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brasil
O que é sigilo de cem anos imposto por Bolsonaro e atacado por Lula
"Em 100 anos saberá": essa foi a resposta do presidente Jair Bolsonaro (PL), em rede social, a um comentário que perguntava: por que coloca sigilo de cem anos em "todos os assuntos espinhosos/polêmicos do seu mandato" e "existe algo para esconder". A interação no Twitter foi em abril. Agora, na disputa pela Presidência, os sigilos de cem anos impostos na gestão Bolsonaro são alvo de críticas do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), como ocorreu no primeiro debate que os colocou frente a frente. Lula disse que "hoje, qualquer coisinha é sigilo de cem anos", logo depois de perguntar à senadora e candidata do MDB à Presidência, Simone Tebet, sobre o comportamento do governo Bolsonaro durante a pandemia de covid-19. Ela afirmou: "sigilo de cem anos para quê? Quem quer esconder por 100 anos alguma coisa deve algo ao Brasil". O atual presidente chamou Lula de "ex-presidiário" e disse: "sigilo de cem anos, uma lei lá do tempo da Dilma, para questões pessoais, meu cartão de vacina, ou quem me visita no Alvorada, nada mais além disso…" E, durante o último debate entre os presidenciáveis, realizado pela TV Globo na noite desta quinta-feira (29/9), Lula prometeu quebrar o sigilo de 100 anos imposto por Bolsonaro. A fala ocorreu durante bate-boca entre os dois candidatos que trocaram acusações de corrupção. Fim do Matérias recomendadas A imposição de sigilo de um século ocorreu em situações que ganharam destaque durante o governo Bolsonaro, como nesses quatro casos: Também há caso em que o governo tentou manter a informação secreta e depois mudou de ideia — como os dados sobre visitas ao Palácio do Planalto de pastores suspeitos de favorecer a liberação de verbas do Ministério da Educação para prefeitos aliados. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Reportagem do Estadão publicada em maio de 2022 mostrou que, de janeiro de 2019 a dezembro de 2021, durante o governo Bolsonaro, um a cada quatro pedidos de informação rejeitados tiveram como justificativa o sigilo da informação — a taxa é duas vezes a registrada na gestão da petista Dilma Rousseff e quatro pontos porcentuais maior do que a do governo Michel Temer (MDB), segundo a reportagem. Um caso de sigilo de cem anos no governo Dilma Rousseff — presidente responsável pela sanção da Lei de Acesso à Informação — ocorreu em 2016, ano do impeachment da ex-presidente, depois de o então juiz Sergio Moro ter autorizado a divulgação de gravações em que Dilma e Lula tratam da nomeação do petista para a Casa Civil. No artigo 31, a lei prevê que informações pessoais relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem tenham acesso restrito pelo prazo de até cem anos. Também está lá um trecho que busca conter o uso dessa medida: o texto diz que a restrição de acesso de "informação relativa à vida privada, honra e imagem de pessoa não poderá ser invocada com o intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância". A advogada Patrícia Sampaio, professora de Direito Administrativo da FGV Direito Rio, explica que essa previsão do sigilo de cem anos na LAI busca proteção à intimidade e à vida privada dos indivíduos, visto que o Estado tem acesso a muitos dados que são pessoais. Por exemplo: alguma doença que você prefere que seus familiares e empregadores não saibam que você tem. "Agora nós também temos que entender que, quando um indivíduo resolve se lançar na arena pública — concorre a um cargo eletivo, toma posse no cargo eletivo —, até mesmo essa privacidade, essa intimidade, ela é, de certa forma, relativizada", diz. "Não é que ela deixe de existir — o indivíduo continua tendo direito à sua intimidade, vida privada. Mas na relação dele com as coisas públicas, com os recursos públicos, essa intimidade tem que ser relativizada em nome do controle social da atuação dos agentes públicos." Sampaio resume: "Em um Estado de direito, a publicidade dos atos administrativos e dos representantes do povo são, em regra, públicos. A publicidade é a regra e o sigilo é a exceção", diz. A professora e advogada lembra que a lei tem dez anos. "Precisamos cuidar para que ela não seja esquecida ou interpretada contrariamente ao seu objetivo". A professora da Universidade de Brasília (UnB) Andréa Gonçalves — que é especialista em prestação de contas pelo setor público, com foco na área de saúde — afirma que o Brasil é "uma democracia muito jovem" e que, pouco a pouco, foram sendo tomadas medidas focadas em aumentar a transparência — é o caso da LAI, que ela considera "ganho enorme". "A sociedade tem direito e tem que ter acesso às informações do Estado", defende Gonçalves. No entanto, a professora da UnB diz que "muito do que a gente observa é ainda traço do patrimonialismo — 'sentei na cadeira e faço do jeito que entendo, do meu jeito'. Isso você observa em todas as áreas". "Isso vai do nível mais baixo até o escalão mais alto. A gente está falando de informações no nível federal. Imagina lá na prefeitura das cidades menores, onde o prefeito entende que ele é dono da prefeitura e o recurso que foi ele foi atrás, ele gasta como ele quiser, e não vai disponibilizar essa informação." E é possível que um presidente retire sigilos impostos pela gestão anterior? Segundo as entrevistadas, na prática, um sigilo imposto pelo presidente anterior poderia ser extinto por um novo governante. Tebet, quarta colocada nas pesquisas de intenção de voto, disse que um eventual governo dela teria "transparência total". Lula, líder nas pesquisas, afirmou a Bolsonaro que "em um decreto só, eu vou apagar todos os seus sigilos". *Esta reportagem foi atualizada às 7h30 horário de Brasília em 30/9
2022-09-30
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62722610
brasil
Quem se beneficia com o voto branco e nulo?
Chegou o dia das eleições e nenhum dos candidatos lhe agrada. Você decide votar em branco ou anular o voto. Para se ter uma ideia, no segundo turno das eleições presidenciais de 2018, os votos brancos somaram 2,4 milhões, ou 2,1%, enquanto o porcentual de votos nulos chegou a 7,4%, o maior registrado desde 1989, totalizando 8,6 milhões. Mas o que acontece quando há voto nulo ou em branco? O voto é simplesmente "descartado" e não entra na conta dos chamados votos válidos, que definem a eleição. O voto branco e o voto nulo são gerados quando o eleitor digita a tecla BRANCO na urna, escolhe um número de candidato que não existe ou erra ao votar, preenchendo e confirmando o número do presidente no lugar do código do governador, por exemplo. Fim do Matérias recomendadas Mas se esse voto é "descartado", qual é o impacto dele nas eleições? Ele pode ajudar a determinar a disputa. Isso porque para vencer uma eleição em primeiro turno, o candidato à presidência, por exemplo, precisa de maioria absoluta, ou seja, de 50% dos votos válidos mais um. Votos válidos são todos aqueles que não são votos nulos ou brancos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Sendo assim, se o número de pessoas que votam nulo ou branco é alto, isso quer dizer que o total de votos válidos em disputa vai ser menor. Ou seja, o vencedor vai precisar de menos votos para atingir a maioria absoluta e ganhar. Para ficar mais claro, imagine uma eleição com dez eleitores e três candidatos. O primeiro colocado recebe cinco votos, o segundo três, e o último dois. Nesse caso, haveria segundo turno, porque nenhum dos candidatos atingiu a marca de 50% dos votos mais um. Mas se um dos eleitores do terceiro candidato votar nulo, o primeiro candidato conseguiria se eleger com os mesmos cinco votos. Por quê? Porque ele teria a maioria absoluta dos votos mais um (nesse exemplo, os outros dois candidatos teriam quatro votos no total). E se a maioria dos votos for nulo ou branco? Mesmo que mais da metade da população anulasse o voto, isso não anularia uma eleição. Ela só teria um número menor de votos válidos. Vale lembrar que nas eleições deste ano, o eleitor vai votar para cinco cargos: deputado estadual, deputado federal, senador, governador e presidente (no caso do Distrito Federal, deputado distrital). E votar em branco ou anular a opção de voto para um desses cargos, não invalida o voto para os demais.
2022-09-30
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63080401
brasil
Para onde vai meu voto depois que digito na urna?
Você chega diante da urna eletrônica, digita o número do seu candidato e confirma. O que acontece com seu voto depois disso? Imediatamente, sua escolha será gravada no Registro Digital do Voto, um compartimento dentro da urna que mantém, em ordem aleatória, cada um dos votos registrados naquela máquina. Neste momento, é como se você estivesse depositando numa velha urna de lona a sua cédula de papel. Ou como se derramasse uma gota de água dentro de um copo. Impossível saber quem despejou cada gota — ou cada voto — na urna. Só às 17h do dia da eleição, logo após o encerramento da votação, que cada urna contará eletronicamente os votos digitados ao longo do dia. Quando termina o cálculo, a urna imprime os resultados em ao menos cinco vias, são os chamados boletins de urna. Um deles fica na entrada do lugar de votação. Se for uma sala de aula de escola, onde muitos dos brasileiros costumam votar, por exemplo, é na porta dela que o boletim será colado. As outras cópias são guardadas pela Justiça Eleitoral e entregues a fiscais de partidos políticos. Você também poderá acessar os boletins de urna online, em tempo real. Fim do Matérias recomendadas Mas esse não é o destino final do seu voto. Cada urna também salva os resultados em um pendrive. Esse pendrive viajará até um ponto de transmissão seguro, onde entrará na rede de dados privada do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e desembocará em supercomputadores em Brasília. Essas máquinas vão somar os resultados de mais de 500 mil urnas eletrônicas. A viagem do seu voto pode acontecer de muitas maneiras. Motoboys a serviço da Justiça Eleitoral, por exemplo, podem coletar os pendrives de uma escola e levá-los até um cartório eleitoral, onde o material será transmitido via rede privativa. Um computador conectado em uma rede VPN, ou seja, privada, no próprio local de votação, também pode fazer essa transmissão. Em áreas remotas, um telefone via satélite ligará o computador que transmitirá os dados. Nunca é usada a internet comum, aquela que você tem em casa. A partir das 17h20, mais ou menos, os primeiros votos já começam a desembarcar no TSE. Em Brasília, seu voto entrará nos supercomputadores junto com todos os outros dados na urna da sua seção eleitoral. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Esses potentes computadores são os únicos com as chaves para ler todas as criptografias usadas pelas urnas pra proteger os votos. Eles sabem identificar precisamente de onde veio cada boletim de urna. Se houver qualquer dúvida ou suspeita, o dado não é aceito e uma recontagem pode ser feita na urna original. Ou seja, não adianta alguém achar que pode usar um outro pendrive, que não o original, e transmitir dados que não correspondam aos votos registrados na urna. Isso porque os supercomputadores sabem identificar e ler a criptografia correspondente a cada pendrive usado em cada uma das mais de 500 mil urnas. Se recebessem dados estranhos, eles seriam rejeitados pelos supercomputadores, haveria um alerta e seria feita uma recontagem na urna cujos dados do pendrive apresentam inconsistências. Por isso, a chance de uma tentativa de fraude ser bem sucedida é zero, segundo o Tribunal Superior Eleitoral, contrariando a visão propagada pelo atual presidente Jair Bolsonaro (PL), que tenta a reeleição. Vale lembrar que o que impulsionou o uso da urna eletrônica no Brasil, em 1996, foi a grande quantidade de fraudes com cédulas de papel. "Chegava uma cédula em branco e se dava um jeito de, no momento de abrir a cédula, escrever alguma coisa, algum rabisco que já virava um voto. Tinha gente que botava até grafite embaixo da unha para abrir uma cédula em branco, aí já dava um rabisco de um número ali e já virava um voto, subtraia-se células… Quer dizer, era uma festa na questão de fraudes", diz à BBC News Brasil Giuseppe Dutra, ex-secretário de tecnologia do TSE. Os supercomputadores ficam em uma sala fria e intensamente iluminada, filmada 24 horas por dia, sete dias por semana, e de nível 5 de proteção. Isso significa que, para entrar nela, é preciso passar por cinco portas diferentes. As últimas portas exigem biometria de ao menos duas pessoas para se abrirem. Lá dentro, o barulho das máquinas é intenso e o ar é mais seco do que o normal. Detectores de fumaça permanecem ativados, para garantir que os processadores que dão conta de bilhões de dados possam trabalhar em sua máxima potência e com segurança. Ninguém fica dentro dessa sala. E nem um ser humano conta votos no TSE. Durante a contagem, a equipe técnica e os fiscais dos partidos ficam todos na sala ao lado, visualizando os trabalhos dos computadores pelos monitores das câmeras e observando os indicativos de eficiência que as máquinas dão. A cada dez ou 15 minutos, os supercomputadores fornecem uma nova rodada de resultados parciais, já que a cada segundo recebem mais e mais resultados de urnas espalhadas pelo Brasil. Em algumas horas, a quantidade de votos apurados permite determinar quem venceu na disputa. É o fim da ação que você — e outros milhões de brasileiros — iniciou horas antes, ao digitar sua escolha na urna.
2022-09-30
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63080404
brasil
Que países usam voto eletrônico além do Brasil?
Não é só o Brasil que usa urnas eletrônicas para suas eleições. Ao menos 20 países adotam ou já usaram alguma forma de voto eletrônico, em maior ou menor escala. O Brasil, de fato, abraçou a tecnologia de forma mais ampla que muitos países. Índia e Estados Unidos, por exemplo, usam urnas digitais, mas parcialmente. Nem todos os Estados americanos aderiram ao voto eletrônico. Na Europa, Bélgica e França usam em pequena escala. Mas cada país usa um sistema diferente. A urna brasileira foi totalmente desenvolvida no país e é produzida em duas fábricas, em Ilhéus, na Bahia, e em Manaus, no Amazonas. Os chips são importados, mas passam por testes, são programados e soldados à placa mãe da urna no Brasil, sob supervisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Fim do Matérias recomendadas Segundo Julio Valente, secretário de Tecnologia da Informação do TSE, não faz sentido dizer que a urna eletrônica não é boa porque ela não é usada amplamente no estrangeiro. "Isso é absolutamente incorreto. Cada país possui um sistema eleitoral que está de acordo com a sua cultura", diz ele à BBC News Brasil. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O próprio presidente Jair Bolsonaro, crítico das urnas eletrônicas, já defendeu a informatizar a votação na década de 90, para evitar possibilidades de fraude nas cédulas. Vale lembrar que o que impulsionou o uso da urna eletrônica no Brasil, há quase 30 anos - a primeira urna foi usada em 1996, foi a grande quantidade de fraudes com cédulas de papel. "Chegava uma cédula em branco e se dava um jeito de, no momento de abrir a cédula, escrever alguma coisa, algum rabisco que já virava um voto. Tinha gente que botava até grafite embaixo da unha para abrir uma cédula em branco, aí já dava um rabisco de um número ali e já virava um voto, subtraia-se células… Quer dizer, era uma festa na questão de fraudes", diz à BBC News Brasil Giuseppe Dutra, ex-secretário de tecnologia do TSE. De fato, alguns países que usaram votação eletrônica no passado voltaram atrás e reintroduziram as cédulas de papel. Esse é o caso da Noruega, por exemplo. No entanto, vale ressaltar que, no caso específico do país escandinavo, a votação não era feita por urnas, mas pela internet. A justificativa se deveu aos temores dos eleitores de que seus votos se tornassem públicos, o que poderia colocar em risco a democracia. Testes com votação eletrônica foram feitos nas eleições local e nacional na Noruega em 2011 e 2013 — o objetivo era encorajar os mais jovens a votarem, mas sem sucesso. Após ter testado diferentes sistemas de votação eletrônica e ter feito ampla consulta nacional, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha resolveu, em 2009, manter o sistema manual e analógico de registro e contagem de votos devido à falta de confiança do público nos sistemas eletrônicos testados.
2022-09-30
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63080398
brasil
6 momentos-chave do debate da Globo entre candidatos à Presidência
O último debate antes do primeiro turno da eleição de domingo (02/10) foi marcado por ataques, interrupções e poucas trocas sobre propostas para governar o país entre os candidatos à Presidência. No encontro promovido na noite da quinta-feira (29/09) pela Rede Globo, alguns temas foram recorrentes, como perguntas para Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre corrupção e ao presidente Jair Bolsonaro (PL) sobre orçamento secreto. Outros momentos foram de tumulto, como quando Padre Kelmon (PTB), que não pontua nas pesquisas, foi recorrente em descumprir as regras do debate, que chegou interrompido pelo moderador William Bonner para pedir que o candidato se comportasse. Horas antes do debate, foi divulgada a pesquisa mais recente do instituto Datafolha, mostrando relativa estabilidade nas posições dos concorrentes. Nos votos válidos, Lula se manteve nos 50%, enquanto Bolsonaro oscilou um ponto para cima, de 35 para 36%. A margem de erro é de dois pontos porcentuais para mais ou para menos. Entre os demais candidatos, Ciro Gomes (PDT) permanece na terceira colocação, tendo oscilado de 7% para 6% nos votos válidos. Na quarta posição aparece Simone Tebet (MDB), que manteve os 5% que já obtivera na pesquisa anterior, divulgada no dia 22 de setembro. Soraya Thronicke (União Brasil) oscilou negativamente, de 2% para 1% nos válidos. Padre Kelmon e Luiz Felipe D'Ávila (Novo) não pontuaram. Fim do Matérias recomendadas A seguir, confira seis momentos-chave do debate que entrou pela madrugada desta sexta-feira: Logo no primeiro bloco, durante resposta a Padre Kelmon, Bolsonaro atacou Lula e a própria Rede Globo. "Lula defendia que se roubassem celulares para tomar uma cervejinha", disse o presidente. Em seguida, afirmou que acabou com "a mamata" da grande mídia e que "a Rede Globo foi um dos casos". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Lula, então, pediu direito de resposta. Ao ouvir que o direito foi concedido, Bolsonaro continuou no púlpito reclamando que "nenhum (direito de resposta) vai ser negado" e gesticulou insinuando que haveria algo combinado entre a emissora e o ex-presidente. Bonner interveio: "O senhor pode voltar ao seu lugar, candidato Bolsonaro. Seu microfone está fechado. As regras serão respeitadas." O petista, então, voltou para sua resposta. "Ele que montou quadrilha com rachadinha, com sigilo de cem anos." Bolsonaro pediu direito de resposta, também concedido. "Mentiroso, ex-presidiário traidor da pátria. Que rachadinha? Rachadinha é teus filhos roubando milhões de empresas após tua chegada ao poder." Mais uma vez, Lula obteve direito de resposta. "É uma insanidade um presidente da República vir aqui e falar o que ele fala com a maior desfaçatez. É por isso que no dia 2 de outubro o povo vai te mandar pra casa, E eu vou fazer um decreto para acabar com o seu sigilo de 100 anos para descobrir o que esse homem quer esconder", afirmou o petista. Encerrando a "guerra dos direitos de resposta", Bolsonaro pediu novamente, mas o direito não foi concedido. Ainda em clima de batalha, Bolsonaro se dirigiu a Lula com menções como "ex-presidiário": "O ex-presidiário diz que eu decretei o sigilo da minha família. Qual decreto? Me dá o decreto. Diz que eu atrasei a compra da vacina. Nenhum país comprou vacina em 2020, para de mentir. Você dava pouca coisa para os pobres, eu dei 600 reais de Auxílio Brasil. Você dava pouca coisa e usava como massa de manobra, só da Petrobras foram 900 bi de reais de endividamento, daria para fazer 60 vezes a transposição do Rio São Francisco". E completou: "Tu foi condenado em três instâncias por unanimidade e o processo deixou de existir porque tinha um amiguinho seu no Supremo". Lula pediu direito de resposta, que foi concedido: "Confesso ao povo que está nos assistindo que me sinto mal de estar atrapalhando debate quando a gente poderia estar discutindo o futuro do país. Eu queria lembrar pessoas que graças ao que fizemos para combater a corrupção, a corrupção foi descoberta, e as pessoas foram punidas. Acontece que em processo de combater a coprrupção você poderia prender os presos e liberar empresas, mas no Brasil se fechou 4 mil de postos de trabalho, o Estado deixou de receber 58 bi de reais". Tebet começou a pergunta afirmando que o governo Bolsonaro permitiu "o maior desmatamento dos últimos 15 anos". "Seu governo protegeu mineradores, invasores de áreas públicas e madeireiros". Bolsonaro respondeu: "Periodicamente, pega fogo na região. Mas nós temos no Brasil dois terços das florestas preservadas". E repetiu a frase que já utilizou diversas vezes sobre a questão da preservação do meio ambiente: "Nós somos exemplo para o mundo". E encerrou a resposta dizendo que "é uma briga de narrativas". "A senhora está com muitos ciúmes da Tereza Cristina, que tirou sua vaga no Senado." Tebet respondeu prometendo impor uma meta de desmatamento ilegal zero, mas antes atacou Bolsonaro: "Mente tanto que acredita na própria mentira". Ao longo do debate, Bolsonaro foi questionado por diversas vezes a respeito do chamado "orçamento secreto" e por alianças com o chamado Centrão no Congresso. O presidente repetiu que tentou vetar a distribuição de recursos por meio das chamadas emendas de relator, o dito "orçamento secreto", mas que os parlamentares derubaram o veto. Em resposta a Luiz Felipe D'Ávila, afirmou que "orçamento secreto não é meu. Eu vetei. Depois passou e virou uma realidade. Eu não indico um centavo desse orçamento secreto. Ele é totalmente administrado pelo relator da Câmara". E continuou, admitindo que precisa do Centrão para governar, mas que não houve "toma lá, dá cá". "Não existe nenhuma conivência com esse orçamento. Fala-se muito de Centrão. Se tirar o Centrão, sobram 200 deputados. Como você vai aprovar algum projeto se não tiver o mínimo de urbanidade com eles? Me indica qual ministério que eu dei em troca de apoio. Tem lá o (ministro da Casa Civil) Ciro Nogueira que faz contato com o Parlamento. Não existe no meu governo troca de ministério ou estatais por apoio parlamentar." O candidato do Novo replicou: "É intolerável qualquer tipo de esquema de toma lá, dá cá. Foi isso que acabou com política brasileira. Triste dizer que no seu governo também teve orçamento secreto, que o senhor vetou e depois aprovou. E o orçamento virou essa moeda de troca". Enquanto Bolsonaro e Lula trocavam acusações, um embate menos previsível ganhava destaque no debate da Globo: entre Soraya Thronicke e Padre Kelmon. A disputa começou ainda no primeiro bloco, quando a candidata iniciou uma pergunta mencionando as quase 700 mil mortes por covid-19 no país. "O que o senhor diria para consolar essas famílias, esses órfãos que estão até agora esperando uma ajuda do governo?", e completou: "O senhor não tem medo de ir pro inferno, não?" Kelmon retrucou: "Só fala de covid, covid, só se morre de covid, não se morre de outra coisa não? Você deveria me respeitar. Mandar um padre ir para o inferno?" No segundo bloco, novamente, Soraya e Kelmon se enfrentaram. Apesar de o tema sorteado ser combate ao racismo, a candidata aproveitou para dizer que Kelmon nunca ministrou uma extrema-unção porque é um "padre de festa junina". Kelmon respondeu falando sobre sua visão a respeito do racismo: "Dizendo para todos vocês que somos irmãos. O preto, branco, índio, amarelo, marrom, somos todos brasileiros somos todos moradores desta nossa casa comum que é o Brasil". Como em oportunidades anteriores, Ciro Gomes pautou sua participação no debate por tentar se colocar como a principal alternativa à polarização, pedindo que fossem debatidas propostas - e não ataques pessoais - e direcionando críticas tanto a Lula quanto a Bolsonaro. Em resposta ao candidato D'Ávila, Ciro afirmou que "Lula reclama das mentiras do Bolsonaro, mas ele é mais hábil. Ele pega um pedaço do governo em que ele teve uma bonança do estrangeiro e produz o número. Os números oficiais são um desastre". Mais adiante, perguntando a Bolsonaro, Ciro acusou o presidente de comandar um governo com "corrupção generalizada". "O senhor recebeu uma oportunidade de ouro, que a meu juízo deveu-se ao encontro terrível da mais grave crise econômica da nossa história, PIB caiu 7%, o desemprego 12% e corrupção generalizada. O senhor prometeu que ia moralizar mas se vê que não moralizou nada. Está sob acusações pesadas, o senhor e seus familiares, igual os seus antecessores." "Que mentira, Ciro", retrucou Bolsonaro, dizendo que seu governo é "limpo" e pedindo para Ciro "apontar uma fonte de corrupção". "Onde é que tem corrupção da minha família? Querer falar de imóveis de 30 anos atrás?"
2022-09-30
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63084568
brasil
O que é ser lavajatista?
Definir o termo lavajatismo parece ser tarefa fácil, já que ele obviamente está ligado à Lava Jato, operação que a partir de 2014 causou um terremoto na política brasileira ao prender políticos e empresários acusados de corrupção. Mas, como na política nada é tão simples, o termo acabou adquirindo significados diversos, a depender do posicionamento da pessoa com quem você conversa. Parte das pessoas usa esse termo para identificar ou classificar quem apoia ou integra a Operação Lava Jato. Mas outra parte usa o termo de forma negativa como crítica a policiais, promotores, juízes, jornalistas e apoiadores ligados a um conjunto de métodos e ideais batizado de "lavajatismo". No debate político brasileiro, esses significados vão bem além da investigação em si, envolvendo questões como interpretações da lei brasileira, divergências partidárias e dilemas morais (por exemplo: os fins justificam os meios?). Tudo começou em 2014, ano em que a Operação Lava Jato teve início após suspeitas de lavagem de dinheiro em uma casa de câmbio localizada em um posto de gasolina em Brasília. Fim do Matérias recomendadas A partir dali, a investigação cresceu e conseguiu desvendar um gigantesco esquema de corrupção em torno da Petrobras e de grandes empreiteiras privadas contratadas por governos. Centenas de pessoas foram presas, bilhões de reais foram devolvidos aos cofres públicos e a ampla maioria da população continua apoiando a investigação. Mas ao longo dos anos, o apoio popular à Lava Jato e o poder dos investigadores começou a perder força, tendo como auge o vazamento de conversas privadas entre procuradores responsáveis por investigar e o então juiz federal Sergio Moro (responsável por julgar os casos investigados). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As mensagens revelavam condutas irregulares de ambas as partes, e, ao fim, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que Moro havia sido parcial e anulou condenações do principal alvo lavajatista, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). "De um lado, (há) o lavajatismo que só vê na Lava Jato virtudes e não faz autocrítica e, do outro lado, o lavajatismo que só vê na Lava Jato defeitos e não reconhece, nada obstante alguns defeitos, a relevância dos trabalhos que foram levados a efeito", resumiu o ministro Edson Fachin, relator de processos da Lava Jato no STF, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo. Para entender todo o imbróglio em torno dos lavajatistas e do lavajatismo, a BBC News Brasil explica abaixo como a operação revelou enormes esquemas de corrupção e levou a um racha em diversas áreas, como a política, o Judiciário e a mídia. Em seguida, mostra a influência da Lava Jato na derrocada do PT e na ascensão de Jair Bolsonaro (PL) ao colocar o tema da corrupção no centro do debate nacional. Por fim, aponta o que especialistas veem como raízes do lavajatismo na história brasileira, como populismo, judiciarismo, neoliberalismo, punitivismo, messianismo e tenentismo. A investigação começou em março de 2014, a partir de uma apuração sobre lavagem de dinheiro num posto de gasolina de Brasília, o Posto da Torre. "Ninguém imaginava que a Lava Jato ia se tornar o que é hoje", disse à BBC um policial federal que, desde o início, está próximo das investigações feitas a partir de Curitiba, no Paraná. "Era algo pequeno que só fez crescer desde então." Naquela época, havia suspeitas de que o posto era sede da atuação de doleiros, nome dado no mundo do crime a operadores ilegais do mercado de câmbio que criam uma espécie de sistema bancário oculto usado por indivíduos e organizações para esconder e lavar dinheiro sujo. Depois de alguns meses, os investigadores concluíram que estavam diante de quatro organizações criminosas que interagiam entre si, tendo doleiros no seu comando. Uma delas era liderada por Alberto Youssef, que já havia sido preso em 2003 por lavagem de dinheiro e outros crimes contra o sistema financeiro em um caso anterior de evasão de fundos do banco Banestado. Naquela ocasião, Youssef conseguiu escapar de uma pena maior firmando um acordo de colaboração inédito no Brasil, para reduzir sua condenação em troca de fornecer informações, homologado pelo próprio juiz Sergio Moro. Durante a investigação, os agentes encontraram um email que aludia a um presente luxuoso: um veículo Range Rover Evoque. Eles se assombraram ao descobrir que o destinatário do presente de Youssef era Paulo Roberto Costa, que, entre 2004 e 2012, havia sido diretor de abastecimento da Petrobras, um cargo crucial no gerenciamento de contratos. Esse seria o primeiro vínculo encontrado pelos investigadores entre a rede ilegal de lavagem de dinheiro no posto de gasolina de Brasília e a petroleira estatal. Costa, então ex-diretor da Petrobras, foi preso em março de 2014, depois que seus familiares foram registrados por câmeras de segurança entrando e saindo em um edifício onde funcionava a empresa de Costa com bolsas e mochilas. Segundo os policiais, eles estavam destruindo provas. Em agosto de 2014, Costa fechou um acordo de delação premiada para reduzir sua pena. Em troca, deveria devolver dinheiro, relatar os crimes e indicar os outros implicados. Youssef chegou a um acordo parecido. Com esses novos testemunhos, os promotores denunciaram que as principais construtoras do país, entre elas gigantes como Odebrecht e Camargo Corrêa, haviam formado um cartel para repartir entre si contratos multimilionários com a Petrobras. Para obtê-los, pagavam subornos a diretores da empresa e a dezenas de políticos de diferentes partidos. Investigadores apontam que o dinheiro desviado variava entre 1% e 3% do valor dos contratos e ia para empresas que camuflavam os repasses como pagamentos por consultorias, e em seguida Youssef e outros doleiros fariam o dinheiro chegar aos seus destinatários finais. Nos anos seguintes, os investigadores provaram nos tribunais a existência de um cartel de empreiteiras montado para fraudar concorrências públicas. Em cinco anos, mais de 500 pessoas foram denunciadas à Justiça no âmbito da Operação Lava Jato, incluindo servidores públicos, empresários, executivos e políticos de 33 partidos, com condenações de membros de MDB, PP, PSDB, PT, PTB e Solidariedade. Dez governadores e dois ex-presidentes foram presos durante a investigação. Entre os condenados estão antigos diretores da Petrobras, o ex-tesoureiro do PT, João Vaccari, os ex-governadores do RJ Sergio Cabral e Luiz Fernando Pezão e o ex-presidente da Odebrecht, Marcelo Odebrecht. Investigadores da Lava Jato conseguiram firmar acordos no Brasil para garantir a devolução de quase R$ 13 bilhões aos cofres públicos. Outros R$ 4,3 bilhões já foram devolvidos à Petrobras e ao Estado brasileiro. As descobertas levaram também a investigações em países da América Latina, da África e da Europa. Um dos episódios mais marcantes dos tentáculos da Lava Jato no exterior ocorreu em 2019, quando o ex-presidente do Peru Alan García cometeu suicídio durante uma tentativa da polícia de prendê-lo sob acusação de ter recebido propina da Odebrecht. No dia anterior a sua morte, García escreveu no Twitter: "Como em nenhum documento sou mencionado e nenhum indício ou evidência me envolvem, só resta a ESPECULAÇÃO ou inventar intermediários. Jamais me vendi e está provado". A Odebrecht admitiu ter pago US$ 29 milhões de propina no Peru, entre 2005 e 2014, em troca da obtenção de contratos. As suspeitas de corrupção recaíam sobre quatro ex-presidentes do país, incluindo García. O principal alvo político da operação sempre foi o ex-presidente Lula, considerado pelos investigadores o "comandante máximo" e o "maestro de uma grande orquestra concatenada para saquear os cofres públicos". Lula foi condenado por corrupção e lavagem de dinheiro em dois casos: o do tríplex do Guarujá e o do sítio em Atibaia. No primeiro, o ex-presidente era acusado de receber propina da empreiteira OAS na forma da reserva e reforma de um apartamento no balneário paulista em troca de benefícios indevidos à empresa em contratos públicos. No segundo, Lula foi acusado pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal de receber propinas das construtoras OAS e Odebrecht por meio de reformas, em 2010, num sítio no município do interior paulista. O objetivo, segundo os investigadores, também era obter vantagens indevidas em contratos para as duas empresas com estatais como a Petrobras. Lula passaria 580 dias preso, até ser solto após decisões do Supremo Tribunal Federal que anularam essas e outras condenações. A maioria dos ministros considerou que o então juiz federal Sergio Moro não tinha competência para julgar o ex-presidente (que deveria ser julgado em São Paulo ou no Distrito Federal) e que o magistrado agiu de forma parcial (portanto, ilegal). Na questão ligada à competência de Moro para julgar Lula em Curitiba, o ministro do STF Edson Fachin decidiu em março de 2021 que o Ministério Público não demonstrou que havia envolvimento da Petrobras nos supostos crimes de Lula, requisito necessário para o caso ser julgado na vara de Moro. Existe uma regra no direito penal brasileiro que determina que um processo criminal deve ocorrer na vara do local onde o suposto crime ocorreu, e por isso, segundo Fachin, o caso deveria ter sido julgado no Distrito Federal, e não em Curitiba. A decisão de Fachin foi confirmada pela Segunda Turma do STF, que depois também julgou Moro como tendo sido um juiz parcial nos processos contra o petista, o que reforçou a anulação das condenações. As acusações de parcialidade contra o ex-magistrado ganharam peso após o portal de notícias The Intercept Brasil revelar, em julho de 2019, diálogos privados entre Moro e o procurador Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa da Lava Jato, em que o juiz adotava condutas ilegais em parceria com o Ministério Público Federal, como sugerir testemunhas e delatores, dar pistas sobre futuras decisões e aconselhar procuradores. Além disso, a ministra Cármen Lúcia afirmou que o então juiz federal Sergio Moro atuou ilegalmente ao autorizar a interceptação de telefones de advogados do ex-presidente e ao determinar a condução coercitiva do petista em 2016, sem primeiro intimá-lo a depor. Essas decisões permitiram que o petista retomasse seus direitos políticos e disputasse a eleição presidencial de outubro de 2022. Com essas duas decisões sobre competência e parcialidade, as condenações foram consideradas nulas, mas Lula ainda poderia responder às acusações em novos processos, a serem realizados na Justiça de Brasília. No entanto, esse retorno à estaca zero acabou provocando a prescrição da pretensão punitiva. Ou seja, terminou o prazo estabelecido na legislação penal para possível punição dos crimes, caso Lula fosse considerado culpado. E quando não há mais possibilidade de punição, as acusações são arquivadas definitivamente. Ou seja, Lula não pode mais ser julgado nos casos do triplex e do sítio de Atibaia. A Lava Jato teve tanto impacto no Brasil que rachou até os 11 ministros da mais alta Corte do país. Segundo especialistas, o STF passaria a ter uma espécie de divisão (quase meio a meio) entre uma ala mais "garantista" (que dá maior peso aos direitos dos réus em seus votos) e outra mais "punitivista" (termo popular que, grosso modo, descreve quem vê efeito positivo para a sociedade em punições criminais). O ministro do STF Luís Roberto Barroso, associado por analistas à ala punitivista, afirmou que é preciso não perder o foco do legado da operação, que fez a sociedade brasileira deixar de "aceitar o inaceitável" — no caso, a corrupção. "O problema não é ter tido exagero aqui ou ali. O problema é esta corrupção estrutural, sistêmica, institucionalizada, que não começou com uma pessoa ou um partido, vem de um processo acumulativo que um dia transbordou. E o que a gente assiste hoje é a tentativa de sequestrar a narrativa como se isso não tivesse acontecido", disse Barroso ao historiador Marco Antonio Villa. Para Fachin, que se situava mais ou menos no meio do caminho, o lavajatismo é uma "doença infantil que surgiu da Lava Jato" e pode estar prestes a acabar. O ministro Gilmar Mendes, associado por analistas à ala garantista, se tornou o principal crítico da operação no STF. Para ele, o Brasil esteve próximo de viver sob a "ditadura de Curitiba", que segundo Mendes ignorava o devido processo legal e usava detenções como "tortura" para obter delações e condenações. Para Mendes, o lavajatismo é pai e mãe do bolsonarismo, movimento político de direita aglutinado em torno de Jair Bolsonaro. Ele se refere, entre outros aspectos, à criminalização do sistema político como um todo por parte dos investigadores e juízes da Lava Jato e, por consequência, ao surgimento de uma visão antissistema que preteriu políticos tradicionais nas urnas em troca de candidatos outsiders (de fora), como Bolsonaro (apesar de ter sido deputado federal por 26 anos). Outro elemento apontado como elo entre bolsonaristas e lavajatistas é a nomeação de Moro como ministro da Justiça do governo Bolsonaro. Em 2019, o próprio Bolsonaro disse que a atuação de Moro na Lava Jato permitiu sua eleição. "Se essa missão dele não fosse bem cumprida, eu também não estaria aqui, então em parte o que acontece na política do Brasil, devemos a Sergio Moro." Lula, o principal adversário político de Bolsonaro, não pode concorrer à Presidência em 2018 porque foi condenado por Moro e pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Lula só recuperaria seus direitos políticos em 2021. O cientista político Jair Nicolau, em seu livro sobre a eleição de 2018 O Brasil Dobrou à Direita, resume a conexão entre os resultados da Lava Jato e a vitória de Bolsonaro. "1) a Lava Jato investigou, denunciou e prendeu parte expressiva da elite política brasileira; 2) a corrupção passou a ser vista como algo endêmico, aumentando a rejeição a partidos tradicionais; 3) os eleitores buscaram uma alternativa de um político que não estivesse envolvido em nenhuma das denúncias dos últimos anos e ao mesmo tempo expressasse uma quebra com o padrão de ação da elite política tradicional; 4) entre os nomes apresentados em 2018, o único que preenchia esses critérios era Bolsonaro", afirmou Nicolau. Segundo ele, a corrupção se tornou tema prioritário da agenda antipetista nas eleições desde que as denúncias do escândalo do mensalão apareceram em 2005, mas, desde então, Bolsonaro foi o candidato o que mais mobilizou os eleitores em torno disso. Para se ter uma ideia do impacto da Lava Jato na percepção coletiva e no antipetismo, o instituto Datafolha apontou que em dezembro de 2012 apenas 4% dos eleitores consideravam a corrupção o principal problema do país e outros 40%, a saúde. Em março de 2016, às vésperas do impeachment de Dilma Rousseff (PT) e dois anos após o início da Lava Jato, a corrupção liderava o ranking de problemas nacionais com 37%, e a saúde figurava com 17%. Essas características apareceriam com força entre eleitores de Bolsonaro, aponta um estudo da Fespsp sobre manifestantes em movimentos políticos de rua e de redes sociais de 2016 a 2018. Um dos perfis de eleitores identificados pelos pesquisadores era classificado como cidadão de bem, ou seja, alguém que luta contra todas as formas de corrupção, legais e morais. Para esse tipo de eleitor, explica a antropóloga e coordenadora do estudo, Isabela Kalil, a forma de corrupção mais evidente é "políticos roubam o povo", o que seria algo inerente à gestão pública e demandaria como solução a redução do Estado e a substituição dos políticos tradicionais. No livro Antes que Apaguem, o deputado federal bolsonarista Luiz Philippe de Orléans e Bragança (PL-SP) definiu os lavajatistas como "uma base ampla de cidadãos que quer ver justiça e combate à corrupção", sem ideologia econômica ou moral definida, englobando "todos os segmentos da direita e alguns da esquerda". Para Orléans e Bragança, os lavajatistas "não toleram a aproximação do governo com partidos investigados na Lava Jato e deixam de apoiá-lo quando o governo não parece fazer o suficiente no combate à corrupção" que envolve grandes partidos e empresas. E foi o que aconteceu depois da eleição de 2018. Pesquisas de opinião apontaram que os eleitores identificados como lavajatistas acabam se afastando de Bolsonaro, que adotou diversas medidas consideradas contrárias ao combate à corrupção, como a nomeação de um procurador-geral da República crítico à Lava Jato, Augusto Aras, e a troca no comando de órgãos de investigação sem justificativas claras ou plausíveis. O marco desse afastamento entre lavajatistas e bolsonaristas ocorreria em abril de 2020: Moro se demitiu do governo Bolsonaro acusando o presidente de tentar interferir em investigações da Polícia Federal — acusação refutada por Bolsonaro. Mauricio Moura, presidente do instituto de pesquisa Ideia Big Data, explica que apesar de Bolsonaro ter sido eleito com grande expectativa de combater a corrupção, o tema já não influencia tanto na sua popularidade como durante a eleição. Segundo o pesquisador, isso se dá não porque o eleitorado brasileiro deixou de se preocupar com a corrupção, mas, sim, porque o segmento do eleitorado que dá importância ao assunto já havia abandonado o presidente no começo de 2020. Ao longo do mandato de Bolsonaro como presidente, sobretudo em 2020, teria havido uma "troca" de bolsonaristas. Moura diz que uma parcela entre 10% e 15% dos brasileiros que apoiava Bolsonaro deixou de fazê-lo quando as políticas e estratégias contra a corrupção perderam espaço no governo. As pesquisas do Ideia Big Data sugerem que o segmento da classe média cujo foco principal é o combate à corrupção segue compondo algo em torno de 10% do eleitorado. Em livro lançado em 2018, a cientista social e professora Esther Solano (Unifesp) associa o lavajatismo ao populismo de direita, que "esvazia palavras para aglutinar as pessoas em torno delas" e utiliza simplificações morais da realidade como "o cidadão de bem versus o bandido". Nessa estratégia lavajatista com ares de espetáculo, segundo Solano, "os sentimentos de medo, frustração e desencantamento tão espalhados na população são manipulados para dar lugar à criminalização da política e ao fortalecimento de um perigosíssimo discurso punitivo antipolítico". Segundo ela, "o mantra 'todos na cadeia' populariza a ideia antidemocrática de que a política é suja, corrupta, vergonhosa" e coloca "as elites políticas como inimigas da população", que devem ser atacadas numa espécie de "'nós' contra 'eles' que nada tem a ver com justiça e sim com sede de linchamento coletivo". Além da política, os lavajatistas dominaram outros dois campos no país: a mídia e o Judiciário. No primeiro, investigadores e apoiadores figuraram por anos em filmes, série de TV, livros, músicas, capas de revistas e reportagens. Deltan Dallagnol, então coordenador da força-tarefa de procuradores em Curitiba, afirma em seu livro A Luta Contra a Corrupção: A Lava Jato e o Futuro de um País Marcado pela Impunidade que a mobilização permanente dos apoiadores era essencial porque garantiria, em sua visão, segurança contra a reação de investigados poderosos. Para estimular essa mobilização, a equipe adotou, a estratégia de dividir a Lava Jato em diversas fases e operações de busca e apreensão, considerada "uma boa forma de fazer com que a opinião pública não deixasse de acompanhar o desenvolvimento do caso, mantendo seu apoio à investigação". E aqui os termos lavajatista ou lavajateiro são usados também para qualificar veículos e jornalistas que apoiavam a operação e/ou davam amplo espaço à divulgação de vazamentos de partes das investigações selecionadas pelas fontes, sejam elas procuradores, juízes ou advogados. "Não há precedente de um escândalo de corrupção que tenha durado tanto tempo e ocupado tanto espaço no noticiário político", afirmam três pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Uerj) em um capítulo do livro Operação Lava Jato e a Democracia Brasileira. Para parte dos especialistas e advogados de investigados, como os de Lula, a mídia teve papel fundamental em outra característica crítica associada aos lavajatistas: o lawfare. Essa mistura de duas palavras em inglês (law, que significa lei, e warfare, que representa guerra ou conflito armado) é o nome dado a uma espécie de mau uso de leis e procedimentos jurídicos para perseguição política contra adversários. A divulgação de nomes no contexto da investigação, segundo estudiosos, os submetia ao escárnio público e à presunção de culpa antes mesmo da sentença. Os membros da força-tarefa da Lava Jato refutam veementemente qualquer ilegalidade ou perseguição política. O segundo grande campo tomado por lavajatistas foi o judicial, incluindo aqui o Poder Judiciário e o Ministério Público. Para o jurista e cientista político Christian Lynch, o lavajatismo foi uma expressão contemporânea do judiciarismo, descrito por ele como uma doutrina liberal brasileira que coloca o Poder Judiciário como uma força que defenderá valores constitucionais e romperá com o domínio oligárquico ou autoritário fruto da colonização ibérica — cujo legado é a pouca separação entre a esfera pública e a privada. Segundo Lynch, os lavajatistas se diferenciam do judiciarismo histórico porque surgem durante um período democrático, num alinhamento liberal e populista entre Judiciário e Ministério Público para "varrer a corrupção da política brasileira". O pesquisador também classifica os lavajatistas como "tenentistas de toga", em alusão ao movimento tenentista, que lutava por melhores salários, valorização dos militares, eleições livres, liberdade de imprensa e diminuição do poder das oligarquias agrárias da República Velha (1889-1930). Para o pesquisador, os lavajatistas achavam que, como os tenentes, iam regenerar o país. "Substitua 'espada' e 'metralha' dos tenentes por delações premiadas e sentenças condenatórias e teremos o tenentismo togado do Brasil", disse ele à BBC News Brasil em 2018. Ambos os movimentos fracassaram e acabaram engolidos, avalia Lynch, um pelo Estado Novo de Getulio Vargas e o outro por Bolsonaro. A comparação entre lavajatistas e tenentistas é feita também por outros estudiosos. No artigo A guerra de todos contra todos e a Lava Jato, de 2019, um grupo de sete professores de universidades federais afirma que a principal diferença entre ambos é que o movimento tenentista "apresentava um projeto para a nação, no qual o fortalecimento do Estado e o avanço da industrialização ocupavam lugar de destaque". Já o lavajatismo, diz o artigo, "tornou-se um movimento que não aponta um projeto político para o país, a despeito de se comportar como um partido de classe média, pois acredita que o combate à corrupção salvaria o país de per si (isoladamente em latim)". Para o sociólogo Demétrio Magnoli, o programa do que ele chama de "Partido da Lava Jato" (expressão pejorativa que ganhou popularidade durante as investigações) é a criação de uma "nova democracia" protegida por uma espécie de Poder Moderador (historicamente comandado por imperadores acima dos outros três Poderes: Legislativo, Judiciário e Executivo) que seria exercido pelos altos funcionários públicos do Ministério Público que não foram eleitos pelo povo. Parte dessa plataforma política dos lavajatistas incluiria a mudança das leis, mas a proposta de 10 Medidas Contra a Corrupção — sugestão de projetos de lei elaborada e divulgada pela força-tarefa da operação e que daria, por exemplo, mais poder aos investigadores — acabou travada no Congresso. No fim de 2021, mais um capítulo do lavajatismo começou a tomar forma, numa espécie de concretização desse "Partido da Lava Jato": Moro e Dallagnol anunciam que concorrerão como candidatos políticos nas eleições em 2022. Dallagnol concorre ao cargo de deputado federal pelo Paraná, mas pode acabar inelegível pela Lei da Ficha Limpa se for condenado pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Ele e outros procuradores são investigados sob suspeita de terem recebido indevidamente repasses para diárias e viagens. Dallagnol nega qualquer irregularidade. Moro, por sua vez, tentou se candidatar à Presidência da República em 2022, mas não conseguiu apoio político dentro do próprio partido. Em seguida, pretendeu concorrer em São Paulo, mas acabou barrado pela Justiça Eleitoral porque não conseguiu comprovar domicílio eleitoral no Estado. Atualmente, Moro concorre ao cargo de senador pelo Paraná. *Com informações adicionais de Gerardo Lissardy, da BBC News Mundo, e de Mariana Schreiber, da BBC News Brasil em Brasília
2022-09-29
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62550844
brasil
'Resgatar o orgulho de ser brasileiro': o movimento para ressignificar o verde e amarelo antes da eleição e da Copa
Durante seu show no Rock in Rio 2022, a cantora Ludmilla vestiu uma camisa da seleção brasileira de futebol para apresentar seus sucessos mais antigos. Declarada apoiadora do ex-presidente e candidato à presidência Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a funkeira pediu para que os fãs fizessem o "L" e anunciou o início de um "baile de favela". Em suas redes sociais, a cantora afirmou posteriormente que o gesto foi uma tentativa de "resgate da camisa do Brasil". "Bora resgatar com força o orgulho de ser brasileiro", escreveu no Twitter. Antes de Ludmilla outros artistas já haviam se empenhado em movimentos similares. Em um festival em Belo Horizonte em abril, o rapper Djonga também vestiu a camisa brasileira, ao mesmo tempo em que puxou gritos contra o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL). No dia seguinte, a cantora Anitta se apresentou no festival Coachella, na Califórnia, com um figurino verde e amarelo: "As cores pertencem ao Brasil", disse. As manifestações fazem parte de um esforço que engloba não só a classe artística brasileira, mas também candidatos, partidos e marcas, para promover um uso mais universalizado dos símbolos nacionais e das cores da bandeira do Brasil antes das eleições de 2 de outubro e da Copa do Mundo de futebol. Segundo especialistas consultados pela BBC News Brasil, o movimento se opõe ao uso da bandeira, do hino e até do uniforme da seleção brasileira de futebol por grupos de direita, em especial por apoiadores de Bolsonaro. Fim do Matérias recomendadas "As pessoas estão começando a entender a forte carga simbólica que o verde e amarelo carrega no nosso país e que essas cores não pertencem somente a um segmento", diz Edilson Márcio Almeida da Silva, professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) que estuda o tema. "A ideia desse movimento é recuperar o direito do uso dos símbolos nacionais para além da polarização ideológica atual." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Segundo o antropólogo e sociólogo, a associação desses símbolos a aliados e eleitores de Jair Bolsonaro aconteceu após as manifestações contra o governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) entre 2015 e 2016. "A princípio as manifestações não tinham necessariamente uma identificação com a direita: eram pessoas que usavam o verde e amarelo como forma de dizer que eram brasileiras, mas não concordavam com aquele modelo de país", diz Almeida da Silva. "Mas não tardou para que o uso de outras bandeiras, como de partidos ou até do movimento LGBTQ+, fosse abafado pelos manifestantes." "É nesse momento que a direita começa a se associar ao verde e amarelo, à bandeira e ao hino nacional. E a partir daí começa uma disputa simbólica sobre quem realmente tem direito de usar aquelas cores", afirma o professor da UFF. De acordo com Mateus Gamba Torres, professor do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB), o uso exacerbado do patriotismo e dos símbolos nacionais é ainda típico de momentos mais autoritários no Brasil. "Principalmente em momentos ditatoriais da nossa história, como durante o Estado Novo ou a ditadura militar, as cores verde e amarela são trazidas para os governos, principalmente aqueles relacionados à extrema-direita e a um nacionalismo exacerbado", diz o historiador. "Essas cores pertencem ao Estado brasileiro, que é algo permanente e diferente do governo. Mas líderes autoritários tendem a confundir propositalmente as duas coisas." Durante o Estado Novo (1937-1945), período ditatorial brasileiro sob o comando de Getúlio Vargas, por exemplo, um episódio marcante envolvendo a valorização dos símbolos nacionais foi a abolição em 1937 das bandeiras estaduais, para serem substituídas por uma só bandeira: a nacional. Em novembro daquele ano, foi realizada ainda uma cerimônia na Praça Roosevelt no Rio de Janeiro (capital do Brasil àquela data), em que as bandeiras estaduais foram queimadas. O então ministro da Justiça, Francisco Campos, fez um discurso após a queima, afirmando que "não há lugar no coração dos brasileiros para outras flâmulas, outras bandeiras, outros símbolos". Já durante o período da ditadura militar, uma lei sancionada em 1971 pelo então presidente, o general Emílio Garrastazu Médici, dispõe sobre a forma e a apresentação dos símbolos nacionais. Nos 13 capítulos da lei que tratam da bandeira nacional, as regras são claras: o símbolo deve ocupar lugar de honra entre todas as demais. Eram comuns ainda propagandas do governo que valorizavam a bandeira, o hino e outros símbolos nacionais. Torres ressalta que diversos governos brasileiros democráticos e não identificados com a extrema-direita utilizaram o verde e amarelo em suas campanhas, mas de maneira mais sutil e menos frequente do que nesses dois momentos. O especialista afirma ainda que as cores da bandeira foram utilizadas e propagandeadas por governos e movimentos organizados em contraposição ao que classificam como "ameaça vermelha". "Essa ideia foi muito utilizada especialmente durante a ditadura militar e a Guerra Fria. Dizia-se que quem era comunista ou 'vermelho' não era brasileiro de verdade, pois estava a serviço do governo da União Soviética", explica Torres. Mas, segundo o historiador, mesmo figuras que estavam do lado oposto do comunismo no espectro político, como alguns liberais, eram associadas à ideologia simplesmente por criticar o governo. "Algo semelhante acontece no governo Bolsonaro e entre seus apoiadores, que se utilizam da mesma retórica para divulgar a ideia de que quem não concorda com seus ideais não é verdadeiramente brasileiro", diz. De acordo com os especialistas ouvidos, o discurso fica evidente no bordão "a nossa bandeira jamais será vermelha", usado pelo atual presidente na campanha de 2018 e durante seu mandato. "Na história do Brasil, toda vez que há a necessidade de confrontar o que ficou conhecido como perigo vermelho, há uma tendência de recuperar alguns símbolos também cromáticos que possam fazer frente ao vermelho", diz Edilson Almeida da Silva. O uso da bandeira nacional e das cores verde e amarelo pela campanha de Bolsonaro e seus apoiadores vem sendo questionado pelos principais adversários neste período pré-eleitoral. Em uma propaganda veiculada pelo ex-presidente Lula antes do 7 de setembro, o candidato do PT afirma que a campanha de Bolsonaro usa "nossa bandeira para mentir, pregar o ódio e incentivar a venda de armas". "O verde e amarelo é de todos nós", diz o vídeo. Nas suas redes sociais, o candidato do PDT, Ciro Gomes, adotou um discurso semelhante. "Nossa bandeira pertence ao povo brasileiro!", escreveu, acusando o atual presidente e candidato à reeleição de ser "um ladrão dos nossos símbolos nacionais". A ideia também foi expressa por candidatos mais conservadores, como a representante do MDB na corrida pelo Planalto, Simone Tebet. "Esta bandeira não tem partido. Esta bandeira não tem dono. Ela é de todos nós", disse a senadora em uma propaganda eleitoral. Movimentos organizados também têm dedicado certo esforço nessa campanha pela ressignificação dos símbolos. A União Nacional dos Estudantes (UNE), por exemplo, tem mobilizado a atual geração de estudantes a pintar os rostos de verde e amarelo em manifestações, em uma referência ao movimento dos caras pintadas, que culminou no impeachment de Fernando Color em 1992. Em uma live em suas redes sociais, Bolsonaro rebateu as acusações contra sua campanha e disse que a esquerda "rasgava e sapateava" em cima do símbolo nacional. A declaração ocorreu durante transmissão de live por meio das redes sociais. "Houve uma bronca aí que eu sequestrei a bandeira do Brasil para fins políticos. Pessoal, a esquerda, os 'partidecos' aí, esse pessoal rasgava a bandeira nacional, queimava, botava o pé em cima, sapateva em cima dela. Um ultraje à nossa bandeira, um símbolo nosso", alegou. "E, hoje, o povo identifica a bandeira comigo, com os nossos candidatos pelo Brasil, com as pessoas de bem contra drogas, com aqueles que defendem a vida desde a concepção, que são contra as drogas, que são contra a ideologia de gênero, aqueles que defendem a propriedade privada sempre ameaçada pela esquerda", completou. Bolsonaro emendou que a bandeira é de todos, mas que se a esquerda não a quer, continuará com seu governo. Mas segundo os especialistas consultados pela BBC Brasil, para além de disputas políticas, a proximidade da Copa do Mundo de futebol, em dezembro, pode estar motivando também o movimento. No lançamento da nova camisa da seleção brasileira em agosto, a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) disse que a roupa "representa mais de 210 milhões de brasileiros". Em uma outra propaganda, da marca de cerveja Brahma, o narrador Galvão Bueno chama o público a "lembrar do significado original da amarelinha" "Independente das nossas diferenças fora de campo, chegou a hora de lembrar o significado original da nossa camisa", diz a narração. "Tire a amarelinha do armário e vista a sua camisa, ela é sua, é minha e de toda a nossa torcida." "A seleção brasileira de futebol também é motivo de orgulho nacional, assim como outros símbolos. E muitas pessoas deixaram de usar a camiseta do time nos últimos anos por receio de serem identificadas com um grupo político com o qual não concordam", diz Mateus Gamba Torres. O novo modelo criado para a Copa de 2022, porém, esgotou rapidamente. Segundo o grupo SBF, dono das empresas Centauro e Fisia, distribuidora oficial da Nike no Brasil, nos dois primeiros dias do lançamento dos uniformes foram vendidas cerca de 10 vezes mais camisas, em comparação com 2018. Há um terceiro impulso, porém, que também pode estar por trás da mudança de percepção em relação às cores brasileiras e que vem do mundo da moda. Em meados deste ano, influencers, artistas e modelos internacionais começaram a postar fotos usando roupas verde e amarelas e até agasalhos e camisetas oficiais da seleção. Conhecida como Brazilcore ou Brazilian Aesthetic, a tendência que faz referências à cultura brasileira ganhou ímpeto fora do país e entre a elite com a Copa. Mas o uso de camisas da seleção brasileira, da bandeira e cores e de toda a estética do futebol sempre esteve presente nas periferias brasileiras. Por isso as críticas não demoraram muito a aparecer, com acusações de apropriação cultural. Ainda assim, o "look" brasileiro viralizou nas redes sociais, principalmente no TikTok, onde a hashtag #brazilcore já tem mais de 17 milhões de visualizações, e se tornou assunto no mundo da moda, impulsionando o movimento de ressignificação que tenta afastar o uso das cores e da bandeira de motivos políticos - nesse caso, para transformá-los em símbolo fashion. "O verde e amarelo têm um peso e uma carga simbólica muito grandes, mesmo fora do Brasil", resume o antropólogo Edilson Almeida da Silva.
2022-09-29
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63069515
brasil
Comissão Interamericana de Direitos Humanos pede esforço máximo do Brasil para prevenir violência política
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA), convocou o Brasil a empregar o máximo de esforços para prevenir e combater qualquer ato de intolerância que possa resultar em violência política durante as eleições. Em nota divulgada nesta quinta-feira (29/09), a organização ressaltou o papel desempenhado por lideranças políticas na "prevenção da intolerância e da violência" e na promoção do entendimento "a partir do reconhecimento do pluralismo e da diversidade". Segundo um levantamento realizado pelo Observatório da Violência Política e Eleitoral da UniRio até junho deste ano, os casos de violência contra lideranças políticas brasileiras cresceram 335% no Brasil nos últimos três anos. Na reta final da campanha eleitoral, os relatos de ataques e assassinatos com motivação política e eleitoral contra cidadãos também dispararam, com casos sendo investigados no Ceará, Rio de Janeiro e Santa Catarina somente no último final de semana. Diante do cenário, a CIDH pediu "ao Estado que ponha o máximo de seus esforços para prevenir e combater qualquer ato de intolerância que possa resultar em violência política". Fim do Matérias recomendadas "A CIDH reafirma a sólida institucionalidade democrática do Brasil, a separação e a independência de seus poderes e o bom funcionamento de seu sistema de freios e contrapesos. Além de apreciar os esforços das instituições, apela ao Estado, de acordo com as normas interamericanas de direitos humanos, que implemente as ações necessárias para prevenir e sancionar atos ou manifestações públicas, no contexto das eleições, que constituam intolerância ou desprezo ao outro por ser ou pensar de forma diversa", diz a organização. Na nota, a comissão também reforçou a necessidade do Estado e da sociedade brasileira de respeitarem o resultado das eleições: "a Comissão Interamericana insta o Estado e a sociedade em geral a realizarem eleições pacíficas e a respeitarem seus resultados como a mais alta expressão da soberania popular, isso em estrito apego à democracia representativa e aos direitos humanos, conforme estabelecido pela Carta Democrática Interamericana, instrumento do qual o Brasil é parte", diz a nota. "Além disso, é fundamental que as autoridades judiciais entendam seu papel como garantidores da circulação de informações de interesse público que deem ferramentas à população sobre os aspectos que fazem a participação eleitoral. O bloqueio ou a limitação de acesso a conteúdos online ou restrições à circulação de notas jornalísticas podem limitar o acesso às informações dos eleitores e, portanto, seu amplo conhecimento para participação e decisão durante o processo eleitoral", afirma ainda o comunicado divulgado pela CIDH. O texto afirma ainda que o poder Judiciário deve proteger o exercício do discurso político e a propagação de assuntos de interesse público, "o que também implica a proteção reforçada do direito de acesso à informação". Essa não foi a primeira vez que a CIDH mostrou preocupação com a violência política e eleitoral no Brasil. No final de julho, o órgão principal e autônomo da OEA emitiu uma outra nota, em que disse observar "com preocupação os atos de violência motivados pelo contexto político atual". Na ocasião, a comissão instou o Estado "a prevenir a violência, garantindo medidas de proteção e segurança no contexto eleitoral, bem como a realização das investigações pertinentes a esses fatos". Apesar do reforço em relação à necessidade de prevenir tais atos, no comunicado divulgado nesta quinta, o CIDH congratulou "as medidas especiais adotadas pelas instituições estatais brasileiras para realizar eleições livres e justas no próximo dia 2 de outubro". Entre as diversas medidas adotadas elogiadas pelo órgão interamericano estão o acordo firmado entre o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e a Procuradoria-Geral Eleitoral para combater a violência de gênero político; a instalação de um centro de inteligência, pelo TSE, com o objetivo de combater a violência política no processo eleitoral; bem como a criação de juizados criminais específicos para analisar casos de violência político-partidária, pelo Conselho Nacional de Justiça. O levantamento do Observatório da Violência Política e Eleitoral da UniRio identificou 214 registros de violência política contra lideranças políticas no Brasil no primeiro semestre de 2022, enquanto o país teve 47 casos no mesmo período de 2019, ano em que o estudo começou. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Outra pesquisa, da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (RAPS) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostrou ainda um aumento no nível de preocupação da população em relação ao tema. Entre os entrevistados em 2022, 67,5% afirmam ter medo de serem agredidos fisicamente em razão de sua escolha política ou partidária. Em uma pesquisa de vitimização, 3,2% dizem ter sido vítimas de ameaças, por motivos políticos, no último mês antes da divulgação da pesquisa, que foi publicada em 7 de setembro. Se extrapolada a amostra da pesquisa, serão cerca de 5,3 milhões de pessoas vítimas de ameaças por suas posições políticas nos 30 dias anteriores ao campo da pesquisa. Um dos casos mais marcantes de violência política e eleitoral recente aconteceu no dia 10 de julho, em Foz do Iguaçu, no Paraná. A vítima, o guarda municipal Marcelo Aloizio de Arruda, atuava como dirigente do PT na cidade e foi assassinado a tiros pelo policial penal federal Jorge José da Rocha Guaranho, que invadiu a festa de aniversário de Arruda aos gritos de "aqui é Bolsonaro". O tema da festa do guarda municipal era o PT e a candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Arruda, que também estava armado, revidou depois de ser atingido e, antes de morrer, baleou Guaranho, que foi encaminhado para o hospital em estado grave. Se os motivos forem confirmados pela investigação, esse terá sido o terceiro caso de homicídio por divergências políticas registrado no período eleitoral deste ano.
2022-09-29
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63079756
brasil
Dilma, Witzel e Zema: por que pesquisas não previram surpresas nas urnas em 2018
Nas redes sociais, muitos eleitores — principalmente bolsonaristas — têm lembrado de casos das eleições de 2018 em que as pesquisas eleitorais não coincidiram com o resultado das urnas. Os exemplos mais citados são os de Dilma Rousseff e Eduardo Suplicy, candidatos pelo PT ao Senado em Minas Gerais e São Paulo, respectivamente. E Romeu Zema (Novo) e Wilson Witzel (PSC), que disputaram e venceram as corridas pelo governo de Minas e Rio de Janeiro. A ex-presidente e o ex-senador petistas lideraram as pesquisas Datafolha e Ibope para o Senado em seus Estados durante toda a corrida eleitoral em 2018, mas Dilma acabou em quarto lugar em Minas Gerais e Suplicy em terceiro em São Paulo. Com duas vagas para cada Estado a serem preenchidas naquele ano para o Senado, ambos ficaram sem assento no parlamento. Zema e Witzel, por sua vez, apareciam ambos no terceiro lugar das pesquisas divulgadas na véspera do primeiro turno e acabaram em primeiro lugar nas pesquisas boca de urna e nos resultados das eleições apurados pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Essas discrepâncias entre pesquisas e resultados nas urnas têm sido citadas pelos apoiadores de Jair Bolsonaro (PL) como argumento para justificar a possibilidade de reeleição do presidente, que se mantém até o momento em segundo lugar nas pesquisas, atrás de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Fim do Matérias recomendadas Mas por que algumas pesquisas para senadores e governadores não refletiram os resultados das urnas em 2018? E é provável que movimento semelhante aconteça na corrida presidencial de 2022? Perguntamos a especialistas e explicamos aqui. "Em primeiro lugar, as pesquisas eleitorais têm como função retratar o momento em que elas foram coletadas. Ela não têm como função fazer prognósticos do que vai ocorrer nas eleições", explica o estatístico Raphael Nishimura, diretor de amostragem do Survey Research Center, da Universidade de Michigan (EUA). "Como elas retratam o momento em que foram coletadas, se existe uma mudança nas preferências do eleitorado entre o momento da coleta e a eleição, as pesquisas não conseguem captar esse tipo de movimentação", acrescenta o especialista. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para além dessa questão, que diz respeito à natureza das pesquisas eleitorais de forma geral, há uma particularidade das disputas para governo e Senado: muita gente deixa para decidir o voto para esses postos na véspera ou no próprio dia da eleição, pois esses são cargos sobre os quais as pessoas acabam se informando menos ao longo da campanha. "Para governador, em geral, o índice de indecisos na reta final é maior do que para presidente. Como esses indecisos vão ter que se decidir, ainda que seja na última hora, se essa escolha cria um movimento acelerado em direção a um candidato ou outro, pode haver uma distância entre o resultado da eleição e o que foi indicado pelas pesquisas", diz Emerson Cervi, professor do Departamento de Ciência Política da UFPR (Universidade Federal do Paraná). Os dados das últimas pesquisas Ipec e Genial/Quaest ilustram bem esse quadro. Nas pesquisas Ipec divulgadas nessa última semana antes das eleições, 83% dos eleitores dizem que sua decisão de voto para presidente é definitiva, comparado a 58% que dizem o mesmo para o governo de São Paulo, 59% para o governo do Rio e 69% para o governo de Minas. Nas pesquisas Genial/Quaest, 79% afirmam que seu voto para presidente é definitivo, ante 51% que dizem isso para sua escolha ao governo de São Paulo, 50% para governo do Rio e 57% para Minas. A margem de erro de ambas as pesquisas é de 2 pontos percentuais para mais ou para menos. Para senador, a decisão de voto é tomada ainda mais no último momento, diz o professor da UFPR. "O último cargo que o eleitor vai pensar é no senador", observa Cervi. "Ele decide antes para deputado, que é alguém que está mais próximo dele, às vezes o eleitor até conhece o candidato ou já teve alguma relação com alguém próximo àquele candidato. Já o senador não tem capacidade de estabelecer políticas públicas como um governador e não está próximo como um deputado, por conta disso, o senador é o último voto", acrescenta o cientista político. Em São Paulo, por exemplo, na pesquisa Ipec espontânea (quando o pesquisador não apresenta uma lista de candidatos ao entrevistado), apenas 14% não souberam ou não responderam sobre seu voto para presidente nesta última semana antes da eleição, ante 46% para governador e 62% para senador. Para além dessas questões que dizem respeito a qualquer eleição, o pleito de 2018 teve características específicas que também contribuíram para os resultados inesperados. "2018 foi uma eleição muito atípica, em que movimentos de mudança acelerada se deram na última semana, o que não é comum. Então 2018 foi muito incomum e nada indica que teremos uma repetição disso agora na mesma intensidade", diz Cervi, da UFPR. Segundo o cientista político, esse movimento atípico foi impulsionado por uma onda "antipolítica", de repúdio aos políticos tradicionais, que acabou beneficiando candidatos novatos e percebidos como outsiders. "Quem costuma concorrer a senador? Ex-governadores, deputados de longa data, senadores, ex-ministros, ex-secretários de Estados. Esses caras tiveram que enfrentar a onda da nova política para duas vagas, o que fez que houvesse ainda mais insegurança na predição de resultados de 2018", explica Cervi. Além disso, explica o professor, quando a eleição para o Senado é para duas vagas, a opção de eleitores pelo voto estratégico às vezes sai pela culatra. "Foi o que aconteceu aqui no Paraná, Requião [MDB] era candidato à reeleição e acabou ficando em terceiro porque muitos eleitores queriam evitar a eleição de Beto Richa [PSDB] em segundo. Os dois acabaram perdendo votos e entraram dois novos", exemplifica Cervi. Em São Paulo, parte da esquerda votou em Mara Gabrilli (PSDB) na tentativa de evitar a eleição de Major Olímpio (PSL) na segunda vaga ao Senado e, com votos da direita e da esquerda, Gabrilli acabou eleita ao lado de Olímpio, enquanto Suplicy ficou de fora. "Nesse ano, há apenas uma vaga para o Senado e não tem mais a onda da antipolítica, então é provável que o grau de previsibilidade das eleições para o Senado seja maior", acredita Cervi. A onda de "antipolítica" também foi determinante no sucesso de Zema e Witzel, avalia o cientista político. "Ambos surfaram a onda antipolítica e a onda bolsonarista. Houve uma verticalização em 2018: os votos de Bolsonaro foram transferidos de um forma que nem PT ou PSDB conseguiram fazer antes na mesma intensidade", observa. "Quem votou em Bolsonaro, votou no candidato do Bolsonaro para governador, para senador e para deputado. Quando comparamos os desempenhos de Witzel, Zema e Bolsonaro por zona eleitoral, há uma alta taxa de correlação. Então quem votou em um, tendeu a votar no outro." Então, porque algumas pesquisas para senador e governador não conseguiram captar o resultado das urnas em 2018, o mesmo pode acontecer na corrida para presidente em 2022? Os especialistas avaliam que isso é improvável. "Existe uma decisão de última hora muito maior para eleições de Senado e governo do que para presidente. Como para presidente muito provavelmente o voto já foi estabelecido dias antes, às vezes até semanas ou meses antes para boa parte do eleitorado, não acontece tanto esse fenômeno de decisão de voto no dia anterior", diz Nishimura, da Universidade de Michigan. Cervi, da UFPR, observa que a onda de "antipolítica" de 2018 se dissipou, e a eleição desse ano parece ser de retorno dos políticos tradicionais, com elevada taxa de reeleição esperada nas eleições proporcionais (para deputados). Além disso, o índice de certeza de voto para presidente esse ano está muito mais elevado do que em anos anteriores. "Temos uma eleição para presidente que já está pautada há dois anos. Além disso, são dois candidatos muito conhecidos, pela primeira vez teremos um candidato à reeleição e um ex-presidente disputando, então o eleitor está votando pensando no que cada governo fez por ele. Isso abriu pouquíssimo espaço para os demais colocados", acrescenta. Se para presidente uma mudança brusca na última hora é improvável, para Senado e governadores, elas são mais plausíveis, avalia o especialista. "Reviravoltas podem acontecer. Elas são explicadas por movimentos de última hora que não são captados pelas pesquisas, são um resultado normal da política", conclui.
2022-09-29
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63038862
brasil
Vídeo, O relato de entregador de comida que passa fome e dorme nas ruas de SPDuration, 2,49
O entregador Luciano de Oliveira Rosa ganha a vida com sua moto há mais de dez anos. Mas com a alta da inflação e a crise econômica, ele adotou uma medida extrema para conseguir viver com o que ganha no trabalho. Em várias noites da semana, ele não volta para casa – dorme nas ruas do centro de São Paulo. Motivo: economizar combustível Este vídeo conta a história de Luciano. Assista e confira. Produção e reportagem: Agustina Latourrette Câmera: Renato Varoli Produção local: Marcia Reverdosa
2022-09-29
https://www.bbc.com/portuguese/media-63073689
brasil
4 fatores que dificultam possível vitória de Lula no 1º turno
As pesquisas eleitorais mais recentes, que indicam o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) com mais de 50% dos votos válidos ou muito próximo disso, aumentaram a expectativa de que a eleição presidencial de 2022 possa ser definida já no primeiro turno, em 2 de outubro. A campanha petista trabalha para que isso ocorra, incentivando o voto útil e o comparecimento às urnas no dia da votação. Já a campanha do presidente Jair Bolsonaro (PL) se esforça para que haja segunda turno, o que daria aos eleitores mais tempo para sentirem a melhora recente da economia, impulsionada por estímulos como o Auxílio Brasil de R$ 600 e o corte do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) sobre combustíveis. Segundo cientistas políticos, quatro fatores podem definir se a corrida eleitoral acaba neste domingo (2/10) ou só no dia 30. Entenda cada um deles. Para que a eleição seja definida em primeiro turno, é necessário que o candidato mais votado tenha mais do que 50% dos votos válidos, que é a soma de todos os votos, descontados brancos, nulos e abstenções. Fim do Matérias recomendadas Nas pesquisas já divulgadas nesta última semana antes da votação, Lula registrou 48% dos votos válidos na pesquisa estimulada FSB/BTG Pactual, 49% na Atlas, 50,5% na Genial/Quaest e 52% na Ipec. Mas, como a margem de erro das pesquisas varia entre 1 ponto (Atlas) e 2 pontos (FSB, Quaest e Ipec) para mais ou para menos, é difícil saber se o petista tem de fato a maioria da preferência dos eleitores. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Em algumas pesquisas, falta muito pouco para Lula atingir mais da metade dos votos, em outras, ele passa um pouquinho. Então não conseguimos ter certeza se ele vai conseguir ter esse número de eleitores ou não no dia da votação", afirma Carolina Botelho, cientista política e pesquisadora do Laboratório de Estudos Eleitorais, de Comunicação Política e Opinião Pública da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Ela observa que as pesquisas têm diferenças metodológicas, em função de como são construídas as amostras para aplicação do questionário, e da forma como é feita a coleta dos dados (presencial, por telefone ou pela internet). "As pesquisas não servem exatamente para se fazer prognósticos eleitorais", diz Fernando Meireles, cientista político e pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). "Pela natureza delas, servem muito mais para mapear tendências ao longo do tempo do que para fazer uma predição. Por isso, na situação atual, é muito difícil dizer se Lula vai ganhar ou não no primeiro turno." Botelho observa ainda que, no Brasil, é mais comum que eleições majoritárias presidenciais sejam resolvidas em segundo turno. Desde a redemocratização, apenas duas eleições para presidente do Brasil foram encerradas de primeira: as duas vitórias de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) em 1994 e 1998, tendo Lula como principal adversário. Nos demais seis pleitos (em 1989, 2002, 2006, 2010, 2014 e 2018), houve segundo turno. Por fim, Meireles observa que em todas as eleições anteriores — à exceção de 2018, quando Bolsonaro foi eleito — o primeiro colocado teve menos votos nas urnas do que apontavam as pesquisas da última semana e da véspera da votação. (Confira abaixo tabela elaborada pelo professor Bruno Carazza, da Fundação Dom Cabral) Se essa tendência se repetir, Lula pode ter menos votos do que sugerem as pesquisas. Mas é importante destacar que o passado não necessariamente determina o presente, como mostrou 2018. Um segundo fator de dúvida para uma possível vitória de Lula em primeiro turno é qual será o percentual de comparecimento às urnas em 2022. Isso porque a abstenção nas eleições tem crescido ano a ano, um fenômeno também identificado em outros países. Junto aos votos brancos e nulos, as abstenções determinam o número de votos válidos. Além disso, o perfil dos eleitores faltantes pode influenciar no resultado. "Nem todo mundo que é apto — que está registrado para votar, que tem título de eleitor — vai votar. Por uma série de razões, no Brasil, historicamente, pessoas mais pobres e menos escolarizadas tendem a votar menos", diz Meireles, do Cebrap. Segundo ele, parte disso tem a ver com o custo de deslocamento para os locais de votação, pois muitas dessas pessoas moram no interior, em locais de difícil acesso e não têm recursos para ir até as seções eleitorais, ou não podem perder o dia de trabalho para ir votar. Esses mesmos eleitores, segundo as pesquisas de opinião e o histórico de votações anteriores, tendem a preferir candidaturas do PT. Assim, uma maior abstenção de eleitores de baixa renda poderia tornar mais difícil a vitória de Lula em primeiro turno. Meireles pondera, porém, que historicamente a abstenção sozinha não tem impacto significativo nos resultados eleitorais. Isso porque os grupos que têm baixo comparecimento representam fatia pequena do eleitorado. Por exemplo, no primeiro turno de 2018, os analfabetos tiveram taxa de comparecimento significativamente mais baixa do que a dos eleitores com mais escolaridade, conforme mostra esse gráfico elaborado pelo cientista político Jairo Nicolau, da FGV (Fundação Getúlio Vargas). No entanto, observa Meireles, os analfabetos representam apenas 4,5% dos eleitores, um peso relativamente pequeno dentro do total. Além disso, outros grupos também têm abstenção alta, como os idosos com mais de 70 anos, idade a partir da qual o voto deixa de ser obrigatório. Esses eleitores tendem a votar mais em Bolsonaro, segundo as pesquisas eleitorais, compensando em alguma medida a abstenção dos mais pobres, que votam mais em Lula, exemplifica o pesquisador do Cebrap. "No saldo geral, todas essas movimentações são muito pequenas e não chegam a alterar de forma significativa as características do eleitorado ou o perfil eleitoral de quem vai votar. Essas movimentações acabam em certa medida se anulando", avalia Meireles. "É claro, como estamos falando de uma eleição que pode ser decidida em primeiro turno, com pouca diferença de votos, pode ser algo que faça diferença. Mas é difícil prever se esse vai ser o caso ou não", acrescenta. Carolina Botelho, da UERJ, acredita que a abstenção poderá ser menor este ano do que em eleições anteriores. "Há estudos, inclusive nos EUA, que mostram que, quando há eleições muito tensionadas, como é o caso dessa, o eleitor tende a ir às urnas tentar resolver logo. Acredito que, por conta da forma atípica que se construiu essa eleição, a tendência é de que a abstenção diminua." Muita gente deixa para decidir o voto na véspera, principalmente para os cargos de senador e governador dos Estados, que são cargos sobre os quais as pessoas acabam se informando menos ao longo da campanha eleitoral, deixando para tomar uma decisão em cima da hora. Por isso não surpreende que as pesquisas mostrem resultados diferentes dos votos efetivamente apurados nesses casos, mais do que na eleição presidencial, observa Meireles. Mas, nas eleições presidenciais, dois fenômenos podem causar mudanças de última hora nos resultados eleitorais: o voto útil e movimentações entre os indecisos. "O voto útil é o daquela pessoa que, dado as pesquisas de véspera, ela decide alterar seu voto estrategicamente, pensando em ter maior influência no resultado final ou votar no candidato vencedor, para sentir que seu voto não foi desperdiçado", diz o pesquisador do Cebrap. Ele cita o exemplo de 2018, quando candidatos como Geraldo Alckmin (PSDB) e Marina Silva (Rede) tiveram votações muito mais baixas do que apontavam as pesquisas eleitorais, enquanto Bolsonaro e Fernando Haddad (PT) registraram mais votos do que era esperado. "2018 foi um ponto fora da curva em relação a voto útil e eu não duvidaria que algo parecido — não necessariamente na mesma magnitude ou proporção — acontecesse agora", diz Meireles. Assim, candidatos como Ciro Gomes (PDT), Simone Tebet (MDB) e Soraya Thronicke (UB), poderiam perder votos na reta final para as candidaturas maiores. Mas é difícil prever em que medida isso vai acontecer e como vai afetar o resultado final. Por fim, a última incógnita para saber se vai haver segundo turno para presidente ou não está na movimentação dos indecisos. Segundo a pesquisa FSB/BTG Pactual dessa segunda-feira (26/9), por exemplo, 86% dos eleitores diziam que sua decisão de voto no primeiro turno já está tomada e não vai mudar, enquanto 13% afirmavam que ainda poderiam mudar de ideia. Apesar do percentual de certeza de voto ter se mantido mais alto ao longo de toda a corrida eleitoral de 2022 do que em eleições anteriores, a parcela de indecisos ainda é relevante. "O indeciso, em geral, é uma pessoa que não acompanha tanto política. É uma camada da população que está entre a classe média e um pouco mais baixo do que isso, um pouco mais feminina do que masculina. Essas pessoas acabam decidindo o voto muito na última hora", diz Meireles. Segundo o pesquisador, dois fatores movem esse grupo. Um é o voto estratégico, que é a tendência de acompanhar a maior parte do eleitorado, votando nos candidatos com maior chance: Lula ou Bolsonaro. Mas, dentro desse grupo, também costuma haver muita abstenção, pois essas pessoas, por não se importarem tanto com política, acabam muitas vezes não indo votar. "O que importa é que esse grupo é muito grande. Como é muita gente, se na véspera acontecer qualquer coisa, algum fator que impulsione uma das candidaturas, isso pode mudar muito o resultado eleitoral, em relação às pesquisas da véspera", diz o cientista político, citando como exemplo a eleição de Wilson Witzel (PSC) ao governo do Rio de Janeiro em 2018. Carolina Botelho, da UERJ, por sua vez, avalia que o fato de as mulheres serem maioria entre os indecisos pode favorecer o candidato petista na última hora. "Esse grupo pode influenciar numa vitória de Lula em primeiro turno. A mulher ficou mais desempregada do que o homem na pandemia e tradicionalmente são elas que cuidam de crianças e idosos no Brasil. Então, na pandemia, foram elas que cuidaram dos idosos que ficaram doentes e morreram e das crianças que ficaram dois anos sem escola", observa. "Não faltam motivos para esse grupo ter uma rejeição maior a Bolsonaro, como mostram as pesquisas, e isso pode vir a decidir a eleição", conclui.
2022-09-29
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63056226
brasil
Senado dos EUA aprova recomendação de romper relação com o Brasil em caso de golpe
O Senado dos Estados Unidos aprovou por unanimidade, na noite desta quarta-feira (28/9), uma resolução apresentada pelo senador Bernie Sanders e outros cinco senadores democratas para defender a democracia no Brasil. Em sua defesa da medida, no plenário do Senado, Sanders afirmou que o texto não era favorável a qualquer candidato e sim favorável ao rompimento de relações e assistência militar entre países em caso de um golpe. "Não estamos tomando lado na eleição brasileira, o que estamos fazendo é expressar o consenso do Senado de que o governo dos EUA deve deixar inequivocamente claro que a continuidade da relação entre Brasil e EUA depende do compromisso do governo do Brasil com democracia e direitos humanos." "O governo Biden deve deixar claro que os Estados Unidos não apoiam nenhum governo que chegue ao poder ao Brasil por meios não democráticos e assegurar que a assistência militar é condicional à democracia e transição pacífica de poder", afirmou Sanders. A medida não contava com apoio declarado de nenhum republicano, mas, pelas regras da Câmara Alta, se nenhum senador objeta a um texto de resolução, ele é aprovado por unanimidade na casa. Fim do Matérias recomendadas A aprovação acontece a apenas 4 dias da eleição presidencial no Brasil e após repetidas acusações, sem provas, do presidente Jair Bolsonaro (PL) de que o sistema eleitoral brasileiro não é seguro e de que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) é "parcial". De acordo com as pesquisas eleitorais, Bolsonaro, que tenta a reeleição, está atualmente atrás de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). "É imperativo que o Senado dos EUA deixe claro por meio desta resolução que apoiamos a democracia no Brasil", disse Sanders. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Seria inaceitável que os EUA reconhecessem um governo que chegou ao poder de forma não democrática e enviaria uma mensagem horrível para o mundo inteiro. É importante que o povo brasileiro saiba que estamos do lado deles, do lado da democracia. Com a aprovação desta resolução, estamos enviando essa mensagem." A BBC News Brasil entrou em contato com o Planalto, o Itamaraty e a Embaixada do Brasil em Washington. Os dois primeiros não responderam à reportagem. Já a Embaixada, em nota, afirmou que "não compete à embaixada emitir comentários sobre resoluções do Poder Legislativo do país junto ao qual está acreditada". "É a primeira vez em muitas décadas que vemos esse tipo de resolução em relação ao Brasil. Isso não aconteceu nem mesmo durante a ditadura militar", afirmou James Green, historiador da Brown University e presidente do Washington Brazil Institute. A resolução é a última sinalização de autoridades americanas que iniciaram há alguns meses um movimento contínuo e constante de expressar preocupação com a situação política no Brasil. Apenas esta semana houve ao menos outras duas manifestações públicas. Na segunda-feira (26/9), o porta-voz do Departamento de Estado, Ned Price, disse à BBC News Brasil que "como parceiro democrático, os EUA acompanharão as eleições de outubro com grande interesse". "Esperamos que as eleições sejam conduzidas de maneira livre, justa e confiável, uma prova da força duradoura da democracia brasileira", acrescentou. Na terça, apenas seis dias antes de os brasileiros irem às urnas, a porta-voz da Casa Branca, Karine Jean-Pierre, afirmou em coletiva de imprensa que os americanos "monitorariam" a eleição no domingo e expressou preocupação com a escalada de violência política nas ruas. "Os EUA condenam a violência e pedem que os brasileiros façam suas vozes serem ouvidas de maneira pacífica", afirmou Jean-Pierre. Para a cientista política e ex-assessora legislativa no Congresso dos EUA, Beatriz Rey, o movimento é "mais um endosso político para as ações que tanto a Casa Branca quanto o Departamento de Estado já vem tomando". A expectativa é que os EUA reconheçam o resultado da urna o mais rapidamente possível após o anúncio do vencedor pelo TSE, no próximo domingo ou no dia 30 de outubro, em caso de segundo turno. A resolução foi apresentação pelos senadores Bernie Sanders, Tim Kaine, chefe do subcomitê de Relações Exteriores do Congresso para o Hemisfério Ocidental; Patrick Leahy, Jeff Merkley, Richard Blumenthal e Elizabeth Warren.
2022-09-28
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63070321
brasil
4 perguntas-chave não respondidas por Lula na campanha
Do futuro de Jair Bolsonaro (PL) ao da Procuradoria-Geral da República, que entre outras funções é responsável por investigações sobre políticos com foro privilegiado, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem se esquivado de perguntas importantes, a menos de uma semana do primeiro turno das eleições. Líder em todas as pesquisas de opinião, ele decidiu não ir ao debate promovido pelo SBT no sábado (24) e à série de sabatinas promovidas pela TV Record nesta semana. O petista tem sido criticado pelas ausências, justificadas por problemas de agenda e questionamentos sobre ordem de entrevistas, já que seu partido foi particularmente crítico, em 2018, quando Bolsonaro faltou a uma série de debates, especialmente no segundo turno. Lula, por outro lado, participou nesta campanha de sabatinas na TV Globo e na CNN e do debate promovido pela Band. Também anunciou que estará no debate final do primeiro turno, na Globo, que irá ao ar na quinta-feira (29). Em seus últimos encontros com a imprensa, o ex-presidente deixou de responder a temas críticos na campanha. Fim do Matérias recomendadas A BBC News Brasil procurou a campanha de Lula, que não respondeu a nenhum dos questionamentos até a publicação desta reportagem. Confira a seguir quatro perguntas importantes deixadas sem resposta pelo ex-presidente. "Quero deixar eles com uma pulguinha atrás da orelha. Primeiro preciso ganhar as eleições. Esse negócio de prometer as coisas antes de vencer as eleições é um erro." Foi assim que o presidente respondeu à jornalista Renata Vasconcellos, no Jornal Nacional, quando perguntado se respeitaria ou não a tradicional lista tríplice da Procuradoria-Geral da República. A lista é tradicionalmente encaminhada à Presidência da República e dos demais poderes pela ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República). Ela reúne os três nomes mais votados por membros do Ministério Público Federal para ocupar o cargo de Procurador-Geral da República. Os candidatos devem ser membros ativos do órgão e precisam ter mais de 35 anos - a votação é secreta. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Desde 2003, primeiro ano de mandato de Lula, todos os presidentes com exceção de Jair Bolsonaro respeitaram a lista com indicações dos procuradores. Até o governo de Michel Temer (PMDB), todos os presidentes escolheram o mais votado da lista. O peemedebista inovou ao escolher a segunda colocada. Já Bolsonaro ignorou as sugestões e escolheu Augusto Aras, que não aparecia na relação. A reação dos procuradores foi forte - em nota, à época, eles disseram que Bolsonaro ignorava "o princípio da transparência". Em Brasília, especula-se que o mistério criado pelo presidente seja uma forma de negociar com parlamentares do chamado Centrão, que tem membros que abertamente defendem o fim da lista. Por outro lado, uma eventual recusa à lista abriria uma crise com promotores e procuradores no Ministério Público. À Globo, Lula disse ainda defender a independência da PGR. "Eu não quero procurador leal a mim. O procurador tem que ser leal ao povo brasileiro, ele tem que ser leal à instituição". O ex-presidente Michel Temer (MDB) surpreendeu a muitos ao sugerir um "pacto de pacificação" que poderia incluir uma "anistia ao passado" em nome da reconstrução do país. A anistia poderia beneficiar Jair Bolsonaro - que à frente da Presidência não foi processado ou condenado - em caso de não reeleição. O presidente pode ser alvo de uma série de questionamentos legais, desde supostos crimes de responsabilidade em sua gestão da pandemia do coronavírus até o patrimônio e imóveis acumulados por sua família, além de suposta interferência política em órgãos como a Polícia Federal. "O ideal seria fazer um grande pacto nacional, como aconteceu na Espanha. E quem for eleito chama a oposição, os 27 governadores eleitos, os chefes de poderes e organizações da sociedade civil para trabalhar até a posse. Quero ver quem se oporia a isso. As pessoas respirariam aliviadas. Isso seria o ideal", disse em debate organizado pelos jornais O Globo e Valor Econômico, em 20 de setembro. Questionado se a ideia de anistia a Bolsonaro não abriria caminho para impunidade no país, Temer foi vago. "Quando falo nesse pacto de pacificação, estou imaginando que seria verificado, se houver anistia, o que é anistiável e o que não é. Mas seria um gesto de harmonia no país." Temer se referia ao Pacto espanhol de Moncloa, de 1977, que inspirou a Lei da Anistia no Brasil - alvo de controvérsia entre defensores de direitos humanos, já que tornou impunes tortura e perseguição política no Brasil durante a ditadura. "A Constituição é pautada pela paz", disse o ex-presidente. "Outro dia eu fui em um debate e alguém me perguntou se eu ia anistiar o Bolsonaro. Eu fiquei com vontade de perguntar para o jornalista: você sabe que crime ele cometeu? Porque eu não vou tomar posse com espírito de vingança de ninguém", disse Lula recentemente a apoiadores. Ele possivelmente se referia a sua entrevista à CNN Brasil, quando foi questionado diretamente se apoiaria uma anistia a Bolsonaro. Em resposta ao apresentador William Waack, Lula enumerou uma série de episódios de violência política contra seus apoiadores, mas não respondeu a possibilidade de perdoar eventuais crimes de Bolsonaro. "Desde que eu comecei a fazer política, eu nunca tinha visto, nunca assisti, e disputei todas as eleições, eu nunca tinha visto um comportamento incivilizado como eu estou vendo agora, sabe? Já houve duas mortes em 2018, já houve tiro, já houve bomba no meu escritório, duas mortes agora. Semana passada mataram mais um cidadão", disse. Ele continuou, sem responder a pergunta sobre a anistia. "Deixa eu te dizer uma coisa, você não vai querer presidir o país para tentar instigar, sabe, a confusão. Ou seja, esse país precisa de paz para crescer. Esse país precisa de paz para melhorar e quem pode fazer isso é o Presidente da República, é o comportamento dele que dita um pouco as regras do que vai acontecer na sociedade. E esse atual presidente vive disso, ele vive de provocar, ele vive de instigar, ele vive de desrespeitar, ele vive de ofender ministro da Suprema Corte." Lula teve uma série de trocas de farpas no único debate em que se encontrou pessoalmente com Jair Bolsonaro nestas eleições. Em 29 de agosto, no debate da Band, ambos foram questionados sobre de onde viriam os recursos para financiar a continuidade do atual Auxílio Brasill em R$ 600 reais. A resposta do atual presidente foi vaga: "Não roubando, não metendo a mão no bolso do povo", disse, acusando o opositor de corrupção. Lula, por sua vez, disse haver "mentira no ar", já que Bolsonaro prometeu manter o auxílio em R$ 600, apesar disso não estar previsto na Lei de Diretrizes Orçamentárias - que registra uma queda para R$ 400 no benefício a partir de 2023. Assim como Bolsonaro, Lula não explicou como conseguirá financiar o benefício. Ao contrário do anunciado pelo PT em junho deste ano, o partido também recuou em divulgar seu plano completo de governo "aos moldes das candidaturas modernas, enxuto, didático e inovador, com cerca de 50 páginas", prometido para o mês de setembro. A equipe do presidente entregou ao Tribunal Superior Eleitoral um documento de 21 páginas, onde não aparecem algumas de suas promessas de campanha, como isenção do imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil. O presidente foi alvo de questionamento de apoiadores históricos, como a deputada Jandira Feghali, ao se esquivar de uma pergunta sobre equilíbrio entre homens e mulheres em seus ministérios, caso eleito. Questionado no debate da Band sobre igualdade de gênero no comando dos ministérios, Lula disse que "vai indicar as pessoas que têm capacidade para assumir determinados cargos". "Não sou de assumir compromisso, de me comprometer a fazer metade, indicar religioso, indicar mulher, indicar negra, indicar homem", afirmou. Ao Estadão, Feghali disse que Lula poderia ter sido mais contundente. "Lula sempre teve uma política feminista no governo dele. Poderia ter afirmado um porcentual mínimo, não precisava ter ficado na defensiva. Tem que ter resposta concreta", disse a parlamentar. Em sua resposta, Lula se disse "orgulhoso" por ter indicado Joaquim Barbosa, primeiro ministro negro do STF, e a ministra Carmen Lúcia. Recentemente, no Maranhão, o petista afirmou que vai recriar o Ministério das Mulheres, extinto por Bolsonaro. "Não vai ser mais uma secretaria, vai ser um ministério. As mulheres são maioria nesse país, e já provaram que têm competência para exercer qualquer função e em qualquer lugar do mundo e aqui no Brasil também. Eu já tive o prazer de ter sido o presidente que indicou a primeira mulher para governar esse país."
2022-09-28
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62796003
brasil
'Faria limers' votam com o bolso?
Como a disputa eleitoral está sendo vivida no centro financeiro do país, a avenida Faria Lima, em São Paulo? Os executivos do mercado financeiro que votaram em Jair Bolsonaro em 2018 seguem apoiando o governo? E o que define o voto dos "faria limers", como são chamadas as pessoas que trabalham no setor? No episódio, são entrevistadas pessoas que tornam a Faria Lima, uma avenida com menos de 5 quilômetros de extensão, uma das maiores forças no mundo político brasileiro. Apresentado pelo repórter João Fellet, o podcast aborda como pessoas de diferentes grupos sociais — como evangélicos, agricultores e brasileiros que se identificam como pardos — se posicionam diante de conflitos políticos atuais. Fim do Matérias recomendadas "Eu não tenho a menor dúvida que 80% da Faria Lima votaria no Bolsonaro", disse o economista Renato Breia, um dos entrevistados no episódio. Breia é sócio fundador da Nord Research, uma empresa com 70 funcionários que orienta investidores sobre onde colocar seu dinheiro. Breia trabalha no setor há 17 anos e, ao longo de quase toda a vida, morou, estudou e trabalhou nos arredores da avenida Faria Lima. Quando ele começou na profissão, o Brasil era presidido por Luiz Inácio Lula da Silva. Breia conta que muita gente na Faria Lima ficou preocupada quando Lula se elegeu, em 2002. Afinal, Lula se projetou na política nas décadas anteriores com um discurso bastante crítico aos banqueiros e a promessa de, se eleito, tirar dos ricos para dar aos pobres. Mas o Lula que assumiu a Presidência se mostrou bem diferente, diz Breia. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Quando ele sinaliza que vai trabalhar também pro que o mercado quer ouvir, a bolsa dispara, o juro cai e o mercado financeiro, de alguma forma, se encanta com essa história", lembra o economista. Na época, o Brasil vivia um momento favorável no mercado internacional: o apetite da China elevou os preços de matérias-primas que o Brasil exporta em grande quantidade, como a soja e o minério de ferro. O crescimento da economia e o equilíbrio das contas públicas fez com que, em 2008, o Brasil ganhasse o status de investment grade pela primeira vez na história. Essa é uma classificação dada por agências financeiras aos países que elas julguem apresentar risco quase zero de dar calote em investidores. Apesar disso tudo, Breia diz que algo na postura econômica do governo não cheirava bem pra ele. "A estratégia do governo foi eleger os campeões nacionais e botar dinheiro nas grandes e principais empresas, pra isso fazer um efeito em cadeia, de investimentos", afirma. A política das campeãs nacionais foi uma das marcas do governo Lula e deixou sob os holofotes o BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social). Naqueles anos, o banco aumentou bastante seus empréstimos a grandes empresas nacionais, que com esses recursos conseguiram comprar companhias rivais e dominar seus setores. O BNDES também ampliou seus financiamentos para que empreiteiras brasileiras fizessem obras no exterior. O governo dizia que essas ações buscavam injetar recursos na economia brasileira e fortalecer companhias nacionais pra que elas fossem capazes de competir com grandes empresas estrangeiras. Mas houve questionamentos sobre o porquê de algumas empresas, e não outras, terem sido escolhidas pra receber os empréstimos. Também surgiram críticas de que essa política estaria causando desequilíbrios no mercado. O papel turbinado do BNDES na economia e as denúncias investigadas pela Lava Jato foram azedando a relação do mercado com o governo do PT. E essa relação pioraria ainda mais no governo de Dilma Rousseff. "O ambiente para o mercado financeiro durante o período da Dilma foi muito ruim: você pode pegar a performance da bolsa, foi péssima, emissões de renda fixa, vários negócios, grandes empresas quebraram ou desapareceram, foram compradas por nada", afirma. Para Breia, a lembrança do governo Dilma é um dos fatores que levam executivos do mercado financeiro a optar por Bolsonaro nesta eleição. Ainda assim, ele diz que a maior parte da Faria Lima vai votar no Bolsonaro não porque esteja totalmente alinhada com o presidente, mas sim por achar que ele é menos ruim do que o Lula. "Não é assim: 'eu vou votar porque esse governo foi muito bem'. Não, ele é a melhor opção, dadas as opções", afirma. Para Breia, um novo governo Bolsonaro tende a ser melhor para a economia do que um retorno de Lula. Mas nem todos na Faria Lima acham que a economia é o principal fator por trás dos votos que Bolsonaro recebe entre os executivos do mercado. "Existe um discurso muito conservador na Faria Lima que saiu da toca. Esse discurso do Bolsonaro de 'fuzilar a petralhada', esse discurso homofóbico, misógino, sobre a família", diz César (nome fictício), um alto executivo que preferiu não ser identificado. Ele diz que já teve problemas por anunciar que votaria em Lula nesta eleição. "Teve gente que falou: 'Como você pode cuidar do dinheiro das pessoas se você vota num partido da esquerda?'", ele conta. Para César, "o mercado é um ambiente essencialmente masculino, o mercado é um ambiente de elite", e esses fatores ajudam a explicar o apoio a Bolsonaro no setor. Ele conta que, no início da campanha eleitoral de 2018, a Faria Lima estava apoiando o então candidato do PSDB à Presidência, Geraldo Alckmin — que hoje está no PSB e é vice na chapa encabeçada por Lula. A Faria Lima passou a apoiar Bolsonaro quando ele crescia nas pesquisas e depois de ele anunciar que um executivo do mercado financeiro, o economista liberal Paulo Guedes, seria o chefe de sua equipe econômica. "Eu acho que o mercado ignorou e fingiu que acreditava no discurso do Bolsonaro. Você tem que ser muito inocente para acreditar que o Bolsonaro tem ideais liberais ou que o Paulo Paulo Guedes vai tomar conta", diz. O economista tem várias críticas ao PT, mas acha que Bolsonaro representa um risco bem maior ao país. "O que me afasta do Bolsonaro inicialmente é a ameaça à democracia, que eu sempre enxerguei, desde 2018. Mas não é só isso: Bolsonaro representa tudo que eu desprezo", afirma. Mas César diz que a maioria das pessoas na Faria Lima não considera que Bolsonaro ponha em risco a democracia no Brasil. E mesmo se houvesse um golpe de Estado, ele afirma que o mercado reagiria mal inicialmente, mas acabaria se adaptando ao novo cenário. "Se o investidor local, brasileiro, está ganhando dinheiro, está tudo certo", afirma. "Essa caricatura de que 'se meu dinheiro tá tranquilo, dane-se o resto', ela é bem verdadeira. É bem por aí mesmo", afirma.
