graziane, o Orçamento Secreto se assemelha a outro escândalo de corrupção, revelado em 1993 e conhecido como Anões do Orçamento. Naquele caso, parlamentares que comandavam a Comissão de Orçamento desviavam recursos de emendas em favor de entidades de assistência social criadas por eles mesmos. Havia também emendas para obras superfaturadas em troca de propina paga por empreiteiras. "O mensalão em si não é tão próximo (do Orçamento Secreto) porque se adotava a estratégia de entregar (o comando de) entidades da administração indireta para algum nível de administração de parlamentares que indicavam (pessoas para esses cargos) e aí eles distribuiriam valores em específico para os parlamentares. E, mesmo assim, aquilo que se desviou no âmbito do mensalão, (era) proporcionalmente muito menor do que o Orçamento Secreto", nota Graziane. Já o consultor do Senado Leonardo Ribeiro destaca outra diferença. Na sua avaliação, embora haja problemas nas emendas do relator, elas foram criadas dentro dos mecanismos fiscais previstos na Constituição e nas leis orçamentárias, que permitem ao Congresso dispor de emendas parlamentares. Já o Mensalão, ressalta ele, era algo à margem da lei. "Você pode até criticar o RP9 (código que identifica as emendas de relator no Orçamento), mas ele está dentro de um processo regulado. Você pode até aperfeiçoar a regulamentação, e deve, no sentido de qualificar o Congresso e deixar essa dotação mais eficiente. O Mensalão não estava num arranjo regulado. Um pouco complicado comparar os dois", afirma Ribeiro. *Esta reportagem foi atualizada às 7h30 horário de Brasília em 30/9
2022-09-30
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62792795