2022-09-28
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63016047
brasil
Eleitores de Ciro se queixam de pressão por voto útil em Lula: 'Terrorismo eleitoral'
"Na reta final da campanha mais vazia da história, embalam tudo no falso argumento do 'voto útil'. Com esta pregação, querem eliminar a liberdade das pessoas de votarem, no regime de dois turnos, primeiro no candidato que mais representa seus valores, e, se for o caso, de optarem depois por aquele que mais se aproxime de suas ideias", disse o candidato à presidência Ciro Gomes (PDT) durante seu Manifesto à Nação, exibido na segunda-feira (26) em seu canal do YouTube. O voto útil, citado pelo político e cada vez mais presente no debate eleitoral, consiste em desistir de apoiar seu candidato preferido para apostar em alguém que pode ter mais chances de vencer as eleições — ou para evitar um segundo turno. Terceiro colocado nas últimas pesquisas eleitorais, Ciro tem seu eleitorado como o maior alvo do "voto útil", principalmente por apoiadores de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) que tentam convencer esse grupo a apoiar o ex-presidente para evitar um segundo turno com Jair Bolsonaro (PL). Outro argumento usado por esse grupo é o de que uma eventual vitória de Lula no primeiro turno daria a Bolsonaro menos razões para gerar dúvidas sobre as urnas, já que a escolha do presidente aconteceria junto com a eleição de milhares de parlamentares pelo país, enquanto em um eventual segundo turno, a decisão seria apenas entre dois candidatos — com exceção de algumas das disputas estaduais. Mas, do outro lado, eleitores do Ciro que não abrem mão do apoio ao político ouvidos pela BBC News Brasil citaram que consideram o apelo para mudar de lado "antidemocrático" e "desrespeitoso". Fim do Matérias recomendadas Apoiadora de Ciro Gomes desde 2018, Priscila Lopes, 38, é residente de Belém do Pará e trabalha como professora de inglês. Na avaliação dela, as tentativas de transformar votos de eleitores do Ciro em apoio ao PT nas urnas tem sido incessante e até violenta. "A campanha de Lula, querendo fazê-lo presidente a qualquer custo, tem batido demais no Ciro. Também vejo artistas e jornalistas falando coisas bem graves contra a candidatura. Isso está estimulando a militância do PT, que historicamente nunca foi violenta, a agir como bolsonaristas." Priscila conta que uma amiga, que estava com o carro adesivado em apoio a Ciro, teve seu pneu furado. "Em outro episódio, estava militando com amigos em uma feira, quando ouvimos gritos de uma feirante que dizia que estávamos colocando o Bolsonaro no poder enquanto levantava um facão." "Assim como Bolsonaro incita o ódio contra petistas, a campanha do Lula faz o mesmo conosco, apoiadores do Ciro. Como eu vou votar em um candidato se a militância dele já me xingou de tudo que é ruim? Em comparação, nunca fui hostilizada por bolsonarista, apesar de saber que eles são violentos." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Priscila não é filiada ao PDT, nem ocupa cargo direto na campanha — ela atua como militante voluntária. Ela conta ter começado a pesquisar mais sobre o político durante as eleições de 2018, enquanto morava em Rio Branco, no Acre, e acompanhou uma onda bolsonarista tomar conta do estado. No segundo turno, Jair Bolsonaro foi a escolha de 77,22% do eleitorado no Acre. "Ele (Ciro) tem oscilado nas pesquisas em até 9%, e isso representa muita gente. A gente tá votando no projeto dele, nas ideias, e acho que ele está preparado. Não vejo o Ciro ou qualquer político como um deus, mas como alguém que é contratado pelo povo." Embora tenha feito esforço para virar votos para Fernando Haddad (PT) no segundo turno de 2018, a professora afirma que não irá votar no ex-presidente Lula ainda que Ciro não avance para o segundo turno. "Lula fugiu do debate, ou seja, fugiu da entrevista de emprego, não respeita o eleitor nem a democracia, então não merece nossos votos. Bolsonaro parece estar envolvido em corrupção, Ciro apontou rapidamente algumas no debate e ele teve direito de resposta, porém não se defendeu de nada. Faltando menos de uma semana eleição e o único candidato que apresenta propostas e explica como vai fazê-las é Ciro Gomes." Já a autônoma Debora Vanessa da Silva, de 39 anos, moradora de São Bernardo do Campo, em São Paulo, é eleitora de Ciro desde 2002 e passou a militar pela sua campanha política em 2020. "Apesar de estar mais ativa na militância há alguns anos, só agora comecei a compartilhar mais coisas do Ciro nas redes sociais", conta Debora. "Depois de postar um vídeo sobre propostas, uma amiga minha petista disse que concordava com as ideias, mas que eu tinha que votar no Lula no primeiro turno porque ele seria o único capaz de tirar Bolsonaro. Não acho que é verdade. Em um segundo turno contra Bolsonaro, além do Lula, Tebet e Ciro também venceriam." Os apelos dos amigos pelo voto útil, embora constantes, têm sido mais comedidos, de acordo com Debora. Já com desconhecidos na internet, ou quando ela e amigos exercem a militância na rua, ela conta ter sofrido violência verbal. "O desrespeito pelo voto, para a minha surpresa, não veio pela parte bolsonarista. A falta de respeito com a minha escolha vem de pessoas do campo progressista." Debora é enfática ao dizer que rechaça a ideia de voto útil e a considera antidemocrática. "Um dos princípios que norteiam a democracia é a pluralidade política. É a liberdade de manifestar pensamentos, convicções, licitamente. Está na constituição. O valor do voto é igual para todo mundo. A partir do momento que alguém me impõe que eu tenho que votar em determinado candidato e me constrange por isso eu me sinto desrespeitada." Assim como Priscila, ela diz que não pretende votar no segundo turno se Ciro não estiver mais na disputa. "Depois de todo desrespeito e violência com que tenho sido tratada por declarar apoio ao Ciro Gomes, se ele não estiver no segundo turno, nem saio de casa pra votar. Não faria sentido apoiar quem alega combater o fascismo, cerceando o meu direito de escolha, assim como não faria sentido votar no atual governante, pois ele defende tudo que abomino." O bancário e professor universitário Alisson Franco do Couto, 29 anos, morador de Ortigueira, no Paraná, conta ter conhecido Ciro Gomes em 2016, quando ele participava de palestras em universidades. "Ele falava contra o impeachment da Dilma, que eu também era contra, e achei interessante o diagnóstico que ele fazia dos problemas. Foi aí que passei a estudar a trajetória e propostas dele. Deve ter pouquíssimo material dele no YouTube que eu não assisti, e já li todos os livros", conta. Alisson explica que não está tão engajado na militância quanto em 2018 por conta das limitações impostas pelo seu trabalho atual. Mas na internet, o bancário recebe e acompanha os pedidos e argumentos contra o voto útil. "Eu acho ultrajante, uma forma de terrorismo eleitoral. Para a militância do PT, ou você apoia eles, ou você tá do lado do fascismo. Eles querem nos fazer acreditar que estamos sempre lutando contra alguma emergência que não permite a gente votar em outro que não seja o PT." Alisson rechaça os diagnósticos recentes de analistas políticos que dizem que Ciro está flertando com o bolsonarismo ao dizer, por exemplo, durante a gravação de um podcast, que "Lula sempre foi fascistóide", ou afirma, sem apresentar evidências, que o partido Psol é financiado pelo bilionário húngaro George Soros. "O Ciro é quem mais apoiou o impeachment contra o Bolsonaro, já o PT não teve movimentação contra isso. Estamos sempre do lado do estado democrático de direito, mas a militância do Lula tenta pinçar uma coisa ou outra para tentar nos empurrar para um buraco." O apoiador diz que ainda não considera um segundo turno sem Ciro. "Neste momento estou direcionando todas as minhas forças para fazer as pessoas verem que essa disputa não vai levar a gente para lugar nenhum."
2022-09-27
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63041133
brasil
Teste seus conhecimentos sobre as eleições com nosso quiz
Com a chegada do 1º turno das eleições 2022, informações falsas circulam sobre o processo eleitoral, o voto eletrônico e até os cargos políticos que serão eleitos esse ano circulam nas redes sociais. E, a seguir, um quiz para você testar seus conhecimentos:
2022-09-27
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63013386
brasil
Assassinato em bar no Ceará reacende temor de violência política a poucos dias da eleição
O assassinato de um homem na cidade de Cascavel, a 64 quilômetros de Fortaleza, está sendo investigado pela polícia cearense como mais um possível caso de violência com motivações políticas no Brasil. O crime aconteceu a poucos dias do primeiro turno das eleições, que será realizado no domingo (02/10). Se essa motivação for confirmada pela investigação, esse terá sido o terceiro caso de homicídio por divergências políticas registrado no período eleitoral deste ano. As duas vítimas anteriores eram eleitoras do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) — assim como o homem morto em Cacavel. Nos dois casos anteriores, os criminosos eram eleitores do presidente Jair Bolsonaro (PL), que concorre à reeleição. O homicídio no interior do Ceará ocorreu neste sábado em um bar da cidade. Segundo nota da Polícia Civil enviada à BBC News Brasil, "com base nas informações colhidas no local, a motivação do crime estaria relacionada à discussão política". Fim do Matérias recomendadas A polícia não afirmou quais políticos teriam sido citados durante o crime. Mas, segundo o jornal cearense O Povo, que ouviu relatos de testemunhas, um homem chegou ao local perguntando se havia algum eleitor de Lula no estabelecimento. O caseiro Antônio Carlos Silva de Lima, de 39 anos, teria confirmado que iria votar do petista. O suspeito, que seria bolsonarista, deu uma facada na costela de Lima. O caseiro foi levado a um hospital, mas não resistiu ao ferimento e morreu. Ele foi enterrado no domingo, e deixa uma filha de 10 anos. Segundo a polícia cearense, o suspeito tem 59 anos e fugiu do local do crime. Policiais da região estão realizando buscas por ele. A BBC News Brasil consultou a assessoria de imprensa da campanha de Bolsonaro sobre o caso, mas não obteve resposta. A reportagem também entrou em contato com Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mas o órgão não se pronunciou sobre o crime. Já a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, falou sobre o homicídio em uma publicação no Twitter. "É fanatismo e ódio estimulados por um homem desumano e cruel", disse, em referência a Bolsonaro. Em 2018, Jair Bolsonaro afirmou que seu grupo político iria "fuzilar a petralhada". No feriado de 7 de setembro, o presidente se referiu ao adversário como "quadrilheiro" e afirmou que o petista deveria ser "extirpado da vida pública". "Todos são amigos do quadrilheiro de nove dedos que disputa a eleição no Brasil. Esse tipo de gente tem que ser extirpado da vida pública", afirmou. Lula lidera as pesquisas de intenção de voto. Em último levantamento do instituto Ipec, divulgado nesta segunda-feira, ele aparece com 48% das intenções de voto, ante 31% de Bolsonaro. A pesquisa confirma a possibilidade de o petista ganhar as eleições em primeiro turno no próximo domingo, tornando-se presidente do Brasil pela terceira vez. Nos últimos meses, outros dois assassinatos de eleitores petistas foram atribuídos pela polícia a apoiadores de Bolsonaro. O primeiro deles aconteceu no dia 10 de julho, em Foz do Iguaçu, no Paraná. A vítima, o guarda municipal Marcelo Aloizio de Arruda, também atuava como dirigente do PT na cidade. De acordo com as investigações, o crime aconteceu em um clube onde Arruda comemorava seu aniversário de 50 anos de idade com uma festa temática em homenagem ao PT e a Lula. O agente penal federal Jorge Guaranho foi acusado de cometer o crime. Ele teria invadido a festa aos gritos de "aqui é Bolsonaro", e alvejando Arruda com vários disparos. O guarda reagiu, atingindo o Guaranho, que sobreviveu. Atualmente, ele está preso e aguarda julgamento. Outro assassinato de um eleitor de Lula aconteceu em 7 de setembro na cidade de Confresa, a 1.160 km de Cuiabá, no Mato Grosso. Segundo a polícia, o trabalhador rural Benedito Cardoso dos Santos, 42, foi assassinado por Rafael Silva de Oliveira, 24, com cerca de 70 golpes de faca e machado. A motivação do crime foi uma discussão sobre política, de acordo com a polícia. A vítima apoiava Lula, enquanto Oliveira vota em Bolsonaro. Segundo o portal G1, Oliveira foi diagnosticado com esquizofrenia. O Ministério Público pediu que o suspeito seja avaliado por uma equipe especializada. Ele foi denunciado pela Promotoria por homicídio triplamente qualificado - por motivo fútil e meio cruel.
2022-09-26
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63042374
brasil
Vídeo, O Brasil do olhar estrangeiro: parte 2, 'o Brasil brasileiro'Duration, 17,15
Como o mundo enxerga o Brasil? De onde vem o clichê do país do futebol, do samba e Carnaval? Nessa série especial, dividida em seis episódios, a reportagem da BBC News Brasil mergulha em 5 séculos de história para entender como a imagem do país foi construída lá fora – e como mudou com o tempo. Do período colonial a este século 21, passando pela construção da imagem no pós-independência, as expedições internacionais de D. Pedro 2º, a questão do sanitarismo no início da República e o Brasil como “túmulo de estrangeiros”, o luso-tropicalismo e o mito da democracia racial, a aproximação dos EUA via Política de Boa Vizinhança dos anos 1930 (com seus desdobramentos no cinema), o fenômeno da Bossa Nova, o período da ditadura e a redemocratização. Este segundo episódio aborda o período do primeiro e segundo reinados, quando o Brasil descrito pelos viajantes durante a colônia se encontra com o Brasil “brasileiro”, independente, aquele que começa a escrever sua própria história e tenta passar a imagem de país ordeiro e que caminha para a modernização. O sinal que se envia ao mundo e aquele que chega do outro lado, entretanto, nem sempre são coincidentes. Que o diga o naturalista inglês Charles Darwin, que saiu do Brasil dos anos 1830 com uma impressão não tão favorável do país. Acompanhe nossa repórter Camilla Veras Mota nesse mergulho na nossa história.
2022-09-26
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63041848
brasil
Vídeo, Por que EUA estão observando de perto eleição no BrasilDuration, 12,53
Não há muitas coisas em que ferrenhos opositores em Washington – como o estrategista de Donald Trump Steve Bannon e o senador socialista Bernie Sanders – consigam concordar. Mas ambos, e muitos outros políticos e agentes públicos, reconhecem de modo unânime que há muito em jogo quando os brasileiros forem às urnas. E embora autoridades brasileiras nos EUA se esquivem de comentar ou digam que o pleito é um "não assunto" na relação entre os dois países, em uma recente recepção na capital americana em comemoração aos 200 anos da independência do Brasil esse era justamente o pano de fundo da maior parte das conversas. Neste vídeo, nossa correspondente em Washington, Mariana Sanches, explica o que está em jogo para os Estados Unidos na eleição presidencial brasileira. Assista e confira.
2022-09-26
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63041846
brasil
Os dois lados do voto útil, que pode definir eleição no 1º turno
Abrir mão de votar no seu candidato preferido e optar por outro para evitar um segundo turno — essa é uma definição possível para o "voto útil", termo que tem estado cada vez mais presente no debate político nesta reta final das eleições para presidente. "Em uma disputa como a que vemos agora, em determinado momento, o eleitor começa a decidir não quem ele quer que ganhe, mas quem ele quer que não ganhe — ele elenca quem representa o maior mal para ele. Então, ele abandona uma opção que havia feito, em um candidato no qual acreditava, mas que percebe que não vai ganhar, e vota com a expectativa de anular outro candidato", explica o cientista político Carlos Melo, professor do Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa). Com Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro (PL) liderando as intenções de voto nas últimas pesquisas eleitorais, feitas por institutos como Ipec, DataFolha e Quaest, o apelo crescente pelo voto útil tem vindo principalmente dos eleitores do petista, que tentam convencer, por exemplo, o eleitorado de Ciro Gomes (PDT) a mudar de escolha para que um segundo turno com o candidato da direita não aconteça. Segundo pesquisa Datafolha divulgada na última quinta-feira (22/09), não é possível afirmar se a eleição será ou não decidida no primeiro turno. O levantamento mostra que o ex-presidente Lula tem 47% das intenções de voto no primeiro turno da eleição presidencial, seguido por Bolsonaro, com 33%. O terceiro mais bem cotado é Ciro, com 7%. Simone Tebet (MDB) ficou em quarto lugar, com 5%. Fim do Matérias recomendadas "Nas eleições de 2018, Ciro Gomes pedia o voto útil, e chegou a crescer bastante na reta final", lembra Melo. "Ele dizia que não tinha resistência tão grande quanto o PT, que enfrentava uma onda de desaprovação, e que seria capaz de vencer Jair Bolsonaro. Mas neste ano, o jogo se inverteu, e agora ele usa argumentos contra o voto útil." O professor explica que um dos argumentos usados em oposição ao voto útil é a ideia de que o apelo não seria democrático. "Na minha visão, isso não é verdade, porque a decisão final ainda é do eleitor. Ninguém pode votar pelo outro. Agora, é legítimo pedir o voto útil? Considero que faz parte do jogo." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Outra questão levantada por quem defende o voto ideológico e está fiel a seu candidato de escolha é o possível enfraquecimento da corrente de ideias desse político caso o seu percentual de votos não seja representativo. Seria, na visão do grupo, uma forma de fazer com o que o presidente eleito, quem quer que seja, olhe para as pautas daquele que foi derrotado. Para Eduardo Miranda, doutor em ciência política e professor da Escola de Educação e Humanidades da PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná), o argumento faz sentido. "Essa é exatamente a ideia que permeia a criação de um segundo turno eleitoral — para que no primeiro, todos os candidatos tenham a chance de lançar suas ideias em um país tão complexo e enorme quanto o Brasil. O segundo turno seria o momento de alinhar parcerias com as ideias que foram apresentadas no primeiro e consolidar as alianças que vão sustentar o governo." A professora Maria do Socorro Braga, que leciona Ciência Política na UFSCar, também enxerga o movimento como positivo. "O eleitorado brasileiro foi, por muito tempo, avaliado como um grupo que não cria vinculações programáticas no sentido de identidade partidária ou de ideologias, e hoje o que a gente está observando é que existem grupos mais fiéis e de diferentes correntes, o que é de extrema importância para a democracia." Braga avalia que o maior grupo consistente em adotar uma determinada ala política é o que apoia o ex-presidente Lula, uma construção de identificação com o eleitorado que vem de anos de campanhas políticas e do PT no poder. "Mas existe também eleitores que não deixam de apoiar Jair Bolsonaro por nada, e em menor escala, os 'ciristas', que escolhem fazer o contrário do voto útil: é um setor que prefere apoiar as ideias programáticas do candidato [sem considerar as pesquisas eleitorais]." Já entre os argumentos dos que lutam para converter votos de candidatos com menos chances ao pleito em voto útil, está o de que um voto em Ciro Gomes ou Simone Tebet, por exemplo, que têm menos chances de ganhar as eleições, seria "jogar o voto no lixo''. "Se olharmos para as teorias da ciência política, o argumento da escolha racional talvez explique melhor o que está acontecendo. A interpretação da teoria seria a leitura de que somos ambiciosos, então queremos aproveitar o máximo possível o nosso voto, e assim dá-lo a alguém que é capaz de vencer a eleição. Então a tendência seria, nessa eleição tão apertada, deixar de votar em quem tem menos chance", aponta Braga. Na avaliação dos especialistas, uma eventual vitória de Lula no primeiro turno daria a Bolsonaro menos razões para gerar dúvidas sobre as urnas, já que a escolha do presidente aconteceria junto com a eleição de milhares de parlamentares pelo país, enquanto em um eventual segundo turno, a decisão seria apenas entre dois candidatos — com exceção de algumas das disputas estaduais. "Mas, ainda mais forte do que isso, acho que está relacionado aos posicionamentos do atual presidente, que não só desclassifica as urnas, que são reconhecidas internacionalmente e que foram ferramenta presente em toda sua carreira política, mas o processo democrático como um todo", avalia Eduardo Miranda, professor dá PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná). De acordo com os especialistas consultados pela BBC News Brasil, o voto útil tem o poder, nesta reta final, de definir as eleições. "Historicamente, o voto útil teve um papel importante, mas de coadjuvante, ajudando mais os candidatos que estavam em segundo lugar, como nas eleições de 1989, no qual Lula ultrapassou (Leonel) Brizola e ficou em segundo lugar, mas perdeu para Fernando Collor, e de 2014, quando Marina (Silva) perdeu parte do seu eleitorado para Aécio Neves. Agora, pela primeira vez, o voto útil pode ajudar a determinar as eleições em primeiro turno." Um dos fatores que ajudam o voto útil a ganhar importância, na visão do especialista, é o fato de ser uma disputa mais acirrada entre dois candidatos que já ocuparam a Presidência. "Essas candidaturas fortes fazem com que o primeiro turno seja quase como um desenho do segundo, já que eles são, desde o começo da eleição, os candidatos que todos apostavam que realmente disputariam o cargo." Na avaliação de Miranda, o ex-presidente Lula é quem tende a receber a vantagem dos possíveis votos úteis decididos a poucos dias das eleições, já que as pesquisas indicam que falta um percentual menor para que ele consiga vencer em primeiro turno. "Ele é quem consegue abocanhar a maior parte do eleitorado tanto de Ciro Gomes quanto de Simone Tebet, e por isso deve sair na frente de Bolsonaro na hora de conseguir esses votos."
2022-09-26
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62999026
brasil
Vídeo, O que é ser comunista?Duration, 15,34
A "lista de novos comunistas" é atualizada quase diariamente nas redes sociais brasileiras: Rede Globo, Leonardo DiCaprio, Supremo Tribunal Federal, MBL, The Economist, Bill Gates… Você já deve ter se deparado com um meme parecido com o descrito acima inúmeras vezes nos últimos anos — e nem é preciso insistir que nenhuma das pessoas ou instituições citadas é realmente comunista. A brincadeira, no entanto, ilustra a polarização que domina a política brasileira nos últimos anos e como o vocábulo comunista virou uma espécie de xingamento usado por alguns adeptos da direita no Brasil — mesmo quando o alvo está no lado oposto do comunismo no espectro político. Para além dos memes e ataques contra adversários, o que realmente significa ser comunista? Quais as origens da ideologia política que inspirou ideais, revoluções e massacres ao redor do mundo? Neste vídeo, nosso repórter Matheus Magenta traça um panorama das origens das ideias comunistas, passando pelas diversas vertentes em que a ideologia se dividiu e explicando como a ideologia impactou a política brasileira.
2022-09-26
https://www.bbc.com/portuguese/media-63036700
brasil
Como apagão de dados sobre vacinação no Brasil traz de volta ameaça de doenças já controladas
Não há dúvidas entre os profissionais de saúde e pesquisadores que as taxas de vacinação vêm caindo de forma consistente no Brasil durante os últimos anos. Na avaliação deles, porém, há um problema pouco discutido nesse setor que complica ainda mais as coisas: a falta de dados confiáveis e atualizados sobre quantos brasileiros realmente tomaram as doses dos imunizantes disponíveis na rede pública de cada município. Na base de dados do Sistema Único de Saúde, o DataSUS, é possível encontrar mais de uma dezena de cidades cuja cobertura vacinal nem chega aos 10% — em mais de 900 delas, o indíce não alcança os 50%. Os gestores de saúde desses locais, porém, argumentam que as estatísticas oficiais não correspondem à realidade e que essa taxa, na prática, é bem maior. O problema, dizem eles, está no excesso de burocracia, na falta de equipes e nas falhas de conexão com a internet ou acesso aos sistemas de informática mais modernos e conectados. "É pouco provável que um município brasileiro tenha apenas 3 ou 5% de cobertura vacinal. O registro de dados simplesmente não funciona nesse país", atesta a médica Isabella Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm). Fim do Matérias recomendadas Os especialistas apontam que esse descompasso entre os números oficiais e a realidade prejudica a tomada de decisões e a criação de políticas públicas mais certeiras na área de saúde — o que aumenta a ameaça de surtos de doenças erradicadas, controladas ou com poucos casos, como poliomielite, sarampo e febre amarela. "Sem esses dados consolidados, não conhecemos a realidade do país e não é possível fazer o planejamento ou elaborar o orçamento", pontua Wilames Freire, presidente do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). Ou seja: se os dados sobre a cobertura vacinal das cidades não batem, fica mais difícil para os governos municipais, estaduais e federal reforçarem as campanhas de comunicação, enviarem mais doses para um lugar específico, conversarem com os profissionais daquele local… "Sem informações fidedignas, não temos condições de tomar decisões em tempo hábil", ele chama a atenção. E um apagão de dados, por sua vez, abre a possibilidade de doenças que estão erradicadas, como a poliomielite, ou relativamente controladas, como o sarampo, voltem a representar uma ameaça. O presidente do Conasems explica os detalhes do processo de vacinação no país. "A pessoa chega no posto, é acolhida e conferimos se ela possui o Cartão Nacional de Saúde. Se tem, segue em frente. Se não, esse documento precisa ser produzido ali na hora." "Após a vacinação, os dados daquele indivíduo e das vacinas que ele tomou devem ser inseridos no sistema", continua Freire. E é justamente aí que começa o problema. "Às vezes, pelo acúmulo de trabalho, a equipe deixa para atualizar todos os dados só no final do dia", relata. Segundo o presidente do Conasems, muitos postos de saúde também têm dificuldades nessa etapa por falta de internet ou conexão lenta. "Daí todas aquelas fichas de papel são encaminhadas para a sede da secretaria de saúde, e um técnico fica responsável por inserir os dados, paciente por paciente, no sistema", diz. "E isso quando ele consegue fazer esse trabalho. Não raro, o sistema trava, não abre no tempo adequado, não se comunica com outras bases…", lista. Willames diz que, "como a prioridade das equipes é vacinar", muitas vezes essa tarefa burocrática de compilar os dados fica em segundo plano e não é feita a tempo. "Nas primeiras fases da vacinação contra a covid-19, vi alguns municípios com mais de 100 mil fichas paradas que precisavam ser digitalizadas", lembra. Foram considerados todos os imunizantes disponíveis na rede pública, que protegem contra doenças como poliomielite, sarampo, caxumba, rubéola e pneumonia, por exemplo. No dia 7 de setembro de 2022, os dez municípios que apareciam com as piores taxas de imunização no ano passado eram: Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A BBC News Brasil entrou em contato com os gabinetes de prefeitos, as secretarias de saúde ou as assessorias de comunicação dos dez municípios listados acima para checar essas porcentagens e saber se, na visão dessas autoridades públicas, elas representam a realidade. Desses, quatro prefeituras enviaram respostas até a publicação desta reportagem. A enfermeira Sofia Marinho, que é coordenadora de imunização em Trajano de Moraes desde maio deste ano, informou que "o município não inseria as doses aplicadas no sistema, o que influenciou nesses dados baixos das coberturas vacinais". Ela também apontou que há uma diferença entre os sistemas de informática de acordo com cada local de vacinação — na sede da prefeitura, por exemplo, se usa um programa de computador, nos distritos mais afastados, outro. "Estamos com alguns problemas na migração dos dados dos sistemas, o que também pode ser um dos motivos por trás desses números, embora a nossa realidade seja totalmente diferente", completa. A Secretaria de Saúde de Taquara informou que "houve um problema técnico no envio de dados de vacinação do município ao Ministério da Saúde e isso já está sendo corrigido". A enfermeira Carolline Azevedo Caetano, diretora de Vigilância em Saúde de Bom Jardim, admitiu que o município encontra-se com uma cobertura insatisfatória, "mas por causa dos sistemas de informação, e não da vacinação propriamente dita". "Tivemos alguns problemas com os recursos humanos responsáveis pela digitação dos dados, situação que já está sendo resolvida", respondeu. Por fim, a enfermeira Glaucimeire Moura, coordenadora de Atenção Primária na cidade de Murici dos Portelas, declarou que as porcentagens que aparecem no DataSUS "não condizem com a realidade". "Passamos um tempo com problemas no sistema e as vacinas não puderam ser registradas", relatou. Ela também disse que boa parte das informações de cobertura vacinal do município está registrada em livros de papel. Moura entende que colocar as informações no sistema é relativamente fácil, mas há barreiras na implantação dessa tecnologia e falhas na internet, especialmente nas zonas rurais. Questionado pela reportagem, o Ministério da Saúde informou que "não foram identificadas divergências nas informações dos dados sobre as coberturas vacinais referentes ao ano de 2021 e os registros nos sistemas do DataSUS". "De todo modo, a pasta orienta aos municípios que identificarem inconsistência nos dados que reportem [essas falhas] ao Programa Nacional de Imunizações (PNI)." Freire, do Conasems, avalia que o PNI "trouxe grandes benefícios à população brasileira", mas apresenta "problemas históricos". "E eles estão principalmente nas bases de dados e na integração entre elas. O Ministério da Saúde possui mais de 300 sistemas de informação", calcula. Na avaliação dele, o descompasso entre os dados dos municípios e do Governo Federal "não é surpresa". "No momento, as prefeituras estão trabalhando com quatro campanhas de vacinação simultâneas: covid, sarampo, pólio e múltiplas doses", conta. "E as equipes das Unidades Básicas de Saúde são pequenas para lidar com tantas demandas." Ballalai concorda e vê a situação como "uma antiga pedra no sapato". "Esses sistemas já mudaram uma porção de vezes e, mesmo assim, ainda apresentam muitos erros e atrasos", critica. "Um processo burocrático desses pode ocupar profissionais que vacinavam as pessoas, mas ficam sentados na frente de um computador preenchendo fichas", lamenta. E todo esse cenário, por sua vez, prejudica as políticas de saúde pública, avaliam os entrevistados. Ainda que reconheçam esse grande descompasso nos dados, os especialistas entendem que a cobertura vacinal vem caindo de forma consistente no país como um todo. O número de brasileiros imunizados contra a poliomielite, por exemplo, desabou de 99% em 2010 para 69% no ano passado. A aplicação da primeira dose da tríplice viral (que protege contra sarampo, caxumba e rubéola) saiu de 100% há dez anos para 73% em 2021. Em outras palavras, a queda nacional no número de vacinados é real e preocupante — mas não dá pra saber com exatidão como isso está acontecendo nas cidades, especialmente nas de pequeno porte ou com menos estrutura. "Sabemos que existe tecnologia disponível para acompanhar a cobertura não apenas de Estados e cidades, mas de cada sala de vacinação do país", complementa Freire. E, embora a inconsistência nos sistemas de informática ajude a entender parte dessa situação, ela é apenas uma das faces de um problema bem maior. "Vemos um desabastecimento de doses dos imunizantes em alguns lugares, a falta de campanhas nacionais adequadas e o aumento de notícias falsas ou até de um movimento antivacina no país", acrescenta Freire. E, para elevar novamente as coberturas vacinais no país, é preciso lidar adequadamente com todas essas questões, concluem os especialistas.
2022-09-25
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62980100
brasil
De 'asco' pelo presidente a confiança na reeleição: o que mudou em grupo que foi à posse de Bolsonaro
Em 1° de janeiro de 2019, milhares de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro de diferentes regiões do país acompanharam a posse dele em Brasília. Naquela tarde, cerca de 115 mil pessoas se reuniram na Esplanada dos Ministérios, segundo dados divulgados na época pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI), da Presidência da República, e pela Polícia Militar do Distrito Federal. Mas quase quatro anos depois, muita coisa mudou entre aqueles que acompanharam a posse do presidente. Enquanto alguns demonstram apoio intenso ao presidente até hoje, outros consideram Bolsonaro uma imensa decepção. Nas pesquisas eleitorais mais recentes, Bolsonaro (PL) aparece atrás do candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Os números indicam que os seguidores mais fiéis ao presidente continuam ao seu lado e acreditam que ele é a melhor opção para governar o país, mas os dados também ilustram de modo geral que houve queda no apoio ao presidente quando comparado a 2018. Fim do Matérias recomendadas "Há o público mais convicto, que ficou com ele, que são aqueles que concordam quase totalmente com as principais bandeiras dele, como de valores familiares tradicionais, valores cristãos conservadores e esse patriotismo baseado nessas ideias de anticomunismo, antifeminismo etc.", diz a especialista. "Agora o público que esperava mudança, condições econômicas e mais direitos é um pessoal que debandou mesmo, principalmente após a conduta do Bolsonaro na pandemia. Isso se deu especialmente entre mulheres e jovens. Essa postura do Bolsonaro foi entendida como desumana por muitas pessoas. E, claro, também há uma coisa que as pessoas falam que foi a própria continuidade de uma postura muito agressiva dele", acrescenta a pesquisadora. Para entender um pouco mais sobre como pensam os eleitores de Bolsonaro em 2018, a BBC News Brasil foi atrás especificamente de algumas pessoas que organizaram ou participaram de grupos que viajaram a Brasília para acompanhar a posse. Entre eles, há quem mantém o apoio ao presidente, enquanto outros dizem que não votariam novamente em Bolsonaro. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Entre aqueles que se organizaram para acompanhar a posse de 2019 está a empresária Paloma Freitas, de 42 anos. Ela, que mora em Fortaleza (CE), conheceu Bolsonaro por volta de 2015, quando começou a admirá-lo e torcer para que o então deputado federal pelo Rio de Janeiro se candidatasse à Presidência. "O Bolsonaro representava aquilo que a gente queria. Ele era uma voz sem medo de falar no Congresso Nacional. Ele era contra a ideologia de gênero, contra o aborto e contra a legalização das drogas. No Congresso, ele falava de uma forma simples contra tudo isso, por isso para a gente seria a melhor opção para a presidência", diz Paloma à BBC News Brasil. Ela se juntou a outros apoiadores do Bolsonaro no movimento Endireita Fortaleza. Quando Bolsonaro lançou a candidatura em 2018, Paloma participou ativamente da campanha em Fortaleza. "Era tudo voluntário, a gente não tinha dinheiro, mas muitos empresários ajudaram em algumas coisas, como com a casa que virou nosso local de encontro. Até adesivos do Bolsonaro eles mandaram fazer. No começo, era uma campanha pequena, mas logo começou a crescer. O nosso principal foco era [atuar] nas redes sociais", afirma. O momento da vitória de Bolsonaro é descrito por Paloma como um dia de muita emoção. "Todo mundo se abraçou, porque a gente trabalhou demais como voluntário da campanha. Quando ele ganhou, sentimos que ganhamos também", diz. Ela foi uma das responsáveis por organizar uma caravana que seguiria de Fortaleza para Brasília para acompanhar a posse de Bolsonaro. "A gente contratou ônibus de luxo de dois andares e alojamento. Cada um pagou o seu, porque não tivemos apoio de empresários. Mas a caravana lotou, foram cerca de 60 pessoas, e até faltou lugar." Mas Paloma conta que assistiu ao evento pela televisão, pois desistiu de acompanhar presencialmente por motivos pessoais. "A minha avó, que me criou, não estava bem de saúde. Então, eu fiquei coordenando e resolvendo as coisas da caravana a distância." Hoje, ela classifica como positivo o fato de não ter ido presencialmente à posse de Bolsonaro. Isso porque a empresária conta que deixou de apoiá-lo ainda durante o primeiro ano como presidente. "Ele começou a trair os aliados, como o Bebianno (coordenador da campanha e ex-ministro de Bolsonaro), que deu a alma por aquela eleição. Depois ele começou a falar besteiras cada vez mais. É até contraditório que eu me incomode, porque a gente elegeu ele pelas falas, mas ele começou a falar muitas coisas que me incomodaram." Ela afirma que se incomodou, por exemplo, com a ofensa de Bolsonaro à aparência da primeira-dama francesa, Brigitte Macron, e também com a falta de esclarecimentos do presidente diante das investigações referentes às denúncias de rachadinha em seu gabinete e do seu filho, o senador Flávio Bolsonaro - Bolsonaro e família negam ilegalidades durante seus mandatos. "Começaram a aparecer várias coisas envolvendo o nome dele, então comecei a perceber que talvez ele não fosse tão honesto como a gente imaginava", diz ela, que logo deixou o movimento Endireita Fortaleza. "Por volta de maio ou junho de 2019, me afastei de vez, porque a situação estava muito chata e o Bolsonaro se metia em muitas briguinhas." A saída do então ministro da Justiça Sergio Moro, em abril de 2020, fez com que Paloma tivesse cada vez mais certeza de que não concordava com a conduta de Bolsonaro. Atualmente, ela classifica que sente repulsa pelo presidente. Esse sentimento surgiu, diz Paloma, durante a pandemia de covid-19. "Na pandemia, as coisas viraram de um jeito que até hoje tenho asco dele. Ele viu as pessoas enlutadas ou sofrendo dentro de casa. Era uma tensão, mas ele fazia brincadeira com isso, dizia que não era o fim do mundo e até imitava gente com falta de ar. Ele dizia que as pessoas tinham que deixar de frescura e de ser marica. Isso não é brincadeira que se faça", declara a empresária. "O meu voto e o do meu filho ele nunca mais vai ver", afirma ela, que hoje compartilha vídeos contra Bolsonaro em suas redes. Para ela, neste ano acontece a "eleição mais macabra da história" porque traz Lula e Bolsonaro como os principais nomes da disputa. "É a coisa pior e a pior coisa", diz. No primeiro turno, ela afirma que votará em Ciro Gomes. "Ele é altamente inteligente e foi um excelente governador no meu Estado". Já em um possível segundo turno entre Lula e Bolsonaro, diz que já tomou uma decisão. "É nulo na cabeça. Não tem chance de eu votar em nenhum dos dois." Entre os que participaram de grupos para acompanhar a posse de Bolsonaro há também aqueles que mantêm o apoio ao presidente nas eleições deste ano. É o caso do vereador Lincoln Drumond, de 27 anos, de Coronel Fabriciano (MG). Lincoln conheceu Bolsonaro após participar de movimentos favoráveis ao impeachment da então presidente Dilma Rousseff. Nesse período, o hoje vereador era universitário em Belo Horizonte e começou a atuar em atos da direita na capital mineira. Na época, ele começou a administrar páginas da direita no Facebook e tinha Bolsonaro como sua maior referência na política. "O país precisava de uma mudança e as palavras, os posicionamentos e as verdades que ele dizia eram realmente o que todos queriam falar, mas ninguém tinha coragem. Todo mundo estava desacreditado na política e veio um político trazendo esperança e patriotismo", afirma Lincoln. A vitória de Bolsonaro é considerada pelo vereador como "a concretização de uma esperança na política". "Queríamos tirar aquelas pessoas que estavam no poder por muitos anos e só decepcionavam. E o Bolsonaro veio como uma mudança", afirma. Ele avalia que a ida à posse presidencial em janeiro de 2019, em uma caravana da direita mineira, foi uma forma de fazer parte da história do país. "Entendia que estava participando de um ato histórico que poderia contar pros meus filhos", comenta. "Para mim, naquele momento como um jovem militante político, era praticamente fazer história na minha vida", acrescenta. Por causa de Bolsonaro, Lincoln iniciou a carreira política. Em 2020, ele foi eleito vereador em sua cidade, Coronel Fabriciano. "Só entrei na política por entender o que a gente precisava e quem fez esse levante na minha vida foi o presidente Bolsonaro. Ele despertou o patriotismo em minha vida. Não entendia nada de política, não sabia o que era ser patriota. Então, através dos seus atos, das suas palavras, dos seus incentivos, me tornei patriota, defensor da pátria, da liberdade, do conservadorismo. Entendi que precisávamos de pessoas com esse posicionamento na política", diz Lincoln. Agora, ele concorre a deputado estadual em Minas Gerais e se define como o único candidato do presidente na região mineira em que mora, conhecida como Vale do Aço. Na sua campanha, ele exibe com orgulho uma foto ao lado de Bolsonaro. "Estou cada dia mais alinhado ao presidente", diz à BBC News Brasil. O vereador afirma que compartilha dos "princípios éticos, morais e conservadores" do presidente. "Sigo os trabalhos do presidente, mas obviamente coloco um pouco da minha vitalidade, da minha força de trabalho, até mesmo por ser jovem. Estou começando agora e pretendo seguir a trajetória do nosso presidente." Para Lincoln, a gestão de Bolsonaro nos últimos anos "foi o necessário para o nosso país". "Em 2018, a gente precisava de alguém com garra, força e coragem, que trouxesse liberdade para o nosso povo e tivemos isso. Agora em 2022 precisamos da continuação desse governo para continuar a mudar a realidade da nossa população. Ele foi o necessário e continua sendo o necessário pelo momento em que vivemos." O vereador afirma não ter dúvidas de que Bolsonaro será reeleito. "Acredito que não em primeiro turno, mas em segundo turno vai ser reeleito de lavada", diz. O servidor público Rodrigues Júnior, de 39 anos, também acompanhou a posse de Bolsonaro presencialmente. Ele, que mora em Cratéus (CE), viajou por dois dias e meio em um ônibus com outros apoiadores do presidente para acompanhar o evento em Brasília. "Levamos mais ou menos 52 pessoas no ônibus, a maioria do pessoal fez rifa pra juntar dinheiro pra passagem, principalmente os que participaram ativamente da linha de frente da campanha de 2018", relembra. O dia da posse, que ele considera como inesquecível, é avaliado por Júnior como a concretização de um sonho que tinha desde 2014, quando conheceu Bolsonaro e passou a almejar que o então parlamentar se tornasse presidente do país. "Ele era diferente, falava simplesmente a verdade na cara das pessoas. Muitas vezes, os políticos falam coisas para agradar, mas ele não. Ele falava realmente o que acontecia, por isso me identifiquei com o jeito dele se expressar", comenta, ao justificar porque se tornou admirador de Bolsonaro. E Júnior mantém o apoio ao presidente. "Acho que ele tem feito muitas coisas em cada categoria da sociedade", argumenta. "Uma das coisas principais que ele fez foi ajudar o povo quando decretos de governadores e prefeitos (no início da pandemia de covid-19) trancavam o povo dentro de casa sem poder sair pra trabalhar. Fecharam os comércios. A economia quebrou e ele mandou dinheiro para o auxílio emergencial", diz Júnior. "Ele realmente está do lado do povo. No momento mais difícil que o povo passou (a pandemia), ele estava lá no meio do povo. Podia muito bem estar se escondendo como os outros fizeram, mas não se escondeu", acrescenta, ao se mostrar contra medidas recomendadas por especialistas para conter o avanço da covid-19, como o isolamento social. Júnior diz ter certeza de que Bolsonaro será reeleito. "Com certeza vai ganhar no primeiro turno, seja com quem for", afirma. "Ele não é perfeito, mas entre os que estão aí é o melhor para o bem do Brasil", acrescenta. "A perseguição é grande para tirar ele do poder, perseguindo pessoas que o apoiam porque ele tem coragem para lutar contra todo o sistema corrupto que está enraizado desde o início do Brasil. Dizem que não tem apoio da maioria, mas temos. A gente vê isso nas manifestações que temos feito", declara Júnior. Mesmo sem o resultado da disputa presidencial, Júnior já começou a olhar os valores de contratos com ônibus para uma possível posse presidencial de Bolsonaro em 2023. "Como é uma viagem longa, requer planejamento antes das eleições. E tudo dando certo, em novembro já queremos estar com um ônibus", diz. Enquanto alguns pensam na possível posse de Bolsonaro 2023, a advogada Joana D'Arc Valente, de 59 anos, torce para que a cerimônia do próximo ano traga um novo presidente. E esse pensamento de hoje em nada lembra a comemoração dela em 1º de janeiro de 2019, quando acompanhou a posse de Bolsonaro presencialmente. "Brasília ficou sitiada naquele dia, parecia cinema, o povo andando na grama e eufórico. Era até perigoso estar no meio daquela multidão, não tinha nem água para beber", relembra. Joana é de Rio Branco (AC), mas estava em Brasília a trabalho. Ela conta que ajudou a campanha do presidente no Acre, principalmente durante o segundo turno. "No primeiro turno, me empenhei na campanha ao governo do Acre e meu candidato ganhou. Eu já apoiava o presidente, mas o meu foco era o governo estadual. Já no segundo turno, acharam que eu também poderia ajudar o Bolsonaro, então comecei a fazer lives e desafiei a população do Acre a dar a maior votação que já se viu por aqui para um presidente da República", diz a advogada. "O Acre, que eu chamo de Amazônia Acreana, deu uma votação histórica para o Bolsonaro, acima de 77% no segundo turno", completa. Na posse, ela liderou um grupo de 10 a 12 acreanos em Brasília que queriam acompanhar a cerimônia. "As pessoas queriam ir para Brasília em uma caravana, com muito mais gente, mas não tinha mais lugar para ninguém se hospedar", comenta. A decepção com o governo Bolsonaro, diz Joana, surgiu ainda nos primeiros meses do governo dele. "Não houve, por exemplo, cuidado com a floresta amazônica, com os povos indígenas ou com as populações tradicionais. Não houve preocupação com estradas que são importantes para o avanço da região", diz. Atualmente, ela enxerga que durante a presidência Bolsonaro fez "tudo o que falava que não faria e que criticava anteriormente". "Por exemplo, ele se juntou ao Centrão e se tornou refém desse Centrão", diz. "Hoje vejo o Bolsonaro como um bon vivant carioca que tinha seus votos para se eleger deputado federal, entrou no barco para ser Presidente da República porque todo mundo queria alternar o poder, mas ele não se comporta como um presidente", afirma Joana. Para ela, qualquer chance de apoiar novamente Bolsonaro acabou de vez durante a pandemia. "Pra mim, isso foi crucial, desencantei por completo pelo Bolsonaro. Ele não teve postura de presidente, não teve nenhum tipo de empatia ou humanidade." E sobre a disputa presidencial deste ano, Joana afirma que prefere não manifestar apoio. "Vou ficar de camarote assistindo a esbórnia institucional que se instalou na Terra Brasilis." "Mas não posso deixar de te falar que o Lula tem história com o Acre, conhece a região de ponta a cabeça. Já o Bolsonaro passou em Rio Branco igual a um cometa. Porém é isso, na eleição de 2018 era café com leite (PT ou Bolsonaro) e agora é leite com café (Bolsonaro ou PT)."
2022-09-24
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brasil
Por que nenhum país da América Latina tem armas nucleares – e o papel do Brasil nisso
Durante a segunda metade do século 20, a humanidade viveu com medo de um possível holocausto nuclear. Era uma espécie de pesadelo apocalíptico. À possibilidade de um confronto com armas atômicas entre as duas superpotências rivais, Estados Unidos e União Soviética, logo se somou a preocupação com a chamada proliferação nuclear: a possiblidade de que outros países e — ainda mais preocupante — organizações terroristas pudessem obter o controle da bomba. Para tentar conter essa possibilidade, o governo do presidente americano Dwight Einsenhower lançou em 1953 a iniciativa "Átomos para a Paz", que prometia facilitar o acesso a usos pacíficos da energia nuclear para países que renunciassem a se equipar com a bomba. Em 1957, foi criada a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), que faz parte do sistema das Nações Unidas; e pouco mais de uma década depois, em 1968, foi estabelecido o Tratado de Não-Proliferação Nuclear para fazer frente a esse perigo. Essas iniciativas, no entanto, não foram capazes de impedir que em praticamente todas as regiões do mundo exista pelo menos um país que tenha desenvolvido armas nucleares. Fim do Matérias recomendadas Aos Estados Unidos e à Rússia (herdeira do arsenal soviético) somaram-se países da Europa (Reino Unido e França); da Ásia (China, Coreia do Norte, Índia e Paquistão); do Oriente Médio (Israel, que não admite formalmente ter a bomba) e da África (África do Sul, único país que desenvolveu a bomba e depois voluntariamente se desfez dela). Assim, Estados de praticamente todas as partes do mundo têm ou tiveram armas nucleares com uma notável exceção: a América Latina, onde não apenas não há potências nucleares, como foi a primeira região densamente povoada do mundo a se declarar uma zona livre de armas nucleares. Como isso aconteceu? As razões são várias, mas as primeiras razões são encontradas há seis décadas. "A história de por que a América Latina não tem armas nucleares remonta à crise dos mísseis em outubro de 1962, quando a União Soviética posicionou mísseis em Cuba, dando origem a uma crise entre os Estados Unidos e a União Soviética", explica Luis Rodríguez, pesquisador de pós-doutorado do Centro de Segurança e Cooperação Internacional da Universidade de Stanford, na Califórnia (EUA). "Como resultado, vários países da América Latina decidiram começar a formar uma resposta multilateral para evitar que outra crise de mísseis aconteça na região. Essa foi a primeira vez que países da América Latina viram riscos nucleares tão próximos de casa", acrescenta o especialista sobre o episódio considerado o ponto mais próximo que a humanidade esteve de uma Terceira Guerra Mundial. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Rodríguez explica que, desde o final da década de 1950, surge a preocupação de impedir que outro país fizesse aquilo que os Estados Unidos fizeram em Hiroshima e Nagasaki. Na Europa, a Irlanda foi um dos países que promoveram essa ideia e, na América Latina, foi a Costa Rica. No entanto, até então, esse risco era visto como algo distante. Ryan Musto, da Faculdade de William e Mary (Virgínia, EUA), concorda que a ideia de banir a bomba existia na América Latina desde antes de 1962, mas avalia que então tudo mudou. "A Crise dos Mísseis de Cuba foi um catalisador, e o Brasil então propõe tornar a América Latina uma zona livre de armas nucleares como uma possível solução para essa crise, porque poderia facilitar a retirada de mísseis de Cuba, ao mesmo tempo em que permitia livrar a cara tanto dos Estados Unidos, como da União Soviética ", diz Musto à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC. Essa iniciativa não prosperou e a crise dos mísseis foi resolvida através do diálogo direto entre Washington e Moscou. Mas muitos países latino-americanos continuaram a ver a criação de uma zona livre de armas nucleares como uma forma de evitar que uma crise semelhante voltasse a acontecer no futuro. Assim, a região iniciou um processo de negociações que culminou em fevereiro de 1967 com a criação do Tratado de Tlatelolco (bairro da Cidade do México onde foi celebrado o acordo) que proíbe o desenvolvimento, aquisição, teste e instalação de armas nucleares na América Latina e Caribe. Este tratado entrou em vigor em 1969, mas com ele os riscos de proliferação nuclear na região não chegaram ao fim, pois havia dois Estados-chave na região relutantes em aceitá-lo plenamente. Embora o Brasil tenha sido um dos proponentes iniciais da criação de uma zona latino-americana livre de armas nucleares, logo mudou sua posição sobre o assunto, cedendo esse posto de liderança ao México. O esforço mexicano foi recompensado com o fato de o tratado levar o nome de Tlatelolco, sede do Ministério das Relações Exteriores daquele país, e com o Prêmio Nobel da Paz concedido ao diplomata mexicano Alfonso García Robles em 1982. "Depois do golpe no Brasil em 1964, as elites militares do país decidiram investir menos no projeto de desmilitarização da América Latina", diz Rodríguez. Outro país da região, relevante do ponto de vista da tecnologia nuclear, que se recusou a aceitar totalmente o Tratado de Tlatelolco foi a Argentina. "Depois de 1962, o México se torna a face visível dessa iniciativa. O Brasil se distancia dela. Há cientistas que questionavam internamente: 'Queremos mesmo abrir mão do nosso direito de ter armas nucleares em troca de nada? O que acontecerá se um dia precisarmos delas?'", diz Musto. O especialista afirma que ambos os países apoiaram formalmente o Tratado de Tlatelolco porque "pegaria mal" não apoiar, e participaram da elaboração do acordo tentando influenciar para que fosse permitido o que então era conhecido como "explosões nucleares pacíficas". Rodríguez explica que, naquela época, acreditava-se que a energia nuclear poderia ser um instrumento para acelerar o desenvolvimento dos países latino-americanos e que essas "explosões pacíficas" poderiam ser usadas, por exemplo, para abrir minas, canais de navegação ou até mesmo para obras de hidrelétricas. "Foi isso que levou países como Brasil e Argentina a desenvolver certos programas nucleares de tecnologia de uso duplo, que poderiam servir ​​para fins civis ou militares, o que gerou certas tensões, principalmente com organizações internacionais", diz Rodríguez. Rodríguez e Musto afirmam que não foi comprovado que os governos da Argentina e do Brasil tivessem planos de desenvolver armas nucleares, embora haja indícios de que houve pessoas dentro dos governos dos dois países partidárias dessa possibilidade. "O que Brasil e Argentina fizeram foi criar um programa nuclear fora das regulamentações da Agência Internacional de Energia Atômica, por isso são chamados de programas secretos do Brasil e Argentina", diz Rodríguez. "Há historiadores como Carlos Pati, um italiano que trabalha no Brasil, que não constataram que as motivações foram puramente militares ou que foram para criar armas nucleares. O que se vê é que houve uma divisão nos dois países entre facções das elites que queriam armas nucleares e facções que decidiram não tê-las", acrescenta. Musto indica que ambos os países estavam muito preocupados com as limitações que os acordos internacionais poderiam impor às suas opções de desenvolvimento nuclear. "Ambos os países queriam desenvolver um ciclo completo e independente de produção de combustível nuclear. Não queriam que sua soberania nuclear fosse afetada", diz. Apesar de tudo, no início da década de 1990, ambos os países renunciaram ao direito às explosões nucleares pacíficas, se integraram totalmente ao Tratado de Tlatelolco e, posteriormente, fizeram o mesmo com o Tratado de Não-Proliferação Nuclear. Essas decisões foram acompanhadas pelo abandono, tanto pela Argentina, quanto pelo Brasil, de seus programas de desenvolvimento de mísseis balísticos. Projetos que, combinados com seus programas de desenvolvimento nuclear fora do Tratado de Não-Proliferação, geraram preocupação na comunidade internacional. Além do impacto da crise dos mísseis, há outros fatores que contribuíram para que nenhum país da América Latina — e especialmente Brasil e Argentina, que estavam em melhor posição para isso — se equipasse com a bomba. Ryan Musto aponta, por exemplo, para o fato de a região não ter o tipo de rivalidades intensas e conflitos que ocorrem em outras partes do mundo. "Sim, Brasil e Argentina são rivais, mas isso nunca chegou a um ponto forte o suficiente para levar a uma corrida armamentista. Em geral, a América Latina parece ser uma região relativamente estável quando se trata de conflitos interestatais", destaca o especialista. Outro elemento que contribuiu no caso do Brasil e da Argentina foi que ambos os países fizeram a transição de ditaduras militares para a democracia em meados da década de 1980. O alto custo de um programa atômico também pode ter desempenhado um papel importante em dissuadir a proliferação nuclear na região. "Desenvolver um programa nuclear é muito caro. Precisa de muita infraestrutura, especialistas e conhecimento", diz Rodríguez, da Universidade de Stanford. Esse alto custo, além disso, não é medido apenas pela quantidade de dinheiro que o programa de armas nucleares exige. Também são altos os custos diplomáticos e de prestígio derivados de ir contra a corrente do consenso internacional contra a proliferação de armas e também das oportunidades perdidas relacionadas ao uso pacífico da energia nuclear. Um exemplo claro disso, segundo Musto, ocorreu em 1975, quando o Brasil assinou com a Alemanha Ocidental o maior acordo da história em termos de transferência de tecnologia nuclear para um país do sul global. "O acordo deveria ajudar o Brasil a construir oito reatores nucleares. Bem, os Estados Unidos pressionaram a Alemanha Ocidental porque o Brasil não era membro do Tratado de Não-Proliferação Nuclear e havia suspeitas sobre seu programa atômico — e talvez também devido a alguns interesses comerciais dos EUA. No fim, o acordo não se concretizou", afirma. "Então, esses tipos de aspirações desapareceram porque Brasil e Argentina não participaram plenamente do sistema de padrões nucleares previsto no regime do Tratado de Não-Proliferação", acrescenta. Assim, chegou-se a um ponto em que, para ambos os países, havia mais benefícios e oportunidades se estivessem totalmente integrados às instituições internacionais que regulam o uso pacífico da energia atômica, do que tentando preservar sua liberdade de ação fora delas.
2022-09-23
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63003122
brasil
Como obesidade poderá custar quase US$ 220 bilhões ao Brasil em 2060
Uma análise do impacto econômico da obesidade em 161 países projeta que, mantidas as tendências atuais, em 2060 o Brasil será a sétima economia do mundo com maiores gastos relacionados à condição. Segundo as projeções, divulgadas em um estudo publicado nesta semana na revista científica BMJ Global Health, o percentual de pessoas obesas ou com sobrepeso no Brasil deverá chegar a 88,1% em 2060, resultando em um impacto econômico de US$ 218,2 bilhões (cerca de R$ 1,3 trilhão). A estimativa dos pesquisadores é de que esse montante representará 4,66% do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro em 2060, o 48º maior percentual entre os países analisados. O cálculo leva em conta tanto gastos médicos diretos quanto os resultantes do processo de buscar cuidados de saúde, como o custo de viagens para pacientes e acompanhantes. Também inclui perdas econômicas resultantes de mortes prematuras, dias de trabalho perdidos e queda de produtividade devido a problemas de saúde relacionados ao excesso de peso. De acordo com o estudo, em 2019 a prevalência de sobrepeso e obesidade no Brasil era de 53,8% da população e gerava impacto econômico de US$ 37,1 bilhões (cerca de R$ 190,5 bilhões), o décimo maior entre os 161 países. Em termos de percentual do PIB, o Brasil ficava em 63º lugar, com 1,98%. Fim do Matérias recomendadas Considerando todos os países analisados, o impacto econômico em 2019 era estimado em 2,19% do PIB global. Caso a tendência atual se mantenha, em 2060 deverá saltar para 3,29%. A projeção é de que, em 2060, o maior impacto econômico seja sentido pela China, totalizando US$ 10,1 trilhões (cerca de R$ 51,6 trilhões). O montante é quatro vezes maior do que os US$ 2,6 trilhões (cerca de R$ 13,3 trilhões) projetados para os Estados Unidos, que aparecem em segundo lugar. Índia, Coreia do Sul, Indonésia e Alemanha também terão gastos totais maiores do que os projetados para o Brasil. Os pesquisadores lembram que o excesso de peso está ligado a maior risco de doenças como câncer, problemas cardiovasculares e diabetes. Afirmam ainda que a pandemia de covid-19 demonstrou que pessoas com sobrepeso ou obesidade também correm o risco de desenvolver formas mais graves de doenças infecciosas. Segundo Adeyemi Okunogbe, especialista em sistemas de saúde da organização sem fins lucrativos RTI International e um dos autores do estudo, muitas vezes existe uma ideia equivocada de que a obesidade é um desafio de saúde pública exclusivo de países de alta renda. "Esse não é um problema só dos países ricos, é um problema global", diz Okunogbe à BBC News Brasil. Okunogbe salienta que, entre 2019 e 2060, o impacto econômico da obesidade e sobrepeso deverá aumentar mais nos países de média e baixa renda do que nas economias avançadas. "Mesmo em países de alta renda, vemos o impacto concentrado em lares mais pobres e comunidades vulneráveis", ressalta. "Dietas saudáveis são caras. Opções que não são saudáveis (como alimentos ultraprocessados) são (muitas vezes) mais acessíveis aos pobres." Estudos anteriores indicam que muitos países de média e baixa renda enfrentam altos níveis de obesidade e de subnutrição ao mesmo tempo. No Brasil, o crescimento nos índices de obesidade é registrado ao mesmo tempo em que há um aumento da fome. Segundo levantamento da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), o número de brasileiros que passam fome saltou de 19,1 milhões em 2020 para 33,1 milhões neste ano. Okunogbe e os outros autores do estudo estimam que, ao redor do mundo, cerca de dois em cada cinco adultos sejam obesos ou tenham sobrepeso. O cálculo para definir se uma pessoa tem sobrepeso ou obesidade leva em conta a relação entre peso e altura e é chamado de Índice de Massa Corporal (IMC). Um IMC entre 25 e 29,9 é classificado como sobrepeso. Obesidade é definida como IMC a partir de 30. Mas os pesquisadores destacam que sobrepeso e obesidade são mais complexos do que simplesmente o IMC e têm causas ligadas a diversos fatores, desde riscos genéticos e falta de acesso a serviços de saúde até estratégias de marketing de alimentos e bebidas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O estudo foi realizado com o apoio da Federação Mundial de Obesidade e incluiu uma bolsa de financiamento da empresa farmacêutica Novo Nordisk, que não participou da concepção do projeto nem da análise e interpretação dos resultados. Os autores observam que muito do que se sabia sobre os impactos econômicos da obesidade e do sobrepeso estava concentrado em países ricos e que diferenças metodológicas em estudos nacionais anteriores dificultavam comparações entre os países. Okunogbe diz que as novas projeções globais reforçam a necessidade de ação conjunta para responder ao aumento mundial na prevalência de obesidade e sobrepeso. Os autores não oferecem sugestões específicas, mas afirmam que, em vez de focar em responsabilidades individuais, é necessário buscar soluções integradas e comprometimento político e social para combater o problema. "As respostas não podem ser apenas individuais", ressalta Okunogbe.
2022-09-23
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brasil
Por que EUA estão observando de perto eleição do Brasil
Não há muitas coisas em que ferrenhos opositores em Washington - como o estrategista de Donald Trump Steve Bannon e o senador socialista Bernie Sanders - consigam concordar. Mas ambos, e muitos outros políticos e agentes públicos, reconhecem de modo unânime que há muito em jogo quando os brasileiros forem às urnas, no próximo dia 2. "Esta será uma das eleições mais intensas e dramáticas do século 21", afirmou Steve Bannon à BBC News Brasil. "O destino da democracia do Brasil e de sua relação com os Estados Unidos será decidido nas próximas eleições", declarou o senador Patrick Leahy, um dos cinco senadores aliados de Sanders a propor no Congresso do país uma resolução para "apoiar as instituições democráticas brasileiras". E embora autoridades brasileiras nos EUA se esquivem de comentar ou digam que o pleito é um "não assunto" na relação entre os dois países, em uma recente recepção na capital americana em comemoração aos 200 anos da independência do Brasil esse era justamente o pano de fundo da maior parte das conversas. Os destinos das duas maiores democracias das Américas parecem ter se entrelaçado nos últimos tempos. EUA e Brasil enfrentam desafios semelhantes e compartilham interesses comuns. Ambos lideram o ranking de países com maior número absoluto de mortos por covid-19 e enfrentam níveis de inflação acima de 8%. Fim do Matérias recomendadas Os dois países também produzem commodities semelhantes - e por isso competem nos mercados internacionais. Enquanto o Brasil é o maior produtor de soja e laranja, seguido pelos EUA, respectivamente na segunda e quarta posições, os americanos estão à frente na produção de milho, carne bovina, peru e frango, com o Brasil em segundo ou terceiro. Mas enquanto competem com o Brasil, os EUA veem o país se tornar o principal destino de investimentos da China em 2021, um golpe considerável para os americanos em sua zona de influência mais óbvia, a América Latina, na disputa com ares de Guerra Fria entre Washington e Pequim. Por tudo isso, era de se esperar que o interesse sobre quem deve comandar o Brasil no ano que vem fosse alto. A novidade, no entanto, está na quantidade de manifestações públicas sobre o assunto de altos funcionários ou representantes dos EUA meses antes da votação. "Há um interesse maior e isso se deve à ameaça de ruptura democrática", diz Carlos Gustavo Poggio, especialista em relações Brasil-EUA e professor do Berea College, no Kentucky. Desde a redemocratização, argumenta ele, os pleitos foram pacíficos, sem sobressaltos. "Agora temos um presidente que não deixa muito claro se vai obedecer aos resultados das urnas e que tem uma relação próxima com os militares", diz Poggio. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Desde que venceu a eleição em 2018, Bolsonaro tem repetido acusações de fraude eleitoral sem nenhuma evidência. O Brasil tem urnas eletrônicas desde 1996 - e nenhuma fraude sistemática foi registrada até hoje. Durante uma recente visita ao Reino Unido para assistir ao funeral da rainha Elizabeth, Bolsonaro disse que, se receber menos de 60% dos votos, "aconteceu algo de anormal no TSE", o Tribunal Superior Eleitoral. Nas pesquisas de intenção de voto, no entanto, ele nunca ultrapassou 35% e está cerca de 10 pontos percentuais atrás de Lula. Embora tenha dito pontualmente que, se perder, "vai passar a faixa e se recolher", Bolsonaro lançou sistematicamente suspeitas ao processo eleitoral, mesmo tendo admitido não ter provas do que diz, e sobre sua própria reação diante dos resultados. Para muitas autoridades americanas, seu posicionamento ecoa o de Donald Trump, que lançou falsas alegações de fraude sobre a democracia americana antes e depois de sua derrota para Joe Biden. "Brasil e Estados Unidos são espelhos um do outro", diz o ex-vice-secretário de Estado dos EUA Thomas Shannon, que também atuou como embaixador dos EUA no Brasil no início dos anos 2010. "O que acontece com uma dessas duas democracias acontece com a outra", ele completa. Em um discurso recente à nação, Biden foi claro ao dizer que acreditava que o movimento de Trump, o Maga (Make America Great Again ou Torne a América Grande de Novo, na tradução para o português) era uma ameaça à democracia. Há quem veja no forte interesse dos EUA nessas eleições no Brasil uma forma de os americanos confrontarem seus próprios fantasmas de 6 de janeiro de 2021, quando os apoiadores de Trump invadiram o Capitólio dos EUA enquanto a vitória eleitoral de Biden estava sendo certificada. O saldo foi de cinco mortos e de cenas que trincaram a auto-imagem do país. O historiador da Brown University, James Green, que estuda Brasil há mais de 40 anos, diz que foi a primeira vez que ele viu o termo pejorativo "República de Bananas", que pessoas nos EUA costumavam reservar aos vizinhos com processos políticos caóticos na América Latina, sendo aplicado por americanos ao seu próprio país. Em julho, diante de uma plateia americana, o então presidente do TSE, Edson Fachin, afirmou em Washington que o Brasil corria o risco não só de repetir o 6 de janeiro, mas de vivenciar algo ainda "mais grave". Diante de tudo isso, os americanos começaram a se mover mais intensamente desde o fim do primeiro semestre. Em entrevista à BBC News Brasil, em maio, a subsecretária de Estado para Assuntos Políticos, Victoria Nuland, afirmou que "o que precisa acontecer no Brasil são eleições livres e justas, usando as estruturas institucionais que serviram bem a vocês (brasileiros) no passado". Pouco antes, uma conversa entre o chefe da CIA, William Burns, e ministros de Bolsonaro foi vazada. No diálogo, Burns pedia ao presidente brasileiro que parasse de lançar dúvidas sobre as eleições. Bolsonaro negou que a conversa tivesse ocorrido. Os políticos também entraram em campo. O senador Leahy juntou-se a Bernie Sanders e outros quatro senadores democratas para apresentar uma resolução de apoio às instituições democráticas no Brasil que recomenda, entre outras coisas, que os EUA reconheçam o vencedor do pleito brasileiro imediatamente após o anúncio do resultado pelo TSE, para desencorajar qualquer possibilidade de contestação. E na Câmara dos Representantes, os democratas tentaram - e não conseguiram - aprovar uma medida que suspenderia a ajuda militar ao Brasil se as Forças Armadas abandonassem sua neutralidade política. "Às vezes a mensagem é formal, outras vezes é vazamento, mas tudo está tentando transmitir o pensamento de Washington", diz Nick Zimmerman, consultor sênior do Brazil Institute e ex-assessor de política externa da Casa Branca no governo Barack Obama. Para Zimmermann, o que está em jogo não é só a situação no Brasil, mas uma questão mais ampla de política internacional dos Democratas e de parte dos Republicanos sobre as ameaças globais à democracia. "A ordem democrática multilateral construída após a Segunda Guerra Mundial está em risco de uma forma que jamais esteve nos últimos 80 anos. E isso é algo que os Estados Unidos vão lutar para defender", diz Zimmerman. Questionar o processo eleitoral não é a única semelhança entre Trump e Bolsonaro, que também é conhecido fora do Brasil como "Trump dos Trópicos". Ambos fizeram campanha como outsiders, prometendo lutar contra as elites políticas, mesmo que Bolsonaro já fosse um veterano no Congresso Nacional. Ambos incentivaram o nacionalismo e a posse de armas, e denunciaram os chamados "globalismo" e "ideologia de gênero". Ambos dominaram a comunicação direta com o eleitor via redes sociais. "Bolsonaro é um grande herói para todos nós", diz Bannon, que vê o Brasil como parte fundamental de um movimento populista de direita global. "Ele está no nível do [primeiro-ministro húngaro conservador e autoritário] Viktor Orbán como alguém que defende a soberania e construiu um movimento popular de bases. Ele tem evangélicos, ele tem pessoas da classe trabalhadora. Se você olhar para o bolsonarismo do Brasil, é muito parecido com o movimento Maga", diz Steve Bannon. Do outro lado dessa disputa eleitoral, está Lula, cuja trajetória os americanos comparam com a do próprio Biden. Ambos vieram de origens humildes, de famílias de trabalhadores braçais, e se tornaram referências nacionais na política, ocupando altíssimos postos antes de voltar às urnas: Biden como vice-presidente de Obama, Lula como presidente. Ambos sempre tiveram na negociação seu principal ativo e costuraram coalizões amplas para garantir que os dois líderes populistas de seus países tivessem apenas um mandato. No caso de Lula, há 8 ex-candidatos a presidente entre seus aliados, que incluem do líder do movimento dos trabalhadores sem teto, Guilherme Boulos, ao ex-presidente do Bank of Boston, Henrique Meirelles. Do lado americano, Biden foi capaz de unir desde o socialista Bernie Sanders a alguns republicanos, como o ex-secretário de Estado de George Bush, Colin Powell, falecido em 2021. Além da intrigante semelhança entre os dois principais candidatos lá e cá e da possibilidade de uma eleição contestada, há outra razão pela qual o Brasil está na agenda dos políticos americanos e europeus. Nos últimos anos, o Brasil acelerou o processo de desmatamento da Amazônia, a maior floresta tropical do mundo. O governo Bolsonaro reduziu o orçamento para conter a devastação do bioma. No ano passado, seu então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, foi investigado e acusado pelos EUA de estar envolvido no tráfico ilegal de madeira, o que ele nega. Ao mesmo tempo, o tema foi se firmando como prioridade tanto no atual governo dos Estados Unidos como na Europa Ocidental. Para Shannon, ficou claro ao mundo que decisões tomadas no Palácio do Planalto vão impactar a vida de bilhões de pessoas no Planeta. Durante sua campanha eleitoral de 2020, Biden sugeriu que os americanos liderassem a criação de um fundo internacional de bilhões de dólares que ajudaria o Brasil a pagar pela preservação da área florestal. A promessa, no entanto, nunca saiu do papel. O principal motivo, segundo pessoas a par do assunto na administração, foi a falta de confiança de que o governo Bolsonaro cumpriria as metas firmadas. Bolsonaro afirma que o Brasil é referência na preservação ambiental e que as políticas adotadas para a região são também uma questão de soberania nacional e de desenvolvimento econômico. Lula tem falado muito sobre sua intenção de proteger a Amazônia e conseguiu atrair o apoio de Marina Silva, ambientalista internacionalmente respeitada e sua ex-ministra do Meio Ambiente por cinco anos. Marina, no entanto, deixou de ser ministra de Lula denunciando falta de prioridade da agenda verde no segundo mandato do petista e, tanto Lula quanto sua sucessora, Dilma Rousseff, levaram a cabo a construção de uma série de hidrelétricas no meio da Amazônia, o que causou sérios danos à floresta e sua população nativa. Se a nova postura mais verde de Lula agrada aos Estados Unidos, há muito mais insatisfação com sua relação próxima com os regimes de Cuba, Nicarágua e Venezuela - o que Lula tem tentado suavizar com declarações sobre a necessidade de alternância de poder nesses países. Lula também foi um grande defensor do BRICS, bloco formado por Índia, Rússia, China, África do Sul e Brasil, que alguns viam como um desafio ao poder ocidental. Em contraste, sob Bolsonaro em 2019, pela primeira vez na história, o Brasil votou a favor do embargo dos EUA a Cuba, junto com os próprios EUA e Israel, e contra 187 outros países. Diante de Biden, Bolsonaro teria lembrado que ele funciona como um escudo contra o que chama de "disseminação do comunismo" na América Latina. Ainda assim, mesmo sob protestos dos americanos, o presidente brasileiro visitou o presidente Vladimir Putin em Moscou em 2022, apenas duas semanas antes do início da guerra na Ucrânia. Para Shannon, independentemente de quem vença a eleição, o Brasil será um grande jogador internacional, com quem os EUA precisam trabalhar, sem pretensões de dominar. "A diferença entre o Brasil e os EUA é que os EUA são uma superpotência global e eles sabem disso", diz ele. "O Brasil é uma superpotência e ainda não descobriu."
2022-09-23
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EUA confiam no sistema eleitoral do Brasil, diz porta-voz do Departamento de Estado
A pouco mais de uma semana da realização do primeiro turno das eleições brasileiras, o porta-voz para língua portuguesa do Departamento de Estado dos Estados Unidos, Christopher Johnson, disse, em entrevista à BBC News Brasil, que o governo americano confia no sistema eleitoral brasileiro. "Nós confiamos, sim", disse o diplomata. A declaração de Johnson acontece após o presidente e candidato à reeleição, Jair Bolsonaro (PL), vir colocando em xeque a segurança e a lisura do sistema eleitoral brasileiro. Durante a maior parte do seu mandato e da corrida eleitoral, Bolsonaro levantou dúvidas, sem apresentar evidências, de que a urna eletrônica não seria à prova de fraudes. Johnson, que atuou como diplomata no Brasil, Paraguai e Haiti, também disse que o governo norte-americano ainda não sabe em que momento irá anunciar o seu reconhecimento ao resultado das eleições brasileiras, mas afirmou que a posição do seu país é de que "a vontade do povo brasileiro seja respeitada". Sobre o cenário internacional, Johnson diz que o Brasil é "bom candidato" para membro permanente do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU). Fim do Matérias recomendadas Atualmente, há apenas cinco membros permanentes no conselho (Estados Unidos, Reino Unido, França, China e Rússia) e outros 10 não-permanentes com mandatos rotativos, entre eles o Brasil. Nesta semana, porém, o presidente norte-americano Joe Biden, disse, na Assembleia Geral da ONU, ser favorável ao aumento no número de assentos permanentes e não-permanentes do conselho, uma pauta histórica da diplomacia brasileira. Johnson também falou sobre o conflito na Ucrânia e a posição brasileira em relação à Rússia, que, nesta semana, anunciou a mobilização de 300 mil militares e não descartou o uso de armas nucleares. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast BBC News Brasil - Autoridades brasileiras, incluindo o presidente Jair Bolsonaro, têm mantido encontros frequentes com autoridades russas, inclusive após a invasão russa sobre a Ucrânia. Nesta semana, o chanceler brasileiro, Carlos França, e o chanceler russo, Serguei Lavrov voltaram a se encontrar. Que sinais esses encontros enviam no contexto em que a Rússia ameaça intensificar o conflito? Christopher Johnson - A nossa prioridade é chegar ao ponto de terminar o conflito na Ucrânia. Tem parceiros mais alinhados com a nossa postura, mas dialogamos para encontrar os meios para chegarmos a esse fim. Nem sempre estamos de acordo sobre quais ferramentas devemos usar, mas eu acho que o ponto que todos temos em comum é a soberania e a independência de cada país. Como nossa representante na ONU (Linda Thomas-Greenfield) falou, os Estados Unidos não pretendem dominar os outros países. Entendemos que, às vezes, não vamos estar de acordo 100%, mas temos outros desafios que pretendemos enfrentar juntos e vamos continuar tentando convencer os outros parceiros e nos ajudar a assegurar a paz na Ucrânia. BBC News Brasil - Você disse que há países mais alinhados e outros menos. Em que grupo o Brasil está? Christopher Johnson - Tem outros países que não fizeram esse tipo de encontro, né? Acho que teria que investigar quais são as posturas do Brasil a respeito das sanções etc. Eu diria que os líderes europeus são mais alinhados conosco. BBC News Brasil - Recentemente, o Brasil se absteve em uma votação sobre a participação do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, na Assembleia Geral da ONU. Como os EUA avaliam a decisão do Brasil de abstenção em um momento tão crítico? Christopher Johnson - Como falei, seria importante respeitar a independência e soberania de todos os países. Nós preferiríamos que a maioria dos Estados estivessem de acordo [...] Mas todos os países têm esse direito a abstenção e vamos continuar vendo as opções para continuar a trabalhar juntos. BBC News Brasil - O Brasil tem evitado se posicionar contra a Rússia desde a invasão russa à Crimeia, em 2014. Mais recentemente, o Brasil foi contra a imposição de sanções após a nova invasão russa à Ucrânia. Considerando o anúncio do presidente Vladimir Putin de uma mobilização de 300 mil militares, o senhor avalia que o Brasil errou? Christopher Johnson - Acho que seria uma posição para o povo brasileiro decidir. O presidente Bolsonaro foi eleito pelo povo brasileiro. Nós continuaremos a falar com nossos parceiros no Brasil pra ver como vamos trabalhar nesses e outros temas. BBC News Brasil - Tanto a Rússia quanto a China fazem movimentos pra ampliar sua influência na América Latina, que durante muito tempo, foi considerada uma zona de influência dos Estados Unidos. O que teria levado os Estados Unidos a negligenciarem a região? Christopher Johnson - Os Estados Unidos sempre foram abertos para trabalhar com os parceiros na região. Temos cultura e histórias compartilhadas. No meu caso, eu sou descendente de imigrantes da região e esses laços são muito fortes. Com relação à influência de outros países da região, pretendemos informar os nossos parceiros sobre quais os custos de se relacionar com os outros países. Temos visto que, algumas vezes, esses países que fazem acordos com a China acabam percebendo que os custos foram mais altos do que o que eles achavam que seriam. Mas como falou o nosso Secretário de Estado, Anthony Blinken, não cabe a nós dizemos com quem esses países irão fazer parcerias. BBC News Brasil - Se de um lado tem Rússia e China fazem esse movimento, do outro tem os países da região abertos à chegada desses países. Se há compartilhamento de valores, porque eles estariam tão abertos a essa aproximação? Christopher Johnson - Seria difícil pra eu falar sobre quais os motivos que esses países teriam. Mas posso falar de nós. Nós continuamos tendo relação com a China. É um importante parceiro comercial dos Estados Unidos mesmo quando há problemas em nossas relações. Então imagino que haja um cálculo, também, dos outros países. BBC News Brasil - É possível os Estados Unidos retomarem essa posição de liderança na região em um contexto em que a China, por exemplo, já é o maior parceiro comercial de parte dos países da região? Christopher Johnson - Eu acho que sim. Os Estados Unidos continua sendo um líder, mas também temos uma visão mais aberta de liderança. Como o presidente Joe Biden disse no seu discurso, estamos abertos a reformar o Conselho de Segurança, os assentos permanentes e não-permanentes, para integrar mais membros, especialmente os da região. BBC News Brasil - O presidente Biden disse que é favorável a essa reformulação (do Conselho de Segurança da ONU) e essa é uma pauta histórica do Brasil. Hoje, o Brasil teria o apoio dos Estados Unidos para fazer parte do Conselho de Segurança da ONU como membro permanente? Christopher Johnson - Para nós, acho que é evidente que o Brasil seria um bom candidato. Para selecionar os países que vão formar parte (como membros permanentes do conselho), eu imagino que seria um processo de diálogo, mas evidentemente estaríamos abertos à candidatura do Brasil. BBC News Brasil - O Brasil teria o apoio dos Estados Unidos para fazer parte do conselho de forma permanente? Christopher Johnson - Para respeitar o processo diplomático, eu não quero já nomear quais serão os países membros desse conselho. Mas, como falei, o Brasil seria um bom candidato. Eu acho que os méritos são evidentes. BBC News Brasil - Teremos eleições em pouco mais de uma semana. O atual presidente brasileiro coloca em xeque a segurança das urnas eletrônicas e do sistema eleitoral. Os Estados Unidos confiam no sistema eleitoral brasileiro? Christopher Johnson - As instituições democráticas são importantes para o povo norte americano e para o povo brasileiro. Vamos continuar trabalhando em conjunto para reforçar essas instituições e estamos atentos a esse processo eleitoral no Brasil. BBC News Brasil - Mas vocês confiam no sistema eleitoral brasileiro ou não? Christopher Johnson - Nós confiamos, sim. BBC News Brasil - Há um movimento para que potências ocidentais façam o reconhecimento do resultado das eleições assim que o Tribunal Superior Eleitoral anuncie os números. Isso seria uma forma de algum tipo de manobra contestatória dos resultados. Em que momento os Estados Unidos irão reconhecer o resultado das eleições brasileiras? Será logo após o anúncio do TSE? Christopher Johnson - Como em qualquer qualquer processo eleitoral no mundo, o mais importante é a voz do povo. Então, estaremos atento a esses resultados. Não posso prever qual seria a postura (do governo norte-americano) porque o mais importante é o que decidiu o povo brasileiro. Então, não tendo os detalhes específicos, não posso dizer qual seria a nossa postura. Mas o que pretendemos é que o povo brasileiro e a vontade do povo brasileiro sejam respeitados. BBC News Brasil - O ex-presidente Lula já deu a entender que Zelensky seria tão culpado pela guerra na Ucrânia quanto Putin. Que tipo de relação vocês esperam com um eventual governo do PT em relação a essa questão russa? Christopher Johnson - Então acho que não seria apropriado falar de um governo e de um candidato antes das eleições. No momento, continuamos dialogando com vários membros do ambiente brasileiro. Então, claro, continuamos dialogando com o presidente Bolsonaro, com outros partidos políticos e com a sociedade civil brasileira. Mas não posso falar de um governo que não existe.
2022-09-22
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brasil
O que é ser corrupto?
Os termos "corrupção", "corrupto", "corrupta" e "bandido" ou "corrupto de estimação" dominaram a briga política brasileira nos últimos anos. Entre vazamentos, acusações, denúncias, condenações, absolvições e anulações de sentenças, especialmente no âmbito da Operação Lava Jato, esse tema foi fundamental para a vitória de Jair Bolsonaro em 2018. Mas a história parece um pouco diferente para 2022. Institutos de pesquisa apontam que a corrupção que dominou a política desde a Operação Lava Jato, que levou a quase 360 condenações e garantiu a recuperação de quase R$ 17 bilhões aos cofres públicos, deve ter agora bem menos importância entre os eleitores. Mas o que afinal é ser corrupto? Quais são as causas e como se previne? O conceito de "jeitinho brasileiro" e a expressão "rouba, mas faz" atestam que a cultura brasileira é corrupta? Por que um país tem mais corrupção que outro? A corrupção do dia a dia é a base da corrupção dos poderosos? Vale tudo, inclusive burlar as leis, pelo objetivo de acabar com os corruptos no poder? Não há respostas fáceis para essas questões comuns no debate político brasileiro. Fim do Matérias recomendadas Para alguns especialistas, a corrupção do dia a dia surge da desigualdade econômica e da falta de confiança entre as pessoas. Outros falam em outras explicações, como cultura corrupta, sistema político-eleitoral falho, impunidade e excesso de burocracia. Por isso, a BBC News Brasil explica abaixo as origens da corrupção e o que de fato ela significa na teoria e na prática. Em seguida, mergulha nas causas e nos impactos amplamente negativos. Depois, mostra como se mede a corrupção e como é possível combatê-la. E por fim, apresenta como a Operação Lava Jato levou o tema ao centro do debate político e como acusações de corrupção se tornaram uma poderosa arma política no Brasil. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "A corrupção é tão antiga quanto a história humana", afirma uma dupla de pesquisadores e professores da Universidade de Glasgow, o indiano Asit Biswas e a mexicana Cecilia Tortajada, em artigo sobre o tema. Segundo eles, há registros de corrupção durante a primeira dinastia do Egito Antigo, há quase 5 mil anos, na China Antiga e na Grécia Antiga. O historiador grego Heródoto, por exemplo, escreveu que a poderosa família Alcmeônidas subornou sacerdotisas do oráculo de Delfos por volta de 1.400 a.C. para o obter apoio político de Esparta para governar Atenas, em troca da reforma do templo de Apolo com pedras de mármore. "Como funcionou, Aristóteles ressaltou que até mesmo os deuses podem ser subornados", escrevem Biswas e Tortajada. A palavra corrupção deriva do termo (e seus derivados) em latim corruptione, que significa putrefação, decomposição e adulteração, explica a historiadora e professora brasileira Adriana Romeiro (UFMG) no livro Corrupção e Poder no Brasil: Uma História, Séculos 15 a 18. A conotação mais política do termo corrupção, explica a pesquisadora, remonta à Grécia Antiga, quando se falava na perversão de um regime político em relação a um modelo ideal, como a tirania enquanto degeneração da monarquia. Nos últimos cinco séculos, duas grandes acepções estiveram em voga: uma física, ligada à degradação material, e outra metafórica, aplicada a questões morais, judiciais, religiosas e de costumes. "Uma das representações mais comuns do processo de corrupção era aquela que descrevia o corpo místico da República tomado pela enfermidade, corroído até as entranhas por governantes tirânicos que sugavam as forças dos vassalos." No Brasil, já se falava no período colonial das causas e das consequências dessa corrupção, principalmente ligada ao contrabando. Em geral, isso passava por "amor excessivo às riquezas", ambição e avareza, "vícios privados que maculavam o governo político, levando os vassalos à pobreza". E qual era a forma dessa corrupção? "Nem sempre tais práticas assumiam uma feição estritamente econômica, envolvendo algum tipo de vantagem material, mas, ao contrário, podiam se referir a questões morais e religiosas, como a heresia, a falta de caridade para com os pobres, o uso de violência contra os governados, entre outras", conta Romeiro. A pesquisadora faz ressalvas, no entanto, para os riscos de se avaliar práticas legais e aceitas de séculos anteriores a partir de leis, padrões da burocracia liberal e valores morais atuais. Como, por exemplo, o clientelismo, que consiste em trocas de favores, privilégios e apoios, que era amplamente praticado no Brasil nos últimos séculos, mas que só seria criminalizado no país no século 20. "A generalização da corrupção nos negócios coloniais, em praticamente todas as esferas da administração colonial, indica que não se tratava de um mero desvio ou uma aberração, mas, sim, de um componente essencial do seu funcionamento", afirma Romeiro. Essa visão está ligada também ao famoso jeitinho brasileiro, que costuma ser bastante associado à corrupção do dia a dia mais praticada e tolerada. Segundo a pesquisadora Fernanda Duarte, o tal jeitinho envolve quebrar regras de forma consciente (e simpática) em busca de soluções rápidas para problemas imprevistos ou diante do excesso de burocracia ou formalidade. E para muitos ele faz parte (ou é a essência) da identidade nacional. Em Brasil: Uma Biografia, as historiadoras Heloísa Starling (UFMG) e Lilia Schwarcz (USP) lembram que a corrupção não é algo exclusivo do Brasil e sempre existiu, mas, aqui, ela "costuma ser associada à própria identidade do brasileiro, como se esse fosse um destino inevitável; quase uma questão endêmica". Starling e Schwarcz explicam que, segundo essa visão, "o Brasil seria forçosa e definitivamente corrupto devido a certas práticas e comportamentos — o 'jeitinho', a malandragem, o político ladrão — que, desde sempre presentes na nossa história, fazem parte de um suposto caráter do brasileiro, o que formaria uma espécie de 'cultura de corrupção'". Mas Starling e Schwarcz consideram essa visão preconceituosa e prejudicial ao combate da corrupção, por naturalizar esse comportamento e por "desvalorizar as atitudes e os movimentos de opinião pública que expressam a revolta dos brasileiros contra essa prática". Em artigo sobre o tema, o pesquisador e cientista político brasileiro Luiz Fernando Miranda explica que o conceito de corrupção é tão amplo que chega quase ao ponto de haver uma definição para cada especialista no tema. A partir da análise das definições apresentadas por teóricos ao longo de décadas, Miranda apresenta seu próprio conceito: "o pagamento ilegal (financeiro ou não) para a obtenção, aceleração ou para que haja ausência de um serviço feito por um funcionário público ou privado. A motivação da corrupção pode ser pessoal ou política tanto para quem corrompe quanto para quem é corrompido". Essa prática ocorre, segundo o pesquisador, da seguinte forma: "um sujeito A (com motivação pessoal ou política) que deseje corromper o sujeito B (com motivação pessoal ou política) oferece um serviço ou presente ou propina e obtém em contrapartida um serviço (ou sua ausência)". Miranda ressalta que há pelo menos três tipos de corrupção: 1. a grande corrupção (exemplo: funcionário público recebe propina para direcionar licitação para determinada empresa); 2. a corrupção burocrática ou pequena corrupção (exemplo: dono de restaurante oferece refeições a um fiscal em troca da não fiscalização do seu estabelecimento); 3. a corrupção legislativa (exemplo: parlamentar recebe doações, propinas ou presentes para votar a favor de um lei que beneficia aquele que lhe entregou algo. Mas quais são as causas de todas essas práticas? Para o cientista político e professor americano Eric Uslaner, da Universidade de Maryland (EUA), um dos maiores especialistas no assunto, as raízes da corrupção estão na desigualdade econômica e na falta de confiança entre as pessoas de grupos sociais diferentes. Num ciclo vicioso, ambas são alimentadas pela corrupção, e "por isso que é tão difícil de erradicá-la", escreve no livro Corruption, Inequality, and the Rule of Law (Corrupção, Desigualdade e Estado de Direito, em tradução livre). Uslaner ressalta o papel das instituições nesse ciclo, mas diz que "elas não são autônomas, então mudanças em estruturas políticas sozinhas não são o bastante para reduzir desigualdade ou corrupção". Com base em dados de pesquisas ao redor do mundo, Uslaner afasta outras hipóteses tradicionais, como fatores culturais de países que supostamente toleram mais a corrupção. "Sociedades desenvolvem 'cultura de corrupção' porque elas estão aprisionadas em ciclos viciosos de alta desigualdade, baixa confiança entre pessoas de grupos diferentes e corrupção elevada. (...) Nessas 'culturas de corrupção', as pessoas pagam porque não há outra saída. Elas estão presas na armadilha da desigualdade e dificilmente estão felizes com isso. Onde a corrupção de alto nível corre desenfreada, as mesmas pessoas que em tese seriam 'tolerantes' com condutas ilegais se ofendem com as táticas ilícitas que os poderosos usam para enriquecer." Segundo o pesquisador, "enquanto a pequena corrupção ajuda um número grande de pessoas a enfrentar os corrompidos setores público e privado, nos quais serviços cotidianos são raramente oferecidos com regularidade, a grande corrupção enriquece poucas pessoas". Em geral, países com mais corrupção dos poderosos enfrentam também bastante corrupção cotidiana. Para Uslaner, porém, a pequena corrupção (como a propina para o agente na blitz da Lei Seca ou furar fila ou não devolver o troco errado) gera pessimismo, mas não afeta muito a confiança das pessoas umas nas outras porque essas atitudes não geram grandes desigualdades sociais. Ou seja, não mudam a percepção geral de que os recursos públicos não estão sendo distribuídos pelos governantes de forma menos justa. Além disso, afirma o pesquisador, reduzir a prática de pequena corrupção na sociedade como um todo é obviamente um objetivo válido, mas isso não vai sanar a questão da grande corrupção entre os poderosos. Por outro lado, escreve Uslaner, a grande corrupção praticada pela elite política e econômica tem dois efeitos: abala a confiança entre os cidadãos e gera desigualdade (com autoridades e empresários enriquecendo ilegalmente). "Quando as pessoas veem a corrupção enraizada na distribuição desigual de riqueza e justiça, é provável que se tornem cínicas em relação ao mundo ao seu redor. Esse cinismo levará a uma maior lealdade ao seu próprio grupo, a acreditar que os grupos externos (incluindo os ricos) não são confiáveis, e levará também a uma maior disposição de fazer o que for necessário para sobreviver em um mundo corrupto. Essas percepções de desigualdade se alimentam de si mesmas — e as pessoas sentem que estão presas em um mundo corrupto onde os ricos ficam mais ricos e os pobres dependem de seus benfeitores", afirma ele. Por outro lado, por vezes a corrupção é tão presente que às vezes pessoas envolvidas nessas práticas alegam que estavam "apenas seguindo as regras do jogo". Ou seja, segundo essa visão, uma empresa perderá dinheiro caso não se envolva em negócios escusos porque essas práticas continuarão acontecendo e quem não paga propinas, por exemplo, sai perdendo em disputas por contratos públicos. Há quem defenda também que a corrupção, em países com burocracia excessiva e outros problemas, serve como uma espécie de óleo que azeita as engrenagens públicas. Na visão de estudiosos como o cientista político americano Samuel Huntington, por exemplo, a corrupção pode ter algum lado positivo ao facilitar processos burocráticos ou até permitir o aquecimento da economia, com empresas ganhando contratos, gerando emprego e renda. Outro exemplo dessa visão passa por alguns negócios informais, sem registro com órgãos públicos, que teriam funcionamento garantido graças a práticas como conivência ou pagamento de propina a fiscais ou agentes de segurança. Estudos recentes, porém limitados, têm reforçado essa associação de corrupção e progresso, mas ainda é consenso entre especialistas no tema de que os efeitos da corrupção são extremamente nocivos para a sociedade como um todo. Além disso, a corrupção é tão presente nas disputas políticas que alguns nomes acabam se apropriando das acusações para tentar se beneficiar de alguma forma. É o caso do "rouba, mas faz", lema surgido em torno da trajetória do político Adhemar de Barros, que governou São Paulo nos anos 1960. Em sua dissertação de mestrado sobre o tema, a jornalista e historiadora Luiza Cotta conta que "Adhemar ganhou rapidamente fama como um político empreendedor que não primava pela honestidade em relação aos cofres públicos". O slogan "rouba, mas faz" acabou se tornando bandeira desavergonhada de seus apoiadores fiéis, mesmo que o político sempre tenha negado a prática de crimes. Desde então a expressão se tornou popular na política nacional, em geral para defender políticos sob o argumento de que "todos roubam, mas pelo menos esse faz alguma coisa pelo povo". Há enormes obstáculos para se calcular tanto a dimensão da corrupção nas sociedades quanto o tamanho dela em dinheiro. Um estudo da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), por exemplo, apontou em 2010 que o custo médio anual da corrupção no Brasil chegava a até 2,3% do PIB (soma de todas as riquezas produzidas no país). Ou seja, cerca de R$ 172 bilhões em valores de 2020, o equivalente a cinco anos de Bolsa Família, programa que beneficiou quase 15 milhões de famílias brasileiras naquele ano. Mas a grande maioria dos especialistas nessa área refuta esses cálculos porque a corrupção, por natureza, é um crime que se mantém nas sombras. Por isso, não se tem ideia dos valores envolvidos na corrupção praticada que ainda não foi descoberta. Além disso, quanto mais alta a posição ocupada pela pessoa acusada desse tipo de prática, menores são as chances de ela que deixe rastros óbvios dos crimes cometidos. Isso não é exclusividade brasileira. Segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, encontrar provas diretas de propina, especialmente quando há políticos e empresários poderosos envolvidos, é um "desafio global". Apesar dos obstáculos, há diversas iniciativas que tentam medir o tamanho da corrupção ao redor do mundo. Uma mais famosas é o Índice de Percepção da Corrupção, da ONG Transparência Internacional, que agrega fontes de dados como entrevistas com especialistas e executivos de grandes empresas privadas sobre o nível de corrupção no setor público. Segundo a entidade, "o Brasil permanece estagnado em um patamar ruim". Em 2020, o país melhorou sua nota de percepção — de 35 para 38 pontos — mas essa oscilação aconteceu dentro da margem de erro da pesquisa. Quanto mais baixo o número, pior. O índice brasileiro está abaixo da média do grupo Brics, que inclui Brasil, China, Índia, Rússia e África do Sul (39), da média regional para a América Latina e o Caribe (41) e mundial (43) e ainda mais distante da média dos países do G20 (54) e da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE (64). No total, o Brasil ocupava em 2020 a 94ª posição nesse ranking da Transparência Internacional com 180 países — atrás de Colômbia, Turquia e China, e empatado com Etiópia, Cazaquistão, Peru, Sérvia, Sri Lanka, Suriname e Tanzânia. "Em 2020, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que a corrupção era um problema do passado. Ele estava errado. A corrupção continua a ser um problema sistêmico no Brasil, que contamina a democracia e impede o desenvolvimento sustentável e socialmente justo do país. Não é através de soluções populistas e autoritárias que se constrói um país íntegro. É através de leis, instituições e, principalmente, uma cidadania livre, consciente e ativa na luta por seus direitos", afirmou a Transparência Internacional em relatório sobre o país. Em outubro de 2020, a Transparência publicou uma atualização de um relatório chamado Brasil: retrocessos nos marcos jurídicos e institucionais anticorrupção, em que listava altos e baixos da trajetória brasileira. Entre os destaques positivos estavam a forte mobilização da sociedade pelo combate à corrupção e a adoção do método de transferência bancária Pix, que aumentava a capacidade de rastrear a movimentação de dinheiro. Do lado negativo, a entidade apontou medidas do governo Bolsonaro que, segundo a entidade, levaram a uma "perda grave de independência da Procuradoria-Geral da República e (a um) aumento da ingerência política sobre órgãos como a Polícia Federal e o sistema brasileiro de inteligência". Para a OCDE, no governo Bolsonaro houve um recuo no combate à corrupção com o fim "surpreendente da Lava Jato", o uso da lei contra abuso de autoridade e dificuldades no compartilhamento de informações de órgãos financeiros para investigações. O governo federal não fez nenhum comentário sobre o relatório da Transparência Internacional nem sobre as críticas da OCDE. Em outubro de 2020, Bolsonaro disse em tom irônico que tinha acabado com a Lava Jato porque não havia mais corrupção no governo. "Eu sei que isso não é virtude, é obrigação." Para o pesquisador Eric Uslaner, o ponto-chave para reduzir a corrupção passa por fazer com que as pessoas dependam menos dela, principalmente com a redução da armadilha da desigualdade social. "A pequena corrupção não é um fim em si mesma. Ela serve para manter no poder líderes que assaltam os cofres públicos e se tornam ricos (com seus comparsas). (...) Uma vez que as pessoas acham uma forma de serem bem-sucedidas na vida sem depender de líderes corruptos, elas tendem a rejeitar mais as condutas ilegais na vida pública." A Transparência Internacional lista cinco medidas contra o problema: fim da impunidade, reformas administrativas e financeiras com fortalecimento de órgãos de controle, aumento da transparência e do acesso à informação pública, empoderamento dos cidadãos e fechamento das brechas que permitem o envio para o exterior de dinheiro obtido de forma ilícita. Para Susan Rose-Ackerman, da Universidade Yale (EUA), a punição de pessoas corruptas é importante, mas ela não basta para reduzir a corrupção. "A questão não é só identificar as 'maçãs podres' e aumentar o tempo de prisão dos envolvidos em corrupção. Não que isso não deva ocorrer, mas o problema sistêmico da corrupção não será resolvido só colocando o pessoal na cadeia", afirmou ela em entrevista à revista Época em 2016. No caso brasileiro, a pesquisadora americana tem defendido medidas como redução do número de partidos (o que reduziria as negociações por vezes ilegais por apoio no Congresso), aprimoramento do sistema de financiamento de campanhas eleitorais, aumento do controle de bancos contra lavagem de dinheiro, maior transparência, regulação da atividade de lobistas no Executivo e no Legislativo e menor liberdade de funcionários públicos em decisões sobre recursos públicos (como licitações). Em Brasil: Uma Biografia, Heloísa Starling e Lilia Schwarcz afirmam que "enfrentar a corrupção exige controle público, transparência das ações dos governantes e um processo de formação — no sentido do aprendizado — de uma cultura republicana que seja exercitada cotidianamente pelo brasileiro comum em sua relação com o país". Mas esse processo não está livre de efeitos colaterais. "Cresceu no Brasil a reação pública contra atos de corrupção, e se tornou mais visível o fato de que esses atos têm sido um elemento constante na cena política nacional. Evidentemente há riscos. O entendimento da política brasileira como um campo regido pela corrupção pode enfraquecer os mecanismos de participação pública e levar descrença ao funcionamento das instituições democráticas", escrevem Starling e Schwarcz. Isso, aliás, foi o que muitos pesquisadores dizem ter acontecido durante a Operação Lava Jato, maior investigação contra esquemas de corrupção da história do país, que atingiu centenas de políticos de dezenas de partidos em 11 países, além de executivos de grandes empreiteiras. Segundo o cientista político Jairo Nicolau, a corrupção se tornou tema prioritário da agenda antipetista nas eleições brasileiras desde que as denúncias do escândalo do mensalão apareceram em 2005, mas o impacto da Lava Jato — deflagrada em 2014 — na política foi muito maior. Para se ter uma ideia do impacto da Lava Jato na percepção coletiva e no antipetismo, o instituto Datafolha apontou que em dezembro de 2012 apenas 4% dos eleitores consideravam a corrupção o principal problema do país e outros 40%, a saúde. Em março de 2016, às vésperas do impeachment de Dilma Rousseff (PT), a corrupção liderava o ranking de problemas nacionais com 37%, e a saúde figurava com 17%. A corrupção só voltaria a liderar sozinha como principal problema nacional em abril de 2018, mês em que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi preso. Em seu livro sobre a eleição de 2018 O Brasil Dobrou à Direita, Nicolau descreve o passo a passo de como, segundo ele, a Lava Jato influenciou o resultado do pleito. "1) a Lava Jato investigou, denunciou e prendeu parte expressiva da elite política brasileira; 2) a corrupção passou a ser vista como algo endêmico, aumentando a rejeição a partidos tradicionais; 3) os eleitores buscaram uma alternativa de um político que não estivesse envolvido em nenhuma das denúncias dos últimos anos e ao mesmo tempo expressasse uma quebra com o padrão de ação da elite política tradicional; 4) entre os nomes apresentados em 2018, o único que preenchia esses critérios era Bolsonaro." Pesquisas do instituto Ideia Big Data sugerem que o segmento da classe média cujo foco principal é o combate à corrupção soma algo em torno de 10% do eleitorado brasileiro. E sete anos depois do início da operação, os dois principais candidatos à Presidência em 2022 ainda são ligados à Lava Jato e ao tema da corrupção.: - O atual presidente Jair Bolsonaro, como político que mais mobilizou os eleitores em duas décadas com as bandeiras de antipetismo e combate à corrupção (impulsionado pela Lava Jato). Depois da eleição de 2018, os lavajatistas se afastaram do presidente, que adotou diversas medidas consideradas contrárias ao combate à corrupção, como a nomeação de um procurador-geral da República crítico à Lava Jato, Augusto Aras, a troca no comando de órgãos de investigação contra Bolsonaro, seu governo e seus familiares e a supressão da transparência em casos com suspeita de corrupção no governo. - Lula, que foi o principal político a ser condenado e preso na operação, além de impedido de concorrer em 2018. No entanto, suas condenações foram anuladas pelo STF por ilegalidades nos processos julgados pelo então juiz federal Sergio Moro e apresentados pela força-tarefa liderada pelo procurador Deltan Dallagnol. Atualmente, Lula lidera as pesquisas de intenção de voto para a eleição presidencial em 2022, e uma parte de seu discurso tem sido a perseguição judicial que diz ter sofrido. As palavras "corrupto" ou "corrupção" são frequentes no debate político brasileiro — aparecem mais de mil vezes em discursos no plenário da Câmara dos Deputados em 2021, por exemplo. E parte das vezes a primeira aparece na forma da expressão "corrupto de estimação", que é uma variação da expressão "político de estimação", usada geralmente para acusar eleitores de apoiarem políticos de forma apaixonada e acrítica, ignorando falhas ou denúncias, por exemplo. No caso de "corrupto de estimação", a expressão geralmente é usada de três formas: para criticar eleitores de Lula (em razão das investigações da Lava Jato), para criticar eleitores de Bolsonaro (por irem às ruas contra o PT, mas não adotarem o mesmo rigor contra o governo atual) e, por fim, para criticar ambos e se apresentar como isento ou terceira via, sem ter corrupto de estimação de esquerda ou de direita. O componente moral da corrupção também se tornou chave no debate político, e tem sido abordado por líderes de instituições religiosas, principalmente evangélicas (tanto protestantes históricas quanto pentecostais e neopentecostais). O antropólogo Marcos Otavio Bezerra, da Universidade Federal Fluminense (UFF) e a socióloga Gabriela da Silva Moura, do Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet-RJ) realizaram um estudo sobre como o tema do "combate à corrupção" mobiliza fiéis e lideranças em parte dos segmentos evangélicos. Segundo a dupla, muitos líderes religiosos que atuam na política costumam se apresentar aos eleitores como moralmente virtuosos (honestos) nesse ambiente tido por eles como repleto de vícios e corrupção (entendida aqui como produto da falha moral do indivíduo). Mas o tema obviamente não ficou restrito a esse segmento religioso que representa 30% do eleitorado brasileiro. O cientista político Jair Nicolau explica, em seu livro sobre a eleição de 2018 O Brasil Dobrou à Direita, que a corrupção era considerada o principal problema para eleitores de educação superior e "em todas as faixas educacionais, os eleitores que consideram a corrupção como o principal problema votaram expressivamente em Bolsonaro". No entanto, nos últimos quatro anos, algo aconteceu. Segundo Mauricio Moura, presidente do instituto Ideia Big Data, que faz pesquisas de opinião e análise quantitativa e qualitativa sobre assuntos relacionados ao governo, apesar de Bolsonaro ter sido eleito com grande expectativa de combater a corrupção, o tema já não influencia tanto na sua popularidade atualmente como durante a eleição de 2018. Moura diz que isso se dá não porque o eleitorado brasileiro deixou de se preocupar com a corrupção, mas, sim, porque o segmento do eleitorado que dá importância ao assunto já havia abandonado Bolsonaro no começo de 2020, quando o ex-juiz Sergio Moro deixou o Ministério da Justiça acusando o presidente de interferir em investigações. Pesquisas do instituto Ideia Big Data sugerem que o segmento da classe média cujo foco principal é o combate à corrupção soma algo em torno de 10% do eleitorado brasileiro. Mas as acusações de corrupção podem não ser tão determinantes como eram antigamente. Em janeiro de 2022, o instituto Ipespe perguntou aos eleitores o que os faria mudar de voto. Apenas 17% disseram que fariam isso caso surgissem denúncias de corrupção contra o candidato em que pretendem votar. Denúncias infundadas contra adversários para fins políticos são chamadas de lawfare. Essa mistura de duas palavras em inglês (law, que significa lei, e warfare, que representa guerra ou conflito armado) é o nome dado a uma espécie de mau uso de leis e procedimentos jurídicos para perseguição política de adversários. Por exemplo, a divulgação na mídia de nomes de políticos no contexto da investigação, segundo estudiosos, os submetia ao escárnio público e à presunção de culpa pela sociedade antes mesmo da investigação estar concluída ou da sentença judicial. Somava-se a isso a prática recorrente de vazamento seletivo para jornalistas de trechos de delações feitas por investigados que admitiam seus crimes e acusavam terceiros, geralmente políticos. Os advogados do ex-presidente Lula afirmam que o petista sofreu práticas de lawfare durante a Lava Jato. Eles traçam um paralelo entre o caso de Lula e o do ex-primeiro-ministro da Itália Silvio Berlusconi, político de direita que foi declarado inelegível até, pelo menos, 2019, com base numa lei semelhante à Ficha Limpa, que impede que condenados ocupem cargos públicos. Berlusconi alegou que teve direitos violados por ser punido de forma "retroativa", já que a lei foi sancionada em 2012, depois que ele havia sido condenado por fraude fiscal. Mas a Corte Constitucional italiana rejeitou os argumentos do ex-premiê. "Uma pessoa não pode ser retirada de uma eleição de forma arbitrária. Basicamente é o uso da lei para fins políticos. Retirar um inimigo da vida política. Uma das táticas de lawfare é ocupar o tempo e os recursos do inimigo. Ao se defender, ele não consegue ter tempo para a política. O caso Berlusconi é um caso de lawfare. Mas o caso mais escandaloso do tipo no mundo e na História é o do Lula", argumentou a advogada Valeska Teixeira Martins, integrante da defesa de Lula, em entrevista à BBC News Brasil em 2017. Para os advogados Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, e Marcelo Turbay Freiria, que representaram alguns dos investigados pela Lava Jato, a parcialidade do juiz Sergio Moro (que foi confirmada pelo STF) e dos investigadores era uma ameaça grave à democracia brasileira. "Os últimos seis anos da história política brasileira revelaram a execução de um programa sistemático e organizado de ataque ao exercício da atividade parlamentar, composto pelos seguintes pilares: espetacularização do processo penal; generalização da prisão preventiva e outras medidas constritivas pessoais e patrimoniais; banalização de delações premiadas costuradas contra agentes políticos; manipulação da opinião pública mediante vazamentos de informações seletivas para a imprensa; pressão sobre o Poder Judiciário; financiamento de campanhas para angariar apoio popular; inviabilização jurídica de adversários políticos", escreveram Castro e Freiria em um dos capítulos de O Livro das Suspeições, publicado em 2020 pelo grupo de advogado Prerrogativas. Em resposta, os membros da Lava Jato refutam qualquer ilegalidade ou perseguição política. Em seu livro sobre a operação, A Luta Contra a Corrupção: A Lava Jato e o Futuro de um País Marcado pela Impunidade, o coordenador da força-tarefa de procuradores, Deltan Dallagnol, afirma que "a Lava Jato comprovou a existência de uma corrupção generalizada, infiltrada em diversos órgãos públicos como parte de um modo de governar que envolvia vários partidos políticos". Dallagnol também rebateu na obra as críticas à operação. "Como todo mundo, os agentes públicos estão sujeitos a erros. Opiniões divergentes devem ser respeitadas e consideradas. No entanto, o que muitas vezes vemos é a repetição de críticas sem qualquer fundamento e equivocadas, ou mesmo a distorção dos fatos. Busca-se com isso inverter os papéis na investigação e colocar a Lava Jato no banco dos réus." Em nota pública, Moro afirmou que a Lava Jato foi um marco no combate à corrupção que recuperou aos cofres públicos mais de R$ 4 bilhões pagos somente em subornos (além de outros bilhões de reais desviados) e levou à condenação de duas centenas de pessoas por corrupção e lavagem de dinheiro. "Todos os acusados foram tratados nos processos e julgamentos com o devido respeito, com imparcialidade e sem qualquer animosidade da minha parte, como juiz do caso". Os argumentos da defesa de Lula, que apontava uma celeridade maior na tramitação do processo do ex-presidente com o suposto objetivo de impedi-lo de concorrer à eleição presidencial em 2018, foram rebatidos também por associações de juízes. Então presidente da Associação dos Magistrados do Brasil, Jayme Martins de Oliveira Neto, disse à época que é uma prática comum da defesa dos réus, por meio dos advogados, tentar "desqualificar tribunais e juízes". "É a primeira vez que vejo algum reclamar da celeridade da Justiça. Normalmente o problema é a morosidade. (...) O processo está seguindo um curso normal, com todo o direito de ampla defesa." "Essa alegação de que no Brasil não se está garantindo os direitos de defesa é completamente descabida. O Brasil é pródigo em recursos. O sistema processual penal e civil brasileiro é conhecido porque possibilita uma quantidade incomensurável de recursos", complementou o então presidente da Associação dos Juízes Federais, Roberto Veloso. Considerada uma das mais importantes pesquisadoras de corrupção no mundo, inclusive por Moro e Dallagnol, a professora de direito e ciência política Susan Rose-Ackerman, Universidade Yale (EUA) elogiou em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo a decisão do STF de anular as condenações de Lula, entre outros motivos porque não ficou comprovada a relação entre "o apartamento cuja propriedade foi atribuída a ele" e "os desvios na Petrobras e as grandes transferências de riqueza detectadas pelos investigadores". Por outro lado, Rose-Ackerman disse que "houve um trabalho sério de investigação, que revelou relações impróprias e corrupção em grande escala, e que não me parece ter sido conduzido com viés político inicialmente. Surgiram dúvidas quando eles se voltaram na direção de Lula, mas isso não enfraquece o excelente trabalho feito antes". Para ela, "seria uma pena se erros cometidos no caso particular de Lula fossem usados para desqualificar tudo o que foi feito". Lula passou 580 dias preso, até ser solto após decisões do Supremo Tribunal Federal que anularam essas e outras condenações. A maioria dos ministros considerou que o então juiz federal Sergio Moro não tinha competência para julgar o ex-presidente (que deveria ser julgado em São Paulo ou no Distrito Federal) e que o magistrado agiu de forma parcial (portanto, ilegal). As acusações contra o ex-magistrado ganharam peso após o portal de notícias The Intercept Brasil revelar, em julho de 2019, diálogos privados entre Moro e o procurador Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa da Lava Jato, em que o juiz adotava condutas ilegais em parceria com o Ministério Público Federal, como sugerir testemunhas e delatores, dar pistas sobre futuras decisões e aconselhar procuradores. Segundo a ministra do STF Cármen Lúcia, por exemplo, o então juiz federal Sergio Moro atuou ilegalmente ao autorizar a interceptação de telefones de advogados do ex-presidente e ao determinar a condução coercitiva do petista em 2016, sem primeiro intimá-lo a depor. Essas decisões que anularam suas condenações permitiram que o petista retomasse seus direitos políticos e disputasse eleições novamente.
2022-09-22
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62550841
brasil
O que é ser feminista?
A cada 10 brasileiras, 4 se consideram feministas e 6 rejeitam esse rótulo. O feminismo no Brasil, aliás, é mais bem avaliado por homens do que por mulheres. Por outro lado, a maioria das brasileiras defende pautas consideradas feministas: 70% acham insuficiente o espaço ocupado por mulheres na política, 85% veem aumento da violência contra mulheres e 60% avaliam que as leis não são adequadas para protegê-las. Os dados acima, de uma pesquisa do instituto Datafolha em 2019, resumem uma das principais questões atuais em torno do feminismo: por que muitas mulheres defendem bandeiras feministas, mas ainda assim rejeitam o rótulo? Esse, obviamente, não é o único conflito do movimento organizado que surgiu no fim do século 19 em torno da luta pelo direito das mulheres de votar (e de serem votadas) e que hoje abrange uma série de lutas relacionadas à defesa dos direitos das mulheres contra a discriminação e a opressão praticada na grande maioria das vezes por homens. O movimento centenário levou a conquistas fundamentais, como o direito de votar e a redução da desigualdade salarial, mas as ações e declarações contra a dominação ou a opressão masculina foram alvo de tanta resistência ou desinformação ao longo dos anos que a palavra feminista algumas vezes se tornou uma ofensa para muitas mulheres e homens. E por quê? Há diversos motivos. Em seu livro O Feminismo é para Todos, a escritora e ativista bell hooks (ela assina o seu nome com letras minúsculas) cita um dos principais: muita gente pensa, de forma errada, que o feminismo é "anti-homem". Mas ela explica que, na verdade, o centro do feminismo é ser anti-sexismo (ou anti-machismo), e não ser anti-homem. Fim do Matérias recomendadas Para entender todas essas questões, a BBC News Brasil explica abaixo as origens do feminismo, as ondas do movimento ao longo dos anos e por que não existe um, mas vários feminismos. Em seguida, é preciso entender as críticas ao movimento feitas por mulheres negras e por outras que atualmente rejeitam o termo feminista. Depois, vale se debruçar sobre como as mulheres se tornaram a maioria do eleitorado, mas só ocupam 15% dos assentos no Congresso brasileiro. O primeiro registro conhecido do termo "feminismo" data de 1837, em escritos do filósofo francês Charles Fourier, que comparava a situação das mulheres à dos escravizados. À época, a palavra derivava o termo em latim femina ("mulher") e remetia a características e qualidades femininas. Mas décadas depois passou a ser associado aos movimentos por direitos das mulheres, e a acepção original caiu em desuso. Como ocorre com outros termos políticos importantes (como comunista, liberal e conservador), não há consenso sobre o que realmente significa feminismo, considerado um movimento, uma filosofia política ou uma atitude em relação ao mundo. Mas ainda assim diversas especialistas tentam explicar o que, afinal, é ser feminista. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Por exemplo: para a escritora e pesquisadora britânica Rosalind Delmar, em seu artigo "O que é Feminismo?", "uma feminista é no mínimo alguém que acredita que mulheres sofrem discriminação por causa de seu sexo, que elas têm necessidades específicas que continuam a ser negadas e desatendidas, e que a satisfação dessas necessidades demanda uma mudança radical na ordem política, social e econômica". Carla Cristina Garcia, no livro Breve História do Feminismo, por sua vez, define o feminismo "como a tomada de consciência das mulheres como coletivo humano, da opressão, dominação e exploração de que foram e são objeto por parte do coletivo de homens no seio do patriarcado sob suas diferentes fases históricas, que as move em busca da liberdade de seu sexo e de todas as transformações da sociedade que sejam necessárias para este fim". Em seu livro O Feminismo é para Todos, hooks diz que feminismo é "um movimento para acabar com sexismo, exploração sexista e opressão". Neste livro, ela cita como exemplo sexista a violência patriarcal, "baseada na crença de que é aceitável que um indivíduo mais poderoso controle outros por meio de várias formas de força coercitiva". "Assim como a maioria dos cidadãos desta nação acredita em salários iguais para funções iguais, a maioria do pessoal acredita que homens não deveriam espancar mulheres nem crianças. Ainda assim, quando dizem para essas pessoas que violência doméstica é um resultado do sexismo, que ela não vai acabar enquanto não acabar o sexismo, elas não conseguem fazer essa dedução lógica, porque isso exige desafiar e mudar maneiras fundamentais de pensar gênero", escreve ela. Sexismo é "o conjunto de todos e cada um dos métodos empregados no seio do patriarcado para manter em situação de inferioridade, subordinação e exploração o sexo dominado: o feminino", explica a pesquisadora e professora Carla Cristina Garcia (PUC-SP), no livro Breve História do Feminismo. E o que seria o patriarcado de que hooks e outras feministas falam? De acordo com o Dicionário Ideológico Feminista, organizado pela ativista e psicóloga espanhola Victoria Sau, o patriarcado é uma "forma de organização política, econômica, religiosa, social baseada na ideia de autoridade e liderança do homem, no qual se dá o predomínio dos homens sobre as mulheres, do marido sobre as esposas, do pai sobre a mãe, dos velhos sobre os jovens, e da linhagem paterna sobre a materna". Segundo esse dicionário, o patriarcado "surgiu da tomada de poder histórico por parte dos homens que se apropriaram da sexualidade e reprodução das mulheres e seus produtos: os filhos, criando ao mesmo tempo uma ordem simbólica por meio dos mitos e da religião que o perpetuam como única estrutura possível". Na história em quadrinhos Uma Breve História do Feminismo no Contexto Euro-Americano, a artista gráfica Patu e a jornalista e cientista política Antje Schrupp dizem que feminismo não é um programa de conteúdo fixo, mas uma atitude orientada pela liberdade feminina e "quem quer entender as ideias feministas precisa sempre enxergá-las em seu contexto e não deve jamais exigir uma definição inequívoca". Por isso, muitos pesquisadores falam em "feminismos", como feminismo marxista, feminismo negro, feminismo radical, feminismo pós-moderno (ou interssecional) e feminismo queer (expressão da língua inglesa que significa estranho, excêntrico, e era usada pejorativamente para se referir a homossexuais, mas foi reivindicada por movimentos LGBTI, passando a designar comportamentos que não se encaixam em padrões normativos de gênero). Ainda assim, mais uma vez, diversos especialistas tentam reunir ou explicar o que grande parte das feministas defendem em comum. De acordo com o Dicionário Routledge de Política, de forma simplificada, o movimento feminista busca direitos sociais e políticos para as mulheres equivalentes aos dos homens. E, apesar das divergências entre os diversos grupos feministas, o principal pressuposto compartilhado por todos os braços do movimento é que fazemos parte de "uma tradição histórica de exploração masculina das mulheres, originada inicialmente das diferenças sexuais que levaram a uma divisão do trabalho, como, por exemplo, a criação dos filhos". Hoje, segundo esse dicionário, as políticas defendidas por feministas variam bastante, incluindo igualdade de oportunidades, fim da discriminação sexual em contratações e salários, creches gratuitas para retirar as desvantagens das mulheres no mercado de trabalho e ações afirmativas contra a desigualdade de gênero em vagas de emprego, candidaturas políticas e cargos de chefia. No Dicionário do Pensamento Político, o filósofo conservador britânico Roger Scruton identifica três reivindicações frequentes entre feministas modernas, que também carregam bastante divergências entre si. Primeiro, a reivindicação de que as diferenças biológicas entre mulheres e homens não são suficientes para explicar as diferenças atuais em seus comportamentos, papeis e status. Ou seja, essa disparidade é uma criação social baseada no poder que deve ser removida. Segundo, a ideia de que as diferenças naturais entre homens e mulheres (como atributos físicos) não podem servir de base para a desvalorização de atributos femininos e valorização dos masculinos. Terceiro, a ideia de que "as mulheres não devem ser incentivadas a pensar que ser completas só é possível numa relação com os homens. Mais especificamente, as mulheres devem parar de pensar suas identidades a partir da aparência aos olhos e mentes dos homens". Costuma-se dizer que o feminismo teve pelo menos três ondas, em geral ligadas a fases de grande mobilização do movimento feminista branco europeu ou americano. Mas a própria ideia de ondas é criticada por parte do movimento, por, entre outros pontos, ser reducionista ao sugerir uma suposta unidade nas reivindicações ou sugerir implicitamente que há períodos de "calmaria" entre uma onda e outra. No livro Ideologias Políticas: Uma Introdução, o professor e cientista político britânico Rick Wilford (Queen's University) explica que onda é uma metáfora usada para indicar períodos em que uma maré de novas ideias feministas surgia para transformar a paisagem política. A primeira onda se deu do fim do século 19 até as primeiras décadas do século 20, tendo como principal bandeira o direito de votar e ser votada para as mulheres ao redor do mundo (essa vitória sufragista se daria no Brasil em 1932, por exemplo). Apontava-se à época também como o sistema econômico vigente "se beneficiava do trabalho gratuito das mulheres nos núcleos familiares e da diferença salarial entre os sexos para gerar e ampliar lucros", explica a filósofa e pesquisadora brasileira Ilze Zirbel (UFSC), em artigo sobre o tema. Segundo ela, é comum afirmar que as protagonistas da primeira onda eram mulheres de classe média, mas "a maioria das manifestantes presentes nas grandes manifestações que deram visibilidade a essa onda era da classe trabalhadora, lutando contra as péssimas condições de vida e trabalho a que estavam submetidas". Vale lembrar que a primeira greve geral do Brasil foi iniciada em 1917 por mulheres de uma fábrica têxtil paulistana. Além disso, o chamado Dia Internacional da Mulher (8 de março) teve origem em reivindicações de operárias ao redor do mundo no início do século 20. A segunda onda ganha força nos anos 1960, com um movimento de libertação feminina e ligado à ideia de sororidade (união de mulheres com o mesmo fim, segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa), tendo em vista a discriminação desigual que atinge mulheres de diferentes classes e etnias. Em seu livro A Mística Feminina, um dos principais da segunda onda, a escritora e ativista americana Betty Friedan exorta as mulheres, entre outros objetivos, a se qualificarem, voltarem ao mercado de trabalho e tomarem as rédeas de seus direitos reprodutivos (graças ao surgimento da pílula anticoncepcional), se livrando assim das amarras da vida doméstica. Por outro lado, durante a segunda onda, diversas pensadoras feministas (como Angela Davis e Lélia Gonzalez) ganharam proeminência questionando justamente ideias baseadas no ponto de vista das mulheres brancas e mais ricas. Um exemplo: muitas mulheres negras no Brasil, além das atribuições domésticas e maternas, já estavam inseridas no mercado de trabalho há décadas em postos como comerciante informal e empregada doméstica (geralmente sob condições bastante precárias). E o que significa "libertação"? E como essa palavra se diferencia de "emancipação"? No Dicionário de Política organizado por Norberto Bobbio e outros, a cientista política e professora italiana Ginevra Conti Odorisio (Universidade Roma Tre) ressalta que "emancipação", simbolizada pela luta do direito ao voto, consistia na "exigência da igualdade (jurídica, política e econômica) com o homem, mas mantinha-se na esfera dos valores masculinos, implicitamente reconhecidos e aceitos". A libertação, no entanto, prescinde "da 'igualdade' para afirmar a 'diferença' da mulher, entendida não como desigualdade ou complementaridade, mas como assunção histórica da própria alteridade e busca de valores novos para uma completa transformação da sociedade". A ideia de uma terceira onda surgiu por volta dos anos 1990, época em que a mídia, segundo Ilze Zirbel, divulgava que as jovens seriam "pós-feministas", porque entendia-se que o feminismo havia garantido diversas conquistas (como acesso a educação e emprego) e, portanto, havia perdido sua razão de existir. Algo que, obviamente, não é uma realidade para todas as mulheres. E pelo que elas lutavam? "Para aquelas a quem o acesso à educação, ao saneamento, ao aborto seguro, ao divórcio, à mobilidade básica estavam garantidos por lei, foi possível focar mais intensamente em outras questões. Para as que não viviam esse tipo de realidade, foi necessário seguir lutado por direitos mínimos de cidadania. Outras pautas seguiram sendo comuns à maioria: a luta contra a exploração, a violência física e psicológica, o feminicídio, a discriminação no trabalho, as jornadas duplas ou triplas, os privilégios masculinos." Além disso, explica a pesquisadora, as descrições sobre a terceira onda costumam ressaltar disputas e debates internos, sugerindo de forma equivocada que as fases anteriores tiveram unidade de demandas e de identidade (o que é ser mulher). "Feministas latinas, negras, revolucionárias, proletárias, lésbicas, pró-sexo, antipornografia (dentre outras) fomentaram o debate feminista por todo o século 20, evidenciando a grande diversidade do feminismo (de indivíduos, grupos, pautas, estratégias)." Em mapeamento das mais diversas categorias ou vertentes do feminismo, a antropóloga e professora brasileira Fabiana Martinez (UFG) explica que geralmente o movimento traça a trajetória dos femininos a partir de "uma preocupação com igualdade e semelhança nos anos 1970, passando por diferença e diversidade nos anos 1980 e indo em direção à fragmentação dos anos 1990". Hoje, conta a pesquisadora, essa fragmentação é potencializada pela internet, mais especificamente nas redes sociais, onde experiências são compartilhadas a ponto de ganharem um caráter coletivo. Segundo ela, o ciberfeminismo impulsionou diversas campanhas no Brasil a partir de 2015, numa espécie de "Primavera Feminista" mobilizadas em redes sociais, hashtags, ruas e passeatas. Esses atos problematizam questões como "o machismo, a violência contra mulheres, o assédio sexual, o estupro, a pedofilia, a segurança das mulheres em vias públicas, o racismo e as leis sobre o aborto e o feminicídio". Em um de seus estudos sobre o tema, a pesquisadora analisa as principais vertentes feministas citadas nesses ambientes digitais: feminismo negro, feminismo interseccional (ou pós-moderno), feminismo radical, feminismo liberal/libertário, transfeminismo, feminismo marxista/socialista/materialista e feminismo queer/LGBT. Influenciado por feministas como a escritora francesa Simone de Beauvoir, o feminismo marxista, por exemplo, "entende que a causa da subordinação feminina está na organização da economia e no mundo do trabalho", explica Martinez. Isso inclui, entre outros elementos, o papel feminino na esfera doméstica como reprodutora da família e a desigualdade de classe entre mulheres (patroas e empregadas). O feminismo radical (conhecido também como radfem), por outro lado, é influenciado por ativistas como as escritoras canadense Shulamith Firestone e americana Andrea Dworkin, além da própria Beauvoir. Uma das que mais crescem na internet, essa corrente defende que "a raiz da dominação masculina estaria no patriarcado, nos papéis sociais intrínsecos ao sistema de gênero" e faz críticas a "estruturas que consideram reforçar o gênero e seus efeitos como a maternidade, a feminilidade, a pornografia e a prostituição", explica Martinez. Há também o feminismo queer ou LGBT. Entre 1988 e 1993, a filósofa e escritora americana Judith Butler publicou trabalhos considerados hoje base de áreas de estudos conhecidas como teoria queer e de gênero, segundo as quais há uma diferença entre o sexo biológico e as identidades masculina e feminina que, além de serem formadas por aspectos físicos, seriam também construções sociais por receberem influências históricas e sociais. Para ela, na sociedade contemporânea, as pessoas têm seu gênero designado ao nascer de acordo com seu sexo biológico e que isso determina a forma como são tratadas na sociedade ao longo da vida. "Claro que há aspectos nossos que são sólidos, mas também é verdade que, dependendo da forma como somos criados, da cultura em que vivemos, diferentes possibilidades de desejo emergem em nós. Ser humano é viver na interseção entre biologia e cultura", disse ela à BBC News Brasil em 2017. "Muitos não querem flexibilizar as categorias de gênero, mas, para outros, é uma questão de vida ou morte", afirmou Butler. "Assim, mulheres percebem que podem fazer mais, homens podem se expressar mais, o amor gay e lésbico torna-se legítimo, as pessoas queer se veem como parte do mundo. O gênero abre para elas a possibilidade de respirar, viver, pertencer. É um espaço de compaixão para a luta que enfrentam." "Alguém que lute por igualdade das minorias de um modo geral — e, consequentemente, da mulher — não tem como não ser feminista", disse a senadora Simone Tebet (MDB-MS), hoje candidata à Presidência, em entrevista à BBC News Brasil em 2021. "(Mas) tenho dificuldade de falar que eu sou feminista." E por quê essa dificuldade? "É um termo que agora você não consegue mais nem definir, é uma coisa que nós vamos ter que voltar a discutir: o que é o feminismo? O que é ser feminista no Brasil, que também não se iguala a ser feminista em outros países? (...) Eu tô dizendo que, de modo geral, como tudo no Brasil também, está polarizado e há certo radicalismo. Às vezes, não me enxergam como feminista, ou, às vezes, eu tenho dificuldade, também, em dizer que sou, embora seja, porque há uma pauta ou outra em que pode ser que eu não me enquadre nesse perfil", disse a candidata. Para Tebet, o importante nessa discussões são atitudes, e não rótulos. "Sou uma pessoa de centro e tenho horror a essa polarização. Uma pessoa de centro como eu tem dificuldade até de se adjetivar: sou feminista ou não sou feminista? Não importa. Não adianta você ser rotulada e não seguir a cartilha, né? Então, o que importa são seus gestos e sua história." Um estudo com 27 mil pessoas nos EUA em 2016 mostrou que dois terços dos entrevistados acreditavam que a igualdade de gênero é importante, um aumento em relação a 1977, quando pesquisas similares apontavam que um quarto dos entrevistados pensava assim. Em uma pesquisa feita no Reino Unido em 2018, 8% das pessoas disseram concordar com papéis de gênero tradicionais — que o homem deve trabalhar e que as mulheres devem cuidar da casa. O índice era de 43% em 1984. Se muitas pessoas acreditam que a igualdade de gênero é importante, e ainda não foi atingida, porque não há tantas pessoas — especialmente jovens mulheres — se identificando como feministas? Pode ser que elas não se sintam representadas pelo termo, afirmam especialistas. Segundo pesquisas, mulheres de baixa renda tendem a se identificar menos com a palavra "feminismo". Isso não significa, porém, que elas não defendem bandeiras feministas. Cerca de 1 em cada 3 pessoas entre as classes mais altas se consideram feministas, de acordo com uma pesquisa feita na Grã-Bretanha em 2018. Em comparação, nas classes mais baixas 1 em cada cinco pessoas se identificam com esse termo. Mas, por outro lado, pessoas de baixa renda são tão propensas a apoiar direitos iguais para homens e mulheres quanto pessoas de classes mais altas. Em todas as faixas socioeconômicas, em cada 10 pessoas, 8 concordam que homens e mulheres devem ter os mesmos direitos, de acordo com uma pesquisa britânica de 2015. A questão racial também parece afetar a maneira como a palavra "feminista" é vista. Pesquisas com jovens dos EUA mostram que cerca de 12% das mulheres latinas se identificam como feministas, mas que o índice sobe para mulheres negras (21% se consideram feministas), asiáticas (23%) e brancas (26%). Quase 75% de todas as mulheres disseram que o movimento feminista fez "muito" ou "algo" para melhorar a vida das mulheres brancas. Mas o índice cai para 60% quando a pergunta é se o feminismo conquistou muito para mulheres de todas as etnias. Entre as mulheres negras, só 46% acham que o feminismo melhorou a vida de mulheres de todas as etnias. Em artigo sobre o tema, a filósofa e professora brasileira Halina Leal (Universidade Regional de Blumenau) explica que grande parte das feministas negras apontam que tanto o movimento feminista quanto o movimento negro "falharam e ainda falham ao negligenciar as peculiaridades das necessidades das mulheres negras". Como no momento em que somente os homens negros obtiveram direito ao voto nos Estados Unidos ou quando feministas brancas trataram apenas as necessidades de mulheres brancas de classe média e alta fosse comuns a mulheres de todas as raças, etnias e classes sociais. "Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando? Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas", afirma a escritora e filósofa Sueli Carneiro no artigo "Enegrecer o Feminismo: A Situação da Mulher Negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero". Essa diferença já havia sido levantada um século antes, mais especificamente no discurso "Eu não sou mulher?" proferido em 1851 por Sojourner Truth, abolicionista americana, ex-escravizada e ativista dos direitos das mulheres negras. "Aquele homem ali diz que é preciso ajudar as mulheres a subir numa carruagem, é preciso carregá-las quando atravessam um lamaçal, e elas devem ocupar sempre os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a subir numa carruagem, a passar por cima da lama ou me cede o melhor lugar! E não sou eu uma mulher? Olhem para mim! Olhem para meu braço! Eu capinei, eu plantei, juntei palha nos celeiros, e homem nenhum conseguiu me superar! E não sou eu uma mulher? Consegui trabalhar e comer tanto quanto um homem — quando tinha o que comer — e aguentei as chicotadas! Não sou eu uma mulher?", afirmou Truth. "Ser negra e mulher no Brasil, repetimos, é ser objeto de tripla discriminação, uma vez que os estereótipos gerados pelo racismo e pelo sexismo a colocam no mais baixo nível de opressão", diz a filósofa, professora e ativista brasileira Lélia Gonzalez. Ou seja, "as experiências das mulheres negras não se inserem nem no ser mulher nem no ser negro", resume Leal. Por isso, Carneiro explica que enegrecer o movimento feminista brasileira significa, entre diversos outros pontos, tratar de violência racial contra mulheres negras, formular políticas públicas também para doenças que atingem mais a população negra e contestar "mecanismos de seleção no mercado de trabalho como a 'boa aparência', que mantém as desigualdades e os privilégios entre as mulheres brancas e negras". Em 2002, as mulheres passaram a ser maioria no eleitorado do Brasil, e hoje, duas décadas depois, representam 53% do total — são 78 milhões de eleitoras, ante 69,5 milhões de eleitores. Mas ainda estão longe da representação equivalente no Congresso. Elas somam 15% das cadeiras, metade da média latino-americana. Em 2018, houve uma transformação nesse campo: foi a primeira eleição presidencial desde a redemocratização em que houve uma diferença entre o voto masculino e o feminino para um candidato competitivo à Presidência: Jair Bolsonaro (então-PSL, hoje PL). De 1989 a 2014, homens e mulheres sempre votaram de forma equivalente nos principais candidatos presidenciais, mesmo nas eleições com candidatas com chance de vitória ou eleitas, como Marina Silva (Rede) e Dilma Rousseff (PT). Só que na última eleição surgiu uma disparidade de gênero. Segundo análise do cientista político e especialista em eleições Jairo Nicolau, em seu livro O Brasil Dobrou à Direita, 64 homens a cada 100 votaram em Bolsonaro. Já apenas 53 em cada 100 mulheres fizeram o mesmo. Para a pesquisadora Cecilia Machado, da FGV, em artigo sobre o tema, a principal hipótese é que esquerda e direita no Brasil não tinham "posições marcadamente antagônicas com relação ao papel das mulheres na sociedade", como ocorre nos EUA desde os anos 1980, quando o Partido Republicano passou a adotar uma postura antiaborto, por exemplo. Mas em 2018, Bolsonaro "iniciou no país uma discussão francamente aberta sobre como ele vê o papel da mulher na sociedade", afirma Machado, e se tornou assim o "grande responsável pela disparidade de gênero nas intenções de voto que surgiu no Brasil". Nicolau aponta outras hipóteses para o apoio desproporcional entre homens e mulheres, entre eles o histórico político de Bolsonaro (ligado às demandas de militares, uma categoria majoritariamente masculina) e as bandeiras defendidas por ele (como armamento da população) que têm mais acolhida entre o eleitorado masculino. O presidente refutou os dados que apontam uma maior rejeição feminina a sua candidatura. "Segundo pesquisa, as mulheres não votam em mim, a maioria vota na esquerda. Agora, não sei, pesquisa a gente não acredita, se há reação por parte das mulheres, faz uma visitinha em Pacaraima, Boa Vista, nos abrigos, e vê como é que estão as mulheres fugindo do paraíso socialista defendido pelo PT", disse Bolsonaro, em referência a imigrantes oriundos da Venezuela. A eleição de 2018 teve outro fato inédito ligado às mulheres: foi a primeira disputa em que pessoas saíram em massa às ruas não para apoiar um candidato presidencial preferido, mas para protestar contra outra. No caso, o movimento #EleNão impulsionado por mulheres de esquerda em redes sociais que resultou em dezenas de manifestações ao redor do país contrárias a Bolsonaro. Mas logo após os protestos o candidato cresceu nas pesquisas eleitorais. Nicolau explica que os dados disponíveis não permitem saber com certeza o impacto positivo ou negativo no resultado eleitoral desses protestos, mas o pesquisador estima que "os efeitos devem ter sido mais para reforçar a identidade e os valores dos eleitores que já haviam feito suas escolhas (contra ou a favor de Bolsonaro) do que para influenciar maciçamente a definição eleitoral fora do círculo de pessoas mais ativas na política". Nicolau lembra como as pesquisas de intenção de voto indicavam ao longo da campanha de 2018 um apoio reduzido a Bolsonaro no eleitorado feminino, mas essa situação perdeu força a poucos dias da votação. Ele aponta algumas hipóteses. Uma delas é que historicamente o volume de indecisos é bem maior no eleitorado feminino nos dias que antecedem o pleito. "Outro fator a ser considerado é o efeito da mobilização pró-Bolsonaro de algumas lideranças evangélicas, segmento religioso majoritariamente composto por mulheres." Um estudo liderado pela antropóloga e professora brasileira Isabela Kalil (Fespsp) afirma que as análises sobre a subida eleitoral de Bolsonaro depois dos protestos do "Ele Não" devem levar em conta tanto "traços fortes de antifeminismo no eleitorado feminino" quanto fatores como "mudanças nas estratégias de campanha do candidato, a declaração de intenção de voto de líderes religiosos, ações de propaganda por parte de seus apoiadores e sua alta hospitalar (depois do atentado)". Segundo esse estudo, Bolsonaro conseguiu atrair diferentes grupos de eleitoras, entre elas aquelas que enxergavam a educação como um grande campo de batalha contra "doutrinações" da esquerda e aquelas que se veem como mulheres bem-sucedidas que atingiram seus objetivos por méritos próprios, sem precisar de ajuda de feministas e sem abrir mão da feminilidade. Uma das principais críticas feitas ao feminismo é de que parte de suas lutas atuais não atendem às demandas das "mulheres comuns". Muitas pensadoras feministas, no entanto, argumentam que o feminismo pretende justamente que todas as mulheres tenham a liberdade e a oportunidade de fazer suas escolhas sobre suas vidas, seja trabalhar dentro de casa ou fora dela, por exemplo. O neologismo empoderamento, inclusive, é usado como símbolo dessa meta, de empoderar, de garantir a possibilidade de escolha. Segundo a economista e professora de origem indiana Naila Kabeer (London School of Economics), ele é "o processo através do qual aqueles/as a quem era negada a capacidade de fazer escolhas estratégicas para sua vida adquirem tal capacidade", explica a antropóloga e professora brasileira Cecília Sardenberg (UFBA) em artigo com um panorama do conceito. Nesse sentido, poder é a capacidade de fazer escolhas (e de ter alternativas). E isso passa, segundo a ativista e escritora indiana Srilatha Batliwala, também citada por Sardenberg, por construir sua própria autonomia ao se ter controle sobre recursos materiais, intelectuais e ideológicos. "Recursos, que têm estado, em grande parte, sob o controle masculino." Ainda que seja um percurso individual, Sardenberg ressalta que essas mudanças "não acontecem sem ações coletivas" e conscientização. *Com informações adicionais de Rafael Barifouse, da BBC News Brasil em São Paulo
2022-09-22
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62551293
brasil
Como psicodélicos estão sendo usados no Brasil para aliviar o medo da morte em doenças graves
"A primeira sensação que eu tive foi a de negação", diz Juliana Esquerdo Rossetto Isliker, de 36 anos, sobre o resultado de uma biópsia que apontou o início de um câncer de mama, seis anos atrás. "Eu falei: 'Pô, ferrou, né?'." Em meio aos desafios e à turbulência da nova fase, Juliana resolveu passar por uma cerimônia com ayahuasca, um chá da tradição indígena sul-americana que leva a estados alterados da consciência. A bebida é resultado da mistura de plantas diferentes e se popularizou no Brasil a partir das primeiras décadas do século 20 pelo grupo religioso Santo Daime. Juliana conta que já tinha passado por duas experiências com ayahuasca. Na época, no entanto, havia considerado os cultos vivenciados anteriormente "sérios e rígidos" demais e muito associados ao cristianismo. "Dessa vez eu fiz [o rito de ingestão] já sabendo da doença. Eu coloquei uma intenção específica. Tipo, eu quero cura. Quero entender o que está acontecendo comigo", afirma. Fim do Matérias recomendadas Moradora de Campinas (SP), a artesã explora um caminho que aos poucos vem ganhando espaço no Brasil: o uso de alucinógenos no enfrentamento de doenças graves. Nos últimos anos, há um crescente número de pesquisas científicas a respeito de substâncias como a psilocibina encontrada em cogumelos, o DMT da ayahuasca e o anestésico cetamina (que não é um psicodélico clássico, mas também tem como efeito a alteração da consciência). As descobertas, que indicam que tais propriedades podem aplacar sintomas de ansiedade, depressão e estresse pós-traumático, vêm entusiasmando as comunidades científica e médica. Ao mesmo tempo, o novo cenário implica discussões importantes em torno da eventual popularização de componentes de fortes efeitos sobre o cérebro e cujo uso é ilegal no Brasil: com exceção da cetamina, as substâncias acima pertencem à lista F2, das consideradas ilícitas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), com penas previstas na Lei Nacional de Drogas - que incluem prisão. Mas há nuances. A ayahuasca, por exemplo, é autorizada para uso religioso, segundo resolução do Conselho Nacional de Política sobre Drogas (leia mais detalhes abaixo). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As possibilidades dos psicodélicos vêm interessando diferentes campos da Medicina. Um deles é o dos cuidados paliativos, que ampara portadores de doenças graves tanto em problemas físicos quanto em questões existenciais, como a finitude da vida. Ana Cláudia Mesquita Garcia, enfermeira paliativista e professora na Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Alfenas, em Minas Gerais, diz que a própria ideia de que eles são voltados apenas para pacientes em fim de vida já foi modificada. "A última definição da International Association for Hospice and Palliative Care [entidade mundial da área] cita sofrimentos relacionados à saúde, em especial aqueles no fim da vida. Mas, de forma geral, foca no bem-estar de pacientes de doenças graves e também de seus familiares e cuidadores", diz. Milena dos Reis Bezerra de Souza, clínica-geral da equipe de cuidados paliativos do hospital AC Camargo Cancer Center, explica que a contribuição do profissional "é para o alívio do sofrimento". "Alguém que não está respirando direito não conversa. Alguém que está com dor tem dificuldade para fazer planos de vida." A médica começou a investigar o potencial dos psicodélicos a partir da sugestão de seus pacientes. "É como ser desafiada. A primeira coisa que fiz foi jogar de uma forma muito aberta. Disse: 'não conheço o assunto, mas eu vou te ouvir, vou estudar'. Primeiro, quero saber se não te prejudica. Depois, a gente define se pode ajudar no tratamento." Ela não promove as sessões, mas auxilia os pacientes com câncer que desejam passar pela experiência a adequar seu tratamento, evitando interações medicamentosas e efeitos colaterais. Ana Garcia, por sua vez, ficou intrigada com a possibilidade dos alucinógenos na sua área após ser convidada a avaliar um trabalho de conclusão de curso (TCC). Por falta de expertise à época, preferiu não participar da banca, mas começou a buscar informações sobre o tema. Logo encontrou a tese de doutorado de Lucas de Oliveira Maia, pesquisador no Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e na Cooperação Interdisciplinar para Pesquisa e Divulgação da Ayahuasca da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em São Paulo. O trabalho de Maia foi focado na relação entre os cuidados paliativos com a ayahuasca, que é feita da mistura do cipó mariri com as folhas de outra planta, a chacrona. A bebida contém o potente alucinógeno N,N-dimetiltriptamina (DMT), um alcaloide com uma estrutura química muito semelhante à da serotonina - o neurotransmissor cerebral que, entre muitas outras coisas, ajuda a inibir o impulso de agressão. O DMT gera efeitos visuais no cérebro conhecidos como "visões" ou "mirações" que incluem cenas como paisagens, figuras religiosas, seres divinos, padrões geométricos, cenas paradisíacas e celestiais, seres humanos e não humanos e imagens relacionadas à morte. A Anvisa proíbe o uso do DMT no Brasil. Uma resolução do Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas (Conad), no entanto, "prevê exceção para utilização deste tipo de produto (chá) em rituais religiosos". A publicitária Ana Ruiz, de 33 anos, passou a participar de sessões com ayahuasca após descobrir ser portadora de esclerose múltipla. Ela conta que percebia "cores e figuras geométricas aparecendo". "Via Deus, Jesus Cristo, Maria. Entidades, pessoas que eu não conhecia, mas que falavam comigo." Ela relata também a perda da noção de tempo, outro efeito previsto na experiência. "Pensei que já tinha passado mais de um mês, mas, na verdade, tinham sido só 2h30." Ana diz que a ayahuasca não mexeu com sua visão sobre a morte ("quando chegar minha hora, independente do motivo, eu vou"), mas ela acredita que, junto com os medicamentos de seu tratamento, ajudou no controle da esclerose múltipla e na retomada de um ritmo mais normal de vida. Nos primeiros tempos, conta ela, a doença afetou desde a memória até a sua visão e provocou violentas dores pelo corpo, principalmente na coluna. Isso impactou toda a sua rotina. A publicitária diz que a ayahuasca ajudou a "ressignificar o que é a esclerose múltipla" em relação à própria vida. "Me ajudou a não achar que eu sou menos por causa dela, me ajudou a não me boicotar." O estudo de Maia concluía que os componentes químicos da mistura colaboram para a "aceitação da doença por meio de mecanismos psicológicos múltiplos, incluindo introspecção, autoanálise, processamento emocional e catarse, evocação de memórias autobiográficas". Segundo a artesã Juliana, que enfrenta um câncer de mama, "não dá para explicar o tanto de informação que você recebe e de coisas que você compreende" durante uma sessão. Ela afirma que o resultado que notou das experiências com ayahuasca foi rever sua personalidade: "Sempre falei muito alto, sempre fui muito autoritária, sempre impus muito meu jeito de ser. Achava que não tinha que mudar, não tinha que melhorar. Uma postura meio 'eu sou assim, é a minha personalidade'", diz. "Aí percebi que esse tipo de personalidade e certos comportamentos não faziam bem em vários aspectos da minha vida." Seu tumor teve metástase para pulmão e ossos, e ela não tem previsão de alta. "O câncer e seu tratamento são extremamente difíceis de encarar, mexe com o paciente em muitos níveis. Se a pessoa não estiver forte para enfrentar, ela não aguenta o tratamento." Essa intensidade da experiência com o chá, segundo Lucas Maia, é resultado da "liberação de emoções reprimidas, de histórias pessoais que muitas vezes são associadas aos sentidos e significados da doença enfrentada". Em relação ao câncer em si, sua pesquisa diz que há "um conjunto de evidências obtidas em estudos de biologia celular sugere que os compostos contidos na ayahuasca - em especial, o DMT e a harmina - podem atuar sobre diferentes mecanismos celulares ligados ao câncer e exercer efeitos antitumorais". Maia e a enfermeira paliativista Ana Garcia se uniram para fazer uma revisão científica de 20 estudos sobre os benefícios de psicodélicos (além da ayahuasca, as pesquisas examinaram os efeitos da psilocibina encontrada em cogumelos) para portadores de doenças graves. A conclusão da análise, publicada no periódico científico Journal of Pain and Symptom Management, sugere "efeitos positivos" das terapias psicodélicas com "considerável segurança de uso". Em ambiente com monitoramento médico, não foram relatados "efeitos adversos sérios" e, quando presentes, eram de "leves a moderados em intensidade e transitórios". Os pesquisadores pedem atenção às condições de segurança em que o tratamento ocorre e afirmam que é preciso estudos mais robustos sobre a associação dessas substâncias com esquizofrenia e outras psicoses. A necessidade de mais pesquisas sobre os efeitos de psicodélicos é apontada constantemente. O número de participantes examinados por trabalhos científicos na área ainda é escasso. Uma revisão feita em 2017 por Rafael G. dos Santos, José Carlos Bouso e Jaime E. C. Hallak, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e do International Center for Ethnobotanical Education, Research and Service (ICEERS), da Espanha, analisou oito estudos sobre a ocorrência de surtos psicóticos relacionados a ayahuasca ou à substância DMT. Quase todos se debruçavam sobre episódios individuais, mas havia um levantamento de casos ocorridos na União do Vegetal (UDV), grupo religioso em torno da ayahuasca com 20 mil associados em vários países. Ao longo de 13 anos, foram registrados 29 casos de transtornos psicóticos, como esquizofreniza e mania, embora tenha-se concluído depois que, em 10 dessas ocorrência,s o chá não foi o fator preponderante para os surtos. A revisão concluiu que a administração de ayahuasca a pessoas saudáveis tem "bom perfil de segurança" e que os episódios de surtos estavam mais relacionados ao histórico familiar da pessoal ou ao uso concomitante de outra droga. E advertiu que o local onde a experiência ocorre (conhecido pelo termo setting), com mais monitoramento, pode reduzir a ocorrência de episódios psicóticos. São mais comuns nas pesquisas relatos de desconforto físico, como náusea e vômito, além de ansiedade, confusão e pânico. Estudos dizem que, no geral, esses efeitos cessam depois de um tempo, e o paciente retoma a experiência psicodélica sem esses incômodos. Pesquisadores da universidade norte-americana Johns Hopkins também fizeram uma revisão de estudos no fim de 2021, focada apenas em quadros terminais, e consideraram positiva a incorporação dessas substâncias aos cuidados paliativos. Eles observaram, no entanto, que é preciso estudar melhor a aplicação nessa fase, para evitar que a qualidade de vida do paciente piore, além de apontarem ser necessário obter mais informações sobre a associação de psicodélicos com medicamentos. E também dizem que a popularização dessas terapias pode levar a "igualar tratamentos psicodélicos a tratamentos sem base em evidências [científicas] e tratamentos alternativos nesse contexto". "Religiões [que usam ayahuasca] assinaram uma carta de princípios éticos em 1991 para o uso do chá. Entidades têm tentado divulgar esses casos de abusos e estabelecer normas. Um instituto chegou a publicar uma espécie de manual para mulheres que vão a cerimônias." Outra substância alucinógena que vem sendo muito estudada, a psilocibina encontrada nos cogumelos da espécie Psylocibe cubensis, tem uma situação ambígua. Sites vendem esses cogumelos no Brasil e afirmam que têm permissão para isso. "O cogumelo não é proibido, mas suas substâncias intrínsecas são, e isso já é o suficiente para estar em risco jurídico", diz Emilio Figueiredo, advogado na Rede Reforma e no escritório Figueiredo, Nemer e Sanches Advocacia Insurgente. Um processo penal dependeria "da identificação das substâncias controladas", diz ele. No entendimento de Figueiredo, "o cogumelo em si não basta para a persecução penal". "Segundo a lei vigente, a ilicitude não está na venda do cogumelo em si, mas sim na possibilidade de ali serem identificadas as substâncias proibidas." Mas a Anvisa diz que a lei nº 11.343/2006 "proíbe em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas". Em maio passado, a agência deu a primeira autorização para um estudo com psilocibina para pesquisadores do Laboratório de Avaliação e Desenvolvimento de Biomateriais do Nordeste (Certbio) e da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Henrique Ribeiro, psiquiatra que faz a ponte entre sua área e a de cuidados paliativos no Hospital das Clínicas de São Paulo, se considera um entusiasta das possibilidades dos alucinógenos, mas também "prudente e by the book [que segue regras]". Ele expressa reservas sobre a forma como esse uso pode eventualmente se disseminar no futuro e pede pesquisas com mais participantes para analisar os impactos dos psicodélicos. "Acho que há um risco que a gente ainda não calcula. Principalmente em pacientes com doença avançada, que utilizam várias medicações. Há riscos de efeitos colaterais e piora de alguns sintomas." O psiquiatra defende que terapias do tipo tenham rigor na triagem de pacientes elegíveis, um esquema de preparação para que a pessoa se sinta segura durante a experiência e realização em ambiente hospitalar, com monitoramento. "É imprescindível que mais pesquisas sejam desenvolvidas para que o conhecimento sobre o assunto seja aprofundado", concorda a enfermeira Ana Garcia. "Psicodélicos têm indicações específicas e não são indicadas para todos, além do fato de não serem uma solução mágica que resolverá todo e qualquer problema." Ribeiro faz infusões de um anestésico hospitalar de manejo autorizado, a cetamina (também chamado de ketamina). Segundo a Anvisa, é uma substância de uso controlado pela portaria 344/1998. Há "usos irregulares/recreativos como droga de abuso de tal substância em âmbito internacional". A agência afirmou que, em geral, a "avaliação de medicamentos é feita a partir da verificação da relação de benefício-risco do produto, independentemente de suas propriedades específicas". "A relação benefício-risco tem como base os estudos clínicos. Assim, as substâncias consideradas psicodélicas estão sujeitas às mesmas regras das demais substâncias destinadas ao uso terapêutico." Em ambiente clínico, Ribeiro conta, "é utilizada como uma medicação de benefícios em cuidados paliativos por ter ótimo efeito analgésico e indicação formal para síndromes dolorosas. Na psiquiatria, é útil para tratar depressão refratária. Tenho a experiência de utilizar ketamina em pacientes oncológicos com a finalidade de melhorar os sintomas de humor depressivo". O psiquiatra afirma que a cetamina pode levar os pacientes a ter alucinações, visões, sonhos lúcidos ou estados dissociativos da consciência. "O que chamamos de um estado místico, uma percepção conhecida como unidade oceânica em que a pessoa se vê dentro de um todo muito maior, uma sensação de contemplar algo muito maior do que ela." Ele enfatiza que esse tratamento está em estágios incipientes: "Tudo isso aí é vanguarda ainda". Milena Souza, do AC Camargo Cancer Center, vê com otimismo o interesse que os psicodélicos vêm despertando entre os próprios pacientes. "Nem sempre o indivíduo é tão autônomo nessa busca. Vejo muita gente que se curou do câncer e tem interesse nessas experiências, porque enfrenta dor crônica ou vivenciou situações que deixaram traumas. E os psicodélicos apresentam novas possibilidades." A paciente Juliana considera que a sociedade "é totalmente despreparada para lidar com a proximidade da morte e as limitações físicas que a doença e tratamento trazem". "Os psicodélicos abrem uma nova percepção para enxergar nossos pontos de vista, expandem nossa consciência a um nível totalmente diferente do que estamos acostumados." "Claro que tudo muito bem direcionado e acompanhado."
2022-09-22
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62385578
brasil
Como nova alta de juros nos EUA pode afetar o Brasil
O Federal Reserve (Fed, banco central dos Estados Unidos) elevou na quarta-feira (21/9) os juros da economia americana em 0,75 ponto percentual, para a faixa de 3% a 3,25%. Este é o quinto aumento neste ano, e, com isso, a taxa chegou ao seu maior nível desde 2008, quando eclodiu a crise financeira mundial. A sequência de altas é uma tentativa de conter o aumento da inflação, pressionada pelo encarecimento de combustíveis e alimentos, como consequência da guerra na Ucrânia e dos desarranjos logísticos provocados pelos lockdowns em resposta à covid-19 na China. O presidente do Fed, Jerome Powell, disse que os aumentos são necessários para desacelerar a demanda, aliviando as pressões que aumentam preços e evitando danos de longo prazo à economia. No entanto, a expectativa no momento é que os juros continuem a subir nos Estados Unidos, conforme informou em um comunicado o Comitê Federal de Mercado Aberto, que faz parte do Fed e é responsável por regular a taxa. Fim do Matérias recomendadas O órgão afirmou que está "preparado para ajustar a orientação da política monetária conforme apropriado caso surjam riscos que possam impedir o Comitê de atingir seus objetivos". Projeções do Fed apontam que a taxa básica pode chegar a 4,40% até o final deste ano e atingir 4,60% no próximo ano. Por sua vez, as estimativas para o Produto Interno Bruto (PIB) indicam que a economia americana deve crescer 0,2% em 2022 e 1,2% no próximo ano. As projeções apontam ainda que a inflação americana não deve voltar à meta de 2% até 2025 - atualmente, está em 8,3%, nos acumulado de 12 meses até agosto, de acordo com o governo. Bancos em quase todos os países - com as grandes exceções do Japão e da China - estão tomando medidas semelhantes enquanto lutam com seus próprios problemas de inflação. No Brasil, o Comitê de Política Monetária do Banco Central decidiu na quarta-feira manter os juros em 13,75%, após doze aumentos seguidos, que elevaram a taxa em 11,75 pontos percentuais desde março de 2021, o maior ciclo de altas desde 1999, quando foi implementado o regime de metas da inflação. Um dos primeiros efeitos para o Brasil da alta dos juros nos Estados Unidos para o Brasil é que investidores tendem a tirar recursos de países em desenvolvimento e direcioná-los aos países ricos, considerados mais seguros. "Quando o Fed sobe os juros, há uma entrada de capitais nos Estados Unidos para se beneficiar desses juros maiores", explica Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados. "Por mais que os juros lá sejam bem menores do que aqui, é um país muito mais confiável. Assim, a alta de juros leva a uma saída de recursos de países emergentes para o mercado americano." Por um lado, a alta nos Estados Unidos e em outros países desenvolvidos aponta para uma desaceleração da economia mundial à frente. Isso porque, quando os juros sobem, fica mais caro para empresas e famílias tomar empréstimos, o que diminui a atividade econômica. Essa desaceleração da economia mundial reduz a demanda por bens e serviços, e pode reduzir as exportações brasileiras. Vale explica ainda que a alta da taxa de juros americana gera um receio de que a economia dos Estados Unidos esteja caminhando para uma recessão. Isso desaceleraria ainda mais todo o resto do mundo, incluindo o Brasil, através das exportações. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Analistas ainda têm um receio de que o efeito dos aumentos das taxas, que encarecem as dívidas, possa levar a uma desaceleração maior do que se espera. O Banco Mundial alertou recentemente que os aumentos das taxas podem levar a economia global a uma recessão no próximo ano."Esse é definitivamente um dos riscos negativos - que a natureza sincronizada do aperto possa torná-lo muito mais poderoso", disse Brian Coulton, economista-chefe da Fitch Ratings. A expectativa é que a economia mundial tenha em 2023 seu pior desempenho em mais de uma década, com exceção de 2020, por causa da pandemia, disse Ben May, diretor de macro pesquisa global da Oxford Economics."O que ficou claro é que, se dada a escolha entre permitir que a inflação permaneça alta por um período sustentado ou levar a economia para uma recessão, [os líderes de bancos centrais] prefeririam empurrar a economia para uma recessão", afirma May. Por outro lado, a redução da atividade global pode ajudar a conter a inflação no Brasil, diz Flavio Serrano, economista-chefe da Greenbay Investimentos. O país atravessa um momento especialmente delicado em que a alta de preços se combina com uma pressão sobre as contas públicas por conta de medidas adotadas por Jair Bolsonaro (PL), como a ampliação de benefícios sociais e cortes pontuais de impostos às vésperas da eleição. "Há um potencial de menor crescimento global, gerando menor pressão de preços. Isso pode facilitar o trabalho do Banco Central brasileiro no combate à inflação."
2022-09-22
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62922638
brasil
'Voto envergonhado' em Lula ou Bolsonaro pode decidir eleição?
Com a proximidade das eleições e em meio a um pleito fortemente polarizado, um tema em particular vem despertando interesse de especialistas e da imprensa: o voto nos candidatos mais bem cotados à presidência — Jair Bolsonaro (PL) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) — poderia estar subnotificado? Alguns passaram a descrever esse fenômeno como "voto envergonhado" ou até "amedrontado", ou seja, eleitores deixariam de expressar sua preferência quando questionados em sondagens eleitorais por "vergonha" ou "medo" — em linha com uma teoria de comunicação de massa conhecida como "espiral do silêncio" e usada para descrever a formação da opinião pública. Segundo essa teoria (leia mais no fim desta reportagem), o indivíduo tende a omitir sua opinião quando ela contraria a opinião dominante, por medo de isolamento social. As últimas pesquisas mostram Lula à frente de Bolsonaro nas intenções de voto, com possibilidade de vitória do petista ainda em primeiro turno. Não há consenso entre especialistas ouvidos pela BBC News Brasil sobre subnotificação de votos. Fim do Matérias recomendadas O cientista político Antonio Lavareda, que é presidente do Conselho Científico do Ipespe (Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas) e ligado à Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), foi o primeiro a levantar essa hipótese, com vantagem para Bolsonaro. Já Felipe Nunes, diretor do instituto de pesquisas Quaest, diz exatamente o contrário: que há subnotificação de votos a favor de Lula. E que isso se dá por "vergonha" que parte do eleitorado sente ao votar no petista. Nunes diz que três estudos realizados por ele e sua equipe comprovam esse voto "envergonhado ou amedrontrado". Por outro lado, Márcia Cavallari, do Ipec, e Luciana Chong, do Datafolha, embora reconheçam a 'espiral do silêncio' como fenômeno da opinião pública, sobre a qual dizem haver vários estudos, afirmaram que não encontraram evidências de subnotificação de votos em nenhum dos candidatos. Todos ressalvaram que isso só poderá ser verificado com exatidão depois das eleições. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Lavareda sugeriu a possibilidade de subnotificação de voto a favor de Bolsonaro como possível explicação para a discrepância entre os resultados das recentes pesquisas de intenção de voto presenciais e por telefone. Em ambas, Bolsonaro aparece atrás de Lula, porém, na primeira modalidade, a diferença entre os dois candidatos é maior. Ele diz acreditar que eleitores do atual presidente, especialmente entre as camadas de menor renda e escolaridade, nas quais Lula tem intenção de voto muito maior, estariam mais suscetíveis a omitir a preferência pelo atual presidente, quando questionados presencialmente sobre em quem votariam, diante de amigos ou vizinhos. Por outro lado, por telefone, ficariam mais "relaxados" para dizer a verdade. "Alguns indivíduos, quando têm uma opinião sobre um assunto relevante, mas discrepante da maioria do seu grupo social, omitem essa atitude ou preferências para evitar entrar em conflito e ficar apartado do respectivo grupo", explica, em entrevista à BBC News Brasil. "Minha hipótese é que isso pode acontecer entre pessoas de baixa renda, nas quais Lula tem três vezes mais intenção de voto do que Bolsonaro, sobretudo em pesquisas presenciais. Nas pesquisas telefônicas, isso não ocorre ou se dá com muito menor intensidade. Esse eleitor que fica ressabiado em expressar sua preferência conflitante com a preferência do grupo tem que 'confessar' essa preferência em público, e isso pode produzir algum constrangimento", acrescenta, reforçando de que se trata apenas de uma "suposição" e que não há dados concretos que a comprovem. Mas se essa hipótese realmente for verdadeira, o mesmo não poderia acontecer com eleitores de Lula entre os mais ricos, nos quais Bolsonaro tem intenção de voto maior? "Sim, claro. Mas a magnitude disso, em termos relativos, é muito menor. Há muito menos eleitores nas camadas mais altas da população do que nas camadas mais baixas, portanto, o impacto porcentual nas pesquisas de intenção de voto é bem menor", pondera. Lavareda destaca ainda que não se trata de um "voto envergonhado". "A minha hipótese é que não é envergonhado. É um voto de um cidadão em uma eleição altamente polarizada como essa prefere resguardar suas opiniões e atitudes para si próprio, para evitar acentuar conflitos em seu grupo social. Não é um voto envergonhado; o eleitor não tem vergonha de ter aquela preferência. Ele omite a preferência. É a espiral do silêncio e não espiral da vergonha", argumenta. "Na percepção desse eleitor, ele é minoritário demais e há muita intolerância para um comportamento discrepante do que é modal no grupo", acrescenta. Lavareda diz ainda acreditar que as manifestações de 7 de setembro "podem ter eventualmente "liberado" esse voto oculto entre as pessoas de menor escolaridade e renda. Ao reforçarem uma percepção de sua forte presença na sociedade". "Mas esses 38% de pesquisa posterior a elas devem nos deixar alertas para essa hipótese (de subnotificação)", ressalva. O percentual citado por Lavareda consta em uma pesquisa recente do Ipespe que perguntou "quando o assunto é eleição [você] evita dizer em quem vai votar, diz apenas se perguntado, ou fala abertamente quem é seu candidato?" Do total de entrevistados, 38% responderam que evitam dizer quem vai votar; 19% dizem apenas se perguntados, 38% falam abertamente quem é seu candidato e 5% dizem não ter candidato ou não sabem ou não responderam. E entre os que evitam dizer em quem vão votar, a maior parte (41%) tem Ensino Fundamental e ganha até dois salários mínimos (42%). Felipe Nunes, da Qaest, pensa diferente. "Não haveria por que o eleitor de Bolsonaro confessar o voto numa direção em 2018 e agora ter motivo para escondê-lo", acrescenta. "Fizemos estudos que mostram que o eleitor do Lula não tem a mesma facilidade que o eleitor do Bolsonaro de expressar sua preferência em seu candidato, o que explicaria porque vemos uma diferença tão grande nas ruas, por exemplo, em relação a manifestações." "Ele tem vergonha de votar no Lula, ou até medo. Muito por causa dos escândalos de corrupção em que o PT esteve envolvido. Já o eleitor de Bolsonaro é muito mais verbal; ele 'aparece mais', o que dá a falsa impressão de que as pesquisas de intenção de voto não estão captando a vontade do povo", explica. Nunes ressalva que esse comportamento do eleitorado petista "não tem a ver com renda". Ele lembra que numa pesquisa da Quaest de abril sobre quem o entrevistado preferia que vencesse as eleições, 31% deles expressavam abertamente a preferência por Bolsonaro e que 30,7% preferiam o atual presidente como vencedor. Ou seja, não haveria voto "envergonhado" em Bolsonaro em 2022. Mas a mesma pesquisa mostrou naquele momento que 41,8% dos entrevistados expressaram abertamente preferência pela vitória de Lula, enquanto que 42,8% preferiam que o candidato do PT fosse presidente outra vez. No texto, Nunes recorre à teoria da "espiral do silêncio" para afirmar que, em sua visão, o "enquadramento moralista" adotado por eleitores de Bolsonaro ao falarem de Lula, "com ênfase sobretudo no tema da corrupção, estaria incentivando apoiadores de Lula à autocensura". "Tanto o medo quanto a propensão à autocensura do voto são maiores entre eleitores de Lula do que entre os de Bolsonaro. Assim, além do voto "envergonhado" — em razão da incapacidade do eleitor de Lula de expressar sua preferência num ambiente de cobrança por uma posição socialmente desejável contra a corrupção -, identificamos uma autocensura causada também pelo medo de intimidação social ou mesmo de violência", conclui Nunes no artigo, escrito em parceria com Frederico Batista, professor da Universidade da Carolina do Norte em Charlotte e pesquisador visitante da Quaest. No entanto, outras diretoras de institutos de pesquisa eleitorais ouvidas pela BBC News Brasil, embora reconheçam a 'espiral do silêncio' como fenômeno da opinião pública, sobre a qual dizem haver vários estudos, afirmaram que a hipótese levantada por Lavareda não é corroborada, por enquanto, por dados concretos. "Tenho colocado nos meus questionários em quem você votou no segundo turno de 2018 e não há subnotificação de eleitores bolsonaristas", diz Márcia Cavallari, CEO do Ipec, instituto fundado por parte da equipe que atuava no antigo IBOPE. Segundo ela, institutos de pesquisa normalmente usam métodos para tentar minimizar a possibilidade de subnotificação de eleitores, ora por meio de "perguntas de controle, de comportamento eleitoral no passado" ou "pedindo ao entrevistado para votar secretamente, num tablet, sem ele ter que falar ao entrevistador em quem ele está votando". "Esse fenômeno ('espiral do silêncio') é muito antigo e sempre foi estudado; há mecanismos de minimizar isso, mas isso não impede que aconteça. Mas não sabemos se está acontecendo agora". Luciana Chong, diretora do Datafolha, acrescenta que, por enquanto, não há dados que comprovem subnotificação de votos. "Temos um aplicativo que simula a urna eletrônica no qual o entrevistado pode reproduzir o voto dele. Realmente, não há dados que me indiquem que isso (subnotificação) possa estar acontecendo. O que faz é sempre ter alguns mecanismos para tentar entender isso melhor", diz. "Sempre fazemos esse controle e não percebemos isso em outras eleições. Parece algo residual até agora. Mas cada eleição é diferente". Ou seja, só teremos a certeza sobre a subnotificação de votos após as eleições. A 'espiral do silêncio', aludida pelos especialistas, é uma teoria da ciência política e comunicação de massa desenvolvida nas décadas de 60 e 70 pela alemã Elisabeth Noelle-Neumann. Segundo essa teoria, a vontade das pessoas de expressar suas opiniões sobre questões públicas controversas é afetada pela percepção — amplamente inconsciente — que elas têm dessas opiniões como populares ou impopulares. Em outras palavras: a percepção de que a opinião de alguém é impopular tende a inibir ou desencorajar sua expressão, enquanto a percepção de que é popular tende a ter o efeito oposto. Noelle-Neumann decidiu estudar o que levou à surpresa das eleições federais alemãs de 1965. E fez uma descoberta surpreendente sobre a pesquisa eleitoral realizada durante a campanha daquela ocasião. Meses antes do dia da eleição em setembro de 1965, ela e sua equipe do Instituto Allensbach de Pesquisa de Opinião Pública lançaram uma série de pesquisas destinadas a analisar as opiniões políticas do eleitorado durante a campanha. De dezembro de 1964 até pouco antes do dia das eleições, os resultados da pesquisa sobre as intenções de voto dos eleitores permaneceram praticamente inalterados. Mês após mês, os dois principais partidos, o governista União Democrata-Cristã - União Social-Cristã (CDU-CSU) e opositor Partido Social-Democrata da Alemanha (SDP), estavam empatados, com cerca de 45% da preferência do eleitorado cada um. Sendo assim, seria impossível prever qual partido tinha mais probabilidade de vencer a eleição. Porém, nas últimas semanas da campanha, a situação mudou repentinamente, com os resultados da pesquisa mostrando uma virada de última hora em favor da CDU-CSU. A porcentagem de entrevistados que disse que pretendia votar na CDU-CSU subiu de supetão para quase 50%, enquanto a parcela que pretendia votar no SDP caiu para menos de 40%. No final, o resultado da eleição confirmou o que as pesquisas haviam indicado: a CDU-CSU venceu com 48% dos votos, contra 39% do SDP. Curiosamente, enquanto as intenções dos eleitores permaneceram inalteradas ao longo de muitos meses, suas expectativas em relação ao resultado da eleição mudaram drasticamente durante o mesmo período. Em dezembro de 1964, a porcentagem de entrevistados que esperava a vitória do SDP era quase a mesma que a parcela que esperava uma vitória da CDU-CSU. Mas, então, os resultados começaram a mudar: a porcentagem de entrevistados que esperava uma vitória da CDU-CSU aumentou continuamente, enquanto o SDP perdeu terreno. Já em julho de 1965, a CDU-CSU estava claramente na liderança em relação às expectativas dos eleitores e, em agosto, quase 50% esperavam que o partido venceria. No final da campanha, um número considerável de ex-apoiadores do SDP ou eleitores indecisos votaram no partido que acreditam que sairia vitorioso. Noelle-Neumann investigou as causas sobre por que isso poderia ter acontecido. Ela suspeitou que uma visita da rainha Elizabeth 2ª à Alemanha em maio de 1965, durante a qual ela foi frequentemente acompanhada pelo chanceler alemão democrata-cristão, Ludwig Erhard, pode ter criado um clima otimista entre os partidários da CDU, levando-os a proclamar publicamente suas convicções políticas. Como resultado, os partidários do opositor SDP podem ter (erroneamente) concluído que as opiniões de seus oponentes eram mais populares do que as suas e que, portanto, a CDU venceria. Os partidários do SDP foram, portanto, desencorajados a articular publicamente suas próprias opiniões, reforçando a impressão de que a CDU era mais popular e mais provável de ser vitorioso. Segundo a teoria proposta por Noelle-Neumann, a maioria das pessoas tem um medo natural — e principalmente inconsciente — do isolamento social que as leva a monitorar constantemente o comportamento dos outros em busca de sinais de aprovação ou desaprovação. Para a cientista política alemã, a fim de evitar esse isolamento, tendemos a nos abster de expor publicamente nossas opiniões sobre assuntos controversos quando percebemos que isso vai atrair críticas, desprezo, chacota ou outros sinais de desaprovação. Por outro lado, quando sentimos que nossas opiniões serão bem-recebidas tendemos a expressá-las sem medo e às vezes de uma forma bastante intensa. Começa, assim, um processo em espiral: o campo dominante se tornando cada vez maior e mais autoconfiante, enquanto o outro campo se torna cada vez mais silenciado. É a 'espiral do silêncio'. Na visão de Noelle-Neumann, contudo, a popularidade real de uma opinião não determina necessariamente se ela acabará por predominar sobre opiniões opostas. Ou seja, uma opinião pode ser dominante no discurso público mesmo que a maioria da população realmente discorde dela, desde que a maioria das pessoas acredite (falsamente) que essa opinião é impopular e se abstenha de expressá-la por medo de ficar isolada. O objetivo de Neumann, com sua teoria, era descrever mais amplamente a formação de opinião coletiva e a tomada de decisões da sociedade em relação a questões controversas ou moralmente carregadas. E entender como os meios de comunicação de massa — e, por que não, as pesquisas de intenção de voto — podem influenciar no comportamento da opinião pública.
2022-09-22
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62761829
brasil
Como votar nas Eleições 2022: as respostas para essa e outras dúvidas mais buscadas no Google
Conforme se aproxima o primeiro turno, que ocorrerá no domingo 2 de outubro, perguntas sobre como será a votação, na prática, estão crescendo no Google, segundo dados compilados pela empresa. Na última semana, perguntas como "que dia é a eleição de 2022" e "como votar nas eleições" tiveram crescimento de 5.000% em buscas na comparação com o período anterior de sete dias. Com base principalmente em materiais informativos divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e pelos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs), a BBC News Brasil responde abaixo a perguntas em alta sobre as eleições. O primeiro turno ocorrerá em 2 de outubro e incluirá a votação para cinco cargos: deputado estadual, deputado federal, senador, governador e presidente. A depender dos resultados dessa etapa, o segundo turno, no domingo 30 de outubro, pode ocorrer para os cargos de governador e presidente. Ou seja, os demais cargos são decididos já no primeiro turno. Para governador e presidente serão considerados vencedores já no primeiro turno os candidatos que obtiverem maioria absoluta - 50% dos votos válidos mais um. Nestes casos, não ocorrerá 2º turno de votação. Fim do Matérias recomendadas Em ambas as datas, os eleitores votarão de 8h da manhã às 17h da tarde tendo como referência o horário de Brasília. A uniformização dos horários é uma novidade desta eleição e, com isso, por conta de diferentes fusos horários, o Acre e algumas seções no Amazonas terão a votação de 6h às 15h, para acompanhar a referência no horário de Brasília; e de 7h às 16h em Rondônia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Roraima. Essa é a pergunta mais buscada contendo os termos "pode votar" no Google desde o início da campanha, em 16 de agosto. Já pode votar quem tem 16 e 17 anos, mas nesses casos, o voto é facultativo. A partir dos 18 anos, o voto é obrigatório. Essa regras valem para idades atingidas na data da votação. O voto também é facultativo aos maiores de 70 anos e aos analfabetos. Outra pergunta frequente usando os termos "pode votar" é esta. Todo eleitor tem seu domicílio eleitoral, que na prática, é um município. Não é possível estar vinculado a mais de um domicílio eleitoral ao mesmo tempo. Existe a opção do voto em trânsito, uma solicitação para votar em outro domicílio eleitoral — o novo destino deve ser uma capital ou uma cidade com mais de 100 mil eleitores. Entretanto, o prazo para pedir voto em trânsito nesta eleição já passou, em 18 de agosto. No primeiro turno, o eleitor votará para os cargos de deputado estadual — ou distrital, no caso do Distrito Federal — e de deputado federal, com um candidato para cada um desses cargos. Ou seja, uma pessoa vota em dois candidatos a deputado, um estadual e outro federal. Aliás, para outro cargo do Legislativo, o de senador, há anos em que há duas vagas em disputa. Em 2022, porém, o eleitor votará apenas uma vez para senador. De acordo com o site do TSE, o eleitor que souber seu local de eleição pode votar apenas com um documento oficial com foto, sem exigência do título de eleitor. Com ou sem título em mãos, são aceitos como documento oficial com foto: carteira de identidade, passaporte, carteira de categoria profissional reconhecida por lei, certificado de reservista, carteira de trabalho ou carteira nacional de habilitação. Certidões de nascimento e casamento não valem como documento para votar.
2022-09-22
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62990517
brasil
Como corte de verba ameaça atendimento à saúde de moradores de rua
Um morador de rua que chega a uma unidade básica de saúde pública pode ter dificuldade de conseguir atendimento por falta de documentação ou até por questões referentes às condições relacionadas à falta de moradia. "Às vezes o exame de sangue só é feito às 7 da manhã naquela unidade, e essa pessoa não consegue chegar. Ou, se espera ali, pode ser retirado por agentes da prefeitura por não poder ficar em determinada calçada ou banco. Também há a questão de vestimenta, alguns são impedidos de entrar sem camisa, por exemplo, e até a crença da própria pessoa em achar que ela não pode entrar ali", diz Daniel de Souza, articulador nacional dos consultórios na rua, e parte do programa desde seu início, em 2012. Foi com a intenção de fazer uma ponte entre agentes de saúde, assistentes sociais e outros serviços públicos que surgiu o Consultório na Rua, uma estratégia criada pela Política Nacional de Atenção Primária para ampliar o acesso da população em situação de rua aos serviços de saúde. O serviço é composto por equipes multiprofissionais que desenvolvem ações integrais de saúde de acordo com as necessidades dessa população. Em cinco anos, no período entre 2015 e 2020, estima-se que a população de brasileiros em situação de rua mais do que dobrou, passando de cerca de 102 mil para 222 mil, segundo estimativa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Fim do Matérias recomendadas Apesar disso, dados de um estudo feito pelo Ieps e pelo Instituto Cactus, ao qual a BBC News Brasil teve acesso exclusivo, indicam que houve uma queda no investimento destinado ao programa Consultório na Rua. Em 2019, o investimento foi de R$ 580.470. Pouco depois, em 2021, o investimento do Ministério da Saúde na área caiu para R$ 490.436, uma redução de cerca de R$ 90 mil. A BBC News Brasil questionou o Ministério da Saúde sobre o investimento reduzido, mas não recebeu resposta até a publicação desta matéria. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "O programa é extremante importante e necessário para o atendimento da população de rua, e esse desmonte de investimentos, que também vemos no SUS (Sistema Único de Saúde) e na Farmácia Popular, tende a deixar esse grupo em uma situação de vulnerabilidade ainda maior", analisa Nilza Rogeria Nunes, professora da PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) e pesquisadora na área de políticas sociais. Na avaliação de Dayana Rosa, pesquisadora do Ieps, o número do contingente deve ser maior do que o notificado. "Sabemos que não há metodologias capazes de estimar com precisão quantas são as pessoas sem moradia. O dinheiro disponível para essa política pública não acompanha a necessidade de quem está na rua." Nilza Nunes acrescenta, ainda, que os censos deixam de fora pessoas em situação de pobreza como catadores de recicláveis que passam a semana dormindo nas ruas, mas periodicamente voltam às suas casas longe das cidades onde ficam na maior parte do tempo. As políticas públicas focadas na população de rua ainda são recentes. Os avanços mais significativos começaram em 2009, com a instituição da Política Nacional para a População em Situação de Rua e do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento. No âmbito da saúde, o Plano Operativo de Saúde para a população em situação de rua, implementado no mesmo ano, e a criação do Programa Consultório na Rua, de 2012, são considerados os avanços mais relevantes. Há cerca de 180 consultórios de rua no Brasil. O trabalho das equipes é percorrer as cidades, sobretudo os locais conhecidos por maiores aglomerações de pessoas desabrigadas, e oferecer atendimento. O projeto faz parte do atendimento do SUS, financiado pelo Ministério da Saúde. Em alguns municípios, os consultórios têm parceria com instituições sem fins lucrativos, como é o caso de São Paulo, que fez parceira com o Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto. Há três tipos de composições diferentes para as equipes, que podem ser formada com quatro a sete profissionais a depender do censo da população de rua naquela determinada cidade ou região. Entre os agentes, podem estar enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e terapeutas ocupacionais, agentes sociais, técnicos ou auxiliares de enfermagem, médicos, técnicos em saúde bucal, cirurgiões dentistas, profissionais de educação física e profissionais com formação em arte e educação. "O trabalho é ir até essas pessoas e perguntar se estão precisando de alguma coisa, se têm queixas relacionadas à saúde. Se o paciente responde que tem tossido, por exemplo, perguntamos há quanto tempo, se tem experimentado outros sintomas... Vamos ouvindo e tentamos solucionar o problema. Também fazemos curativos, aplicamos vacinas, fazemos atendimentos psicológicos...", diz o articulador nacional dos consultórios de rua, Daniel de Souza. "Para chegar até essas pessoas, toda equipe tem, ou pelo menos deveria ter, um carro ou uma van com os insumos necessários, já que o atendimento é in loco. Algumas equipes têm um 'quartel general' em alguma unidade de saúde, mas ao abordar um paciente que precisa de um atendimento mais complexo, podemos levá-lo para qualquer unidade", completa. Em vídeo veiculado pela Fiocruz no YouTube, uma idosa no Rio de Janeiro aparece recebendo atendimento odontológico. "Eles que me acharam, eu tive essa surpresa. Eu ficava sentada lá, amuada. Eles perguntaram se eu queria ajuda, disseram que iam cuidar de mim. Eu não tinha água para escovar os dentes, não tinha recursos." O articulador Daniel de Souza reforça que, para atender a uma população tão ampla, com características diferentes, é necessário pensar de uma forma ampla e que abrace a questão da cidadania além das necessidades urgentes da saúde. "Temos parcerias com a Secretaria de Desenvolvimento Social e com a Defensoria Pública. Essa galera às vezes tem desejo de sair da rua, mas não querem ir para qualquer abrigo, não tem documentos, tem baixa escolaridade e pouca ou nenhuma experiência profissional. Com a parceria podemos oferecer soluções mais completas para essas pessoas", aponta. Em alguns municípios, como é o caso de São Paulo, moradores de rua que tenham o ensino fundamental completo (ou consigam completar com a ajuda do próprio programa), podem ser empregados na própria equipe do consultório da rua. É o caso, por exemplo, de Samira Alves Matos, transexual que viveu um período difícil nas ruas e teve a oportunidade de entrar na equipe como agente de saúde. Com a ajuda de uma ONG focada na população LGBTQIA+, se formou na faculdade e hoje é assistente social. "Hoje tenho a oportunidade de atender pessoas para quem conto minha história, e posso inspirá-las que é possível conseguir condições melhores", diz Samira. Um dos empecilhos do atendimento à população de rua, especialmente para tratamentos mais longos, como para tuberculose (de duração de cerca de seis meses), ou até para doenças crônicas, como hipertensão, diabetes e para pessoas que convivem com o vírus HIV, é o fato de que muitos são itinerantes, e portanto, é difícil para os agentes de saúde encontrá-los. "Mesmo que consigam os remédios, podem pegar chuva, serem roubados, e não conseguir no mês seguinte se perderem os documentos, por exemplo", exemplifica a pesquisadora Nilza Nunes. Em relação à falta de investimento, Daniel afirma que São Paulo e Rio de Janeiro sentiram menos impactos sobretudo por conta de um dinheiro destinado especificamente durante o período da pandemia da covid-19. "Mas equipes em outras cidades perderam trabalhadores e insumos", diz. "Já existem políticas nacionais voltadas à população de rua desde 2009. A gente precisa mostrar que há pessoas comprometidas com essa luta, e o que falta realmente é investimento. Teríamos condições de atuar de forma muito mais humanizada e ampla se isso virasse uma pauta política, mas há falta de interesse politico, e isso inclusive reverbera no olhar que a sociedade tem: quem desconhece, criminaliza", conclui Nilza.
2022-09-21
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62810753
brasil
Nem preto, nem branco: os dilemas de pardos que vivem em 'limbo racial'
Maior grupo étnico-racial do Brasil, responsável por 47% da população, os brasileiros que se declaram pardos se veem no meio de uma batalha política. De um lado, o movimento negro prega uma aliança entre pretos e pardos para eleger candidatos à esquerda comprometidos com o combate ao racismo. Do outro, grupos conservadores que ganharam força sob a presidência de Jair Bolsonaro exaltam a identidade parda e acusam a esquerda de estimular divisões raciais no Brasil. Como brasileiros de famílias multirraciais se posicionam nesse embate? Fim do Matérias recomendadas Apresentado pelo repórter João Fellet, o podcast aborda como pessoas de diferentes grupos sociais — como evangélicas, agricultores e executivos do mercado financeiro — se posicionam diante de conflitos políticos atuais. O podcast busca ainda entender como os brasileiros chegaram ao atual grau de divisão na política e se há possibilidade de diálogo entre grupos divergentes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), de 2021, os pardos somam cerca de 100 milhões de brasileiros. Eles respondem por 47% da população brasileira, à frente de brancos (43%), pretos (9,1%) e da soma entre indígenas e amarelos (0,9%). Mas quem são os pardos? "O movimento negro instituiu que negro é igual à somatória de preto mais pardo. A minha geração fez essa engenharia política, e nós dissemos: tudo que estiver dito aí que é pardo e preto, para nós é negro", disse a filósofa Sueli Carneiro, em junho, ao podcast Mano a Mano, do rapper Mano Brown. Carneiro, de 72 anos, é uma das mais destacadas ativistas do movimento negro brasileiro. A definição citada pela ativista embasa o discurso de que os negros são maioria no Brasil, já que pretos e pardos, somados, respondem por 56,1% da população. O discurso se apoia na noção de que pardos também têm antepassados africanos e também sofrem racismo. Essa visão ganhou um reconhecimento oficial em 2010, durante o governo Luiz Inácio Lula da Silva, quando o Congresso aprovou uma lei que criou o Estatuto da Igualdade Racial. O estatuto definiu a população negra como "o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas". Mas nem todos os pardos concordaram com a definição. "Eu sou mestiço, eu não sou negro. Eu sou pardo, eu não sou negro", disse o médico e ativista Leão Alves, em junho, numa conferência organizada pelo Movimento Pardo Mestiço Brasileiro, em Manaus. Fundado pelo próprio Alves, o movimento surgiu no início dos anos 2000 e passou quase 20 anos fora das principais arenas onde raça e política são discutidas no Brasil. Até que a chegada de Jair Bolsonaro ao poder mudou a história do grupo, conforme Alves relatou ao podcast Brasil Partido. No início de 2022, pela primeira vez em sua história, o movimento participou de uma reunião do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial, instância formada por entidades civis e órgãos do governo que está na estrutura do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. O conselho tem a atribuição de propor políticas voltadas à igualdade racial. O Movimento Pardo Mestiço se candidatou a uma vaga no conselho e teve a candidatura aprovada pela então ministra Damares Alves. Nascido em Manaus em 1966, filho de um pai porteiro e de uma mãe zeladora, Alves diz pertencer a uma família fisicamente parecida com a ampla maioria das famílias amazonenses. Naquele Estado, o percentual de pardos na população é de 66,9%, o maior do país. E o Amazonas tem o segundo menor percentual de pretos do Brasil, 3,2%, só atrás dos 3% de Santa Catarina. Isso porque a escravidão africana não foi tão presente no Amazonas quanto em outras partes do Brasil. No Amazonas, o principal grupo escravizado foi o dos indígenas, que hoje são 4% da população do Estado. Segundo Leão, pardos "com aspecto de caboclo" são o grupo que sofre mais preconceito racial no Amazonas por ser associado às classes mais pobres. Na definição do dicionário Aulete, caboclo é o "mestiço de branco com índio", ou o "mulato de pele acobreada e cabelos lisos". Já os pretos, segundo Alves, são associados por muitos amazonenses às Forças Armadas, uma vez que muitos pretos nascidos em outros Estados servem como militares no Amazonas. Uma das críticas de Alves à inclusão dos pardos na categoria negros tem a ver com a política de terras brasileira. Alves defende que, por serem descendentes de indígenas, os pardos do Amazonas deveriam ter "direitos originários" sobre as terras que ocupam — direitos que, no entanto, a Constituição só confere aos povos indígenas. A expressão "direitos originários" se refere a direitos que são anteriores à criação do Estado brasileiro e ao fato de que os indígenas foram os primeiros habitantes do território nacional. Porém, Alves afirma que, por não reconhecer a origem indígena dos pardos e por tratá-los como negros após o Estatuto da Igualdade Racial, o Estado brasileiro se eximiu de destinar terras ao grupo. O médico diz ainda que considerar pardos como negros estimula um conflito entre negros e brancos na sociedade brasileira, ao passo que a identidade parda ou mestiça "homogeneiza e unifica" a nação, segundo ele. Alves considera como parda qualquer pessoa que tenha alguma mistura racial — até mesmo as que tenham pele bem clara ou bem escura. Pelo critério dele, a ampla maioria da população brasileira é parda. O Movimento Pardo Mestiço é próximo de outros grupos conservadores e defende a reeleição de Jair Bolsonaro. A trajetória de Alves vai na contramão de um movimento que ganhou força nas últimas décadas: o dos brasileiros que passaram a se ver como negros, ainda que tenham antepassados de raças distintas. É o caso de Iara Viana, uma educadora e musicista de 37 anos também entrevistada pelo podcast Brasil Partido. Nascida em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, Viana diz ser filha de um homem branco e de uma mulher "preta de pele clara" e ter frequentado escolas particulares onde negros eram raros. Ela diz que, na adolescência, passou a sofrer assédio por conta da "hipersexualização da mulher preta de pele clara" e também episódios de racismo na escola. "As pessoas falavam: 'Cala a boca, sua preta', 'boneca de piche', 'senta lá, sua macaca'". Viana conta que, para se defender, se tornou uma "adolescente cruel" e passou a fazer bullying com outros colegas. Certa vez, quando a coordenadora chamou Viana para lhe dar uma bronca, a jovem diz ter questionado a direção da escola por nunca ter combatido o racismo que ela sofria. "Ela (a coordenadora) simplesmente olhou para mim e falou: 'Mas você nem é negra'. "E esse entrelugar de 'mas você nem é negra', 'mas você não é branca' é uma coisa que faz parte da minha vida desde então", afirma. Apesar dos questionamentos, Viana decidiu se identificar como negra. "O meu processo foi: 'eu estou sofrendo racismo. Aqui as pessoas estão falando que eu não sou preta. Mas eu estou vivendo isso aqui, eu estou enxergando o que está acontecendo aqui, e eu vou me assumir como preta, assim as pessoas não vão fazer isso comigo, eu vou assumir a minha afrodescendência'." Para ela, "a questão do pardo foi uma coisa inventada no Brasil pelos europeus para separar a gente, para tirar o poder revolucionário da população negra brasileira". Viana vota em partidos de esquerda e defende a eleição de políticos negros focados em combater o racismo. Ao se declarar negra, no entanto, Viana passou a encarar questionamentos do outro lado, por parte de negros que não a viam como igual. Ela conta que, num encontro do movimento negro, uma mulher preta de pele retinta a criticou por morar em Perdizes, um bairro rico e majoritariamente branco de São Paulo. "Ela me falou: 'sabe qual é a nossa diferença?' 'A nossa diferença', ela falava dela, é que ela só fica na cozinha da casa dessa gente de Perdizes, e eu posso sentar no sofá da sala." Viana diz compreender que, por ter a pele clara, jamais sofrerá tanto racismo quanto pretos retintos. "Por isso eu não fico ofendida quando alguém questiona a minha negritude. Só que não quer dizer que, estando sentada lá naquele sofá, eu também não sofra racismo", afirma. O podcast Brasil Partido abordou as trajetórias de Leão Alves e Iara Viana com o arquiteto baiano Zulu Araújo, um dos principais nomes do movimento negro brasileiro. Araújo, de 70 anos, dirigiu entre 1990 e 1994 o Grupo Cultural Olodum, uma das mais importantes organizações culturais afrobrasileiras, e presidiu entre 2007 e 2010 a Fundação Cultural Palmares, um órgão federal responsável por difundir a cultura brasileira negra. Indagado sobre os episódios em que Iara Viana diz ter sido questionada sobre sua negritude por outros ativistas do movimento negro, ele afirmou: "Um dos equívocos graves que o movimento negro tem é que uma parcela da sua militância acredita no racialismo, ou seja, de que a cor da pele passa a ser um elemento fundamental para definição da militância, para definição daqueles que têm, ou devem ter, mais protagonismo na luta". Araújo afirma que "o que nós precisamos no Brasil é de um movimento antirracista". Para ele, o movimento negro deve continuar existindo, pois é composto por "aqueles que sofrem diretamente na pele, na alma, no coração, a discriminação". "Mas, do ponto de vista político, nós não podemos abrir mão daqueles que possam contribuir para que a discriminação e o racismo acabem no Brasil." Segundo ele, o movimento antirracista deve "incorporar brancos de todas as matizes, negros de todas as matizes, desde que sejam antirracistas". Alves também comentou as visões do Movimento Pardo Mestiço. Segundo ele, ao valorizar a identidade parda e a noção de que quase todos os brasileiros são mestiços, o grupo ignora que o racismo no Brasil se baseia principalmente no fenótipo (aparência) das pessoas. "Você é mais discriminado quanto mais você se parece com um africano, seja na cor da pele, seja nos seus traços fenótipos, tipo narizes mais achatados, lábios grossos, cabelos mais carapinha", diz. Por essa lógica, Alves afirma que, mesmo que a maioria da população brasileira seja multirracial, pessoas com características físicas associadas à negritude são mais discriminadas que as outras. Daí a impertinência de considerar todos os mestiços como parte de um só grupo, diz ele. Alves faz outras ressalvas ao grupo fundado por Leão Alves. "A minha crítica a esse movimento dos pardos é porque eles, na verdade, estão muito mais voltados para o combate àqueles que combatem o racismo e a discriminação do que para promover a igualdade", afirma.
2022-09-21
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62812987
brasil
DataToalha do DataToalha: em quem votam os vendedores de toalhas dos candidatos
Os produtos vendidos por eles se tornaram um símbolo das eleições presidenciais de 2022: as toalhas com os rostos de candidatos, cujas vendas passaram a ser consideradas um termômetro da preferência dos eleitores nas urnas. São profissionais que fazem parte do contingente 39,3 milhões de trabalhadores informais existentes no Brasil, que representam quase 40% da população ocupada no país, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). O número de trabalhadores informais no Brasil registrado em julho — dado mais recente disponível — é o maior da série histórica do IBGE, com início em 2012. Ainda segundo dados do IBGE, o Brasil somava 1,1 milhão de trabalhadores ambulantes e feirantes em junho deste ano, com uma renda média mensal de R$ 1.163, segundo dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua, compilados pelo economista Cosmo Donato, da LCA Consultores. Os comerciantes informais de São Paulo ouvidos pela BBC News Brasil têm relações de trabalho diversas: alguns são trabalhadores por conta própria, outros pequenos empresários que contratam funcionários em suas barracas nas vias públicas e outros são esses funcionários. Fim do Matérias recomendadas São homens e mulheres, com idades que vão dos 30 aos mais de 50 anos, evangélicos e católicos em sua maioria — mas há também ateus e sem religião. Eles compartilham trajetórias comuns, de desemprego ou busca por melhores oportunidades, que levam ao trabalho nas ruas, mesmo sob o risco constante de ter a mercadoria apreendida pelo "rapa". À BBC News Brasil, eles falaram sobre suas histórias, como estão vendo a atual situação da economia, da política e as eleições de 2022. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) é a escolha preferida da maioria dos comerciantes informais ouvidos, refletindo as pesquisas eleitorais para a Região Metropolitana de São Paulo. Mas Jair Bolsonaro (PL) e candidatos da terceira via também são citados. Na última pesquisa Ipec (instituto criado por funcionários do antigo Ibope) para o Estado de São Paulo, publicada em 6 de setembro e com campo realizado entre os dias 3 e 5 deste mês, Lula registrou 44% da intenção de voto no Estado, ante 28% para Bolsonaro, 6% para Ciro Gomes (PDT) e 5% para Simone Tebet (MDB) na pesquisa estimulada — a margem de erro é de 3 pontos percentuais para mais ou para menos. Na Região Metropolitana de São Paulo, Lula tinha 46%, contra 23% de Bolsonaro, uma distância de 23 pontos percentuais. No interior do Estado, Lula registrava 41% das intenções de voto na pesquisa estimulada, ante 33% de Bolsonaro, distância de apenas 8 pontos. As entrevistas publicadas abaixo não são parte de uma pesquisa eleitoral, mas apenas de um retrato do que pensam alguns dos trabalhadores informais da capital paulista. O baiano Aécio César Sobrinho, de 48 anos — 33 deles passados trabalhando na Rua 25 de Março, um dos principais centros de comércio popular de São Paulo — é parte de um grupo que está ajudando a definir as eleições de 2022. Ele votou em Bolsonaro em 2018, mas agora pretende votar em Lula. "Eu votei no Bolsonaro, mas me arrependi, porque ele fala muita besteira", diz Aécio, que é casado e pai de seis filhos. "Votei acreditando que ele ia mudar o nosso país, mas depois que eu vi o que ele fez, só fez besteira. Achei o Bolsonaro péssimo. Por exemplo, na época da pandemia, as vacinas já podiam estar na nossa mão e ele lá dando uma de louco, falando que [quem tomasse a vacina] ia virar jacaré. Isso é coisa de um presidente do nosso país, que governa uma nação, falar?", questiona o comerciante, que é proprietário de uma barraca, onde emprega uma funcionária. Aécio mora em Guaianazes, na zona leste de São Paulo, e se diz sem religião — ele acredita em Deus e Jesus Cristo, já frequentou as igrejas evangélica e católica, mas hoje não tem mais o costume de frequentar nenhuma das duas. Quando chegou na 25 de Março, há 33 anos, ele conta que o que dominava na rua era o comércio de bijuterias. Agora, são as roupas. Na sua barraca, o que vende mais são as roupas e acessórios de anime (desenhos animados de origem japonesa, como Naruto), mas as toalhas de candidatos e acessórios para a Copa do Mundo dão uma ajuda, em meio às vendas desaquecidas. "O comércio está muito fraco, em 33 anos, nunca vi uma época dessas. Depois da pandemia, caiu drasticamente e, mesmo com a abertura, não voltou nem à metade", calcula. "Para você ter uma ideia, a gente vendia na faixa de R$ 2 mil a R$ 3 mil [por dia] nessa época de setembro a dezembro, até o Natal. Hoje vende R$ 300 a R$ 400, olha a diferença, o tanto que caiu. Não está fácil para nós aqui na rua. No comércio em geral, meu amigo aqui que tem loja [ele aponta para a loja em frente à sua barraca] está na mesma situação. Ele paga R$ 40 mil de aluguel e diz que tem mês que não consegue tirar nem para o aluguel." Aécio compra as toalhas de candidatos no Brás, por R$ 15, e revende por R$ 30 ou duas por R$ 50, se o cliente quiser negociar. Ele vota em Lula mas, na sua barraca, o consumidor escolhe a toalha que quiser, seja do petista ou de Bolsonaro. "Meu interesse é o dinheiro, eu sou comerciante." Osvaldo Pires Valentim, o Osvaldo das Toalhas, é um dos vendedores que ganhou fama na internet, ao promover suas vendas através de um placar que mostrava quantas toalhas de cada candidato eram vendidas. A prática que virou meme nas redes sociais ficou conhecida como "DataToalha", um trocadilho com o instituto de pesquisas DataFolha. Osvaldo também apareceu em diversas reportagens, após o ator Bruno Gagliasso comprar dele 20 toalhas de Lula para dar de presente aos amigos. Com a fama e o endereço fixo — uma rua do bairro nobre dos Jardins, nas imediações da Av. 9 de Julho —, Osvaldo levou uma batida do "rapa", perdendo toda sua mercadoria no início deste mês. "Foram R$ 7 mil a R$ 10 mil de prejuízo, levaram meu estoque de meses, eu tinha um carrinho de supermercado e duas malas lotadas [de produtos]", lamenta Osvaldo. Além do placar — que no dia da visita da BBC News Brasil (09/09), marcava 292 toalhas de Bolsonaro vendidas, contra 208 de Lula, na contagem iniciada em 1º de julho —, o varal de Osvaldo chama a atenção por uma peculiaridade: as toalhas de Simone Tebet, do MBD. "O pessoal passava aqui e eu mostrava toalha do Lula e do presidente [Jair Bolsonaro]. Teve uma vez que uns cinco carros passaram dizendo: 'Nem um, nem outro. Você não tem terceira via?' Aí eu comecei a perguntar quem: Simone Tebet ou Ciro Gomes? E a Simone Tebet ficou mais pedida do que o Ciro Gomes", lembra o ambulante. Um dia, a própria Simone Tebet foi ao ponto de Osvaldo. "No fim, eu tive que mandar fazer a dela, porque meus fornecedores tinham medo de encalhar. Já vendi 48 unidades." Osvaldo já foi porteiro, segurança, manobrista, taxista e motorista de Uber. Aos 49 anos, o morador de Carapicuíba, na Grande São Paulo, passou a trabalhar como vendedor ambulante nas ruas da capital após perder o carro, apreendido depois de um acidente. Na esquina onde ele trabalha, divide a atenção dos motoristas que param no semáforo com um vendedor de panos de chão, outro de palhetas para limpador de para-brisa e dois malabaristas, um equilibrando bolinhas coloridas e o outro claves, em cima de uma escada de duas pernas. Casado, sem filhos e evangélico, Osvaldo é eleitor de Bolsonaro, mas diz amar todas as pessoas, independente das preferências político-partidárias delas, como aprendeu com Jesus. "Ouvi uma frase do Silvio Santos uma vez que achei muito importante. Ele falou o seguinte: as pessoas maximizam a falha na outra pessoa. É próprio do ser humano isso", diz Osvaldo, sobre as críticas à gestão de Bolsonaro. "Vamos maximizar o que foi melhor. Por exemplo, uma obra de levar água lá para o sertão, para o povo pobre e sofrido do Nordeste. Por que os governos do PT mandaram trilhões para países estrangeiros quando o Brasil é carente de muita coisa?", questiona o comerciante, citando também o Pix, a redução do número de radares nas rodovias federais e o corte do ICMS sobre os combustíveis como feitos positivos do presidente. No Jardins, a toalha grande sai a R$ 60 e a pequena a R$ 20, mas Osvaldo negocia se o cliente chorar. "Vender toalhas também é uma forma de ter um diálogo político", diz Tânia Chaves, de 36 anos e vendedora de toalhas aos domingos na Av. Paulista fechada para carros e aberta para lazer. Moradora de Interlagos, na zona sul de São Paulo (a 20 km da Praça da Sé, na região central da cidade), o varal de Tânia se destacava no dia da visita pela BBC News Brasil (4/9) por ser o único naquele dia com toalhas tanto de Lula, como de Bolsonaro — os três outros vendedores que trabalhavam naquele domingo na Paulista tinham apenas material do líder das pesquisas eleitorais. Casada, sem filhos e católica não praticante, Tânia aproveita a venda sazonal de toalhas dos candidatos para complementar a renda da comercialização de seu produto principal, que são porta-temperos de vidro, em suportes de madeira. "Num dia bom, vendo de R$ 800 a R$ 1 mil em material de eleição, e na mesma faixa em porta-temperos. Mas meu produto é mais sazonal, depende do fluxo de turistas na cidade, já as faixas e bandeiras [dos candidatos e do Brasil] estão muito mais valorizadas nesse momento, por conta da eleição", diz a vendedora. Tânia compra o material de eleição na região da Santa Ifigênia, no centro de São Paulo, por R$ 15 a R$ 20, e vende as toalhas por R$ 40 e a bandeira do Brasil por R$ 50. "A do Lula vende mais, mas o 7 de setembro impulsionou as vendas de bandeiras do Brasil. Nos atos do Bolsonaro, as pessoas priorizam mais a bandeira do país, do que a do Bolsonaro. São mais aquelas tiazinhas que compram, as tiazinhas do Bolsonaro", diz Tânia, acrescentando que o material de Lula tem mais saída entre a faixa etária mais nova, a "molecada". Apesar de vender toalhas dos dois candidatos, Tânia diz desaprovar a polarização. "São onze opções de voto e essa polarização não é bacana para a gente", afirma. A vendedora vai de Ciro Gomes no primeiro turno. "O Ciro para mim é um candidato que não está pendurado em cargo político todo ano, é uma pessoa que põe ideias novas — às vezes parece tudo mirabolante, mas ele está tentando ver além do muro." Questionada sobre por que não vende toalhas de Ciro, ela explica que não existem toalhas do candidato do PDT no mercado. "Não tem, nem que eu quisesse [comprar] e também as pessoas ficam na polarização mesmo", lamenta. Mesmo contrária à dualidade, Tânia diz já ter escolha para um possível segundo turno entre Lula e Bolsonaro. "Lula. Porque eu tenho um único pensamento: em quatro anos, a gente não consegue mais tirar o Bolsonaro. Mas eu tenho certeza de que, se acontecer alguma coisa com a candidatura do Lula, se alguma coisa surgir, ele sairá de boa. Acho que ali é mais democrático do que aqui." Para além dos comerciantes mais pragmáticos, há um outro perfil entre os vendedores de toalha: os militantes políticos que vendem toalhas apenas de um candidato. "Eu sou partidário, tenho lado. Não vendo [material do Bolsonaro]. É a mesma coisa que você perguntar se eu venderia toalha do [ditador nazista Adolf] Hitler", diz Yuri Ribeiro dos Santos, de 33 anos e morador do Jardim Helena, na zona leste de São Paulo. Comerciante nas vias públicas há seis anos, ele é um dos vendedores da Av. Paulista que trabalham apenas com toalhas, camisetas e bottons de Lula. "Bolsonaro para mim foi um desastre. Não só para mim, mas para a nação brasileira. Na condução da pandemia, aquela situação que teve em Manaus. Morreu muita gente por culpa da negligência do governo. E aí eu vou colocar a toalha do cara para vender aí?", questiona. "Eu não penso só em dinheiro. Acho que se eles [os outros vendedores] querem vender dos dois, eles vendem. Eu não vendo por que sou filiado ao PT e não divulgo a imagem de um cara que eu acho que é fascista", afirma o vendedor. Solteiro, sem filhos e ateu, antes de vender nas ruas, Yuri foi líder de hospedagem num hospital voltado ao público de alta renda. Quando não vende material político, ele trabalha em shows com material dos artistas e em grandes eventos, como Carnaval e a Parada Gay. "Não tem outro caminho para a gente, nos dias de hoje, a não ser a política. Porque fora da política, é guerra. Estamos vendo a guerra entre Rússia e Ucrânia: ali acabou o diálogo político", diz Yuri. "Então a política é um caminho mais viável para resolvermos nossos conflitos. Eu acredito numa revolução. Acreditava mais antigamente, mas ainda hoje acredito. Mas acho que não estamos no momento de radicalizar as coisas, acho que tomando o Congresso com a força popular, vamos conseguir um resultado melhor, sangrando menos." Adinaldo Aparecido Lemos Batista, de 55 anos, já foi da Congregação Cristã do Brasil, mas diz que no momento "está parado, porque esse negócio de religião virou comércio". "Estou meio 'descrençado' por causa dessa política. A Congregação Cristã não prega para a turma negócio de política, porque ela é contra igreja misturar com política. Mas o povo da Congregação virou político, porque eles estão com o golpe, estão junto com Bolsonaro. Eu não apoio esse tipo de coisa, por isso estou meio afastado", explica o vendedor ambulante. Paranaense, filho de mineiro e morador de São Paulo há muitos anos — atualmente no Planalto Paulista, bairro da zona sul —, ele já trabalhou como assessor parlamentar na Câmara de Limeira e foi candidato a vereador na cidade do interior paulista em 2020 pelo PT, com o nome Batista do Mega Fone, tendo recebido 64 votos, segundo dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Ele tem uma empresa de pintura, que está parada, então faz bicos como vendedor de cerveja, refrigerante, pipoca e algodão-doce na praia ou de material político na cidade. "Eu fiquei 580 dias na vigília Lula Livre em Curitiba. Trabalhei mais de um ano voluntário, daí comecei vendendo materiais lá e depois continuei vendendo. A gente trabalha para a luta", afirma. Ele compra as toalhas de Lula na 25 de Março por cerca de R$ 20 e revende por R$ 35. "O Lula ganha essa eleição direto, não vai dar segundo turno. Hoje o tempo está ruim, não deu quase ninguém e já vendi mais de 15 toalhas. Domingo vendemos na faixa de R$ 800 a R$ 1.200, entre toalhas e as outras coisas. No sábado, são de R$ 400 a R$ 600", calcula. Para Vanessa Andrade, de 42 anos, evangélica e vendedora de roupas infantis e sazonais na Rua 25 de Março, a escolha pelo candidato petista tem razões econômicas. "Eu sou do Lula. Sempre votei no PT, porque ele envolve o trabalhador, porque eu trabalhava na rua em 2013 e tinha dinheiro na rua, pela situação que estamos vivendo hoje de ter o leite a R$ 10. Eu tenho condições e consigo manter minha família, mas e quem não tem? Escolher entre tomar leite ou comer carne é uma situação a que nunca se deveria chegar", afirma. "Eu cheguei a ter loja e perdi minha loja durante a pandemia. Eu vendia vestidos de festa, mas com dois anos parados, eu tive que fechar a loja e peguei essa banca", relata. "Ele [Bolsonaro] atrapalhou demais, as decisões dele na pandemia demoraram demais, por não acreditar no que poderia acontecer. Eu entendo, ele é um ser humano, mas atrapalhou." Vanessa compra as toalhas de Lula e Bolsonaro no Brás, a R$ 10, e vende entre 50 e 60 por dia por R$ 25 cada. No geral, as toalhas de Lula vendem mais, afirma, mas o 7 de setembro impulsionou as vendas de material de Jair Bolsonaro e deixaram ela na dúvida sobre o desfecho das eleições. "Depois dessa manifestação do 7 de setembro, eu não sei pontuar o que vai acontecer. Porque era muita gente apoiando ele [Bolsonaro] e aqueles que estão indecisos podem ir pelo oba-oba", avalia. A baiana Idei Ribeiro Soares, de 33 anos e funcionária em uma barraca a poucos metros dali, também tem críticas à situação da economia brasileira. "Está muito difícil, principalmente no supermercado, o preço das coisas está um absurdo. Para o pobre viver está complicado, porque há tempos que o salário não sobe e as coisas só aumentam. Então para a mãe e o pai de família está muito ruim", afirma. Mãe de três filhos e católica, ela era merendeira em Umburanas, na Bahia, mas conta que perdeu o emprego por questões políticas locais. "Tinha que votar em que eles quisessem e, para mim, não funciona desse jeito. Eu tenho livre-arbítrio, eu voto em quem eu quiser." Segundo Idei, ela foi demitida por não seguir a orientação de voto. Como a cidade é pequena e as únicas fontes de renda são os empregos ligados à Prefeitura ou os benefícios sociais e aposentadorias, foi para São Paulo, em busca do sustento dos filhos. Com a mudança, a comerciante ainda não transferiu o título de eleitora. "Eu não voto aqui, mas se fosse votar, não ia nem em Lula, nem em Bolsonaro. Ia na Simone [Tebet] ou no Ciro, porque tem que dar oportunidade para outras pessoas", afirma. Além do que recebe na barraca, Idei conta com o Auxílio Brasil, elevado a R$ 600 até dezembro. Ela afirma, porém, que isso não faz ela querer votar em Bolsonaro. "Ele não está nos dando nada, isso é um direito nosso. Ele dá isso, mas quando a gente vai ao mercado, vai embora praticamente tudo. Então ele não está ajudando, ainda mais que ele vem fazer isso logo próximo da eleição", afirma. "O governo Bolsonaro nunca foi de ajudar os mais necessitados, é um governo para pessoas que têm dinheiro, não é um governo da classe mais pobre. É assim que eu vejo." As toalhas da barraca onde Idei trabalha são compradas por R$ 16 no Shopping Saara, na própria 25 de Março, e revendidas a R$ 30. Saem entre 10 e 20 toalhas por dia, mas o movimento não é mais o mesmo de quando começou a febre pelo produto, lamenta a comerciante.
2022-09-21
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62963712
brasil
'Não temos candidato oficial': associação com Bolsonaro causa incômodo e rejeição na comunidade judaica
Uma das falas mais criticadas de Jair Bolsonaro na campanha eleitoral de 2018 foi um discurso que ele havia feito um ano antes em um evento no Rio de Janeiro. "Eu fui num quilombo", disse Bolsonaro. "O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Eu acho que nem para procriador ele serve mais." A palestra, para cerca de 300 pessoas, aconteceu no Clube Hebraica, um espaço tradicional da comunidade judaica no Rio — a entidade não demonstrou apoio explícito ao candidato em 2018, mas o espaço dado a ele revoltou parte da comunidade, indignada com o racismo apontado nas falas do então deputado. Embora não tenha havido apoio institucional oficial das principais representações judaicas, a tentativa do bolsonarismo de se aproximar do judaismo foi ganhando evidência ao longo do mandato. Além da afinidade de Bolsonaro com o governo de Benjamin Netanyahu em Israel, se tornou bastante comum o uso de símbolos como a estrela de David ou a bandeira de Israel em eventos. Tudo isso gerou incomodo e rejeição na comunidade, segundo líderes ouvidos pela BBC News Brasil. A preocupação, dizem eles, é que se faça uma associação do bolsonarismo com os judeus, sendo que parte da comunidade inclusive se opõe firmemente a Bolsonaro. "É importante lembrar que para cada convidado dentro do clube, existiam 2 do lado de fora protestando contra a presença do Bolsonaro no local", afirma Daniel Annenberg, líder judaico e vereador em São Paulo. Fim do Matérias recomendadas Neste ano, foi reforçada uma articulação de diversos líderes e entidades tanto de direita quanto de esquerda para tentar desfazer essa imagem, demonstrar apoio à democracia e lembrar que a comunidade judaica é plural. A Confederação Israelita do Brasil (Conib), principal representante política da comunidade judaica brasileira, lançou um manifesto em conjunto com 14 outras entidades em defesa da democracia e destacando que "a comunidade judaica brasileira não tem candidatos oficiais". "Há judeus de direita, de esquerda e de centro", diz a carta, e as entidades "buscam interlocução permanente com todos os segmentos dispostos a dialogar de forma democrática, respeitosa e construtiva." "Acreditamos nas instituições democráticas", diz a Conib, e "rechaçamos, guiados pelas normas democráticas, a discriminação, a demonização ou a perseguição de grupos religiosos, políticos ou nacionais." Nesta quarta-feira, o grupo Judias e Judeus pela Democracia — SP lançará um manifesto em apoio a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que conta com mais de mil assinaturas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Se, em respeito à pluralidade, a Conib não cita diretamente de onde vêm as ameaças à democracia, ativistas, líderes e pesquisadores judaicos não hesitaram em condenar Bolsonaro diretamente. Alguns vão além: acusam o governo Bolsonaro de antissemitismo, que seria "camuflado" pela proximidade com Israel. Eles dizem que, por isso, qualquer apoio a ele é incompatível com a comunidade judaica. Um relatório lançado em 16 agosto pelo brasileiro Jean Goldenbaum, professor da Universidade de Hanover, na Alemanha, aponta para dezenas "semelhanças" e "cópias fiéis da propaganda nazifascista" feitas por "propagandistas bolsonaristas" e registra um aumento de episódios de antissemitismo — 104 no total — registrados nos últimos dois anos. O documento foi feito em conjunto com os pesquisadores Nathaniel Braia, Leana Naiman Bergel Friedman e Charles Schaffer Argelazi. Alguns dos episódios de antissemitismo citados pelo relatório que estariam diretamente ligados a Bolsonaro chamaram bastante atenção nos últimos anos. O relatório também cita o fato da família Bolsonaro ter convidado e recebido no Planalto a líder do partido de ultradireita alemão AFD, Beatrix von Storch, ligada ao neonazismo alemão. É difícil medir o tamanho exato do apoio (ou da oposição) a Bolsonaro na comunidade judaica brasileira, explica à BBC News Brasil Michel Gherman, coordenador do núcleo de Estudos Judaicos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Embora as pesquisas de intenção de voto incluam religião e etnia entre os fatores registrados dos eleitores, não há uma separação específica de como vota a comunidade judaica. E apesar da importância simbólica e institucional da comunidade, explica Gherman, estatisticamente é um grupo pequeno cuja representação não é diferenciada nas pesquisas. E apesar do esforço para desassociá-la de Bolsonaro, ainda há nomes muito conhecidos da comunidade judaica que apoiam abertamente o presidente. Para Gherman, o apoio entre a comunidade não é diferente do resto da sociedade brasileira quando feito um recorte por renda, escolaridade e região do país. "Há tantos empresários apoiando dentro da comunidade quanto na sociedade como um todo." Entre os brasileiros que votaram em trânsito em Tel Aviv, capital de Israel, em 2018, por exemplo, 77% dos 506 votos válidos foram para Bolsonaro — uma porcentagem semelhante à dos votos para o então deputado no exterior como um todo, onde ele teve 71% dos votos válidos. No geral, Bolsonaro foi eleito presidente no segundo turno em 2018 com 55% dos votos válidos. Para Gherman, no entanto, existe um "peso simbólico" de qualquer defesa de Bolsonaro feita por um líder judaico. "Tem um peso muito grande. Porque a sociedade vai pensar, como pode ser verdade que o governo é antissemita se ele tem apoio de um líder da comunidade judaica?" Gherman escreveu um texto na 41ª edição revista Serrote em que também diz que "o antissemitismo de Bolsonaro é um crime perfeito". Ele argumenta que o discurso pró-Israel do bolsonarismo esconde referências "conspiracionistas e antissemitas" que cria a ideia de um "judeu imaginário" e visa apagar os judeus reais. O rabino Michel Schlesinger, bacharel em direito pela USP e membro Congregação Israelita Paulista, afirma que, embora não haja medição de diminuição ou aumento do apoio a Bolsonaro por pesquisas, ele vê um grande número de grupos e entidades que passaram a se manifestar em defesa de certos valores — se não em oposição direta ao presidente. Ele diz que não acredita que um líder religioso deva levar as pessoas a votarem num determinado candidato. No entanto, "quando declaramos determinados valores, estamos automaticamente excluindo alguns (candidatos) e nos aproximando de outros." "A gente é político quando fala, mas também é político quando cala", afirma o rabino, que assinou a carta pela democracia. "Existem certas atitudes que são incompatíveis com valores do judaísmo. O voto judaico tem que procurar a democracia, a sustentabilidade, a defesa dos direitos humanos, da liberdade religiosa e dos direitos das minorias", diz o rabino. A carta da Conib evita citar diretamente quais grupos estão envolvidos nos pontos que apresenta. Se opõe à perseguição religiosa, por exemplo, sem citar diretamente postagem da primeira-dama Michelle Bolsonaro que foi acusada de preconceito contra religiões de matriz africana. Também não cita os ataques às urnas sem provas feitos por Bolsonaro ao defender as instituições democráticas ou o combate às fake news. A carta, lembra Daniel Bialski, vice-presidente da Conib, também "faz questão" de citar "atitudes da esquerda" sem citar especificamente quais seriam os políticos que tiveram essas atitudes. "Existem certos grupos que têm feito comparações esdrúxulas entre as ações do governo na pandemia e o Holocausto, o que é um absurdo e um desrespeito", afirma Bialski, que também critica parte da esquerda em relação à sua posição sobre Israel. "Se tornou muito comum em setores da esquerda atacar Israel", diz o líder. Bialski defende a pluralidade em nome da Conib, mas pessoalmente é advogado e defende diversos nomes ligados a Bolsonaro, incluindo a primeira-dama Michelle. Ele também é presidente do clube Hebraica em São Paulo. A carta da Conib afirma a importância dos vínculos afetivos, culturais e religiosos dos judeus brasileiros com "a terra de seus antepassados, hoje um país democrático, aberto, soberano, desenvolvido e plural." "Qualquer tentativa de deslegitimação do estado de Israel deve ser rechaçada de forma clara e imediata", afirma a entidade. Enquanto as entidades preferem falar em valores, alguns líderes que anteriormente defendiam Bolsonaro de forma aberta têm preferido não se pronunciar em defesa do presidente. Luiz Mairovitch, presidente do Clube Hebraica que convidou Bolsonaro em 2017 para a palestra que acabou gerando as falas sobre os quilombolas, afirma que não gostaria de se posicionar em relação a nenhum candidato. "Estas eleições estão muito acaloradas", diz ele à BBC News Brasil por mensagem de celular, afirmando que deseja paz e união de forças para o Brasil. "Nosso momento atual é de polarização, da divisão de dois extremos, uma era de idolatria, que na minha opinião acaba sendo uma triste realidade para o Brasil", afirma ele, dizendo que precisamos "unir forças para somar e reivindicar o que realmente importa. "Afinal, acredito que o que todos nós almejamos para as atuais e futuras gerações é um Brasil rico em educação, com segurança, saúde de qualidade, com uma boa economia."
2022-09-21
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62810752
brasil
Vídeo, Para onde vai meu voto depois que digito na urna?Duration, 4,47
Você chega diante da urna eletrônica, digita o número do seu candidato e confirma. Mas... o que acontece com seu voto depois disso? Neste vídeo, nossa repórter Mariana Sanches percorre o caminho do voto, que passa por várias etapas de proteção implementadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Assista e entenda como tudo funciona.
2022-09-21
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62979412
brasil
Vídeo, Ministro diz que mídia britânica tem 'inveja' de 'líder mundial' como BolsonaroDuration, 1,10
Ciro Nogueira, que também coordena campanha, foi cauteloso ao falar sobre resultado de eleição.
2022-09-20
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62974873
brasil
Economia brasileira vai tão bem como disse Bolsonaro na ONU?
Em seu discurso na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) nesta terça-feira (20/9), o presidente Jair Bolsonaro (PL) afirmou que o Brasil chegou ao fim de 2022 "com uma economia em plena recuperação". "Temos emprego em alta e inflação em baixa. A economia voltou a crescer. A pobreza aumentou em todo o mundo sob o impacto da pandemia. No Brasil, ela já começou a cair de forma acentuada", disse o chefe de Estado brasileiro em Nova York. Bolsonaro ainda citou "uma deflação inédita no Brasil nos meses de julho e agosto" e uma queda de 30% no preço da gasolina desde junho. Mas, afinal, a economia brasileira vai mesmo tão bem quanto o presidente afirmou? Em termos de desempenho econômico, o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro cresceu 1,2% no segundo trimestre de 2022 em relação ao trimestre anterior, acima das expectativas dos economistas, que era de uma alta de 0,9%. Fim do Matérias recomendadas Na comparação anual, a alta do PIB (Produto Interno Bruto) foi de 3,2%, segundo divulgou o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) no início do mês. Com esse resultado no segundo trimestre, o Brasil ocupa o 7º lugar dentro de um ranking de 26 países, segundo levantamento elaborado pela agência de classificação de risco Austin Rating. Na lista, o país fica a frente de nações como Estados Unidos (24°), Canadá (23°), Reino Unido (20°) e Alemanha (19°), mas atrás de Holanda (1°), Turquia (2°), Arábia Saudita (3°), Israel (4°), Colômbia (5°) e Suécia (6°). Em termos de previsões futuras, o Fundo Monetário Internacional (FMI) prevê crescimento de 1,7% para o PIB brasileiro em todo o ano de 2022, segundo dados de julho. Esse recorte coloca o Brasil na 16ª posição entre os países do G20, em termos de projeção de crescimento. Em termos de previsões futuras, o Fundo Monetário Internacional (FMI) prevê crescimento de 1,7% para o PIB brasileiro em todo o ano de 2022, segundo dados de julho. Esse recorte coloca o Brasil na 16ª posição entre os 19 países do G20 em termos de projeção de crescimento, atrás de nações como Argentina e Turquia. Em seu discurso, Bolsonaro afirmou que desde junho, o preço da gasolina caiu mais de 30%. "Hoje, um litro no Brasil custa cerca de US$ 0,90", disse. Segundo dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), o preço médio de revenda da gasolina comum no Brasil na semana de 11 a 19 de setembro foi de R$ 4,97. Considerando a cotação em dólar desta terça, a média do litro do combustível vendido nos postos brasileiros seria de US$ 0,96. Também segundo as informações divulgadas pela ANP, o preço médio da gasolina comum vem caindo há 12 semanas consecutivas. A gasolina teve seu pico na última semana de junho deste ano, quando registrava uma média de R$ 7,39 nas bombas. Se levarmos em conta essa data até o último levantamento da ANP, a queda acumulada chega a 32,7%. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em outros pronunciamentos, Bolsonaro afirmou também que o Brasil tem "uma gasolina das mais baratas do mundo". De acordo com o ranking de 168 países elaborado semanalmente pela consultoria Global Petrol Prices, o Brasil tem atualmente a 34ª gasolina mais barata. A empresa considera o valor médio do litro de gasolina em dólares e comparou os dados mais recentes de todos os países até 12 de setembro. Para efeito de comparação, o país onde o combustível alcança seu valor mais baixo atualmente é a Venezuela, a US$ 0,022, e o mais alto Hong Kong, a US$ 2,967. A Global Petrol Prices explica que as diferenças entre os valores do litro da gasolina nas diferentes nações em seu ranking devem-se a vários tipos de impostos e subsídios para o combustível. Pedro Rodrigues, sócio-diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), explica que as variáveis que influenciam de forma mais robusta o preço da gasolina no Brasil atualmente são o preço do barril de petróleo no mercado internacional e a taxa de câmbio, já que a commodity é cotada em dólares. Mas além dos preços no mercado internacional, existem outros fatores que podem influenciar o preço dos combustíveis, ainda que de maneira mais sutil. Segundo Rodrigues, vale citar os tributos — tais como PIS/Cofins e ICM — e o percentual de mistura do etanol na gasolina. É justamente a política tributária do governo brasileiro, somada ao real em valorização frente ao dólar, que está fazendo com que o preço caia mais no Brasil do que em outros países. "Além de ter a queda no preço global do petróleo, o Brasil aplicou uma política que reduziu ainda mais a alíquota tributária, reduzindo também o preço final dos combustíveis. Por isso que, em termos percentuais, o preço por aqui caiu mais que em outros países", explica o sócio-diretor do CBIE. Na noite de domingo (18/9), durante sua passagem por Londres para o funeral da rainha Elizabeth 2ª, o presidente brasileiro também comparou o preço da gasolina no Brasil com o do Reino Unido. Diante de um posto de combustíveis na capital britânica, que vendia o litro da gasolina por 1,61 libra (equivalente a cerca de R$ 9,70), Bolsonaro afirmou que o valor era "praticamente o dobro da média de muitos Estados do Brasil". No entanto, a fala do presidente não leva em conta as diferenças de renda da população entre os dois países — e, portanto, quanto tempo um cidadão teria de trabalhar para abastecer seu carro. No Reino Unido, o salário mínimo é de 9,50 libras por hora. Considerando o preço da gasolina a 1,61 libra por litro, como indicava o letreiro do posto diante do qual Bolsonaro fez o vídeo, um cidadão britânico recebendo salário mínimo teria de trabalhar o equivalente a 10 minutos para comprar um litro de gasolina. Já no Brasil, o salário mínimo é de R$ 1.212 por mês, ou R$ 5,51 por hora. Considerando o preço médio da gasolina a R$ 4,97 por litro, um cidadão brasileiro comum teria que trabalhar o equivalente a 54 minutos, ou seja, quase seis vezes mais do que o britânico para pagar pelo mesmo litro do combustível. O presidente também citou uma queda de 5 pontos percentuais no desemprego, "chegando a 9,1%, taxa que não se via há 7 anos". A taxa de desemprego no Brasil recuou para 9,1% no trimestre encerrado em julho, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). É o menor índice da série desde o trimestre encerrado em dezembro de 2015, quando também foi de 9,1%. A falta de trabalho ainda atinge 9,9 milhões de pessoas, menor nível desde o trimestre encerrado em janeiro de 2016. Os dados fazem parte da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad). A queda no desemprego, porém, é puxada pela informalidade, que atinge 39,3 milhões de trabalhadores do país. Já o número de empregados sem carteira assinada no setor privado bateu recorde da série histórica e chegou a 13,1 milhões de pessoas, um aumento de 4,8% em relação ao trimestre encerrado em abril. Sobre inflação, Jair Bolsonaro afirmou que houve redução na taxa, "com estimativa de 6% no corrente ano". "Tenho a satisfação de anunciar que tivemos deflação inédita no Brasil nos meses de julho e agosto", disse ainda. Na variação mensal de junho para julho, o Brasil registrou uma deflação de 0,68% no IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo), segundo o IBGE. Já na variação de julho para agosto, a queda foi de 0,36%. No acumulado de 12 meses, a inflação ficou em 8,73% no mês de agosto, fazendo o Brasil voltar a um dígito de inflação após seguidos aumentos, o que não ocorria desde setembro de 2021. Nos oito meses deste ano até agosto, a alta acumulada é de 4,39%. Usualmente, uma deflação acontece quando a economia está desacelerada. Mas, no caso do Brasil, as quedas têm sido puxadas sobretudo pelas desonerações de insumos como combustíveis e energia elétrica, aprovadas em junho no Congresso, além dos preços menores do petróleo no mercado internacional. A estimativa de 6% de inflação para o ano de 2022 citada pelo presidente foi divulgada pelo Banco Central no boletim Focus nesta segunda-feira (19/9). Os economistas do mercado financeiro reduziram a projeção em relação aos últimos números divulgados em 26 de agosto, quando a estimativa era de 6,40%. Em comparação com os demais países do G20, grupo que reúne as maiores economias do mundo, a inflação acumulada dos últimos 12 meses do Brasil é a 4ª maior do grupo, segundo dados do início de setembro da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). O levantamento da OCDE, porém, não considera os números divulgados em 9 de setembro pelo IBGE e usa como base a inflação acumulada até julho, de 10,07%. Porém, mesmo com os dados mais recentes, o Brasil ainda ficaria na 4ª posição, na frente do México, que segundo a OCDE apresenta acumulado de 8,7% até 6 de setembro. No grupo, o país só perde para a Turquia, que acumula inflação de 80,21% nos últimos 12 meses, e para a Argentina e Rússia, com taxas de 78.52% e 16,7%, respectivamente.
2022-09-20
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62973329
brasil
A esquecida história da traição que levou à chacina de soldados negros no Rio Grande do Sul
Também conhecida como Revolução Farroupilha, a revolta foi travada durante dez anos (1835-1845), tornando-se a guerra civil mais longa da história do país. De um lado, estava o governo imperial brasileiro. Do outro, a elite gaúcha insatisfeita com os altos impostos cobrados sobre seus produtos. A partir da declaração de independência da então província de São Pedro do Rio Grande do Sul, em 1836, os farroupilhas perceberam que não havia homens o bastante para fazer frente às tropas imperiais. Por essa razão, os republicanos começaram a cooptar negros escravizados. Mas não os seus. "Em vez de cederem a própria mão de obra, os farroupilhas capturavam os negros dos adversários, que serviam aos imperiais ou estavam foragidos, com a promessa de alforria após o fim da guerra", explica o jornalista Juremir Machado da Silva, autor de História Regional da Infâmia: o destino dos negros farrapos e outras iniquidades brasileiras (L&PM, 2010). Os negros, portanto, não lutavam pelos ideais farroupilhas, mas pela chance de liberdade. Embora também atuassem como infantes (soldados em pé), acabaram conhecidos na história como "lanceiros negros". Fim do Matérias recomendadas Estima-se que, no final da guerra, eles representavam até um terço das tropas farroupilhas, ou aproximadamente 10 mil homens. Era praticamente a metade do contingente imperial. Para responder à crescente participação dos negros, os imperiais decretaram em 1838 a "Lei da Chibata". Ela determinava que todo escravo que fosse preso fazendo parte das forças rebeldes receberia de 200 a 1.000 chibatadas. A ameaça não arrefeceu o ímpeto dos escravos, que continuaram a engrossar as fileiras rebeldes. Mas, apesar da grande serventia nas batalhas, os negros acabariam se tornando um "problema" para os farroupilhas. Sobretudo quando ficou evidente que aquela seria uma guerra perdida. Diversos conflitos da Revolução Farroupilha se deram na região da campanha gaúcha, faixa do bioma pampa colada à fronteira com o Uruguai, com seus campos repletos de serras e coxilhas. Pois foi no alto de uma delas, conhecida como Cerro dos Porongos, localizado no atual município de Pinheiro Machado, que aconteceu um dos ataques mais violentos da guerra dos farrapos. Há 176 anos, na madrugada de 14 de novembro de 1844, um esquadrão de lanceiros negros acampado no Cerro dos Porongos foi surpreendido e arrasado pelas tropas imperais. Pouco mais de cem homens negros foram assassinados. Os que não escaparam para quilombos ou para o Uruguai acabaram enviados à corte, no Rio de Janeiro, onde seguiram escravizados até a Lei Áurea, 43 anos depois. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Há controvérsias sobre o que teria facilitado o Massacre dos Porongos. A maioria das evidências históricas, porém, indica que a chacina é resultado da traição do general David Canabarro, homem forte dos farroupilhas. À época, reconhecendo a iminente derrota, os rebeldes tentavam negociar uma anistia com o império. O governo de Dom Pedro 2º prometeu pensar na proposta. Entre as condições para o induto, constava a devolução dos escravos capturados. O problema é que a exigência não agradaria muitos dos chefes rebeldes, envergonhados com a renúncia, e tampouco os negros a quem os farroupilhas tinham prometido liberdade. Para resolver o impasse, Canabarro teria feito um conchavo com os imperiais. "Ele escreveu ao Barão de Caxias, tramando a data e o local para um ataque ao acampamento dos negros", diz o historiador Jorge Euzébio Assumpção, autor de Pelotas: Escravidão e Charqueadas 1780-1888 (FCM Editora, 2013). Além de fazer um conluio com os imperiais, Canabarro relativizou alertas de aproximação inimiga e desarmou os lanceiros negros na véspera do ataque. O general alegou que a munição velha seria substituída por outra mais nova e, assim, entregou os guerreiros negros de bandeja aos imperiais. O general farroupilha nunca deu grandes explicações sobre o ocorrido. Seus defensores dizem que, no momento da investida, o general estava ocupado como uma das vivandeiras (mulheres que acompanham as tropas com a missão de cozinhar, curar ferimentos e orar pelos moribundos). E que, por essa razão, não teria flagrado a carnificina. O ataque foi a pá de cal não apenas para os soldados negros como também para a própria Revolução Farroupilha. "O combate de Porongos, que mais foi uma matança de um só lado do que peleja, dispersou a principal força republicana, e manifestou estar morta a rebelião", escreveu Tristão de Alencar Araripe no livro de memórias A Guerra Civil no Rio Grande do Sul, publicado em 1881. O tratado de paz foi selado quatro meses depois do Massacre dos Porongos, em 28 de fevereiro de 1845, quando Canabarro assinou o acordo confiando na "palavra sagrada" e no "magnânimo coração" de Dom Pedro 2º. Todos os anos, no Rio Grande do Sul, comemora-se a tradicional Semana Farroupilha, quando o povo gaúcho realiza festejos e acampamentos que celebram e rememoram os ideais, a república e o grito de guerra ecoado em 20 de setembro de 1835. O Massacre dos Porongos, porém, ainda passa ao largo da maioria das atividades promovidas em Centros de Tradições Gaúchas (CTG) e acampamentos pelo Estado. Para se ter ideia, apenas em 2004 foi erguido o Memorial Lanceiros Negros em Porongos, um pequeno monumento em homenagem aos guerreiros mortos na emboscada. "Existe uma clara intenção política em não abordar esse tema nos festejos de setembro", diz o historiador Jorge Euzébio Assumpção. "Essa sonegação histórica acontece porque os farroupilhas são um símbolo de poder do Rio Grande do Sul , e falar da traição contra os negros é desmitificar o gauchismo." Só que Porongos não foi, exatamente, a única traição dos farroupilhas contra o povo negro, segundo Juremir Machado da Silva. "Nessa revolução que muitos afirmam ser abolicionista, vários negros foram vendidos no Uruguai para financiar o movimento." Apesar de ainda desconhecida para muitos brasileiros (e para muitos gaúchos, na verdade), a história do Massacre dos Porongos tem ganhado crescente relevância, sobretudo em razão das pesquisas históricas e do crescimento do movimento negro. Para Juremir Machado, a chacina dos lanceiros é apenas um tijolo do racismo estrutural construído ao longo o tempo. "A traição dos farrapos, a aprovação em 1854 da lei que previa a prisão de quem alfabetizasse negros, a falta de um plano de inclusão após a abolição: essas e outras situações são heranças que alimentam o desrespeito que ainda coloca o negro, digamos assim, numa posição secundária", diz o jornalista. "No entanto", ele complementa, "ver o empoderamento dos negros na TV, na literatura ou a massa de pessoas nos protestos do João Alberto Freitas (homem de 40 anos que morreu após ser espancado por seguranças em uma unidade do Carrefour, em Porto Alegre) mostra que as coisas estão mudando. Devagar, mas estão mudando."
2022-09-20
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55236674
brasil
Veja ao vivo o discurso de Bolsonaro na abertura da Assembleia Geral da ONU
O presidente e candidato à reeleição, Jair Bolsonaro (PL) fará nesta terça-feira (20/09) o discurso de abertura debate geral da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York. Bolsonaro deverá fazer o primeiro discurso de chefes de Estado - o representante brasileiro tradicionalmente é o primeiro a ir aos microfones, logo após o secretário-geral da ONU. A previsão é que o presidente volte ao Brasil no final da tarde.
2022-09-20
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62969827
brasil
Com dívida de R$ 1,5 bilhão do Brasil à ONU, Bolsonaro abre Assembleia Geral em NY
O presidente e candidato à reeleição, Jair Bolsonaro (PL) fará nesta terça-feira (20/09) o discurso de abertura do debate geral da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York. O Brasil chega ao evento com uma dívida junto à ONU de US$ 306 milhões, o equivalente a R$ 1,5 bilhão. Os dados foram levantados pela entidade a pedido da BBC News Brasil. O valor não inclui eventuais dívidas do Brasil com outros organismos internacionais. Pelas regras da ONU, se um país acumular uma dívida equivalente a dois anos ou mais em relação às suas contribuições regulares, ele pode perder o direito ao voto. O Brasil tem feito alguns pagamentos da dívida para evitar esse cenário. A perda ao direito de voto nunca aconteceu ao Brasil desde que a organização foi criada, em 1945. Segundo a assessoria de imprensa da ONU, não há indicação de qualquer mudança no direito de voto do Brasil no momento. Procurado, o governo brasileiro apresentou números diferentes sobre a dívida e disse que "não tem poupado esforços" para quitar a dívida do Brasil com a ONU, mas afirmou que depende de suplementação orçamentária, que depende do Executivo e do Legislativo, para sanar os débitos. Pelas regras da ONU, todo estado-membro deve pagar contribuições para o funcionamento regular da entidade. Esses valores são calculados com base em critérios como o tamanho do produto interno bruto (PIB) de cada país. Fim do Matérias recomendadas O Brasil é responsável por 2% do orçamento regular da entidade. Os Estados Unidos são o país responsável pelo maior percentual: 22%. Além das contribuições regulares, os países também precisam contribuir para as missões de paz desenvolvidas pela ONU. Desde a criação da ONU, o Brasil é um dos países mais atuantes em missões de paz ao redor do mundo. Em 2004, por exemplo, ele liderou a Missão das Nações Unidas de Estabilização do Haiti (Minustah). Segundo o levantamento feito pela ONU, dos US$ 306,7 milhões que o Brasil deve para entidade, US$ 249 milhões são relativos a dívidas do Brasil com as missões de paz da organização acumuladas em outros anos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Outros US$ 56,4 milhões são relativos ao valor que o Brasil deveria pagar a título de contribuições regulares ao orçamento da ONU. O resto, em torno de US$ 1 milhão, é relativo a dívidas do Brasil com tribunais internacionais como os que foram criados para julgar crimes de guerra nos Bálcãs e no continente africano. A BBC News Brasil pediu à ONU a lista completa dos países devedores, mas não obteve resposta. A entidade informou, apenas, que dos 193 países-membros, 125 já teriam quitado suas contribuições regulares até setembro deste ano. Ainda de acordo com a ONU, o valor do débito já contempla pagamentos parciais feitos pelo governo brasileiro entre os meses de maio, junho e julho deste ano. Diplomatas ouvidos pela BBC News Brasil em caráter reservado afirmam que esses pagamentos têm sido feitos há alguns anos como uma forma de evitar que o Brasil perca o direito de voto junto à Assembleia Geral da ONU. Eles comparam essas quitações como o pagamento do crédito rotativo de um cartão de crédito no qual paga-se apenas um percentual da dívida para evitar a inadimplência. Procurado, tanto o Itamaraty quanto o Ministério da Economia apresentaram dados diferentes sobre o valor da dívida brasileira junto à ONU. O Itamaraty disse, por meio de sua assessoria de imprensa, que o débito do Brasil com a organização é de US$ 296 milhões, cerca de US$ 10 milhões a menos que o valor apresentado pela ONU. A pasta disse que os repasses para o pagamento das dívidas são responsabilidade do Ministério da Economia. Procurado, o Ministério da Economia apresentou um número ainda menor: US$ 232,6 milhões. Com base nos dados enviados pela pasta, a dívida do Brasil apontada pela ONU seria maior que a registrada em setembro de 2021, que totalizava US$ 255,8 milhões. O valor, porém, seria menor que as dívidas registradas nos anos anteriores. Em 2020, a dívida do Brasil, segundo o ministério, foi de US$ 352,1 milhões. Em 2019, foi de US$ 411,6 milhões. Em 2018, o débito era de US$ 352,1 milhões. Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que os débitos do Brasil com a ONU começaram a se agravar durante o segundo mandato da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), mas dizem que a gestão da dívida é reflexo da política internacional comandada pelo presidente Bolsonaro. "Se formos ver os dados, a gente vê que, já no final do governo Dilma, a coisa 'desandou'. Há uma descontinuação nos pagamentos e isso foi se avolumando", afirmou o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Dawisson Belém Lopes. Para a doutora em Relações Internacionais e professora da Escola Superior de Guerra (ESG) do Ministério da Defesa Mariana Kalil, apesar de não ser a primeira vez que o Brasil fica devendo à ONU, a atual dívida do país com a entidade precisa levar em consideração o contexto político do país. "A diferença é o contexto. Há, sem dúvidas, a questão da pandemia, que impactou diversos países financeiramente, mas há, também, uma retórica 'antiglobalista' do Brasil que, ao lado da questão do atraso na contribuição financeira, coloca o compromisso do país com a ordem multilateral do pós-Segunda Guerra Mundial em xeque", disse a professora. O "antiglobalismo" é uma corrente ideológica marcada pelo questionamento à ordem multilateral na qual os países atuariam de forma coordenada por meio de organismos como a própria ONU. No Brasil, um dos principais defensores dessa ideologia foi o ex-ministro das Relações Exteriores do governo Bolsonaro, Ernesto Araújo. De acordo com o Portal da Transparência, o governo reservou US$ 211 milhões para o pagamento de contribuições à ONU. Até agora, apenas US$ 33 milhões desse total havia sido gasto. Em nota, o Ministério da Economia disse que a causa da dívida do Brasil com a ONU foi a "insuficiência de dotação orçamentária". Questionada sobre qual a previsão para a quitação da dívida, a pasta disse que é preciso haver "previsão suplementar à LOA (Lei Orçamentária Anual) para o equacionamento das dívidas". O Itamaraty, por sua vez, atribuiu a dívida a "restrições fiscais" do orçamento federal. "As dívidas incluem valores em várias moedas, e seu pagamento, assim como as demais ações orçamentárias, está sujeito às restrições fiscais que se impõem ao orçamento federal, dentro dos montantes previstos na Lei orçamentária Anual", disse a pasta em nota enviada à BBC News Brasil. Ainda segundo o Itamaraty, o governo tem tentado "equacionar" a dívida junto à ONU. "O governo brasileiro não tem poupado esforços para equacionar a situação da dívida perante as Nações Unidas, em linha com o compromisso histórico do país com o sistema multilateral e a Carta da ONU", disse o órgão. Bolsonaro deverá fazer o primeiro discurso de chefes de Estado do debate geral da Assembleia Geral da ONU na manhã desta terça-feira (20/9). O discurso está previsto para começar por volta das 9h. A previsão é que ele volte ao Brasil no final da tarde.
2022-09-20
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62966074
brasil
Às vésperas de discurso de Bolsonaro na ONU, Amazônia tem alta em queimadas e desmatamento
"Qual país do mundo tem uma política de preservação ambiental como a nossa? Os senhores estão convidados a conhecer a nossa Amazônia". A pergunta seguida de convite foi feita diante de chefes de Estado do mundo todo pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) em seu discurso na Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) no ano passado. A Amazônia fez parte de todos os três discursos de Bolsonaro na ONU e poderá ser citada no pronunciamento deste ano, previsto para a terça-feira (20/9). Mas no momento em que Bolsonaro se direcionará a líderes do mundo inteiro, os dados registram altas no número de queimadas e no desmatamento da região, colocando em xeque a retórica do governo. Fim do Matérias recomendadas O sistema que monitora queimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Especiais (Inpe) detectou 74,7 mil focos de incêndio no bioma amazônico entre 1º de janeiro ano e 17 de setembro deste ano (os dados são disponibilizados com um atraso de dois dias). Comparado ao mesmo período do ano passado, o aumento é de 51%. Analisando a série histórica, é o maior número de queimadas na Amazônia neste período desde 2010. A situação é tão grave que, segundo portal G1, os satélites do Inpe registraram, no início de setembro, uma nuvem de fumaça espalhada por uma área de 5 milhões de quilômetros quadrados, o equivalente a 58% de toda a área do Brasil, que é de 8,5 milhões de quilômetros quadrados. No quesito desmatamento, o cenário também é de alta. Segundo o sistema Prodes, do Inpe, que mede o desmatamento na Amazônia anualmente, nos três primeiros anos do governo Bolsonaro, a taxa de destruição da floresta foi superior a 10 mil quilômetros por ano. No período compreendido entre agosto de 2020 e julho de 2021, o desmatamento acumulado chegou a 13 mil quilômetros quadrados, o equivalente a quase nove vezes a cidade de São Paulo. Em 2022, os dados mostram que a tendência segue de alta. De acordo com o sistema de Detecção em Tempo Real (Deter), também do Inpe, foram desmatados 1,6 mil quilômetros de floresta na Amazônia em agosto deste ano, um aumento de 81% em relação ao mesmo mês de 2022. É a segunda maior taxa desde 2015. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Além do aumento nas queimadas e no desmatamento, a gestão Bolsonaro também é marcada pelo apoio às atividades do garimpo e a mineração em áreas hoje protegidas (o Executivo enviou um projeto de lei ao Congresso Nacional para regulamentar a mineração em terras indígenas) e pelas dificuldades na cobrança de multas ambientais. Durante sua campanha eleitoral, em 2018, Bolsonaro prometeu acabar com o que classificava como "indústria da multa" na área ambiental. Em 2019, o governo promoveu mudanças nas regras de fiscalização ambiental como a criação de núcleos de conciliação. A partir de então, os infratores ambientais tiveram a possibilidade de aguardar uma audiência de conciliação com o Ibama antes de as multas passarem a valer, de fato. Ambientalistas criticaram a medida sob o argumento de que ela poderia atrasar a punição a crimes ambientais e levar boa parte das multas à prescrição, quando o Estado não tem mais condições de cobrar a multa ou punir o infrator. O governo defendeu a medida alegando que ela aceleraria o recebimento de valores devidos e evitar a morosidade do processo burocrático. Em agosto deste ano, a BBC News Brasil publicou uma reportagem mostrando que R$ 300 milhões em multas ambientais podem prescrever em 2022. Especialistas ouvidos alegam que a criação dos núcleos de conciliação pode ter relação com esse número. À época, o Ibama não se manifestou sobre o assunto. Na semana passada, a BBC News Brasil também questionou o Ibama, os ministérios do Meio Ambiente, a Presidência e a Vice-Presidência da República sobre a política ambiental do país e os dados apresentados pelo Inpe, mas não houve resposta. O histórico dos discursos de Bolsonaro na ONU mostra que a Amazônia foi um dos temas mais fortemente mencionados por ele ao longo dos anos. No primeiro discurso, em 2019, o termo "Amazônia" apareceu seis vezes. O tom misturava a defesa da soberania nacional e da política ambiental do país. Na época, o Brasil vinha sendo alvo de críticas da comunidade internacional por conta do aumento no número de queimadas na região. Em agosto daquele ano, o presidente francês, Emmanuel Macron, fez uma postagem em seu perfil no Twitter com uma foto de queimada da Amazônia e dizendo: "Nossa casa está queimando. A floresta Amazônia". Em seu discurso, Bolsonaro reagiu e chegou a dizer, sem apresentar evidências, de que parte das queimadas seriam realizadas por povos indígenas. Ele também Bolsonaro reconheceu que o Brasil tinha problemas, mas criticou o que classificou como "ataques sensacionalistas" movidos por um "espírito colonialista". "É uma falácia dizer que a Amazônia é patrimônio da humanidade e um equívoco, como atestam os cientistas, afirmar que a nossa floresta é o pulmão do mundo. Valendo-se dessas falácias, um ou outro país, em vez de ajudar, embarcou nas mentiras da mídia e se portou de forma desrespeitosa, com espírito colonialista", disse Bolsonaro à época. Em 2020, mesmo em meio à pandemia de covid-19, a pauta ambiental tomou mais espaço no discurso de Bolsonaro do que a pauta da saúde. O trecho dedicado inteiramente à covid-19 teve 418 palavras. Já o trecho sobre meio ambiente teve 518. Naquele ano, Bolsonaro voltou a atribuir parte das queimadas aos povos indígenas e a rebater as críticas de outros países à política ambiental brasileira. "Somos vítimas de uma das mais brutais campanhas de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal. A Amazônia brasileira é sabidamente riquíssima. Isso explica o apoio de instituições internacionais a essa campanha, escorada em interesses escusos que se unem a associações brasileiras, aproveitadoras e impatrióticas, com o objetivo de prejudicar o Governo e o próprio Brasil", afirmou. Em 2021, a pauta ambientou também esteve presente no discurso de Bolsonaro, mas ficou em segundo plano. Foram apenas duas menções ao termo "Amazônia". Além de defender a política ambiental do governo, Bolsonaro enfatizou que 83% da matriz energética do país é de origem renovável. Fontes do Itamaraty com quem a BBC News Brasil conversou avaliam que o desmatamento na Amazônia é, de fato, o "Calcanhar de Aquiles" da gestão ambiental do governo brasileiro. Para contrabalancear e criar uma espécie de "antídoto" discursivo, os diplomatas recomendaram que o presidente incluísse em seu pronunciamento deste ano as realizações na área ambiental de seu governo. Entre elas está a apresentação da Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) do Brasil na Conferência das Nações Unidas para o Clima de 2021, a COP26. O governo prometeu reduzir as emissões de gases do efeito estufa em 37% até 2025 (tendo como base os dados de 2005), redução de 43% até 2030 e neutralidade nas emissões até 2050. Diplomatas avaliam a meta brasileira como mais ousada do que a de alguns países desenvolvidos, como os Estados Unidos. Apesar disso, no Brasil, ela é alvo de críticas de ambientalistas. Eles ponderam que antes de anunciar a nova NDC, o governo fez uma revisão técnica no total de emissões do país em 2005. Essa revisão permitiria que o Brasil emitisse de 200 milhões a 400 milhões de toneladas a mais de gás carbônico até 2030. A ex-presidente do Ibama e atual especialista sênior em políticas públicas da organização não-governamental Observatório do Clima, Suely Araújo, afirma que Bolsonaro chegará a Nova York com um legado de "implosão completa da política ambiental" do Brasil. "O governo Bolsonaro deixa um legado de implosão completa da política ambiental, praticamente desconstruíram quarenta anos em quatro nesse campo de políticas públicas. Além de perderem o controle do desmatamento na Amazônia e nos outros biomas, estimularam invasão de terras indígenas, deram respaldo para o garimpo irregular, deslegitimaram os órgãos ambientais e seus agentes", disse. Na avaliação de Suely Araújo, Bolsonaro terá dificuldade para convencer a comunidade internacional sobre o sucesso de sua política ambiental. "É impossível convencer qualquer um de que o governo atual teve atenção com a Amazônia ou outros biomas [...] A realidade é de muita destruição. Narrativas falsas e simulacros de ações governamentais têm chance zero de se sustentar junto à comunidade internacional", afirmou a especialista. A coordenadora de Política e Direito do Instituto Socioambiental, Adriana Ramos, disse que Bolsonaro teria sido "coerente" em sua gestão ambiental com aquilo que prometeu durante a campanha. "Estamos chegando ao fim do primeiro mandato de Bolsonaro com uma política para a Amazônia coerente com tudo o que ele defendeu. Uma política que não combateu a criminalidade, que negou o desmatamento, as queimadas e que teve a defesa de atividades ilegais como o garimpo", avaliou Adriana Ramos. Assim como Suely Araújo, Adriana Ramos diz que seria impossível convencer a comunidade internacional diante dos dados atuais da Amazônia. "Não tem como defender a gestão da Amazônia diante de tudo o que ele disse e dos dados que temos disponíveis. Ele nunca vai conseguir convencer a comunidade internacional de que cuidou bem da Amazônia", disse. A BBC News Brasil enviou questionamentos sobre o assunto para os ministérios do Meio Ambiente, das Relações Internacionais, para a Presidência e para Vice-Presidência da República, mas nenhum deles respondeu.
2022-09-19
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62953129
brasil
Brasileiro tem de trabalhar 6 vezes mais que britânico por 1 litro de gasolina
Em Londres para o funeral da rainha Elizabeth 2ª, o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro (PL), divulgou vídeo na noite de domingo (18/9) em que dizia que a gasolina no Brasil era "uma das mais baratas do mundo", e fez uma comparação com o Reino Unido. Diante de um posto de combustíveis na capital britânica, que vendia o litro da gasolina por 1,61 libra (equivalente a cerca de R$ 9,70), Bolsonaro afirmou que o valor era "praticamente o dobro da média de muitos Estados do Brasil". "Estou aqui em Londres, Inglaterra. O preço da gasolina: 1,61 libras. Isso dá aproximadamente 9 reais e 70 centavos o litro. Ou seja, praticamente o dobro da média de muitos Estados do Brasil", disse. No entanto, a fala do presidente não leva em conta as diferenças de renda da população entre os dois países — e, portanto, quanto tempo um cidadão teria de trabalhar para abastecer seu carro. No Reino Unido, o salário mínimo é de 9,50 libras por hora. Considerando o preço da gasolina a 1,61 libra por litro, como indicava o letreiro do posto diante do qual Bolsonaro fez o vídeo, um cidadão britânico recebendo salário mínimo teria de trabalhar o equivalente a 10 minutos para comprar um litro de gasolina. Fim do Matérias recomendadas Em relação à renda per capita — o PIB (Produto Interno Bruto, ou soma de bens e serviços produzidos por um país) dividido por sua população, a gasolina também é mais barata para o britânico do que para o brasileiro. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No ano passado, a renda per capita anual do Reino Unido foi de US$ 49.675, enquanto a do Brasil, US$ 16.506, segundo o Banco Mundial. Sendo assim, considerando o correspondente dos valores mencionados acima em dólar, o litro de gasolina custaria 0,004% da renda média do britânico, ao passo que 0,006% da renda média do brasileiro. "Bolsonaro fez a mera conversão de câmbio nominal", explica à BBC News Brasil Fabio Terra, professor de Economia da UFABC (Universidade Federal do ABC). "Não é só preço o que importa, importa muito a renda porque ela é o que permite que se compre algum 'preço', ou seja, algum produto", acrescenta. Um economista ouvido pela BBC News Brasil lembrou que toda comparação "tem suas limitações" e acrescentou que a fala de Bolsonaro ignora "as realidades locais não só de renda, mas também a respeito da legislação, de o Brasil ser um país produtor de petróleo". Terra, da UFABC, acrescenta que, apesar disso, "importamos parte razoável do que consumimos aqui também". "No caso do diesel, a importação chega a 30%. Importamos também muitos refinados de petróleo. E fazemos essa importação com uma moeda fraca quando comparada ao dólar, moeda em que se cota o petróleo, enquanto que o Reino Unido faz com moeda forte", assinala. Nas redes sociais, usuários também apontaram a contradição matemática de Bolsonaro. Segundo um ranking elaborado pela plataforma de monitoramento Global Petrol Prices, o Brasil tem a 34ª gasolina mais barata entre 168 países e territórios (0,99 dólar por litro). E os brasileiros também pagam menos por esse combustível do que a média mundial (1,33 dólares por litro). No entanto, essa lista tem forte influência da taxa de câmbio, pois os valores são convertidos em moeda local para o dólar. Nesse sentido, como a libra esterlina é mais valorizada ante o dólar americano que o real brasileiro, o Reino Unido aparece nesse ranking como tendo gasolina "mais cara" do que o Brasil. De acordo com a Global Petrol Prices, o país onde a gasolina é mais barata é a Venezuela. Ali, o litro da gasolina custa o equivalente a US$ 0,02. Mas Terra, da UFABC, ressalva: "No caso da Venezuela são duas coisas, por um lado a abundância de petróleo; por outro, a política de precificação que eles usam para transpor os preços ao produtor para os preços ao consumidor". O governo venezuelano mantém os preços da gasolina sob rígido controle e subsidia grande parte do custo, mantendo os valores baixos para o consumidor final. De fato, porém, o valor médio da gasolina no Brasil vem caindo. E isso se deve a um conjunto de medidas tomadas pelo governo. Bolsonaro zerou as alíquotas de PIS e Cofins, dois tributos federais, sobre o diesel e o gás de cozinha até dezembro de 2022, e anunciou um amplo pacote de R$ 53 bilhões para tentar reduzir o preço dos combustíveis. Essa é uma das maiores "pedras no sapato" do presidente em sua busca por reeleição — até os caminhoneiros, que o apoiaram rumo ao Planalto em 2018, fizeram críticas duras à política de preços da Petrobras. Na semana passada, pela primeira vez desde julho de 2020, o preço médio da gasolina no Brasil caiu para menos de R$ 5, segundo a ANP, em valores corrigidos pelo IPCA, que mede a inflação oficial. Foi uma queda de 32,7%, ou R$ 2,42, frente ao pico de R$ 7,39 por litro registrado no fim de junho, antes dos cortes de impostos estaduais e federais aprovados pelo Congresso Nacional.
2022-09-19
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62962220
brasil
'Quebra do luto' e 'palanque eleitoral': jornais britânicos repercutem declarações de Bolsonaro antes do funeral da rainha Elizabeth 2ª
Veículos de comunicação britânicos repercutiram as declarações feitas pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) durante sua viagem a Londres para o funeral da rainha Elizabeth 2ª. Tanto jornais de tendência à esquerda, como The Guardian, quanto à direita, como o Daily Mail, abordaram as manifestações do presidente brasileiro sobre política. Bolsonaro fez discurso em tom de campanha e mencionou vitória em primeiro turno, embora apareça atrás do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas pesquisas de intenção de voto. "Não tem como a gente não ganhar no primeiro turno", disse na manhã de domingo (18/09) o presidente, na sacada da residência oficial do embaixador brasileiro em Mayfair, Londres. Sobre as declarações, o Daily Mail escreveu: "Enquanto líderes globais chegam ao Reino Unidos para manifestar seu respeito pela rainha, o líder da direita radical populista Jair Bolsonaro fez um comício em tom agressivo da janela da embaixada de seu país incitando uma multidão com bandeiras". Fim do Matérias recomendadas "Vídeos também mostram apoiadores do líder brasileiro vestindo a bandeira nacional e xingando manifestantes anti-Bolsonaro nas proximidades", afirma ainda o texto. Já o título da matéria publicada pelo The Guardian diz: "Presidente Bolsonaro usa visita a Londres para funeral da rainha como 'palanque eleitoral'". No texto, o jornal britânico afirma que o presidente brasileiro "voou para Londres para discursar aos seus apoiadores sobre os perigos dos esquerdistas, do aborto e da 'ideologia de gênero'". Já o Independent escreveu que "o polêmico Bolsonaro aproveitou a viagem a Londres para tentar convencer os eleitores indecisos de sua importância internacional, levando sua campanha política para a viagem". Um vídeo gravado por Bolsonaro em um posto de gasolina, em que ele comenta o preço do combustível no Reino Unido e o compara ao do Brasil, também foi alvo dos jornais britânicos. Na gravação, compartilhada nas redes sociais pelo seu filho e deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL- SP), o presidente afirma que o preço da gasolina britânica em libras é "praticamente o dobro da média de muitos estados do Brasil". "Estou aqui em Londres, Inglaterra. O preço da gasolina: 1,61 libras (esterlinas). Isso dá aproximadamente R$ 9,70 o litro", diz. O jornal The Times escreveu que Bolsonaro "aproveitou sua ida ao funeral da rainha para mostrar ao seu país como o combustível é caro em Londres". A manchete publicada pelo jornal classificado como de centro-direita diz: "Bolsonaro quebra luto para ganhar pontos políticos". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Questionado nesta segunda-feira (19/09) por jornalistas sobre o tom das reportagens publicadas nos jornais britânicos, o presidente Jair Bolsonaro afirmou: "Você acha que eu vim aqui fazer política? Pelo amor de Deus, não vou te responder não. Pelo amor de Deus. Não tem uma pergunta decente". A BBC News Brasil também questionou o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, sobre o tema. O religioso respondeu: "Não dá para separar viagem ao funeral de campanha política, é isso mesmo". No Twitter, o jornalista britânico e editor de meio ambiente do jornal The Guardian Jonathan Watts disse: "O insensível, superficial e grosseiro Bolsonaro está tentando usar o funeral da rainha como uma parada de campanha eleitoral. Que vergonhoso representante do Brasil". O comentário de Watts foi feito em resposta a uma postagem do correspondente do jornal The Guardian no Brasil, Tom Phillips, que escreveu: "Bolsonaro decidiu marcar o funeral da rainha com discurso sobre gênero, ideologia, abortos e males do comunismo de sua sacada em Mayfair". Em reação, Eduardo Bolsonaro, que integra a comitiva do presidente, escreveu que o jornalista britânico omitiu que Bolsonaro mencionou a rainha no início do seu discurso. E afirmou que "vocês se enterram sozinhos, sem credibilidade".
2022-09-19
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62960534
brasil
8 gráficos para entender inflação no Brasil e em 5 países da América Latina
Os preços de itens essenciais já vinham em trajetória de alta em razão dos efeitos causados ​​pela pandemia de covid-19. Mas a guerra na Ucrânia piorou a situação: o início do conflito armado no final de fevereiro gerou uma crise energética e alimentar. Mais de seis meses se passaram, os bancos centrais se viram obrigados a aumentar as taxas de juros para tentar controlar a espiral inflacionária e o custo de vida atingiu níveis recordes não vistos havia décadas. Para se ter uma ideia do impacto no bolso das pessoas é usada uma cesta básica de bens e serviços que cada país produz de acordo com o consumo das famílias. Essa cesta inclui centenas de produtos e serviços que vão desde gastos com saúde, aluguel ou educação, até o preço do combustível e da alimentação. Nas 6 maiores economias da América Latina, a inflação em 12 meses (na comparação entre julho de 2021 e julho de 2022) atingiu 71% na Argentina, 10% no Brasil, 13,1% no Chile, 10,2% na Colômbia, 8,1% no México e 5,6% no Peru. Fim do Matérias recomendadas Com a ideia de simplificar a comparação entre os países, a BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, escolheu oito produtos básicos de consumo de massa para mensurar o impacto da inflação sobre alguns itens essenciais. O óleo de cozinha tem sido um dos produtos com maior aumento de preço nos mercados internacionais. Além da diminuição da oferta devido a secas e ao aumento do consumo após a pandemia, a guerra na Ucrânia fez com que o preço do produto batesse recordes históricos. Como ucranianos e russos são os maiores exportadores mundiais de óleo de girassol, a escassez na exportação gerou picos dos preços. Outro outro complicador foi a alta demanda por óleos vegetais para uso na indústria de biocombustíveis, reduzindo ainda mais a oferta do produto. O aumento da farinha de trigo arrastou o preço do pão com ele, enquanto o aumento da farinha de milho elevou o valor de produtos como tortilhas e arepas, muito populares em países como México e Colômbia. Novamente, a guerra teve um profundo impacto nesse segmento. A Ucrânia produz 16% do milho e 9% do trigo no mundo. Somou-se a isso o fato de que as remessas de trigo da Rússia — o maior exportador mundial — tiveram queda. Além de ser utilizado como base da principal farinha de alguns países, o milho é um insumo importante e requisitado na criação de aves para abate, o que pressiona o preço. Com o aumento dos custos de produção, produtos lácteos sofreram grandes elevação nos preços. Muitos produtores têm preferido se desfazer de parte do rebanho, vendendo as vacas menos produtivas para os matadouros. Diante do aumento do preço da carne bovina, muitas famílias buscaram outras proteínas ou, no caso das mais vulneráveis, ficaram sem elas. A variação dos preços depende, entre outros fatores, se o país é produtor ou importador de carne bovina (o Brasil direciona 65% de sua produção para o mercado interno, por exemplo), de como as diferentes partes da cadeia produtiva impactam no custo final ou se há algum tipo de controle de preços. Em países como Argentina, Colômbia e Chile, os consumidores registraram aumentos em 12 meses de 61,7%, 27,1% e 26,3%, respectivamente, em julho. Nos meses que se seguiram à guerra, o preço do petróleo e da gasolina atingiu níveis historicamente altos em meio à incerteza internacional causada pelo conflito. Embora mais recentemente os preços tenham desacelerado a alta, o custo para as famílias continua alto. Para mitigar os efeitos do aumento do custo da gasolina e do diesel, os governos intervêm por meio de mecanismos como subsídios diretos, redução de impostos ou gestão de preços por meio de empresas estatais. Chile, Colômbia e Peru têm um fundo de estabilização de preços que busca suavizar as flutuações. O preço do açúcar desacelerou sua alta nos últimos cinco meses embora ainda represente um peso para muitas famílias na América Latina. No ano passado, a Argentina registrou um aumento de 136% e o Peru, de 43,6%. No Brasil, o maior produtor mundial de cana-de-açúcar, respondendo por mais de 30% do mercado global, o item teve alta destacada no ano passado devido à falta de chuvas. Na América Latina, outros produtores de destaque são o México e a Colômbia. O aumento do valor da ração de frango tem sido um dos fatores determinantes para a alta do produto. Alimento para aves (especialmente milho e soja) responde por cerca de 70% da cadeia produtiva avícola. A troca da carne bovina, também inflacionada, por frango também representou um elemento de pressão. Os grãos são alguns dos produtos cujo valor sofreu um dos maiores aumentos devido à guerra na Ucrânia, país que ficou conhecido como "o celeiro da Europa". Graves surtos de gripe aviária nos Estados Unidos e na França reduziram a oferta mundial de ovos, enquanto a guerra na Ucrânia interrompeu as exportações para a Europa e o Oriente Médio. O valor do produto também foi influenciado pela escassez de fertilizantes (usados para plantar os grãos que servem de ração das aves) e pelo alto preço do combustível. E a isso se soma a situação dos mercados locais. No Peru, por exemplo, o aumento do custo do produto teria sido impulsionado pela queda na produção nacional de milho duro, principal alimento das galinhas. O aumento do preço dos ovos está atingindo mais fortemente as famílias mais vulneráveis ​​que dependem deles como substituto da carne e única fonte de proteína de baixo custo. (*Gráficos elaborados por Cecilia Tombesi).
2022-09-18
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62758791
brasil
Em Londres para funeral da rainha, Bolsonaro faz discurso em tom de campanha e fala em vitória no 1º turno
O texto foi atualizado às 10h40 de 18 de setembro de 2022. Em viagem a Londres para o funeral da rainha britânica Elizabeth 2ª, o presidente Jair Bolsonaro fez discurso em tom de campanha e mencionou vitória em primeiro turno, embora apareça atrás do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas pesquisas de intenção de voto. "Não tem como a gente não ganhar no primeiro turno", disse na manhã deste domingo (18/09) o presidente, em sacada da residência oficial do embaixador brasileiro em Mayfair, Londres. O presidente iniciou a fala dizendo que se trata de um momento de pesar e falando em "profundo respeito pela família da rainha e pelo povo do Reino Unido". Disse que esse era o "objetivo principal", mas falou nos cerca de quatro minutos restantes sobre contexto político no Brasil e sobre sua plataforma de campanha (contrária à descriminalização do aborto e do consumo de drogas, por exemplo). "A nossa bandeira sempre será dessas cores que temos aqui, verde e amarela", afirmou, ao lado de bandeira do Brasil a meio mastro. A frase faz uma referência a uma expressão popular entre seus apoiadores, de que a bandeira brasileira "jamais será vermelha" (cor associada ao comunismo e ao PT). Fim do Matérias recomendadas Bolsonaro chegou acompanhado do pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, e do padre Paulo Antônio de Araújo. A comitiva presidencial inclui ainda o filho do presidente e deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), e Fabio Wajngarten, ex-secretário de comunicação do governo Bolsonaro e membro da campanha de Bolsonaro à reeleição. Questionados sobre Bolsonaro falar em campanha eleitoral em meio às cerimônias fúnebres da rainha, Wajngarten argumentou que o presidente iniciou sua fala hoje falando do funeral. Malafaia, por outro lado, disse que não dá para "fingir que não está tendo um processo eleitoral no Brasil". O discurso de Bolsonaro foi acompanhado por um grupo de 100 a 200 pessoas, segundo a polícia londrina. Após a fala dele, parte dos apoiadores do presidente hostilizaram jornalistas brasileiros que estavam no local, entre eles a equipe da BBC News Brasil. Houve xingamentos, gritos e acusações de parcialidade. Não houve registro de violência física contra os jornalistas. Em seguida, policiais londrinos passaram a escoltar os jornalistas nas proximidades da casa do embaixador brasileiro em Londres. Quase duas horas depois, um grupo de manifestantes ligados às organizações Amazon Rebellion (rebelião amazônica, em tradução livre) e Brazil Matters (Brasil importa, em tradução livre) fez um protesto contra Bolsonaro. Os cartazes em inglês traziam dizeres como "Parem Bolsonaro pelo futuro do planeta" e "Bolsonaro é uma ameaça ao planeta e à humanidade". Os ativistas começaram a ser hostilizados pelos apoiadores do presidente, e por isso a polícia londrina precisou separá-los para evitar uma escalada na violência. No Twitter, o jornalista britânico e editor de meio ambiente do jornal The Guardian Jonathan Watts disse: "O insensível, superficial e grosseiro Bolsonaro está tentando usar o funeral da rainha como uma parada de campanha eleitoral. Que vergonhoso representante do Brasil." O comentário de Watts foi feito em resposta a uma postagem do correspondente do jornal The Guardian no Brasil, Tom Phillips, que escreveu: "Bolsonaro decidiu marcar o funeral da rainha com discurso sobre gênero, ideologia, abortos e males do comunismo de sua sacada em Mayfair." Em reação, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, que integra a comitiva do presidente, escreveu que o jornalista britânico omitiu que Bolsonaro mencionou a rainha no início do seu discurso. E afirmou que "vocês se enterram sozinhos, sem credibilidade". Bolsonaro chegou à capital inglesa na manhã deste domingo e deve deixar a cidade na segunda-feira (19/09), em direção a Nova York, onde participará da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Em Londres, está previsto que Bolsonaro faça uma visita à câmara ardente em Westminster, onde o corpo da rainha está sendo velado, por volta das 10h (horário de Brasília). Pouco depois, o presidente brasileiro deve assinar o livro de condolências. Por volta das 13h (horário de Brasília), Bolsonaro deve comparecer à recepção real acompanhado da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, e possivelmente de um tradutor. O Itamaraty não soube informar se Bolsonaro terá em seguida algum compromisso com aliados ou seus apoiadores em Londres. No dia seguinte, segunda-feira (19/09), Bolsonaro participará da cerimônia fúnebre da rainha (exéquias) por volta das 7h (horário de Brasília). Haverá logo em seguida uma recepção para os convidados estrangeiros promovida pelo governo britânico. Horas depois, Bolsonaro deve seguir para os EUA. Ainda não há informações sobre o horário exato do voo do presidente, mas ele deve ocorrer por volta das 13h (horário de Brasília). Os convites para o funeral da rainha foram enviados poucos dias depois da morte dela, e espera-se que compareçam quase 500 chefes de Estado e dignitários estrangeiros ao funeral na Abadia de Westminster, que tem capacidade para cerca de 2,2 mil pessoas.. Além de Bolsonaro, diversos líderes mundiais já chegaram a Londres para as cerimônias em torno do funeral da rainha. Entre eles, Joe Biden (presidente americano), Justin Trudeau (primeiro-ministro canadense) e Jacinda Ardern (primeira-ministra neozelandesa). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A lista de convidados ao funeral da rainha gerou polêmica no Reino Unido. Houve críticas ao convite feito ao príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, por causa das acusações de envolvimento dele com o assassinato do jornalista saudita Jamal Khashoggi em 2018, dentro de um consulado saudita na Turquia. Salman nega qualquer envolvimento com o assassinato. Outro que gerou controvérsia no Reino Unido foi o convite feito ao presidente chinês, Xi Jinping, por causa de acusações de crimes contra a humanidade que teriam sido cometidos contra uigures, uma etnia majoritariamente muçulmana com mais de 11 milhões de pessoas no noroeste da China. O governo chinês nega qualquer irregularidade. Xi, no entanto, não deve comparecer ao evento. Segundo a BBC apurou, a delegação chinesa (caso compareça ao evento) teria sido barrada de visitar a câmara ardente, onde o corpo da rainha está sendo velado. Há ainda aqueles que não foram convidados, entre eles os mandatários de Belarus, Síria, Venezuela, Afeganistão e Rússia. As relações diplomáticas entre o Reino Unido e a Rússia entraram em colapso desde a invasão da Ucrânia pela Rússia no início de 2022, e um porta-voz de Putin disse na semana passada que ele "não estava cogitando" comparecer ao funeral. Houve, por fim, convites ao Irã, à Coreia do Norte e à Nicarágua, mas apenas para os embaixadores, e não para os chefes de Estado.
2022-09-18
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62946305
brasil
Estrategista de Trump e aliado de Bolsonaro, Steve Bannon se diz 'fascinado' por Lula
"Um enfrentamento, cabeça a cabeça, entre dois políticos carismáticos de estatura global." Steve Bannon, o ideólogo da nova direita radical populista e estrategista principal do ex-presidente americano Donald Trump, define assim a eleição presidencial brasileira, que tem o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à frente das sondagens de intenções de voto, seguido por Jair Bolsonaro (PL), que tenta a reeleição. A eleição, que Bannon afirma ser a segundo mais importante do ano para o seu movimento de direita, também será, nas palavras dele, "uma das mais intensas e dramáticas eleições do século 21". Aliado de Bolsonaro, a quem chama de "herói", Bannon não esconde o fascínio que tem por Lula. "Eu sou fascinado por Lula", diz, afirmando que estudou o petista por "muitos e muitos anos". "Eu acredito muito nos trabalhadores. E parte do nosso trabalho tem sido atrair democratas e sindicalistas para a nossa causa. Então, tem coisas que Lula defende em que nós acreditamos", diz Bannon, que reconhece "o tremendo sucesso financeiro" da gestão do petista no Brasil no começo dos anos 2000. Fim do Matérias recomendadas Ele, no entanto, atribui a Lula proximidade que o próprio petista jamais ostentou com o Partido Comunista Chinês e sugere que, no poder, o ex-presidente faria do Brasil uma base para a China nas Américas, o que seria "uma questão para a segurança nacional dos EUA". Considerado um mentor pela família Bolsonaro, Bannon afirma ser uma espécie de "posto de intercâmbio", promovendo a conexão direta entre os políticos brasileiros e expoentes da direita radical global como o húngaro Viktor Orbán, o italiano Matteo Salvini ou o próprio Trump. De acordo com Bannon, essas conversas e conexões são centrais não apenas por questões ideológicas, mas para que cada grupo compartilhe com os demais experiências de campanha que possam potencializar suas chances de vitória em cada país. Ele sugere, por exemplo, que Trump poderia ter economizado muito dinheiro na corrida presidencial de 2016 se tivesse aprendido como usar o Facebook como Bolsonaro usou na campanha em 2018. Sobre a campanha atual, Bannon aposta que a figura da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, será capaz de unir o apoio dos evangélicos cristãos e impulsionar uma onda que empurre Bolsonaro com Lula para o segundo turno no próximo dia 2 de outubro. Já em relação às Forças Armadas, ele diz ver menos apoio a Bolsonaro do que o próprio Trump teve no setor militar. Vale lembrar que o então presidente americano se viu barrado em diversos momentos de usar as Forças Armadas em seu projeto político. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Bannon defende que os militares brasileiros são "ator-chave" em um momento em que o presidente brasileiro faz alegações de fraude nas eleições brasileiras, sem provas. Mas descarta em território brasileiro algum cenário do tipo como a invasão do Capitólio 6 de janeiro deste ano, como até mesmo integrantes do governo americano têm alertado ser possível. "O mundo exterior não deveria estar metendo o nariz nisso, seja o governo dos Estados Unidos, o pessoal de (fórum econômico de) Davos ou outros globalistas", afirma. Bannon, porém, admite que o 6 de janeiro foi um erro para seu grupo político — porque os impediu de lançar mão de manobras legislativas que pudessem, de acordo com sua perspectiva, contestar o pleito que elegeu Joe Biden a ponto de forçar nova votação. Assim como três quartos dos republicanos, ele segue repetindo que Biden não é um presidente legítimo. Ele é investigado por seu papel na invasão — que ele diz ter sido nenhum — e também enfrenta um processo por ter se recusado a depor diante do Congresso sobre o assunto. A despeito disso, diz que tanto o trumpismo quanto o bolsonarismo são movimentos democráticos. E reconhece que podem não triunfar nas urnas sempre. "Você não vai ganhar todas as eleições. E quando você ganha, pode não estar no poder para sempre, mas faz parte de um processo. Se você olhar para o fluxo desde a crise financeira de 2008, não há absolutamente nenhuma dúvida de que a direita nacionalista populista não é apenas ascendente, que nós ganhamos muito mais do que perdemos, e fizemos algumas mudanças bastante significativas, seja (com) Trump nos Estados Unidos, (com) Brexit (no Reino Unido) e Bolsonaro no Brasil", afirma Bannon. Na Justiça americana, Bannon enfrenta também uma acusação de ter enriquecido ilicitamente desviando recursos de doação de trumpistas para a construção do muro na fronteira com o México, uma promessa de campanha do ex-presidente. O caso já o levou, inclusive, a ser preso. Bannon nega qualquer crime. Leia a seguir os principais trechos da entrevista — editada por concisão e clareza — que Bannon concedeu à BBC News Brasil via zoom, diretamente do estúdio onde grava seu programa político, o War Room. BBC News Brasil - No ano passado, o senhor disse que a eleição brasileira é a segunda mais importante de 2022, atrás apenas das eleições legislativas de meio de mandato nos Estados Unidos, em novembro. Por quê? Steve Bannon - Vamos voltar a 2016. O Brexit, que aconteceu em junho, e a vitória de Trump (na eleição presidencial americana em novembro daquele ano) estavam intrinsecamente ligados. Essas coisas tendem a se mover em ciclos, e a inspiração e as questões que surgiram no Reino Unido com o (partido de direita radical britânico) Ukip e o Brexit foram algumas das coisas sobre as quais estávamos discutindo nos Estados Unidos, basicamente soberania, fronteiras, imigração. A mesma coisa se repete agora. Nós tivemos a vitória dos Democratas Suecos (partido de direita radical que saiu vencedor nas últimas eleições e comporá pela primeira vez o governo do país). Você tem Giorgia Meloni (de um partido pós-fascista e favorita a ser a primeira ministra da Itália), a quem conhecemos e com quem trabalhamos há anos, e com ela está surgindo na Itália e no sul da Europa uma coalizão de direita. Mas o mais importante sempre foi o Brasil. E digo isso porque o pleito brasileiro é muito próximo da eleição americana de meio de mandato (em novembro), e as questões (discutidas nos dois processos) são mais ou menos as mesmas. Bolsonaro é um grande herói para todos nós. Ele está no nível de Viktor Orbán (na Hungria) como alguém que defendeu a soberania nacional e realmente construiu uma base. Ele tem evangélicos, ele tem pessoas da classe trabalhadora. Se você olhar para o Brasil, (o bolsonarismo) é muito parecido com o movimento Maga (Make America Great Again, de republicanos ligados ao Trump), os bolsonaristas são muito parecidos com os desvalidos do America First, o que chamamos de hobbits do condado (metáfora de Bannon para aludir à vida de anseios simples dos trumpistas). Isso é o que você vê em Bolsonaro. E as pessoas alinhadas contra ele, particularmente os globalistas, são as mesmas (que estão contra Trump). E mais especificamente por causa dessa corrida eleitoral, a associação de Lula com o Partido Comunista Chinês, principalmente no que se refere a commodities e recursos naturais, fazem desta, eu acho, uma das eleições mais importantes, não apenas deste ciclo (eleitoral), mas nos últimos tempos. BBC News Brasil - O senhor está dizendo que o Lula tem uma relação especial com a China, mas no ano passado, sob Bolsonaro, o Brasil foi o país no qual a China mais investiu no mundo. Como isso cabe no seu argumento? Bannon - Obviamente, o Brasil é um país de recursos naturais com um grande negócio de exportação. O Partido Comunista Chinês precisa desses recursos. Mas eles foram comprados no mercado livre. Isso é bem diferente da relação de Lula com a China. Lula foi várias vezes a Pequim. Lula tem uma visão de mundo comum à do Partido Comunista Chinês. E o sucesso econômico (do governo Lula) está diretamente ligado aos negócios de exportação e commodities do Partido Comunista Chinês, que essencialmente olha para o Brasil como quase uma espécie de colônia para eles, principalmente em recursos naturais. Lula vai trazer tudo isso de volta. E os chineses veem o Brasil mais do que nunca como um necessário parceiro de commodities. Então, a relação entre Bolsonaro e o Partido Comunista Chinês é mais comercial. Com Lula é muito diferente. Ele dará uma grande base para o Partido Comunista Chinês na América Latina e isso se tornará uma importante questão de segurança nacional para os Estados Unidos. BBC News Brasil - O senhor começou essa conversa fazendo claras conexões entre o Brexit e a eleição de Trump. Existe uma conexão clara tanto de projeto como de ideologia e de ações, entre as direitas radicais no Brasil, nos Estados Unidos com Trump, na Hungria de Orbán, na Alemanha com a AfD? Bannon - Não há dúvida. Eu trabalho nesse projeto há vários anos. Lembre-se que logo após (vencer) a Casa Branca, acho que eu fui a primeira pessoa a recomendar que o Movimento Cinco Estrelas (partido italiano antissistema) e a Liga do Norte (partido italiano de direita radical) se unissem. Eu disse a eles: "Ei, vocês dois são partidos populistas, tentem colocar suas diferenças de lado". E eles fizeram isso e apoiaram Matteo Salvini. Então, sim, há absolutamente conexões e não apenas na ideologia. São todos nacionalistas, são partidos da classe trabalhadora e populistas. Eles são antielite, são particularmente antielite financeira, antibanco central, anti-Wall Street, anticorporações globais. E há contra todos eles o mesmo tipo de resistência. No Brasil, é um pouco diferente. Você tem os militares que, na minha visão, foram bastante comprometidos pelo Partido Comunista Chinês e acho que estão ainda menos alinhados com Bolsonaro do que pensamos que a maioria dos militares - não necessariamente as lideranças - está com o nosso movimento aqui nos Estados Unidos. Então, há correlações diretas, eu acho, com Salvini e Giorgia Meloni na Itália, com Orbán, com quem acabei de encontrar no CPAC (conferência conservadora), em Dallas (Texas). São todos movimentos de direita que falam sobre as mesmas questões, com o apoio da polícia, da classe trabalhadora, e lidando com questões globais, enquanto em cada nação constroem suas próprias bases, um movimento nacionalista populista de, francamente, muita força e muito poder. BBC News Brasil - Por que o senhor diz que Bolsonaro não tem apoio dos militares? Como viu o 7 de setembro, dos 200 anos de independência? Bannon - Bolsonaro concorreu em 2018 tendo como seu vice-presidente um general (da reserva, Hamilton Mourão). E, no início, foi tão difícil para Bolsonaro quanto foi o primeiro ano do presidente Trump, para que ele conseguisse ganhar força e assumir o Estado administrativo em Washington. Vimos Bolsonaro governando aos trancos e barrancos também no primeiro ano, e isso era impulsionado principalmente por seu vice-presidente, que fez parte das Forças Armadas. E você viu que os militares tinham seu próprio ponto de vista de como as coisas deveriam ser feitas. Eu acho que hoje, com toda a questão da integridade eleitoral nos tribunais, os militares são obviamente um ator-chave. E eu sei que há muitas, muitas pessoas nas Forças Armadas que apoiam o presidente Bolsonaro, ele é um paraquedista egresso das Forças Armadas. Mas os militares, particularmente os membros seniores do quadro militar, inclusive o vice-presidente, fizeram mais do que qualquer um para realmente contrariar muito do que Bolsonaro queria levar adiante. BBC News Brasil - Bolsonaro mobilizou o 7 de setembro para mostrar poder e conexão com os militares. Ainda assim, não te parece que ele tenha o apoio amplo desejado nas Forças? Bannon - O 200º aniversário (da independência) foi muito impressionante. Parte disso era, obviamente, o patriotismo dos militares em geral. Mas as imagens que chegaram aqui aos Estados Unidos foram, francamente, de tirar o fôlego. O tamanho, a escala (do ato). A grande mídia tem minimizado Bolsonaro, sugerindo que ele tem dificuldade em ganhar força nas pesquisas, que a campanha não está indo bem. É por isso que foi muito de tirar o fôlego, a escala das multidões e da celebração e, obviamente, os militares estarem lá. E principalmente porque o Lula, que eu acho que estava tendo um dia de Joe Biden, decidiu fazer campanha no conforto de sua casa. Então, não me entenda mal, mas seria de esperar que os militares seriam ainda mais favoráveis a Bolsonaro, dado o que ele representa. Ele quer tornar o Brasil grande novamente, quer que o Brasil tenha soberania, quer deixar claro que o Brasil é um bom administrador da Amazônia, mas que, no limite, são do Brasil as decisões (sobre a floresta) e não de algum tipo de comunidade mundial. Então, tenho percebido há tempos que há certos elementos das Forças Armadas que claramente não o apoiam. E eu acho que muito disso vai ficar claro nesta eleição, e particularmente nos tribunais, com os juízes que definem como as eleições são conduzidas. Tivemos Eduardo (Bolsonaro) vindo ao simpósio cibernético em Dakota do Sul, em agosto do ano passado, promovido por Mike Lindell (empresário americano trumpista acusado de promover os atos de 6 de janeiro). Eduardo deu uma das melhores apresentações do Simpósio, lá ele listou os problemas que eles têm e as preocupações que eles têm sobre as urnas eletrônicas. Então, eu espero que isso seja totalmente monitorado e fiscalizado pelas autoridades, pelos tribunais, pelos militares, por todos, para que haja uma eleição limpa e justa. Tenho usado muito do meu tempo conversando com as pessoas nos bastidores (da disputa brasileira), e sinto que há uma grande onda pró-Bolsonaro agora. Um elemento que não estava na campanha de 2018 é a primeira-dama (Michele Bolsonaro). Ela assumiu agora um papel muito público e acho que ela pode ser uma força muito grande para essa onda, à medida em que vamos vendo os evangélicos se unirem. Eu sempre digo que é muito difícil fazer pesquisas nos Estados Unidos por causa do movimento America First, o movimento Maga, eles desconfiam muito de qualquer tipo de mídia, então geralmente não respondem à pesquisas eleitorais. Eu acho que a mesma coisa pode estar acontecendo no Brasil, onde você tem esse ressurgimento desse movimento populista, particularmente a parte cristã evangélica, que eu não tenho certeza se é pesquisada com precisão. Então, acho que esta será uma das eleições mais intensas e dramáticas do século 21. E acho que Bolsonaro vai chegar à vitória a partir de uma onda. BBC News Brasil - O senhor afirmou que tem trabalhado nesse movimento populista de direita global há anos. O senhor tem atuação direta na campanha de Bolsonaro hoje? Bannon - Não estou atuando na campanha de Bolsonaro, não trabalho em nenhuma campanha individual em nenhuma nação. Eu acho que isso é um papel para as pessoas de cada país desempenhar. O que eu tento fazer, especialmente com Eduardo, é falar sobre como (desenvolver) um movimento nacionalista populista na América Latina, em como conectá-lo, fazer com que as pessoas de cada país se comuniquem, compartilhem ideias, digam o que está dando certo ou não. Sempre tentei ser uma espécie de posto de intercâmbio, para garantir que possamos fazer conexões e interconectar pessoas. Acredito que, nesses países, cabe a essas pessoas realmente tomar essas decisões, e as pessoas podem aprender a fazer campanha, aprender a enviar mensagens, aprender a construir redes, etc. O que é mais impressionante, principalmente com Bolsonaro, é que foi ele quem nos ensinou muitas lições sobre redes sociais. Quando conheci a família Bolsonaro em Nova York, em 2018, fiquei fascinado com a campanha deles. A única preocupação que eu tinha era com a segurança. Naquela época, ele chegava aos aeroportos e era arremessado pra cima e carregado como um jogador de futebol. Eu disse para Eduardo que eles deveriam ser muito mais cautelosos com isso. Mas o que eu achei mais incrível, tanto com Bolsonaro, quanto com Salvini na Itália, em menor grau, é como eles chegaram praticamente à perfeição no uso do Facebook, no manejo das lives de Facebook, como atraíram multidões quase sem usar dinheiro. Os recursos limitados que Bolsonaro tinha em 2018 e seus resultados são realmente uma lição de política moderna sobre como conduzir uma campanha popular. Obviamente, agora eles estão maiores e mais sofisticados. Mas, ainda hoje, Bolsonaro ainda teria ao menos uma coisa ou duas a ensinar ao presidente Trump sobre como conduzir uma campanha ou sair de uma cilada. BBC News Brasil - Como foi essa aproximação com a família Bolsonaro? Bannon - Quis conhecê-los porque eu tinha visto o que eles tinham feito até aquele momento, acho que isso foi em julho de 2018. E eu me lembro de dizer pra eles: "Pessoal, se vocês seguirem nessa direção, mantendo este ritmo, acho que levam no primeiro turno". E lembro que ele chegou muito perto disso. Acho que ele teve 46% dos votos, e precisava de 50% (mais um). Quando nos encontramos, ele tinha apenas 16%,17% ou 18%, algo assim. Mas o que eu vi foi alguém que sabia não apenas enviar mensagens, mas se conectar. Eu digo às pessoas quando elas entram na política que precisam estar cientes de que hoje o público sabe identificar falsários. Esse é um dos poderes da Internet. Então, (pra ter sucesso na política) você tem que realmente acreditar no que está propagando e tem que ser capaz de se conectar com as pessoas. Não se trata mais de dinheiro. E eles venceram. Por quê? Em parte, porque eles se conectaram às mídias sociais e saíram interagindo com pessoas. Bolsonaro obviamente é uma figura carismática, e Lula também. Isso é o que é tão único sobre esta corrida. Você tem duas figuras de estatura global, importantes para o mundo, e que sabem como se conectar com a pessoa comum. E Bolsonaro tinha realmente o que nos ensinar, porque lembre-se, quando fizemos (a campanha de Trump no) Facebook, principalmente em 2016, gastamos muito dinheiro ali. Quer dizer, nós meio que jogamos o jogo deles no que diz respeito à publicidade. Bolsonaro, não. Ele se conectou com as pessoas com uma mensagem e com sua humanidade e realmente fez com que as pessoas fizessem parte da estratégia do Facebook, ele fez do público parte do processo, algo que realmente não havia sido feito antes, na escala de um país como o Brasil, por isso me surpreendi com esses caras. Essas pessoas realmente levaram a política moderna a outro nível. Então não, não há conselho que Steve Bannon possa dar a Bolsonaro sobre como fazer uma campanha no Brasil, não apenas sobre as questões do país, mas como se conectar com seus compatriotas. Acho que o que torna isso tudo tão fascinante é que eu acredito muito nos trabalhadores. E, parte do nosso trabalho tem sido atrair democratas e sindicalistas para a nossa causa. Então, tem coisas que Lula defende que nós acreditamos. Vocês realmente têm dois líderes populistas agora. Acho que o Lula se esgotou com o tempo, mas essa é realmente uma campanha de dois populistas se enfrentando, cabeça a cabeça, e por isso acho fascinante. BBC News Brasil - O senhor esteve se informando sobre o Lula? Parece bastante interessado nele. Bannon - Eu sou fascinado pelo Lula. Sou atraído por grandes personalidades. Eu estudei Lula por muitos, muitos anos, e, particularmente, no início dos anos 2000, antes do colapso financeiro global de 2008, ele teve um tremendo sucesso financeiro (no governo). Talvez as pessoas no Brasil não entendam, mas o carisma dele, de Eduardo, do presidente Bolsonaro, é algo que você não vê na política americana, com exceção de Trump e algumas outras poucas pessoas. Então, eu estudo Lula há muito tempo. Acho-o um personagem fascinante. Acho-o um personagem trágico porque acredito que ele realmente acreditava no que dizia. E acho que ele é uma figura trágica por isso. Eu acho que ele é parte da rede (política) que o Partido Comunista Chinês corrompeu em todo o mundo. É um exemplo perfeito disso. BBC News Brasil - O senhor diz isso, mas Lula não admite essa proximidade e inclusive tem criticado publicamente a falta de divergências no Partido Comunista Chinês… Bannon - Acho que ele entende que (a associação) é algo tão negativo, que ele precisa fazer algum tipo de separação, mesmo que ela não seja real. Ele é um político muito experiente, muito sofisticado quando se trata de mídia e, particularmente, mídia global. E acho que ele entende que as coisas pioraram com a questão dos uigures (minoria étnica que teriam seus direitos humanos violados pelo governo chinês). Se você vai ser um político pragmático e tentar ser eleito em um país ocidental, você tem que sentar lá e dizer: "Oh, o Partido Comunista Chinês é ruim". Vemos a mesma coisa nos Estados Unidos. Mas a influência do Partido Comunista Chinês na América é bastante profunda. Então, acho que Lula apenas entendeu como é radioativa qualquer associação com o Partido Comunista Chinês e resolveu ser vocal sobre isso. BBC News Brasil - O senhor mencionou a questão das urnas eletrônicas. Bolsonaro está atrás nas pesquisas de intenção de voto. Ele próprio já admitiu que não tem prova de fraude nas eleições. Inclusive, ele venceu todas as eleições que disputou com a urna eletrônica. Então por que bater nisso? Esse tipo de argumento é legítimo numa disputa política ou é uma forma de deslegitimar o sistema político e a democracia? Bannon - Essa é uma boa pergunta. Eu nunca fui um sujeito afeito a máquinas. Dito isto, já vi o suficiente da tecnologia, o suficiente dos problemas que tivemos com as urnas eletrônicas nos Estados Unidos, de modo que sou um dos grandes defensores de que adotemos o sistema francês nos Estados Unidos, onde todas as cédulas de papel são preenchidas pelos eleitores no dia de votação, numa sessão eleitoral. E às 21h ou 22h do mesmo dia, você tem os resultados. Se a França pode fazê-lo, os Estados Unidos podem fazê-lo. E acho que o Brasil pode fazer. Espero e rezo para que tudo aconteça bem (nas eleições brasileiras). E é por isso que estou pedindo um escrutínio e transparência, porque acredito muito que, independentemente do que as pesquisas digam, basta ver o que está acontecendo: acho que Bolsonaro vai subir a ponto de ir com Lula para o segundo turno e, depois, vencê-lo. Vimos um público massivo no Dia da Independência, se a campanha de Bolsonaro for capaz de transformar cada uma daquelas pessoas em multiplicadores de votos, ele teria o potencial até de ganhar em primeiro turno. Então eu espero que as pessoas fiquem vigilantes sobre essas urnas, porque a última coisa que você quer é qualquer tipo de disputa sobre o resultado. BBC News Brasil - Mas o senhor está ciente que, historicamente, no Brasil, o voto em papel foi uma enorme fonte de fraude e que até mesmo Bolsonaro, nos anos 1990, advogava pela informatização das eleições para diminuir o problema? Não há uma contradição nisso? Bannon - Você está absolutamente correta sobre a história. Mas acho que a diferença é que hoje temos processos melhores, sofisticação para lidar com voto em papel, coisa que não tínhamos antes. Os franceses nos ensinaram como fazer. E eles são o modelo. Por outro lado, máquinas podem ser hackeadas (o TSE nega que urnas possam ser hackeadas no Brasil), com toda essa loucura de servidores e o nível de ataque cibernético que se pode fazer hoje. Então, o sistema em papel pode ser aperfeiçoado, mas o das urnas eletrônicas não pode. Agora, espero que haja e acredito que haverá salvaguardas suficientes e no Brasil, que os agentes públicos estejam trabalhando nisso para que não tenhamos essa controvérsia. No final das contas, o que você quer ter certeza que aconteça é, independente de quem seja o vencedor, você possa dizer: "Bolsonaro ganhou" e o pessoal do Lula aceita. Ou, "o Lula ganhou" e o povo do Bolsonaro aceita. As pessoas precisam aceitar a derrota, e você só consegue isso através da transparência. BBC News Brasil - Esse é um ponto central. Pessoas de diferentes países pelo mundo, incluindo os Estados Unidos, estão alertando de que poderia haver no Brasil um evento como o 6 de janeiro. Bannon - Não acredito nisso, e também acho que o que foi o 6 de janeiro tem sido muito exagerado… BBC News Brasil - Mas o Capitólio foi invadido, cinco pessoas morreram… Bannon - (Interrompe a pergunta) A maioria das mortes (no episódio do Capitólio) foi motivada pela reação exagerada da polícia. O dia 6 de janeiro foi exagerado como uma questão política. Os democratas bateram nessa tecla, mas isso não ressoa com o povo americano. Isso até nos ajudou porque eles perderam muito tempo falando disso enquanto (aumentavam) os problemas nos Estados Unidos, particularmente a invasão (de imigrantes) em nossa fronteira sul e o colapso de nossa economia. Os democratas estão focados nessa coisa da antidemocracia. Nós amamos a democracia. Vamos dar aos democratas um supositório de democracia em 8 de novembro. Como eu acredito que Bolsonaro e seu movimento vão dar a Lula e seus seguidores um supositório de democracia. O que esperamos é transparência, certo? Todo mundo só quer concordar que, afinal, foi uma eleição honesta. Então, não, eu não acredito que o Brasil vai ter uma situação como o de 6 de janeiro. As razões pelas quais eu acho isso são: Bolsonaro vai ter uma onda e vai vencer, haverá transparência e todo mundo vai fazer o seu trabalho, e é nisso que as pessoas devem se concentrar. Eu também digo às pessoas no Brasil: se apodere do seu próprio voto e assuma o controle de seu sistema eleitoral. O mundo exterior não deveria estar metendo o nariz nisso, seja o governo dos EUA, o pessoal de (fórum econômico de) Davos ou outros globalistas. Nesta eleição, não poderia haver mais coisas em jogo para o povo no Brasil. Ela deve ser decidida pelo povo do Brasil, por processos que são executados por brasileiros, que os brasileiros possam olhar uns para os outros depois e dizer: 'tudo bem, eu entendo que isso foi transparente e esse foi o resultado'. BBC News Brasil - Há uma situação de medo de violência política no país, com sete a cada dez pessoas dizendo temer algum ataque por seu posicionamento político. As pessoas identificam essa violência com Bolsonaro e seu grupo, com as suspeitas lançadas sobre as urnas e a defesa de armamento civil. Nos Estados Unidos, Biden disse que o Maga é um risco à democracia. Esse movimento populista de direita radical respeita a democracia? Bannon - É um movimento democrático, isso (dizer que não é) é (acusação) da mídia. Vamos ganhar nas urnas. Temos dois terços (do eleitorado) agora nos Estados Unidos. (agregado de pesquisas eleitorais do site FiveThirtyEight mostra que 44.9% dos americanos querem vitória democrata no Congresso, contra 43.4% que preferem republicanos). Vamos tomar a Câmara dos Deputados por, não sei, 30, 40 ou 50 cadeiras. Nós vamos manter nossas posições no Senado e ainda levar duas ou três. Nós amamos a democracia e aqui está a razão: nós temos os votos. Então, quando Biden vem e demoniza as pessoas é simplesmente porque ele não pode falar sobre seus feitos. Seu governo é um colapso financeiro e econômico do nosso país: inflação fora de controle, recorde na queda do patrimônio líquido (das famílias) do nosso país foi anunciada na semana passada: são US$ 6 trilhões (a menos) para o povo americano. Eles querem falar sobre 6 de janeiro e democracia, eu digo, vamos esperar até a noite de 8 de novembro (eleição nos EUA) e ver para quem a democracia funciona, ok? Acredito piamente, somos um movimento de base, temos estratégia de política local: assumir o governo local, assumir o conselho escolar local, assumir os postos de funcionários eleitos locais. E como você faz isso? Você vota em si mesmo e nos seus e então a gente vai ter mais votos. Mesma coisa com Bolsonaro. Você vê o quanto a mídia global bate nele. É por isso que eu diria às pessoas no Brasil: vá votar e convença todo mundo a votar, é assim que as insurgências populistas ganham, nós ganhamos nas urnas. E, lembre-se, viemos de trás. Quando assumi a campanha de Trump (em 2016), tínhamos 88 dias pela frente, o presidente Trump estava quatro, oito, doze pontos atrás nas pesquisas e nós ganhamos. Foi a maior surpresa de um azarão de todos os tempos. Por quê? Porque nós fomos e nos comunicamos com pessoas da classe trabalhadora em Wisconsin, Michigan e Pensilvânia. É o que estamos fazendo desta vez. Teremos vitórias arrebatadoras e faremos isso com uma coisa chamada voto. O Presidente Joe Biden fala em terrorismo doméstico? O que as mães que vão para os conselhos escolares têm de terroristas domésticas? É tudo um disparate. As pessoas veem isso, e vão às urnas e vão votar. BBC News Brasil - Algumas pessoas argumentam que o 6 de janeiro foi uma tentativa de golpe de Estado, já que estava acontecendo a certificação de votos do presidente Biden no Congresso, e essas pessoas interromperam isso, invadiram o prédio com armas… Bannon - (interrompe a pergunta) Lamento dizer, mas isso é mentira. Ninguém nunca provou que as pessoas na multidão tivessem armas (a reportagem da BBC News Brasil presenciou pessoas com tacos de beisebol e hastes de bandeiras na área externa ao Capitólio e o FBI afirmou também que havia gente com spray de pimenta e artefatos explosivos de fabricação caseira). O 6 de janeiro e o que aconteceu, o motim no Capitólio, isso trabalhou contra nós, foi um erro, porque (derrubou) tudo pelo que trabalhamos. Estávamos prestes a ter 24 horas, 12 horas em cada Casa (Senado e Câmara) para passar por cada um dos seis estados em que havia controvérsias. Eu nunca disse que eles seriam contados como eleitores de Trump, mas que os eleitores de Biden não poderiam ser certificados de acordo com as regras estabelecidas na Lei de Contagem Eleitoral de 1887. Isso forçaria o que chamamos de eleição contingente, que obrigaria a Câmara dos Deputados a entrar e não votar pela consciência do membro individual, mas por delegação estadual-partidária. Nessa votação, Trump ganharia por 27 a 23, ou se você incluir (a republicana anti Trump) Liz Cheney em Wyoming, por 26 a 24. Eu ainda acredito nisso. Acredito que (o vice-presidente) Mike Pence (que presidia a sessão que sacramentou a vitória de Biden) tomou a má decisão (o atual entendimento majoritário no país é que Pence tinha responsabilidade apenas cerimonial, sem poderes para alterar a certificação dos votos. Pence se recusou a atuar no plano de Trump). Eu acredito que você verá isso começando em janeiro ou fevereiro do ano que vem, com a nova (composição) da Câmara, quando eles vão julgar de verdade o que houve no 6 de janeiro (Bannon se recusou a testemunhar diante da Comissão Congressual que investiga o que aconteceu no 6 de janeiro e enfrenta processo judicial por isso). O que precisamos é de um fórum para julgar isso em um contexto adequado, com os democratas tendo posição minoritária. Sou um grande defensor de que temos que fazer isso. O país está meio que em chamas. Lembre-se, 40% a 45% do povo americano não acham que Joe Biden é um presidente legítimo. Eu não acho que ele seja legítimo. Isso nunca aconteceu em nossa nação. Nunca tivemos dúvidas sobre a legitimidade de (Abraham) Lincoln. Na verdade, o fato de ele ser legítimo é o que causou a Guerra Civil. BBC News Brasil - As semelhanças entre Trump e Bolsonaro são evidentes e já falamos delas. Mas o senhor vê algum paralelo entre Biden e Lula? Bannon - Ele está fazendo uma campanha como Biden. Quer dizer, acho que o que é tão interessante ou curioso é que aqui temos uma figura populista dinâmica que não está realmente hoje executando uma campanha populista dinâmica. Acho que a comemoração dos 200 anos foi o exemplo mais contundente de que ele não é um populista numa campanha popular. As multidões não estão lá, a intensidade não está lá. BBC News Brasil - Trump deixou o poder, Bolsonaro está atrás nas pesquisas agora, na América Latina governos de direita perderam as eleições, na Europa Ocidental isso também vem acontecendo, a candidata da direita radical Marine Le Pen não venceu Emmanuel Macron, na França… Bannon - (interrompe) Calma lá, calma lá. Depois de Le Pen na presidencial, na eleição regional, Macron perdeu feio (pra direita radical) e, por isso, ele não consegue governar. Mas, na América Latina, eu concordo com você, houve um movimento recente de esquerda populista. Uma coisa que acho que podemos concordar é que o mundo está se tornando mais populista. Partidos mais tradicionais, seja à esquerda ou à direita, ou centro, não têm conseguido entregar para as pessoas o que as pessoas querem. Então, os vitoriosos têm sido mais os populistas. Mas veja o Chile, onde você tem (Gabriel Boric) uma personalidade jovem e dinâmica vinda da esquerda populista que prometeu muito e, de repente, houve o golpe esmagador que o povo chileno deu na votação da Constituição (que acabou rejeitada), acho que isso mostra que ainda há uma forte soberania nacionalista e uma direita populista no Chile que também pode trazer moderados e centristas. Então, há, sim, um fluxo e refluxo. Acho que as coisas estão mais populistas agora. Acho que o Brasil é um exemplo perfeito disso. Acredito que a direita populista está em ascensão, mas você tem que entregar. Lembre-se, uma vez que você está no poder, você tem que ser capaz de entregar (bons resultados) para as pessoas. Acho que isso é fundamental. BBC News Brasil - Que críticas você faria aos governos da direita populista? Bannon - Tudo é um processo. Se você olhar para o primeiro ano do governo Trump, uma das coisas que mais nos prejudicaram é que tínhamos 4 mil posições para preencher na administração no governo americano, mas nós não tínhamos (pessoas suficientes para isso), éramos um movimento relativamente novo que vencia a primeira grande eleição nacional e precisávamos de pessoas de qualidade para colocar lá. Se você olhar para o Bolsonaro, essas situações também acontecem, (a dificuldade) de preencher o governo com pessoas competentes que possam realmente efetuar mudanças. E acho que você vai ter algumas vitórias dos populistas em que talvez os governos não tenham um bom desempenho. Isso não é o fim do mundo. Lembre-se, tudo isso é um processo. Com Salvini e o que eles fizeram, é quase um exemplo perfeito. Tínhamos a esquerda e a direita se juntando e no final, eles não conseguiram deixar suas diferenças totalmente de lado e esse governo durou apenas alguns anos, mas foi um bom experimento. Mas agora você tem Giorgia Meloni liderando uma coalizão realmente à direita e o grupo de Salvini e outros fazem parte dela. Você tem mais pessoas, elas são mais qualificadas, são mais gente numericamente. Nos Estados Unidos, estamos treinando pessoas hoje para que, quando vencermos em 2024, estejamos prontos para assumir o comando imediatamente. Eu acho que você vê isso em governos em geral, particularmente na América Latina, a escassez de pessoal que também pode implementar políticas. Não é um mundo perfeito. Você não vai ganhar todas as eleições. E, quando você ganha, pode não estar no poder para sempre, mas faz parte de um processo. Se você olhar para o fluxo desde a crise financeira de 2008, não há absolutamente nenhuma dúvida de que a direita nacionalista populista não é apenas ascendente, que nós ganhamos muito mais do que perdemos, e fizemos algumas mudanças bastante significativas, seja Trump, Brexit e Bolsonaro no Brasil. Portanto, acreditamos direcionalmente que estamos avançando não apenas em marcha, mas também em ascensão.
2022-09-18
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62944023
brasil
‘Me demiti em crise de ansiedade’: os relatos de assédio e pressão dos estagiários de Direito
Uma tentativa de suicídio durante o expediente chocou o mundo do Direito e disparou um alerta sobre o tratamento dado a estagiários do ramo. Em agosto, um jovem estagiário de um dos escritórios de advocacia mais renomados do país se feriu durante a tentativa, mas foi atendido no local e encaminhado ao hospital com vida. Apesar das lesões, ele passa bem. O escritório afirmou por meio de um comunicado à imprensa que "lamenta o incidente" e que ofereceu toda a assistência ao jovem, seus familiares e colegas de trabalho. O ocorrido causou revolta. Nas redes sociais, inúmeros relatos passaram a denunciar condições abusivas de trabalho que muitos estagiários de Direito têm de enfrentar em suas primeiras experiências profissionais. O perfil do Instagram "Escritórios expostos" (@escritoriosexpostos) surgiu como uma página que recolhe e expõe relatos de assédio moral e sexual vividos em escritórios de advocacia. Fim do Matérias recomendadas Com mais de 50 mil seguidores, as histórias publicadas pelo perfil revelam um mundo de cobranças absurdas, prazos irreais e tratamento interpessoal grosseiro e abusivo. O estagiário de Direito Thiago*, de 24 anos, conta que viveu essa cultura de trabalho tóxica em alguns dos maiores escritórios da capital paulista e relata jornadas de trabalho exaustivas e incompatíveis com as diretrizes de um estágio. "Cansei de ficar mais de 12 horas no escritório. Era comum trabalhar até 22h ou no final de semana", diz. Segundo o estudante, a lógica dos locais onde trabalhou indicava que sair no horário correto era sinal de que o funcionário estava sem trabalho. "Se você não ficasse até mais tarde, era pressionado. Eles diziam que você não estava rendendo o esperado." Além disso, as metas estabelecidas pelos chefes não eram condizentes com a realidade, diz Thiago. "Eles dobravam a meta todo mês. Diziam que, se você conseguiu atingir a meta anterior, conseguiria atingir a nova." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A pressão também era um fator constante. Ele relata que, em um dos escritórios onde trabalhou, reuniões eram marcadas caso não conseguisse entregar tudo o que lhe foi pedido. "A reunião era feita aos gritos, e você era ofendido de inúmeras maneiras." Tiago diz que não foram poucas as vezes que viu colegas de estágio terem crises de choro durante o expediente. Em certa ocasião, ele conta, uma estagiária saiu no meio do almoço em prantos, e uma das sócias do escritório olhou para aquela situação e afirmou que chorar no ambiente profissional era como um rito de passagem para trabalhar ali. "Eu me demiti de um dos escritórios porque não conseguia mais ficar lá", relata o estudante. "Estava no meio de uma crise de ansiedade e só queria sair daquele lugar. Saí dali aos prantos e quase fui atropelado, queria me jogar do primeiro local que encontrasse." Desde esse incidente, Thiago passou a fazer acompanhamento psicológico, psiquiátrico e a tomar remédios. "O assédio moral no mundo da advocacia contra funcionários temporários existe de forma sistemática em escritórios de grande e médio porte", afirma Roberto Heloani. Com formação em Direito e Psicologia, ele é professor e pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e especialista sobre assédio moral no trabalho. O pesquisador define o assédio moral como um produto de uma rede de violências estabelecidas em um ambiente profissional. Em um local onde pessoas são obrigadas a cumprir metas abusivas, cria-se uma rede de violência. Engana-se, no entanto, quem caracteriza o assédio moral como uma prática individual. Para o pesquisador, ele é uma reflexo da pressão vivida em um ambiente. "Quando a lógica de trabalho obriga alguém a cumprir metas a todo custo, isso cobra um preço na saúde mental. O profissional acaba descontando essa pressão em quem está mais próximo." Essa violência, segundo o pesquisador, costuma ser legitimada por uma estrutura hierárquica. "O assédio é caracterizado por uma assimetria de poder. Alguém tem um poder muito maior e o exerce de forma abusiva." "Por ser o elo mais fraco da corrente, é o estagiário quem muitas vezes sofre as pressões, estresses, cobranças e violências", relata o pesquisador. "O autoritarismo é a grande ferramenta daqueles que não sabem comandar." Segundo ele, houve na última década um grande número de casos de assédio moral contra funcionários temporários. Como não tem vínculo empregatício, o estagiário é entendido como um empregado deste tipo. Em 2022, a Organização Internacional do Trabalho incluiu em sua convenção sobre violência e o assédio o estagiário como categoria que deve ser protegida. O pesquisador entende que esse é um sinal do quão alarmante e real é a situação dos estudantes de Direito. Para Paulo Eduardo Vieira de Oliveira, professor da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Direito do Trabalho, a relação de subordinação entre empregado e empregador faz com que assédios morais se desenvolvam com maior frequência nesses casos. "O estagiário se encontra em uma posição de fragilidade, porque ele sabe que está sendo avaliado todos os dias. Com isso, ele está mais suscetível a sofrer pressões profissionais", afirma Oliveira. Quanto mais baixa a posição de um funcionário na hierarquia de uma empresa, maior o medo de ser demitido. "O sonho de qualquer estudante é ser contratado. Logo, eles vão sentir maior pressão para ter uma conduta perfeita no emprego", diz Oliveira. O mundo jurídico tem dois fatores que o torna particularmente propenso à prática do assédio moral. "É um ambiente de pessoas estressadas", relata Heloani. "Há uma quantidade de processos e uma demanda de trabalho muito alta. É também um mundo muito hierárquico, que envolve muito poder. A lógica da violência do assédio acaba sendo facilitada em um ambiente como esse." Heloani garante que isso não justifica uma conduta abusiva, mas que é importante entender como surge. Em um ambiente que trabalha com advogados, promotores, procuradores, juízes e outras formas de autoridades, quem não consegue distinguir autoridade de autoritarismo acaba cometendo assédio moral. "Não há como fazer justiça em um ambiente onde as pessoas estão angustiadas", reitera o pesquisador. Além de todas as questões citadas acima, um problema enfrentado por estagiários no Direito é a forma com que a posição foi sendo distorcida ao longo do tempo. O estágio deveria ser uma oportunidade de aprendizado, mas se tornou na prática uma forma de mão de obra barata. "Onde trabalhei, os estagiários tinham demandas de advogados", afirma Thiago. "Muitas vezes, cuidávamos de processos sozinhos. Se tivéssemos dúvidas, éramos tratados com rispidez." O estudante afirma que aqueles que não rendessem o que era esperado ou questionassem o trabalho exaustivo eram demitidos. "Sem direitos, os estagiários saiam com uma mão na frente e outra atrás", relata Thiago. Heloani diz que as empresas de advocacia contratam "escraviários". "Com isso, a prática de assédio se intensifica." Como a mão de obra é descartável, no primeiro sinal de rebeldia, a convivência profissional se torna conflituosa. "É a forma de colocar aquele sujeito para fora", relata Heloani. Natália*, de 31 anos, conta que viveu uma situação parecida. A advogada estava há alguns anos na posição de estagiária. "Um professor me ofereceu uma vaga. Ele me falou que eu poderia estudar no escritório, então, aceitei", diz. A vaga, no entanto, era de oito horas por dia, não de seis como manda a lei. Natália afirma que não era instruída por seu chefe e que, em diversos momentos, se sentia perdida, sem o conhecimento necessário para as tarefas. "Se ninguém te ensina, não tem como você saber o que é errado." Em certa ocasião, ela diz que trabalhou por dias em uma liminar que acabou sendo indeferida. Natália recorda que seu chefe a chamou na frente de todo o escritório e a humilhou, afirmando que ela não era capaz de fazer algo simples - apesar de ainda haver possibilidade de recurso. "Ele só não me chamou de burra porque não quis. Chorei copiosamente naquele dia." No dia seguinte, segundo Natália, o chefe a chamou no escritório e disse que seria possível recorrer. A fundamentação utilizada pela estagiária estava correta. "Quando foi pra me diminuir, a pessoa fez em frente a todo o escritório. Para pedir desculpas, foi no privado." Mesmo formada há mais de dois anos, Natália ainda se sente insegura quando trabalha. "Eu me lembro daquela situação e me pergunto se sou capaz. Quando esse tipo de assédio ocorre, você perde a esperança. Começa a imaginar que está no lugar errado, que fez o curso errado." De acordo com a advogada, após o ocorrido, ela optou por sair do escritório e ficar sem trabalhar até se recuperar. "Moro com meus pais e não tinha que me submeter a esse tipo de tratamento para sobreviver. Infelizmente, conheço muitas pessoas que não tiveram essa opção." Heloisa Toledo, diretora do XI de Agosto, centro acadêmico de Direito da USP, diz que muitos alunos enxergam o estágio não só como uma oportunidade de aprender, mas uma fonte de renda que possibilita manter-se na faculdade. "O estudante de baixa renda muitas vezes recebe um salário no setor privado que é alto para seus parâmetros", pondera. Filha de uma costureira com um gari, ela aponta que qualquer estágio que ela faça no setor privado vai lhe pagar mais do que os salários dos pais combinados. "O estudante acaba encarando o estágio como um emprego e tem medo de perder a vaga e não conseguir continuar na faculdade", diz. A contrapartida é que, apesar do salário maior, os estagiários não são trabalhadores formais amparados pela CLT. Isso cria uma brecha jurídica que possibilita inúmeros abusos. "Os estagiários são cobrados como se fossem advogados formados, quando a maioria ainda está no terceiro ano da universidade", diz Heloisa. Além da renda que o estágio proporciona, ela diz que uma "cultura do medo" faz com que os estudantes se submetam a situações de assédio e abuso. "Os escritórios conversam. Há um medo de denunciar, se expor e isso interferir na sua carreira jurídica." Thiago concorda: "O estagiário sabe que, se denunciar o que sofreu, dificilmente vai arranjar outro emprego. Denunciar assédio moral é manchar sua carreira". "O estágio é uma experiência que toda pessoa que faz Direito deve ter", afirma Heloani. Ele vê com muita tristeza o fato de que jovens tenham seus sonhos profissionais destruídos por conta do assédio moral. "O estagiário geralmente é alguém que está entrando na vida adulta, eles ainda não estão formados. As agressões sistêmicas abalam de forma grave a saúde mental de alguém, podendo produzir ou agravar transtornos mentais." Tanto Thiago quanto Natália apresentaram sintomas de doenças mentais após suas experiências. Ambos consideram que estão melhores, graças a tratamento médico, medicação e ao passar do tempo, mas são categóricos ao afirmar que as experiências traumáticas deixaram marcas. "Já perdemos jovens com potenciais brilhantes por conta dessa violência", relembra Heloani. O pesquisador entende que, para evitar que isso continue ocorrendo, é necessário o engajamento de todas as esferas do mundo do Direito. "É dever também da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] averiguar os casos e, se comprovados, punir os escritórios que praticam assédio", diz Heloani. Em nota à BBC News Brasil, a OAB afirmou que a entidade "acompanha com preocupação casos de suposto assédio moral contra estagiários e advogados". "O combate aos diversos tipos de assédio é tema de uma ampla campanha nacional patrocinada pela OAB desde o primeiro semestre. Além disso, o assunto está na pauta da próxima reunião, no início de setembro, do Colégio de Presidentes, instância que reúne todos os presidentes de seccionais das OABs nos Estados além da direção nacional da entidade." *Os nomes dos entrevistados foram alterados para preservar suas identidades.
2022-09-17
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62688303
brasil
Asma mata 1 brasileiro a cada 4 horas: por que tantos não conseguem controlar crises?
No trânsito intenso de São Paulo, um homem de meia idade tentava atravessar a cidade quando a falta de ar começou a tomar conta de seu corpo. Era uma crise de asma. Sem os medicamentos no carro, ele morreu poucos minutos depois. O caso contado pelo médico Mauro Gomes, chefe de equipe de Pneumologia do Hospital Samaritano de São Paulo, durante um evento de discussão sobre a doença pode impressionar, mas histórias assim são relativamente comuns: um brasileiro morre por asma a cada 4 horas aproximadamente, de acordo com dados do Ministério da Saúde de 2018 a 2020. A média foi calculada pela BBC News Brasil a partir de informações levantadas no DataSus referentes aos três anos mais recentes disponíveis. O índice se manteve no mesmo patamar em cada ano do período analisado. A asma é uma doença de base genética que acomete as vias respiratórias, principalmente os brônquios (tubos que levam o ar para dentro dos pulmões), fazendo com que fiquem inflamados, inchados e com muco ou secreção. Por consequência, impede a entrega de oxigênio necessária durante crises. Os pacientes geralmente apresentam dor e chiado no peito, tosse e sensação de cansaço, e os gatilhos que aumentam as chances de crises variam de pessoa para pessoa. Fim do Matérias recomendadas Apesar de ser um quadro controlável quando há tratamento adequado, dados de pesquisa da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai) mostram que 9 em cada 10 pacientes com asma não têm a doença sob controle. Essa situação também terá consequências econômicas. "Isso vai se repercutir com uma hospitalização a cada quatro minutos no Brasil, gerando um grande gasto público", afirma Gomes. Ele explica que a dificuldade em controlar a asma começa logo no diagnóstico. "Muitas pessoas estão sendo tratadas como se tivessem outras doenças, como bronquites, o que impede o paciente de evitar as crises." Mesmo quando sabem que são asmáticos e têm acesso aos medicamentos, muitos pacientes acabam abandonando os remédios depois que a crise passa. Uma pesquisa, que contou com participação da Asbai, realizada em 2019, indicou que 73% dos pacientes não seguem todas as recomendações médicas e 47% admitem não usar os medicamentos com regularidade. "Por isso é tão importante a conscientização de que a asma é uma doença crônica, não só uma doença da infância ou da adolescência. O quadro requer medicação regular para que se reduza o risco futuro de crises, assim como é feito com hipertensão ou diabetes, por exemplo", diz o pneumologista. Antônio dos Santos nasceu em Cubatão (SP), cidade com grandes indústrias que ficou conhecida pela poluição e qualidade de ar ruim. Quando tinha apenas 2 anos, ele teve uma forte crise de asma influenciada por essas condições. Com tratamento medicamentoso esporádico e prática de futebol, as crises diminuíram durante a infância até o começo da vida adulta. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Quando eu tinha 21 anos, mudei para um apartamento onde só batia sol à tarde. Quando eu chegava do trabalho no fim do dia, o lugar estava muito gelado e, depois de alguns dias, já comecei a usar inalador. Foi o começo de um ciclo de internações, medicamento na veia e retorno para casa até chegar a próxima crise", lembra. Antônio conta ter lutado contra a asma até os 34 anos, começando e abandonando o tratamento quando achava que não surtia efeito. "Passei a me medicar por conta própria, e acabei sobrecarregando meus rins pelo excesso de medicamentos, o que me levou a quatro cirurgias diferentes." Aos 43 anos, Antônio estava internado quando o pneumologista que o atendeu, além de pedir exames, escutou todo o seu histórico clínico. "Ele me explicou que minha asma estava descontrolada há muito tempo, mas que havia um tratamento ideal para mim e que era possível viver sem crises. Confesso que na hora não acreditei muito, já tinha tentado muitos medicamentos diferentes", conta. Há quase dois anos com tratamento contínuo e acompanhamento regular do médico que ganhou sua confiança, Antônio conta ter aprendido a importância de não deixar para tomar o remédio só quando a doença se apresenta em quadros agudos. "Hoje, sei que a asma está em mim, mas está bem lá dentro, quietinha e vai continuar assim." Além da falta de ar, que é mais comum durante crises ou atividades físicas de alta intensidade, os pacientes geralmente apresentam dor e chiado no peito, tosse e sensação de cansaço. Os gatilhos que aumentam as chances de crises variam de pessoa para pessoa. "Entre os mais comuns, estão contato com poeira, com produtos químicos, fumaça de cigarro, cheiros fortes, ácaros, contato próximo com alguns animais (principalmente gatos e cavalos), temperatura fria e infecções respiratórias", esclarece Grasielle Santana, pneumologista do Hospital Santa Lúcia Norte, de Brasília, e membro da Sociedade Brasiliense de Doenças Torácicas (SBDT). Os dispositivos inalatórios, chamados popularmente de bombinhas, podem ser usados com diferentes tipos de medicamentos, com diferentes objetivos. Por isso, a automedicação deve ser evitada. "Alguns vão aliviar os sintomas, outros vão prevenir os sintomas ou podem ter medicamentos combinados. O fato é que cada um desses dispositivos tem uma função diferente e, por isso, é importante que as pessoas não se automediquem. A bombinha que serve para um amigo não vai, necessariamente, funcionar para você. A avaliação médica é que vai apontar o melhor tratamento para cada paciente", diz Mauro Gomes. O médico explica também que não é verdade que os corticoides usados via inalação são perigosos, nem que as bombinhas viciam ou fazem mal ao coração. "O estigma do risco cardíaco vem dos anos 1950, quando, nos primórdios, os medicamentos realmente poderiam trazer um efeito prejudicial. Mas, hoje, se sabe que as drogas foram atualizadas, trazendo o controle da doença sem risco cardíaco." Os corticoides inaláveis são oferecidos em doses muito pequenas e seguras, inclusive para crianças, idosos e gestantes. E, se as bombinhas são usadas de forma muito frequente, é um sinal de que o tratamento precisa de ajuste, não de que a substância esteja causando dependência. Como tratamento complementar, pessoas asmáticas devem praticar exercício físico para melhorar a capacidade pulmonar e evitar crises. Em algum momento da vida, os pacientes com asma que não fazem o tratamento adequado terão crises de falta de ar. "Os quadros podem ser tão intensos a ponto da pessoa se sentir próxima da morte", afirma Gomes. Quando definido o tratamento pelo médico, existe a possibilidade de cadastro no programa "Farmácia Popular", que fornece medicamentos como brometo de ipratrópio, dirpoprionato de beclometasona e sulfato de salbutamol — muito usados contra a asma — de forma gratuita pelo Sistema Único de Saúde. "Para isso, o médico preenche formulários específicos que dá direito ao paciente a acesso de forma gratuita à medicação. O pneumologista é quem indicará o tratamento mais adequado e também é quem deve acompanhar esse paciente continuamente", indica Santana, do Hospital Santa Lúcia Norte.Se há necessidade de outros tipos de medicamentos, considerados de alto custo (que representam mais de 70% de um salário mínimo), o paciente pode tentar obtê-lo por meio do plano de saúde ou por uma requisição judicial. Em ambos os casos, o médico, hospital ou clínica costumam indicar o caminho mais adequado para cada necessidade específica.
2022-09-17
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62810745
brasil
'Ela morreu após 10h na fila por benefício': assistência social tem menor orçamento em uma década
Lutando há quatro anos contra uma depressão que a impedia de trabalhar, e sofrendo ainda de hipertensão, obesidade, síndrome do pânico e ansiedade, Janaína Araújo, de 44 anos, tentou por oito dias ser atendida no Cras (Centro de Referência de Assistência Social) para ter acesso ao BPC (Benefício de Prestação Continuada). Sem conseguir agendar um atendimento por telefone, juntou-se a dezenas de pessoas na fila do Cras Paranoá, em Brasília, por volta das 17h30 de uma terça-feira (16/8). Mas ela nunca chegaria a cruzar os portões do centro de assistência social que se abrem às 8h da manhã. Por volta das 4h da madrugada de quarta-feira, Janaína começou a passar mal, com sinais de infarto. Ela chegou a ser levada ao hospital, mas não resistiu. "Ainda estou com aquela sensação de que isso tudo é um pesadelo, que amanhã vou acordar e ela vai estar aqui dormindo e vamos tomar café. Ainda não consegui assimilar tudo e saber que ela não está mais aqui comigo. É um vazio", diz Iomar Fernandes Torres, de 61 anos e companheira de Janaína por dez anos. Fim do Matérias recomendadas "Ela era uma parceira de vida, era eu para ela e ela para mim e tudo nós fazíamos juntas. Éramos companheiras, cúmplices, confidentes, amigas", afirma a trabalhadora autônoma. "Meu grito não é de cunho político porque, para mim, entra um e sai outro, e continua tudo do mesmo jeito. Mas eu espero, do fundo do meu coração, que não precisem mais outras Janaínas morrerem para se mudar o sistema de assistência social. Para acordarem e verem que aquilo ali é desumano, é humilhante", completa Iomar. A morte trágica de Janaína Araújo é um exemplo de como a fragilidade dos serviços de assistência social brasileiros tem afetado a vida de pessoas em situação de vulnerabilidade. Para especialistas e gestores municipais ouvidos pela BBC News Brasil, as filas nas portas dos Cras em todo o país são um resultado direto da perda de espaço dos serviços de assistência social no Orçamento federal, além de mudanças na forma de gestão dos programas sociais feitas de forma unilateral pelo governo. Segundo eles, a queda nos recursos revela a falta de prioridade da assistência social. Procurado para comentar a redução do Orçamento para a assistência social, o Ministério da Cidadania não respondeu aos questionamentos da BBC News Brasil. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os serviços de assistência social são a rede de equipamentos públicos que possibilita o acesso a benefícios como o Auxílio Brasil, BPC (salário mínimo pago a idosos e pessoas com deficiência de baixa renda) e encaminhamento a abrigos para crianças e mulheres vítimas de violência doméstica, por exemplo. Apesar do recente aumento de recursos para o Auxílio Brasil, essa rede de serviços contínuos, que exigem financiamento de caráter permanente, têm perdido espaço no Orçamento federal. O modelo de gestão do Suas (Sistema Único de Assistência Social) prevê o cofinanciamento do sistema de assistência social entre União, Distrito Federal, estados e municípios. Mas a parcela da União nesse cofinanciamento está em queda desde 2014 e em 2023 deve atingir o patamar mais baixo em mais de uma década. Segundo levantamento da PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná), o orçamento federal para cofinanciamento dos serviços de assistência — que inclui a manutenção dos Cras, Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) e abrigos, por exemplo — diminuiu de cerca de R$ 3 bilhões em 2014, ano de maior orçamento do período recente, para valores próximos a R$ 1 bi em 2021 e 2022, conforme a Lei Orçamentária Anual (LOA). "Este volume de recursos chama atenção porque configura o menor montante proposto pelo governo federal nos últimos dez anos. Com isso, sinaliza-se a ausência de prioridade dada a esta política, ainda mais no contexto de uma crise com impactos duradouros na economia e na sociedade e que demandará um longo processo de recuperação", escreveram os técnicos do Ipea, comentando o orçamento para a assistência social em 2021. Em 2023, o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) atualmente em discussão no Congresso destina montante ainda menor para esses serviços: R$ 48,3 milhões, valor mais baixo em mais de uma década. Esse valor inclui recursos destinados à Proteção Social Básica (que mantêm os Cras), Proteção Social Especializada (que mantêm todos os serviços especializados) e Estruturação da Rede de Serviços (que inclui gastos com encaminhamento a serviços prestados por entidades). Um primeiro motivo que explica por que a rede de serviços de assistência social está perdendo espaço no Orçamento federal, enquanto benefícios como Auxílio Brasil e BPC têm seus recursos mantidos ou até ampliados, é que os programas de transferência de renda são gastos obrigatórios, enquanto as despesas com os serviços socioassistenciais são gastos discricionários — despesas que o governo pode ou não executar, de acordo com a previsão de receitas. É o que explica Jucimeri Isolda Silveira, professora da Pós-Graduação em Direitos Humanos e Políticas Públicas da PUC-PR e responsável pelo estudo Proteção Social, Desproteção e Financiamento do Suas. "Desde a Emenda Constitucional 95 [que estabeleceu o teto de gastos, limitando o crescimento da despesa do governo à variação da inflação no ano anterior], os recursos para a assistência social vêm sendo reduzidos. Então é essa rede, que atua lá na ponta, que faz o cadastramento das famílias, que visa o acompanhamento integrado dessa população que acessa os benefícios, que está sendo comprometida", diz Silveira. Ela dá outro exemplo prático dessa perda de recursos: o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) não recebe recursos federais para ações de enfrentamento desde 2019. Com a redução dos repasses federais, também ficam prejudicados serviços prestados pelos municípios como atendimento à população em situação de rua, imigrantes e mulheres vítimas de violência. "Quem faz esse atendimento na ponta é a assistência social, é ela, por exemplo, que garante a proteção integral de crianças em situação de acolhimento institucional, que são mais de 30 mil hoje no Brasil", exemplifica a professora e pesquisadora da PUC-PR. Para Manoel Pires, coordenador do Observatório de Política Fiscal do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), o teto de gastos agravou a situação de perda de receitas para a assistência, mas o quadro de restrição orçamentária é anterior. "Há uma compressão da despesa discricionária desde 2014, 2015, que é quando o ajuste fiscal começa. O teto de gastos entra no meio dessa história. Ele começa em 2017 e institucionaliza a redução desse tipo de despesa", afirma Pires. Nos últimos anos, o governo tem buscado compensar a redução de Orçamento para a assistência social por meio da destinação de recursos via emendas parlamentares ou créditos extraordinários, como o recursos emergencial de combate à covid-19. Mas Elias de Sousa Oliveira, presidente do Congemas (Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social), explica que isso não resolve o problema, já que as estruturas de assistência têm caráter permanente, enquanto esses recursos são de natureza eventual. "Os serviços de Cras, de Creas, de acolhimento de adultos e crianças, casas-abrigo para mulheres vítimas de violência são serviços continuados. Como eu faço a programação de um serviço que é permanente com o recurso de uma emenda parlamentar que é esporádica?", questiona Oliveira. O representante do Congemas explica que, para manter o atendimento à população num momento de aumento da demanda pelos mais vulneráveis, os municípios passaram a compensar com o próprio caixa a falta de recursos federais. "Alguns municípios menores, com maior dificuldade, acabaram diminuindo atendimento e até fechando serviços. Outros municípios acabam cobrindo o que o governo federal não manda, mas isso implica em uma perda da capacidade de aumentar e ampliar o atendimento num momento, pós-pandemia, de aumento da demanda", diz Oliveira. O representante cita o exemplo de Foz do Iguaçu, cidade onde é secretário de Assistência Social. Até março de 2020, a cidade paranaense tinha 29 mil famílias no Cadastro Único (registro das famílias brasileiras de baixa renda que permite o acesso a benefícios como o Auxílio Brasil), sendo 7 mil delas em extrema pobreza. Agora, segundo Oliveira, são 47 mil famílias no Cadastro Único e 18 mil famílias na pobreza. "Isso aumentou a demanda pelos Cras, pelos Creas, por acolhimento, por atendimento da população em situação de rua e, além de não termos expansão das metas de atendimento e do cofinanciamento, ainda temos cortes nos recursos, num contexto de número de atendimentos muito maior", diz o gestor. Segundo ele, os municípios respondem hoje por 90% de tudo que é investido na assistência social, quadro que poderá ser complicado com a perda de arrecadação do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) sobre combustíveis, determinada pelo governo federal como uma forma de reduzir a inflação às vésperas das eleições de outubro. A Confederação Nacional dos Municípios (CNM) estima a perda de receitas para os municípios com a medida em R$ 22 bilhões, com efeitos também sobre os gastos com educação e saúde. Oliveira afirma, porém, que não é só a falta de recursos que explica as filas nas portas dos Cras, como a enfrentada por Janaína em Brasília, no dia em que a companheira de Iomar morreu após dez horas de espera e oito dias de tentativas frustradas de obter um benefício. Segundo o gestor, com a mudança do Bolsa Família para Auxílio Brasil, o processo de atualização do Cadastro Único mudou. Antes, os municípios tinham um prazo de 60 dias para fazer a averiguação de famílias, realizar a busca ativa e informar o governo federal sobre casos em que a família não pôde ser encontrada para atualizar o cadastro, situação que resultava no bloqueio do benefício até alguém da família comparecer ao Cras de referência. "Hoje, o governo bloqueia de todo mundo [com cadastro desatualizado] e muitas pessoas só ficam sabendo que estão bloqueadas na hora de ir ao banco sacar o Auxílio Brasil. Você imagina num mês, 3 mil famílias são bloqueadas em Foz de Iguaçu — como já aconteceu. Essas 3 mil famílias vão imediatamente para os Cras. Isso vai gerar fila", exemplifica Oliveira. A isso se soma a dificuldade de aumentar o quadro de funcionários de atendimento, devido à restrição de recursos, nesse contexto de aumento da demanda, impulsionada ainda pelo Auxílio Brasil ampliado para R$ 600 até dezembro e pelo aumento do auxílio-gás. "Anteriormente, quando o governo federal fazia mudanças, ele dialogava com os municípios. Tinha todo um planejamento. Hoje, muitas vezes, Estados e municípios ficam sabendo de mudanças através dos jornais", critica o gestor. Após a morte de Janaína no Cras Paranoá, em Brasília, o governo do Distrito Federal anunciou uma parceria com o Corpo de Bombeiros Militar do DF para ampliar os atendimentos sociais e desafogar a espera por atendimento nos Cras da capital do país. A Secretaria de Desenvolvimento Social do Distrito Federal (Sedes) não respondeu a pedido de posicionamento sobre o tema feito pela BBC News Brasil. Iomar espera que a morte de sua companheira sirva como um alerta para que o sistema de assistência social brasileiro mude. "A assistência social no nosso país, você me desculpe, mas é decadente, é vergonhosa. Não pelos profissionais da assistência, mas pelo sistema e seus governantes. É um incentivo à fila, ao descaso, à desumanidade", afirma Iomar. "É preciso uma mudança drástica. Eu quero que meu grito seja ouvido: não deixem mais Janaínas morrerem em busca de uma ajuda para ter um pouco de dignidade. É só o que eu espero: que a morte dela não tenha sido em vão. Eu realmente espero que haja mudanças."
2022-09-16
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62815251
brasil
Brasil tem êxodo de um milhão de alunos da rede privada
"De morador de aluguel em uma área nobre da minha cidade em 2016, me vejo hoje morando de favor na residência dos pais na periferia devido à insegurança financeira." A história de ascensão e queda no padrão de vida do professor Guilherme Moraes, de 33 anos, revela como a crise econômica abala educadores — mas também pais e alunos no Brasil. Professor de história bem-sucedido na rede privada, Moraes percebeu uma queda expressiva no número de alunos em sala de aula desde 2019. "Eu cheguei a dar aula para 14 turmas em 2019", conta o professor. "Depois caiu para 5." E menos alunos significam menos turmas para professores de escolas particulares, cujo salário no fim do mês depende do número de horas em sala de aula. Fim do Matérias recomendadas "Muita gente não conseguiu manter os filhos na rede privada e a carga horaria diminuiu. O nosso salário também diminuiu", ele continua. E dados oficiais confirmam a impressão de Moraes sobre o esvaziamento de colégios privados: segundo o Censo Escolar 2021, o número de estudantes matriculados em escolas particulares no Brasil caiu 10%, ou quase um milhão de estudantes, entre 2019 e 2021. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A surpreendente queda interrompeu uma sequência histórica de crescimento no número de alunos em colégios privados. No mesmo período, 2019 a 2021, a rede pública teve redução bem menor no número de alunos: 0,5%. "O empobrecimento das famílias, principalmente neste caso o da classe média, impacta diretamente nos diversos tipos de serviço, e no serviço de educação isso é bastante significativo", avalia Fausto Augusto Junior, diretor-técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Para o especialista, os números do censo escolar sugerem uma transferência de estudantes entre as redes particular e pública — resultado da crise econômica (aumento de mensalidades e do custo de vida em geral) e agravada pela pandemia. "A classe média está sendo bastante atingida por conta da inflação e da taxa de desemprego, o que tem a ver com essa saída de alunos da rede privada para a rede pública. Isso tem a ver com empobrecimento", diz. É o caso de Lidiane Rosa, do Rio Grande do Sul. "Eu tirei a minha filha da escola privada causa dos custos, estava muito caro e não tinha mais como bancar escola particular. Ela estava no primeiro ano do ensino fundamental e eu tinha que comprar muitos livros", ela diz à BBC News Brasil. A economia no caso de Rosa foi além do ensino. "Na escola pública, ela aprendeu muito mais. Na escola particular, eles não tinham nenhuma refeição. Na pública, eles almoçam e tomam café da tarde." "É constrangedor. Você projeta o futuro, tem esperança de uma condição de vida melhor, começa um processo de conquistas e, de repente, cai num retrocesso muito grande", diz o professor. Filho de operários, funcionário de uma fábrica local, ele conseguiu bolsa de estudos para se preparar para o vestibular e trabalhou para pagar a faculdade. Depois de se formar, Moraes, que conta que chegou a passar fome na infância, viu seu padrão de vida se transformar — inicialmente, para melhor. "Eu estava muito bem estabilizado nas escolas particulares e tinha uma carga horária muito boa", ele conta. "Morava no centro da cidade, dividia um apartamento de aluguel muito alto com um amigo. Sobrava muito: eu gastava com viagem, móveis para a residência, eletrônicos. Jamais cogitava na vida ter um iPhone e consegui comprar um", recorda. Em 2019, no entanto, os alunos começaram a migrar. No ano seguinte, com a pandemia, a situação piorou muito e o professor precisou reorganizar sua vida. "Quando senti que não seria mais possível pagar o aluguel, procurei outros imóveis, dessa vez na periferia, para continuar tendo independência e autonomia. Mas os valores não ficavam muito diferentes e continuava pesado", ele conta. "Quando ficou inviável, me vi na urgência de entrar em contato com a família. Foi quando minha mãe sugeriu que eu retornasse e esperasse até que as coisas melhorassem." "Nada contra voltar a morar com meus pais", continua Moraes, "mas é algo que abate muito psicologicamente." O êxodo de alunos da rede privada para a pública, razão principal da crise enfrentada pelo professor, é sintoma da redução na renda das famílias brasileiras desde 2019. Segundo a Fundação Getúlio Vargas, entre 2019 e 2021, o Brasil ganhou 9,6 milhões de novos pobres — ou pessoas com renda domiciliar per capita de até R$ 497. Isso significa que uma população equivalente a de Portugal formada só por brasileiros passou a ser classificados como pobres, segundo a instituição. O total de pessoas nessa situação no país é de 62,9 milhões — ou 29,6% dos brasileiros. Junto ao empobrecimento, vem a fome. O número de brasileiros que não teve dinheiro para alimentar a si ou a sua família em algum momento nos últimos 12 meses subiu de 30% em 2019 para 36% em 2021 — um novo recorde da série iniciada em 2006. Segundo Marcelo Neri, diretor do grupo de pesquisas FGV Social, "é a primeira vez que o Brasil ultrapassa a média mundial e o aumento foi quatro vezes maior do que a elevação ocorrida no mundo, entre 2019 e 2021". Para o diretor do Dieese, "inflação, fome e desemprego são fatores decisivos na eleição". "Nós estamos falando de mais de 33 milhões de pessoas que hoje passam fome no Brasil. E uma taxa de desemprego que, apesar de vir se reduzindo, ainda se mantém num patamar muito alto, próximo aos 10 milhões de desempregados", diz. "Esse talvez seja um dos principais temas, ou o tema mais relevante, até porque a gente precisa olhar com muita atenção quais são as propostas dos candidatos para de alguma forma sair desse buraco que nós caímos. Do ponto de vista econômico, é essencial para melhorar a vida média da população, para voltar a ter elevação de renda, ampliação do nível de consumo e redução da taxa de desemprego", continua Fausto Augusto Junior. Segundo a última pesquisa DataFolha, divulgada em 2 de setembro, 57% dos brasileiros dizem que emprego e renda estão entre os três principais critérios na escolha de um candidato a presidente — junto com saúde e educação. Em seu programa de governo, o presidente Jair Bolsonaro (PL) promete que o Auxílio Brasil, seu programa de transferência de renda, seja no valor de R$ 600 a partir de 2023. O valor original, de R$ 400, foi aumentado para R$ 600 até dezembro deste ano, coincidindo com o período eleitoral. A proposta de Orçamento para 2023 enviada ao Congresso Nacional pelo presidente, no entanto, prevê que o auxílio volte ao valor médio de R$ 405. Questionado, o presidente disse que o valor arrecadado com privatizações poderá bancar a promessa de seu programa de governo. Já o candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT), primeiro colocado na maioria das pesquisas de intenção de voto, promete em seu programa de governo "retomar centralidade e urgência no enfrentamento da fome e da pobreza, assim como a garantia dos direitos à segurança alimentar e nutricional e à assistência social". O petista diz que vai resgatar o Bolsa Família, uma das principais marcas de sua gestão, em versão "renovada e ampliada, viabilizando a transição por etapas, rumo a um sistema universal e uma renda básica de cidadania". O ex-presidente também diz querer manter o valor de R$ 600 para os beneficiários do programa e anunciou a criação de uma parcela extra de R$ 150 por criança até 6 anos no Bolsa Família. Ciro Gomes (PDT), terceiro colocado nas pesquisas, promete um programa de renda mínima de R$ 1 mil reais para 60 milhões de pessoas. Já Simone Tebet (PMDB) também anunciou planos de um programa permanente de renda mínima e disse que erradicar a fome será "prioridade máxima" em seu governo. "Para quem já passou fome na infância, acho impossível que hoje, formado, eu volte a estaca zero", diz o professor Moraes à reportagem. Isso significa otimismo? "Não, não acho que vou voltar à situação em que estava há cinco, dez anos. De qualquer forma, avançar vai ser muito difícil, mesmo que o governo mude", ele diz. "Muita gente bota uma esperança muito grande em cima do Lula, dizendo que ele vai salvar o país e fazer o Brasil voltar a sorrir de novo... Eu não acho que ele vai fazer um governo economicamente muito diferente do Bolsonaro, infelizmente." Esta reportagem é resultado de um relato enviado por Guilherme à BBC News Brasil. Você também pode ter sua história pessoal transformada em reportagem nessas eleições — clique no link abaixo.
2022-09-16
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62795996
brasil
Estudo inédito de Oxford e UFPE aponta que não há evidência de fraude nas eleições de 2018
Um estudo inédito realizado por pesquisadores da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) durante pós-doutorado na Universidade de Oxford, na Inglaterra, não encontrou qualquer evidência de irregularidades na contagem de votos das eleições brasileiras de 2018. Alguns dos métodos usados pelos pesquisadores foram utilizados em eleições em outras partes do mundo — e já mostraram sinais de possíveis fraudes em países como Rússia e Uganda. O novo estudo corrobora análises feitas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e por outros pesquisadores independentes, que chegaram ao mesmo resultado, reiterando a confiabilidade do sistema eleitoral brasileiro. No levantamento, os pesquisadores da UFPE utilizam cinco testes estatísticos diferentes, baseados em três metodologias distintas, para analisar os resultados da última eleição presidencial brasileira, a partir dos dados oficiais fornecidos pelo TSE. Fim do Matérias recomendadas O ano de 2018 foi escolhido para análise por se tratar de um evento singular na história eleitoral, explicam Dalson Figueiredo, Lucas Silva e Ernani Carvalho, autores do estudo. "Foi a primeira vez em que um candidato vencedor alegou suspeição do processo que regulou a sua própria vitória. As dúvidas quanto à integridade das apurações costumam ser feitas, exclusivamente, pelos candidatos derrotados", destacam os pesquisadores, citando como exemplo desse padrão a contestação da vitória de Dilma Rousseff (PT) por Aécio Neves (PSDB) em 2014 e da vitória de Joe Biden por Donald Trump nas eleições americanas de 2020. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O ineditismo do estudo está na aplicação simultânea dos cinco testes matemáticos com diferentes metodologias, explica Figueiredo, em entrevista à BBC News Brasil. "Quando dados são manipulados de forma intencional, isso pode ser detectado por métodos estatísticos, porque deixa rastros", diz o coordenador do Programa de Pós-graduação em Ciência Política da UFPE. "Normalmente, na literatura de perícia eleitoral, o que os pesquisadores fazem é aplicar um ou outro teste. O que nós fazemos é pegar todas as metodologias estatísticas conhecidas e juntar numa mesma aplicação", acrescenta. "Não é impossível alguém fraudar [um pleito] antecipando algum desses testes. Mas fazer isso com diferentes testes, que têm diferentes pressupostos, é praticamente impossível", afirma Figueiredo. "Exigiria um conhecimento matemático fora do normal, uma capacidade computacional muito avançada e que isso fosse feito de forma sistemática, envolvendo urnas de todo o Brasil, sem deixar nenhum rastro. Não vou dizer que é impossível, mas exigiria uma conspiração de nível hollywoodiano, com muita gente envolvida." Além de publicarem seus resultados no periódico científico internacional, os pesquisadores também disponibilizam publicamente todos os dados e scripts computacionais utilizados no estudo. Isso permite que qualquer outro pesquisador ou pessoa com conhecimentos de computação possa avaliar a robustez dos resultados e reproduzir os testes. Eles também planejam aplicar a mesma metodologia na análise dos resultados eleitorais de 2022. "Já montamos os códigos para, na noite da apuração, rodar tudo de novo para 2022. Se os resultados forem similares aos de 2018, teremos uma evidência robusta de que a contagem foi íntegra e que não houve nenhuma distorção significativa", diz o cientista político. Os cinco testes utilizados pelos pesquisadores da UFPE durante sua estadia no Centro Latino-Americano (LAC, na sigla em inglês) da Universidade de Oxford são os seguintes: Apesar da linguagem estatística, é possível explicar cada um desses termos de forma simplificada. A Lei de Benford, que leva o nome do físico Frank Benford e foi descoberta pelo astrônomo Simon Newcomb em 1881, estabelece que, em alguns conjuntos de números, como tamanhos de rio ou da população de cidades, o dígito inicial mais comum é o 1 (com 30,1% de frequência), seguido do 2 (17,6%). A frequência dos demais algarismos como dígito inicial vai caindo sucessivamente do 3 até o 9, quando é de apenas 4,6%. A Lei de Benford, no entanto, tende a funcionar quando se está analisando um conjunto abrangente de números que não tenham uniformidade. No caso das seções eleitorais brasileiras, o Código Eleitoral estabelece um limite mínimo de 50 e máximo de 400 eleitores por seção. Por conta disso, como não há uma grande variação entre os números analisados, é mais indicada a análise do segundo dígito, e não do primeiro, explica Figueiredo, da UFPE. Para o segundo dígito, a frequência esperada segundo a Lei de Benford é muito próxima de 10% para cada algarismo — não é difícil de entender: o sistema de numeração decimal tem dez algarismos (0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9), então cada um deles tem cerca de 10% de chance de aparecer como segundo dígito num conjunto de dados que não tenha sido manipulado. Para ser mais preciso, a expectativa de frequência do segundo dígito vai diminuindo gradualmente do zero ao 9, de 11,97% para 8,50% Veja a frequência esperada para o segundo dígito segundo a Lei de Benford: Agora veja a relação entre a expectativa segundo a Lei de Benford e os votos por candidato no primeiro e segundo turnos de 2018, considerando dados por município fornecidos pelo TSE: A conclusão dos pesquisadores é: não há evidência de anomalias, o que é um sinal de ausência de fraude sistemática na contagem dos votos. A lógica do teste de média do último dígito fica fácil se você entendeu que, no sistema de numeração decimal, cada um dos dez algarismos tem aproximadamente 10% de chance de aparecer como dígito num conjunto de dados que não tenha sido manipulado. Partindo dessa premissa, de que a distribuição dos algarismos de 0 a 9 é uniforme, se você somar os últimos dígitos de um conjunto de números, a média esperada deve ser próxima de 4,5 (ou seja: 0+1+2+3+4+5+6+7+8+9 = 45, dividido por 10 = 4,5). Agora veja a média encontrada pelos pesquisadores, analisando o último dígito do número de votos por candidato no primeiro turno de 2018, considerando dados municipais. A terceira coluna mostra o intervalo de confiança e a última, o número de municípios com informação disponível: E agora, a média do último dígito para os votos do segundo turno: A conclusão dos pesquisadores é que os valores obtidos nas eleições presidenciais de 2018 estão próximos do parâmetro esperado, com todos os candidatos com média do último dígito próxima a 4,5. A evidência, portanto, não mostra nenhuma anormalidade. Esse teste segue a mesma lógica do anterior. Partindo do pressuposto de que, numa eleição não manipulada, a incidência de cada um dos dez algarismos (0 a 9) como último dígito tende a estar próxima de 10%, a frequência esperada para que os números 0 e 5 apareçam como último dígito é de 20% (ou 0,2, se quisermos representar esse 20% de forma decimal). Veja o que os pesquisadores encontraram, analisando a frequência com que 0 e 5 aparecem como último dígito no número de votos por candidatos no primeiro e segundo turnos de 2018: Mais uma vez a conclusão dos pesquisadores é de que não há anormalidades nos dados. Depois de três testes baseados em dígitos, chegamos a um teste diferente, com uma metodologia que foi desenvolvida para identificar fraudes eleitorais na Rússia. A fraude que ela busca identificar é o desvio de votos de pessoas que não compareceram ou votaram nos candidatos perdedores, para o candidato mais votado. "Se isso é feito de forma repetida, gera um padrão de associação — uma correlação estatística — entre a taxa de comparecimento e a votação do candidato vencedor", explica Figueiredo. Para analisar essa associação, os estudiosos fazem um tipo de gráfico chamado histograma, em que cada ponto é uma seção ou distrito eleitoral. O eixo vertical (↑) é o percentual de votos no candidato vencedor e o eixo horizontal (→), a taxa de comparecimento para votação. Quando há uma manipulação sistemática de votos, transformando abstenções e votos nos candidatos derrotados em votos para o candidato vencedor, surge uma "mancha" no canto superior direito dos gráficos: são seções eleitorais com comparecimento próximo a 100% e votação no candidato vitorioso também próximo a 100%, o que é indicativo de possível fraude. Agora veja o que os pesquisadores da UFPE encontraram analisando os dados das eleições de 2018: Conclusão: nenhuma mancha anormal no canto superior direito do gráfico que possa sugerir manipulação dos votos. O quinto e último teste realizado pelos pesquisadores da UFPE durante o pós-doutorado de dois deles em Oxford, foi o que deu mais trabalho, por exigir uma elevadíssima capacidade computacional para ser realizado, conta Figueiredo. Os pesquisadores só conseguiram rodar o modelo porque um professor da UFPE, Rafael Mesquita, conseguiu um financiamento para fazer computação na nuvem — sem depender da memória local do computador, os dados são rodados no ambiente virtual. "Levou um dia e meio para conseguir rodar o modelo para cada candidato. E fizemos isso para Bolsonaro, Haddad e Ciro no primeiro turno, e para Bolsonaro e Haddad no segundo turno", lembra o professor da UFPE. Nesse processo de reamostragem, o sistema pega o percentual de votos válidos por seção eleitoral e seleciona amostras, realizando testes repetitivos em busca de percentuais arredondados. "Dificilmente um percentual de votos válidos vai ser 45%, por exemplo. Ele vai ser 45,13%, 44,29%. Então esse método busca quantas seções têm percentuais sem a fração, em comparação a quanto seria esperado", diz o pesquisador. No Brasil, os percentuais encontrados são menores do que 1%, abaixo até do percentual de seções suspeitas em eleições no Canadá em 2011, onde não houve qualquer indício de fraude. "Mesmo trocando o método estatístico, da estatística frequentista para a bayesiana, e utilizando uma computação muito mais intensiva, também não encontramos nada remotamente parecido com indício de fraude ou de irregularidade", conclui Figueiredo. "Estamos muito mais próximos do ideal canadense do que da Rússia. O pessoal diz que 'o Brasil vai virar a Venezuela', mas estamos mais perto de países com democracias consolidadas e desenvolvidas", acrescenta. O pesquisador explica qual é a conclusão tirada após a realização dos cinco testes. "A conclusão que tiramos é que, independe do tipo de teste — usamos testes de dígito, teste de correlação e teste de padrões de distribuição de votos válidos —, as três vertentes apontam para uma mesma conclusão: não há sinais de irregularidade na apuração dos votos", afirma. "Isso prova que não houve irregularidade? Não prova, mas o ônus da prova cabe a quem acusa. Se você diz que o sistema está adulterado, é você quem tem que apresentar onde está a corrupção, o adultério, o erro do sistema."
2022-09-16
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62909452
brasil
Mais de uma em cada dez crianças e adolescentes não frequenta escola no Brasil, revela estudo
Nadi Pereira Mendes é coordenadora pedagógica da Escola Cidadã Integral Mestre Júlio Sarmento em Sousa, no interior da Paraíba, desde 2017. Boa parte do seu trabalho nos últimos anos foi dedicado ao combate à evasão escolar. Ela afirma se sentir muito orgulhosa todas as vezes que reencontra um ex-aluno que se formou no Ensino Médio na instituição após receber apoio e ser incentivado a não desistir da escola. "Os alunos que encontram dificuldades para permanecer na escola precisam de ajuda. E essa ajuda pode vir por meio de uma palavra de incentivo e da elevação da auto-estima, mas às vezes o que faz a diferença são as condições materiais e sociais mesmo", afirmou a coordenadora à BBC News Brasil. A escola de Nadi é considerada modelo no combate ao abandono da educação básica e às faltas excessivas de alunos e alunas. Há menos de sete anos, a escola terminava alguns anos letivos com até 20% de evasão, segundo a coordenadora. Atualmente, a taxa está em menos de 2% e há fila de espera para matrículas. Fim do Matérias recomendadas Para reverter a situação, a coordenadora e os demais funcionários da escola de Ensino Médio seguem, desde 2017, um modelo que combina escuta atenta e individual aos estudantes, diálogo com as famílias e busca por parcerias com outras redes públicas, como de saúde e serviço social, para ajudar a acabar com os obstáculos que mantinham os alunos longe do colégio. "Fazemos um controle próximo das presenças e quando notamos que um aluno está muito ausente buscamos a família por telefone. Se não conseguimos contato assim realizamos a busca ativa nas casas dos estudantes", diz Nadi. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Quando as famílias e os próprios alunos passaram a acreditar mais no seu potencial e perceberam que podiam contar com a escola para ajudar a resolver alguns de seus problemas em casa, houve uma transformação." Durante a pandemia de covid-19, a escola forneceu tablets para os alunos que não tinham acesso a computadores ou celulares assistirem às aulas online. "Garantimos que aqueles que não tinham acesso à internet recebessem todas as atividades impressas", diz. "E não podemos ver os alunos como apenas números. Mesmo depois que ele retorna, temos que garantir uma educação de qualidade e dar atenção para garantir que ele fique." Mas o retrato da educação pública no Brasil como um todo é de crise. Um estudo inédito, realizado pelo Ipec para o Unicef, revela que mais de uma em cada dez meninas e meninos de 11 a 19 anos (11%) não estão frequentando a escola no país. A porcentagem é equivalente a cerca de 2 milhões de crianças e adolescentes da rede pública de ensino nesta faixa etária. Essa foi a primeira vez que Unicef e Ipec se juntaram para fazer a pesquisa e, portanto, não há números de outros anos para comparação. Dados da Pnad Educação de 2019, porém, indicam que naquele ano quase 690 mil crianças e adolescentes entre 11 e 17 anos estavam fora da escola. "O país está diante de uma crise urgente na educação. Há, pelo menos, 2 milhões de meninas e meninos fora da escola, somente na faixa etária de 11 e 19 anos. Se incluirmos as crianças de 4 a 10 anos, o número certamente é ainda maior. E a eles se somam outros milhões que estão na escola, sem aprender, em risco de evadir. É urgente investir na inclusão escolar e na recuperação da aprendizagem", afirma Mônica Dias Pinto, chefe de Educação do Unicef no Brasil. Realizada em agosto deste ano, ouvindo crianças e adolescentes de todas as regiões do país, a pesquisa divulgada pelo Unicef nesta quinta-feira (15/9) mostra que a exclusão escolar afeta principalmente os mais vulneráveis. Na classe AB, 4% dos entrevistados não estão frequentando a escola e, na classe DE, o percentual chega a 17% - ou seja, quatro vezes maior. Entre quem não está frequentando a escola, metade (48%) afirma que deixou de estudar "porque tinha de trabalhar fora". Dificuldades de aprendizagem aparecem em segundo lugar, com 30% afirmando que saiu "por não conseguir acompanhar as explicações ou atividades". Em seguida, 29% dizem que desistiram pois "a escola não tinha retomado atividades presenciais" e 28% afirmam que "tinham que cuidar de familiares". Aparecem na lista, também, temas como falta de transporte (18%), gravidez (14%), desafios por ter alguma deficiência (9%), racismo (6%), entre outros. Mesmo entre os estudantes que estão na escola atualmente, a evasão é um risco real. Segundo a pesquisa, nos últimos três meses, 21% de quem está na escola pensou em desistir dela. Entre os principais motivos está o fato de não conseguir acompanhar as explicações ou atividades passadas pelos professores — item citado por 50% dos que pensaram em desistir. Mônica Dias Pinto chama atenção ainda para a desigualdade que está refletida em alguns dos dados coletados pela pesquisa. "Observamos que normalmente as taxas de abandono, evasão e repetência têm maior recorrência em determinadas populações, entre elas de quilombolas e indígenas, em áreas rurais ou entre pessoas com deficiência", diz. Dias Pinto cita ainda a necessidade de abordar as desigualdades raciais e regionais quando são elaboradas soluções para o problema da evasão escolar. Entre as crianças e adolescentes que estão na escola, 46% disseram ter se sentido despreparadas para acompanhar as atividades escolares no retorno para o presencial após a pandemia de covid-19, contra 44% que disseram discordar da afirmação. Mas quando comparadas as respostas de alunos negros e brancos, 39% das crianças e adolescentes brancas disseram sentir despreparo, enquanto 50% das negras concordaram com a afirmação. A pesquisa mostra também que ainda há escolas fechadas, apenas ofertando aulas remotas, no país. Enquanto 92% dos estudantes dizem que sua escola só tem aulas presenciais, ainda há 5% que afirmam ter aulas presenciais e remotas, e 3% que têm apenas aulas remotas. A região Norte é a que apresenta o cenário mais desafiador, com apenas 82% das escolas totalmente presenciais e 11% apenas com aulas remotas. Mas mesmo depois do longo período de fechamento por conta da pandemia, estar na escola é um fator de esperança, segundo a pesquisa. Entre quem está frequentando a escola, 84% dizem estar interessados nos estudos, 71% se sentem animados e 70% estão otimistas com o futuro. Na escola Mestre Júlio Sarmento, Nadi identificou que os dois principais obstáculos que afastam os estudantes da escola são os problemas de saúde e as dificuldades socioeconômicas, que obrigam os adolescentes a trabalhar. Uma estudante auxiliada pela coordenadora, por exemplo, faltava pelo menos quatro dias todos os meses. Após um estudo do caso, a escola percebeu que as faltas coincidiam com o período em que ela estava menstruada. "Ela sentia dores, tinha um fluxo muito intenso e tinha vergonha e medo de se sujar", conta Nadi. "Conversei com a mãe sobre a situação e encaminhamos a família para um ginecologista. Quando ela começou a se sentir confortável para discutir o assunto e passou a ter acompanhamento médico, voltou à escola e se formou." Já para os alunos que enfrentavam dificuldades socioeconômicas em casa e sentiam a necessidade de contribuir financeiramente com a família, a escola lançou um projeto de empreendedorismo que auxilia os estudantes com a renda ao mesmo tempo em que ensina conceitos importantes como finanças e organização. "O projeto auxilia especialmente os alunos maiores de idade, que são os que mais desistem da escola por precisarem trabalhar", diz a coordenadora. "Uma de nossas alunas, por exemplo, voltou para a escola e começou a vender bombons saudáveis", relata. "Ela se formou e recentemente a encontrei por acaso na rua. Ela me deu um abraço grande e me agradeceu. Fiquei orgulhosa." Histórias de sucesso como a da Escola Cidadã Integral Mestre Júlio Sarmento em Sousa se repetem em outros estados e cidades pelo país, em um exemplo de que os desafios não são impossíveis de serem superados. Na Comunidade do Coração, nos arredores da capital do Amapá, Macapá, a Escola Municipal Goiás atende tanto estudantes da zona rural quanto urbana. A instituição também conseguiu reverter uma situação preocupante de evasão escolar com um projeto focado na busca ativa dos alunos. "Se a criança falta três dias seguidos e nenhum responsável aparece na escola para justificar as faltas, o professor entra em contato imediato com a família para questionar os motivos", explica Agnaldo da Silva Silveira, ex-coordenador pedagógico da escola que atualmente trabalha na Secretaria de Educação do Amapá. "O primeiro contato é por telefone. Quando não temos êxito mandamos uma convocação por escrito. E o último recurso é uma visita à casa da família. Essas visitas se tornaram super importantes para trazer os alunos de volta." A ação é parte do projeto "Nenhum a Menos", iniciativa criada pela escola em 2015 que conseguiu reduzir de 11% para menos de 5% os casos de abandono escolar. "Em casos mais graves explicamos aos pais qual a sua responsabilidade com a educação dos filhos e deixamos claro que, se a criança continuar a faltar, precisaremos acionar o Conselho Tutelar", diz Agnaldo. "Mas felizmente tivemos que fazer isso poucas vezes, quase sempre resolvemos na conversa." O coordenador explica que muitos dos alunos atendidos pela escola são filhos de agricultores, pescadores e trabalhadores informais da região rural de Macapá que enfrentam dificuldades financeiras e de locomoção. "Especialmente no período de chuvas, que vai de dezembro a maio, muitas crianças faltam porque fica praticamente impossível sair de casa por conta de alagamentos e muita lama", diz. "Aqueles que vêm chegam sujas e molhados, o que dificulta o aprendizado." Quase metade das meninas e meninos da Escola Goiás usa o transporte coletivo escolar, mas em algumas comunidades mais afastadas as peruas ainda não estão disponíveis. "Não são apenas problemas de saúde ou renda que afastam os alunos e temos que pensar em tudo isso para garantir o direito das crianças de estudarem", afirma Agnaldo. "Ainda temos muito a fazer e nosso objetivo é chegar à evasão zero. Mas estamos satisfeitos com o nosso progresso."
2022-09-15
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62922370
brasil
Quase sete em cada dez brasileiros têm medo de ser agredidos por causa de política, diz pesquisa
O acirramento dos ânimos no período de campanha eleitoral tem gerado temor entre os brasileiros: 67,5% afirmam ter medo de serem agredidos fisicamente por causa de suas escolhas políticas ou partidárias. Os dados são de uma pesquisa feita pelo instituto Datafolha a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (RAPS) e divulgada nesta quinta-feira (15/09). A pesquisa também mostra que 3,2% dos entrevistados disseram ter sido vítimas de ameaças por motivos políticos em julho. O estudo, feito por amostragem, ouviu 2,1 mil pessoas entre os dias 3 e 13 de agosto. "Percebemos que o medo da violência política está bastante espalhado entre as diversas camadas da população. Há uma preocupação real do quanto esse acirramento pode afetar a integridade física das pessoas" afirma David Marques, coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Segundo ele, o objetivo da pesquisa, chamada "Violência e Democracia: panorama brasileiro pré-eleições de 2022", é entender o peso do medo da violência na percepção e na atitude dos brasileiros quanto ao autoritarismo e a democracia. Fim do Matérias recomendadas O Fórum Brasileiro de Segurança Pública já havia feito uma pesquisa sobre violência e autoritarismo, sem avaliar o apoio à democracia, em 2017. A ideia era medir a propensão da população ao apoio de posições autoritárias em um cenário que se encaminharia para as eleições de 2018. Na versão atual, a pesquisa foi feita em um período mais próximo do pleito. "O nível do medo da violência como um todo cresceu", explica Marques, "apesar da redução de alguns indicadores de segurança, como o de mortes violentas, muito provavelmente por causa do aumento de outras modalidades de crimes - como os patrimoniais, que afetam muito a percepção e o medo das pessoas quanto à violência." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O instituto elabora um índice de medo da violência com base em uma série de preocupações - medo de morrer assassinado, de ser sequestrado, ser vítima de estupro, ter o celular roubado etc. O índice varia entre 0 e 1, onde 1 é o maior nível de medo. Esse índice era de 0,68 em 2017 e subiu para 0,76 em 2022. A pesquisa deste ano avalia algumas modalidades de violência que não foram captadas em 2017, como o medo de violência digital (como de sofrer um golpe ou ter dados divulgados na internet) e o medo da violência política. O medo de ser vítima de grupos armados (traficantes, milícias e pistoleiros) atinge 83,9% dos entrevistados. Chama a atenção o aumento no medo de sofrer violência por parte da Polícia Militar: de 59,5% dos entrevistados, em 2017, para 63,8% em 2022. Marques chama a atenção para o fato de que a propensão para apoiar medidas autoritárias (como desrespeito à lei para punir criminosos) é maior entre as pessoas que têm mais medo da violência No entanto, de maneira geral, o índice de propensão ao apoio a posições autoritárias caiu: foi de 8,1 em 2017 para 7,29 em 2022 (em uma escala de 0 a 10), perdendo força principalmente entre os jovens de 16 a 24 anos. Hoje, a maioria dos entrevistados (66,4%) afirma que a segurança não vai melhorar com o armamento da população. A pesquisa mediu também o quanto a população apoia a democracia. Os resultados mostram que 90% dos brasileiros concordam que o candidato que vencer as eleições de 2022 nas urnas e for reconhecido pela Justiça Eleitoral deve tomar posse em 1º de janeiro. E 89,3% concordam que é essencial para a democracia que o povo escolha seus líderes em eleições livres e transparentes. Uma das perguntas, por exemplo, era se os entrevistados consideram "importante que os tribunais sejam capazes de impedir o governo de agir para além da sua autoridade", o que teve concordância de 62% dos entrevistados. O apoio à agenda de direitos sociais e direitos humanos teve queda em 2022. "Democracia não é só eleição, embora ela seja essencial", explica Mônica Sodré, cientista política e diretora da RAPS. "Não queríamos olhar apenas a partir do viés eleitoral, mas também avaliar o apoio a uma série de elementos que fazem parte de um regime democrático." "Apesar da queda geral do índice de apoio aos direitos, tivemos melhoras em alguns dos indicadores - a percepção da sociedade sobre o racismo aumentou de 72% para 82%", diz Sodré. "É positivo que haja um aumento na percepção sobre o problema, que é parte central das desigualdades O apoio a programas de transferência de renda (como o Bolsa Família ou o Auxílio Brasil) também aumentou de 84% em 2017 para 95,7% em 2022. Sodré destaca também que as mulheres tendem a apoiar mais a agenda de direitos do que os homens e que os negros apoiam mais a agenda de direitos do que os brancos. "É algo que faz bastante sentido considerando o histórico dessas minorias quanto à violência e desigualdade", afirma A pesquisa também mostra um importante paradoxo: o apoio à democracia é menor nos mesmos grupos em que se encontra um maior apoio à agenda de direitos humanos e sociais: a população de menor renda e menor escolaridade. Ou seja, ao mesmo tempo em que anseiam por ter seus direitos garantidos, esses grupos também são os mais propensos a relativizar a democracia. Segundo Sodré, isso se explica pelo fato do país ser marcado pela desigualdade e de os benefícios da democracia não estarem sendo sentidos por toda a população. A democracia não se traduziu em ganho de qualidade de vida e bem estar para todo mundo no Brasil, diz ela. "E, embora os grupos mais vulneráveis valorizem um conjunto de atributos que vem com a democracia, eles também estão mais propensos a relativizá-la e apoiar medidas autoritárias na espera de resolução de seus problemas."
2022-09-15
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62909548
brasil
Eleições 2022: quem são os candidatos a presidente e os obstáculos que devem enfrentar
Esta reportagem foi atualizada no dia 14 de setembro de 2022. A campanha para a eleição presidencial de 2022 segue em clima de grande polarização, com Jair Bolsonaro (PL) disputando a reeleição e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tentando retornar à Presidência da República para um terceiro mandato. Os dois lideram as intenções de voto. Mais atrás nas pesquisas, Ciro Gomes (PDT) e a senadora Simone Tebet (MDB) se apresentam como uma terceira via a Lula e Bolsonaro, mas ainda não conseguiram chegar aos dois dígitos nos levantamentos mais recentes. José Maria Eymael (DC), Leonardo Péricles (UP), Luiz Felipe d'Avila (Novo), Padre Kelmon (PTB), Sofia Manzano (PCB), Soraya Thronicke (União Brasil) e Vera Lúcia (PSTU) tiveram 1% ou menos. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aprovou até o momento todas as candidaturas, com exceção do pedido de Kelmon, cujo julgamento está pendente. Ele era vice do ex-deputado federal Roberto Jefferson, que teve seu registro negado por causa da Lei da Ficha Limpa, e assumiu a cabeça da chapa. Fim do Matérias recomendadas A candidatura de Pablo Marçal (Pros) também foi rejeitada pelo TSE em 6 de setembro, após seu partido retirar o pedido e anunciar apoio a Lula. Marçal declarou depois que apoia Bolsonaro. Outros cinco candidatos já se retiraram da corrida presidencial: A BBC News Brasil lista aqui os 11 que seguem na disputa pela Presidência. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O ex-presidente Lula aparece em primeiro lugar nas pesquisas de intenção de voto para presidente da República, com 46% das intenções de voto na pesquisa Ipec - e 51% dos votos válidos. Sua candidatura pelo PT à Presidência, que pareceu distante há alguns anos, ganhou força e se materializou desde que Lula teve sua condenação por corrupção anulada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), A pesquisa Ipec indica uma vantagem de 15 pontos de Lula sobre Bolsonaro, que é o segundo colocado. Além disso, a rejeição do ex-presidente é menor do que a de Bolsonaro: 35% x 50%. Uma das estratégias do PT para diminuir a resistência a Lula foi a indicação do ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin (PSB) como vice da chapa. O principal obstáculo do ex-presidente é o antipetismo, que ainda deve ter peso na próxima disputa presidencial, com eleitores buscando alternativas em uma terceira via ou recorrendo a Bolsonaro para evitar uma vitória de Lula. O presidente Jair Bolsonaro vai disputar a reeleição pelo Partido Liberal (PL), legenda de Valdemar Costa Neto, um dos condenados no escândalo do Mensalão. Atualmente ele tenta alavancar seus números nas pesquisas eleitorais. Na pesquisa Ipec divulgada no dia de 12 de setembro, encomendada pela TV Globo, Bolsonaro ficou com 31% das intenções de voto. No começo do ano, Bolsonaro enfrentava efeitos de uma avaliação negativa sobre sua condução do governo como a reação do governo à pandemia do coronavírus, os escândalos envolvendo seus filhos, especialmente em relação às chamadas "rachadinhas" e acusações relacionadas à compra de vacinas contra a covid-19. A crise econômica, com alta contínua da inflação, e o aumento da pobreza também podem significar desafios para a reeleição de Bolsonaro. Por outro lado, o aumento do valor do Auxílio Brasil (antigo Bolsa Família) para R$ 600 pode ajudar a recuperar parte dos votos. Bolsonaro deu novo nome ao programa, em uma tentativa de imprimir marca própria na assistência social. O presidente também conta com uma base de eleitores fiéis dispostos a ir às ruas para defender suas posições, como ocorreu nos protestos de 7 de setembro do ano passado. Esta é a quarta vez que Ciro Gomes concorre à Presidência. Em 2018, ficou em terceiro lugar no primeiro turno, com 12,5% dos votos. Ele também concorreu em 2002 e 1998. Candidato associado à esquerda ou centro-esquerda, Ciro Gomes tenta novamente despontar como alternativa a Lula e Bolsonaro. Na pesquisa Ipec de 12 de setembro, Ciro marcou 7% nas intenções de voto. A mesma pesquisa indicou que 52% de seus eleitores admitem que podem mudar o voto, em comparação com 14% e 16% para Lula e Bolsonaro, respectivamente. A seu favor, ele conta com experiência política, em uma eleição que não dará o mesmo peso a outsiders, ou figuras antipolíticas, como a de 2018. Ciro foi prefeito de Fortaleza, deputado estadual, deputado federal, governador do Ceará e ministro dos governos de Itamar Franco e Lula. Para fazer frente à candidatura de Lula, Ciro tem adotado uma estratégia de ataque, criticando fortemente o ex-presidente. Se por um lado essa estratégia visa firmar Ciro Gomes como alternativa a Lula, por outro, pode eventualmente afastar eleitores que nutrem alguma simpatia pelo PT ou que defendem uma ampla aliança contra Bolsonaro. A candidatura de Simone Tebet foi lançada em dezembro de 2021 pela direção nacional do MDB e oficializada em julho deste ano. É a primeira vez que a senadora disputa o cargo. Ela foi a primeira mulher a disputar o comando do Senado, em 2021. Também foi a primeira mulher a comandar a disputada Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), a primeira vice-governadora de Mato Grosso do Sul e primeira prefeita de Três Lagoas (MS). A possibilidade de candidatura à Presidência surgiu do destaque que Tebet teve na CPI da Covid no Senado. Embora não fosse integrante fixa da comissão, ela participou dos principais depoimentos com uma postura contundente e crítica à gestão de Bolsonaro na pandemia. O principal obstáculo que a senadora enfrenta é se tornar nacionalmente conhecida. Na última pesquisa Ipec, Tebet atingiu 4% das intenções de voto. O cientista político Luiz Felipe D'Ávila foi anunciado em novembro e oficializado em julho como candidato do Partido Novo à Presidência da República. Em 2018, a legenda surpreendeu em desempenho quando seu então candidato à presidente, João Amoêdo, terminou o primeiro turno em quinto lugar, com 2,5% dos votos, à frente de candidatos como Henrique Meirelles (então MDB, hoje no União Brasil) e Marina Silva (Rede). Amoêdo, que chegou a anunciar voto em Bolsonaro no segundo turno, passou a defender o impeachment do presidente durante a pandemia. Ele chegou a ser lançado novamente como pré-candidato pelo Novo no início do ano, mas sua candidatura sofreu oposição de parcela dos integrantes do partido, sobretudo entre os que apoiam Bolsonaro. O partido, então, decidiu lançar D'Ávila. Ex-PSDB, ele coordenou o programa de governo do candidato tucano à Presidência, Geraldo Alckmin, em 2018, mas depois deixou o partido. Ele é crítico de Bolsonaro e Lula e diz que os dois formaram governos "populistas de direita e esquerda". Ao ser lançado pré-candidato pelo Novo, defendeu privatizações e outras reformas para reduzir o papel do Estado na economia. Ele teve 1% na última pesquisa Ipec, de 12 de setembro. A senadora por Mato Grosso do Sul Soraya Thornicke será a candidata do União Brasil após a desistência do presidente da sigla, Luciano Bivar, que resolveu disputar a reeleição como deputado federal por Pernambuco. A empresária tem 49 anos e nasceu em Dourados (MS). Foi eleita em 2018 pelo PSL, partido que elegeu Bolsonaro e se tornou o União Brasil. Foi vice-líder do governo no Congresso e é coordenadora política da Frente Parlamentar da Agropecuária no Senado. Tem como propostas a criação de um imposto único, o fim do foro privilegiado para todas as autoridades e a fundação de uma corte anticorrupção formada por 30 juízes e 11 desembargadores. Ela obteve 1% na última pesquisa Ipec. O fundador e atual presidente do Democracia Cristã José Maria Eymael já disputou a Presidência outras cinco vezes no passado. Foi deputado federal constituinte em 1988 (seu nome na urna será "Constituinte Eymael") e ficou conhecido pelo jingle "Ey, Ey, Eymael, um democrata cristão", lançado em 1985, quando se candidatou a prefeito de São Paulo pela primeira vez. No discurso em que formalizou sua participação na corrida de 2022, o empresário e advogado, com especialização em direito tributário, disse ser a favor de "valores da família" e que defende a adoção de programas de emprego e moradia para o país. Eymael, de 82 anos, concorreu à Presidência nas eleições de 1998, 2006, 2010, 2014 e 2018. Nunca foi para o segundo turno e, nas últimas eleições, recebeu 41,7 mil votos (0,04%). Ele não atingiu 1% na última pesquisa de intenção de votos do Ipec. Leonardo Péricles é técnico em eletrônica e presidente nacional do Unidade Popular pelo Socialismo (UP), partido de esquerda fundado em 2019. Ele mora em uma ocupação em Belo Horizonte, e sua candidatura foi anunciada em novembro de 2021 e oficializada em julho de 2022. O pré-candidato defende pautas como a realização de uma nova Assembleia Constituinte e um plebiscito para consultar a população sobre refinanciamento da dívida pública do país e a reforma urbana por meio da destinação de imóveis ociosos para moradia popular. Assim como Vera Lúcia, Leonardo também enfrenta uma alta taxa de desconhecimento por parte do eleitorado. Ele foi citado, mas não atingiu 1% na pesquisas de intenção de voto do Ipec de 12 de setembro. Kelmon Luis da Silva Souza, descrito por seu partido como "homem cristão, conservador e de direita", se apresenta como um "sacerdote ortodoxo". O baiano de 45 anos era vice do ex-deputado federal Roberto Jefferson e assumiu a cabeça da chapa do PTB depois que Jefferson teve seu pedido de candidatura negado pelo TSE, em 1º de setembro. O tribunal concluiu que o ex-deputado federal está inelegível devido à sua condenação criminal pelo Supremo Tribunal Federal em 2013 por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. No entanto, o plano de governo, intitulado Direita, Graças à Deus, não sofreu alterações. Entre as propostas, estão reduzir e simplificar a carga tributária, privatizar estatais, cortar despesas com pessoal, simplificar a legislação trabalhista e unificar a Previdência para funcionários dos setores privado e público. Kelmon foi citado na última pesquisa do Ipec, mas não chegou a 1% das intenções de voto. Em fevereiro, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) lançou a candidatura da professora universitária Sofia Manzano, que foi oficializada em julho. Ela tem 50 anos de idade e começou sua militância política aos 18, em 1989. Manzano é economista formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), mestre em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutora em História pela Universidade de São Paulo (USP). Desde 2013, ela vive em Vitória da Conquista, onde dá aulas na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). O foco das suas pesquisas são as relações de trabalho e a desigualdade social. Em entrevista concedida em abril para o site Brasil de Fato RS, Manzano defendeu propostas como intensificar pesquisas universitárias para o setor agrícola para que elas tenham como foco a agricultura familiar e as pequenas propriedades e não o chamado agronegócio. Ela também fez uma defesa do comunismo. Manzano foi citada por eleitores consultados pelo Ipec em seu levantamento mais recente, mas não chegou a 1%. O Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) lançou a candidatura de Vera Lúcia em 19 de março e a oficializou em julho. Esta será a segunda vez que ela disputa a Presidência pela sigla. A primeira foi em 2018, quando obteve 55,7 mil votos, o equivalente a 0,05% dos votos válidos. O PSTU foi fundado no início dos anos 1990 a partir de dissidências de outros partidos como o PT, partido ao qual Vera Lúcia chegou a ser filiada até 1992. O partido se autodefine como "socialista e revolucionário". Antes de ingressar na política, Vera Lúcia foi faxineira e costureira em Sergipe, Estado onde iniciou sua militância. Ela participou da fundação do sindicato dos profissionais de costura da indústria calçadista do Estado. Durante os governos petistas, o PSTU se colocou como oposição, fazendo críticas tanto às gestões de Lula quanto de Dilma. Na última pesquisa Ipec, Vera Lúcia foi citada, mas não chegou a obter 1% das intenções de voto.
2022-09-14
https://www.bbc.com/portuguese/59389595
brasil
Eleições 2022: por que Lula lidera entre católicos e Bolsonaro entre evangélicos?
A pouco mais de duas semanas do primeiro turno das eleições brasileiras, os principais institutos de pesquisa vêm convergindo em alguns cenários. Tanto o Instituto Datafolha quanto o Ipec (ex-Ibope) mostram o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a frente do presidente Jair Bolsonaro (PL) na corrida pelo Palácio do Planalto. Um dos pontos em que os dados também convergem é sobre como o eleitorado católico e evangélico vem se dividindo nestas eleições. O levantamento mais recente do Ipec mostra que Lula tem 52% entre católicos contra 26% de Bolsonaro. Já no público evangélico, o cenário se inverte. Bolsonaro lidera com 48% enquanto Lula aparece com 31%. A tendência é parecida à indicada pelo Datafolha. Entre católicos, Lula lidera com 54% contra 27% de Bolsonaro. No eleitorado evangélico, o atual presidente lidera com 51% contra 28% de Lula. Diante dos dados, a pergunta inevitável é: por que, segundo os institutos de pesquisa, católicos preferem Lula enquanto evangélicos preferem Bolsonaro? Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam fatores como a diferença na frequência aos templos religiosos, ativismo de lideranças evangélicas, diferenças econômicas e o peso que a pauta de costumes tem para católicos e evangélicos. A atenção dada pelas principais campanhas presidenciais ao fator religião não é nova na política brasileira e parece ter razões numéricas. Dados de 2020 do Datafolha mostram que católicos representam 50% da população brasileira, enquanto evangélicos (em suas diversas denominações) somariam 31%. Juntos, totalizam 81% da população do país. Fim do Matérias recomendadas A importância do eleitorado religioso passou a ganhar ainda mais destaque após as eleições de 2018, quando o presidente Jair Bolsonaro se elegeu com um forte apoio do eleitorado evangélico. Uma pesquisa do Datafolha às vésperas do segundo turno indicou que 59% dos eleitores evangélicos disseram que votariam em Bolsonaro contra 26% no então candidato do PT Fernando Haddad. A mesma pesquisa mostrou que 44% dos católicos votariam em Bolsonaro contra 43% em Haddad. Bolsonaro venceu as eleições com 55,13% dos votos contra 44,87% do petista. Não à toa, tanto as campanhas de Lula quanto de Bolsonaro vêm apostando na conquista do eleitorado religioso para se manterem competitivas. Na semana passada, por exemplo, Lula se reuniu com lideranças evangélicas no Rio de Janeiro. Em seu discurso, ele fez questão de se apresentar como alguém ligado a Deus. "Eu não teria chegado aonde cheguei se não fosse a mão de Deus dirigindo os meus passos", disse. Bolsonaro não ficou atrás. Na segunda-feira (12/9), ele participou de uma entrevista com um grupo de influenciadores digitais evangélicos. Em seu discurso no ato organizado no dia 7 de setembro, ele também se apresentou como alguém temente a Deus. "Hoje vocês têm um presidente que acredita em Deus", disse. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que para entender o que tem levado católicos a preferir Lula e evangélicos a preferir Bolsonaro é preciso compreender que a definição do voto tende a acontecer de forma diferente nesses dois segmentos. Um dos principais fatores que explica essa diferença é o fato de que evangélicos, na média, vão mais aos seus templos do que os católicos vão à igreja, de acordo com os especialistas. Pesquisa do Datafolha divulgada em junho deste ano mostra que 53% dos evangélicos afirmam ir aos seus templos mais de uma vez por semana. Entre católicos, esse número é de 17%. O resultado, segundo eles, é que, para o católico médio, a definição do seu voto seria menos influenciada por sua vivência religiosa que no caso do eleitor evangélico. "Os católicos vão menos à Igreja e vão estabelecer uma relação mais distante com as suas lideranças. Ele não vai votar a partir de uma conversa, de um diálogo com o companheiro de igreja como o evangélico faz", explicou a professora de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (ISER), Jaqueline Moraes Teixeira. "Para os evangélicos, a rede da igreja é a principal. Então, para eles, é importante que esse voto, que essa decisão passe de alguma maneira por essa rede", afirmou a pesquisadora. A cientista política e pesquisadora do ISER Carô Evangelista afirma que essa diferença nas intenções de voto entre católicos e evangélicos é um fenômeno observado em outros países latino-americanos há alguns anos. Ela aponta um outro fator que ajuda a explicar a diferença no engajamento político entre os eleitorados evangélico e católico: o ativismo político das lideranças religiosas evangélicas. Segundo ela, nos últimos anos, pastores e pastoras com grande número de fiéis passaram a militar politicamente, inclusive lançando candidaturas e apoiando, oficialmente, determinados candidatos. Por outro lado, a Igreja Católica, nas últimas décadas, tem se mostrado mais comedida em endossar candidatos e tem regras que restringem o lançamento de candidaturas de seus sacerdotes. "As pesquisas têm mostrado uma maior participação de representantes do sistema político dentro de espaços religiosos no universo evangélico. Isso tem influência sobre esse eleitorado. Nos espaços evangélicos tem muito mais presença da política do que nos espaços católicos", disse a pesquisadora. Outra diferença apontada pelas especialistas é a diferença no padrão sócio-econômico entre católicos e evangélicos. Segundo Jaqueline Teixeira, apesar de haver um grande contingente de fiéis de baixa renda entre os católicos, no segmento evangélico as pessoas pobres, especialmente mulheres, são a maioria. Essa "desassistência", segundo ela, aumenta a vinculação dos fieis às redes comunitárias em torno da igreja, aumentando assim, a eventual influência dela sobre o voto. "(Eleitor católico) é uma população que tem um pouquinho mais de acesso a determinadas coisas como equipamentos públicos e urbanos e que não tem a mesma relação comunitária com a Igreja que a população evangélica tem", explica. Os especialistas apontam, também, que o papel de determinados temas e históricos é importante para explicar o que tem levado católicos a preferirem Lula e evangélicos a preferirem Bolsonaro. O sociólogo e pesquisador do ISER Clemir Fernandes, que é pastor, aponta três motivos que ajudam a explicar por que os católicos demonstram maior intenção de voto em Lula. O primeiro é a constante identificação de Bolsonaro com o universo evangélico. Apesar de ser católico, o presidente acena frequentemente ao eleitorado protestante. Um dos símbolos mais marcantes desse processo de identificação foi esse eleitorado foi o seu batismo nas águas do rio Jordão, em Israel. Para Clemir, quanto mais Bolsonaro se aproxima dos evangélicos, mais resistência ele tem entre católicos. "Essa aproximação dele (Bolsonaro) com a gramática e a liturgia evangélica causam um certo mal-estar e um distanciamento do católico-médio, que é a identidade religiosa brasileira mais forte", afirmou. O segundo motivo, de acordo com ele, é a ligação histórica de parte da Igreja Católica com movimentos sociais de esquerda no Brasil. Essa conexão ficou mais intensa a partir dos últimos anos da ditadura militar influenciada pela chamada Teologia da Libertação, uma corrente filosófica dentro do catolicismo associada à esquerda. Foi nesse período que se deu a formação das comunidades eclesiais de base, que tiveram forte influência na criação de movimentos sociais e do PT. "Esse braço da Igreja Católica baseado na Teologia da Libertação formou muitos padres e bispos e ainda têm influência na Igreja Católica. Há uma identidade católica que tem a ver também com a formação do próprio PT", explicou Clemir. "Exceto pelo tema do aborto, isso (a pauta de costumes) não tem o peso que tem para os evangélicos. Por isso que eles podem votar em Lula mesmo quando ele diz alguma coisa que possa aproximar a defesa dessas pautas", disse o pesquisador. O terceiro fator, segundo ele, é o fato de que o católico-médio daria um peso menor, na comparação com o evangélico, à chamada agenda de costumes, termo normalmente usado para representar questões como os direitos da comunidade LGBTQIA+ e descriminalização das drogas. Já entre os evangélicos, a preferência por Bolsonaro pode ser explicada, segundo os especialistas, a partir da identificação desse segmento com pautas defendidas pelo presidente como o anticomunismo, a defesa da pauta de costumes e da liberdade religiosa. Nas últimas semanas, lideranças do PT se mobilizaram para desmentir um boato de que o partido iria fechar templos evangélicos caso vencesse as eleições. Ao jornal Folha de S. Paulo, o deputado federal e pastor Marco Feliciano (PL-SP), que é aliado de Bolsonaro, admitiu que disseminou o boato. "A ideia de que os evangélicos estão sendo perseguidos é muito forte nesse segmento. No Brasil, durante muitos anos, eles não puderem enterrar seus mortos. Há uma memória coletiva que vem sendo ativada", explica a coordenadora do Laboratório de Estudos em Política, Arte e Religião na UFF (Universidade Federal Fluminense), Christina Vital. "A liberdade religiosa e a garantia de que as igrejas evangélicas não vão ser perseguidas é algo muito importante para esse eleitorado, especialmente para as mulheres", disse Jaqueline Teixeira, do ISER. Clemir Fernandes aponta que a associação das igrejas evangélicas, principalmente pentecostais e neopentecostais, ao chamado "anticomunismo" também ajuda a explicar a preferência de parte desse eleitorado por Bolsonaro. O presidente frequentemente defende a ditadura militar no Brasil como uma reação a uma suposta tentativa de implantar o comunismo no Brasil. "Essa ideia do anticomunismo ficou muito popular nos anos 1950, nos Estados Unidos, e foi importada para o Brasil. Hoje, muitas lideranças evangélicas fazem uso dessa pauta com fins eleitorais", disse Fernandes. O pesquisador diz ainda a defesa feita por Bolsonaro da chamada pauta de costumes aproxima esse eleitorado do presidente. "Uma parte importante desse apoio é resultado das pautas morais que Bolsonaro adota. Lula não trata disso por esse viés. Pelo contrário, o governo Lula deu espaço para o reconhecimento de identidade étnica, de negritude e de direitos LGBT e isso gerou uma reação virulenta nas igrejas evangélicas", afirmou Fernandes. Apesar das diferenças apontadas pelas pesquisas entre as preferências de católicos e evangélicos, os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil alertam que a definição do voto não se dá somente com base na religião. "A dinâmica do voto é muito variável e engloba muitos fatores. Quando a gente vai analisar a escolha do voto, a gente precisa sempre combinar a variável religiosa com outros fatores como classe social e escolaridade, por exemplo", afirmou Christina Vital. "Essa escolha não se dá de forma cega e automática. Apesar de haver um peso importante do papel da religião, essa definição é parte de um processo reflexivo", disse Jaqueline Teixeira. "Tanto é assim que hoje, na comparação com 2018, vemos um engajamento menor de evangélicos em torno de Bolsonaro e maior de católicos em torno do candidato do PT", afirmou a pesquisadora.
2022-09-14
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62896472
brasil
'Bolsonaro tirou machismo do meu marido do armário'
O que acontece quando os conflitos políticos presentes hoje no Brasil invadem um relacionamento amoroso? O episódio inaugural trata de casais que recorreram a psicólogos para mediar diferenças políticas - e de terapeutas que têm atendido muitas famílias rachadas politicamente na véspera da eleição. Uma das pessoas entrevistadas é uma dona de casa que passou a fazer terapia de casal para lidar com diferenças políticas que surgiram em seu relacionamento após 2018. Ela diz que, assim como o marido, votou em Jair Bolsonaro naquele ano para "tirar o PT do poder". Fim do Matérias recomendadas Mas a mulher afirma que, desde então, os dois tomaram rumos distintos: enquanto ela passou a reprovar o governo, o marido virou um defensor ferrenho de Bolsonaro e foi, segundo ela, influenciado negativamente pelo comportamento do presidente. "Ele (Bolsonaro) ressuscitou os machistas, ele fortaleceu, pôs para fora, tirou do armário a parte machista da pessoa - a parte autoritária, essa parte mais difícil de conviver", diz Maria (nome fictício), que deu a entrevista sob condição de anonimato. Apresentado pelo repórter João Fellet, o podcast Brasil Partido mostra como pessoas de diferentes grupos sociais estão sendo afetadas por conflitos políticos em suas vidas. São abordadas situações vividas por pessoas pertencentes a grupos como mulheres evangélicas, brasileiros que se identificam como pardos, agricultores e executivos do mercado financeiro. O podcast busca ainda entender como os brasileiros chegaram ao atual grau de divisão e se há possibilidade de diálogo entre grupos divergentes. Os episódios são lançados sempre às quartas-feiras. Maria, a dona de casa que participa do primeiro episódio, diz que hoje evita falar de política em casa para não entrar em conflito com o marido. "Eu me sinto reprimida, eu não posso dialogar dentro da minha casa sobre a divergência que eu tenho", afirma a mulher, casada há mais de 20 anos. Ela afirma que, até 2018, nunca havia tido divergências políticas com o marido. "A gente pensava igual: eu queria derrubar o PT, queria derrubar o Lula, e eu me agarrei a essa ideia", conta. As diferenças surgiram quando ela passou a desaprovar a postura do presidente, especialmente na gestão da pandemia. "Eu não virei uma bolsonarista, e o meu marido, ele não, ele se tornou um bolsonarista." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os psicólogos Daniela Leal e Alexandre Coimbra Amaral, também entrevistados no podcast, dizem que têm lidado com muitos pacientes que romperam relacionamentos amorosos por causa da política. Casados há 19 anos, eles atendem casais em sessões virtuais que começaram a organizar na pandemia. Algumas reuniões contam com mais de 100 participantes. Amaral diz que, pela primeira vez desde que começou a trabalhar como psicólogo, tem visto pacientes que enfrentam um "adoecimento de fora para dentro, ou seja, 'eu estou mal porque essas coisas estão acontecendo no meu país e elas reverberam dentro de casa'". Leal afirma que os conflitos políticos vividos pelos casais têm a ver com "decisões muito estruturais da vida parental, por exemplo, como criamos os nossos meninos e como criamos as nossas meninas". Eles afirmam que, em muitos desses embates, nota-se uma dificuldade dos homens em se relacionar com o feminino. "Não só do homem se relacionar com a mulher, mas do homem se relacionar com as suas características femininas que têm a ver com delicadeza, gentileza, empatia, solidariedade", diz o psicólogo. Para ele, hoje vigora no Brasil "uma prática política que convida o homem a anular todo esse lado feminino dele e se postar na vida somente com esse ato bélico o tempo inteiro sendo direcionado para o mundo". Os psicólogos dizem que, em alguns casos, precisam intervir para que conflitos entre casais não resultem em violência física. "O Brasil é um país extremamente feminicida e esses crimes acontecem dentro de casa, então às vezes chegam situações pra gente na clínica que podem sim se transformar em feminicídios", diz Amaral. O casal diz também atender muitos pacientes que vivem problemas políticos com homens mais velhos da família - em geral pais, tios ou avôs. Segundo Leal, muitos desses homens cresceram em contextos nos quais "o questionamento era uma falta de respeito com os pais". "E aí, de repente, ele se vê em uma época sócio-histórica onde o questionamento tá liberado, onde questionar faz parte de uma horizontalização das relações", diz. E existe alguma possibilidade de conciliação quando as divergências dentro de casa se tornam tão acirradas? Os psicólogos afirmam que, nesse cenário, muitas pessoas optam por evitar conversas sobre temas sensíveis com o familiar discordante. "A gente vê isso tomando muitos campos da vida, de tal forma que muitas relações se sustentam, mas com uma perda considerável de intimidade, com uma mudança da posição da pessoa no mapa afetivo da sua vida", diz Amaral. Nos casos em que, apesar das diferenças, as pessoas queiram manter as relações, os psicólogos recomendam que se faça um esforço para que os interlocutores se sintam "minimamente reconhecidos". "Se é impossível fazer isso no espectro dos valores políticos, sociais etc., que você possa reconhecer os afetos, que você possa reconhecer os momentos em que aquela pessoa foi amorosa, que ela foi generosa, que ela cuidou do neto", diz Amaral. "Nesses pequenos atos a gente consegue construir pertencimento familiar, e isso pode dar uma uma diluída nessa tensão que fica o tempo inteiro se apresentando como uma rocha, como um bloco que nunca se dissolve."
2022-09-14
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62872060
brasil
'Não precisamos de ódio', diz petista que dançou com bolsonaristas em vídeo viral
De um lado, um grupo de bolsonaristas com camisetas verde e amarelo, em Salvador, na Bahia. A poucos metros, dezenas de pessoas pró-Lula usando vermelho e agitando bandeiras enquanto gritam palavras de ordem. Minutos depois, os dois grupos se juntam numa dancinha apartidária, empolgada e embalada por um trio elétrico contratado pelo grupo pró-Lula, no dia 6 de setembro. As imagens viralizaram nas redes sociais e chamaram a atenção por conta da felicidade estampada nos rostos de pessoas que defendem lados antagônicos na polarizada corrida eleitoral. Apenas em uma publicação no Twitter, o vídeo registrou mais de 3,5 milhões de visualizações. Uma das protagonistas do vídeo, a consultora óptica Raquel Borges dos Santos Barbosa, de 31 anos, disse à BBC News Brasil que o ato foi espontâneo e está acima de qualquer ideologia. "A gente precisa desmistificar o pensamento de ódio e levar a paz. Não adianta levar guerra para a política. Sou militante há mais de dez anos e trato todo mundo bem", afirmou Raquel. Fim do Matérias recomendadas O encontro dos grupos ocorreu, conta Raquel, logo após os candidatos ao governo baiano Jerônimo Rodrigues (PT) e João Roma (PL) entrarem na emissora TVE para participarem de um debate. Raquel conta que os bolsonaristas contavam com apitos e uma fanfarra. "A gente usou a batida da fanfarra deles para cantar as músicas do PT. A gente brinca muito. Temos que desmistificar o pensamento de ódio", conta a militante que viralizou nas redes. Ela relata que a festa continuou até que um mini trio elétrico contratado pelo PT chegasse, 40 minutos após os candidatos entrarem para o debate. O barulho foi tão alto que a pessoa responsável pela campanha bolsonarista acionou a polícia. O som ficou dez minutos desligado, mas logo voltou a funcionar depois que o advogado petista convenceu os policiais de que a manifestação era válida. Minutos depois, o som recomeçou e Raquel conta que as mulheres da equipe de Bolsonaro começaram a dançar no ritmo da música petista. "Eu respeito o seu pensamento, mas vamos sambar um pouquinho. Vamos brincar. O gingado é bom, e não tem como se segurar mesmo. Então, eu entrei no meio delas e a gente continuou brincando. Eu não tinha visto que estavam registrando tudo. Até a loira que acabou com nosso som sambou comigo. Eu gritei 'Bora, loira'. E a gente começou a sambar juntas. Ela estava zangada, mas entendeu que não deveria agir daquela forma", conta aos risos. Raquel diz que esses momentos de descontração e amizade entre as equipes de campanha são comuns enquanto os candidatos estão participando dos compromissos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Tem o momento sério e tem o da pausa, da festa, da descontração. Depois que nossos candidatos passaram e já estavam no momento deles, a gente aproveitou para descansar e se divertir um pouco", conta. Apesar de dançarem juntas e se reunirem, as mulheres de ambas as equipes não se encontraram novamente depois do vídeo viralizar. E, assim como Raquel, a reportagem da BBC News Brasil procurou as trabalhadoras bolsonaristas, mas não teve sucesso. A militante petista lamenta não ter pedido o contato ou reencontrado as colegas. "Gostaria de fazer amizade com todas. As meninas eram uma mais bonita que a outra, mas ainda não consegui encontrar nenhuma delas. Até pedi nas minhas redes que entrassem em contato comigo, mas pode ser que elas estejam evitando para não se prejudicar. Estamos vivendo um tempo caótico na política", afirmou. Raquel diz que se emociona ao falar sobre a união dos brasileiros de maneira apartidária. Para ela, falar sobre política é importante, mas é necessário entender os limites e manter o respeito. "A eleição define como será nosso Brasil. Mas você não tem como odiar o que você não conhece, o outro. Essa rivalidade, como entre as torcidas de Corinthians e Palmeiras, é ridícula porque, assim como os políticos, os próprios jogadores se cumprimentam antes de começar o jogo, enquanto o povo se mata. Eu sou de esquerda, mas respeito a outra parte", diz Raquel. Ela diz que a polarização e escalada de violência política dos últimos anos a fez tomar algumas precauções. Hoje, ela sente medo de fazer ações simples de campanha, como abordar pessoas e entregar panfletos. "Eu tenho medo de colar um adesivo na porta da pessoa, e ela me dar um tiro. A democracia existe e está aqui para a gente dialogar respeitando os espaços. Se eu puder te convencer a mudar, eu vou te convencer. Mas só se a outra parte concordar em me ouvir. É essa educação que a gente deve levar para as urnas. O amor ao próximo, não julgar a pessoa pelo número que ela escolhe. Como odiarmos a nossa bandeira simplesmente porque um homem a usa para fazer campanha do partido dele?", questiona Raquel. Raquel diz ter se sentido muito feliz com a repercussão do vídeo. Ela se diverte inclusive com o fato de ter recebido uma montagem das imagens com uma música da campanha de Jair Bolsonaro e diz que espera que ele seja usado de maneira positiva por quem o compartilha. "A gente vive em um momento em que não precisamos de ódio. Precisamos ensinar nossos filhos que é com paz e alegria que se convive. Precisamos ser mais humanos e ter empatia com o próximo. A gente ouve que uma pessoa morreu por causa de um time de futebol. Preserve a paz. Faça jus à ordem e progresso da nossa bandeira", diz. * Este texto teve a colaboração de Vitor Tavares
2022-09-14
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62898414
america_latina
Como PCC fez Paraguai virar um dos países com maior presença de crime organizado no mundo
No ranking de 2023, a nação saltou para a 4ª posição entre os 193 membros da ONU incluídos no estudo, atrás apenas de Colômbia, México e Mianmar, o atual líder. A pontuação do Paraguai é agora de 7,52. A classificação é obtida por meio da média de notas atribuídas em diferentes categorias. A BBC Mundo, serviço em espanhol da BBC, entrou em contato com diversos órgãos públicos e ministérios do Paraguai, assim como com o gabinete da Presidência de Santagio Peña, para analisar este resultado, mas não obteve respostas. Fim do Matérias recomendadas A operação contra o narcotráfico e a lavagem de dinheiro chamada "A Ultranza PY", a maior da história do país, realizada em 2019, deixou claro que as coisas mudaram nos últimos anos na nação sul-americana. Esta operação levou à destituição de ministros e à prisão de 24 pessoas por supostos vínculos com organizações de narcotraficantes. Para Carolina Sampó, doutora e pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet), os criminosos no Paraguai se aproveitaram durante anos da “falta de reputação do país como exportador de drogas para reenviar cocaína sem serem detectados e dirigi-la a portos de saída não tradicionais e rotas contraintuitivas como aquelas que se iniciam no porto de Buenos Aires, de San Antonio, ou de Montevidéu”. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Pecci investigava casos de corrupção e lavagem de dinheiro de alto perfil quando foi assassinado em sua lua de mel na Colômbia. “Todos os mercados e atores criminosos que se encontram nas Américas estão presentes em vários países. Esses mercados criminosos interconectados e transnacionais aproveitam situações de liderança e governança deficitárias”, afirmam os autores do Índice Global de Crime Organizado. “Os pontos de 2023 mostram que a região das Américas continua dominando o comércio mundial de cocaína como principal mercado de origem da droga”, acrescentam. O Brasil está na posição 22 no ranking de 193 países e é o sétimo com maior criminalidade organizada das Américas, segundo a lista. Para começar, especialistas apontam que o país está situado no coração da América Latina, fazendo fronteira com mercados enormes como Brasil, Argentina e Bolívia. Só isso já torna o Paraguai geograficamente atraente. Além disso, pelo menos outros 8 fatores ajudam a explicar como o país sul-americano se transformou em um centro criminoso internacional: A maior vigilância nos portos da Argentina e do Brasil fez com que o Paraguai se tornasse um centro internacional de distribuição de cocaína andina graças à sua proximidade geográfica com dois dos principais produtores desta droga, Peru e Bolívia. “Isso é algo novo. A cocaína que vem do Peru, da Colômbia ou do Equador chega ao Paraguai em pequenos aviões e é transportada até os portos de Buenos Aires e Montevidéu, que ficam no Atlântico, ou passa pelos portos do próprio país. A partir daqui, a cocaína começa a ser enviada para países da Europa, da África ou mesmo do Oriente Médio”, afirma Juan A. Martens, pesquisador da Universidade Nacional de Pilar e do Inecip (Instituto de Estudos Comparados em Ciências Penais e Sociais) do Paraguai. “Os movimentos aéreos são movimentos curtos, o que os torna muito fáceis. Em muitos casos nem é necessário que os pequenos aviões pousem, eles só jogam a cocaína do ar em um campo e voltam”, diz Sampó. Nesta chegada aos portos atlânticos, desempenha um papel fundamental um dos maiores sistemas navegáveis ​​do mundo, no qual, mais uma vez, o Paraguai está geograficamente localizado no centro. É a hidrovia Paraná-Paraguai. Com extensão de 3.442 quilômetros, atravessa ou tem ramificações na Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai. “O Brasil é um mercado de 200 milhões de pessoas. Por água, apenas uma hora nos separa do maior estado brasileiro. De Saltos del Guaira, no norte do Paraguai, é uma hora de barco até o estado de São Paulo, que tem 45 milhões de habitantes.” “É muito fácil traficar por essa via”, diz o pesquisador paraguaio. O Paraguai cultiva cerca de 7 mil hectares de maconha por ano. “Sempre foi um espaço territorial complexo no que diz respeito à criminalidade. A primeira questão é a quantidade e a qualidade da produção de maconha na região de Pedro Juan Caballero e como essa produção de maconha deu origem a graves conflitos entre diferentes organizações criminosas brasileiras e clãs locais”, diz Sampó. “Os níveis de consumo de maconha no Brasil são muito elevados e a qualidade da maconha de Pedro Juan é a mais alta da região. Ao unir produtores a clientes, o negócio vale milhões no Brasil”, afirma a pesquisadora argentina. É pela necessidade de controlar a circulação dessa droga que ocorre a expansão do tráfico de drogas. O Paraguai passou de primeiro produtor de maconha da América do Sul a um dos principais distribuidores de cocaína, apesar de não produzi-la. “A presença do cartel se estende por todo o Paraguai. A expansão do PCC para países vizinhos e suas conexões com redes internacionais sublinham a crescente influência do grupo na América do Sul”, afirmam os autores do Índice Global de Crime Organizado. Sampó explica que o PCC escolhe o Paraguai para sua expansão devido à proximidade com os centros de distribuição de maconha e cocaína. “Sua chegada tem a ver com um primeiro desembarque para controlar a maconha e depois se expande para diversos espaços do Paraguai, rurais e urbanos, onde recriam suas rígidas estruturas de organização criminosa”. A partir daí, a organização expande seus negócios e começa a transportar cocaína do Peru e da Bolívia para o Paraguai e de lá para o porto de Santos. O porto de Santos é o principal porto do Brasil e da América Latina. Posteriormente, viria a expansão de outras rotas, principalmente aquelas que têm a ver com o uso da hidrovia e a saída pelos portos de Buenos Aires e Montevidéu. “O cartel nasce nas prisões. É uma organização criminosa enorme e muito complexa. Para ingressar, é preciso ser batizado, é preciso passar por um processo de admissão”, afirma a pesquisadora. “O que começamos a ver entre 2018 e 2019 é que começam a haver batismos dentro das prisões paraguaias de paraguaios, não de brasileiros. Dos paraguaios que começam a pertencer ao PCC. E assim a organização amplia sua base dentro do território paraguaio”, afirma. Diferentes organizações internacionais afirmam que o Paraguai tem um problema de corrupção generalizado, que afeta todos os níveis de governo e da sociedade, tanto na esfera pública como na privada. “As pontuações do Paraguai, Venezuela e Nicarágua sugerem que os criminosos têm um nível preocupante de influência na sociedade e nas estruturas estatais”, diz o relatório produzido junto do índice. A chegada da cocaína do Paraguai aos portos da Bélgica, Holanda e Alemanha atraiu a atenção da Europol, da DEA (Administração de Fiscalização de Drogas, dos EUA) e de outras agências internacionais, o que tornou visível o vínculo institucional que existe entre o crime organizado e o poder público. Martens lembra os casos do ex-deputado Juan Carlos Ozorio, acusado de lavagem de dinheiro, tráfico de drogas e associação criminosa, ou do senador Erico Galeano, que atualmente é processado por lavagem de dinheiro e associação criminosa. “Há uma impunidade sistemática”, diz ele. Sampó concorda com isso: “As condições de fragilidade do Estado, a fragilidade institucional, os altos níveis de corrupção, os altos níveis de impunidade, viabilizam que o PCC desembarque como organização criminosa, se estabeleça e combine com os clãs locais a distribuição do negócio.” Estima-se que entre Argentina e Paraguai existam mais ou menos 200 travessias ilícitas. Em algumas partes, a distância entre os dois países é tão curta que, com uma lancha rápida, a fronteira pode ser atravessada em dois minutos. Mas outro dos fatores que torna a fronteira paraguaia porosa é a falta de recursos para controlar o espaço aéreo do país. “Até o momento, o Paraguai não possui radar para monitorar o céu. É claramente uma decisão política e um convite aos grupos criminosos transnacionais. Tornou este território um ímã de atração para grupos do México, da Europa Oriental ou da máfia italiana”, diz Martens. O Paraguai possui uma legislação muito favorável à compra e venda de armas e os requisitos para adquiri-las não são muito complicados. “Setenta e três grupos criminosos atuam no Brasil e as armas que esses grupos geralmente utilizam passam pelo Paraguai. Especificamente, são destinados às favelas do Rio. Estamos falando deles chegando ao Rio de Janeiro, ao Espírito Santo, a Minas Gerais e ao Nordeste brasileiro”, diz Martens. E não só armas de pequeno e médio calibre, mas também munições são distribuídas do Paraguai. “As armas abastecem organizações criminosas brasileiras como o PCC ou o Comando Vermelho”, diz Sampó. As rotas da droga são utilizadas para o tráfico de armas, mas também para o contrabando de cigarros e produtos falsificados. “O Paraguai é um centro importante para o comércio ilícito de tabaco, tanto a nível nacional como regional. A área da tríplice fronteira entre Paraguai, Brasil e Argentina é um corredor movimentado para o tráfico de tabaco, que financia outras atividades criminosas. O Paraguai ocupava a posição mais elevada da América neste mercado ilícito”, diz o relatório. “Os cigarros paraguaios inundam grande parte dos países vizinhos, impactando diretamente nas receitas dos Estados. E uma das características básicas das organizações criminosas é estarem envolvidas em tudo ao mesmo tempo. Muitas vezes até são utilizadas as mesmas rotas”, diz Sampó. E de mãos dadas com o contrabando também vem o comércio de produtos falsificados, que é outro mercado criminoso nas Américas. A pontuação média da América do Sul de 6,25 coloca a região em segundo lugar globalmente no ranking de crime organizado. O Peru e o Paraguai têm as pontuações individuais mais altas da região e ambos os países são avaliados como importantes focos de produtos falsificados. Ciudad del Este, no Paraguai, é um importante centro de produtos falsificados, incluindo roupas, calçados, relógios, eletrodomésticos e perfumes. “Grupos criminosos no Paraguai se destacam por facilitar esse comércio ilícito”, acrescenta o documento.
2023-11-04
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cp646zz6z46o
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Por que o Panamá se separou da Colômbia – e como os EUA influenciaram nisso
Os dois países eram um só no final do século 19 e início do século 20, quando o território panamenho começou a ser altamente cobiçado. Naquela época houve uma espécie de licitação internacional pelo Panamá, na qual a Colômbia, apesar de ter diversas vantagens, acabou perdendo. Fim do Matérias recomendadas Mas como ocorreu a separação entre Panamá e Colômbia? A BBC News Mundo (serviço da BBC em espanhol) revisitou esta história, para entender como uma guerra sangrenta, uma ideia revolucionária e um tratado complicado levaram o Panamá a deixar de fazer parte da Colômbia há 120 anos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No século 19 e após a independência da Espanha, foi criada a Grande Colômbia (ou Grã-Colômbia). Um país que incluía parte do que hoje são Equador, Venezuela, Panamá e Colômbia. Então, em 1830, a Venezuela e o Equador se separaram e o país foi renomeado como Nova Granada e, mais tarde, Colômbia. Entre 1850 e 1880, a Colômbia era um Estado federal, que garantia a liberdade religiosa e baseava sua organização política e administrativa na imensa diversidade cultural e econômica do seu território, que incluía o Panamá. "O Panamá foi muito importante para a Colômbia e recebeu atenção considerável do governo central", explica a historiadora panamenha Marixa Lasso à BBC News Mundo. "Os panamenhos também desempenharam um papel importante na história colombiana. Foram até presidentes", acrescenta. Contudo, no final do século 19, chegou ao poder um partido conservador que impôs um modelo de Estado centralizado, estabeleceu uma ligação estreita com a Igreja Católica e defendeu o legado dos colonizadores espanhóis. Esse período é conhecido como Regeneração e deu origem, em 1886, a uma Constituição muito questionada. A principal objeção era que a Carta Magna enfraquecia o poder dos nove Estados soberanos que compunham o país, que se tornaram entidades político-administrativas dependentes do governo central de Bogotá, a capital. Uma dessas entidades foi o istmo do Panamá, localizado entre os oceanos Atlântico e Pacífico, e que também não se alinhava com a hegemonia conservadora. "O Panamá desempenhou um papel de liderança na história do federalismo colombiano. Os panamenhos tinham uma grande vocação federalista e autonomista e se ressentiam dos governos centralistas colombianos", diz Lasso, autora do livro Historias perdidas del canal de Panamá (Histórias perdidas do canal do Panamá, em tradução livre, sem edição no Brasil). E foi esta tensão política, que se espalhou por toda a Colômbia, que serviu de prelúdio para uma guerra civil que mais tarde facilitaria a interferência internacional. Na Colômbia, os dois partidos políticos tradicionais, o liberal e o conservador, têm historicamente entrado em conflito de forma muito violenta. Mas talvez o confronto mais emblemático tenha sido a guerra que ocorreu entre 1899 e 1902 e é conhecida como Guerra dos Mil Dias. Foram três anos de batalhas sangrentas que ocorreram como resultado da reação de conservadores moderados e liberais que se opuseram à Regeneração e à Constituição de 1886, por considerá-la autoritária. Uma percepção que era compartilhada pelos panamenhos. "O Panamá tinha uma população majoritariamente liberal. E no final do século 19 havia um descontentamento enorme com o centralismo conservador da Constituição de 1886", diz Lasso. No final, os conservadores venceram a guerra e começou o que ficou conhecido como hegemonia conservadora. "O fim da guerra com a vitória oficial dos conservadores e a execução judicial do general liberal Victoriano Lorenzo, que era indígena panamenho, só aumentou o descontentamento entre as maiorias liberais", lembra Lasso. Somado a isso, estava o fato de que o resultado da guerra foi desastroso. Cerca de 3% da população morreu, as infraestruturas e a indústria foram destruídas, a inflação e a dívida externa dispararam e milhares de pessoas deixaram as cidades. Naquele momento da história era claro que a unidade de um país centralizado pela elite de Bogotá era bastante frágil. Portanto, uma tentativa de separar qualquer uma das regiões poderia ter chance de sucesso. É neste contexto de tensão política e pós-guerra que se materializa a ideia visionária de travessia do Oceano Atlântico ao Pacífico através do território centro-americano. Mas essa não era uma ideia nova. Desde a colônia existiram projetos que buscaram unir os oceanos. No final do século 19, já existiam estradas-de-ferro, mas à essa altura a revolução industrial estava em plena expansão e as grandes potências capitalistas como o Reino Unido, a França e os Estados Unidos começaram a pressionar pela ligação entre os oceanos. Este projeto de canal representava a joia da coroa porque permitiria a quem o administrasse ter o controle de uma rota que transformaria o comércio mundial. A primeira grande aposta ocorreu em 1880, quando Bogotá concedeu a concessão para a construção do canal ao engenheiro Ferdinand de Lesseps, francês que acabara de construir o Canal de Suez, no Egito. Mas as doenças dos trabalhadores, muitos deles escravos africanos, a umidade do território e as chuvas constantes levaram o projeto francês à bancarrota. E é aí que o interesse dos Estados Unidos nessa rota marítima se junta à dificuldade do Estado colombiano de manter o controle do seu território. Ainda mais quando uma de suas regiões, o Panamá, estava separada do centro administrativo pela imensa e intransponível selva de Darién. Naquela época, os Estados Unidos eram uma potência emergente que acabava de ganhar o controle de Porto Rico e Cuba e sabia interpretar a crise interna colombiana como uma grande oportunidade. O país norte-americano propôs pagar US$ 40 milhões de dólares pela concessão da construção do canal. Esse acordo materializou-se com o tratado Herrán-Hay entre a Colômbia e os EUA, que estabeleceu as diretrizes para a concessão e foi fechado entre o secretário de Estado dos EUA, John Hay, e o ministro colombiano Tomás Herrán. Foi uma negociação complexa, que também contemplou a possibilidade da construção do canal na Nicarágua, mas levou em conta que os franceses já haviam feito um investimento inicial vultoso no Panamá. Assim, ficou finalmente decidido que o canal seria construído no Panamá com capital norte-americano, que por sua vez seria pago à Colômbia e à empresa francesa. O Congresso colombiano se opôs a vários pontos do tratado, alegando que ele violava a soberania do país. E, em 5 de agosto de 1903, Bogotá informou que rejeitava o documento. Esta decisão da Colômbia acabou por dar origem à separação do Panamá. "Quando a Colômbia rejeita o tratado Herrán-Hay, e havia boas razões para rejeitá-lo, vários fatores se combinam a favor da independência do Panamá da Colômbia", diz Lasso. Por um lado, explica a historiadora, os panamenhos saíam da crise provocada pela Guerra dos Mil Dias e o canal era visto como uma salvação para seus problemas internos. Por outro lado, havia grande descontentamento no Panamá com o governo conservador e com a derrota liberal na guerra. Finalmente, os Estados Unidos encontraram nesta insatisfação panamenha "uma excelente oportunidade para obter o tratado que desejavam sem a interferência da Colômbia". E foi então que o Panamá ignorou a rejeição do tratado e, em aliança com os Estados Unidos, que afirmaram que interviriam caso houvesse retaliação militar da Colômbia, declarou independência em 3 de novembro de 1903. "Naquele dia, oito navios de guerra norte-americanos estavam estacionados nos oceanos Atlântico e Pacífico sob as ordens do vice-almirante Coghlan e do almirante Glass", descreve o historiador colombiano Alfonso Múnera no texto Fronteiras Imaginárias. Ele cita o relato do general colombiano Rafael Reyes para reconstruir o cenário. Múnera escreve que Reyes "não pôde pôr os pés no Panamá e, preocupado, escreveu ao presidente [colombiano] aconselhando-o a ser muito cauteloso, para evitar que 40 navios de guerra norte-americanos tomassem, além do Panamá, as cidades de Medellín e Cali". Onze anos depois, em 1914, a Colômbia concordou com os EUA em reconhecer o Panamá e resolveu disputas territoriais e fronteiriças. Isto em troca de uma compensação de US$ 25 milhões. Hoje, mais de um século depois, esta é uma história em que o papel desempenhado pelos Estados Unidos continua a ser tema de debate. Quanto mais relevância é dada ao papel daquele país, menos heroica parece a independência do Panamá. "Os panamenhos enfatizam sua atuação nesta separação. Embora seja reconhecido o papel desempenhado pelos EUA, lembram-se que a Independência de 1903 foi a última tentativa de uma longa lista de tentativas separatistas que ocorreram ao longo do século 19", diz Lasso. "E que o Panamá teve, ao longo daquele século, uma vocação autonomista e federalista baseada nas particularidades de sua história e posição geográfica", conclui a historiadora.
2023-11-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c6perxnj2kro
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Tratados como indesejáveis pela Colômbia, 'hipopótamos de Pablo Escobar' correm risco de serem dizimados
A Ministra do Meio Ambiente, Susana Muhamad, afirmou que 20 deles serão esterilizados, outros serão transferidos para o exterior e "alguns" serão sacrificados. Especialistas têm tentado controlar o número de hipopótamos por anos. Fim do Matérias recomendadas No entanto, esses esforços não conseguiram conter o crescimento do grupo, devido à falta de predadores e às condições férteis e pantanosas da região de Antioquia, que são ideais para esse animal nativo da África prosperar. O destino deles foi selado quando os hipopótamos foram declarados uma espécie invasora no ano passado, abrindo caminho para a redução. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Estamos trabalhando no protocolo para a exportação dos animais", disse Muhamad, segundo a imprensa local. "Nós não vamos exportar nenhum animal sem a autorização da autoridade ambiental do outro país." Ela disse que o ministério está criando um protocolo para a eutanásia como último recurso. Especialistas colombianos há muito alertam que a reprodução descontrolada dos hipopótamos representa uma ameaça para os seres humanos e a fauna nativa. Estimativas sugerem que a população poderia chegar a 1.000 até 2035 se nada for feito, mas ativistas pelos direitos dos animais afirmam que a esterilização causa sofrimento aos animais - e grande perigo para os veterinários que a realizam. O hipopótamo é um dos maiores animais terrestres, com machos adultos pesando até três toneladas. Eles também estão entre os mais perigosos, matando cerca de 500 pessoas por ano. No passado, comunidades de pescadores ao longo do rio Magdalena foram atacadas e alguns hipopótamos invadiram um pátio de escola, embora ninguém tenha sido morto. Escobar era o chefe do cartel de Medellín e apelidado de "rei da cocaína", acumulando uma fortuna estimada em US$ 30 bilhões ao contrabandear drogas para Miami e o sul dos Estados Unidos. Seu reinado de terror durou mais de uma década e envolveu sequestros, centenas de assassinatos, subornos, atentados e guerras de território com barões das drogas rivais - além de um breve período como político eleito. Como um dos homens mais procurados do planeta, ele se entregou às autoridades colombianas em 1991 com o acordo de passar cinco anos em uma prisão que ele mesmo construiu, conhecida como La Catedral. Escobar fugiu um ano depois, durante tentativas do governo de transferi-lo para uma prisão mais segura. Ele deixou um legado de violência, mas também a Hacienda Nápoles, uma propriedade de 5.500 acres em Antioquia, que foi entregue aos moradores pobres pelo governo após a sua morte e transformado em um parque temático. Os hipopótamos foram deixados livres, pois foram considerados difíceis de serem capturados.
2023-11-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c5173p8z17qo
america_latina
Qual é a origem da obsessão dos argentinos pelo dólar
Em entrevista à BBC News Mundo (serviço da BBC em espanhol), Luzzi diz que o dólar tem "duas vidas" na Argentina. Uma delas é a privada, que é a condição de moeda com a qual os argentinos poupam ou adquirem bens duráveis como casas ou apartamentos. E outra é a vida pública, que ela considera mais importante. Fim do Matérias recomendadas "É isso que faz a cotação do dólar aparecer em todos os nossos celulares, que ela chegue até nós pelo aplicativo do banco onde temos conta ou pela carteira eletrônica que usamos. Que liguemos a televisão e ela apareça no mesmo lugar que a temperatura a partir das 10h da manhã, quando o mercado abre. E que esteja na boca do povo, na piada, no meme." Mas a questão não é apenas quantas "vidas" o dólar tem na Argentina, mas também a quantidade de dólares diferentes que existem no país. "Há uma obsessão pelo dólar que se baseia em fatos econômicos, mas também há uma coisa ilusória: as pessoas dizem: 'Como está o dólar hoje? Como ele acordou?' É como um monstro com vida própria. Também tem múltiplas facetas, porque há muitas cotações do dólar. Nem sei quantas são", diz Patricio Barton, comunicador e apresentador de rádio. Ele tenta listar de memória as diversas cotações. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As cotações do dólar, segundo Patricio Barton Há o dólar oficial, que é o ponto de partida, com o qual são realizadas as operações de exportação e importação. Depois, há o dólar blue, que normalmente vale o dobro da cotação oficial; é a referência das ruas, o dólar ilegal que alguns meios de comunicação chamam de "informal" como eufemismo. Temos o dólar turístico, que é o que os turistas compram. Há o dólar Catar, taxa com a qual foram administradas as despesas com cartão dos argentinos que foram à Copa do Mundo. O dólar luxo é para bens de luxo comprados na Argentina. Existe um dólar soja para os produtores de soja. O dólar líquido, que são dólares de reserva bancária. O dólar futuro, que é uma "profecia" de como será o dólar daqui a um ano. O dólar Coldplay foi uma cotação para a banda que fez uns 10, 15 shows em estádio na Argentina, ou seja, ganharam muito dinheiro que teve que ser pago a eles. Existe o dólar de "cabeça grande" e o dólar de "cabeça pequena", que são as efígies dos heróis americanos que estão impressas nas notas de dólar. Aqui, não se compram as notas "de cabeça pequena", mesmo elas sendo perfeitamente legais, ou te dão menos dinheiro por elas. Se dá inclusive nomes a dólares que não existem. Se você quer trocar dólares comigo e eu digo "bom, esse é o dólar amigo", é porque estou te dando com uma taxa de câmbio amigável. Leia mais: Não apenas as cotações têm nomes próprios na Argentina: também foi criada uma linguagem particular em torno do dólar, das pessoas que compram e vendem a moeda, do local onde ocorrem essas transações, e assim por diante. "Verde: dólar, unidade monetária dos Estados Unidos." A definição consta da terceira edição do dicionário da Academia Argentina de Letras. "É raro ter lexicalizada uma palavra coloquial para uma moeda estrangeira. A lexicalização significa que uma palavra que tinha um significado adquiriu outro completamente diferente. É um fenômeno poderoso", diz Santiago Kalinowski, diretor do Departamento de Linguística da Academia à BBC News Mundo. "Verde", além disso, serve para nomear outra das paixões argentinas: o mate. Mas há muitas outras palavras que surgem da paixão dos argentinos pelo dólar. O ABC do dólar na língua argentina, segundo Santiago Kalinowski A: Arbolito B: Bicicleteo C: Cueva A primeira definição de arbolito (arvorezinha, em português) era "pessoa que recebe apostas clandestinas", mas os falantes costumam aproveitar algo que já conhecem para se referir a uma realidade nova. A segunda definição de arbolito se aplica a pessoas que, nas ruas, se oferecem para trocar dólares com o grito “cambio, cambio”. Essas pessoas se concentram principalmente nos entornos da City portenha, como é chamada a região do centro de Buenos Aires que concentra as sedes das principais instituições financeiras do país. “Arbolito: Doleiro ilegal que trabalha em vias públicas." Para mim, o uso da palavra arbolito tem a ver com a atitude física na via pública, que é ficar ali como se fosse uma arvorezinha, "plantado na calçada". Com B temos "bicicleteo" (pedalada), que se refere a todas essas especulações de vender dólar pela manhã, comprar dólar à tarde; todo esse labirinto especulativo que temos. Com o C há a "cueva" (caverna), "agência de câmbio ilegal". Há também "cuevero", algo "relacionado à cueva de câmbio" ou "membro ou funcionário de uma cueva de câmbio". E a história continua: na letra D, também temos "dolarizar" e "desdolarizar"... Luzzi indica que há duas grandes explicações econômicas para a obsessão pelo dólar na Argentina: uma ela atribui ao efeito da inflação persistente e a outra, que não exclui o fator inflacionário, à condição de economia periférica. A segunda refere-se, basicamente, ao fato de o país "gerar através da exportação de produtos e serviços menos dólares do que necessita para importar bens e serviços e para pagar serviços públicos". Esta situação agrava-se, acrescenta a socióloga, quando se contrai mais dívida externa, "porque a qualquer saída de dólares para, por exemplo, pagar importações, é necessário adicionar os dólares que são necessários para pagar a dívida que foi contraída". O economista Fausto Spotorno comenta a questão do fator inflacionário. "O dólar é o instrumento que o argentino usou para combater a inflação, para enfrentar a destruição histórica do peso pela política econômica argentina, o que não é novo, tem 80 anos", diz o diretor da Escola de Negócios da Universidade Argentina da Empresa (Uade). Assim, a única forma de poupar para a grande maioria dos argentinos não tem sido a moeda nacional, mas a moeda americana. Isso exclui, é claro, aqueles que têm os recursos e o conhecimento para utilizar outros instrumentos financeiros, como ações ou títulos de dívida, ou que simplesmente não têm a possibilidade de poupar. Além da poupança, há outro uso para o dólar, explica Spotorno. "Se eu quiser fazer uma transação imobiliária, por exemplo, tenho que pagar em dólar. Por quê? Porque, se eu quisesse usar pesos, precisaria alugar um caminhão para colocar todas as notas que seriam necessárias em uma transação." Para Spotorno, não há dúvida: tudo começou em 1946, quando o governo de Juan Domingo Perón nacionalizou o Banco Central argentino. “E a partir de 1946, exatamente no mesmo ano em que nacionalizamos o Banco Central, a inflação apareceu: foi de 26% naquele ano e não parou até chegarmos à hiperinflação em 1989", lembra Spotorno. Esta lua de mel com o dólar terminou em dezembro de 2001 com um divórcio brutal. As poupanças em dólares foram confiscadas pelo Estado e devolvidas em pesos no famoso "corralito" (outra palavra que consta do dicionário da Academia Argentina de Letras). Tanto antes de entrar na conversibilidade, como antes de sair dela, especulou-se sobre uma possível dolarização da economia argentina, o que, no entanto, nunca foi concretizado. Mas Luzzi ressalta que o fato de a Argentina ter inflação desde meados do século passado não significa que as pessoas começaram imediatamente a comprar dólares. Isso exigiu, como ele coloca, um processo de "familiarização com um elemento que antes estava completamente fora do repertório" local. O especialista indica que o primeiro momento em que a moeda norte-americana foi capa dos jornais argentinos e virou notícia foi em janeiro de 1959, quando o presidente Arturo Frondizi lançou seu plano de estabilização. "De 1931 [ano da primeira regulamentação do mercado de câmbio na Argentina] até 1959, a discussão sobre se o Estado deve intervir no mercado de câmbio, ou se o câmbio está caro ou barato, era uma discussão de especialistas em economia, de exportadores e importadores, mas não era uma discussão da agenda pública", afirma. É a partir de 1959 – em meio a um debate sobre a inflação, mas também sobre a abertura ao capital internacional e aos investimentos estrangeiros – que ocorre um processo de popularização do dólar, que só aumentou desde então. E até virou motivo de piadas. Em 1962, o comediante Mauricio Borensztein, mais conhecido como "Tato" Bores, questionou num famoso monólogo televisivo por que o dólar estava sempre em alta. "Quando o Boca [Juniors] perde, o dólar sobe três mangos [pesos]; no domingo que o Boca vence, o dólar sobe quatro mangos. Anunciam frio para agosto e, pimba, o dólar se perde de vista. Um ministro renuncia, as pessoas se assustam, o dólar fica 8 pesos mais caro. Vem um ministro novo, o povo compra dólares até as orelhas." Na segunda metade da década de 1970 – com a liberalização do mercado cambial e a política de abertura financeira do regime militar –, Luzzi indica que o dólar deixou de ser uma informação relevante para se tornar uma ferramenta de operações diárias. O processo inflacionário que duraria uma década, incluindo os sete anos de ditadura (1976-1983), deu o toque final à valorização do dólar, que se tornou o principal método de poupança. "O peso já não servia mais", diz Luzzi. Não se pode falar da obsessão dos argentinos pelo dólar sem falar de sua relação conflituosa com a moeda nacional argentina, que mudou quatro vezes nos últimos 50 anos. Embora a Argentina tenha tido a mesma moeda (o peso moneda nacional) de 1881 a 1970, a partir de então a inflação obrigou-a a mudar de nome (peso ley, peso argentino, austral, peso) e a remover zeros das notas com frequência crescente. Juntamente com os golpes de Estado (seis no século 20), a constante desvalorização da moeda tem sido um dos traumas permanentes deste país. "Para mim, a argentinidade sofre de transtorno de estresse pós-traumático", diz a psicóloga clínica Alicia Blanco. "Temos uma espécie de infância de abusos e, sobretudo, uma mensagem dúbia. Mensagens dúbias para uma criança geram transtornos psicológicos", afirma. As "mensagens dúbias" – dizer uma coisa e fazer outra – têm sido muito típicas da história dos argentinos com o peso e o dólar. Lorenzo Sigaut, que foi ministro da Economia de abril a dezembro de 1981, durante o governo ditatorial de Roberto Eduardo Viola, de fato disse que "quem aposta no dólar perde". Poucos dias depois, o peso se desvalorizou em 30%. No "corralito", um governo democrático aprovou uma lei de intangibilidade dos depósitos (que pretendia proteger todos os depósitos, à vista ou a prazo, em pesos ou moeda estrangeira, proibindo o Estado nacional de alterar condições pactuadas entres depositantes e instituições financeiras) e poucos meses depois, confiscou todos os depósitos em dólares. Aproveitando que, além de comprar dólares e tomar mate, muitos argentinos frequentam regularmente o psicólogo, perguntamos a Alicia Blanco como ela descreveria a relação entre os argentinos, o dólar e o peso, se fossem à terapia. Madame Bovary e o dólar, segundo Alicia Blanco A argentinidade está ligada ao peso argentino, um peso que é como ter um par desvalorizado 800 vezes, maltratado, de nome trocado. Ele ou ela não têm identidade. Você olha e diz: "Com quem eu me casei? Quem eu escolhi?" Aí você começa a fantasiar, como em qualquer relacionamento onde não se está satisfeito, onde não se está feliz. Você olha para o lado e vê o dólar, o loiro de olhos azuis que durante 70 anos teve o respaldo do ouro. Então você vê o magnata e se apaixona por ele, desenvolvendo uma paixão que é o que chamo de paixões destrutivas. Podemos tomar como exemplo o modelo de Madame Bovary. Ela tem marido e se apaixona por um amante que é um chantagista que a trai, que a manipula de todas as maneiras possíveis, mas ela acredita em tudo e o ama profundamente a ponto de querer abandonar o marido e o filho. E aí o cara, quando ela vai procurá-lo, não está lá. E ela comete suicídio. Este é o modelo de paixão destrutiva por excelência. É como uma ansiedade, ou seja, ela não pode obter o que quer, mas continua desejando, e o desejo é o que a mantém nesse lugar. Ela sofre com o anseio, mas por causa da ânsia também recupera aquele olhar para o amante que é inatingível. Em outubro de 2023, o Instituto Nacional de Estatística e Censos (Indec) da Argentina informou que a inflação de setembro foi de 12,7%, o valor mensal mais alto dos últimos 32 anos. E a taxa acumulada em 12 meses ultrapassou 138%. "O que acredito que acontece com regimes de inflação tão elevados como estes, ao nível da experiência pessoal, é que num momento já não se tem referências, os preços relativos se perdem, já não se sabe o que é caro e o que é barato", afirma o filósofo Eial Moldavsky. "Dois pares de tênis valem o mesmo que um aluguel. E você me pergunta: 'Está errado, está certo?' Não sei, não tenho como te dizer", exemplifica. A ausência de referenciais impede qualquer possibilidade de planejamento, diz Moldavsky. "É muito difícil ter um emprego e saber se, com aquele salário que você negociou em março e que lhe pareceu bom, você vai conseguir passar o ano de forma razoável, pagando aluguel e tendo mais ou menos uma vida normal." No seu Instagram, onde 1,5 milhão de pessoas o seguem, Moldavsky analisa situações do cotidiano e temores existenciais como o medo da rejeição ou o sentimento de culpa, enquanto passa roupa, rega plantas e arruma a casa. No meio do vídeo ele apresenta o pensamento de um filósofo que serve de referência para a compreensão desses problemas. Perguntamos a ele: se o vídeo fosse sobre os argentinos e o dólar, a qual filósofo recorreria? Hannah Arendt e as ilhas num oceano de caos, por Eial Moldavsky É muito difícil, na verdade, saber qual marco teórico se enquadra em algo tão complicado como isso. Entendo que a relação da Argentina com o dólar tem a ver com a dificuldade que o país teve em construir estabilidade e previsibilidade; e bem, o dólar apareceu como uma resposta quase intuitiva. Se quiséssemos traçar um paralelo, pensaríamos em algo como o que a filósofa alemã Hannah Arendt diz sobre o futuro, como um mar completamente infinito, impossível de gerir e de prever. Cheio de indecisões, de coisas que não controlamos, de coisas que não sabemos. E tenta-se criar pequenas ilhas para resistir ao caos que é o futuro imprevisível. O dólar parece ser algo assim, a ilha que os cidadãos argentinos encontraram intuitivamente em momentos de crise. Parece-me que o dólar apareceu como uma reserva de estabilidade no meio de todo esse caos.
2023-11-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgelrdknqwlo
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Vídeo, Massa ou Milei: o que Brasil tem a ganhar ou perder nas eleições argentinasDuration, 7,42
O segundo turno das eleições presidenciais na Argentina será no dia 19 de novembro e vai opor dois candidatos considerados totalmente antagônicos. De um lado o atual ministro da Economia, Sergio Massa, candidato do tradicional grupo peronista de centro-esquerda e que foi o mais votado no primeiro turno - causando surpresa - com 36,68% dos votos. Do outro lado, o economista libertário Javier Milei, que ficou conhecido por propostas polêmicas como extinguir o Banco Central e dolarizar a economia argentina. Apesar de liderar as principais pesquisas de intenção de voto, Milei ficou em segundo, com 29,98%. E de um outro lado da fronteira, no Brasil, o processo eleitoral na Argentina é acompanhado com atenção, tanto por motivos políticos quanto econômicos. O repórter da BBC News Brasil Leandro Prazeres conversou com especialistas para saber quais são os efeitos para o Brasil da eleição no país vizinho.
2023-11-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ckv0gkn84qjo
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A policial que amamentou bebê que não comia há dias após furacão Otis em Acapulco
Pouco depois, a policial de 33 anos, que é mãe de dois filhos, ouviu novamente o choro e decidiu procurar sua origem. Foi quando ela encontrou a mãe de um bebê de quatro meses que precisava de ajuda. A mãe contou que o filho não recebia comida há mais de dois dias e que chorava de fome. "Eu falei que, se ela quisesse, já que estou amamentando, eu poderia dar um pouco a ele", disse a agente à rede N+. A policial tirou o equipamento de segurança e começou a amamentar o bebê faminto, que rapidamente parou de chorar. Fim do Matérias recomendadas "É um sentimento bom. Trata-se de um bebê. Se tem uma coisa que nos machuca como mães é um bebê nessas circunstâncias”, disse Dionício. O gesto foi captado por uma fotografia divulgada no fim de semana pela Secretaria de Segurança Cidadã (SSC) da Cidade do México, que enviou equipes de resgate a Acapulco. As fotos geraram reações emocionadas de apoio nas redes sociais, em meio à tragédia que Acapulco vive após o furacão. Acapulco e municípios vizinhos continuam sofrendo com os estragos da passagem devastadora do furacão Otis, que deixou pelo menos 45 mortos e 47 desaparecidos, segundo dados oficiais divulgados na terça-feira (31/10). Entre as vítimas fatais estão três estrangeiros: um americano, um britânico e um canadense. A busca por vítimas continua desde que Otis atingiu a costa como um furacão de categoria 5 em 25 de outubro. O fenômeno meteorológico passou de tempestade tropical a furacão de categoria em menos de 12 horas, tornando-se um dos mais poderosos no Oceano Pacífico desde o início dos registros. Nos últimos dias, centenas de pessoas que não tinham qualquer tipo de comunicação com as suas famílias foram localizadas e os serviços básicos começaram a ser reparados. O caos tomou conta de alguns bairros dos arredores de Acapulco, com centenas de lojas sendo saqueadas. A situação levou o governo a reforçar a segurança com cerca de 15 mil soldados para conter os distúrbios. Em alguns locais, o acesso a serviços básicos como água, eletricidade e combustível, além de alimentação, ainda é limitado, ampliando as tensões em meio à emergência. Em bairros como Hogar Moderno, moradores formaram guardas de vigilância durante a noite e se organizaram para proteger seus pertences construindo barricadas com chapas de alumínio, pedras e galhos de árvores para impedir a entrada de estranhos. Muitos passam noites sem dormir desde que o furacão destruiu parte de suas casas. Enquanto isso, a Secretaria de Defesa Nacional informou que a Guarda Nacional está restaurando a segurança em Acapulco. Autoridades civis e militares continuam realizando trabalhos de limpeza nas estradas da cidade turística de um milhão de habitantes e trabalhando para restabelecer a oferta de energia elétrica e de água potável. Equipes de resgate de outras áreas do país vieram ajudar a população durante a emergência. Em meio à desolação e ao caos, alguns moradores de Acapulco começaram a enterrar seus mortos, enquanto parentes continuam procurando entes queridos nos escombros. Cientistas vêm alertando para a importância de mudanças nos padrões atmosféricos. Eles ficaram surpresos com a rápida formação e intensificação do Otis, que passou de tempestade tropical a furacão de categoria 5 em menos de 12 horas. Jorge Zavala, diretor do Instituto de Ciências Atmosféricas da Universidade Autônoma do México, disse que todas as previsões falharam, mesmo as do Centro Nacional de Furacões dos Estados Unidos, com sede em Miami. O especialista alertou para estimativas que sugerem que, no futuro, os furacões serão em média mais intensos e associados a chuvas mais intensas. Enquanto os cientistas tentam explicar o fenômeno meteorológico incomum, Zavala destacou alguns dos fatores que influenciaram sua intensificação súbita: a elevada temperatura da superfície do mar, o alto teor de calor acumulado no oceano, as condições particulares do vento e os níveis de humidade.
2023-11-01
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy717729pp0o
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Por que Bolívia rompeu relações diplomáticas com Israel
A decisão foi anunciada pela ministra da Presidência, María Nela Prada, e pelo vice-chanceler das Relações Exteriores, Freddy Mamani. Fim do Matérias recomendadas Desde o ataque do Hamas, Israel iniciou uma campanha de bombardeios em Gaza que matou mais de 8,5 mil pessoas até o momento, segundo autoridades de saúde locais. Embora o objetivo declarado de Israel seja eliminar o Hamas, que governa Gaza desde 2007 e é considerado um grupo terrorista pela União Europeia e pelos Estados Unidos, muitas das vítimas dos bombardeios são mulheres e crianças. O anúncio do rompimento das relações com Israel ocorreu um dia depois de o presidente boliviano Luis Arce ter se reunido com o embaixador da Autoridade Palestina em La Paz, Mahmoud Elalwani. No comunicado desta terça-feira (31/10), os ministros bolivianos defenderam uma declaração de cessar-fogo e anunciaram que o governo Arce enviará ajuda à Gaza. Em declarações oficiais, as autoridades bolivianas não fizeram qualquer menção ao ataque do Hamas a Israel no dia 7 de outubro. O grupo islâmico emitiu na terça-feira (31/10) um comunicado em que saúda a decisão da Bolívia e convida os países árabes que “normalizaram as relações com Israel” a fazerem o mesmo, segundo a agência AFP. A Bolívia restabeleceu relações diplomáticas com Israel durante o governo de Jeanine Añez em 2020, cerca de uma década depois um rompimento anunciado em 2009 por causa de um conflito anterior na Faixa de Gaza. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na noite de terça-feira (31/10), o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, anunciou que fez pedidos de consultas da embaixadora do país em Israel, Margarita Eliana Manjarrez Herrera. Numa mensagem publicada na rede X (o antigo Twitter), o presidente colombiano declarou: “Decidi chamar a nossa embaixadora em Israel para uma consulta. Se Israel não parar o massacre do povo palestino, não poderemos estar lá." Durante as últimas duas décadas e até antes de Petro chegar ao poder, a Colômbia foi considerada um dos principais parceiros de Israel na América Latina. O presidente do Chile, Gabriel Boric, também anunciou nesta terça-feira (31/10) pelas redes sociais que chamaria o embaixador chileno em Israel, Jorge Carvajal, para consultas, “dadas as violações inaceitáveis ​​do Direito Internacional Humanitário que Israel tem cometido na Faixa de Gaza”. "O Chile condena veementemente e observa com grande preocupação estas operações militares — que neste momento implicam punição coletiva à população civil palestina em Gaza — não respeitam as normas fundamentais do Direito Internacional, como demonstram as mais de oito mil vítimas civis, principalmente mulheres e crianças", observou Boric. O Chile é o país do mundo com a maior comunidade de palestinos fora do mundo árabe.
2023-11-01
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cmj5jm85gr3o
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Milei ou Massa: o que Brasil tem a ganhar ou perder nas eleições argentinas?
E de um outro lado da fronteira, no Brasil, o processo eleitoral na Argentina é acompanhado com atenção, tanto por motivos políticos quanto econômicos. Apesar da crise econômica vivida pelo país nos últimos anos, a Argentina ainda é um dos principais parceiros comerciais do Brasil. Fim do Matérias recomendadas Dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) mostram que a Argentina é, há anos, o terceiro maior parceiro comercial do Brasil, atrás apenas dos Estados Unidos (2º) e China (1º). Em 2022, por exemplo, o Brasil exportou US$ 15,3 bilhões em produtos. Isso é o equivalente a 4,5% de todas as exportações brasileiras. No mesmo ano, o Brasil importou US$ 13,09 bilhões, o que gerou um saldo positivo para o Brasil de US$ 2,21 bilhões. Além disso, a Argentina é um dos membros fundadores do Mercosul, junto com Brasil, Uruguai e Paraguai. Diante das incertezas sobre o resultado das eleições no país, especialistas brasileiros e argentinos ouvidos pela BBC News Brasil tentam apontar o que o Brasil teria a ganhar ou a perder no caso de uma vitória tanto de Massa quanto de Milei. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Analistas avaliam que a disputa eleitoral na Argentina tem como pano de fundo um grande tema: a crise econômica vivida pelo país nos últimos anos. A inflação fora de controle, por sua vez, é apontada como um dos elementos responsáveis pela taxa de pobreza no país. De acordo com os dados mais recentes, divulgados em setembro deste ano pelo Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec), vinculado ao governo argentino, 40% da população do país vive em situação de pobreza. Sergio Massa é um político ligado à corrente política peronista, fundada pelo ex-presidente Juan Domingo Perón nos anos 1940. O peronismo é, ainda hoje, considerada a principal força política argentina. Ao longo de sua trajetória, ele chegou a ser próximo da família dos ex-presidentes Néstor e Cristina Kirchner, que também fazem parte do campo peronista. Nos últimos anos, porém, Massa se afastou do chamado "kirchenrismo" e se aproximou do atual presidente Alberto Fernández, também peronista. Em 2022, ele assumiu o comando do Ministério da Economia. Durante as eleições, Massa prometeu combater o avanço da inflação, gerar empregos, usar o estado como uma das forças de indução para o crescimento econômico, obter superávits fiscais (gastar menos recursos públicos do que arrecadar) e implementar políticas de assistência à população mais pobre. No campo da política externa, Massa é visto como alguém próximo ao presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (PT), com quem já se encontrou. Essa proximidade, aliás, já foi alvo de críticas de Milei depois que uma reportagem publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo indicou que o governo brasileiro teria usado sua influência para liberar um empréstimo à Argentina e ajudar a candidatura de Massa. O governo brasileiro, no entanto, negou que tivesse feito isso. Do outro lado da disputa, Javier Milei se apresenta como representante do "anarcocapitalismo", uma filosofia política e econômica que busca reduzir o papel do estado na economia e em outros aspectos da sociedade. Ele defende, por exemplo, que as pessoas poderiam ter o direito de vender seus próprios órgãos. Ele se formou em Economia na Universidade de Belgrano,e fez mestrado no Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social (IDES) e na Universidade Torcuato Di Tella (UTDT). O economista, que teve passagens pela iniciativa privada, ficou famoso nos últimos anos ao defender propostas para resolver a crise econômica do país consideradas "extremas" por analistas. Entre elas, estariam a de dolarizar a economia argentina, de reduzir drasticamente a participação do estado na economia e até mesmo a de extinguir o Banco Central. No campo externo, Milei já fez críticas aos governos da China e do Brasil, dois dos principais parceiros comerciais do país. Durante as eleições de 2022, Milei declarou seu apoio ao então candidato Jair Bolsonaro (PL) e chamou Lula de "presidiário". "Javier Milei aos brasileiros: votem em Bolsonaro e não deixem avançar o presidiário Lula", disse Milei em uma postagem no X, antigo Twitter. Ele também prometeu que, caso vencesse as eleições, não "faria negócios" com a China ou outros países "comunistas". As declarações de Milei sobre como seriam as relações entre Argentina e Brasil caso ele vença as eleições são vistas com ceticismo e preocupação por analistas ouvidos pela BBC News Brasil. Em agosto, Milei disse em entrevista à plataforma Bloomberg Linea que acredita ser necessário "eliminar" o Mercosul. "De fato, acho que temos que eliminar o Mercosul porque é uma união aduaneira defeituosa que prejudica os argentinos de bem. É um comércio administrado por estados para favorecer empresários", disse Milei. Os analistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que é importante não levar ao pé da letra algumas das declarações de Milei e que ele, na presidência, se veria obrigado a adotar alguma dose de pragmatismo. "Todos sabemos que nas campanhas muito polarizadas [...] os candidatos tendem a ir aos extremos. No segundo turno [...] a tendência do candidato passa a ser tentar ir para o centro para capturar os votos necessários para ser eleito. O que se fala na campanha não é necessariamente o que será efetivamente implementado", disse o diretor-presidente da Câmara de Comércio Brasil-Argentina, Federico Servideo, à BBC News Brasil. Para Silvio Campos Neto, economista e sócio da consultoria Tendências, apesar da retórica de Milei, o Brasil pode obter ganhos com a sua eventual vitória nas eleições de novembro. "Um ponto positivo talvez seja a possibilidade deles (argentinos) experimentarem uma mudança nos rumos na condução da economia que, ao longo de várias décadas, na verdade tem seguido uma linha na direção de um uso muito grande de mecanismos de estado para dar impulso econômico", disse Campos Neto à BBC News Brasil. A tese é de que se o receituário de Milei der certo e a Argentina superar a crise econômica, isso poderá ter efeitos positivos na economia brasileira, já que o Brasil é um grande exportador de produtos para o país. "Se a macroeconomia Argentina se estabiliza, o Brasil ganha um mercado importante para as exportações de produtos industrializados. Lembremos que a Argentina é e tem sido o principal destinatário de produtos industrializados exportados pelo Brasil", complementou Federico Servideo. Os especialistas apontam que até mesmo uma das propostas consideradas mais radicais de Milei, a dolarização total da economia argentina, poderia ter efeitos positivos para o Brasil, se implementada com sucesso. Eles ponderam, no entanto, que a medida é complexa e dificilmente poderia ser feita de forma imediata porque, atualmente, a Argentina não teria reservas em dólares em volume suficiente. "Se essa implementação for bem sucedida, isso seria algo bem-vindo porque facilitaria as transações comerciais da Argentina com o resto do mundo, uma vez que ela passaria a utilizar uma moeda mundialmente aceita", disse Silvio Campos Neto. "Se houvesse a dolarização, teríamos só uma cotação (do dólar) e isso facilitaria tremendamente a relação comercial entre os países", disse Federico Servideo. Os analistas, no entanto, avaliam que uma eventual eleição de Milei também poderia resultar em perdas para o Brasil. A maior parte delas, eles ressaltam, seriam no campo político. Eles temem que o desalinhamento ideológico entre Milei, que é de direita, e Lula, de esquerda, possa atrapalhar planos do governo brasileiro. Um dos planos brasileiros que Milei pode atrapalhar seria o ingresso da Argentina nos Brics, grupo inicialmente formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Em agosto deste ano, o grupo anunciou o ingresso de seis novos membros, entre eles a Argentina, em um movimento que teve o Brasil como principal articulador. Em declarações à imprensa, no entanto, Milei e a candidata que ficou em terceiro no primeiro turno, Patrícia Bullrich, disseram que retirariam a Argentina dos Brics caso fossem eleitos. Ela declarou apoio a Milei no segundo turno das eleições. Para o professor de Política da América Latina na Universidade de Buenos Aires Ariel Goldstein, a incorporação da Argentina aos Brics é uma parte central da estratégia do presidente brasileiro para a sua liderança na América do Sul e na América Latina, e, por isso, "Lula também está tão preocupado pelas eleições na Argentina". Outra possível perda do Brasil em uma eventual vitória de Milei é uma demora ou até mesmo a inviabilidade do acordo comercial entre Mercosul e União Europeia, negociado desde 1999. Em 2019, o acordo foi fechado entre os dois blocos, mas ainda precisava passar por um processo de revisão jurídica. Neste ano, o bloco europeu enviou uma carta com exigências na esfera ambiental ao Mercosul que bloquearam o andamento dessa etapa. Como o acordo vem sendo negociado pelos quatro países do Mercosul em conjunto, se Milei retirar a Argentina do bloco, como prometeu, isso poderia ter impactos no seu andamento. "O acordo está com muitas dificuldades [...] Mas é fato é que uma fragilização do Mercosul colocaria em xeque esse acordo. Poderia atrasar ou mesmo eliminar qualquer possibilidade nesse sentido", disse Silvio Campos Neto. "Minha principal preocupação é que esse desalinhamento ideológico prejudique o relacionamento comercial e que, inclusive, possa vir a prejudicar a convalidação do acordo entre Mercosul e União Europeia e isso pode vir a acontecer", disse Federico Servideo. Os analistas consultados pela BBC News Brasil vêem possíveis ganhos econômicos e políticos no caso de uma eventual vitória de Sergio Massa. No campo econômico, as possíveis vantagens para o Brasil seriam: aumento do fluxo comercial entre os dois países (caso Massa estabilize a economia), fortalecimento do Mercosul e apoio para finalizar o acordo comercial entre o bloco e a União Europeia. Para Federico Servideo, o governo Lula estaria apoiando direta ou indiretamente a candidatura de Massa e, caso o peronista vença as eleições, esse apoio seria retribuído. "Esse apoio institucional e político claramente vai permitir um fluxo maior de comércio entre os dois países porque, de alguma forma, o governo do presidente Lula tenderá, obviamente dentro dos limites apropriados, a favorecer a Argentina e dará um certo grau de prioridade a essa relação", disse Servideo. "Até pela proximidade ideológica entre os grupos políticos que hoje comandam o Brasil com o grupo peronista ligado à Massa, isso facilitaria as relações bilaterais e as agendas focadas no âmbito do Mercosul. Um destaque seria a tentativa de avançar as negociações do acordo com a União Europeia", disse Sílvio Campos Neto. O economista diz que a indústria automotiva brasileira seria um dos setores que poderiam se beneficiar com uma eventual vitória de Massa, especialmente se ele estabilizar a política cambial do país. Isso, segundo ele, facilitaria as vendas do Brasil para a Argentina. "Massa, a princípio, representa uma continuidade das políticas que têm sido mantidas nos últimos anos e que geraram boa parte dessas dificuldades. Mas também há expectativa de alguma correção de rumos. É tudo uma questão de ajuste da política cambial [...] Isso favorece alguns setores como o automotivo", disse. No campo político, Federico Servideo diz que Mass poderá retribuir "o apoio direto e indireto que o presidente Lula tem dado à sua candidatura". "E esse agradecimento, imagino, vai se manifestar numa relação cordial ao apoiar o presidente Lula nas suas iniciativas estratégicas e geopolíticas." Entre esses projetos políticos, segundo Ariel Goldstein, estariam o apoio ao aumento da influência dos Brics e a suposta consolidação do projeto liderado pelo Brasil de promover uma maior integração da América do Sul. Um exemplo dessa iniciativa foi uma cúpula de líderes da América do Sul realizada em Brasília, em maio deste ano, a pedido de Lula. Os especialistas dizem, no entanto, que o Brasil também enfrentaria riscos com uma eventual vitória de Massa. Eles afirmam que há desconfiança sobre a capacidade que Massa tem de implementar medidas que retirem a Argentina da crise econômica, uma vez que ele já é o ministro da Economia do país e pertence a um grupo político ao qual é atribuído parte da responsabilidade pelo atual cenário. "Massa representa a continuidade do peronismo. Isso significa a manutenção de um governo e de uma visão econômica que tem sido a principal causa de todo esse quadro de colapso da economia argentina [...] Isso é um risco para a economia brasileira, considerando que a Argentina ainda é um parceiro econômico importante, mesmo que tenha perdido relevância ao longo dos últimos anos", disse Silvio Campos Neto, da Tendências Consultoria. "(Se Massa não tirar a Argentina da crise) o Brasil talvez perca o seu principal parceiro da América do Sul. O Brasil perderia um sócio estratégico para a sua jornada", disse Federico Servideo. Ariel Goldstein indica que uma eventual vitória de Massa não significa que a entrada da Argentina nos Brics poderia ser dada como certa. Pelo contrário. Segundo ele, a suposta proximidade entre Massa e o governo dos Estados Unidos e divergências dentro do peronismo poderiam impedir a adesão da Argentina ao bloco. O argumento é de que, em tese, os Estados Unidos seriam contra o aumento da influência dos Brics, uma vez que o grupo inclui dois rivais geopolíticos do país: Rússia e China. "Ele (Massa) é uma pessoa que diz que é representante dos interesses dos Estados Unidos na Argentina. Isso pode levar a uma tensão dentro da própria estrutura do peronismo, entre aqueles que defendem a incorporação do país aos Brics e aqueles que estão mais alinhados com os Estados Unidos", disse Goldstein. Para Silvio Campos Neto, independente de quem vença as eleições, o ganhador terá um enorme desafio em suas mãos. "Seja qual for o vencedor [...] a economia argentina está sob um risco enorme de um problema muito sério em 2024. Naturalmente, o Brasil e suas empresas, que tem relações com a Argentina, vão sentir esses efeitos. Claro que as agendas dos candidatos são diferentes, mas os dois vão se defrontar com um quadro bastante grave", disse.
2023-10-27
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c97mvpv5vrjo
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As cenas de destruição do furacão que deixou mortos e desaparecidos em balneário no México
Pelo menos 27 pessoas morreram e outras quatro ficaram desaparecidas durante a passagem do furacão Otis pelo estado mexicano de Guerrero, principalmente na cidade de Acapulco. A tempestade de categoria 5 atingiu a icônica área turística com ventos máximos sustentados de 260 km/h e rajadas de até 315 km/h, sendo um dos furacões mais fortes já registrados no Pacífico mexicano. O número de mortes e desaparecimentos foi confirmado por Rosa Icela Rodríguez, Secretária de Segurança e Proteção ao Cidadão do país, durante coletiva de imprensa. Ela afirmou que o setor hoteleiro foi duramente afetado e acrescentou que o sistema de alerta anti-sísmico da cidade também foi danificado. A situação prejudicou o sistema de telefonia, internet e grande parte do serviço elétrico. A tempestade se intensificou em poucas horas, o que reduziu a capacidade de preparo da população. Na zona turística de Acapulco, imagens compartilhadas pelos hóspedes mostraram a intensidade dos ventos da madrugada e os abrigos improvisados ​​nos quartos dos hotéis. David Hall chegou a um hotel para uma conferência de trabalho horas antes do Otis chegar ao continente. Ele disse à BBC que o prédio foi danificado pelo vento e pela chuva. As janelas dos quartos do hotel foram quebradas pela força do vento. o que fez com que objetos voassem para fora. Ele relatou que o prédio “tremeu” como se estivesse ocorrendo um terremoto. “Muitas pessoas estão com medo”, disse ele na quarta-feira. Outros vídeos transmitidos pela televisão local mostraram bairros de Acapulco inundados por rios e córregos que transbordaram. O presidente Andrés Manuel López Obrador disse pela manhã que não tinha relatos de vítimas porque “não há comunicação”. “É um furacão muito forte, de grande intensidade e teve um comportamento atípico. Há décadas não acontecia um furacão com comportamento como este”, disse. À tarde, ele seguiu para Acapulco por via terrestre para coordenar as ações de socorro. O Otis enfraqueceu após entrar no sul do país, mas continuou gerando fortes chuvas. Luisa Peña, uma turista que estava no hotel Princess Mundo Imperial, um dos edifícios altos mais afetados, contou a experiência em um vídeo em suas redes sociais. “Por volta das 11 da noite faltou energia e os ventos estavam com força total, 260 (km/h) ou mais e eu me escondi no armário, comecei a rezar e a tentar me acalmar, embora o pânico tomasse conta de mim”, disse. “Tive sorte, estou viva e nada aconteceu comigo. Aqui eles dizem que ainda não sabem quais são os danos além dos materiais”, acrescentou ela após contar que o teto de seu quarto caiu, as janelas quebraram e a sala foi inundada. Outros vídeos mostraram turistas utilizando camas e colchões como barreiras de proteção em seus quartos. A Comissão Federal de Eletricidade informou que quase 500 mil clientes ficaram sem energia elétrica. Cerca de 800 mil pessoas vivem em Acapulco e é um dos destinos turísticos mexicanos mais movimentados. Numerosos estabelecimentos comerciais da rua central Miguel Alemán sofreram danos nas fachadas e saques após o furacão, informou a rede Televisa. Os postos de gasolina não tinham combustível, dificultando a circulação dos veículos. O governo informou o envio do Exército, da Marinha e da Guarda Nacional. Um comboio que transportava ajuda humanitária deixou a Cidade do México por via terrestre porque o aeroporto de Acapulco também foi afetado. Foram abertos 500 abrigos para a população local. Os furacões atingem o México todos os anos nas costas do Pacífico e do Atlântico, geralmente entre maio e novembro, embora poucos cheguem ao continente como furacões de categoria 5. Ainda esta semana, o furacão Norma deixou três mortos, incluindo uma criança, depois de atingir duas vezes o Pacífico mexicano. E no início de Outubro, duas pessoas morreram quando o furacão Lidia de categoria 4 atingiu os estados de Jalisco e Nayarit. Em Outubro de 1997, o furacão Pauline atingiu a costa do Pacífico do México como uma tempestade de categoria 4, deixando mais de 200 mortos, alguns deles em Acapulco. Foi um dos furacões mais mortais da história moderna do México.
2023-10-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/clm0jd7j34jo
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Eleições na Argentina: vice de Milei propõe rever indenização a vítimas da ditadura
No entanto, para a candidata a vice de Milei, essa política implementada não é correta. Villaruel tem dito que defende “a memória completa”, que, segundo ela, deve considerar que havia "uma guerra" que colocava militares e forças de segurança de um lado e, do outro, guerrilheiros de esquerda a quem chama de "terroristas". Fim do Matérias recomendadas Filha, sobrinha e neta de militares, Vicky, como a chamam seus apoiadores, tem dito que a Argentina “escondeu” sua história. “Nós estamos conseguindo abordar um montão de ideias que eram impensáveis, que eram intocáveis, que não podiam ser questionadas”, disse Villarruel, já na reta final da campanha do primeiro turno, em entrevista à rádio Cadena 3, da província de Córdoba. O discurso de Villarruel é rechaçado por defensores de direitos humanos e ativistas que veem nele negacionismo histórico e falsa simetria ao comparar o uso do Estado para reprimir e matar inimigos políticos durante a ditadura e atividades guerrilheiras no período. Analistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que a proposta de reparação para vítimas de atos guerrilheiros é legítima, mas também dizem ver no discurso uma “defesa implícita” da ditadura e “um risco de retrocesso” na política de direitos humanos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Villarruel decidiu criar em 2006 sua ONG para atender vítimas de atos dos grupos armados de esquerda nos anos 70. Na época, o governo de Néstor Kirchner tinha como bandeira a defesa da reabertura das investigações sobre os crimes cometidos durante a ditadura militar. A vice de Milei seguiu sem participação direta na política partidária até se juntar a seu companheiro de chapa. Victoria Villarruel só começou a ficar conhecida nacionalmente ao ser empossada como deputada federal em dezembro de 2021. “Pelas vítimas do terrorismo”, disse ela, ao microfone, na cerimônia de posse no Congresso Nacional. A declaração gerou críticas abertas do atual governo do presidente Alberto Fernández e de sua vice-presidente, a ex-mandatária Cristina Kirchner. “Ela [Victoria Villarruel] reinvindica o terrorismo de Estado e nega a ditadura militar. E, nós, argentinos, temos um pacto forte contra a ditadura”, disse, na ocasião, o ministro da Defesa, Jorge Taiana. Naquele dezembro de 2021, Victoria Villarruel e Javier Milei inauguravam a pequena bancada da A Liberdade Avança (LLA), movimento pelo qual agora disputam a presidência após um crescimento meteórico. Para a analista de opinião pública da consultoria Tres Punto Zero e professora da Universidade de Buenos Aires Shila Vilker, Villarruel e Milei conseguiram colocar como tema na campanha presidencial a memória da ditadura e a violência política da década de setenta. “Foi um assunto que apareceu de forma inesperada na campanha", afirma ela. "Fico com a impressão que, por trás da demanda legítima por parte das vítimas das organizações armadas, isso signifique uma defesa implícita da ditadura”, diz Vilker. Esta defesa, afirma a analista, não poderia ser feita “de forma explícita” porque na Argentina existe um “consenso social, acadêmico e judicial em relação ao que foi o terrorismo de Estado, dos crimes contra a humanidade, da história argentina”. Para ela, a conjunção entre o desinteresse pela democracia entre parte dos mais jovens, a crise econômica e os discursos da A Liberdade Avança podem ser “um risco de retrocesso” para a política de direitos humanos e para a condendação da ditadura. “Entre os que têm 16 e 21 anos, seis de cada dez valorizam a democracia. Uma maioria, sem dúvida. Mas existem quatro de cada dez que não têm opinião formada, ou não estão interessados ou dizem ter questões mais urgentes, como a economia”, disse ela. Autor de uma série de livros sobre os anos setenta na Argentina, o jornalista Ceferino Reato descreve Villarruel como uma advogada “muito conservadora, católica, com moral de ultradireita". Ele diz que ela sempre trabalhou em nome das vítimas dos grupos armados de esquerda e que só passou a ganhar espaço nos meios de comunicação a partir do seu vínculo com Milei. “Acho que ela se espelha nas próprias organizações de direitos humanos que defendem as vítimas dos militares e da repressão, da ditadura", afirma Reato, cujo livro mais recente se chama Masacre en el Comedor ("Massacre no refeitório", em tradução livre), que relata um atentado a bomba do grupo do guerrilheiro Montonero, cem dias após o inicio da ditadura. "Ela já disse, por exemplo, que quer implementar leis para indenizar as vítimas da guerrilha e para criar um monumento que as recorde. Se vai conseguir ou não, não sabemos”, seguiu. Villarruel afirma que "existem 1.094 vítimas do terrorismo dos anos setenta" que "jamais foram reconhecidas pelo Estado”. De acordo com Reato, que conhece o tema por causa das pesquisas e entrevistas que realizou para seus livros, os familiares destes mortos “nunca receberam nenhuma indenização”. No portal oficial Registro Unificado de Vítimas do Terrorismo de Estado (Ruvte) informa-se, por sua vez, que o programa reúne e atualiza dados sobre “as vítimas da repressão ilegal do Estado argentino”, sem referência às vítimas da guerrilha. Procurada pela BBC News Brasil, Villarruel não atendeu aos pedidos de entrevista. A reportagem também buscou sem sucesso a legisladora Lucía Elena Montenegro, que é aliada de Villarruel na Legislatura de Buenos Aires. Villarruel tem sido questionada por ter ido visitar o ex-ditador Jorge Videla na cadeia, antes de sua morte em 2013. Em resposta, ela diz que foi entrevistá-lo para seus livros históricos sobre os anos 70. A vice de Milei não nega que foram cometidos crimes durante a ditadura. Quando perguntada em uma entrevista ao canal La Nación+ se negava o que aconteceu durante a ditadura militar, a vice de Milei respondeu: “Não”. E quando questionada se houve crimes contra os direitos humanos na ditadura, respondeu: “Sim”. Mas ela tem repetido que, se chegar ao poder, impulsionará uma revisão nas indenizações concedidas pelo Estado às vítimas que foram alvo da repressão do Estado. A advogada não fala em números, mas em seus discursos cita que guerrilheiros mortos "em combate" ou militantes que ela disse que se mataram na cadeia em lealdade a seus movimentos não deveriam receber dinheiro do Estado. As ideias de Villarruel também ecoam nas falas do líder da chapa. Em um dos debates presidenciais, há três semanas, Javier Milei questionou a quantidade de vítimas sequestradas ("desaparecidos") pela repressão organizada pela ditadura. “Estamos absolutamente contra uma visão torta da história. Na nossa opinião, houve uma guerra nos anos 70 e, naquela guerra, as forças do Estado cometeram excessos, mas também os terroristas dos Montoneros e do ERP mataram gente, colocaram bombas e cometeram crimes contra a humanidade”, disse o candidato libertário. “Não foram 30 mil desaparecidos. Foram 8.753”, disse em outro momento. "São 30 mil. Nunca mais. Nunca mais", rebateu, depois, o ativista de direitos humanos Adolfo Pérez Esquivel, usando a frase que simboliza o repúdio à ditadura. Esquivel ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1980 por denunciar as violações de direitos humanos cometidas por regimes militares no continente. O questionamento da magnitude da repressão e do número de 30 mil vítimas, usado oficialmente pelo kirchnerismo e pelas organizações de direitos humanos como as Mães e Avós da Praça de Maio, não é um debate inédito na Argentina. Em setembro de 1984, menos de um ano após o retorno da democracia, o então presidente Raúl Alfonsín recebeu do escritor Ernesto Sabato o relatório da Comissão Nacional do Desaparecimento de Pessoas (Conadep), que documentou 8.961 pessoas desaparecidas durante o regime militar, de acordo com informações disponíveis da época. A lista nunca foi considerada final, de acordo com historiadores e ativistas, que afirmam que há outros documentos e testemunhos que falam de um número maior de vítimas. Um desses documentos é um relatório militar argentino enviado aos aliados da ditadura de Augusto Pinochet em 1978, que fala em ao menos 22 mil vítimas. O documento foi obtido pelo jornalista John Dinges e aparece em seu livro Os anos do Condor (Companhia das Letras), que relata a aliança das ditaduras do Cone Sul para a repressão. O jornalista e escritor Ceferino Reato diz que o número de 30 mil é "uma bandeira, um número simbólico, um mito". "O massacre foi de tal magnitude que fica completamente refletido com o número de 7.300 vítimas", diz Reato que, em seus trabalhos, utiliza o número oficial do Registro Único de Vítimas do Terrorismo de Estado (Ruvte), criado com um ampla equipe na época do governo da ex-presidente Cristina Kirchner. Em sua contabilidade feita a partir do Ruvte, o escritor cita um total de 7.300 vítimas. “O registro é atualizado permanentemente. São dados oficiais. Os últimos são de 2015. É impensável pensar em 22 mil ou 23 mil pessoas desaparecidas sem que seus familiares os esteja buscando”, afirma Reato. “Seja 30 mil ou 8 mil...O que houve foi uma barbárie”, disse a ex-senadora Graciela Fernández Meijide, que integrou a Conadep e é mãe de Pablo, jovem que integra a lista de desaparecidos. A presidente da entidade Avós da Praça de Maio, Estela de Carlotto, repudiou as declarações de Milei e ratificou o total de 30 mil desaparecidos. “Ele deu um número com tanta certeza [no debate] que parecia até que sabia o nome de cada um dos desparecidos”, disse Carlotto. Villaruel não ficará circunscrita à reivindicação das vítimas de grupos armados de esqueda, caso vença ao lado de Milei. O presidenciável argentino já disse que pretende colocar sob responsabilidade de sua vice as áreas de Defesa, Segurança e Inteligência. Ou seja, em um suposto governo Milei, a parlamentar responderia pelas áreas das Forças Armadas e de segurança pública, algo que seria novidade no país, segundo especialistas. Quando perguntado, sobre a possibilidade da liberação do uso de armas de fogo, Milei responde que esta será uma responsabilidade direta de Villaruel. A vice, por sua vez, diz que a legislação deve ser respeitada e rebate a acusação dos adversários de que facilitará a chegada de armas às escolas. “A gestão de segurança dos últimos vinte anos fez um esforço enorme para demonizar os que usam uniforme e têm a função, por parte do Estado, de proteger os cidadãos, seus bens e sua liberdade”, disse Villarruel, em uma entrevista ao jornal El Tribuno, da província de Salta, na reta final antes do primeiro turno. Para a analista Shila Vilker, todo o discurso busca captar o voto da “família militar”. Neste terreno, a dupla disputava a preferência do grupo com a candidata da direita mais tradicional Patricia Bullrich, que costuma defender e elogiar as forças de segurança pública e ficou em terceiro lugar no primeiro turno neste domingo, com pouco mais de 23% dos votos. Nos debates, Milei chamou Bullrich de “montonera assassina”, pelo fato de ela ter sido guerrilheira nos anos 70. Bullrich negou acusação que ele lhe fez de ter colocado bombas "em jardins de infância" e anunciou que entraria na Justiça contra ele. O candidato também disse, em uma entrevista durante a campanha do primeiro turno, que revisaria a suposta indenização que Bullrich receberia do Estado, referente aos anos 1970, e a chamou de “terrorista”. Mesmo depois do duro ataque, Milei acenou a Patricia Bullrich nesta segunda-feira (23/10), convidando-a a apoiá-lo. Uma das chaves de definição do segundo turno é medir o quanto efetiva será essa aproximação e quanto de transferência de voto ela vai garantir. Nesta quarta-feira, três dias após a derrota, Bullrich declarou apoio ao libertário. “Milei conseguiu capitalizar melhor do que nós o voto, dos mais jovens principalmente. E nossa proposta é pela mudança, o que ele (Milei) passou a representar. Há 20 anos, o kirchnerismo mergulhou a Argentina na decadência e é por isso que defendemos a mudança”, disse a candidata.
2023-10-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cekm45e3rypo
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A vida e carreira de Javier Milei, o anarcocapitalista que promete abalar o sistema com mudanças radicais na Argentina
Javier Milei — O Leão, O Rei, O Louco, o Rara Avis —, líder do Movimento Liberdade Avante, o homem que prometeu revolucionar tudo para transformar a Argentina novamente em uma potência global, avançou no domingo (22/10) para o segundo turno das eleições presidenciais após obter 30% dos votos. Milei, que esperava vencer no primeiro turno depois de surpreender e vencer as primárias em agosto, competirá em 19 de novembro com o Ministro da Economia, Sergio Massa, que obteve 36% dos votos. Os analistas preveem uma disputa no segundo turno sobre o papel que o Estado deve desempenhar na vida dos argentinos. Mais de seis milhões de pessoas apoiaram as propostas que Milei descreve como "libertárias" e "anarco-capitalistas", incluindo a dolarização da economia através de uma "competição livre de moedas", a eliminação do Banco Central e a drástica redução do tamanho do Estado, através da eliminação de ministérios, obras públicas e privatização de empresas estatais. Se Milei vencer no segundo turno, ele se tornará o primeiro economista a chegar à Casa Rosada, um fato significativo em um país que já foi um dos mais ricos do mundo, mas que há anos sofre com uma inflação anual de 140% e com 40% da população abaixo da linha de pobreza. Fim do Matérias recomendadas Em contraste com Massa, Milei afirma que gastará menos, não mais. Ele também promete combater o que chama de "casta política". De fato, o desgaste com a política tradicional e a falta de alternativas parecem ter trabalhado a seu favor. "Ele consegue captar o cansaço dos ricos, dos pobres, dos de classe média, dos jovens, dos adultos, o cansaço de todos", disse Juan Carlos de Pablo, economista da Universidade de San Andrés e amigo de Milei há mais de 30 anos, à BBC Mundo. "Milei sabe conectar 'do lado exótico' com o cansaço da sociedade argentina, que prefere mandar tudo às favas a continuar vivendo como vive agora", disse Juan Negri, diretor da carreira de Ciência Política e Governo da Universidade Torcuato Di Tella. Mas quais são os marcos na vida e carreira de Javier Milei? Javier Gerardo Milei nasceu em 22 de outubro de 1970 na cidade de Buenos Aires e cresceu no bairro de Villa Devoto em uma família de classe média. Seu pai, Norberto Horacio Milei, de 78 anos, passou a vida trabalhando em ônibus, primeiro como motorista e depois como proprietário de sete linhas de transporte. Sua mãe, Alicia Luján Lucich, de 73 anos, é dona de casa. Ele descreve sua infância como reservada, dividindo seu tempo entre os estudos e o esporte. O apelido de "O Louco" foi dado a ele quando frequentava a escola Cardenal Copello, um sinal de que naquela época seu tom, palavras e imagem eram únicos entre seus colegas. Ele chegou a jogar como goleiro no Club Atlético Chacarita Juniors, da segunda divisão do futebol argentino, uma posição que, em suas próprias palavras, melhor refletia seu caráter singular. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No entanto, como ele mesmo contou, o que realmente marcou sua infância foi a violência. Tanto que, desde 2010, ele não tem mais contato com o que ele prefere chamar de seus "progenitores". Milei lembra que, em 2 de abril de 1982, enquanto assistia pela televisão o presidente de fato Leopoldo Galtieri anunciar o desembarque de tropas argentinas nas Ilhas Malvinas/Falklands, sob controle do Reino Unido, o que marcou o início de uma guerra que tirou a vida de 655 combatentes argentinos e 255 militares britânicos, ele tinha apenas 11 anos e disse a seu pai que a decisão do governo militar lhe parecia um "delírio" devido à desigualdade de forças entre os exércitos. "Meu pai teve um acesso de fúria. Ele começou a me bater. Ele me chutou pela cozinha", lembrou Milei em uma entrevista ao jornalista Agustín Gallardo cinco anos atrás. "Quando cresci, ele parou de me bater e passou a infligir violência psicológica", contou. "Ele sempre me disse que eu era lixo, que eu iria morrer de fome, que eu seria inútil." Mas, na perspectiva de Milei, o abuso físico e psicológico que ele sofreu na infância e juventude, em vez de enfraquecê-lo, o fortaleceu. "Isso fez com que agora eu não tenha medo de nada", afirma. Mas "O Leão", como seus seguidores o chamam devido a sua juba — um apelido que muitos aproveitaram vendendo camisetas com sua figura —, não cresceu sozinho. Karina Milei, sua única irmã, um ano e meio mais nova do que ele, desempenha um papel central em sua vida. Apelidada no masculino como "O Chefe", Karina tem sido peça fundamental na formação política que o levou à presidência. Milei reconhece que "sem ela, nada disso teria acontecido". Milei comparou o vínculo deles com o do profeta mais importante do judaísmo, Moisés, e seu irmão Aarão: "Moisés era um grande líder, mas não um grande divulgador. Deus enviou Aarão para que ele se comunicasse. Eu sou para a Kari o que Aarão é para Moisés". Milei, que se considera católico, mencionou a possibilidade de se converter ao judaísmo e expressou críticas severas ao Papa Francisco, a quem chamou de "representante do maligno na Terra" e que "tem afinidade com comunistas assassinos". Embora tenha amenizado seu discurso, como fez em outras ocasiões, as críticas ao Papa estão alinhadas com a rejeição contundente que ele demonstrou ao comunismo e socialismo, afirmando que isso o coloca em sintonia com outros líderes de extrema-direita, como o brasileiro Jair Bolsonaro, o chileno José Antonio Kast e o partido espanhol Vox. Na imprensa, Milei tem sido comparado várias vezes ao presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. "Minha afinidade com Trump e Bolsonaro é quase natural", disse em relação ao líder norte-americano e ao ex-presidente do Brasil. Caso seja eleito presidente, já afirmou que se distanciará da China, país que investiu consideravelmente na Argentina nos últimos anos, e do Brasil, já que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva é de esquerda. "Se eu for eleito presidente, meus aliados serão os Estados Unidos e Israel", declarou com firmeza. Sobre sua vida pessoal, sabe-se que ele é um amante do rock e liderou a banda "Everest", dedicada a fazer versões das músicas dos "The Rolling Stones". Milei mantém seu estilo roqueiro, com jaqueta de couro e longas madeixas, embora também tenha revelado ser um apaixonado por ópera. Ele também fala repetidamente de seu amor por seus cães, chamados Conan, Murray, Milton, Robert e Lucas, nomeados em homenagem aos economistas liberais Murray Rothbard, Milton Friedman e Robert Lucas. "Agradeço a vitória aos meus filhotes de quatro patas", disse após vencer as primárias de agosto, referindo-se aos seus cinco mastins, cópias genéticas de um cão chamado Conan, criados em um laboratório no norte do Estado de Nova York. Ele não tem filhos e nunca conviveu com um parceiro ou parceira. As únicas namoradas conhecidas são personalidades famosas no mundo do entretenimento: a cantora Daniela Pérez e a humorista Fátima Flórez, com quem anunciou um relacionamento algumas semanas após sua vitória nas primárias de agosto passado. De acordo com relatos da imprensa, foi ela quem o apelidou de "O Rei", em referência ao leão. A primeira vez que Javier Milei votou para presidente foi em 1989. Naquele ano, ele não escolheu o peronista Carlos Menem, que acabou vencendo, nem o representante do governo, o radical de centro-direita Eduardo Angeloz. Naquelas eleições, ele se inclinou pelo político, militar e economista Álvaro Alsogaray, que na década de 1950 foi ministro da Indústria no governo de facto de Pedro Eugenio Aramburu e é reconhecido como o principal defensor do liberalismo na Argentina na segunda metade do século 20. Com o passar dos anos, no entanto, Milei esclareceu que as ideias de Alsogaray não refletem com precisão suas preferências políticas. Ele prefere se identificar como anarco-capitalista, uma corrente que busca minimizar o papel do Estado na economia, ou, como ele mesmo colocou, "um 'não-Estado'". É uma proposta radical e complexa, que seus críticos alertam que pode funcionar bem como discurso, mas que pode se tornar um problema na prática diante da eventual perda de empregos públicos e de programas de assistência social dos quais depende uma boa parte da população. Na Argentina, as universidades são gratuitas há quase um século, o sistema de saúde pública é robusto, e o emprego no setor público, acima da média regional, representa 18% dos trabalhadores empregados. No entanto, embora ele repita isso e o caracterize tanto, Milei nem sempre foi um "anarco-capitalista". Nos primeiros anos de sua carreira como estudante de Economia na Universidade de Belgrano, assim como durante as mestrados que realizou no Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social (IDES) e na Universidade Torcuato Di Tella (UTDT), ele se considerava um liberal clássico. "Naquela época, ele era um economista matemático, um neoclássico tradicional, com uma atração especial por matemática", lembra Stefanoni, que se dedicou nos últimos anos ao estudo do movimento libertário na Argentina e cursou Microeconomia na Universidade de Buenos Aires com Milei como professor. Foi somente em 2014 que Milei aderiu ao mundo da Escola Austríaca, graças à leitura do libertário Murray Rothbard, um economista americano reconhecido por unir ideias libertárias à extrema direita e dar forma ao chamado "paleo-libertarismo". "Milei adota ideias de um libertarianismo de extrema direita e tenta aplicá-las na Argentina, algo sem precedentes neste país", diz Stefanoni. Para o economista Juan Carlos de Pablo — que acredita que essas ideias têm aspectos excelentes e outros muito ruins, como a crença de que não há falhas de mercado — Milei adotou a Escola Austríaca "de forma extrema, mais como um catecismo do que como um pensamento". O mesmo pode ser dito do liberalismo com o qual frequentemente explica suas decisões. Um diálogo que exemplifica claramente a liberdade que ele defende é aquele que ele teve no canal TN, depois que seu partido votou contra uma lei para expandir o programa de combate a doenças cardíacas congênitas, uma das principais causas de mortalidade em recém-nascidos. Quando perguntado sobre a razão da recusa, ele respondeu: "Isso implica mais intervenção do Estado na vida dos indivíduos e mais gastos. Isso não funciona assim. Nós votamos com base nos princípios liberais". No mesmo contexto, há algumas das posições que mais preocupam aqueles que o consideram um salto no escuro, como sua oposição ao aborto e ao feminismo, sua defesa do porte de armas e da venda de órgãos, e a ambiguidade com que ele se referiu até mesmo ao tráfico de bebês. Embora Milei tenha ocupado seu primeiro cargo público apenas em 2021, quando foi eleito deputado pela capital, ele já havia incursionado no âmbito público como divulgador das ideias libertárias. Foi no início dos anos 2000 que ele se aproximou dos meios de comunicação e em 2015 começou a aparecer com mais frequência. O jornalista argentino Roberto García, um dos primeiros a convidá-lo para um programa de televisão, notou que ele era um homem que "dizia coisas diferentes dos outros economistas". Na época, que era diretor de redação do jornal Ámbito Financiero, o convidou para falar sobre seus relatórios econômicos, mas rapidamente percebeu que Milei tinha a habilidade de manter a audiência atenta devido ao seu tom fervoroso. "Milei é um rara avis", diz García à BBC Mundo e afirma que há 15 anos ninguém poderia imaginar que algumas das propostas de Milei poderiam ser aceitas pela sociedade argentina. Foi nesse contexto que ele começou a promover o que chamou de "batalha cultural", na qual introduziu questionamentos que raramente eram ouvidos até então, como a possibilidade de dolarização ou críticas ao consenso alcançado em relação aos direitos humanos após o governo militar dos anos 70 e 80. "Os esquerdistas estão perdendo a batalha cultural. Enquanto continuarem repetindo suas mentiras, nós, os liberais, continuaremos defendendo nossas verdades. Venceremos porque somos moralmente superiores", disse Milei em 2018. Na televisão, ele construiu uma imagem que soube se conectar com a ansiedade econômica dos argentinos que querem mudanças e se identificam com ele. "Milei criou um personagem para a televisão. Muitas vezes eu disse a ele para ter cuidado, para não enlouquecer fazendo-se de louco", confidencia seu amigo Juan Carlos de Pablo, com quem Milei trocava opiniões sobre o pensamento econômico e alguns discos de ópera. "Não é a primeira vez que o personagem devora a pessoa", indica. Estabelecido como figura nos meios de comunicação, chegou a vez do que ele chamou de "batalha política", que começou há dois anos com a fundação do partido La Libertad Avanza, com o qual disputou as eleições legislativas de 2021 e superou as melhores expectativas ao obter 17% dos votos na cidade de Buenos Aires. Além dos corredores das universidades e dos estúdios de TV, ele passou pela Corporación América, um grupo do poderoso empresário Eduardo Eurnekian, que administra os principais aeroportos da Argentina e da América Latina, onde ocupou o cargo de Economista-Chefe até o dia anterior à sua posse como deputado em 2021. Dois anos depois, Milei conseguiu chegar ao segundo lugar na corrida presidencial, tendo ocupado apenas um cargo público, com um partido novo e diversificado, que não conta com governadores regionais. A primeira questão que se coloca em uma eventual presidência, se ele vencer em 19 de novembro, é até que ponto suas ideias radicais poderão ser realmente aplicadas a partir de um Estado que ele considerou seu principal "inimigo" e em um ambiente que ele conhece pouco porque despreza. Para o segundo turno, ele precisará ampliar sua base de eleitores e satisfazer um eleitorado diversificado, com expectativas muito diversas e urgentes. Se Milei conseguir chegar à presidência, iniciará o verdadeiro teste para El Rey, El León, El Loco, o Rara Avis, o homem que expressou sua fúria contra o que ele se tornará a partir desse dia: o líder do governo e do Estado argentino. "Por meses me chamaram de louco por propor um caminho diferente para nosso país. A loucura é continuar fazendo a mesma coisa e esperar resultados diferentes", disse durante a campanha. Em 19 de novembro, saberemos o quanto sua proposta de ruptura realmente impactou a Argentina.
2023-10-24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgl3pv8j48do
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Massa x Milei: 3 fatores que determinarão quem será o novo presidente da Argentina
Sergio Massa, ministro e porta-voz do peronismo, foi o candidato presidencial mais votado no domingo (22/10) contra todas as previsões, com cerca de 36,7% dos votos segundo resultados oficiais, com quase todas as urnas contabilizadas. Sem votos suficientes para ser eleito no primeiro turno, Massa terá que enfrentar no segundo turno, em 19 de novembro, Javier Milei, um economista que irrompeu na política com um discurso antissistema e alcançou quase 30% dos votos. O desfecho dessa disputa ainda é incerto e pelo menos três fatores definirão quem sucederá Alberto Fernández como presidente da Argentina. Veja a seguir: Fim do Matérias recomendadas Os 23,8% dos votos recebidos por Patricia Bullrich, candidata de uma coligação de centro-direita que ficou em terceiro lugar, são fundamentais para a conquista da Casa Rosada. Tanto Massa quanto Milei começaram, já na noite de domingo, a mandar mensagens para atrair eleitores que optaram por Bullrich e por outros candidatos. “Farei de tudo nos próximos 30 dias para ganhar a sua confiança”, disse Massa, prometendo convocar “um governo de unidade nacional”. “Dois terços dos argentinos votaram pela mudança”, calculou Milei, acrescentando que está disposto “a embaralhar e dar novamente as cartas para acabar com o kirchnerismo (ala do peronismo liderada por Cristina Fernández de Kirchner, atual vice-presidente)." Diferentes especialistas apontaram antes do primeiro turno que, num cenário como esse, os eleitores de Bullrich se voltariam mais para Milei do que para Massa. O ex-ministro da Segurança do governo Mauricio Macri (2015-2019) representa uma coalizão construída como a antítese do peronismo no poder. Bullrich deixou clara sua opinião sobre Massa na noite de domingo. “O populismo empobreceu o país e não sou eu que vou felicitar o regresso ao poder de alguém que fez parte do pior governo da história argentina”, disse. Mas ela não apoiou expressamente Milei. Na campanha, a candidata defendeu medidas de livre mercado mais próximas das dos libertários do que das de Massa, incluindo cortes de gastos para equilibrar as contas fiscais. No entanto, também existem diferenças importantes entre Milei, que quer dolarizar a economia e eliminar o Banco Central, e Bullrich, que propôs mudanças mais comedidas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As discrepâncias chegam ao nível político, como se viu nos debates entre os candidatos, quando Bullrich acusou Milei de encher suas listas com “chorros” (ladrões) de outros setores. Mesmo na hipótese de que estas diferenças sejam resolvidas e Bullrich ou Macri apoiem Milei, restaria ver quantos de seus seguidores obedeceriam ao chamado, e quantos optariam por Massa. “Não acho que todos (os votos em) Patricia Bullrich irão para Milei, porque Milei é como é”, disse Orlando D'Adamo, especialista argentino em opinião pública e psicologia política, à BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC. Os eleitores de outros dois candidatos presidenciais também poderão ser decisivos no segundo turno: o governador de Córdoba, Juan Schiaretti (6,8%), e a esquerdista Myriam Bregman (2,7%). Para vencer, Massa teria que somar pelo menos 10 pontos percentuais aos quase 24 que Bullrich teve e a maioria dos votos de Schiaretti, um peronista dissidente, calcula D'Adamo. “O peronismo está vivo”, ressalta. “Ele recuperou o poder de seu aparato partidário, o que foi especialmente perceptível no interior da Argentina.” Milei alcançou a sua vertiginosa ascensão eleitoral em apenas dois anos com uma mensagem agressiva contra o que chama de “casta política parasitária” do país, atraindo eleitores irritados com a classe dominante. Esse discurso anti-establishment e algumas de suas posições renderam a Milei comparações com o ex-presidente brasileiro de extrema direita Jair Bolsonaro ou com o americano Donald Trump, a quem ele diz admirar. “Milei representa na Argentina uma versão local de um fenômeno global, que alguns chamam de direita populista”, disse o analista político argentino Rosendo Fraga à BBC Mundo. No entanto, o libertário passou de candidato mais votado nas primárias de agosto e favorito nas pesquisas para um inesperado segundo lugar no domingo. Alguns estimam que as declarações controversas de Milei sobre o valor do peso e do dólar, bem como suas ideias de eliminar os subsídios ao gás e à eletricidade ou refazer os sistemas públicos de saúde e educação, podem ter custado votos. “Se nas primárias a raiva contra a classe dominante foi canalizada para o voto a favor dele, nesta eleição apareceu o medo de como poderia ficar o país se governado por alguém como Milei. E entre a raiva e o medo, o medo prevaleceu”, diz D’Adamo. Para vencer o segundo turno, Milei precisaria então convencer muitos que o veem com relutância e construir pontes com alguns dos políticos que ele insultou, algo que ele começou a fazer já na noite de domingo. “Além das diferenças, temos que compreender que temos diante de nós uma organização criminosa”, disse, atacando em particular o setor da vice-presidente Cristina Fernández de Kirchner. Na contrapartida, Massa já procura emergir como o candidato da segurança. “Meu compromisso é construir regras claras diante da incerteza”, disse ele aos seus seguidores. A Argentina realiza estas eleições em meio a uma das piores crises econômicas e sociais das últimas décadas, com 40% da sua população abaixo do limiar da pobreza e uma inflação anual de 138% em setembro, segundo dados oficiais. Portanto, pode surpreender que o ministro da Economia tenha sido o candidato presidencial mais votado no domingo. “Massa é um político com inúmeras falhas”, diz D’Adamo, “mas tem uma virtude que é muito típica dos políticos que se tornam bem-sucedidos: é tremendamente ousado. Não é qualquer um que tem coragem de ser candidato neste contexto”. Antes das eleições, o ministro anunciou uma série de medidas para aliviar o bolso dos contribuintes, como cortes no imposto sobre o rendimento dos trabalhadores e benefícios para centenas de milhares de pequenas e médias empresas endividadas. Seus críticos apontaram isto como ações demagógicas que irão complicar ainda mais a economia após as eleições. Até Bullrich falou no domingo sobre “o que fizeram recentemente, distribuindo dinheiro (e) endividando ainda mais o país”. A questão agora é se antes do segundo turno Massa irá dobrar a aposta com novos anúncios. A evolução da cotação do dólar também poderá ser fundamental. O governo procurou mantê-la sob controle antes do primeiro turno devido a seu impacto na inflação. Se Massa conseguir manter uma sensação de estabilidade e otimismo apesar da crise econômica, é possível que suas chances de ser presidente aumentem. Caso contrário, Milei poderia mais uma vez tirar vantagem da agitação popular.
2023-10-23
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2q32dp2rw5o
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Venezuela: saiba quem é María Corina Machado, escolhida para desafiar Maduro em 2024 mas que não pode concorrer
“Sugiro que ganhe as primárias”, disse Hugo Chávez a María Corina Machado em janeiro de 2011, durante um discurso em que ela, então uma congressista de 44 anos, questionou o presidente. “Está fora do ranking para discutir comigo (…) Águias não caçam moscas”, acrescentou o já falecido presidente. No domingo, 12 anos após a famosa resposta de Chávez, Machado venceu por ampla margem as eleições primárias da oposição venezuelana tornando-se pela primeira vez líder do movimento de oposição ao chavismo, liderado por Nicolás Maduro desde 2013. Os primeiros resultados deram-lhe uma enorme vantagem de 93% com pouco mais de um quarto dos votos analisados. Dezenas de milhares de venezuelanos que vivem no exterior, que por anos ficaram excluídos do processo eleitoral, desta vez participaram das primárias da oposição. E a participação de quase um milhão e meio de eleitores superou as expectativas. Fim do Matérias recomendadas As eleições foram realizadas sem apoio estatal, com censura aos meios de comunicação locais e obstáculos logísticos, técnicos e orçamentários. O anúncio do resultado atrasou devido a um “bloqueio” na conexão, e uma parte da oposição chegou a pedir que as eleições fossem canceladas ou ignoradas. Os organizadores consideraram as eleições um “sucesso”, no entanto, pois mostraram a vitalidade do eleitorado de oposição e a vontade de muitos venezuelanos de participar de um processo democrático. A questão, no entanto, é que Machado está impossibilitada de concorrer a cargos públicos, a unidade da oposição é frágil e a vontade do governo de Nicolás Maduro – e das Forças Armadas – continua a ser a mais importante variável na equação política venezuelana. As primárias acontecem num momento crucial, e não por acaso: na semana passada, negociações entre a oposição e o chavismo levaram à libertação de cinco presos políticos e no estabelecimento de um calendário eleitoral para as eleições presidenciais de 2024. Em troca, foram levantadas algumas sanções financeiras que impediam o governo venezuelano de receber receitas provenientes da venda de petróleo, principal fonte de recursos do país. O acordo assinado em Barbados na semana passada é válido por seis meses, mas pode ser desfeito a qualquer momento. A luta pela liderança e a estratégia a seguir dentro da oposição promete, entretanto, gerar atritos e desafios. A vitória de Machado é, assim, apenas o primeiro avanço num processo que, como sempre na política venezuelana, promete ser, como diz o coloquialismo venezuelano, “pelúo”, ou seja, difícil de resolver. María Corina Machado Parisca tem 56 anos e três filhos. Ela é a mais velha de quatro irmãs em uma família liderada por um renomado empresário do setor metalúrgico que teve suas empresas expropriadas por Chávez. Sua mãe é uma renomada psicóloga e tenista. Engenheira industrial com especialização em finanças, Machado trabalhou em diversas empresas do setor industrial antes de passar a atuar em organizações de combate à pobreza e de fiscalização eleitoral. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Aproximou-se do Partido Republicano dos Estados Unidos, ligação que a levou à Casa Branca, onde se encontrou com o presidente George W. Bush para falar sobre a situação venezuelana, que despertava crescente interesse na época devido à proximidade de Chávez com Fidel Castro. Pelo chavismo, sempre foi vista como colaboradora do “golpe imperialista”. Ela foi acusada de receber ilegalmente dinheiro de fundações americanas, o que lhe rendeu a proibição de sair do país por três anos. Em 2010, no entanto, ela chegou à Assembleia Nacional como deputada independente e com um discurso anticomunista e crítico às expropriações. Foi nesse período, em 2012, que disputou as primárias da oposição, perdendo por ampla margem para Henrique Capriles, que concorreu, mas se retirou do pleito na última hora. Em 2014, junto com Leopoldo López, Machado promoveu um movimento de protesto para retirar Maduro do poder, o que lhe custou o cargo na Assembleia por acusação de conspiração golpista. De lá pra cá, Machado tornou-se uma das lideranças mais radicais da oposição: promoveu protestos em 2017 e 2019, passou a classificar o governo como uma ditadura, rejeitou todas as tentativas de negociação com o chavismo, defendeu o uso da força para destituir Maduro e se opôs aos principais partidos da oposição, que acusou de serem “colaboradores”. Quando muitos viam sua liderança diminuir, ela manteve-se firme nas suas posições e ações, costurando uma base de apoio e recusando-se a deixar o país, opção que muitos opositores acabaram por escolher. Sua trajetória política somada provavelmente à tradição metalúrgica de sua família, rendeu-lhe o apelido de “dama de ferro”. E à medida que as lideranças de Capriles, López e Juan Guaidó foram se desgastando, ela surgiu como a opção mais óbvia para enfrentar Maduro. Durante a campanha, Machado apresentou propostas como a abertura da economia aos investimentos internacionais, a privatização de algumas empresas de um Estado que espera encolher, a ida aos bancos de desenvolvimento em busca de empréstimos e a promoção da exploração privada das reservas de petróleo, consideradas as maiores do mundo. Machado realizou uma campanha meteórica por todo o país sob o lema “até o fim”, apesar das perseguições e das diversas agressões que sofreu - chegaram a atirar sangue animal contra ela. Essa resiliência talvez teimosa, que não é nova nem incomum nos políticos venezuelanos, finalmente deu frutos a Machado no domingo. Mas há um problema: a candidata está inelegível por causa das diferentes acusações de que é alvo, mas que ela nega — corrupção e formação de quadrilha. Com o capital político que conquistou nas primárias, Machado terá espaço para influenciar a estratégia de uma oposição cujo desafio continua ser manter a unidade. Embora um dos pontos do acordo assinado em Barbados proponha “um caminho para que os inelegíveis e os partidos recuperem os seus direitos políticos”, especialistas não esperam que isso aconteça no caso de Machado, que segundo as pesquisas de intenção de voto derrotaria Maduro. A candidata ainda não deu pistas sobre como espera dar continuidade ao processo, mas Luis Vicente León, um dos mais influentes especialistas em pesquisas de opinião e analistas políticos do país, projeta três cenários além da improvável autorização das autoridades para que ela possa ocupar cargo político. “Um é que Machado exija que o povo defenda-a nas ruas e isso gere novos conflitos e deslegitimação eleitoral; a outra é que Machado sinta-se com o direito de escolher quem será o candidato, com o perigo de que os outros não aceitem, o que gerará outra fratura; e um terceiro cenário é que a oposição tenha que escolher um candidato substituto, o que nos levaria ao ponto inicial, mas com uma Machado fortalecida”, afirma o diretor da empresa de pesquisas Datanalisis. O que quer que venha a acontecer na definição do candidato impactará na mesa de negociações do chavismo e da oposição, onde os Estados Unidos são, na prática, uma das partes envolvidas devido à questão das sanções. Machado critica há anos esses processos de diálogo com um governo que considera “ilegítimo” e “criminoso”. A questão é se agora, como líder, ela irá moderar a sua postura. O mundo, e especialmente a Casa Branca, estará de olho.
2023-10-23
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Eleição na Argentina: como ministro da Economia foi mais votado em país com quase 140% de inflação
Mas, além disso, este advogado de 51 anos vai ao segundo turno como o mais votado — teve mais de 36% contra os 30% de Milei — graças ao apoio do Kirchnerismo, força que, no passado, ele enfrentou e ajudou a remover do poder em 2015. "O voto peronista é um voto sólido. Embora esteja abaixo do seu piso histórico – nunca se saiu tão mal como nestas eleições –, de qualquer forma é um piso que resiste", diz o sociólogo e cientista político Marcos Novaro, diretor do Centro de Pesquisas Políticas (Cipol), à BBC Mundo, serviço em espanhol da BBC. Fim do Matérias recomendadas Por outro lado, a aparição de Milei — que havia surpreendido ao sair em primeiro lugar nas primárias — "dividiu o voto da oposição", diz Novaro, o que prejudicou Patricia Bullrich, do Juntos por el Cambio, que ficou de fora do segundo turno, ao aparecer em terceiro lugar, com menos de 24% dos votos. A estratégia eleitoral de Massa buscou destacar o impacto que a proposta do economista anarcocapitalista Milei de reduzir o Estado ao mínimo teria para muitos argentinos — o que parece ter tido um impacto profundo entre uma população que hoje depende fortemente da presença do Estado (saúde, educação e emprego público, além de subsídios aos transportes e à energia). Seu grande desafio diante de um segundo turno, no entanto, será atrair eleitores de Bullrich, considerados ideologicamente mais próximos de Milei. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Massa não é um peronista tradicional: suas origens políticas são conservadoras liberais e ele propõe soluções pró-mercado. Sua principal característica, no entanto, tem sido o pragmatismo, que o levou a forjar alianças com antigos rivais, como Cristina Fernández de Kirchner e o atual presidente, Alberto Fernández, com quem chegou ao poder em 2019 com a coligação Frente de Todos. Embora os seus críticos questionem sua credibilidade — apelidam-no de "panqueca", devido aos tempos em que deu viradas politicamente (uma referência à massa de uma panqueca, que deve ser virada durante o preparo) —, a verdade é que estas alianças o levaram ao lugar onde está hoje. "Foi uma aposta que deu certo", diz Facundo Nejamkis, diretor da consultoria Opina Argentina. "Massa é o único (peronista) que tem vocação de liderança suficiente para desafiar Cristina Kirchner e o peronismo precisa de uma nova liderança, alguém que lhe mostre uma direção, é aí que reside a sua virtude." O candidato da União por la Patria começou sua carreira política ainda adolescente, na década de 1990, quando o presidente era Carlos Menem, outro peronista não tradicional, que aplicava políticas neoliberais. Seu partido liberal conservador, a Unión de Centro Democrático (Ucedé), fundiu-se com o Menemismo e Massa aderiu oficialmente ao Partido Justicialista (nome oficial do Peronismo). Apesar da juventude, ele começou a ganhar poder político. Aos 27 anos, em 1999, obteve seu primeiro cargo eletivo como deputado provincial de Buenos Aires. Com apenas 30 anos, ele foi nomeado, após a crise econômica de 2001, diretor da Administração Nacional da Segurança Social (Anses), que gere as principais despesas públicas do Estado. Esse foi o seu trampolim político: a posição que lhe permitiu fazer nome tanto entre o público em geral como nos escalões superiores do poder. Ocupou esse cargo durante cinco anos, durante toda a presidência de Néstor Kirchner. Embora no meio, em 2005, tenha concorrido e conquistado um lugar como deputado nacional nas listas do kirchnerismo, sua candidatura acabou sendo o que se chama de "testimonial" no jargão político argentino: ele nunca tomou posse e o seu lugar foi para outra pessoa. Massa só deixou a Anses em 2007 para assumir a prefeitura do município de Tigre, onde mora, na próspera zona norte da Grande Buenos Aires. No entanto, ele só estava nessa função há oito meses quando foi chamado a assumir a função política mais relevante até então, quando Cristina Kirchner — que tinha sucedido o marido em 2007 — o nomeou chefe de gabinete, após a demissão de Alberto Fernández (que deixou o cargo que ocupou durante o governo de Néstor Kirchner com fortes críticas a sua nova chefe). "É uma fonte de orgulho e satisfação para mim e aumenta minha responsabilidade", disse Massa com entusiasmo ao tomar posse. Na ocasião, disse que trabalharia arduamente para "devolver à presidente a confiança" que ela depositou nele. E em suas primeiras declarações como chefe da Casa Civil revelou uma intimidade: que antes de prestar juramento a presidente tinha sussurrado no seu ouvido, como se fosse uma piada: "você tem 30 segundos para se arrepender." Seria o início de um relacionamento cheio de idas e vindas. Massa ficou no cargo por apenas um ano. Desencantado com os novos rumos que o governo havia tomado, voltou a assumir a prefeitura de Tigre em 2009, de onde começou a construir seu próprio espaço político com a ajuda de sua esposa, Malena Galmarini, política de família com longa trajetória no peronismo. Antes de sair, concorreu novamente como candidato "testimonial" nas eleições legislativas daquele ano, obtendo novamente uma cadeira na Câmara dos Deputados que não ocupou. Após dois anos consolidando o poder em seu reduto, Tigre, ele conseguiu uma contundente reeleição como prefeito, com mais de 70% dos votos. Parte do seu sucesso deveu-se às políticas de segurança que reduziram os índices de roubos – como a implementação de câmeras em vias públicas – propostas que apresenta hoje a nível nacional como candidato presidencial. Mas esta não é a primeira vez que Massa concorre à presidência da Argentina. Após abandonar o kirchnerismo, formou seu próprio partido — Frente Renovador — e emergiu como o principal rival interno, dentro do peronismo, da força liderada por Cristina Kirchner. Primeiro, em 2013, obteve — e finalmente ocupou — uma cadeira de deputado nacional, vitória que foi um duro golpe para Cristina Fernández de Kirchner, já que Massa derrotou o candidato presidencial. Mas a rivalidade atingiu o seu clímax nas eleições presidenciais de 2015, nas quais Massa concorreu como candidato contra Daniel Scioli — eleito sucessor de Kirchner — e Mauricio Macri, da coligação de centro-direita Cambiemos. Os mais de 21% dos votos de Massa – que naquela ocasião ficou em terceiro lugar, atrás de Macri e Scioli – solidificaram sua posição como ator relevante no cenário político nacional. E o apoio de Massa a Macri no segundo turno, que contribuiu para a vitória do adversário, também aprofundou as diferenças com sua ex-chefe política. Na preparação para eleições legislativas de 2017, Massa criticou duramente a candidatura de Kirchner como senadora. "Eu não vou à esquina com o kirchnerismo porque eles vão às eleições em busca de privilégios", disse, acusando Cristina Kirchner de se apresentar como candidata para pedir imunidade parlamentar a uma possível condenação pela justiça por corrupção. Dada a rivalidade explícita entre eles, Massa e Kirchner surpreenderam em 2019 quando anunciaram que uniriam forças com Alberto Fernández – crítico de ambos – para formar uma coligação eleitoral pan-peronista – a Frente de Todos (FdT) – com a intenção de impedir um segundo mandato de Macri. A estratégia deu certo e a tríade assumiu o governo: Fernández como presidente, Kirchner como vice e Massa como presidente da Câmara dos Deputados. "A janela estava aberta para reunificar o peronismo. Massa viu a oportunidade e aproveitou", afirma Novaro. "Ele também percebeu, com astúcia, que era melhor para ele não estar no Executivo, mas na Câmara dos Deputados. Isso o colocou em uma posição de poder próprio, autônomo de Fernández e Kirchner." No entanto, o sucesso eleitoral da coligação não se traduziu em sucesso de gestão. As divergências dentro do FdT agravaram um panorama já dificultado pela pandemia e por uma seca histórica que reduziu drasticamente a receita de dólares do campo, principal fonte de divisas do país. Nas eleições de 2021, o partido no poder marcou 13 pontos a menos do que nas eleições presidenciais, ficando oito pontos atrás do Juntos por el Cambio, a força de Patricia Bullrich (La Libertad Avanza de Javier Milei só participou na cidade de Buenos Aires, obtendo duas cadeiras na Câmara dos Deputados). Depois da catástrofe política, veio o desastre econômico. No meio de uma aceleração inflacionária gerada pela emissão recorde de dinheiro, que fez com que a subida dos preços chegasse a quase 100% em 2022, o ministro da Economia, Martín Guzmán, abertamente em conflito com Cristina Kirchner, demitiu-se em julho daquele ano. O que parecia ser um colapso inevitável foi contido quando Massa, com o apoio dos seus dois parceiros políticos, assumiu o controle dessa e de outras duas pastas econômicas em agosto, tornando-se um "superministro", como os meios de comunicação o apelidaram. "Massa não é um economista, e sim um político. Mas a questão é que a crise argentina é política. Precisamos de uma pessoa com capacidade política e com firmeza", comentou naquele momento o analista Carlos Fara à agência AFP. Nos 14 meses em que Massa comandou o Ministério da Economia, a crise inflacionária se agravou, atingindo dois dígitos por mês a partir de agosto. E o Banco Central ficou sem reservas. No entanto, quando chegou o momento de escolher um candidato do partido no poder para as eleições deste ano, tanto Cristina Kirchner como o presidente Fernández – os seus dois antigos rivais – nomearam-no para a corrida à presidência. "Massa mostrou que é um político que faz grandes apostas em momentos em que outros líderes não ousam", afirma Nejamkis, que destaca que "assumiu o Ministério da Economia não sendo economista e nessa situação". “Ele pegou uma batata quente”, reconheceu Cristina Kirchner na época, em um dos poucos elogios que fez ao candidato. O analista disse à BBC Mundo que “ser encorajado a ser candidato” no atual contexto econômico foi “outra aposta muito ousada e arriscada”. A aposta deu certo: nas primárias de agosto passado, Massa foi o segundo candidato mais votado, depois de Milei. E agora acaba de dar um resultado inesperado, sendo o mais votado nesta eleição. Para Novaro, Massa conseguiu chegar ao segundo turno "atraindo um setor importante da população que tem medo de mudanças, porque sabe que - mesmo que esteja ruim agora – com as mudanças que estão por vir (se Milei vencer) será pior". Seu foco principal foi destacar a forte presença do Estado no cotidiano dos argentinos – desde a educação e saúde pública até os subsídios aos transportes –, alertando que estariam em risco com um governo não peronista e ultraliberal como o de Milei, que defende um estado mínimo. “Peço que no domingo votem em legítima defesa e em defesa do país”, disse ele antes das primárias. Depois daquela eleição, também lançou uma série de ajudas fiscais e promoveu uma lei que eliminou o imposto sobre o rendimento, um tributo sobre os salários que tinha sido uma das suas promessas eleitorais durante anos, mas que oponentes criticaram como um “plano de pouco dinheiro”. “Meu governo vai ser diferente deste”, prometeu ele nos dias que antecederam estas eleições. Para o segundo turno, “sua principal estratégia será questionar Milei em duas frentes”, diz Nejamkis. “Por um lado, os riscos que Milei representa para o sistema democrático, para tentar atrair outros eleitores da oposição que talvez não gostem do peronismo, mas são sensíveis à discussão da democracia e das instituições, que uma liderança como Milei coloca em tensão.” “E, depois, colocar em discussão a ideia de justiça social, que está profundamente enraizada no inconsciente coletivo argentino e que Milei questiona.” Para ele, o sucesso de Massa dependerá não tanto de sua gestão atual, mas de sua capacidade de convencer a maioria dos argentinos – especialmente os eleitores moderados de Patricia Bullrich – do risco que um governo Milei pode representar.
2023-10-23
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cljepg1n056o
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Eleição na Argentina: em 'corrida das surpresas', Massa e Milei irão para 2° turno
Com 98% dos votos apurados neste domingo (22/10), Massa tinha 36% e Milei, 30% do total, mas os dois não podem ser mais alcançados pela terceira colocada na corrida, a candidata conservadora e ex-ministra de Segurança na gestão Mauricio Macri, Patricia Bullrich, que teve 23%. O segundo turno ocorre no próximo dia 19 de novembro. A votação contrariou a maioria dos prognósticos feitos durante a corrida, que colocava Milei na frente, com chances de ganhar a eleição logo no primeiro turno, e Massa, representante de um governo mal avaliado, embolado com Bullrich pela segunda posição. Na Argentina, para ganhar no primeiro turno um candidato deve ter 45% dos votos ou 40% com 10 pontos de vantagem sobre o segundo colocado. Fim do Matérias recomendadas Segundo dados da Justiça eleitoral local, 74% dos argentinos aptos a votar (35 milhões no total) foram às urnas. É o menor índice de participação eleitoral desde a volta da democracia ao país, em 1983. Como no Brasil, o voto no país vizinho é obrigatório. A minutos do encerramento das urnas, a Casa Rosada, sede da presidência argentina, recebeu uma ameaça falsa de bomba. Mas no decorrer do dia de votação não foram registrados incidente graves em todo o território, segundo informou a justiça eleitoral argentina. A reta final da corrida na Argentina geralmente se resumia a dois candidatos com chances de vencer, mas nesta eleição três chegaram ao dia de votação com possibilidades de avançar ou ganhar em apenas um turno. O peronismo correu risco de ficar fora da definição do novo presidente argentino. Há muitas décadas, o país tem sua política decidida entre o movimento político fundado pelo ex-presidente argentino Juan Domingo Perón (1895-1974) e a oposição a ele. Os argentinos vivem no momento um cenário de declínio econômico, com 40% da população abaixo da linha da pobreza e uma inflação anual que chegou a 138% em setembro último. A maioria das pesquisas mostrava vantagem de Milei em um eventual segundo turno com Massa, mas o ministro da Economia teve uma votação maior do que a esperada. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O advogado Sergio Massa, da coligação peronista União pela Pátria, é o candidato governista à sucessão do impopular presidente Alberto Fernández. Massa, de 51 anos, tem procurado um equilíbrio difícil, mostrando-se ao mesmo tempo como um representante do governo do qual faz parte e uma alternativa a ele. No mês passado, ele declarou no canal LN+ que, dos atuais membros do gabinete, “pelo menos metade não seriam ministros” com ele como presidente. Ele também sublinhou que assumiu a liderança econômica no meio de uma emergência, em vez de ficar escondido “debaixo da cama”. Ele propõe reduzir o déficit fiscal enquanto defende o modelo de intervenção estatal da sua coligação. Durante a campanha, Massa foi cobrado pelos recentes escândalos na província de Buenos Aires, bastião peronista que concentra quase 40% dos votos. Um desses escândalos foi a demissão do chefe de gabinete provincial, Martín Insaurralde, da mesma coligação de Massa, depois de terem sido reveladas fotos que o mostravam a bordo de um luxuoso iate chamado “bandido”, ao lado de uma modelo e servindo champanhe. Após a revelação, Insaurralde pediu demissão do cargo. No último debate dos candidatos presidenciais, este caso foi mencionado insistentemente por Bullrich. Diante das chances reais de Massa se manter na eleição, nos últimos dias o ex-presidente do Uruguai José “Pepe” Mujica disse que “a Argentina é uma coisa indecifrável”. “Como você explica que o ministro da Economia, com uma inflação como a da Argentina, vai brigar pela presidência?” Para Mujica, a resposta é o peronismo surgido com o general Juan Domingo Perón em meados do século passado e como a vertente tem uma enorme capacidade de regeneração política. Com um discurso agressivo contra a classe política e comparado ao brasileiro Jair Bolsonaro e ao norte-americano Donald Trump em determinados aspectos, como duras críticas à esquerda e rejeição à China, Javier Milei, de 53 anos, se tornou a grande surpresa do cenário político argentino ao vencer as eleições presidenciais primárias de agosto. Formado como economista da Universidade de Belgrano, ele participou várias vezes como analista da área em programas de televisão. Milei venceu a sua primeira eleição, como deputado, há apenas dois anos, e se autodenomina um “economista anarcocapitalista”. Ele também já anunciou ideias como a permissão à venda de armas e órgãos humanos. Soma-se a isso sua oposição à legalização do aborto e à educação sobre questões de gênero nas escolas públicas. Uma de suas plataformas é fundir os ministérios da Educação e Saúde. Em várias ocasiões, especialmente durante a campanha presidencial, Milei afirmou ser a favor de que os argentinos possam comprar armas livremente, justificando para isso o aumento de incidentes de segurança em algumas áreas do país. Milei, durante a campanha, pareceu atrair muitos eleitores da chamada Geração Z, que o conheceram há dois ou três anos através de programas de televisão e das redes sociais, especialmente o TikTok. Em uma carreata na província de Buenos Aires, jovens com idades de entre cerca de 18 e 21 anos gritavam "Milei presidente". E quando perguntados por um repórter local como o tinham conhecido, disseram que foi através do TikTok.
2023-10-22
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgl0pmzjdkeo
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Por que as eleições na Argentina neste domingo são tão excepcionais
Em um país imerso em uma profunda crise econômica, um dos candidatos à eleição presidencial é o ministro da Economia. A outra candidata à eleição na Argentina é uma política que foi da juventude peronista e hoje apela aos anti-peronistas. E o candidato mais bem posicionado é um autoproclamado libertário, sem estrutura partidária, que chama a moeda local de “excremento ". As eleições que a Argentina realizará no próximo domingo parecem desafiar a lógica política do país. “Esta é a (eleição) que trará mais mudanças desde 1946”, diz o analista político argentino Rosendo Fraga à BBC Mundo. As eleições são diferentes das anteriores porque, segundo as pesquisas, desta vez não há dois, mas três candidatos presidenciais com possibilidade de serem eleitos ou de irem a segundo turno. O fato de haver três opções com chances de vitória marca, na opinião de Fraga, a crise na ordem política que existia no país desde a emergência do peronismo como força dominante em meados da década de 1940. Fim do Matérias recomendadas “Desde então, a política argentina teve dois eixos: o peronismo e o antiperonismo”, destaca. “Isso é o que mudou neste momento: tivemos primárias e apareceu um candidato que não é peronista nem antiperonista, que é Milei”, acrescenta. Se ninguém conseguir ser eleito no domingo com pelo menos 45% dos votos, ou 40% e 10 pontos à frente do seu seguidor imediato, haverá um segundo turno no dia 19 de novembro. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Com um discurso agressivo contra o que chama de “casta política”, Milei é frequentemente comparado ao ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro ou ao americano Donald Trump, a quem diz admirar. Desde que venceu a sua primeira eleição como candidato a deputado, há dois anos, este autodenominado “economista anarcocapitalista” conseguiu uma ascensão “difícil de imaginar” para alguém com as suas características, apoiado por eleitores frustrados, com menos de 30 anos, diz Orlando D'Adamo, especialista argentino em opinião pública e psicologia política. A votação de Milei nas primárias à frente do seu grupo La Libertad Avanza também desafia um antigo padrão na Argentina segundo o qual os pobres votam mais no peronismo e os ricos no anti-peronismo. “O voto dele abrange todas as classes sociais”, disse D’Adamo à BBC Mundo. Com este panorama, o fato de alguém com a posição de Massa ser o candidato à sucessão do impopular presidente Alberto Fernández pela coligação peronista no governo, a União pela Pátria, é visto como surpreendente até mesmo por alguns dos seus aliados regionais. “A Argentina é uma coisa indecifrável”, disse José “Pepe” Mujica, o ex-presidente do Uruguai, nesta semana. “Como você explica que o ministro da Economia, com uma inflação como a da Argentina, vai brigar pela presidência?” Para Mujica, a resposta é o peronismo surgido com o general Juan Domingo Perón em meados do século passado e como a vertente tem uma enorme capacidade de regeneração política. Ele alcança essa legitimidade apesar de todas as suas divisões internas ou mesmo graças a elas (a Perón é creditada a frase de que os peronistas são como gatos: “parece que estamos lutando e na verdade estamos nos reproduzindo”). Isto explica porque Massa tem procurado um equilíbrio difícil, mostrando-se ao mesmo tempo como um representante do governo do qual faz parte e uma alternativa a ele. No mês passado, ele declarou no canal LN+ que, dos atuais membros do gabinete, “pelo menos metade não seriam ministros” com ele como presidente. Ele também sublinhou que assumiu a liderança econômica no meio de uma emergência, em vez de ficar escondido “debaixo da cama”. Embora diversas pesquisas de intenção de voto coloquem Massa em segundo lugar, não se sabe como ele será afetado pela deterioração econômica e os recentes escândalos na província de Buenos Aires, bastião peronista que concentra quase 40% dos votos. Um desses escândalos foi a demissão do chefe de gabinete provincial, Martín Insaurralde, da mesma coligação de Massa, depois de terem sido reveladas fotos que o mostravam em Marbella a bordo de um luxuoso iate chamado “bandido”, ao lado de uma modelo e servindo champanhe. No último debate dos candidatos presidenciais, este caso foi mencionado insistentemente por Bullrich, ex-ministra da segurança no governo de Mauricio Macri (2015-2019). A capacidade de reprodução do peronismo também fez com que muitos políticos peronistas acabassem mais tarde se juntando às fileiras de outros partidos. Apesar das declarações de Milei contra “a casta” política, a candidato da coligação Juntos pela Mudança acusou-o de ter como aliado figuras do aparelho peronista, como o sindicalista Luis Barrionuevo, autor de uma das frases mais emblemáticas da política argentina no anos 1990: “Temos que tentar não roubar pelo menos dois anos neste país.” Milei respondeu Bullrich acusando-a de tentar encobrir um passado ligado ao grupo guerrilheiro Montoneros, na década de 1970. Embora reconheça sua participação na Juventude Peronista, Bullrich nega ter pertencido aos Montoneros, que era uma organização armada, e diz que já fez “autocrítica” sobre o uso da violência na política. Apesar das diferenças ideológicas entre os dois, ela compara frequentemente sua atitude com a de Mujica, que pertenceu à guerrilha uruguaia Tupamaros. Na campanha, Bullrich disse que “o objetivo é acabar com o kirchnerismo”, a corrente peronista nascida com os ex-presidentes Néstor e Cristina Kirchner, atual vice-presidente do país. Porém, ela precisaria de votos kirchneristas se fosse para o segundo turno e tivesse Milei à sua frente.
2023-10-22
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c99qqr8vv05o
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EUA retiram sanções ao petróleo da Venezuela: entenda acordo que levou à decisão
O governo dos Estados Unidos anunciou nesta quarta-feira (18/10) a suspensão temporária das sanções ao petróleo, gás e ouro venezuelanos. A medida, anunciada pelo Departamento do Tesouro americano, foi adotada em resposta ao acordo alcançado pelo governo de Nicolás Maduro com a oposição para estabelecer garantias eleitorais tendo em vista as eleições presidenciais de 2024. "Os Estados Unidos celebram a assinatura de um acordo na rota eleitoral entre a Plataforma Unitária e os representantes de Maduro. Dessa maneira, o Departamento do Tesouro dos EUA autoriza transações relacionadas ao setor de petróleo, gás e ouro da Venezuela, além de eliminar a proibição do comércio secundário desses recursos." Uma primeira licença autoriza transações relacionadas com o setor de petróleo e gás por um período de seis meses. A segunda dá luz verde às operações com a Minerven — empresa estatal venezuelana de mineração de ouro — que, segundo o Tesouro dos EUA, permitirá reduzir o mercado negro. Além disso, duas licenças foram modificadas para eliminar a proibição de negociar no mercado secundário de determinados títulos soberanos venezuelanos, assim como as dívidas e ações da PDVSA, a petroleira estatal venezuelana. Fim do Matérias recomendadas No entanto, a proibição para negociar no mercado primário de títulos venezuelanos permanece. O subsecretário do Tesouro para Terrorismo e Inteligência Financeira, Brian E. Nelson, esclareceu que as medidas poderão ser modificadas ou revogadas a qualquer momento, caso os representantes de Maduro não cumpram seus compromissos. "Todas as outras restrições impostas pelos Estados Unidos à Venezuela permanecem em vigor e continuaremos responsabilizando os maus atores. Apoiamos o povo venezuelano e apoiamos a democracia venezuelana." Vários senadores republicanos criticaram duramente a decisão do governo Biden. “Seu último truque é aliviar as sanções ao regime brutal de Nicolás Maduro na Venezuela. Os Estados Unidos nunca deveriam implorar por petróleo a ditadores socialistas ou terroristas”, disse o senador John Barrasso, do Estado de Wyoming. O secretário de Estado, Antony Blinken, emitiu um comunicado no qual destaca que os EUA esperam, antes do final de novembro, a definição de um calendário e um processo específico para a qualificação dos candidatos na Venezuela. “Todos aqueles que queiram concorrer às eleições presidenciais devem ter a oportunidade e direito à igualdade de condições eleitorais, à liberdade de circulação e a garantias da sua segurança física”, diz o texto. Disse também que os Estados Unidos esperam que o governo Maduro comece a libertar todos os cidadãos americanos e presos políticos venezuelanos detidos injustamente. “Os Estados Unidos continuam firmemente comprometidos com o povo venezuelano e continuaremos trabalhando com a comunidade internacional para apoiar a restauração da democracia e do Estado de direito para que os venezuelanos possam reconstruir as suas vidas e o seu país”. O governo e a oposição da Venezuela assinaram na quarta um acordo para a realização das eleições presidenciais no segundo semestre de 2024. Em Barbados, as partes chegaram a um consenso sobre uma série de acordos que incluem, entre outras garantias eleitorais, “a autorização de todos os candidatos presidenciais, desde que cumpram os requisitos estabelecidos pela lei”. Vários candidatos da oposição, que esperam se enfrentar nas primárias internas neste domingo (22/10), estão desclassificados por vários motivos, incluindo María Corina Machado, a favorita à vitória. O chefe da delegação do governo da Venezuela, Jorge Rodríguez, declarou que, se um candidato for desclassificado, não poderá ser candidato à presidência. Os analistas consideram que o acordo foi alcançado com a expectativa de que os Estados Unidos anunciassem a suspensão de algumas sanções, como aconteceu na quarta-feira. O pacto entre o governo e a oposição contempla também a observação internacional das eleições, a definição de um calendário eleitoral equitativo, a promoção de auditorias ao processo e a atualização do registro eleitoral para incluir os venezuelanos residentes no exterior, o que já representa um quarto da população.
2023-10-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51jr5pr9d1o
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Tiktok e economia: como Geração Z virou o motor da campanha de Javier Milei na Argentina
Na histórica crise argentina de 2001, o país teve cinco presidentes em onze dias. A convulsão política, econômica e social, que incluiu corridas bancárias, confisco de depósitos, saques a comércios e manifestações gigantescas ainda está na memória de muitos argentinos. Agora, quase 22 anos depois, uma geração que era bebê, criança ou ainda não tinha nascido naquele convulsionado dezembro de 2001 pode contribuir para definir a eleição presidencial que será realizada no próximo dia 22 de outubro. Em caso de segundo turno, a votação ocorrerá em novembro. Milei, que se define como "anarcocapitalista" e promete fazer cortes acentuados em gastos sociais e subsídios, disputa a presidência argentina com o ministro da Economia, Sergio Massa, e com a oposicionista Patrícia Bullrich. Fim do Matérias recomendadas Na chamada Geração Z, muitos são eleitores de Milei e o conheceram há dois ou três anos através de programas de televisão e das redes sociais, especialmente o TikTok. Em uma carreata recente realizada pelo presidenciável "libertário" (como ele também se define), na localidade de Bahia Blanca, na província de Buenos Aires, jovens com idades de entre cerca de 18 e 21 anos gritavam "Milei presidente". E quando perguntados por um repórter local como o tinham conhecido, disseram que foi através do TikTok. Foi o caso do estudante Tomas Bazan, que viu Milei no Youtube e no TikTok e passou a segui-lo até tornar-se seu eleitor. Com 21 anos de idade, estudante de Ciências Políticas na Universidade de Buenos Aires (UBA), ele falou à BBC News Brasil quando estava com um grupo de amigos, eleitores de Milei, em frente ao local onde foi realizado o segundo e último debate presidencial antes da eleição. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Uma reportagem recente no The New York Times apontou que o mesmo boné foi usado por seguidores do ex-presidente Jair Bolsonaro, durante seu governo. O eleitor argentino contou que esse é um boné típico da campanha de Milei, mas que não o associa com políticos de outros países. Os últimos governos a que Bazan se referiu foram o do ex-presidente Mauricio Macri, da coalizão Juntos pela Mudança, que governou a Argentina entre 2015 e 2019, e o do presidente Alberto Fernández, que representa o kirchnerismo e cujo mandato termina em 10 de dezembro deste ano. Após aquela crise de 2001, que se arrastou também por 2002, a Argentina passou a ser governada pelo kirchnerismo (2003-2015) até a chegada do macrismo, e voltou a eleger o kirchnerismo há quatro anos. Nesta eleição presidencial de 2023, dois fatores são apontados como preponderantes para a maioria dos eleitores: a economia e a segurança pública, segundo pesquisas de opinião. Nos doze meses até agosto deste ano, a inflação chegou a 138,3%, de acordo com os últimos dados oficiais disponíveis. Somente em setembro deste ano a alta de preços atingiu 12,7%. O quadro econômico, que inclui a disparada do dólar no mercado paralelo e o aumento nos índices de pobreza, parece ser um dos motivos do voto no "libertário". Ainda de acordo com dados oficiais, a pobreza atinge 46,8% dos eleitores com idades entre 15 e 29 anos (gerações Z e Y). O estudante de Administração de Empresas da Universidade Católica Argentina (UCA), Alejandro Dub, de 21 anos, que trabalha no JP Morgan, contou à reportagem que votou em Macri na eleição presidencial anterior, quando o ex-presidente disputou a reeleição e perdeu para Fernández. "Mas agora eu não votaria em Patricia Bullrich (a candidata do macrismo, movimento de oposição na Argentina) porque acho que ela não propõe mudanças e ficaria tudo como está", disse Dub. Para ele, Milei representaria, em sua visão, a mudança que espera para a Argentina. "Acho que ele propõe uma mudança de paradigma, com a redução do Estado e a eliminação de impostos e o foco também no déficit fiscal que temos hoje", disse. Ele diz que sua geração pouco ou nada conheceu de períodos de estabilidade econômica. "Nasci logo depois da crise de 2001 e peguei muitos períodos econômicos instáveis, com alta do dólar e inflação", disse. Na mesma linha, a estudante de economia Delfina Ezeiza, de 20 anos, disse à reportagem que, na sua visão, Milei “vem romper” com um sistema implementado pelos últimos governos e que não tem dado resultados para a população. “Tenho 20 anos e desde que nasci escuto as mesmas coisas. Inflação, insegurança pública e a dificuldade que existe para se comprar uma casa ou um carro, por exemplo”, disse Ezeiza. Ela integra a ‘Juventude Libertário’, o braço jovem do Partido Libertário, que apoia Milei e afirma que tanto o governo Macri, no qual tinha tido esperanças, quanto o governo Fernández deixam herança de dívida econômica e social complicadas para o próximo presidente. “A coalizão Juntos por el Cambio (Juntos pela Mudança), quando assumiu em 2015, tinha uma agenda muito liberal, mas acabou fazendo a mesma coisa – no sentido econômico e social (que o kirchnerismo)”, disse. Nos atos de Milei e também como refletem as pesquisas de opinião, o eleitorado que mais se identifica com o presidenciável é o que se define como sendo do sexo masculino – os chamados ‘pibes’ ou ‘chicos’, como os argentinos se referem os que têm menos de 30 anos. O eleitorado jovem é decisivo. De acordo com dados oficiais, os eleitores com idades entre 18 e 29 anos representam quase 25% do eleitorado nacional. Andrei Roman, da empresa de pesquisas Atlas Intel, que tem feito pesquisas sobre a disputa argentina, disse à BBC News Brasil que o voto masculino e com até 24 anos é “monopolizado” por Milei. Nesta faixa etária, para ambos os sexos, 40% escolhem Milei, contra 21,2% que escolhem Massa, de acordo com o levantamento mais recente da Atlas, fechado em 13 de outubro. Dados similares também aparecem em uma pesquisa encomendada pela revista britânica The Economist, mostrando que 74% dos entrevistados com idades entre 18 e 25 anos aprovam Milei, de acordo com o levantamento realizado pela Premise, com sede em San Francisco. O índice de mulheres, na mesma faixa etária, que vota em Milei cai para menos da metade no eleitorado feminino. “Homem jovem, sem educação superior e sem boas perspectivas no mercado de trabalho, do interior. Esse é o público mais forte para Milei, de longe”, disse Roman. A mais recente pesquisa da Atlas apontou que haveria segundo turno da eleição e que Massa seria mais votado que Milei, – 30,9% dizem que irão votar no domingo no ministro da Economia e 26,5% afirmam que escolherão Milei. Para ser eleito, o candidato precisa receber 45% dos votos válidos ou 40% e diferença de 10% para o segundo colocado. Segundo economistas, na etapa recente, o estancamento da economia argentina começou há cerca de dez anos e o país foi, junto com o Peru, o que registrou, na região, a maior queda do seu Produto Interno Bruto (PIB), no primeiro ano da pandemia, em 2020 — 9,9% de contração. O fator econômico é um dos principais pilares do voto em Milei, de acordo com analistas. A este fato se soma à "decepção" com os resultados dos últimos governos na vida das pessoas. O estudante de direito Sebastián Galiana, de 25 anos, afirmou que votará em Milei porque entende que o presidenciável poderia reverter o que chamou de "período de decadência argentina". Galiana diz que concorda com suas ideias, como a de reduzir o tamanho do Estado e eliminar impostos. "A Argentina tem um carga tributária muito alta", disse. Em um dos vídeos de Milei, que viralizou, ele diz que o "Estado não é a solução, o Estado é o problema" e "fonte da decadência argentina". No vídeo, o candidato mostra, num quadro, cada um dos ministérios que pretende subtrair, caso seja eleito presidente. Entre os que ele afirma que vai eliminar estão os de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, de Obras Públicas e das Mulheres, Gênero e Diversidade. Galiana disse que acha a iniciativa de Milei positiva. "Acho bom que ele deixe apenas os ministérios importantes, como o de Segurança", disse. Como o eleitor Tomás Bazan, ele também usava um boné de campanha do candidato. Neste caso, com a inscrição "Make Argentina Great Again” (alusão à frase "Make America Great Again", que foi propagada pelo ex-presidente Donald Trump). Ele diz que seu voto em Milei está vinculado às questões econômicas e de segurança. E entende que os outros dois principais candidatos na disputa presidencial, a ex-ministra de Segurança Pública do governo do Macri, Patricia Bullrich, da coalizão Juntos pela Mudança, e o candidato do governo e ministro da Economia, Sergio Massa, da frente União pela Pátria, representam "a mesmice" e a "decadência". Para a eleitora Delfina Ezeiza, Milei mudaria, caso seja eleito, “o sistema atual de distribuição de programas sociais" e privilegiaria a criação de empregos. A analista política Mariel Fornoni, da consultoria e empresa de pesquisas Management and Fit, de Buenos Aires, disse à BBC News Brasil que a base de apoio de Milei nas urnas cresceu em cerca de seis milhões de votos entre as eleições legislativas de 2021 e as primárias, realizadas no dia 13 de agosto deste ano. "Enquanto a base eleitoral de Milei cresceu, as bases da coalizão Juntos pela Mudança e da União pela Pátria encolheram", disse Fornoni. Para ela, o voto em Milei "atravessa" todas as gerações e setores econômicos e sociais. Mas este voto é mais evidente, diz a analista, entre os mais jovens. "Este voto é resultado das redes sociais, do discurso de Milei contra a 'casta política' e em defesa da dolarização da economia. E este conceito 'casta' tocou eleitores que acham que se um político faz algo errado não vai preso e se uma pessoa precisa de transplante e conhece alguém no setor público conseguirá o acesso mais rápido ao órgão que precisa", disse a analista. Milei chegou a dizer que o país deveria implementar a venda de órgãos humanos e foi fortemente criticado, mas nos últimos tempos disse que a proposta não existia. Fornoni observou que, apesar de o voto em Milei estar presente em todas as classes sociais, ele foi mais forte, nas primárias e, segundo dados oficiais, nos lugares onde a população tem menor poder aquisitivo. "Este fenômeno do voto em Milei começou entre jovens das classes média e alta. Mas com suas participações em programas de televisão, ele passou a ser visto como um personagem que representa a ruptura (com o sistema atual). E à medida que as pessoas foram ficando cada vez mais cansadas, desesperadas, ele foi ganhando apoio das outras camadas sociais", disse a analista. Milei tem, porém, observou ela, ressalvas ou rejeição entre os que têm mais de 50 anos de idade e especialmente as mulheres. Os que não votam em Milei discordam, por exemplo, dos seus planos para a economia e para as áreas de saúde e de educação e entendem que as privatizações serão um denominador em seu eventual governo, incluindo de setores básicos. São pessoas que o veem como pouco sólido e que, além disso, viveram também o período da ditadura militar argentina (1976-1983), além da histórica crise de 2001, e podem discordar do pensamento do candidato que, junto com sua candidata a vice, Victoria Villarruel, questionou a política de direitos humanos da Argentina. Em um dos debates presidenciais, ele disse que o país não tem 30 mil desaparecidos políticos (pessoas sequestradas, naquele período, e ainda hoje com destino desconhecido). "O cenário político atual é resultado da crise econômica que vivemos, mas também do que a pandemia deixou, com o agravamento da situação da economia. Mas para quem viveu os anos setenta, a ditadura, não é compatível que Milei represente a esperança”, disse a analista política Shila Vilker, professora da Universidade de Buenos Aires UBA) e especialista em opinião pública da Tres Punto Zero. Quando perguntados pela reportagem sobre o impacto da ditadura, os jovens eleitores responderam que “não é uma prioridade” no momento e o que Milei busca é “incluir as vítimas do terrorismo dos anos 1970” nas políticas de direitos humanos. “O terrorismo ocorreu dos dois lados (dos ditadores e guerrilheiros) e é isso que ele quer rever”, disse Sebastián Galiana. Para o estudante de Ciências da Saúde Brian Viveros Amba, de 22 anos, que também integra a geração Z, Milei representa a “esperança” em termos econômicos e no que chamou de “moral”, em referência à conduta política. “Como diz o nosso referente Javier Milei, nós esperamos que nossa sociedade seja guiada pelas ideias da liberdade. Além disso, Milei não é homofóbico, Milei não é racista. Milei é Milei. Ele compartilha ideias (com Bolsonaro e Trump), mas Milei é Milei. E quando fala em liberdade, fala no âmbito da economia e das decisões, mas com respeito e princípios”, disse à reportagem. Analistas de diferentes tendências concordam que Milei canalizou, nas primárias, o que na Argentina chamam de “voto bronca” (decepção, cansaço, irritação) com a classe política e o cotidiano complicado pelos males econômicos, além de escândalos de corrupção que permearam recentemente políticos do país. Na semana passada, um candidato a deputado da LLA comparou pessoas do mesmo sexo a aquelas que têm alguma deficiência física. Não foram vistas declarações públicas de Milei condenando as declarações. Em relação às liberdades individuais, Milei já declarou, nesta campanha, que, se eleito, pretende anular a lei que autoriza o aborto na Argentina e foi aprovada em 2020. “O que está em jogo nesta eleição é uma votação entre o sistema, que já temos e sabemos que é preciso melhorar, e o antissistema, onde os ‘chicos’ (adolescentes e jovens) estão decepcionados com o que vivem e acham que não têm nada a perder. Mas estamos muito preocupados”, disse um banqueiro argentino diante da reportagem e em referência a Milei. Nesta semana, o candidato declarou que o peso é "um excremento" e sugeriu que os argentinos não renovassem suas aplicações na moeda nacional. Na visão de analistas econômicos, a declaração, somada às últimas medidas do candidato governista, vista para atrair votos, como o fim do imposto de renda para até determinados salários, levaram à corrida contra o peso e a desvalorização ainda mais acelerada da moeda. Na terça-feira, o dólar chegou ao recorde histórico de mil pesos. O ‘libertário’ não é, porém, o único que tem atraído o eleitorado jovem (geração Z, especialmente). O estudante de direito Juan Ignacio, de 22 anos, da UBA, entende que Patricia Bullrich é a candidata ideal para este momento argentino. “Ela sabe como combater a inflação. E Milei quer ainda um sistema para a educação que é inspirado no plano que (o ditador Augusto) Pinochet implementou no Chile. Um sistema que acabou piorando a desigualdade no ensino”, disse à reportagem. Seu amigo Luka Martinini Jamniuk, de 21 anos, estudante de ciências políticas da Universidade Nacional San Martín (Unsam), acha que votar em Milei “seria um mergulho no escuro”. “Ele tem propostas utópicas. Por exemplo, a dolarização. Como ele vai dolarizar uma economia onde faltam dólares (no Banco Central)?” Também integrante do eleitorado da Geração Z, o universitário de jornalismo esportivo Ciro Durán, de 19 anos, que mora na cidade de La Plata, e estuda na TEA y Deportea, votou, nas primárias, no candidato do governo Sergio Massa. E disse que repetirá o voto no dia 22. “Acho que Sergio é o mais coerente entre os três que têm mais chances (Massa, Bullrich e Milei). Ele é o mais tranquilo, o mais aberto ao diálogo. O ódio, como as declarações que temos visto de Milei e de Bullrich, não funcionam na política”, disse. Nos debates presidenciais, Milei acusou Bullrich de ter sido “assassina”, nos seus tempos de guerrilheira nos anos setenta. E chamou Massa de "bestia" (burro). Durán acredita que, caso eleito, Massa faria um governo próprio e com mais foco no combate à inflação do que o governo presidido por Alberto Fernández. Esta é a primeira vez que Durán votará para presidente. Não é o caso do instrutor de CrossFit, Blás Raventos, de 37 anos, que já votou em eleições anteriores e desta vez optará por Milei. Filho de pais perseguidos pela ditadura militar, ele disse que passou a se interessar por Milei pela forma como ele explica e detalha a economia, citando estudiosos que antes ele não conhecia. “Eu não votei nas primárias. Mas depois do resultado dele nas urnas, decidi ver os vídeos dele e Milei me impressionou muito e decidi votar nele. Pela economia e pelo que propõe para outros setores do nosso país”. Os argentinos começam a decidir o rumo da Argentina daqui a menos de quatro dias.
2023-10-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c725990rdkwo
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'Argenchina': por que Argentina desbancou Brasil e virou 'queridinha' da China na América Latina
Ao fim de sua viagem à China, em junho, Sergio Massa, ministro da Economia argentino e candidato à presidência, brincou que seu país deveria ser rebatizado de "Argenchina". "Vamos fundar a República da Argenchina", disse ele a jornalistas em Pequim após receber a promessa de uma nova rodada de investimentos bilionários. Mas, como diz o ditado, toda brincadeira tem um fundo de verdade. Os números não mentem: os laços entre Argentina e China se estreitaram significativamente, a ponto de o país vizinho ter desbancado o Brasil como o principal destino de investimentos chineses na América Latina no ano passado. Fim do Matérias recomendadas E, desde o ano passado, a Argentina faz parte da chamada 'Nova Rota da Seda', projeto desenvolvimentista chinês. Foi a primeira grande economia da América Latina a aderir à iniciativa. Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil dizem acreditar que o ano passado foi um caso isolado, e o Brasil — que sempre recebeu praticamente a metade do total do investimento chinês na América Latina — deve retomar a liderança (ler mais abaixo). O primeiro turno das eleições presidenciais argentinas vai ocorrer no próximo domingo, dia 22 de outubro — Sergio Massa (União pela Pátria), o candidato governista, e Milei (A Liberdade Avança), da oposição, são os favoritos na disputa. Em terceiro nas sondagens, está a também opositora e ex-ministra de segurança argentina Patricia Bullrich (Juntos pela Mudança). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A China é o segundo principal parceiro comercial da Argentina, depois do Brasil. Trinta anos atrás, em 1992, era o 14º. As razões para a aproximação entre os dois países são muitas, algumas das quais também explicam o interesse chinês pelo Brasil. De um lado, a Argentina, assim como o Brasil, é um país que exporta commodities — uma potência tanto na agricultura, com carne, trigo, milho, soja, quanto em recursos minerais, com petróleo, gás e lítio. De outro, a China, com uma população de mais de 1,4 bilhão de pessoas e um apetite voraz, precisa dessas matérias-primas para se desenvolver e crescer. "A China sempre vai precisar importar uma grande quantidade de alimentos porque os seus próprios recursos agrícolas não são suficientes. Nesse sentido, a Argentina, com a sua enorme riqueza agrícola, é um parceiro óbvio", diz à BBC News Brasil Jorge Heine, ex-ministro de Ativos Nacionais do Chile e ex-embaixador chileno em Pequim, hoje professor na Universidade de Boston, nos Estados Unidos. Mas a escassez histórica de dólares do país vizinho, sobretudo pelas altas dívidas externas contraídas ao longo de suas diversas crises, acabou por aumentar essa dependência. "A Argentina hoje não tem muitas opções na mesa que não envolvam a China, essa é uma realidade incontornável. Sob risco de calote dos Estados Unidos e bancos ocidentais, Europa cada vez mais distante da região, a Rússia, que poderia aproveitar esse vácuo, às voltas com suas crises por conta da guerra na Ucrânia...o único país com envergadura para costurar algum tipo de parceria mais confortável com a Argentina é a China", diz Tulio Cariello, diretor de Conteúdo e Pesquisa do CEBC. E, como pano de fundo, também há a questão geopolítica — a China vem aumentando sua influência sobre a América Latina, uma região que por muito tempo foi considerada "o quintal" de seu principal arquirrival no xadrez geopolítico internacional: os Estados Unidos. "A China tem uma visão de longo prazo sobre seus investimentos e, neste sentido, problemas ou contratempos da economia argentina constituem um obstáculo menor do que para as empresas ocidentais", explica Heine. Além disso, segundo ele, "a economia americana compete com a economia argentina — os EUA produzem carne e soja, por exemplo. Há mais elementos de complementaridade entre as economias chinesa e argentina, o que explica essa parceria frutífera", acrescenta. Para uma fonte do alto escalão do governo argentino, ouvida pela BBC News Brasil sob condição de anonimato, a China "foi o principal aliado financeiro da Argentina nos últimos tempos e o presidente Alberto Fernández é grato ao governo chinês. Por isso, sua última viagem internacional foi à China, num gesto de diplomacia presidencial, após a renovação do swap de moedas". Fernández chegou à China no último sábado (14/10) para se encontrar com a ex-presidente Dilma Rousseff, chefe do Novo Banco de Desenvolvimento (também chamado de "Banco dos Brics"), em Xangai, e com o presidente chinês, Xi Jinping, em Pequim. Ele participa do 3º Fórum do Cinturão e Rota para a Cooperação Internacional e também se encontra com investidores. Apesar de a Argentina ter ultrapassado o Brasil em volume de investimentos no ano passado, especialistas ouvidos pela BBC News Brasil não acreditam que isso vá se tornar uma tendência. "Acho que essa questão de a Argentina ultrapassar o Brasil tem que ser contextualizada. A diferença entre os dois em 2022 é muito pequena, não chega nem a US$ 500 milhões. Sem contar que em termos históricos, o Brasil quase sempre liderou, com alguns países da região ultrapassando em raros momentos por quentões pontuais. O Chile, por exemplo, já ficou na frente do Brasil por ter recebido um investimento gigantesco na área de lítio", diz Cariello, do CEBC. Heine, da Universidade de Boston, concorda. "Considero o que aconteceu no ano passado mais como um acaso do que qualquer outra coisa. Há vários projetos chineses sendo desenvolvidos no Brasil. Portanto, o que acontece em um ano não significa necessariamente uma tendência", assinala. Segundo o relatório do CEBC, no ano passado, um dos motivos que ajudou a Argentina a superar o Brasil em volume de aportes chineses foram os negócios expressivos no segmento de lítio, na área de mineração. Houve duas aquisições na exploração do mineral por parte das chinesas Ganfeng Lithium e Zijin Mining Group. Mas especialistas apontam que, assim como acontece no Brasil, muitos investimentos chineses bilionários anunciados na Argentina ainda não saíram do papel. "Há mais de 15 anos, a China vem anunciando investimentos na Argentina que na maioria dos casos não se concretizaram de forma suficiente. O que tem acontecido, ultimamente, são alguns investimentos específicos", diz à BBC News Brasil o economista Marcelo Elizondo, presidente do Comitê Argentino da Câmara de Comércio Internacional (ICC). Em sua visão, "a Argentina é pouco atraente para investidores chineses, que se depararam com muitos obstáculos", acrescenta ele, citando a "brecha cambial" (as diferenças entre o câmbio oficial e as várias cotações paralelas do dólar) e a dificuldade para importar insumos e máquinas para a produção. "Neste sentido, a China tem estado presente muito mais pelas urgências financeiras e conjunturais da Argentina (como o pagamento ao FMI)", acrescenta. E o que deve acontecer com a Argentina se o candidato mais bem cotado à presidência, o anarcocapitalista Javier Milei, vencer? Tachado de "Trump argentino", Milei aventou "cortar relações com a China", devido ao fato de que o país asiático é governado pelo Partido Comunista, e quer reaproximar a Argentina dos Estados Unidos, atualmente o terceiro principal parceiro comercial argentino. Também prometeu, se eleito, tirar a Argentina do Mercosul e chamou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de socialista "com vocação totalitária". "Este rompimento (da Argentina com a China) seria impossível. A China é o principal destino da carne bovina e da soja que exportamos. É impossível deixar de negociar com a China. Não é possível ideologizar o comércio exterior, isso é impossível", diz à BBC News Brasil Diego Guelar, ex-embaixador da Argentina no Brasil. Para o embaixador argentino na Suíça, Gustavo Martínez Pandiani, cotado como chanceler em eventual governo do candidato Sergio Massa, "a China é hoje uma das economias emergentes mais importantes do planeta e passou a ser um investidor relevante na América Latina. Achamos que se deve continuar fortalecendo a parceria estratégica com a China com o objetivo de se avançar no desenvolvimento de setores-chave como o agroindustrial e o energético, entre outros". Heine, da Universidade de Boston, lembra que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) também lançou mão da mesma retórica anti-China durante a corrida presidencial, mas em seu governo, as relações comerciais entre os dois países não foram prejudicadas. "Meu palpite é que Milei, se eleito, tenha que fazer teriam que fazer o mesmo que Bolsonaro fez: engolir suas palavras e fazer o que os imperativos das realidades econômicas internacionais lhe impõem", diz. Apesar disso, Ariel González Levaggi, secretário-executivo do Centro de Estudos Internacionais da Universidade Católica Argentina, não descarta atritos entre Argentina e China com a vitória de Milei. "Essas eleições não são uma boa notícia para os chineses, porque os três candidatos apresentaram agendas muito menos favoráveis à China. Mas, no caso de Milei, a preocupação é grande, especialmente no tocante ao aprofundamento das relações, com um temor de que alguns projetos de investimentos sejam paralisados", diz. "De qualquer forma, dificilmente, as relações bilaterais vão retornar ao nível da presidência de Cristina Kirchner (2007-2015), sobretudo em seu segundo mandato, quando houve uma aproximação entre os dois países, e a Argentina tinha uma posição muito refratária aos Estados Unidos", conclui.
2023-10-16
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Áudio, Em áudio | O menino de 9 anos que cruzou sozinho 4 países para se unir aos pais nos EUADuration, 14,53
c
2023-10-16
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Quem é Daniel Noboa, o herdeiro de um império empresarial que será presidente do Equador
Com mais de 90% dos boletins de urnas válidas examinados pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE) do país, Noboa, da coalizão Ação Democrática Nacional, venceu a disputa do segundo turno com 52,3% dos votos, à frente dos 47,7% da advogada Luisa González, apoiada pelo ex-presidente Rafael Correa. González, do Revolução Cidadã, reconheceu a derrota quando a tendência de vitória do empresário já era irreversível. Daniel Noboa Azín, de uma família dona de um império empresarial que inclui uma empresa exportadora de banana, assumirá um mandato atípico, que terá início em dezembro, em uma data ainda a confirmar, e durará apenas até maio de 2025. É que Noboa vai completar o mandato do presidente Guillermo Lasso, que dissolveu a Assembleia Nacional e convocou eleições antecipadas em meio a um processo de impeachment sob acusação de corrupção. Fim do Matérias recomendadas A seguir, a trajetória empresarial e política de Noboa e suas principais propostas. Daniel Noboa, casado com a modelo e influencer de 25 anos Lavinia Valbonesi, pai de seu segundo filho, pertence à terceira geração de uma família de empresários multimilionários de Guayaquil. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Seu avô, Luis Noboa Naranjo (1916-1994), fundou a Exportadora Bananera Noboa e chegou a ser considerado o homem mais rico do Equador. O pai de Daniel, Álvaro Noboa Pontón (Guayaquil, 1950), expandiu o negócio da família para além das bananas, passando a controlar uma rede multinacional de empresas sob a bandeira do Grupo Noboa. O sucesso econômico do clã foi várias vezes afetado por alegações de evasão fiscal e exploração laboral. A BBC Mundo contatou representantes da família para fazer comentários, mas não obteve resposta até a publicação deste texto. Álvaro Noboa foi o primeiro a dar um salto para a política, algo comum entre as famílias com poder económico no Equador e especialmente em Guayaquil, a capital comercial do país. A aspiração de Álvaro chegar à presidência foi, no entanto, em vão. O pai do futuro presidente é o candidato que mais vezes tentou, cinco no total, e sem sucesso, chegar ao cargo máximo no país. Nas eleições de 2006, esteve perto: perdeu no segundo turno para Rafael Correa, que liderou o país até 2017. "Álvaro Noboa gerou rejeição porque era uma clara representação da plutocracia e da burocracia mais excludente", disse à BBC Mundo o jornalista equatoriano Diego Cazar Baquero, diretor da revista independente La Barra Espaciadora. Daniel Noboa estudou em universidades de prestígio nos Estados Unidos. Ele se formou em administração de empresas na Universidade de Nova York, administração pública na Harvard Kennedy School, além de ter feito um mestrado em Governança e Comunicação Política na Universidade George Washington. Mas Noboa, que aos 18 anos tinha fundado uma empresa de organização de eventos chamada DNA Entertainment Group, só recentemente começou na política: estreou como deputado em 2021 e se tornou presidente da Comissão de Desenvolvimento Econômico do Parlamento. Após a dissolução do Parlamento, com a ativação da chamada morte cruzada (dissolução da Assembleia e convocação de novas eleições) pelo presidente Lasso, em maio, Noboa se apresentou como pré-candidato com um perfil diferente do de seu pai. "Daniel marca uma certa distância de Álvaro no plano simbólico, no plano discursivo e no plano prático", explica Cazar Baquero. Por exemplo, enquanto seu pai foi classificado na direita política, Daniel afirma ser de centro-esquerda, com ideias sociais progressistas, como o apoio à comunidade LGBTQia+ e uma forte ênfase na educação. Para o cientista político Roberto Calderón, isso foi uma "estratégia de marketing político" que se revelou bem sucedida. "Ele se descreve como sendo de centro-esquerda devido à baixa popularidade do governo de Guillermo Lasso, pois sabe que o rótulo de direita poderia associá-lo à continuação desse executivo", diz. Seus críticos afirmam que a vice-presidente eleita, Verónica Abad, tem uma orientação marcadamente de direita. Outra diferença apontada pelos analistas é o fato de Daniel ter desenvolvido uma oratória superior à do seu pai e ter conseguido fazer chegar suas ideias ao eleitorado. De fato, o salto mais importante em sua curta corrida à presidência foi no debate que antecedeu o primeiro turno. Poucos dias antes do primeiro turno, em 20 de agosto, ninguém acreditava que Noboa tinha chances reais de passar para a disputa final. Até que chegou o debate decisivo, onde ele confrontou ideias com Luisa González e outros candidatos que eram considerados favoritos. "Ele teve a oportunidade, em poucos minutos, de mostrar seu conhecimento sobre certos dados cruciais sobre a situação atual do país, e isso o fez parecer muito bem informado e preparado para assumir a presidência", diz o jornalista Cazar Baquero. Já o cientista político Roberto Calderón indica que sua participação no debate foi crucial para ele se posicionar "como uma alternativa ao correísmo", representado por González, a quem derrotou no último domingo. No entanto, ambos os analistas destacam que não seria correto rotular Noboa como um antícorreísta, mas sim como um político habilidoso que demonstrou posições moderadas e pragmáticas, evitando ataques diretos a seus rivais em debates e discursos. "A praticidade de seu discurso e sua decisão de se afastar da polarização entre correísmo e antícorreísmo funcionaram muito bem para ele. Isso revela que o eleitorado quer escapar da polarização, da insegurança, da violência cotidiana e buscar soluções extremamente práticas e imediatas", afirma Cazar Baquero. No segundo turno, Noboa se posicionou como favorito em todas as pesquisas. Isso também é atribuído em grande parte às limitações próprias do Revolução Cidadã, cujos líderes jamais recuperaram a popularidade dos tempos da presidência de Rafael Correa, um dos símbolos dos governos de esquerda da região nos anos 2000. Quanto às propostas, Noboa parece ter conseguido se conectar com o eleitorado jovem, que vê com bons olhos uma alternativa política nova com propostas originais para resolver os inúmeros problemas do Equador. "Ele mirou um eleitorado muito jovem que precisa de emprego; propôs que o setor privado é quem gera empregos e que é necessário fortalecê-lo por meio de isenções fiscais; e adaptou essa proposta à sua posição de centro-esquerda, afirmando que as empresas com responsabilidade social se beneficiarão", explica Cazar Baquero. "Temos um plano ambicioso para reduzir o desemprego juvenil e promover a criação de empregos. Por exemplo, o IVA diferenciado para materiais de construção, o estímulo ao investimento em construção e a retomada de obras públicas abandonadas no país nos últimos dois anos. Tudo isso, em conjunto, pode gerar empregos de maneira muito rápida", disse Noboa em uma recente entrevista ao meio de comunicação equatoriano Primicias. A criação de empregos é um dos dois pilares principais do programa de Noboa. O outro é a luta contra o crime, tema no qual promete "mão firme" e "restaurar a paz nas famílias". O Equador está passando por uma das maiores crises de segurança de sua história e se tornou um dos países mais violentos da América Latina, com 3.500 homicídios registrados apenas nos primeiros sete meses deste ano, de acordo com dados da polícia. Gangues criminosas como Los Choneros, Los Lobos, Los Tiguerones ou a máfia balcânica controlam bairros inteiros e prisões, de onde conduzem suas atividades ilícitas diante da impotência, e muitas vezes com a cumplicidade, das autoridades. "Devemosr promover reformas profundas no sistema carcerário e ter um programa de segregação apropriado, no qual os 17%, que são os mais violentos, sejam completamente isolados", declarou Noboa em sua entrevista a Primicias. O jovem político, que usou colete à prova de balas durante a campanha após o assassinato do candidato Fernando Villavicencio em 9 de agosto, propôs como sua ideia mais inovadora a instalação de prisões flutuantes em barcaças para confinar criminosos perigosos longe da costa e impedir que continuem operando a partir da prisão, como acontece atualmente. "As prisões em barcaças seriam uma medida transitória para alocar os criminosos mais perigosos, enquanto reestruturamos todo o sistema penitenciário, mas não podemos tratá-los como em um hotel cinco estrelas. Eles têm tomadas, ar-condicionado, telas, há suítes nas prisões", afirmou. No entanto, essa iniciativa gerou dúvidas. "É muito difícil de ser implementada, porque a fabricação das barcaças levaria mais de um ano e meio de seu mandato, a logística é complicada e o sistema jurídico equatoriano não prevê o isolamento como pena para os detentos", disse o analista Calderón. Outras propostas de Noboa para combater o crime incluem penalizar o consumo de drogas em pequena escala, criar um sistema de júri para crimes graves e investir em avanços tecnológicos, como drones e radares, para neutralizar o crime organizado nas estradas e fronteiras. No quesito segurança, a campanha termina também com uma sombra. O assassinato do candidato que se apresentava como anticorrupção, Fernando Villavicenio, segue sem desfecho. Seis suspeitos, todos colombianos, foram presos acusados de ligação com o crime, mas acabaram eles mesmos assassinados na prisão no começo do mês. No aspecto econômico, ele se posicionou a favor de manter a dolarização e prometeu atrair empresas americanas para o país. Uma das propostas mais controversas de Daniel Noboa é a eliminação do imposto sobre a saída de capitais, algo que seus críticos questionam, considerando que beneficiaria apenas grandes corporações, em particular, o conglomerado empresarial de sua família. Em sua campanha, Daniel Noboa também enfatizou a ideia de fortalecer a educação, aumentando os investimentos no setor educacional, implementando políticas de incentivo para escolas e universidades, e programas que buscam ligar a esfera educacional à produtiva. Se há algo que todos os analistas concordam é que Daniel Noboa não terá vida fácil para avançar com suas propostas. Para alcançar seus objetivos, ele precisará de apoio que lhe permita obter maiorias pontuais na Assembleia Nacional, um órgão composto por 137 membros altamente fragmentado, onde seus rivais da Revolução Cidadã detêm o maior número de assentos, embora estejam longe da maioria necessária para vetar iniciativas. "Ele terá que buscar alianças, e aí entra em cena a distribuição de ministérios ou instituições públicas para aliados políticos, a fim de garantir votos na Assembleia. Haverá aqueles que receberão algum tipo de benefício, que se unirão aos aliados naturais do presidente devido à afinidade política", opina o cientista político Calderón. Por outro lado, Cazar Baquero acredita que "é interessante observar como Noboa planeja a relação que terá com uma Assembleia que vem de uma grande desaprovação, que se caracterizou por obstruir o trabalho do governo, e da qual ele próprio fez parte." O prognóstico do jornalista é que Noboa "legislará negociando apenas os aspectos essenciais da lei e apresentará projetos de lei de urgência todo mês para pressionar a Assembleia." Isso confirmaria, segundo ele, que o novo presidente está plenamente consciente de que tem apenas um ano e meio para enfrentar o desafiador objetivo de resolver os numerosos e cada vez mais graves problemas políticos, econômicos e, acima de tudo, de segurança que o Equador enfrenta. De qualquer forma, ele espera estender seu mandato. "Se vencermos, buscarei a reeleição em 2025", confirmou alguns dias antes das eleições.
2023-10-16
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O inacreditável luxo da prisão de Tocorón, 'quartel-general' da facção mais temida da Venezuela
A intervenção na prisão de Tocorón, por ordem do governo de Nicolás Maduro, desmantelou a base de operações do Tren de Aragua, uma das facções criminosas mais temidas da Venezuela e com tentáculos em outros países da América Latina, como o Brasil. O impacto ainda é sentido em torno da prisão. Já não se veem dezenas de mulheres carregando pacotes com alimentos e roupas para seus parentes presos. Nem crianças que apressam as mães para chegarem rapidamente à piscina. As vendas de cerveja e a maioria dos comércios da cidade de Tocorón, no Estado de Aragua, estão fechados. Os quiosques e barracas de tijolos em frente à prisão, onde os visitantes pagavam US$ 1 (R$ 5) para guardar seus celulares, parecem abandonados. Enquanto isso, continua a demolição dos edifícios que compunham a prisão. Quando o governo anunciou a intervenção na prisão de Tocorón não pude acreditar. Estive lá há menos de um ano, porque queria saber como era a prisão que servia de "quartel-general" do Tren de Aragua para concluir o livro que estava escrevendo sobre esse grupo do crime organizado cujo poder se espalhou por todo o continente. Fim do Matérias recomendadas Foi o que vi quando entrei na casa de Niño Guerrero, líder da gangue e hoje um dos homens mais procurados da América Latina. "É a primeira vez que você vem?", perguntou Julio, o preso que me recebeu naquele domingo e me mostrou as instalações do emblemático Centro Penitenciário de Aragua, mais conhecido como Tocorón, ou como os presos o chamavam: a Casa Grande. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Essa prisão foi construída em 1982 na cidade de Tocorón, localizada a cerca de 140 quilômetros a sudoeste da capital Caracas. Inicialmente, sua área de 2,25 quilômetros quadrados tinha capacidade para 750 presos, mas chegou a abrigar mais de 7 mil apenas nos anos de fortalecimento e ampliação do Tren de Aragua, entre 2015 e 2018. "Devo fazer um tour com você", insistiu Júlio, como se fazer um tour pelas instalações da prisão fosse uma atração imperdível. Não tinha ideia do que estava prestes a ver. Enquanto andava pelo local, comecei a duvidar do que via. Tocorón não era uma prisão qualquer, era um parque temático. Algo semelhante ao Velho Oeste de Westworld, a distópica série de televisão da HBO. Piscinas, zoológico, quadras esportivas, casinhas com telhado de zinco, restaurantes, estádio de beisebol, academia de ginástica, drogarias, motocicletas e armas de fogo... Todas as imagens que circularam nas redes naquele dia desde a filmagem de alguns dias atrás eram reais. "Guerrero", disse Julio, referindo-se a Héctor Rusthenford Guerrero Flores, ou Niño Guerrero, o chefão de Tocorón e do Tren de Aragua, "sempre diz que não descansará até converter esta prisão na urbanización (bairro) de Tocorón", assegurou ele durante a nossa conversa, num espaço climatizado para visitantes, com televisão, cadeiras e mesas de madeira. Na Venezuela, as áreas residenciais, onde vivem a classe média e os ricos, são conhecidas como "urbanización". Mas Tocorón, mais do que um bairro, estava mais perto de ser uma pequena cidade. A prisão contava com uma central elétrica gigante para neutralizar as falhas no fornecimento de energia que são comuns na Venezuela. Contava também com sua própria equipe de técnicos (presos), uniformizados com jeans e camisetas coloridas, encarregados de manter e supervisionar o sistema elétrico do presídio. "Os técnicos aqui são tão bons que tem gente que manda vir buscá-los para fazer reparos quando há falta de energia nas cidades próximas", comentou Júlio. A obsessão de Guerrero em transformar Tocorón num bairro poderia explicar a quantidade de edifícios e instalações recreativas que existiam na prisão, bem como o desejo de ordem e segurança. Todos os espaços da prisão eram vigiados por homens armados com fuzis AR-15, AK-103, pistolas calibre 9 milímetros e espingardas. Esses guardas também eram presos e no jargão do presídio são conhecidos como gariteros. O zoológico, que dava para uma grande montanha com muita vegetação, tinha dois guardas para cuidar dos animais. Dizia-se que uma cobra de grande valor para Guerrero escapou e, desde então, os pranes, como são chamados os líderes penitenciários na Venezuela, fizeram questão de que isso não voltasse a acontecer. Passarinhos, macacos, avestruzes, felinos, galinhas, cavalos, porcos e bovinos, estavam todos em gaiolas ou espaços perfeitamente adaptados para cada espécie. Havia até pequenas placas ou cartões que descreviam as características de cada um. Nessa mesma área ficava também a rinha de galos, uma impressionante construção de concreto onde se organizavam as disputas com apostas. Ao lado, um estádio de beisebol com grama artificial reformado por Guerrero. A minha visita foi vigiada por dois homens armados, com pistola e fuzil, a partir de um posto de controle improvisado a três metros de nós. Durante esse trajeto, encontrei homens armados a cada 100 metros, além de outros que circulavam em motocicletas. Encontrei locais para apostar em corridas de cavalos, e o que mais chamou a atenção foram as lojas dedicadas exclusivamente à venda de entorpecentes: da maconha à cocaína, passando por drogas sintéticas. A cada passo, identificava lugares que via desde 2016 em fotos ou vídeos vazados, ou recriados com base em depoimentos de pessoas conhecidas. "Olha só. É a Boate Tokio", disse a mim mesma quando passamos perto do popular local, palco das famosas festas do Tocorón. Consegui identificá-lo com dificuldade, pois a fachada estava coberta com uma lona preta. Ao sair da prisão, um ex-integrante da organização me explicou que em meados de 2022 os pranes haviam recebido ordem do governo (sem especificar de onde ou de quem) para fechar a boate. Era uma questão de discrição, de não continuar chamando a atenção, porque as festas continuaram na prisão. Essa medida talvez possa ser um sinal do início do fim de Tocorón. Naquela época, Guerrero também ordenou que seus aliados suspendessem os golpes de venda de veículos que eram feitos em diversas prisões, por meio do Facebook Marketplace. O escândalo atingiu diferentes setores da sociedade e afetou até autoridades. A conversa informal com Júlio ocorreu enquanto ele saboreava a baguete que eu havia levado para ele. Ele contou que nem sempre tinha a oportunidade de comer pão e beber refrigerante. E raramente recebia visitas. Porém, ele me contou que em Tocorón havia presos em piores condições. Eram chamados de varones, manchados e ovejas, estavam na base da camada social do presídio, presos que não tinham família ou que infringiam algumas regras impostas pelo pran. Eles ficavam confinados em determinadas áreas, das quais não podiam sair, e sem acesso às piscinas, restaurantes ou à boate. Para serem identificados, eles deveriam usar camisa de manga comprida com estampa xadrez ou listrada e usar gravata. Muitos desses homens pareciam famintos e moviam-se como zumbis. "Isto é para milionários. Esta prisão é para milionários. Aqui, tudo é dinheiro", alertou Júlio, com um gesto de resignação. "Todos nós temos que pagar US$ 15 (valor que a população carcerária paga ao pran para permanecer na prisão sem receber castigos físicos) por semana." Os prisioneiros também tinham que pagar pelas ligações telefônicas e outras comodidades. As tarifas eram variadas: US$ 20 (R$ 100) para aluguel de cama individual de 2 x 2 metros, US$ 30 (R$ 150) para estadia de final de semana de seus cônjuges, entre outros. Me chamou atenção que dentro da prisão havia comércios com adesivos Balenciaga, Gucci ou Nike nas vitrines. O que não pude ver ali foram as moradias dos pranes, pois ficavam em uma área onde só podiam entrar pessoas próximas aos dirigentes do Tren de Aragua. Mas me contaram que também havia piscinas e churrasqueiras construídas para os líderes nessa zona. Esse universo paralelo foi desmantelado após a intervenção do governo, da qual participaram 11 mil agentes. "Descobrimos um grande número de espaços inadequados para o funcionamento deste tipo de instalação", disse o ministro das Relações Interiores da Venezuela, almirante Remigio Ceballos, que comandou a tomada militar da prisão. Hoje, o destino de Julio é desconhecido, assim como o de dezenas de prisioneiros de Tocorón e o do pran, o Niño Guerreiro, que está foragido. A tomada da prisão foi um duro golpe para a organização criminosa. Mas não está claro se é o fim da facção mais poderosa da Venezuela que, a partir desta prisão, expandiu as suas atividades criminosas para a Colômbia, Brasil, Peru, Equador, Bolívia, Chile e possivelmente para os Estados Unidos.
2023-10-03
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O surpreendente 'país' onde imigrantes brasileiros podem ser 30% da população
Se para boa parte dos brasileiros a palavra "Oiapoque" é o sinônimo imediato do ponto mais ao norte do país, para um grupo cada vez maior ela também significa a entrada para uma vida no exterior. É ali, naquela cidade do Amapá, que o Brasil encontra a Guiana Francesa, um departamento ultramarino da França na América do Sul — uma espécie de Estado que não faz parte da França Metropolitana (que fica na Europa), mas que é parte do país. É um número que vem aumentando ano após ano — eram 82,5 mil em 2021, e 72,3 mil em 2020, segundo os dados do Itamaraty. O órgão não faz distinção de status migratório (legal ou ilegal) nas estatísticas sobre comunidade brasileira no exterior. “Você ouve português em todo lugar. De leste a oeste, há brasileiros aqui”, diz a maranhense Vaneza Ferreira, que mora na Guiana Francesa há 24 anos e trabalha numa organização humanitária com atuação na fronteira e com povos tradicionais. Fim do Matérias recomendadas Considerando a população total da Guiana Francesa de 301 mil habitantes (equivalente à de Palmas, capital do Tocantins), segundo estimativas do Insee, o órgão de estatísticas demográficas da França, o número do Itamaraty equivaleria a quase um terço (30,3%) dos moradores daquele território. Uma fonte do Itamaraty ressaltou à BBC News Brasil que essa proporção pode ser um pouco menor na realidade, já que a população total da Guiana Francesa deve ser maior que os 301 mil, caso fossem consideradas as pessoas que vivem ali sem documentação. Segundo a estimativa do Brasil, dos 91,5 mil brasileiros no território franco-guianense, 89 mil estão em Caiena, a capital, a cerca de 200 km da fronteira com o Amapá, e 2,5 mil na região da cidade de Saint Georges de L'Oyapock, do outro lado da fronteira com o Oiapoque. Do lado das estatísticas oficiais francesas, dados de 2020 do Insee apontavam que cerca 30% dos moradores registrados na Guiana Francesa são imigrantes da América, Ásia e Oceania, sem especificar os países . Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O que torna a Guiana Francesa especialmente atrativa a brasileiros em primeiro lugar, segundo especialistas e moradores do país, é a moeda. Como é parte da França, os trabalhos são pagos em euro. Na cotação no início de outubro, 1 euro equivale a aproximadamente 5,30 reais. “Eles conseguem ganhar valores que nunca ganhariam no Brasil, em funções como pedreiros, por exemplo”, diz a socióloga Rosiane Martins, professora da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) que desenvolveu pesquisas no Pará e Amapá sobre o movimento migratório à Guiana Francesa. Além da busca pelo salário em euro, que possa patrocinar uma vida melhor da família por meio de envio de recursos ao Brasil, a migração à Guiana Francesa também tem outras especificidades, segundo a pesquisadora e especialistas no assunto. A maioria dos brasileiros que vai para o território é natural de Estados próximos geograficamente, principalmente Amapá, Pará e Maranhão. São, na maior parte, homens, que buscam empregos na área da construção civil e no garimpo. Como um ato de esforço do governo francês de coibir a entrada ilegal de brasileiros no território, é necessário um visto de turismo, que é solicitado nos consulados da França no Brasil, para acessar temporariamente a Guiana Francesa. Com dinheiro para uma passagem aérea, é mais fácil ir como turista à França, na Europa, onde o brasileiro não precisa de visto. Desde 2020, também foi suspensa a emissão de vistos para Guiana Francesa em Macapá, a capital mais perto da fronteira. Os interessados precisam ir até Brasília para realizar o procedimento. Na ponte binacional entre as duas cidades, inaugurada em 2017 após muito atraso, brasileiros precisam mostrar visto e, caso estejam de carro, pagar um seguro de automóvel de até 175 euros. A travessia por barco, muitas vezes sem fiscalização, segue sendo a mais utilizada. Uma fonte do Itamaraty afirma que essas medidas tomadas pela França acontecem porque, "se não, a Guiana Francesa iria virar brasileira, dada a dimensão da população do Brasil e a pressão demográfica que isso iria causar”. A mão de obra brasileira foi até incentivada, diante do vazio populacional que existia naquele território. Em 1974, eram estimados 1,5 mil brasileiros ali, em geral qualificados para construção e atuação. Esse primeiro grupo é considerado por pesquisadores como parte de uma “migração familiar”, que ocorreu com a ida de famílias inteiras ou ainda com as políticas de reunificação familiar a partir de 1976. Essas pessoas formaram uma comunidade estável e permanente, inserida na sociedade local. Mas, após o término das obras, os brasileiros seguiram sendo mão de obra primordial na construção da infraestrutura francesa. Desde aquela época até hoje, há relatos de brasileiros reunidos “na praça das Palmeiras (centro de Caiena) onde aguardavam os empreiteiros chegarem com as pickups anunciando obras”. As notícias sobre as oportunidades correram nos Estados vizinhos, atraindo mais e mais imigrantes, grande parte com baixa escolaridade e sem os documentos legais. Também foram chegando mais moradores à cidade de Oiapoque, atraídos pelas oportunidades na vida fronteiriça, como a possibilidade de ganhar em euro e gastar em real. Em 2000, eram 12 mil moradores na cidade; em 2010, já eram mais de 20 mil; em 2022, a população chegou a 27 mil, segundo o IBGE. Natural da cidade de Santa Helena, no Maranhão, Vaneza Ferreira tinha 12 anos, em 1999, quando atravessou com a mãe, que se casou com um franco-guianense, para o lado francês da fronteira. Ela faz parte da geração que se estabeleceu permanentemente no território e se considera parte da “diáspora brasileira, que já tem pessoas de até terceira e quarta geração”. “Eu me reivindico franco-guianense-brasileira, porque a Guiana adotou a gente”, diz. Do outro lado dessa moeda, há milhares de brasileiros que não criam vínculos com o território e vão ali muitas vezes para atuar em atividades ilegais, como o garimpo em minas de ouro, explica a pesquisadora Rosiane Martins. "Se pensar nos migrantes clandestinos, é incontável. A cada legalizado que eu encontrava morando lá, havia até sete morando em sublocações, de forma irregular". diz Martins. São, em geral, homens que cruzam o rio no Oiapoque para ganhar algum dinheiro e voltar ao Brasil. Muitas vezes são detidos e levados pela polícia francesa de volta ao Amapá. As mulheres conseguem vagas na faxina, cozinha e muitas vezes são exploradas numa rede de prostituição. Segundo um relatório de 2016 da então Agência Francesa de Coesão Social e Igualdade de Oportunidades, o crescimento da população brasileira na Guiana Francesa está principalmente relacionado ao ressurgimento da atividade de mineração de ouro desde meados da década de 1990. De acordo com Martins, as redes que cooptam esses migrantes atuam principalmente no Maranhão, Amapá e Pará. Muitos desses imigrantes vivem no vai e vem na fronteira, mas outros acabam tentando a vida em Caiena, onde vivem em situação extremamente vulnerável, invadindo terrenos e criando ocupações e favelas. "Eles vão ficando porque é perto, fácil de voltar ao Brasil, tem o fuso horário igual, clima igual. E acabam convivendo bem numa sociedade multiétnica", explica Martins. "Alguns vão querendo voltar, mas não conseguem fugir mais dessa realidade". “A gente que está dentro da sociedade, temos nossa segurança, como se proteger. Mas essas pessoas são exploradas, estão em risco constante. As pessoas precisam tomar cuidado com a ilusão desse trabalho ilegal. A gente recebe todos os dias notícias dramáticas vindas da floresta”, diz Vaneza Ferreira, que vê de perto a realidade no seu trabalho. Uma fonte do Itamaraty com relações na Guiana Francesa disse que “vira e mexe recebe no celular foto de cadáver". "Também presenciei a situação de humilhação de centenas de brasileiros que são deportados toda semana para Belém e Macapá”, disse a fonte. O caminho para se legalizar é considerado cada vez mais difícil. Mas isso não quer dizer que o fluxo diminui. "São pessoas que consomem, trabalham por um valor baixo, fazem parte da economia. Então, em momentos de necessidade, a fiscalização diminui, não colocam tantas barreiras", diz Rosiane Martins. A presença massiva de brasileiros na Guiana Francesa pode ser percebida no dia a dia no território, segundo moradores. Há restaurantes do tipo self service com churrasco espalhados por Caiena, festas onde se ouve música pop brasileira e igrejas evangélicas nos bairros. “Quando cheguei aqui, o açaí por exemplo só era consumido por brasileiros. Hoje é universal e todo mundo aqui come, como o paraense, acompanhado de um peixe frito, uma carne”, diz Pierre Cupidon, 35 anos, que trabalha como DJ e na construção civil, instalando redes de água e internet. Como o pai dele era da Guiana Francesa, ele se mudou com a mãe de Belém para a região de Caiena em 2002. "Há festas que eu só toco música brasileira. Claro, há influências de outros países também, mas o Brasil é muito presente". Outro exemplo é no vocabulário, que muitas vezes mistura o francês com o português e até com o creole (a língua local). “Tem gente que chama 'amiga' aqui de ‘copina’. É como se fosse uma aportuguesada de ‘copine’, que é 'amiga' em francês”, exemplifica Vaneza Ferreira. Diante de um território diverso em origens, os brasileiros sentem que há uma intensa troca cultural. “É engraçado porque a gente ainda é bem pequenininho comparado a outras cidades do Brasil, mas a diversidade cultural é enorme, enriquece o território”, diz Ferreira. “O povo em si aqui se sente mais parte da América Latina do que da França”, opina Cupidon. A chamada região das Guianas (que inclui Guiana Francesa, Suriname, Guiana e ainda o Estado brasileiro do Amapá e a região venezuelana de Guayana) foi alvo de disputa entre os colonizadores europeus desde o século 16, com a presença de espanhóis, portugueses, ingleses, holandeses e franceses. A Guiana (antes chamada de Guiana Inglesa) conseguiu independência do Reino Unido e se tornou um país em 1966. O Suriname (antes Guiana Holandesa) passou pelo mesmo processo em 1975, separando-se do Reino dos Países Baixos. A ocasionalmente chamada "Guiana Portuguesa" virou Estado do Amapá no Brasil, e a parte da Guiana Espanhola somou-se à Venezuela. A Guiana Francesa, por sua vez, nunca se separou da França. Oficialmente, o território faz parte da União Europeia, sua moeda oficial é o euro e sua população tem cidadania francesa. Economicamente, a Guiana Francesa segue dependente da França. Como boa parte da América do Sul, o território foi colonizado como uma sociedade escravista, onde plantadores importavam escravizados da África. Após o fim da escravidão, a França estabeleceu ali uma colônia penal, com uma rede de campos e penitenciárias onde prisioneiros do país eram enviados a trabalhos forçados. A primeira onda de imigração à região aconteceu com os chineses ainda no século 19, para trabalhar nas plantações de açúcar, e de pessoas vindas da ilha caribenha de Santa Lúcia. A partir dos anos 1960, porém, três grupos se sobressaíram nesse movimento migratório: os haitianos (também colonizados por franceses), os vizinhos surinameses e os brasileiros. Em 2016, essas três nacionalidades representavam 90% de todos os imigrantes do país, segundo o órgão de estatísticas da França.
2023-10-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51q1qqqww1o
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Motorista e entregador: onde trabalhadores de app têm mais direitos que no Brasil
Motoristas e entregadores devem ter um piso de pagamento por hora trabalhada para plataformas de entrega e de transporte de passageiros? Como podem ter acesso a aposentadoria e auxílios em casos de acidente? Quanto e quem deve pagar por isso? A resposta para questões que definem direitos e deveres de trabalhadores de plataformas está ligada a uma disputa que tem gerado debate no mundo inteiro: como enquadrar a relação entre eles e as empresas da área. Se esses trabalhadores não têm todas as características de empregados tradicionais e tampouco de autônomos da forma que conhecemos, como definir o tipo de vínculo com as plataformas? Essas atividades estão no que pesquisadores da área chamam de “zona cinzenta” – quer dizer, quem não é geralmente considerado empregado nos moldes tradicionais, mas também não tem todas as características de um trabalhador autônomo. Fim do Matérias recomendadas Enquanto o governo brasileiro discute com empresas e trabalhadores quais podem ser as propostas de regras para a área (leia mais abaixo), o que está sendo feito em outros países? Em países como Chile e Espanha, foram criadas leis que garantiram direitos específicos para a categoria. Na França, a legislação exige que as empresas ofereçam determinados seguros aos trabalhadores. Já no Reino Unido, a decisão sobre direitos da categoria tem ficado na mão dos tribunais. Nesta reportagem, conheça os principais caminhos que governos e cortes de justiça na Europa e na América Latina estão tomando – e onde trabalhadores de aplicativo encontram regras que hoje garantem mais direitos do que no Brasil. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Antes, é preciso entender a dificuldade de enquadrar trabalhadores da economia das plataformas em leis preexistentes em diversos países. O professor de Direito da Universidade de Bristol (Reino Unido) Manoj Dias-Abey explica que, com a existência de apenas duas categorias principais – empregado e autônomo – na maiorias dos países, há diversas disputas judiciais para questionar em qual modalidade se enquadram esses trabalhadores. São, por exemplo, ações que pedem o reconhecimento de trabalhadores de plataforma como empregados em vez de autônomos (veja abaixo o exemplo do Reino Unido). “Esse tem sido um tema muito polêmico no mundo. O problema é que existe uma classificação binária na maioria das jurisdições (empregado e autônomo) e você tem que ser caracterizado como empregado para obter acesso a proteções de emprego – como salário mínimo, férias e licença médica – enquanto os autônomos não têm direito a nenhum deles”, afirmou à BBC News Brasil o professor da instituição britânica, que tem pesquisas focadas em direito do trabalho, migração e política econômica. O economista Leonardo Rangel, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) com foco em trabalho e previdência, diz que, entre o que seriam características de uma forma clássica de relação de emprego, está o fato de os motoristas estarem subordinados a um algoritmo das empresas que gerencia e avalia o trabalho. Ao mesmo tempo, aponta que a característica mais marcante de trabalho independente nesse modelo é, em teoria, a flexibilidade. "Você tem, ao mesmo tempo, um trabalhador subordinado ao algoritmo, cujo trabalho é gerenciado e avaliado por ele, mas ao mesmo tempo ele pode desligar o aplicativo e fazer outra coisa no momento que ele quiser." Apesar de a questão levantar debate no mundo inteiro, pode afetar de forma diferentes os países, dependendo do cenário socioeconômico. Um ponto importante que marca a diferença dos efeitos desse tema na Europa e na América Latina, segundo Rangel, é o nível de informalidade aos quais estão acostumados. Enquanto no Brasil e em seus vizinhos a informalidade é um traço histórico, diz ele, para os europeus, “a grande novidade é você ter um setor da economia estruturado com base no trabalho desregulado e desprotegido”. “O trabalho em plataforma não é culpado pela grande informalidade nesses países da América Latina, mas acaba jogando luz (nesse problema) porque tem roupagem moderna”, diz. “O dilema é como faz para proteger, para regular, sem parar as inovações.” Em uma decisão recente, por exemplo, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu um processo em trâmite na Justiça do Trabalho que reconhecia o vínculo de emprego de um motorista com uma plataforma. Em uma análise preliminar, o ministro considerou que a decisão destoava da jurisprudência do Supremo no sentido da permissão constitucional de formas alternativas à relação de emprego. Pasqualeto diz que “existe uma certa dúvida sobre o que acontece na jurisprudência – o que não é bom para ninguém” e afirma que “a regulação seria muito bem-vinda”. “Hoje quando um trabalhador me pergunta: você acha que devo propor uma ação judicial? Tenho chance de ser considerada empregada? (Eu digo que) olha, depende né? Depende do tribunal, de onde é a ação, o que aconteceu”, diz ela, que também é pesquisadora no Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV e no FGV Cidades. Como, então, os países estão encontrando saídas para esta questão? Rangel analisou mudanças tomadas em 15 países na Europa e na América Latina nos últimos anos e destacou três principais caminhos: Um dos caminhos é a decisão judicial, quando acaba nas mãos de cortes superiores determinarem regras para o tratamento desses profissionais. O maior exemplo nesse sentido é o Reino Unido, onde a Suprema Corte decidiu em 2021 que os motoristas eram "trabalhadores" (workers, em inglês), categoria profissional que faz com que tenham direito a salário mínimo, férias e aposentadoria. Essa categoria é uma modalidade intermediária, segundo as leis britânicas – fica entre o empregado (employee) e autônomo (contractor). “A decisão da Suprema Corte se baseou na análise do grau de controle que a Uber exercia sobre seus motoristas e na natureza do relacionamento entre a empresa e seus motoristas. Os juízes concluíram que os motoristas eram controlados de forma significativa pela empresa, o que indicava que eles eram trabalhadores com subordinação bem definida e deveriam ser contratados como empregados”, explicou Rangel. Manoj Dias-Abey, da Universidade de Bristol, diz que, embora essa decisão tenha sido relativa aos motoristas da empresa, entregadores de delivery em moto usaram essa decisão para tentar negociações coletivas – “não tiveram sucesso até agora, mas seus casos estão prestes a chegar ao Supremo Tribunal muito em breve”, disse. Outro caminho é a criação de uma lei, por meio de um projeto de lei enviado pelo governo ou do próprio Congresso para regular o trabalho. “Em algumas situações, como caso do Chile e do Uruguai, você cria condições específicas para o trabalhador independente. Você deixa bem claro que tem os padrões mínimos dos requisitos que as empresas precisam seguir, mas não as obriga a contratá-los como empregados”, diz Rangel. Em 2022, o Chile aprovou lei para regular as novas formas de trabalho trazidas pelo uso de plataformas digitais. Um dos pontos centrais da reforma chilena é que o trabalhador de aplicativo pode ser considerado como dependente ou autônomo em relação às plataformas digitais, dependendo de condições do código de trabalho chileno. Entre as normas estabelecidas no Chile, estão a exigência de arrecadação tributária e acesso à proteção social. Também ficou estabelecido que o valor da hora de trabalho não poderá ser inferior à proporção do salário mínimo mensal por hora, com um acréscimo de 20%. Além disso, a lei estabelece o tempo mínimo de desconexão de doze horas contínuas em um período de 24 horas. No Uruguai, em 2022, o governo apresentou ao Congresso projeto de lei para regular o trabalho em plataformas digitais de entrega de mercadorias e transporte de passageiros. A proposta prevê o acesso aos benefícios da seguridade social por meio de contribuição através de um sistema (chamado Monotributo) mais barato e menos burocrático que as outras formas de recolhimento. Na Europa, o maior exemplo é a Espanha, que obrigou empresas, com a Ley Rider, de 2021, a contratarem entregadores como empregados. Ao serem contratados como empregados, segundo as leis do país, passaram a ter direito a jornada de trabalho regulada, descanso e férias remuneradas, licença maternidade, e cobertura do sistema de proteção social. “As consequências para cada uma dessas intervenções sempre há. Na Espanha, as notícias foram de que no curto prazo houve diminuição da oferta de trabalho, mas depois o número de entregadores estava crescendo”, diz Rangel. “O terceiro caminho – que tem sido adotado até o momento pela França, por exemplo, e pela Dinamarca – é obrigar uma maior responsabilidade da empresa no sentido de mais responsabilidade social: vem cá, você tem que oferecer seguro de acidente de trabalho para esses profissionais, um seguro de substituição de renda caso adoeçam”, diz Rangel. Ele explica que, nessa linha de entendimento, não existe um mecanismo estatal para oferecer benefício da seguridade social, “mas o Estado entra obrigando as empresas a oferecerem por conta delas mais proteção para o trabalho”. Na França, onde não há categoria além de empregado ou autônomo, foram feitas nos últimos anos mudanças nas leis relativas ao trabalho em plataformas digitais. A Lei El Khomri, de 2016, mesmo sem entrar no debate se o trabalhador de aplicativo é empregado ou prestador de serviço, determinou que as empresas ofereçam seguros individuais contra acidente de trabalho e doença. Em 2019, outra lei francesa estabeleceu que trabalhadores de plataforma podem se recusar a prestar um serviço sem que isso resulte em sanção – isso, segundo Rangel, significa que essas decisões dos trabalhadores não podem mais ser usadas pelas plataformas para sancioná-los e tampouco para rescindir uma relação contratual. A discussão sobre o que devem ser as regras do trabalho para plataformas vem crescendo no Brasil, onde o Ministério do Trabalho discute com plataformas e trabalhadores os termos para uma proposta de regulação a ser enviada ao Congresso Nacional. E quais são os pontos sobre os quais se espera definições no Brasil, segundo os especialistas? “Remuneração, saúde, segurança, transparência e previdência são os pontos sobre os quais conversamos. Os aplicativos não querem fazer nada”, disse o presidente da Associação dos Motofretistas de Aplicativos e Autônomos do Brasil (AMABR), Edgar Francisco da Silva, o Gringo, que defende um formato de remuneração que considere hora logada nos aplicativos (em vez de tempo de entrega). Procurada pela BBC News Brasil, a Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec) – que representa empresas de mobilidade como iFood e Uber – disse que “a relação entre empresas e profissionais não caracteriza vínculo nos moldes da CLT, formato que não se adequa à realidade criada pelo trabalho em plataformas”. A associação afirmou, ainda, que participa “de forma construtiva” do grupo de trabalho “para propor uma regulação para o trabalho executado por intermédio de plataformas tecnológicas”. Em discurso na assembleia da ONU, nos Estados Unidos, Lula disse em setembro que “aplicativos e plataformas não devem abolir as leis trabalhistas pelas quais tanto lutamos”. Esse tema foi mencionado no plano de governo de Lula, enquanto era candidato. O documento mencionava que sua gestão revogaria o que chamou de "marcos regressivos" da legislação trabalhista e dizia que o governo pretendia propor "uma nova legislação trabalhista de extensa proteção social a todas as formas de ocupação, de emprego e de relação de trabalho, com especial atenção aos autônomos, aos que trabalham por conta própria, trabalhadores e trabalhadoras domésticas, teletrabalho e trabalhadores em home office, mediados por aplicativos e plataformas". Após assumir o comando do Ministério do Trabalho, o ministro Luiz Marinho disse que daria prioridade à "regulação das relações de trabalho mediadas por aplicativos e plataformas, considerando especialmente questões relativas à saúde, segurança e proteção social". A ideia, segundo ele, é "assegurar padrões civilizados de utilização dessas novas ferramentas". No início do ano, Marinho disse que pretendia apresentar uma proposta de regulação do trabalho por aplicativo no primeiro semestre – o que não aconteceu. Nas últimas semanas, a expectativa era de que o grupo de trabalho chegasse ainda em setembro a uma proposta a ser encaminhada ao Congresso – com regras para jornadas, remuneração e proteção social dos trabalhadores –, mas isso ainda não aconteceu.
2023-10-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/crg0pr7l0ljo
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Brasil teme nova crise de imigrantes no Acre após Peru e Chile aumentarem controles
"No Peru, é muito difícil conseguir documentação. Eu praticamente não existia no Peru. Não consegui abrir conta no banco", conta Andreina Veliz Ramirez, imigrante venezuelana de 37 anos. Hoje, ela mora em Rio Branco, no Acre, depois de quase cinco anos no país vizinho, onde trabalhou como auxiliar de cozinha e vendedora ambulante. Andreina foi um dos 3.375 venezuelanos que ingressaram no Brasil em 2022 pela fronteira do Acre com o Peru, um aumento expressivo em comparação com 2021 quando 1.862 entraram, e com 2020 quando 572 entraram, segundo dados coletados pela Polícia Federal no município fronteiriço de Assis Brasil e obtidos pela BBC News Brasil. No passado haitianos eram maioria, mas hoje, os venezuelanos são, com quase exclusividade, o maior grupo estrangeiro que entra no Brasil pela fronteira com o Acre. Desde o ano de 2020, mais de 8,5 mil venezuelanos cruzaram a fronteira Brasil-Peru-Bolívia pela cidade de Assis Brasil. Só até 12 de setembro deste ano, foram 2.706. Fim do Matérias recomendadas Especialistas locais ouvidos pela BBC News Brasil explicam que o endurecimento das regras da migração no Peru e Chile, incluindo a militarização das fronteiras desses dois países, contribuem para esse aumento de migrantes venezuelanos para o Brasil. O número crescente de imigrantes já sobrecarrega abrigos, segundo as autoridades locais, e desperta temores de uma nova "crise migratória", como visto no Estado em 2013 e 2021. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Esses receios são acentuados por um decreto governamental do Peru, que pretende expulsar estrangeiros indocumentados, que entrará em vigor em 28 de outubro. "Esta nova política do governo peruano nos preocupa muito, porque seremos aquele local para onde os imigrantes vão recorrer na primeira hora”, diz Letícia Mamed, professora e pesquisadora da Universidade Federal do Acre (Ufac) que estuda migração no Brasil. "Não consigo nem imaginar como isso não vai sobrecarregar nossas bases de apoio aqui, porque elas existem, mas são pequenas", acrescenta. "A expectativa é exatamente essa, que haja uma intensificação dos fluxos aqui pela nossa fronteira, o que é bastante complicado porque hoje já temos um fluxo muito intenso." Procurado pela BBC News Brasil, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) no Brasil, reconheceu a gravidade da situação do Acre e afirmou que "a América Latina e o Caribe enfrentam uma crise de deslocamento sem precedentes, tanto em sua complexidade quanto em sua escala". "O deslocamento forçado na região, inclusive através das fronteiras do Acre, está sendo gerado por causas básicas, contínuas e intensas, como violência, insegurança, desigualdade e violações dos direitos humanos", observa o Acnur. "Esta situação é agravada pelo aumento da xenofobia e pelo pesado tributo que a pandemia da covid-19 causou às pessoas mais vulneráveis da região." Semana passada, a Anistia Internacional lançou o relatório "Regularizar e Proteger: Obrigações internacionais para a proteção dos cidadãos venezuelanos" que destacou o "crescente êxodo de venezuelanos" e "o fracasso da Colômbia, Peru, Equador e Chile em cumprir suas obrigações". "Diante de uma crise sem precedentes na região, Colômbia, Peru, Equador e Chile não conseguiram ou não quiseram proteger aqueles que fogem da Venezuela. As diversas medidas e programas que estão a implementar para lhes oferecer o estatuto regular de migrantes não cumprem os padrões definidos pelo direito internacional. Estes Estados têm a oportunidade e a obrigação de proteger com urgência os mais de 5 milhões de venezuelanos nos seus territórios", afirmou Ana Piquer, diretora para as Américas da Anistia Internacional. As autoridades do Acre já sentem a pressão migratória. O Estado tem três casas de passagem, locais onde os imigrantes podem tomar banho, comer e dormir e depois seguir viagem. Uma fica em Assis Brasil, na fronteira com o Peru, outra em Brasiléia, a duas horas de carro da fronteira, e outra em Rio Branco. Aurinete Brasil, assessora técnica regional da organização humanitária Cáritas no Acre, conta à BBC News Brasil que, quase todos os dias, cada casa está operando perto ou acima da capacidade. Às vezes, estes locais recebem até o dobro de pessoas do que o número máximo para o qual foram planejados, observa a assessora. "O Acre não tem condições hoje de acolher 200 pessoas, se chegarem ao mesmo tempo", diz ela. "Infelizmente, as nossas fronteiras, nosso Estado, não tem uma política adequada, uma política de acolhimento, integração, proteção ao migrante e refugiado. Assim como a maioria dos Estados", acrescenta. "O Brasil abre os braços, mas não abraça." Ela destaca as violências sofridas no Estado por imigrantes que não têm onde ficar. "Se ele [o imigrante] não tiver dinheiro para pagar uma noite no hotel, ele acaba nas ruas, vulnerável a todo e qualquer tipo de violência", afirma. "Pode ser abordado por narcotraficantes, também por pessoas em situação de rua que estão em situação de dependência de drogas, [pode sofrer] violência. Já acolhemos muitas imigrantes que foram violentadas nas ruas. Se for mulher a violência é dobrada, triplicada." Em junho deste ano, o governo do Estado montou uma sala de emergência — uma espécie de gabinete de crise « para colher informações dos órgãos policiais e das instituições que trabalham com atendimento a imigrantes para monitorar as fronteiras do Acre. Uma equipe interministerial do governo federal visitou o Estado no mês seguinte com o objetivo de conhecer as dificuldades nos serviços oferecidos aos migrantes. "A missão do governo federal realizou visitas técnicas a autoridades locais para tratar da situação migratória em municípios do Acre. Visitou casas de passagem, com o intuito de conhecer a realidade local e definir estratégias de apoio ao Estado e aos municípios, por meio de um esforço interministerial", informou o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. "A questão migratória é uma demanda intersetorial, que exige políticas transversais nas três esferas de governo. Cabe ao MDS assegurar o acesso de imigrantes, inclusive aqueles que não possuem documentação, a todos os serviços, programas, projetos e benefícios da Assistência Social, em igualdade de condições com os nacionais." A BBC News Brasil também solicitou um posicionamento à secretaria de Direitos Humanos do Acre, liderada pelo pastor Alexander de Carvalho, mas depois de quase duas semanas não obteve retorno até a publicação desta reportagem. A pasta, porém, enviou por engano para a BBC uma resposta direcionada para uma outra autoridade que confirmou que o "Estado do Acre é visto como uma porta de entrada do Brasil". A principal rota de entrada de venezuelanos no Brasil continua sendo Roraima, Estado que faz fronteira com a Venezuela e que também registrou aumento de fluxo esse ano, com média mensal de cerca de 12 mil venezuelanos que entram no país pelas cidades Pacaraima e Boa Vista, segundo o General Helder de Freitas, coordenador Operacional da Operação Acolhida, programa que reassenta Venezuelanos no Brasil. A partir de Roraima, desde 2018, mais de 100 mil imigrantes foram reassentados em todo o Brasil, muitos nos Estados do Sul do país, como parte do programa Operação Acolhida, segundo dados do governo federal, que opera o programa. Autoridades do Acre e especialistas ouvidos pela BBC News Brasil esperam que o governo federal adote um programa similar para o Estado, adequado às necessidades e realidade local do Acre. O Brasil é o terceiro país que mais recebe refugiados e imigrantes venezuelanos na região (477.493, em agosto de 2023), atrás da Colômbia (2,9 milhões) e do Peru (1,5 milhão), de acordo com a Plataforma de Coordenação Interinstitucional para Refugiados e Migrantes da Venezuela (R4V). Os venezuelanos começaram a deixar o seu país em números significativos em meados da década de 2010. Muitos venezuelanos procuram melhores oportunidades e condições de vida no exterior. A emigração em massa da Venezuela ganhou impulso por volta de 2015 devido a uma grave crise econômica e política que assolou o país, caracterizada por hiperinflação, escassez de alimentos e medicamentos, instabilidade política e agitação social. Até hoje, segundo a Acnur, mais de 7,7 milhões de Venezuelanos deixaram o país em busca de uma vida melhor e a maioria – mais de 6,5 milhões de pessoas – foi acolhida em países da América Latina e Caribe. Em discurso no Dia da Independência do Peru, em 28 de julho, a presidente Dina Boluarte classificou alguns imigrantes no país como "criminosos" e apelou por uma mudança no código legal nacional para facilitar deportações. Também reforçou que, quando o atual prazo para solicitar a regularização temporária expirar em 28 de outubro, não haverá mais regularizações, e o país passará a deportar os imigrantes indocumentados. "Não haverá prorrogação. Aqueles que não cumprirem [o prazo para solicitar a regularização] serão expulsos do país", disse ela. Para Cécile Blouin, professora da Universidade Católica do Peru, o discurso reflete o clima atual no Peru. "Em 2017, você tem o primeiro momento de recepção de migrantes venezuelanos. E você tem o momento de acolher, [quando se dizia]: 'Ah, eles estão fugindo desse terrível governo de esquerda e temos que ajudá-los'. Mas isso não durou muito", diz a pesquisadora especialista em migração, asilo, fronteiras, gênero e racismo na América do Sul, com foco na Região Andina. Blouin critica a fala de Boluarte. "É um discurso que reflete muita xenofobia, no governo, no Congresso, em todos os poderes do Estado, mas também na população", diz ela. Dina Boluarte é a sétima pessoa a ocupar a presidência do Peru desde 2015, tendo substituído o esquerdista Pedro Castillo, de quem era vice, em dezembro de 2022. Castillo sofreu impeachment pelo Congresso e foi detido sob acusações de ter tentado um golpe de Estado. Mais de 60 pessoas foram mortas em protestos no início deste ano, e Boluarte enfrentou apelos para renunciar, com desaprovação de seu mandato por 90% da população. A rejeição ao atual Congresso peruano é ainda maior, de 94%. Tal como o Peru, o Chile também assistiu a uma onda xenofóbica, personificada pelo candidato presidencial de direita radical José Antonio Kast, cuja derrota nas eleições de 2021 foi precedida por uma onda de violência anti-imigrantes na cidade de Iquique. O candidato de esquerda Gabriel Boric ganhou as eleições e assumiu o poder em 2022 mas também tem trabalhado para endurecer regras migratórias. Desde fevereiro, o governo enviou tropas ao longo das suas fronteiras com a Bolívia e o Peru, a fim de impedir a entrada de imigrantes sem documentos, na sua maioria venezuelanos. Em abril, o governo peruano declarou estado de emergência e ordenou o envio das suas forças armadas para sua fronteira com Chile, em uma decisão que foi criticada pela Anistia Internacional, e que deixou centenas de migrantes, em sua maioria venezuelanos, presos no deserto do Atacama. Em uma coletiva de imprensa no Palácio, a presidente do Peru culpou abertamente os migrantes pelo aumento da criminalidade no país. "Aqueles que cometem assaltos, roubos e outros atos criminosos diariamente são estrangeiros. Por isso temos que reformular a lei de imigração, olhar para essa questão da migração", disse a presidente. "É uma retórica muito fácil, mas que não é apoiada por quaisquer fatos concretos", diz Cécile Blouin. "Existe a ideia de que antes da migração venezuelana, o Peru era muito seguro, mas nunca foi assim. Há muitas inseguranças de longa data, sentidas pela população em relação ao crime organizado, ao tráfico de drogas e ao Sendero Luminoso [grupo guerrilheiro peruano criado nos anos 1960]", observa a professora da Universidade Católica do Peru. Além da xenofobia, Blouin destacou as complexidades da regularização de imigrantes venezuelanos no Peru – custos financeiros, tempo, burocracia, regras complexas, deslocamento – especialmente para famílias com vários filhos. Embora Blouin e outros especialistas ouvidos pela BBC Brasil duvidem da capacidade do Estado peruano de expulsar fisicamente centenas de milhares de pessoas, ela diz que o decreto governamental cria um "clima de medo" em que as pessoas "convivem com o receio da deportação". "O outro problema do Peru é que a regularização não é gratuita. É preciso pagar, fazer a papelada, gastar dinheiro com isso", diz ela, sobre a taxa de regularização de 47,5 soles peruanos (R$ 62). Andreina Veliz Ramirez, imigrante venezuelana que mora hoje em Rio Branco, Acre, diz que sabe bem das dificuldades para se regularizar no Peru. Nascida em Guatire, a uma hora de carro da capital venezuelana de Caracas, e formada em Administração, ela deixou o emprego em um banco na Venezuela em 2017, precisamente quando o colapso econômico do país se agravou. Chegando ao Peru, ela teve dois empregos durante pouco mais de um ano. Pela manhã, trabalhava como auxiliar de cozinha e, à tarde, como vendedora ambulante. Depois de algum tempo comprou um freezer e bebidas e se dedicou apenas ao comércio. Ela diz que chegou a vender até 700 garrafas de água e refrigerante num dia só, trabalhando como vendedora ambulante autônoma na cidade de Ica, a 300 km da capital peruana, Lima. Em um dia bom, dava para ganhar 150 soles peruanos (cerca de R$ 200), diz ela. Mesmo assim, era uma vida longe de ser fácil. "Lá [no Peru] você tem a oportunidade de ganhar muito dinheiro. Mas você vive mal, vive triste, estressada, sempre cansada", diz ela. A dificuldade de se regularizar no país foi uma das duas principais razões para a saída, além da precariedade dos serviços públicos: a escola do filho era ruim e era preciso pagar, lembra. "Na cidade em que morava, não podia fazer a regularização, então eu precisava ir para Lima, com meu filho pequeno", diz ela. Frustrada, ela então ouviu que "o Brasil é melhor, a documentação é mais fácil". Chegando ao Acre, ela trabalhou em uma pizzaria em Brasiléia. "É uma cidade pequena, com poucas oportunidades para crescer, mas eu fui acolhida muito bem", diz ela. A rota migratória do Acre começou a receber maior fluxo de pessoas a partir de 2010, quando o terremoto no Haiti levou à entrada de grande número de haitianos, seguidos por africanos, principalmente do Senegal. Os dois grupos chegam à América do Sul via República Dominicana. Em 2013, houve uma crise causada pela superlotação de um abrigo, que tinha capacidade para 200 pessoas, mas se tornou moradia temporária de mais de 1,3 mil, para imigrantes principalmente haitianos, na cidade de Brasiléia. De acordo com dados do governo estadual, nos anos 2012, 2013, 2014 e 2015, o governo do Acre atendeu 42.074 migrantes, a maioria do Haiti. Mais recentemente, em 2021, durante a pandemia, um grupo de dezenas de imigrantes, na maioria haitianos, segundo a imprensa local, ficou acampado na Ponte da Integração, que conecta Iñapari no Peru com Assis Brasil, sem possibilidade de entrar no Brasil ou voltar ao Peru. A rota do Acre também é usada em menor escala por imigrantes que estão indo para os Estados Unidos. No início de setembro, três motoristas de táxi foram presos pela Polícia Federal levando 22 imigrantes vietnamitas para Assis Brasil. A rota é usada para subir pela América do Sul até o Darien Gap, passagem florestal que conecta a Colômbia com o Panamá e por onde esse ano já passaram 300 mil migrantes, segundo dados do próprio governo do Panamá. Em comparação, menos de 250 mil cruzaram a fronteira por esse caminho em todo o ano de 2022. De Darien Gap, os imigrantes na maioria continuam subindo para os Estados Unidos, onde, só em agosto deste ano, 91 mil pessoas foram presas pela Patrulha de Fronteira na fronteira com o México, informou o jornal The Washington Post. "Esse fluxo, que vem desde 2010, quando foi inaugurada essa rota, pelos imigrantes haitianos, nunca deixou de ser usado por imigrantes de todo o mundo", diz Letícia Mamed, da Ufac. "Claro que esse fluxo aumenta e diminui de acordo com a geopolítica global", observa. "Em 2010, eu imaginava que a situação dos haitianos era uma coisa passageira, relacionada ao terremoto, e que iria acabar. Mas não, na verdade os haitianos desbravaram essa rota, de acesso ao Brasil, e desde então a rota foi configurada, enraizou-se e é acessada por todas as nacionalidades que você pode imaginar." Hoje, em Rio Branco, Andreina Veliz Ramirez mora em um apartamento de um quarto, com o filho de 8 anos matriculado em uma escola pública. Ela vende água de coco e recebe o auxílio do Bolsa Família, direito que ela e todos estrangeiros registrados têm no Brasil. Para os imigrantes, diz Letícia Mamed, da Ufac, mesmo que às vezes haja dificuldade para achar emprego, a rede de proteção social do Brasil pode ser considerada boa. "Mesmo no Brasil, onde estamos nos reconfigurando economicamente e politicamente, depois dos últimos quatro anos, há uma estrutura de serviço social", diz ela. "O Sistema Único de Saúde é uma coisa incrível para os imigrantes", afirma, lembrando que o SUS opera em regime de "porta abertas" atendendo a todos, brasileiros ou não. "Eles consideram: 'Mesmo que eu não tenha um bom emprego aqui, tenho políticas públicas'. Então esse é um elemento que favorece para eles ficarem no Brasil ou pelo menos procurarem o Brasil até um dia poderem ir para os países mais avançados economicamente, como os Estados Unidos e locais da Europa", diz. Mas a vida dos imigrantes no Brasil, especialmente em Estados mais pobres como o Acre, pode não ser fácil. "É difícil ganhar dinheiro", lamenta Andreina. "Tenho um currículo extenso mas não consigo emprego formal. Tenho um filho pequeno e não consigo ir muito longe", diz ela.
2023-09-27
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv234k0y9p1o
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A caçada a líder de facção da Venezuela que já envolve 5 países da América do Sul
A detenção de Héctor Guerrero Flores, conhecido como Niño Guerrero e líder da gangue Trem de Aragua, não é mais apenas um objetivo das autoridades venezuelanas. As forças policiais de Chile, Colômbia, Equador e Peru juntaram-se à busca por Guerrero, depois que o governo do presidente Nicolás Maduro não conseguiu prendê-lo durante a operação para recuperar o controle da prisão que servia como centro de operações da organização criminosa mais importante da Venezuela e uma das mais poderosas da região. Em 21 de setembro, 11 mil policiais e militares venezuelanos entraram em Tocorón, uma prisão venezuelana localizada cerca de 140 quilômetros a sudoeste de Caracas, que foi dominada durante anos por Guerrero e pelos membros da Trem Aragua. No entanto, as autoridades não encontraram Niño Guerrero dentro da prisão. Maduro disse que autoridades "corruptas" avisaram o líder do Trem de Aragua sobre a operação para que ele pudesse escapar. "Infelizmente, devido à corrupção de um grupo de funcionários que já estão presos, alertaram esses pranes [como são conhecidos os chefes das prisões na Venezuela] e criminosos da operação de libertação. Eles estão detidos e serão julgados e punidos", disse Maduro num discurso televisionado na segunda-feira (25/9). Fim do Matérias recomendadas O presidente disse que seu governo oferecerá uma recompensa a quem apresentar informações sobre o paradeiro de Guerrero. Afirmou que 88 pessoas ligadas à organização foram detidas e que pediu ajuda às autoridades de outros países para prender outros fugitivos do grupo criminoso. "Nos coordenamos com os governos da Colômbia, Equador, Peru e Chile para que a operação de busca, perseguição e captura contra esses criminosos seja internacional", afirmou. O ministro venezuelano das Relações Interiores, Remigio Ceballos, acrescentou que a Venezuela está posicionada "geopoliticamente para colaborar e contribuir com os órgãos de segurança cidadã" de outros países, com os quais está em "contato permanente". No entanto, a ONG Observatório Prisional Venezuelano, especializada na defesa dos direitos humanos da população carcerária, alertou em um comunicado que Guerrero tinha negociado com o governo a sua libertação antes de assumir o controle da prisão. O ministro do Interior do Peru, Vicente Romero, garantiu que as autoridades peruanas redobraram o trabalho de vigilância e inteligência policial para impedir a entrada do Niño Guerrero no país. Por sua vez, o general Óscar Arriola, chefe da Direção Nacional de Investigação Criminal do Peru, disse que o governo do seu país oferecerá uma recompensa a quem fornecer informações que levem à captura de Guerrero. No Ministério do Interior peruano "há uma comissão de recompensas que funciona no Vice-Ministério da Ordem Interna", disse Arriola segundo jornais locais. Acrescentou que as autoridades de Lima atuam em coordenação com o governo da Venezuela e mantêm "comunicações oficiais" com Colômbia, Equador e Chile para capturar o líder do Trem de Aragua. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Primeiro (decidimos) olhar bem de perto para a fronteira, ao mesmo tempo fazer uma análise, e depois a partir da investigação e da inteligência olhamos também para aquelas pessoas que temos sob investigação e que são os principais membros deste mega-gangue transnacional", indicou. Por sua vez, as autoridades colombianas emitiram um mandado de prisão contra Guerrero. Sandra Patricia Hernández, comandante da Polícia Metropolitana de Bogotá, destacou que as autoridades estão trabalhando em conjunto com a Interpol diante da possibilidade de Guerrero estar na Colômbia, informou o jornal El Tiempo. O ministro do Interior do Equador, Juan Zapata, disse ao jornal El Expreso que seu gabinete tomou “as ações correspondentes” para impedir que Guerrero entrasse em território equatoriano. Os integrantes do Trem de Aragua estão no radar das autoridades de outros países sul-americanos há mais de um ano. Em julho de 2022, o presidente Gabriel Boric disse que os membros dessa organização não eram “bem-vindos no Chile”. “Vamos persegui-los, vamos prendê-los e vamos expulsar os que forem necessários”, acrescentou. “Não vamos tolerar a preocupação com o crime.” Héctor Rusthenford Guerrero Flores nasceu e cresceu em Maracay, capital do estado de Aragua, no centro-norte da Venezuela. As autoridades judiciais venezuelanas informam que Guerrero iniciou a sua carreira criminosa no início dos anos 2000 e foi acusado de disparar contra um agente da polícia que morreu em 2005. 'Niño Guerrero' foi preso em 2010, quando entrou pela primeira vez na prisão de Tocorón, sob a acusação de tráfico de drogas, homicídio e roubo. Dois anos depois conseguiu escapar e cometeu novos crimes que o levaram a se tornar um dos criminosos mais procurados da Venezuela. Guerrero foi capturado novamente em 2013 e novamente detido na prisão de Tocorón. Foi condenado a 17 anos de prisão pelos crimes de homicídio, tráfico de droga, roubo de identidade e ocultação de armas de guerra, entre outros crimes, em 2018, pelos quais não cumpriu a totalidade da pena. A jornalista e pesquisadora venezuelana Ronna Rísquez, autora do livro "El Tren de Aragua. A gangue que revolucionou o crime organizado na América Latina", alerta que a intervenção na prisão onde surgiu esta mega gangue não significa que a organização tenha sido desmantelada. Além de terem encontrado armas de guerra, granadas, explosivos, lança-foguetes e munições, as autoridades venezuelanas disseram que descobriram túneis para o exterior na prisão e que a fuga de alguns presos foi frustrada durante a operação. O presídio contava com instalações semelhantes às de um hotel, como piscina, boate, playground, cassino, restaurantes com esplanada, bares, lojas de bebidas, caixas eletrônicos e até um zoológico que exibia onças, pumas e avestruzes.
2023-09-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ce9dzzlvgk3o
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A venezuelana que entrou em trabalho de parto no teto de um trem ao tentar imigrar para os EUA
Johandri Pacheco embarcou no trem com dor abdominal. A venezuelana de 23 anos estava grávida de oito meses e meio. Mas ela não entrou pela porta do vagão para se sentar em uma cadeira e observar a paisagem entre Irapuato e Matamoros, do centro ao extremo leste do México, na fronteira com os Estados Unidos. Ele subiu uma escada lateral do vagão até o teto de um trem de carga que pertence ao sistema ferroviário mexicano, uma antiga rede ferroviária conhecida como La Bestia. A imigrante estava exausto. Junto com o companheiro José Gregorio e o filho Gael, de 4 anos, ela havia esperado durante cinco dias a passagem do trem em uma ponte em Irapuato. Outros imigrantes disseram que aquele trem era conhecido como El Bolichero, por causa de pequenas bolas de metal que compõem o teto e que precisam ser cobertas com pedaços de papelão para que as pessoas que viajam ilegalmente possam deitar e descansar durante a viagem. Fim do Matérias recomendadas Johandri e José recolheram pedaços de papelão para a viagem e se alimentaram com a comida que ativistas e outros viajantes distribuíram na ponte aos que esperavam pelo trem. O casal e a criança viajaram por uma dezena de países durante um mês e meio para garantir que Mía, o bebê que Johandri carregava, nascesse nos Estados Unidos. “Uma amiga me assustou, ela me disse que se eu desse à luz no México eles iriam me devolver para a fronteira com a Guatemala e iriam registrar minha filha como guatemalteca”, diz ela de um abrigo para migrantes localizado em Aguascalientes, no centro do México. “Meu medo era ir para o hospital e ser levado de volta pela imigração.” O trem chegou a Irapuato à meia-noite de sexta-feira, 25 de agosto. Faltavam 12 dias para o parto, segundo a estimativa do médico que fez o último pré-natal. Johandri e José Gregorio colocaram o papelão no teto do trem e ajeitaram Gael entre eles para dormir. Às 2h da manhã, Johandri acordou apertando a barriga para aliviar a dor. Teoricamente, ainda faltavam 12 dias para o parto. Quando Johandri teve o primeiro filho, as contrações do parto foram acompanhadas de dores nas costas. Dessa vez só lhe doía a barriga, então ela presumiu que aqueles espasmos eram produto do cansaço e da situação desconfortável no teto do trem. Porém, a pressão na barriga se tornou ritmada, doía de vez em quando e com intensidade crescente. Johandri pediu então ao seu parceiro para chamar ajuda imediatamente. Mia estava a caminho. Às 5h da manhã, José Gregorio pegou um dos papelões que usavam para dormir e escreveu: “Está nascendo um bebê. Precisamos que o maquinista saiba. Urgente". Ele pediu a outros imigrantes que passassem o aviso até os primeiros vagões, esperando que ele chegasse ao maquinista. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Enquanto alguns gritavam por ajuda, Johandri e José Gregorio viram um homem se aproximar. Era um paramédico venezuelano que também tentava chegar aos Estados Unidos. O homem pegou o celular e ligou para a esposa, uma enfermeira que lhe explicaria como ajudar Johandri durante as contrações. “Se prepare, meu amor. Procure álcool, é isso que você vai fazer…”, Johandri se lembra da enfermeira dizer ao marido pelo viva vz do celular. As contrações aconteciam a cada três minutos, estimou o paramédico. Depois, a cada dois minutos. Johandri começou a vomitar, chorando sem conseguir se conter. Não queria que Mía nascesse naquele telhado sujo, que superaquecia com o sol e precisava ser coberto com papelão. Levaram álcool, tesoura e um cobertor para que o corpo do bebê não encostasse no papelão. Johandri então se rendeu à ideia de a filha nascer no México, no teto de um vagão de trem. O paramédico disse a José Gregorio para segurar Johandri pelas costas e empurrar suavemente a parte superior da barriga para ajudar o feto a descer. Às 7h da manhã, a advogada Paola Nadine Cortés, ativista da associação Agenda Migrante, recebeu a foto do papelão em que José Gregorio escreveu seu pedido de ajuda. A advogado acionou a Defesa Civil para que se deslocassem até os pátios da empresa Ferromex, no município de San Francisco de Los Romo, 222 quilômetros ao norte da estação Irapuato. “A ideia era acionar um serviço de emergência e resgatá-la porque estavam me enviando vídeos e ela parecia estar em condições deploráveis”, diz a ativista. A companhia ferroviária colocou Cortés em contato com o maquinista do trem em que presumiam que Johandri viajava. “Mandei uma foto para ele para que ele visse o número do trem. Aí o maquinista me disse: 'Ela não está neste trem. Esse está mais à frente.’” O maquinista então contatou seu colega e eles concordaram em parar o trem por dez minutos na cidade de Aguascalientes para que Johandri fosse resgatada. “O motorista me disse que eram dez minutos contados no relógio. Se não conseguissem retirá-la nesse prazo, o trem seguiria viagem”, afirma Cortés. O trem parou na comunidade Los Arellanos, a cerca de 108 quilômetros da cidade de Aguascalientes. “Devido à distância e à centralização dos serviços, a equipe de emergência não conseguiu chegar nesses dez minutos que nos deram.” Meia hora depois, quando Johandri sentiu que não aguentava mais a dor, o trem parou. Cortés obteve autorização da Ferromex para que uma equipe da Defesa Civil e bombeiros descessem Johandri do teto do trem. “Os vagões são muito altos, por isso tirá-la de lá exigiu uma coordenação mais cuidadosa, para não colocá-la em risco.” Salva-vidas, bombeiros e um médico da companhia ferroviária foram enviados. Eles subiram no teto do trem, colocaram Johandri em uma maca e a amarraram. Vários imigrantes ajudarem a descê-la pela lateral do vagão, junto à escada por onde ela embarcou no El Bolichero. Cortés explica que o trecho de Irapuato a Torreón, conhecido como rota central, é o mais movimentado neste momento para os imigrantes que cruzam o México para chegar aos Estados Unidos. “O aumento foi registado este ano porque a rota do Golfo, que é a mais curta de trem e é a utilizada pelos migrantes mais empobrecidos, é altamente criminalizada.” Dado o aumento do fluxo de migrantes, a Ferromex suspendeu as operações de 60 trens no dia 19 de setembro, para evitar o risco de eles se ferirem ou morrerem na viagem. Johandri foi levada de ambulância ao Hospital Geral Pabellón de Arteaga, em Aguascalientes. Os médicos disseram que o colo do útero dela estava com cinco centímetros de dilatação e ela estava em estágio avançado de trabalho de parto. Mía nasceu sem problemas, por volta do meio-dia de sexta-feira, 25 de agosto de 2023. Por meio do advogado, funcionários do Instituto Nacional de Imigração do México visitaram Joahndri e confirmaram que sua filha obteria a nacionalidade mexicana e que a família poderia permanecer legalmente no país. “Estou muito grata porque minha filha e minha família estão bem”, diz Johandri, do abrigo em Aguascalientes. “Embora possamos ficar no México, não abandonei o sonho de ir para os Estados Unidos.” Johandri cresceu em Las Adjuntas, um bairro pobre a sudoeste de Caracas. Assim que completou 18 anos, pouco antes da pandemia, emigrou para o Peru sem ter concluído o Ensino Médio nem ter experiência profissional. “Eu queria ver o mundo pelos meus próprios meios, alcançar as minhas próprias coisas com os meus próprios esforços.” A crise econômica, a falta de acesso aos serviços públicos e a violência na Venezuela impulsionaram a migração de mais de 7 milhões de pessoas desde 2015, segundo a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR). Johandri conseguiu seu primeiro emprego no Peru como atendente em uma sapataria. “Volte para o seu país, vocês, venezuelanos, estão aqui para foder”, disseram-lhe alguns clientes, segundo ela. Ela fingiu não ouvir e se virou em silêncio. “Esses comentários não me afetam”, diz ela, lembrando dos insultos que recebeu naquela loja. “Estou lutando por mim e pela minha família.” No Peru ela deu à luz Gael, seu primeiro filho. No entanto, em meados de 2021, a sua perspectiva para o futuro mudou. Os preços aumentaram e seu salário não dava para pagar o aluguel e a alimentação. Com menos de US$ 100 no bolso, Johandri descartou a opção de voltar para a casa da família em Las Adjuntas e emigrou para o Chile pedindo carona nas estradas. Ela conseguiu um emprego como faxineira em uma pequena clínica em Santiago. Também roupas informalmente e servia bebidas em um bar. Quando pensou ter alcançado a estabilidade financeira, o aluguel do seu novo apartamento aumentou e ela temeu ser forçada a voltar para Las Adjuntas. “Decidi que deveríamos deixar o Chile quando eu estava grávida de sete meses”, lembra ela. “Com o bebê na barriga, tive os dois braços e as duas pernas para me agarrar às árvores e atravessar os rios do Darién, o que foi uma das partes mais difíceis da viagem. Mas se eu tivesse que a carregar nos braços seria impossível.” O casal tinha US$ 700 (R$ 3.487) para fazer a viagem terrestre com Gael até os Estados Unidos passando por Chile, Peru, Colômbia, Panamá, Costa Rica, Nicarágua, Honduras, Guatemala e México. Eles fizeram o primeiro trecho da viagem de ônibus, do Chile a Capurganá, cidade colombiana na fronteira com o Panamá e uma das principais entradas do Darién Gap, uma intrincada selva por onde passaram quase 249 mil migrantes durante o primeiro semestre de 2023, o maior fluxo migratório registrado até agora pelas autoridades panamenhas. Ao ver tantas crianças com febre, vômito e erupções cutâneas na viagem por Darien, Johandri ficou feliz por ter tomado a decisão de viajar grávida. Porém, ela nunca pensou que a parte mais difícil os aguardava no México. “Em Darién você pode beber água dos rios e se refugiar na sombra das árvores. Mas no México tínhamos que caminhar cinco ou seis horas todos os dias sob o sol. Todo mundo quer te roubar, te enganar. Tentamos continuar de ônibus e a polícia sempre nos barrava porque não tínhamos documentos.” Depois de viajar por um mês e meio, embarcar no El Bolichero em Irapuato e chegar em Matamoros seria o último passo para cruzar para os Estados Unidos.
2023-09-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72kn57e0ero
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As esculturas misteriosas que os arqueólogos tentam explicar há décadas
Em busca de provas para suas "teses peculiares" - como a de que a cultura egípcia se originou na Península de Yucatán, no México -, o explorador Augustus Le Plongeon e a sua esposa, Alice Dixon, fizeram uma descoberta inusitada no sudeste mexicano em 1875. O franco-americano e sua esposa estavam há dois anos em uma expedição pela selva, onde exploraram ruínas da civilização maia. Fizeram mapas, tiraram uma das primeiras séries fotográficas dos templos e documentaram os murais que encontraram. Eles também desenterraram algumas esculturas e outros objetos da antiga civilização. Embora não tenham encontrado evidências de suas teorias sobre a origem dos egípcios, um dos achados, na cidade de Chichén Itzá, foi um dos mais marcantes: a efígie de um homem semi-reclinado, olhando para o lado, segurando um prato ou uma tigela sobre o ventre. Fim do Matérias recomendadas Le Plongeon batizou a figura de "chac mool". Chac pode ser traduzido como "enorme" ou "vermelho", enquanto mool significa "pata de jaguar". Desde então, foram descobertas esculturas de chac mool não apenas na região maia, como em outras regiões da Mesoamérica, uma região cultural que se estende do centro do México à Costa Rica e foi o berço de grandes civilizações. Ao longo de décadas, os arqueólogos tentam descobrir quem ou o que é representado nela, qual sua função, qual a origem da imagem e por que essas esculturas aparecem em tantos locais diversos. Esses questionamentos têm sido objeto de grandes debates e estudos. "Há especulações sobre muitas coisas, mas não temos dados científicos", diz o arqueólogo José Luis Punzo Díaz à BBC News Mundo. Ele lidera uma equipe que investiga a mais recente descoberta de uma escultura desse tipo na cidade de Pátzcuaro, no Estado de Michoacán, no México. "A descoberta deste chac mool é a ponta do iceberg que nos permitirá compreender realmente essas peças. É isso que considero extremamente animador nessa descoberta", afirma, acrescentando que sua equipe está usando ferramentas tecnológicas e científicas que não estavam disponíveis antes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As estátuas de chac mool encontradas e batizada pelos Le Plongeon em 1875 é a mais famosa, mas é apenas uma de muitas encontradas, que datam de aproximadamente 600 d.C. até além de 1500 d.C. Apesar de ser uma escultura notável, encontrada em pontos relevantes de palácios e cidades pré-hispânicas, o chac mool nunca foi representado ou explicado em documentos históricos dos toltecas, astecas, maias, purépechas ou outras grandes culturas mesoamericanas. Isso levou arqueólogos a formularem diversas teorias, reunidas pelos pesquisadores Alfredo López Austin e Leonardo López Luján em uma extensa compilação sobre essas esculturas publicada na década de 2000. Não houve consenso entre os especialistas sobre a origem das estátuas - se surgiram como parte da cultura do centro do México, da região maia ou do norte da Mesoamérica. Também há divergências sobre a figura humana representada, se seria um sacerdote, um soldado, uma vítima de sacrifícios, um rei ou nobre específico, um mensageiro divino ou mesmo uma divindade. Sobre a função da estátua, as opiniões são mais unânimes: seria um altar de sacrifícios ou de oferendas - de tabaco, pulque (um tipo de bebida alcoólica fermentada), incenso, animais e até corações humanos . As estátuas de chac mool não são todas iguais. Em algumas, a cabeça está virada para a direita, em outras, para a esquerda. Há diferenças no rosto, nos ornamentos, na posição do abdômen, das pernas e nas bases da estátua. "Tanto a forma como o significado do chac mool se modificam dependendo de sua localização geográfica, cronológica e cultural", apontam López Austin e López Lujan. E o fato de ser uma peça presente em diversas culturas, com diferentes rituais e visões de mundo, acrescenta questões. O fato de uma das peças mais antigas (entre 600 e 900 d.C.) ter sido documentada em uma região do norte da Mesoamérica chamada Chalchihuites pode ser uma indicação de que o chac mool teria "viajado" ao longo dos séculos através de diversas culturas e territórios. Na cultura dos toltecas, em Tula, nos planaltos centrais do México, foram encontradas várias esculturas desse tipo - em locais variados como portas de palácios ou praças. Essa cidade foi fundamental para influenciar outras culturas dominantes, como os mexicas e os maias. "As migrações têm sido a força motriz que explica muitas dessas coisas na Mesoamérica. Parece que há migrações de norte para centro e oeste que trazem esse tipo de esculturas", afirma Punzo Díaz. Os toltecas se estabeleceram a centenas de quilômetros de Yucatán, mas hoje se sabe que influenciaram os maias em lugares como Chichén Itzá, que por sua vez influenciaram a região da península e o que hoje é a América Central. "Todo mundo associa o chac mool aos maias, mas é realmente uma influência que vem do centro do México", avalia Punzo Díaz. Como já aconteceu em muitos casos, a descoberta do chac mool na cidade de Pátzcuaro no mês passado foi por acaso, durante escavações de uma construção civil. É a primeira escultura desse tipo encontrada no contexto da cultura Purépecha que ali vivia, embora outras peças já tivessem sido encontradas no Estado de Michoacán ao longo do século passado. Para Punzo Díaz e sua equipe, o bom estado dessa peça e os avanços da tecnologia poderão ajudar a desvendar alguns dos mistérios do chac mool. "Temos arqueólogos, restauradores, químicos, vulcanologistas e especialistas em informática. Estamos avançando", afirma.
2023-09-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cg6g4v9k6n4o
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Os 'corredores verdes' de Medellín para combater calor extremo
Moisés Castro trabalha vendendo frutas em uma banca na Avenida Oriental, na cidade colombiana de Medellín, há mais de 30 anos. Ele se lembra de uma ocasião, décadas atrás, em que o governo local derrubou as árvores da avenida como parte de uma alteração de trânsito. Atualmente, a Avenida Oriental continua a ser uma típica via repleta de tráfego e comércio local. Mas, revertendo as decisões anteriores sobre a arborização, a área também recebeu grandes árvores frutíferas, arbustos e flores. Para Castro, a qualidade do ar e a temperatura do local melhoraram com a medida. De fato, a temperatura parece agradável todo o ano. Aqui, é claramente mais fresco do que em outras partes da cidade que não contam com a cobertura verde. Ciclovias margeiam as ruas e os pedestres descansam em bancos na sombra. Fim do Matérias recomendadas Conhecida como a Cidade da Primavera Eterna, Medellín e seu clima temperado costumam atrair turistas por todo o ano, mas o aumento da urbanização expôs a cidade ao efeito ilha de calor das áreas urbanas, que causa a absorção e a retenção do calor pelas ruas e construções da cidade. Os novos corredores verdes de Medellín mostraram-se claramente eficientes para reverter este impacto. A temperatura caiu em 2° C por toda a cidade, segundo dados da prefeitura local aos quais a BBC teve acesso. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Medellín é a segunda maior cidade da Colômbia, ficando atrás apenas da capital, Bogotá. Em 2016, ela deu início ao seu programa de "corredores verdes" devido às preocupações com a poluição do ar e o aumento do calor. O programa inclui mais de 30 corredores verdes, que conectam calçadas de ruas recém-arborizadas, jardins verticais, cursos d’água, parques e morros próximos. Inicialmente, o projeto envolveu o plantio de cerca de 120 mil plantas individuais e 12,5 mil árvores nas ruas e parques. Em 2021, ele atingiu 2,5 milhões de plantas menores e 880 mil árvores plantadas em toda a cidade. A ideia era conectar as áreas verdes de Medellín por meio de ruas e avenidas rodeadas por árvores e sombra. O investimento inicial para implantar o projeto foi de US$ 16,3 milhões (cerca de R$ 80,8 milhões) e o custo anual de manutenção em 2022 foi de US$ 625 mil (cerca de R$ 3,1 milhões), segundo a prefeitura da cidade. O projeto de Medellín agora é conhecido em todo o mundo, devido aos resultados expressivos obtidos para o resfriamento da cidade. E, além de reduzir o calor, especialistas afirmam que os corredores verdes também melhoram a qualidade do ar e trouxeram a vida selvagem de volta para a zona urbana. Em uma época de crescentes preocupações com as ondas de calor relacionadas às mudanças climáticas, especialmente nas cidades, onde o efeito ilha de calor pode aumentar ainda mais as temperaturas, o projeto de corredores verdes de Medellín oferece uma solução popular, de baixo custo, que cada vez mais cidades estão procurando reproduzir. Será que este pode ser o modelo de adaptação das cidades ao clima do futuro? Ao lado das preocupações com o calor urbano, o projeto dos corredores verdes de Medellín foi colocado em ação devido à preocupação com a baixa qualidade do ar, causada, em grande parte, pelo enorme crescimento do transporte particular. A localização da cidade no vale do Aburrá – uma formação geológica que pode capturar a poluição entre as montanhas – não favorece a situação. E as condições climáticas e meteorológicas também são desfavoráveis para a dispersão vertical dos poluentes, segundo Maurício Correa, pesquisador de engenharia ambiental da Universidade de Antioquia, na Colômbia. Segundo a empresa suíça IQair, que mede a qualidade do ar em todo o mundo, os níveis anuais de matéria particulada (PM2,5) de Medellín não são os piores da América do Sul, mas são três vezes maiores que o limite de segurança da OMS (Organização Mundial da Saúde), que recomenda média máxima de 5 µg/m3 ao longo do ano. Eles ainda estão acima dos níveis de Bogotá e de São Paulo. A poluição de Medellín é muito menor do que a de outras cidades conhecidas pelo mesmo problema – como Nova Déli, na Índia, cujas medições em 2022 foram 18 vezes maiores que o limite anual da OMS, por exemplo. Mas, durante a estação seca, a cidade enfrenta seu pior período de condições do ar devido à redução das chuvas (que, normalmente, ajudam a dissipar a poluição). Nesse período, Medellín pode atingir 55 µg/m3 de PM2,5 – nível suficiente para fazer soar o alarme das autoridades. A relação entre a exposição a PM2,5 (partículas minúsculas no ar) e doenças respiratórias é bem conhecida. Quando a poluição sobe acima de 38 µg/m3, o sistema de alerta precoce do vale gera um alarme que pode gerar restrições ao uso de automóveis e aconselhar as pessoas, especialmente as mais vulneráveis, a permanecer em casa. "Em 2015 e 2016, nós atingimos o pico da poluição do ar", segundo Paula Palacio, secretária de infraestrutura local de Medellín na época. "Foi um momento crítico para as questões ambientais." Ela destaca que, naquele momento, cresceu a pressão popular por medidas mais sistemáticas sobre a poluição. "A população se sentia muito prejudicada pelas restrições." Em estudo de 2020 da Universidade de Antioquia, em Medellín, concluiu que a poluição causou 1.971 mortes prematuras na região do vale do Aburrá em 2016 – e que as mortes causadas pela poluição aumentariam substancialmente até 2030, se as emissões dos veículos não fossem controladas. Correa explica que as árvores usadas nos corredores agem como "barreiras verdes" contra os perigosos materiais particulados, absorvendo níveis significativos de poluição. Segundo ele, algumas das espécies empregadas no projeto de Medellín são conhecidas por serem muito eficientes na absorção de poluição, como a mangueira (Mangifera indica). Correa é um dos autores de um estudo de 2021, que identificou Mangifera indica como a melhor dentre seis espécies vegetais encontradas em Medellín para absorção de PM2,5 e sobrevivência em regiões poluídas, devido aos seus "mecanismos biológicos e bioquímicos". "Esta planta é muito resistente à contaminação", afirma Correa. "Outras plantas não têm a mesma capacidade de sobreviver em regiões poluídas." Até agora, nenhum estudo ou análise geral examinou a quantidade de poluição efetivamente reduzida pelo projeto dos corredores verdes. Mas Correa afirma que sua equipe está nos primeiros estágios de estudo desse impacto e os resultados devem ser publicados no início de 2024. Ao lado dos 30 corredores verdes, cerca de 124 parques também são parte do projeto. Conectados pelos corredores, eles também receberam plantio de nova vegetação. E este aumento das áreas verdes também trouxe impactos positivos para o clima da cidade. Um estudo de 2019, da Faculdade de Engenharia de Antioquia, estimou que apenas dois desses parques – os morros Nutibara e Volador – foram responsáveis por remover da atmosfera 40 toneladas de dióxido de carbono (CO2) por ano. León Dário trabalha perto da Avenida La Playa, perto da Avenida Oriental, vendendo batatas fritas. Ele trabalha na região há duas décadas e conta que o projeto dos corredores verdes tem forte apoio popular. Além das árvores, Dário acredita que a introdução dos veículos elétricos foi outra boa medida para melhorar a qualidade do ar. Nos últimos anos, a prefeitura local substituiu ônibus a diesel por elétricos na região. O apoio dos moradores de Medellín foi fundamental para o sucesso do projeto dos corredores verdes, segundo Lina Rendon, atual subsecretária da prefeitura de Medellín para recursos renováveis. Um dos motivos, segundo Rendon, é o orçamento participativo do município. O caixa permite aos moradores locais escolher iniciativas que eles querem ver financiadas. Nos últimos anos, a população escolheu muitas iniciativas verdes para a cidade desta forma. O governo atual do município assumiu em 2019. Desde então, foram plantadas mais 9.332 novas árvores, segundo os dados oficiais. O total da área verde de Medellín, agora, é de cerca de 4 milhões de metros quadrados. Rendon afirma que a comunidade local também auxilia na manutenção direta do projeto, por meio de jardineiros voluntários. O projeto dos corredores verdes também gerou um programa de contratação de pessoas que chegam a Medellín, deslocadas pela violência em outras partes da Colômbia. O programa ajuda essas pessoas a encontrar empregos fixos como jardineiros. "Os jardineiros eram [pessoas] socialmente vulneráveis e [o projeto] ofereceu dignidade", conta Palacio. Para o secretário do Meio Ambiente de Medellín entre 2016 e 2019, Sergio Orozco, os resultados do projeto foram surpreendentemente positivos. "A redução da temperatura, em algumas regiões em mais de 3° C, foi maior do que o esperado", ele conta. "Também observamos o retorno de animais que não haviam sido vistos por ali há muitos anos." O governo local mediu a temperatura em alguns locais no centro da cidade antes e depois do projeto, segundo Paula Palacio. A conclusão foi que algumas regiões observaram redução média da temperatura de até 2° C após a implementação dos corredores. O monitoramento da vida selvagem local também observou pássaros, lagartos, sapos e morcegos nos corredores. As autoridades locais afirmam que alguns desses animais não eram vistos em Medellín há anos – o que também ajudou a controlar os ratos e outras pragas, segundo acreditam diversos moradores da cidade. Em 2019, Medellín recebeu o Prêmio Ashden – concedido a soluções para transformar o clima – na categoria "Resfriamento pela Natureza". "A reação da cidade reúne as pessoas, plantando vegetação para criar um ambiente melhor para todos", segundo os jurados. Estas conquistas tornaram o projeto de Medellín famoso em todo o mundo. Outras cidades colombianas, como Bogotá e Barranquilla, também adotaram planos similares. Bogotá, por exemplo, planeja formar um corredor verde em uma das suas principais avenidas. E, no Brasil, a capital de São Paulo também ampliou recentemente sua versão local dos corredores verdes. Uma das medidas mais ambiciosas para transformar Medellín em uma cidade verde são os planos da prefeitura local de fechar o aeroporto central e transformá-lo em um parque. A ideia é desviar os voos para outros aeroportos próximos. Mas o projeto, no momento, está suspenso por decisão dos vereadores locais. Os debates sobre como transformar Medellín em uma cidade ainda mais verde e adaptada ao clima irá continuar nos próximos anos. Mas os moradores da cidade já podem contar com locais com mais sombra e clima mais ameno, enquanto planejam suas próximas medidas.
2023-09-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjm4lvp7r3mo
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A decisão que permitirá a milhares de imigrantes venezuelanos que trabalhem nos EUA
Carlos* foi avisado que iria para a prisão se voltasse para a Venezuela. Ele foi funcionário público e investigador da polícia científica venezuelana por quase 20 anos. Quando destacado para a Interpol, investigou casos de tráfico de drogas, homicídios e crimes financeiros. Ele conta que, em seu último caso, prendeu dois venezuelanos que cometiam golpes digitais nos Estados Unidos e na Venezuela. Mas como estavam ligados ao governo venezuelano, ele diz que recebeu ordem de libertá-los e de não denunciar a investigação à Interpol. "Saí da Venezuela porque não aguentava mais ameaças e humilhações", diz. "Tive que deixar minha esposa e duas filhas." Carlos entrou nos Estados Unidos com visto de turista, em março. Há seis meses, vive de suas economias e da venda de mercadorias, sem ter a possibilidade de trabalhar legalmente porque não tem documentos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No entanto, a decisão do governo do presidente Joe Biden, na semana passada, de conceder o Estatuto de Proteção Temporária (TPS) a quase meio milhão de venezuelanos abriu caminho para que esses migrantes trabalhem legalmente nos EUA. "Esta medida é uma bênção porque vai permitir que eu entre com meu pedido de asilo e ao mesmo tempo trabalhe para ganhar dinheiro e trazer minha família (aos EUA)", disse Carlos à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC. O TPS oferece isenção temporária de deportação e acesso a autorizações de trabalho por 18 meses a 472 mil venezuelanos que entraram nos Estados Unidos até 31 de julho deste ano. Aqueles que chegaram após essa data "serão expulsos se ficar determinado que não têm base legal para permanecer", afirmou Alejandro Mayorkas, secretário de Segurança Interna dos Estados Unidos, em comunicado na semana passada. O TPS "fornece às pessoas que já estão nos Estados Unidos proteção contra remoção quando as condições em seu país de origem impedem um retorno seguro", disse Mayorkas. "Essa é a situação em que se encontram os venezuelanos que chegaram aqui em 31 de julho deste ano ou antes." Esta é a maior concessão deste status de imigração para cidadãos da mesma nacionalidade nos Estados Unidos, quase o dobro dos 243 mil venezuelanos que já possuem este status desde 2021. Para compreender a dimensão da concessão massiva de TPS a quase meio milhão de venezuelanos, devemos olhar para os números. Até agora, 610 mil migrantes de 16 nacionalidades, incluindo salvadorenhos, hondurenhos e nicaraguenses, trabalham nos Estados Unidos sob este estatuto, segundo a organização Fórum Nacional de Migração. Esse número será quase duplicado com o novo TPS destinado apenas aos venezuelanos, que representam a maioria dos migrantes que estão chegando aos Estados Unidos neste momento. Esses migrantes fugiram da crise econômica, social e política da Venezuela ou de outros países onde viveram antes de viajarem aos Estados Unidos. O número também revela o apoio do governo Biden aos imigrantes venezuelanos. Há cerca de um ano, o governo americano criou um processo legal para eles chegarem ao país de avião, para o qual é necessário um "patrocinador" que viva legalmente nos Estados Unidos. John de La Vega, advogado especializado em direito de imigração nos Estados Unidos, acredita que o TPS terá "um enorme impacto positivo para dezenas de milhares de venezuelanos que estão esperando a resposta de pedidos de asilo, processos de deportação ou recursos". "O governo percebeu que devido aos atrasos que existem nos tribunais de imigração em casos de asilo, oferecer essa proteção acelera para os venezuelanos tanto a possibilidade de se legalizarem como de conseguirem uma autorização de trabalho." No entanto, ele alerta que é importante que os venezuelanos sejam informados sobre o TPS, tendo em conta que milhares de pessoas se abstiveram de solicitar este estatuto de imigração em 2021 por falta de conhecimento das leis americanas. "Devemos agora enfatizar a explicação aos venezuelanos, especialmente aos que têm condições mais vulneráveis, que esta é uma oportunidade de ouro que eles devem aproveitar", afirma Helene Villalonga, ativista venezuelana pelos direitos dos migrantes no Estado da Flórida. "Eles têm que entender que o TPS é um seguro, uma garantia de que não serão deportados." Villalonga acredita que esta decisão pode dissuadir muitos venezuelanos de emigrar para os Estados Unidos no restante do ano, uma vez que aqueles que chegaram depois de 31 de julho não receberão o estatuto. Por outro lado, a ativista Patrícia Andrade, diretora da organização Venezuela Awareness Foundation, teme que o TPS promova a chegada de mais venezuelanos, com a expectativa de que seja aprovada uma nova decisão executiva que os beneficie no futuro. "Estamos vendo a fronteira sul lotada de migrantes venezuelanos. Eles não têm para onde voltar, então para muitos a melhor opção é entrar nos Estados Unidos, mesmo que de forma irregular", diz. A decisão do governo Biden responde sobretudo à pressão do presidente da Câmara de Nova York, Eric Adams, e dos legisladores democratas, dada a chegada de mais de 100 mil migrantes à cidade durante o último ano. Estima-se que cerca de metade sejam venezuelanos. Este fluxo desencadeou uma crise que obrigou dezenas de milhares de migrantes a serem alojados em mais de 200 hotéis, abrigos, tendas e outras instalações. Andrew Heinrich dirige o Projeto Rousseau, uma iniciativa que presta assistência a migrantes e promove a educação entre jovens em áreas pobres de Nova York. Nos seus 12 anos de trabalho em comunidades de migrantes, ele nunca tinha visto uma situação como a dos venezuelanos em Nova York, diz. "Acreditamos que o TPS terá um enorme impacto no alívio da pressão que a chegada de migrantes venezuelanos gerou nos serviços de imigração, assistência social e educacional da cidade", afirma. Nos últimos meses, Adams lançou uma campanha para convencer os migrantes a partirem para outras cidades americanas e se ofereceu para criar um abrigo para 2.000 pessoas, o maior que já existiu na cidade. Adams culpou os governos federal e estadual por não fornecerem ajuda suficiente a Nova York, como habitação e outros serviços sociais. Sob o lema "Deixe-os trabalhar", Adams e outros políticos do Partido Democrata pediram mais verbas públicas para cobrir a assistência aos migrantes e a construção de novas infra-estruturas. "Quero agradecer ao presidente Biden por ouvir a nossa coligação, incluindo a nossa delegação do Congresso, e por dar este passo importante que trará esperança aos milhares de venezuelanos requerentes de asilo que estão atualmente sob os nossos cuidados", disse Adams , na semana passada em resposta ao pedido. Em uma declaração conjunta, o líder da maioria democrata no Senado, Chuck Schumer, e o líder democrata na Câmara, Hakeem Jeffries, ambos de Nova York, disseram que a medida é um "passo bem-vindo" que "proporcionará o alívio necessário aos sistemas da cidade que se esforçam para apoiar os migrantes recém-chegados". "A decisão também vai reduzir substancialmente o custo para os contribuintes de Nova York no que diz respeito ao alojamento dos requerentes de asilo", acrescentou o comunicado. A governadora de Nova York, Kathy Hochul, disse que embora haja "mais trabalho a fazer", as autoridades estaduais estão prontas para iniciar "imediatamente" o processo de "registrar pessoas para trabalhar e conseguir empregos para que possam ser autossuficientes". Nova York é uma "cidade santuário" como são conhecidas as localidades onde foram aprovadas leis para proteger os direitos dos imigrantes sem documentos. Portanto, as autoridades são obrigadas a oferecer assistência a todos os migrantes que necessitam de auxílio. Os Estados liderados por governadores republicanos, principalmente no sul do país, têm enviado milhares de migrantes para cidades governadas por democratas em protesto contra as políticas nas fronteiras, que criticam como negligentes e pelas quais culpam Biden. Na verdade, em outubro do ano passado, Adams declarou estado de emergência em Nova York, quando os abrigos começaram a ficar lotados de migrantes que chegavam em carros depois de cruzarem a fronteira no Texas ou no Arizona. Políticos republicanos acreditam que medidas como essa podem aumentar a pressão sobre Biden para reforçar o bloqueio na fronteira sul dos Estados Unidos e impedir a entrada de migrantes vindos do México. Os republicanos comemoram o aparente sucesso de sua manobra política ao verem que democratas como o prefeito Adams se juntaram ao coro de críticas e pedidos de ajuda do governo Biden em Washington. A Agência da ONU para os Refugiados (Acnur) estima que mais de sete milhões de pessoas deixaram a Venezuela nos últimos anos devido ao colapso da economia sob o governo do presidente Nicolás Maduro, que está no poder desde 2013. E muitos desses venezuelanos estão nos Estados Unidos, que se tornou o destino ideal para quem está disposto a arriscar a vida numa difícil viagem pela América Latina, atravessando a América Central e o México até chegar à fronteira. Por outro lado, esse fluxo se tornou uma questão de política nacional nos Estados Unidos. Os republicanos atacam o presidente democrata e agora os próprios democratas também exigem ação face a um fluxo que leva ao limite os recursos das cidades e dos estados. A pouco mais de um ano das eleições, Biden responde com a maior concessão de autorizações de trabalho da história através do TPS, reconhecendo a crise que se vive em algumas zonas do país e indo ao encontro das reivindicações dos migrantes venezuelanos, que agora serão capazes de trabalhar legalmente.
2023-09-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2x8lr51ppvo
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A polêmica estratégia de impostos baixos com que Paraguai atrai investimentos
Existe no Paraguai uma regra muito simples sobre os impostos: 10-10-10. Ou seja, os três tributos mais importantes — o imposto sobre valor agregado (IVA), o imposto de renda de pessoa física e o imposto de renda das empresas — têm a mesma alíquota de 10%. É o percentual mais baixo em toda a América Latina, com exceção do IVA no Panamá. Essa característica da tributação paraguaia foi transformada em política de Estado. Ela é destacada pelos governantes do país como uma das bases para o desenvolvimento da economia e para receber investimentos que poderiam seguir para as outras nações da região. Fim do Matérias recomendadas "O atraente regime 10-10-10 do Paraguai [...] também chamou a atenção dos investidores internacionais e constitui um dos principais pilares do receptivo ambiente empresarial do país", afirmou o governo em nota publicada pela Organização Mundial do Turismo (OMT) no início do ano. O novo presidente paraguaio, Santiago Peña, assumiu o cargo em 15 de agosto. Durante a campanha eleitoral, ele destacou que não iria alterar os tributos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Não vamos aumentar os impostos dos empreendedores, nem das empresas, nem de ninguém, pois os empreendimentos geram grande impacto nos seus locais de instalação", afirmou Peña em vídeo publicado nas suas redes sociais. "Eles trazem empregos diretos, segurança social e um sem-número de benefícios para a região, como o aumento do movimento comercial, programas de responsabilidade social empresarial e muito mais." O então candidato acrescentou que os empreendimentos "são fundamentais para o desenvolvimento em todos os cantos do Paraguai" e "são eles que pagam seus impostos para que o Estado possa desenvolver o país com obras e programas para as pessoas. Se eles se saírem bem, todos nós estaremos bem." Peña reiterou essa diretriz após a posse, em reunião com empresários no mês de setembro. "Como presidente da República, não tenho interesse em cobrar impostos [nem em], beneficiar uma indústria, [mas sim] em gerar empregos na República do Paraguai [...] porque o emprego é a melhor política social que um país pode ter", afirmou ele. O objetivo do presidente, expresso em suas declarações, é aumentar a arrecadação de impostos com melhor controle da evasão fiscal. No caso do IVA, essa evasão atinge 31% — um nível acima da média regional, segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). O sistema tributário atual do Paraguai começou a ser delineado em 1992. Naquele ano, uma reforma tributária criou o IVA e determinou que, dali a dois anos, sua alíquota passaria a ser de 10%. Em 2004, a alíquota do imposto de renda de pessoa jurídica sofreu forte redução, de 30% para os mesmos 10% do IVA. O argumento, na época, foi que a diminuição da cobrança de impostos traria mais empresas para a economia formal, ampliando a base tributária, segundo explica o então ministro da Fazenda do país, Dionisio Borda, à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC. "Nossa visão era que, se fosse mais barato para as empresas formalizar-se do que manter duas contabilidades — uma real e outra, maquiada para o Estado —, mais [empresas] passariam a pagar os impostos na sua totalidade", diz ele. "Além disso, reduzimos o imposto de renda das empresas e, em contrapartida, criaríamos o imposto de renda de pessoa física, até então inexistente no Paraguai, que vinha da tradição stroessnerista [do ex-presidente de fato Alfredo Stroessner] de que este seria um imposto comunista", acrescenta o ex-ministro. Mas o país somente instituiu o imposto de renda de pessoa física em 2012, com alíquota única de 10%, sem estabelecer a escala progressiva que Borda havia planejado. Estão sujeitos ao imposto de renda de pessoa física no Paraguai aqueles que ganham mais de 36 salários mínimos por ano (equivalente a cerca de R$ 66 mil). Também é possível deduzir muitos gastos, como moradia, educação, saúde e vestuário, o que faz com que pouquíssimas pessoas realmente paguem o imposto. A última reforma tributária no Paraguai ocorreu em 2020, unificando os impostos pagos pelas empresas e eliminando algumas isenções fiscais. E, embora as autoridades considerem que este ambiente tributário é favorável para atrair a entrada de capitais, os investimentos estrangeiros diretos no Paraguai mantiveram-se apenas em cerca de 1% — muito abaixo dos seus vizinhos sul-americanos. Apesar das vantagens destacadas pelas autoridades políticas paraguaias, esta visão é contestada por especialistas como Borda e pelos organismos internacionais. Eles entendem que é preciso arrecadar mais para ampliar as políticas sociais. Os impostos podem ser divididos em dois grupos: os diretos, como o imposto de renda de pessoa física e jurídica, e os indiretos, como o IVA ou os tributos sobre produtos específicos. Os impostos diretos, muitas vezes, são considerados mais justos. Eles permitem definir diferentes segmentos de tributação, em função do poder aquisitivo de cada contribuinte. Já com o IVA, todos os cidadãos — pobres e ricos — pagam o mesmo percentual. E, enquanto os pobres pagam IVA sobre toda a sua renda (já que eles gastam todo o seu dinheiro), os ricos destinam uma pequena parcela da sua receita ao consumo. O sistema tributário que cobra alíquotas similares de todas as pessoas é denominado regressivo. Já o sistema que cobra mais de quem ganha mais chama-se progressivo. "As alíquotas são extremamente baixas e a regressividade do sistema permanece", explica Borda. O IVA é responsável por quase a metade dos US$ 2,6 bilhões (cerca de R$ 12,8 bilhões) de impostos arrecadados anualmente no Paraguai. O imposto de renda das empresas responde por quase 40% e o de pessoa física, por 2,3%. O governo salienta que os impostos indiretos caíram de 60% para 51% entre 2019 e 2022. Para Borda, a proposta original do imposto de renda de pessoa física "chegou mutilada" ao dia da sua aprovação pelo Congresso, depois de vários adiamentos. "Aqui, o lobby empresarial é muito forte e conseguiu convencer o sistema político [para que não atingisse mais contribuintes]", diz o economista. Segundo Borda, a reforma tributária de 2020 trouxe uma "melhoria mínima" para este imposto. A carga fiscal — definida como a razão entre os impostos e o produto interno bruto (PIB) — do Paraguai é de 14%, a segunda mais baixa da região depois do Panamá. O índice está abaixo da média da América Latina (22%) e dos países desenvolvidos (34%), segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD, na sigla em inglês). Segundo o Banco Mundial, o Paraguai é o 26º país do mundo que menos arrecada impostos, proporcionalmente ao tamanho da sua economia. "A baixa carga tributária limita a capacidade de financiamento dos gastos em direitos universais, como saúde, educação, segurança, moradia e nutrição, em um país cujo nível de pobreza é de 25% e onde existe grande desigualdade", afirma Borda. Em termos de PIB per capita, o Paraguai é um dos países mais pobres da América do Sul. Dois em cada três trabalhadores paraguaios estão na informalidade, segundo o Instituto Nacional de Estatística do país (INE). Eles não têm cobertura social nem direito à aposentadoria. Uma a cada quatro pessoas é considerada pobre, vivendo com menos de 825 mil guaranis por mês (cerca R$ 560). Mas alguns dados são animadores: a pobreza caiu de 45% para 25% entre 1999 e 2022. E a pobreza extrema caiu de 11,5% para 5,6% no mesmo período. A desigualdade entre os mais pobres e os mais ricos também diminuiu nos últimos anos. Ela está agora na metade do ranking sul-americano, segundo o coeficiente de Gini, usado para medir a desigualdade entre as pessoas. Já o PIB do Paraguai duplicou em termos constantes desde a virada do século — um crescimento quase duas vezes superior ao da América Latina e do Caribe como um todo. O Fundo Monetário Internacional (FMI) indicou ao Paraguai que o país deveria prosseguir com as mudanças tributárias. "Além da melhoria contínua da administração tributária, as autoridades deveriam reavaliar os regimes tributários especiais do Paraguai para setores e atividades específicas, considerando outra reforma tributária que vá além das melhorias promulgadas em 2020", afirmou o organismo em meados de 2022. "Aumentar a arrecadação tributária interna continua sendo fundamental para fornecer investimentos suficientes em infraestrutura, saúde e educação para os cidadãos do Paraguai, o que aumentaria a produtividade para gerar crescimento futuro e prosperidade partilhada", destacou o FMI na primeira revisão do seu programa com o Paraguai, no último dia 8 de junho. Para o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), "os países com altos impostos também tendem a ser países com gastos mais altos". "Nos países com baixos impostos, supondo um nível mínimo de eficiência, ampliar a base tributária poderia trazer benefícios consideráveis", afirma o BID. E, segundo uma nota publicada no site da instituição, "apesar dos recentes avanços socioeconômicos, persistem desafios consideráveis de desenvolvimento para conduzir o Paraguai a um caminho de desenvolvimento sustentável". O BID entende que existem falhas no "acesso aos serviços básicos" e que é preciso procurar "melhor cobertura e orientação dos gastos sociais". Mas, em um programa desenvolvido com o Paraguai para "fortalecer sua política e gestão tributária e melhorar a gestão dos gastos públicos", o BID apoiou medidas "para abordar de forma sustentável as lacunas de desenvolvimento, preservando as vantagens competitivas do Paraguai por contar com baixas alíquotas de impostos".
2023-09-24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cz4g4n4x470o
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Os resquícios da guerra que seguem no cotidiano da Colômbia
Ao entrar em um shopping center de Bogotá, é bem provável que um segurança uniformizado peça para o cliente desligar o motor e abrir as portas e o porta-malas para uma revista. Um cão farejador treinado participa da ação. O objetivo é verificar se há uma bomba no veículo. “Isso é necessário?”, perguntou a reportagem da BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, a um segurança do shopping Retiro, no norte da capital colombiana, há poucos dias. “Bem, você não se lembra que ali na frente (no shopping Andino) a guerrilha plantou uma bomba há cinco anos que matou três pessoas?” A sociedade colombiana está em estado de alerta. Não está claro se é devido a um trauma herdado de conflitos armados, que teve o seu auge nos anos 1990, ou porque a guerra ainda continua de alguma forma, ou porque a criminalidade tomou conta da sensação de segurança da sociedade. Ou se é um pouco de todas essas coisas. De qualquer forma, as medidas de segurança que podem ser inusitadas em outros países da América do Sul, também assolados pela criminalidade, não se limitam aos cães de guarda. Na Colômbia, é comum ser inspecionado pelos cachorros ao entrar a pé em um shopping ou mesmo pela polícia. Fim do Matérias recomendadas Também é comum ver soldados armados com fuzis patrulhando ruas e rodovias. E a indústria da segurança privada, que inclui escoltas, guardas e sistemas de monitoramento, é maior do que a polícia. Hoje a Colômbia não é muito mais violenta do que outros países da região. Embora os homicídios tenham aumentado no ano passado, o número de 26 mortes violentas por 100 mil habitantes – o principal critério utilizado para medir a violência – não é superior ao do Equador ou do México, e é inferior ao da Venezuela e de Honduras. No Brasil, essa taxa foi de 23,4 por grupo de 100 mil habitantes no ano passado. Em Bogotá, o número de 12,8 homicídios por 100 mil habitantes, semelhante ao de Medellín, é próximo ao do Uruguai ou do Panamá e inferior ao da Guatemala e do próprio Brasil. A Colômbia, então, deixou de ser um dos países mais violentos da América Latina. A violência diminuiu principalmente nas grandes cidades. No entanto, na Colômbia é possível ver medidas que refletem um sentimento forte de insegurança, marcado por uma história traumática e, também, por uma enorme indústria de segurança particular. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast É difícil saber quais destas medidas são exclusivas da Colômbia. A segurança pública é um problema em toda a América Latina e as soluções têm sido, em geral, as mesmas. Cães de guarda e antiexplosivos, que nos casos de shopping centers vivem e dormem no mesmo prédio há anos, surgiram nas décadas de 80 e 90, quando as bombas dos traficantes de drogas, primeiro, e depois dos guerrilheiros, tornaram-se relativamente comuns nas cidades. Cães de guarda também são comuns no México. Em 2019, naquele país, foi oficializada e regulamentada a presença de soldados nas ruas para combater o crime. Na Colômbia isso ocorreu na década de 1970, em meio a uma onda de decretos presidenciais de emergência denominados “estado de sítio.” Há também o exemplo da segurança privada, indústria que tanto no México como na Colômbia representam 1,5% do PIB e são as maiores da região, embora estes números não incluam a segurança privada informal, que pode ser tão grande ou maior que o mercado regularizado. A indústria, em todo caso, conta com 800 empresas e 400 mil funcionários na Colômbia: seguranças, escoltas, motoristas, treinadores. É um quarto dos funcionários da Polícia Nacional. José Rivera é dirigente sindical da empresa Fortox, uma das maiores do setor. Ex-militar, trabalha como segurança há 27 anos. Para ele, as medidas são justificadas. “A guerra acabou, mas o crime não, e o crime também é prejudicial”, diz ele. “Não vejo problema em, por exemplo, ao entrar em um prédio, a pessoa ter de passar por uma revista, com o documento de identidade e registro”. Na Colômbia é comum que para entrar em um prédio seja necessário se registrar junto a um segurança - isso acontece em muitas cidades do Brasil, também. O procedimento é comum em edifícios de escritórios, universidades e edifícios residenciais. Mas nada é mais difícil do que entrar como visitante em condomínios residenciais fechados, fenômeno que o arquiteto e urbanista Fernando de la Carrera considera o produto mais “transcendental desta sociedade do medo”. Eles cresceram em áreas ricas e pobres das cidades, especialmente em Bogotá. E incluem diversas torres cercadas por bares, tudo monitorado por câmeras em todas as esquinas. Esses locais são vigiados por seguranças e cães de guarda e ocupam blocos inteiros. Por volta de 40% dos 9 milhões de habitantes de Bogotá vivem em um condomínio fechado. Só Ciudad Verde, bairro de condomínios na zona sul, moram 200 mil pessoas - é uma cidade privada. “O sucesso do modelo de condomínio fechado é alimentado pelo medo. Seu crescimento coincide com o aumento da violência que tomou conta do país a partir da década de 1980”, escreve De la Carrera em Rejalópolis, um estudo que publicou com a Universidade dos Andes. “O medo nos levou a sacrificar o espaço público e as interações sociais e econômicas que ele gera”, afirma. “A segregação espacial que motiva os complexos fechados aumenta o sentimento de medo, de isolamento e fomenta mais do mesmo: desconfiança, insegurança, mais medo e mais grades”, diz De la Carrera. Mas medidas extremas de segurança não falam apenas de um presente violento, mas também de um passado revivido cada vez que ocorre um acontecimento violento. Ou seja, o passado é sentido no presente. A Unidade de Proteção Nacional (UNP, na sigla em espanhol) é a organização estatal responsável pela segurança dos colombianos em risco de serem assassinados: funcionários públicos, congressistas, líderes camponeses e uma longa lista de comunidades vulneráveis. A entidade conta com cerca de 2 mil guarda-costas e outros 8 mil terceirizados de empresas de segurança privada, além de caminhões e armas. Cerca de 10 mil guarda-costas no país é um número semelhante ao que é relatado pelo Serviço de Proteção Federal, órgão semelhante no México, um país com o dobro do tamanho da Colômbia. “A segurança deveria ser a salvação do medo, mas na realidade é um negócio”, diz Augusto Rodríguez, diretor da UNP. “E tem gente que brinca com isso, que aumenta ou diminui o risco de acordo com o seu interesse, porque o medo é o terreno fértil para a corrupção”. Rodríguez acompanhou o presidente Gustavo Petro ao longo de sua carreira: estiveram juntos na guerrilha, no Congresso e na Prefeitura de Bogotá. “Proteger a vida é a linha política central deste governo”, afirma, para explicar por que alguém tão próximo do presidente preside um cargo de segundo escalão. Desde que assumiu o cargo, Rodríguez diz ter encontrado diversos esquemas de corrupção no órgão: carros que não são usados ​​mas utilizam cota de gasolina, veículos usados para traficar drogas, esquemas de venda de armas legais a grupos ilegais e desvios na estrutura salarial dos funcionários. “Queremos destoyotizar a Colômbia”, diz, referindo-se aos caminhões Toyota que chegaram ao país na década de 80 e eram símbolo dos narcotraficantes – quase sempre blindados e brancos. Hoje, esses veículos são um símbolo de status. Rodríguez não acredita que as medidas de segurança sejam exageradas, em geral. “A violência persiste porque persiste a desigualdade, persistem os problemas fundiários (...) Muitos não precisam de esquemas de segurança, têm mais um problema de mobilidade do que de segurança, mas a maioria sim.” Parece, em todo o caso, que existe uma discrepância entre a realidade dos dados da violência, que hoje é menor do que antes, e as medidas que os colombianos tomam para se protegerem, que só aumentam. Para Luis Ignacio Ruiz, criminologista e psicólogo social da Universidade Nacional, não existe “medo injustificado”. “O medo do crime envolve muitas outras emoções que não falam apenas de insegurança”, afirma. “Em vários estudos descobrimos que as pessoas se declaram inseguras quando o seu medo, na realidade, é a pobreza, a falta de educação ou a fome”. “E também é preciso acrescentar que os números da violência nunca estão completos, porque omitem uma série de crimes que não são noticiados, além do fato de os meios de comunicação, que dão prioridade ao crime, e agora as redes sociais, gerarem um efeito de repetição do evento violento”. A maior parte do território colombiano já não está em guerra. Mas lembrá-la não é apenas um exercício mental: tem implicações materiais no presente. E isso deixa os colombianos com medo.
2023-09-23
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3gwq779vn0o
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Como 'guerra dos chips' entre EUA e China virou oportunidade para o México
"Por que se fala tanto da 'guerra dos chips' se, no fim das contas, é apenas mais uma batalha comercial entre Estados Unidos e China?", alguém me perguntou outro dia. O que eu não sabia é que o país que dominar a indústria de semicondutores terá praticamente a economia internacional nas mãos. Os chips são a alma da economia moderna e o cérebro de todos os sistemas eletrônicos em produtos de consumo de massa, como carros, telefones, computadores, e até mesmo aviões de combate. "A indústria militar tornou-se cada vez mais dependente de semicondutores avançados para sistemas de computação, sensores e capacidade de comunicação”, diz Chris Miller, professor associado de História Internacional na Universidade Tufts (em Massachusetts, nos EUA), especializado em questões econômicas, tecnológicas e políticas. Os semicondutores são também a força motriz por trás de inovações que irão revolucionar a forma como vivemos, como a inteligência artificial e a computação quântica. Fim do Matérias recomendadas Embora os Estados Unidos continuem a ser líderes no design de chips, a maior parte da fabricação é feita no exterior. Na verdade, a maioria dos chips tecnologicamente mais avançados são fabricados em Taiwan. E, à medida que a tensão política aumentou nos últimos anos sobre a possibilidade de a China decidir invadir a ilha, também cresceu a preocupação nos EUA sobre a vulnerabilidade do fornecimento de semicondutores. Além disso, quando a pandemia provocou interrupções nas cadeias de abastecimento e as empresas entenderam que, apesar de terem custos baixos, não podem depender exclusivamente da China, elas começaram a olhar para outros países com a ideia de realocar suas operações. "E por que não no México?", pergunta Chris Miller. Muitas empresas começaram a se instalar em outros países asiáticos, mas o país latino-americano também está na corrida para atrair estes investimentos. "Há uma grande oportunidade para o México", argumenta o autor de livros como A Guerra dos Chips (Globo Livros, 2023) nesta entrevista à BBC News Mundo, serviço da BBC em espanhol. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast BBC News Mundo – Vamos falar sobre o México. Qual o papel que este país pode desempenhar no meio desta guerra de semicondutores que existe entre Estados Unidos e China? Chris Miller – Existem muitas partes no processo de fabricação de semicondutores. Você tem o design, a produção das ferramentas, a fabricação dos próprios chips, a embalagem antes de serem enviados ao consumidor final. Nenhum país se concentra particularmente em todas as fases. O México pode desempenhar um papel importante na montagem e embalagem. O país já possui uma indústria de montagem desenvolvida no setor automotivo e no setor de dispositivos médicos. É por isso que o México pode expandir essa vantagem para as indústrias de montagem e embalagem de chips. BBC News Mundo – O que dizem as empresas que fabricam semicondutores? Miller – Se ouvirmos as empresas de tecnologia de produção, o interesse delas é reequilibrar sua cadeia de abastecimento para não ficarem tão dependentes da Ásia Oriental. Atualmente, a maior parte da montagem e embalagem da indústria de chips é feita no Leste Asiático, em países como China e Taiwan. Existem muitas empresas que gostariam de ver mais montagem e embalagem de chips na América do Norte. BBC News Mundo – Mas até agora isso não aconteceu... Miller – Até agora isso não aconteceu. Acredito que o México tem a geografia, a base industrial, a estrutura de custos para viabilizar a montagem e a embalagem. BBC News Mundo – Mesmo que não faça parte dos países que se destacam por fabricar tecnologia avançada? Miller – Acontece que os semicondutores são tecnologia avançada, mas exigem montagem e é nessa parte que o México tem vantagens. Além de carros e dispositivos médicos, também são montados servidores e computadores no México. Como empresas estão buscando mudar a cadeia de abastecimento para fora da China, serão necessários mais computadores e servidores montados no México no futuro. Todos esses produtos precisam de semicondutores. Então, não creio que seja correto dizer que o México não tem base tecnológica para somar-se à mudança. Existem várias indústrias que utilizam muitos semicondutores e ficariam muito entusiasmadas em ver o México desempenhar um papel maior na montagem e embalagem. BBC News Mundo – Como o México irá atrair investimentos de empresas fabricantes da indústria de chips se não tiver um plano especificamente concebido para atingir esse objetivo? Miller – O México precisa fazer mais no desenvolvimento de uma estratégia. Em última análise, as empresas tomarão decisões de investimento motivadas pela lógica empresarial, mas o governo pode ajudar garantindo que os incentivos fiscais sejam concebidos da melhor forma possível para torná-los atraentes para as empresas. O segundo ponto é que o governo pode ajudar garantindo que as empresas tenham o fornecimento de eletricidade, água e energia limpa de que necessitam para atrair investimentos a longo prazo. E a última coisa, provavelmente a mais importante, é que existe um ecossistema suficientemente extenso para o desenvolvimento de economias de escala que reduzam custos, como fizeram China, Vietnã ou Taiwan. O México tem isso em certas indústrias, como a automotiva, mas não nas indústrias de semicondutores ou na produção de certos componentes eletrônicos. O governo pode fazer mais para que as empresas percebam que há interesse em desenvolver esta indústria e resolver os problemas que as empresas enfrentam. Quanto mais investimentos você puder atrair, mais interesse haverá no futuro em novos investimentos. BBC News Mundo – No meio desta guerra de chips entre os Estados Unidos e a China, você diria então que o México tem uma grande oportunidade comercial? Miller – Sim, há uma grande oportunidade para o México. E a oportunidade não tem apenas a ver com a corrida pelos semicondutores entre os EUA e a China, penso que cada empresa multinacional que está na China está avaliando o que fazer com sua produção. Não são apenas as empresas americanas. As empresas japonesas, coreanas e taiwanesas também estão interessadas em transferir sua produção industrial para outros países. Nas últimas duas décadas, o México perdeu oportunidades porque muitas empresas se estabeleceram na China, mas essa era acabou. Agora há uma corrida entre o Sudeste Asiático e o México para atrair empresas que vão deixar a China. É uma daquelas oportunidades únicas em uma geração. BBC News Mundo – Que benefícios o México poderá obter se conseguir entrar na cadeia de fornecimento de semicondutores? Miller – Criar empregos de alta qualidade e bem remunerados que sejam relativamente de alta tecnologia. Há uma razão pela qual todos os países tentam competir para atrair estes investimentos. A indústria de semicondutores pode ter impacto no crescimento econômico do país. Os chips possuem alto valor agregado, é tecnologia avançada. Certamente uma cadeia de abastecimento centrada na América do Norte seria menos vulnerável a potenciais perturbações. À medida que aumentam as tensões entre a China e Taiwan, há maior preocupação por parte das grandes empresas. BBC News Mundo – Que desafios o México enfrenta para entrar no jogo? Miller – O principal desafio que o México enfrenta é que há muitos países competindo para atrair investimentos para a indústria de semicondutores, incluindo alguns países que desenvolveram grandes ecossistemas eletrônicos e que estão mais focados em atrair investimentos que estão saindo ou irão sair da China. O governo mexicano tem que ser mais estratégico na atração de empresas e tem que demonstrar que o país é o lugar certo para este tipo de indústria. BBC News Mundo – É possível que o país consiga isso? Miller – É possível que o México desempenhe um papel mais importante nas cadeias de abastecimento eletrônico, mas não sou especialista em política mexicana.
2023-09-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4n25n13r91o
america_latina
As mulheres usadas pelos EUA como 'cobaias' da pílula anticoncepcional em Porto Rico
Duas mulheres, num conjunto habitacional público em San Juan, capital de Porto Rico, observam perplexas. Uma delas, tímida, descreve alguns sintomas: "O mundo sumiu, minha visão ficou turva. A única coisa que eu disse foi: 'Nossa Senhora do Carmo, cuida dos meus filhos'." Em seguida, fazendo um não com a cabeça, a outra comenta: "Estavam fazendo experimentos conosco sem sabermos." A cena faz parte do documentário La Operación (1982). As mulheres, cujos nomes não são mencionados, descreviam sua participação no primeiro ensaio clínico em grande escala que testou a eficácia da pílula anticoncepcional na década de 1950. No filme, ambas afirmam que não sabiam que faziam parte de uma pesquisa. Fim do Matérias recomendadas Tal como elas, centenas de outras mulheres porto-riquenhas de origem humilde foram, sem saber, pacientes no estudo liderado por dois acadêmicos americanos. O medicamento, que desde sua comercialização em 1960 permitiu que as mulheres tivessem maior controle sobre seus corpos, por não dependerem dos homens para planejar a maternidade, foi testado em Porto Rico graças a uma peculiar política pública de controle da superpopulação promovida pelo governo local da ilha e pelos Estados Unidos. Em meio a um boom de natalidade durante a primeira metade do século 20, com muitos cidadãos vivendo em extrema pobreza, a solução dos políticos da ocasião, nomeados pelos EUA, foi encorajar os porto-riquenhos a não terem filhos. E suas iniciativas, explica Ana María García, professora da Universidade de Porto Rico e diretora de La Operación, foram pensadas especificamente para que esta redução populacional ocorresse entre as comunidades mais pobres. "Elas foram dirigidas às mulheres mais pobres, de minorias raciais e menos instruídas do país", diz Lourdes Inoa, da ONG feminista porto-riquenha Taller Salud. "Porque eram as que menos tinham oportunidade de conhecer as repercussões de participar deste tipo de procedimento. O consentimento, neste contexto, é altamente questionável", acrescenta. Com financiamento privado, mas também do Estado, a ilha foi "um grande laboratório de controle de natalidade", diz García. E as mulheres, acrescenta Inoa, tornaram-se "cobaias". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A origem da pílula, que segundo as Nações Unidas é usada atualmente por 150 milhões de mulheres em todo o mundo, ocorreu longe de Porto Rico, dentro dos muros da prestigiada Universidade de Harvard, em Massachusetts, nos EUA. Quem desenvolveu o medicamento foram dois renomados professores da instituição: John Rock e Gregory Pincus. O primeiro foi um dos mais importantes especialistas em fertilidade da América do Norte, diz a historiadora Margaret Marsh, professora da Universidade Rutgers, em Nova Jersey. Rock era paradoxalmente católico, e pensava que os casais deveriam ter o direito de decidir quando ter filhos. Pincus foi um biólogo que em mais de uma ocasião descreveu a superpopulação como "o maior problema para os países em desenvolvimento". Ambos foram financiados e supervisionados de perto por Margaret Sanger, enfermeira e especialista em saúde que fundou a organização sem fins lucrativos de saúde reprodutiva Planned Parenthood, e pela rica líder sufragista (movimento que reivindicava a participação feminina na política) Katharine McCormick. Elas, diz Inoa, "procuravam que as mulheres fossem inseridas nas diversas facetas da sociedade, para que tivessem maior poder". O controle da maternidade era essencial para isso. Mas sabe-se que Sanger defendia a eugenia, a filosofia social que prega o aperfeiçoamento da raça humana através da seleção biológica. E por isso permitiu que a pílula fosse testada em mulheres pobres e em situação de vulnerabilidade. "O movimento pelo controle da natalidade, de certa forma, teve duas vertentes. Uma era que as mulheres tomassem as suas próprias decisões reprodutivas, e a outra era a ideia de que o controle da natalidade era bom porque as pessoas pobres teriam menos filhos", acrescenta Marsh. A primeira pesquisa sobre pílula anticoncepcional nos EUA foi feita em ratos e outros animais. Depois, em uma atitude considerada antiética, os cientistas administraram o medicamento a um pequeno grupo de pacientes num hospital público para doentes mentais em Massachusetts, diz Marsh, que é especialista na história da contracepção nos EUA. "Os familiares dos pacientes deram autorização para a realização do estudo, mas eles próprios, por estarem internados num hospital psiquiátrico, não consentiram. Embora naquela época isso fosse legal", comenta. Nesta fase, Pincus e Rock descobriram que os compostos que criaram tinham o efeito de interromper a ovulação. Então procuraram um local para realizar um teste em maior escala, para que os reguladores dos EUA aprovassem a pílula. Em Massachusetts, explica a professora García, o controle da natalidade era ilegal. Havia também limitações legais para experimentação com seres humanos. Foi então que os cientistas tiveram que identificar um "local ideal". Eles decidiram ir para Porto Rico porque a esterilização e a experimentação para conseguir a contracepção em geral era legal lá desde 1937. "Uma lei foi aprovada num momento histórico, quando no resto do planeta, incluindo os EUA, a esterilização generalizada não era legal", destaca García. A legislação foi assinada pelo governador Blanton C. Winship, um homem que também apoiava publicamente a eugenia e que – de acordo com um artigo do jornal The New York Times – incentivou que o controle populacional fosse pesquisado em Porto Rico, porque para ele era o único "meio confiável de melhorar a raça humana". Na década de 1950, quando os pesquisadores da pílula chegaram à ilha, 41% das mulheres porto-riquenhas em idade reprodutiva já haviam experimentado algum método contraceptivo, segundo um estudo da Universidade de Porto Rico. Isto foi possível graças ao fato de a legislação ter permitido a criação de dezenas de clínicas de planejamento familiar em todo o território, mesmo nas cidades mais remotas, subsidiadas pelo governo e com funcionários que promoviam o controle da natalidade entre as mulheres. A rede de clínicas também atraiu a atenção de Pincus e Rock, que pensaram que poderiam utilizá-las para desenvolver seu projeto. A equipe, porém, decidiu focar primeiro em um único bairro de San Juan, a capital do país. Na ilha, a experiência começou em 1955 como um projeto do qual participaram estudantes de medicina e enfermagem. Mas o estudo era muito complicado e doloroso, por isso muitas não terminaram. Além disso, a pílula testada em Porto Rico tinha uma dose muito superior à atual e causava fortes efeitos colaterais. "Eram necessárias análises de urina, biópsias endometriais e outros testes para determinar se estavam ovulando ou não. É um procedimento desconfortável. Se você tem estudantes que realmente não precisam de contracepção, eles não estariam dispostos a continuar", comenta Marsh. A medicação causou náuseas, tonturas, vômitos e dores de cabeça. Pincus, entretanto, descartou esses efeitos colaterais como uma consequência "psicossomática" (quando um sintoma físico é causado por questões emocionais ou psicológicas). "Ele acreditava tanto na pílula que estava dando para suas familiares. Suas netas, filhas, as amigas de seus filhos”, diz Marsh, que escreveu uma biografia sobre Rock, colega de trabalho de Pincus. A equipe decidiu continuar a experimentação, mas desta vez em Río Piedras, um subúrbio ao norte de Porto Rico. Assistentes sociais e equipes médicas visitaram as mulheres de porta em porta, oferecendo-lhes pílulas anticoncepcionais e, para algumas delas, realizando exames para coleta de dados, sem qualquer compensação monetária. O rechaço por parte de diversos setores da sociedade porto-riquenha foi imediato. "Houve notas na imprensa que classificaram as pesquisas como 'malthusianas'", diz Inoa, do Taller Salud. O economista inglês Thomas Malthus (1766-1834) desenvolveu uma teoria sobre crescimento populacional e a produção de alimentos, e acreditava na necessidade de controle de natalidade para conter o ritmo acelerado do crescimento da população. "[Houve críticas] também por parte de médicos, mesmo aqueles que estavam em processo de recrutamento de mulheres, que pensavam que os efeitos colaterais deveriam ser levados a sério e que eram necessários mais testes e não desconsiderá-los." Devido aos efeitos colaterais, muitas dessas mulheres, assim como em estudos anteriores, decidiram interromper o tratamento. Outras, atingidas pela pobreza, concordaram em tomar a pílula como método reversível de controle da natalidade. Segundo Marsh, três pessoas morreram no ensaio clínico realizado na ilha caribenha. No entanto, nunca foi realizada uma autópsia nelas, portanto as causas exatas de sua morte são desconhecidas. Apesar das mortes, vendo que a pílula tinha o efeito de prevenir a gravidez, os cientistas estenderam o projeto a outras cidades de Porto Rico e, posteriormente, ao Haiti, México, Nova York, Seattle e Califórnia. No total, participaram cerca de 900 mulheres, das quais cerca de 500 eram porto-riquenhas. Em 1960, a FDA, agência regulatória de medicamentos dos EUA, aprovou o Enovid, como foi chamada a primeira pílula, como método contraceptivo. Sua expansão foi rápida. Em apenas sete anos, 13 milhões de mulheres no mundo usaram o produto. Mas depois de ser aprovada pela FDA, a pílula continuou a causar efeitos colaterais graves, incluindo coágulos sanguíneos, o que levou a processos judiciais. Na ilha, apesar das ações judiciais em outras partes dos Estados Unidos, os estudos continuaram até 1964. Ainda hoje, diz Inoa, não há pesquisas "significativas" que procurem "outro tipo de método anticoncepcional que não tenha os efeitos colaterais da pílula que existe atualmente". Enquanto isso, os estudos para criar um anticoncepcional oral para homens também não deram frutos, embora tenham começado há 30 anos.
2023-09-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c514vq9p9v9o
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Lava Jato segue viva no Peru e na Colômbia - e mantém Odebrecht e políticos sob pressão
Na semana passada, o ministro Antonio Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), invalidou provas obtidas no acordo de leniência firmado no Brasil pela empreiteira Odebrecht em mais um movimento que mina as consequências políticas e legais da operação Lava Jato no âmbito brasileiro. A decisão, que ainda pode ser revista pela segunda turma do Supremo, é também acompanhada com atenção nos países vizinhos, onde relatos e informações sobre corrupção repassadas por ex-executivos da empresa e pela própria construtora em acordos locais de leniência também deram origem a processos judiciais de alta voltagem política. O caso é especialmente emblemático no Peru, onde quatro ex-presidentes foram ou estão sendo investigados por suposto envolvimento em irregularidades ligadas à Odebrecht, num dos mais extensos desdobramentos da Lava Jato no exterior. Na semana passada, o depoimento na Justiça do antigo responsável pela construtora no Peru, Jorge Barata, dominou o noticiário peruano. Já na Colômbia a construtora é alvo de cobrança do presidente Gustavo Petro, que afirma que a Odebrecht não pagou a compensação devida ao país por envolvimento em corrupção - questionada pela BBC News Brasil, a empresa disse que não reconhece essa dívida. Fim do Matérias recomendadas Entenda abaixo os fundamentos da decisão de Toffoli, o posicionamento da construtora e como a a Lava Jato, combalida no Brasil, segue em evidência no Peru e na Colômbia. Em sua decisão, Toffoli reforça sentença anterior da corte que já afirmava que informações repassadas pelos executivos da construtora ou pela própria empresa não podem ser usadas em processos criminais contra acusados de irregularidades. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os principais argumentos acatados pelo ministro do Supremo são dois: ele afirma que da Lava Jato pois houve quebra da cadeia de custódia. Ou seja, a produção dessas provas não respeitou a lei. O acordo da Odebrecht previa que a empresa iria devolver R$ 2,7 bilhões aos cofres públicos e em troca o MPF (Ministério Público Federal) não entraria com ações contra ela na Justiça. A partir de informações obtidas da empresa com esse acordo, o MPF reuniu um material que apresentou como prova contra réus da Lava Jato em vários processos - incluindo um envolvendo o ex-presidente Lula. O problema, segundo o Supremo, é que esse acordo com Odebrecht foi irregular já que teve participação de autoridades brasileiras, americanas e suíças, mas sem passar pelos canais oficiais necessários. O problema, segundo o Supremo, é que esse acordo com Odebrecht foi irregular já que teve participação de autoridades brasileiras, americanas e suíças, mas sem passar pelos canais oficiais necessários. No final de 2017, em meio ao abalo provocado pela operação Lava Jato e após o acordo de leniência firmado com as autoridades brasileiras, a companhia decidiu mudar suas marcas e retirar o nome "Odebrecht" das diversas unidades de negócio. Atualmente, a empresa tem como nome Novonor. Já o ramo da construtora passou a se chamar OEC, com o descritivo "Odebrecht Engenharia e Construção". Desde então, sua identidade visual também passou por alterações. Alguns especialistas avaliam que a decisão de Toffoli possa repercutir nas esferas judiciais destas outras nações. Na última semana, o depoimento do antigo responsável pela Odebrecht no Peru, Jorge Barata, dominou o noticiário deste país. Na ocasião, o executivo reafirmou que a empresa pagou propina a uma série de importantes nomes da política local, incluindo uma série de ex-presidentes. A audiência foi realizada de maneira remota, mas Barata foi convocado a depor em solo peruano no caso que envolve o ex-presidente Ollanta Humala. O executivo Marcelo Odebrecht também havia sido convocado, mas sua defesa alegou que decisões recentes do STF fazem com que seu cliente não tenha de prestar depoimento neste caso. Uma decisão anterior de Toffoli invalidou evidências obtidas pelos sistemas Drousys e MyWebDay B, que eram supostamente utilizados pela empresa para ocultar o pagamento de subornos. A promotoria peruana pede 20 anos de prisão para Humala, além de 26 anos e seis meses para sua esposa Nadine Heredia, ambos julgados pelo crime de lavagem de dinheiro pelo recebimento de supostas verbas ilícitas, incluindo da Odebrecht. O caso envolveria um financiamento de US$ 3 milhões para a campanha presidencial de Humala em 2011. Em 2018, a Odebrecht chegou a um acordo no Peru no qual se declarou culpada pelas acusações de que ofereceu propina a políticos locais. Além disso, os executivos da empresa prometeram delatar os envolvidos nos esquemas de corrupção, o que incluía oferecer provas substanciais. Em troca, os executivos puderam deixar o país, além de poderem sacar fundos que possuíam no Peru. Por parte da companhia, houve a permissão para a venda de ativos locais. Dentre as negociações, a Odebrecht vendeu a usina hidrelétrica de Chaglla, no centro do país, por US$ 1,4 bilhões a um consórcio chinês. O empreendimento é responsável por cerca de 5% da energia produzida no Peru. Por outro lado, a empresa teve de pagar uma compensação de 610 milhões de soles (R$ 818 milhões) ao governo peruano, valor acrescido de 150 milhões de soles (R$ 201 milhões) de juros. O combinado é que os pagamentos sejam feitos de forma gradativa, e, até o momento, 220 milhões de soles (R$ 295 milhões) foram abatidos da dívida. Procurada pela BBC News Brasil, a Odebrecht afirmou que "a condição da companhia no Peru é de colaboradora do Ministério Público, entidade com a qual firmou um acordo que continua sendo cumprido integralmente pela empresa e que, em contrapartida, lhe confere garantias legais típicas desse tipo de convênio. Em tal contexto não é prevista, portanto, uma estratégia de 'defesa'". A advogada Delia Muñoz ocupou o cargo de ministra da Justiça e Direitos Humanos durante o governo do ex-presidente Manuel Merino – um mandato que durou 5 dias, entre 10 e 15 de novembro de 2020. À BBC News Brasil, ela afirma que o acordo foi benéfico para os executivos da Odebrecht, e diz que as compensações pagas pela empresa são "cômodas", e que demorarão anos para serem quitadas. Além disso, ela vê a justiça peruana com pouca capacidade para agir apenas com os depoimentos dos executivos, uma vez que as provas mais relevantes seguem no Brasil. "Quando foi descoberto o pagamento de propina para a conquista de obras, não houve acesso no Peru às grandes evidências que sustentassem as afirmações das acusações feitas pelos executivos da Odebrecht", afirma. No caso peruano, entre os grandes empreendimentos envolvidos nos processos estão o metro de Lima e a chamada rodovia Interoceânica, que conecta o país ao Brasil. Em sua visão, o movimento desta semana no STF dificulta que provas cheguem à justiça local. “É claro no Peru que esta recente decisão é um claro prejuízo para o país, uma vez que nega o acesso à justiça”, avalia. “Desta forma, o Brasil permite a impunidade absoluta no Peru. Os réus admitem que pagaram propina e agora vão dizer que as autoridades brasileiras não permitem que utilizem as provas que estão no país”, afirma a ex-ministra. Em sua visão, os executivos irão continuar fazendo afirmações sobre os envolvidos em corrupção, mas sem apresentar as provas. Para ela, o cenário atual faz com que o fim do caso localmente seja uma possibilidade real. “Vamos viver a situação absurda do caso arquivado apesar de declarações aceitando corrupção. Acho que o caso vai morrer em breve, é muito difícil fazer uma acusação sem provas fortes”, avalia. “Ficou claro que o Ministério Público peruano confiou na palavra dos executivos de que iriam entregar as provas, mas não foi isso que aconteceu. O caminho agora seria redesenhar a estratégia”, avalia. Segundo criminalistas consultados pela BBC News Brasil, no entanto, a decisão do STF leva em conta uma série de tratados internacionais determina que, qualquer cooperação jurídica criminal entre o Brasil e outros países precisa seguir uma série de regras. No caso do acordo feito pela Odebrecht, a cooperação entre o MPF e autoridades estrangeiras deveria ter sido acordada com o DRCI (Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Internacional), órgão do Ministério da Justiça. A defesa de Lula já havia pedido, em 2017, para ter acesso a esse acordo que foi celebrado entre Brasil, EUA e Suíça, e a acusação já havia dito que não havia correspondência oficial sobre isso. Agora, a partir de um pedido de Toffoli, o Ministério da Justiça confirmou que não encontrou qualquer registro de que o acordo tenha passado pelo DRCI, o que o torna irregular, segundo Toffoli. “O MPF não pode sair fornecendo informações nacionais para outros países sem passar pelas vias oficiais”, diz Bruno Salles, membro da diretoria do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim). “Em síntese, a decisão reforça que as comunicações realizadas entre autoridades devem ser realizadas sempre pelos meios e formas que garantam uma cadeia de custódia da prova”, acrescenta Rogério Cury, professor de direito penal do Mackenzie. “Havendo violação, tais provas devem ser consideradas ilícitas e desentranhadas dos autos, ou seja, retiradas do processo”, explica o professor. Em seu depoimento nesta semana, Barata afirmou que a empresa contribuiu para “diversas campanhas políticas, principalmente de presidentes, deputados e prefeitos”. Dentre os nomes que o executivo citou, estão os ex-presidentes Alan García, Ollanta Humala e Pedro Pablo Kucsynki, além da influente congressista Keiko Fujimori. Os escândalos da empresa no país envolvem ainda o ex-presidente Alejandro Toledo, que neste ano foi extraditado dos Estados Unidos para ser julgado em solo peruano. Em novembro de 2016, Barata afirmou que a construtora pagou US$ 20 milhões a Toledo em troca da permissão para a construção dos trechos 2 e 3 da Rodovia Interoceânica Sul. Na visão da socióloga do Instituto Nacional de Estudos Peruano (IEP) Patricia Zárate, o impacto na vida nacional destes sucessivos escândalos segue forte. “A corrupção continua a ser identificada como um dos principais problemas que o país tem”, aponta. “Após o escândalo da Odebrecht, os cidadãos consideraram a corrupção como o principal problema do Peru”, afirma a socióloga. Além disso, há uma percepção de impunidade, em sua visão. “Parece que não houve, ou não se sentiu como se houvesse, uma verdadeira luta contra o problema da corrupção porque novos escândalos continuam a surgir, talvez menores, mas são como uma constante, e não há ação tangível”, avalia. No entanto, segundo ela, há uma diferenciação da empresa com o Brasil, o que não reflete em uma imagem negativa sobre o país vizinho. “Há coisas mais positivas, como o futebol, que estão sempre na cabeça dos peruanos”, afirma. Em 2019, García suicidou-se com um tiro na cabeça, logo antes de ser preso. Em uma carta de despedida, ele reafirmou sua inocência no caso. Em 2018, ele chegou a pedir asilo político na embaixada do Uruguai, afirmando que sofria perseguição. Em seu depoimento nesta semana, Barata afirmou que, dentre os políticos mencionados, aquele com quem tinha uma relação mais próxima era García. O executivo afirmou ainda que a Odebrecht entregou dinheiro para campanhas do ex-presidente em duas oportunidades. À BBC News Brasil, Ricardo Pinedo, que foi secretário de Garcia, afirmou que “lamentavelmente”, as investigações foram “manipuladas de forma política”. Segundo ele, o processo ficou centrado nas relações do ex-presidente com os executivos. Sobre fotos que mostram García em aviões junto dos comandantes da Odebrecht, ele alega que era algo natural já que o mandatário tinha como hábito acompanhar inaugurações de obras. Para Pinedo, há uma sensação de que a Odebrecht “fez o que queria” no Peru, e que “na realidade zombou da justiça peruana porque os promotores, tendo um interesse tendencioso em investigar aproveitaram-se para que os depoentes dissessem o que lhes convinha”. Em resposta à consulta da BBC News Brasil, a Odebrecht reafirmou sua colaboração com as autoridades e destacou que está habilitada a realizar novos contratos no país. “No Peru, a empresa está habilitada para contratar com o Estado, o que foi recentemente confirmado pela Corte Suprema do país, e atualmente executa alguns projetos de infraestrutura nos setores de transporte e irrigação. No que se refere ao Acordo de Leniência, o objetivo da empresa é que seja integralmente cumprido pelas partes, conforme os seus termos e condições, o que compreende, entre outros pontos, o pagamento da multa até o final do prazo e a operação sem restrições no país”, afirmou. Na Colômbia, a Odebrecht voltou a ser foco das atenções em agosto, depois que o presidente Gustavo Petro afirmou que o caso envolvendo a empresa poderia ser reaberto no país. Em Bogotá, o governo colombiano sediou o Congresso Internacional sobre a Luta contra a Corrupção e a Recuperação de Ativos, ocasião na qual Petro acusou a procuradoria local de permitir que os responsáveis pela corrupção saíssem da Colômbia sem prestar contas à justiça. O presidente argumentou também que os proprietários da multinacional brasileira não compensaram financeiramente a Colômbia, apesar das sanções impostas pelos tribunais locais, como os US$ 250 milhões anunciados em 2018 pelo Tribunal Administrativo de Cundinamarca como compensação. “Não pagaram um só peso”, exclamou Petro. À BBC News Brasil, a Odebrecht afirmou: “A companhia tem um processo de colaboração iniciado em 2016 com o Ministério Público colombiano, permanecendo à disposição das autoridades em caso de continuação ou reabertura de qualquer procedimento com o qual a empresa possa contribuir”. “Na Colômbia, o foco tem sido a conclusão da colaboração com as autoridades e a preservação dos direitos da companhia com relação a uma série de procedimentos que considera indevidos”, acrescentou, em nota. Segundo o Ministério Público colombiano, houve uma rede de corrupção na qual executivos da Odebrecht teriam criado um empreendimento criminoso para entregar mais de 80 bilhões de pesos (R$ 99 milhões) em propinas na Colômbia. Mais 22 pessoas foram intimadas para serem processadas por suposto envolvimento nos atos de corrupção. Neste cenário, o promotor Daniel Hernández, foi acusado de deixar escapar vários executivos da Odebrecht e de intimidar testemunhas no caso da empresa brasileira. Ele foi indiciado pelos crimes de prevaricação por omissão e ameaças a testemunhas perante a Suprema Corte de Justiça da Colômbia. Em audiência no dia 7 de setembro, a defesa de Hernández afirmou que ele atuou como promotor de apoio no caso Odebrecht e não há clareza na norma que determina que tal função deve processar o registro de mandados de prisão na entidade judiciária.
2023-09-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgxgkxe35kdo
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A luta de sobreviventes contra padre acusado de tortura na ditadura argentina
Sobreviventes de crimes cometidos por militares nos anos 1970 na Argentina lutam para que um padre seja julgado por seu suposto papel em sequestros e tortura contra opositores do regime. O caso mostra que as feridas causadas pelo golpe militar ainda estão longe de cicatrizadas. "No momento em que vi entrar Franco Reverberi, o padre do meu vilarejo, eu achei que fosse morrer", recorda Mario Bracamonte. O fato de um clérigo visitá-lo em sua cela de prisão no norte da Argentina não era reconfortante. "Eu estava deitado no chão encharcado de sangue depois de uma noite de tortura. Ele entrou vestido com seu uniforme militar e me olhou impassível. Eu não conseguia acreditar." Fim do Matérias recomendadas Mario Bracamonte foi um dos milhares de argentinos sequestrados por soldados após o golpe militar de 24 de março de 1976. Liderada por Jorge Videla, a junta militar que tomou o poder tinha como alvo qualquer pessoa que se opusesse à ditadura. Cerca de 30 mil pessoas foram mortas até a transição para a democracia, em 1983. Mario, que tinha 28 anos na época, acabou na mira dos soldados por seu ativismo de esquerda. Como milhares de outras pessoas, ele foi levado para um centro de detenção clandestino onde supostos opositores do regime seriam torturados. Muitos foram mortos, alguns nos chamados "voos da morte", quando as vítimas eram drogadas e atiradas de helicópteros e aviões ao mar ainda vivas. Mário sobreviveu a esse período sombrio. Depois de ser transferido para outros centros de detenção clandestinos em Mendoza e La Plata, foi finalmente solto em 4 de março de 1977, quase um ano após sua prisão. Sua esposa Titi, que estava presa no centro de detenção La Departamental, em sua cidade natal, San Rafael, também sobreviveu. Casados anos antes de serem presos, eles não falaram sobre o tempo que passaram no cativeiro nem em público, nem um com o outro, até 2010. Nesse ano, Franco Reverberi foi intimado a comparecer a um julgamento contra soldados acusados por crimes cometidos durante o regime militar — mas não como acusado, e sim como testemunha. No entanto, durante esse julgamento, quatro ex-detentos — entre eles Mario Bracamonte — testemunharam que o Padre Franco Reverberi, de nacionalidade italiana de nascimento, havia frequentado regularmente o centro de detenção clandestino. Eles disseram que, em vez de ajudar os prisioneiros, ele os observava sendo torturados, às vezes segurando uma Bíblia, enquanto dizia que era a vontade de Deus que eles fornecessem aos seus torturadores as informações que procuravam. Depois do depoimento dos quatro ex-detidos, Franco Reverberi, que negou qualquer irregularidade, foi formalmente acusado em outubro de 2010. Ele não foi o primeiro membro do clero católico a ser acusado de colaborar ativamente com a junta militar argentina. Em 2007, Christian von Wernich, um padre católico que trabalhava como capelão da polícia em Buenos Aires, foi considerado culpado por cumplicidade em sete assassinatos e dezenas de sequestros e casos de tortura. Ele foi condenado à prisão perpétua. Franco Reverberi, no entanto, nunca compareceu ao tribunal. O padre embarcou num voo para o seu país de origem em maio de 2011. Quando foi convocado para dar a sua versão dos acontecimentos, em junho de 2011, ele estava fora do alcance do judiciário argentino. Ele foi para Sorbolo, uma pequena cidade no norte da Itália, de onde a família do padre emigrou quando ele tinha apenas 11 anos. Lá ele celebra missas regularmente e muitos dos 10 mil moradores da cidade preferem não falar sobre as acusações que foram levantadas contra o padre. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ilaria, uma atriz nascida em Sorbolo, diz que só soube das denúncias em 2021, enquanto ouvia um programa de rádio. "Para mim foi um choque e achei que ninguém soubesse. Quando comecei a perguntar e notei que quase todo mundo sabia, me senti ainda pior: já não reconhecia a minha própria vizinhança", diz a mulher de 49 anos. Lorenza Ramazzotti diz que alguns se uniram a favor do padre. "A comunidade está dividida", explica a ex-professora de 69 anos, acrescentando que ela própria está convencida de que "se uma pessoa é inocente, como Reverberi afirma ser, essa pessoa não foge". "E se ele realmente cometeu crimes tão hediondos quanto aqueles de que é acusado, me pergunto como ele pode continuar a ser padre com esse peso na consciência", acrescenta ela. O estudante Manuel Furlan, de 25 anos, diz que ficou "profundamente envergonhado" quando descobriu que "uma pessoa acusada daqueles crimes, e ainda por cima um padre, era originária e vive no meu vilarejo". Furlan quer que Franco Reverberi seja extraditado para a Argentina para que possa ser julgado "e considerado culpado ou inocente". A Argentina há tempo muito solicita que o padre seja enviado de volta para ser julgado. Mas o homem, hoje com 85 anos, que sempre afirmou ser inocente, resistiu com sucesso a uma tentativa de extradição. Ele sempre negou ter fugido para a Itália para escapar da Justiça, dizendo que na verdade voltou ao seu país de origem para uma visita e depois não conseguiu retornar à Argentina por conta de sua saúde debilitada. Em 2021, um segundo pedido de extradição foi apresentado pelo advogado argentino Richard Ermili. Ermili diz que as provas contra o padre são "sólidas". O pedido de extradição de 2021 também acusa Franco Reverberi de envolvimento no assassinato de José Guillermo Berón, um cidadão argentino desaparecido em 1976 aos 20 anos. No início deste mês, o ministro da Justiça italiano assinou este segundo pedido de extradição depois de ele ter sido aprovado pelo mais alto tribunal italiano. Mas o advogado de Franco Reverberi já havia interposto um recurso, o que significa que o processo permanece atualmente paralisado enquanto se aguarda o resultado do recurso. A BBC entrou em contato com o advogado de Franco Reverberi, mas ainda não recebeu resposta. Para Mario Bracamonte, o dia da extradição do padre não deve chegar tão cedo. "Tenho quase 80 anos. Quero poder olhá-lo nos olhos e perguntar onde estão os corpos dos outros ativistas que desapareceram", afirma. É um sentimento ecoado por Laura Berón. A sobrinha do ativista desaparecido José Guillermo Berón diz esperar que "a Justiça seja finalmente feita, mesmo que ele nunca pague realmente pelos enormes danos que causou, já que viveu quase toda a sua vida com total impunidade".
2023-09-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ce52edn0x3do
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Lula e Biden se unem por sindicatos e trabalhadores de aplicativos após tensão entre Brasil e EUA
Na próxima quarta-feira, 20/9, em Nova York, os presidentes de Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e Estados Unidos, Joe Biden, vão lançar um documento batizado de "Coalizão Global pelo Trabalho", no qual defenderão liberdade sindical, garantias aos trabalhadores por aplicativo, entre outras medidas. Ou, nas palavras do Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Jake Sullivan, Biden e Lula irão se juntar "para destacar o papel central e crítico que os trabalhadores desempenham na construção de um país sustentável e democrático, um mundo equitativo e pacífico". Embora o teor do texto ainda não esteja finalizado e tampouco seja público, ao menos quatro pessoas envolvidas em sua elaboração, tanto do lado americano quanto do brasileiro, disseram à BBC News Brasil que os detalhes do acordo importam menos diante do que representa a própria existência da iniciativa. Depois de uma série de solavancos, o lançamento representa um certo resgate da relação entre os dois líderes. "A sacada não está em algo escrito no documento, está no fato de que Brasil e EUA estão liderando isso juntos, que Lula e Biden construíram algo novo em conjunto", disse à BBC News Brasil um dos auxiliares de Lula com envolvimento direto no assunto. Fim do Matérias recomendadas "Essa é realmente uma agenda positiva em que os líderes estão trabalhando juntos, depois de muito ouvirmos falar sobre fricções e dificuldades na relação entre eles", nota Alexander Main, diretor de Política Internacional no Centro de Pesquisa Econômica e Política em Washington, que recentemente acompanhou uma delegação de congressistas americanos, entre eles a estrela da esquerda democrata Alexandria Ocasio-Cortez, a Brasília para debater com autoridades brasileiras o plano. O entusiasmo de Lula ficou evidente após uma conversa telefônica entre ele e Biden, em meados de agosto, na qual ambos alinhavaram detalhes da ideia. "É a primeira vez que trato com um presidente interessado nos trabalhadores", disse Lula na ocasião. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O assunto é tratado como uma das grandes prioridades do presidente brasileiro em sua agenda de cinco dias em Nova York. Tanto assim que, embora tenha recebido mais de 50 pedidos de bilaterais, segundo fontes do Itamaraty, a única que já estava confirmada antes mesmo da partida do brasileiro para os EUA era a agenda com Biden. Além disso, Lula optou por não participar do lançamento público de títulos sustentáveis brasileiros na Bolsa de Valores de Nova York, nesta segunda (18/9), porque, de acordo com um diplomata brasileiro ciente dos planos presidenciais, ele não queria que sua imagem na viagem ficasse vinculada ao touro de Wall Street — "um símbolo da especulação capitalista" —, e sim à agenda pró-trabalhador. Em busca de parceiros privados para obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) em energia renovável — especialmente eólica e solar no Nordeste — e de investidores americanos para o país, Lula optou por participar de um jantar fechado à imprensa, organizado pelas organizações patronais Fiesp e CNI, na noite de domingo, para o qual foram convidados cerca de 40 dirigentes de grandes empresas e fundos, como a Chevron, a Blackrock, o Citibank. Embora prometesse uma sintonia fina, graças ao apoio dos EUA à democracia brasileira e ao rápido reconhecimento da Casa Branca à vitória eleitoral de Lula em 2022, o começo da relação entre ele e Biden foi marcada por solavancos. Em sua primeira visita a Washington, em fevereiro, Lula não foi recebido para uma visita de Estado nem pode falar ao Congresso, como desejava. A pouca ambição da agenda nos EUA foi contrastada com a pompa com a qual Lula foi recebido na China, principal antagonista dos EUA globalmente, pouco mais de um mês depois. Além disso, os americanos anunciaram o ingresso no Fundo Amazônia, mas com uma contribuição considerada tão baixa (US$ 50 milhões) que os negociadores brasileiros pediram para que o valor fosse excluído da declaração conjunta entre Brasil e EUA. Semanas mais tarde, Biden anunciou a intenção de remeter US$ 500 milhões ao fundo. A soma, porém, precisa ser aprovada no Congresso e, sem maioria democrata na Câmara, parece cada vez menos provável que isso aconteça, ao menos este ano. Os dois países também se estranharam no tema da Guerra na Ucrânia. Na China, Lula disse que os EUA deveriam parar de "incentivar a guerra", ao que o porta-voz do Conselho de Segurança dos EUA, John Kirby, respondeu dizendo que o líder brasileiro "papagaiava propaganda russa e chinesa". A escalada de tensão ganhou tal dimensão que analistas dos dois lados começaram a cogitar "anti-americanismo" por parte da política externa do Brasil. Até que, segundo fontes do Brasil e dos EUA, Biden lançou a ideia de que os dois líderes se juntassem em uma iniciativa focada no trabalho. A primeira vez em que o tema foi tratado com o formato próximo ao atual foi durante uma reunião de ambos às margens do encontro do G7, em maio, em Hiroshima, no Japão. "Quando Lula veio a Washington (em fevereiro), seu grande pedido era ajuda para financiar o fundo Amazônia. A primeira resposta de Biden foi meio fraca, depois ele ofereceu mais, mas o presidente sabe que o Congresso (dos EUA) não vai aprovar isso agora. Então encontrou uma forma de engajar Lula e trabalhar junto sem ter que pedir a anuência do Congresso", diz Main. Além de interromper a sucessão de constrangimentos e tirar o foco das discordâncias entre os governos, a ideia valorizaria o histórico político singular de Lula, como líder grevista no ABC paulista, e reforçaria a ideia de que EUA e Brasil compartilham valores e princípios fundamentais, tecla em que os americanos gostam de bater para diferenciar-se da China. "Lula é uma das maiores lideranças sindicais do mundo e Biden é o auto-proclamado o presidente mais pró-trabalhador na história dos EUA, há uma conjuntura especial que está propiciando esta iniciativa. É claro que há essa confluência de personalidades dos dois presidentes, que é o que permite que isso ocorra agora", diz à BBC News Brasil Stanley Gacek, conselheiro do Sindicato Internacional dos Trabalhadores Comerciais e Alimentares (UFCW, na sigla em inglês), que representa 1,3 milhões de trabalhadores nos EUA e no Canadá. Gacek conhece Lula desde os anos 1980, chegou a visitá-lo na prisão na sede da Polícia Federal do Paraná e agora também colaborou com a iniciativa. Para Biden, que enfrenta uma campanha para a reeleição no ano que vem, reforçar a imagem de um líder defensor dos trabalhadores pode ser fundamental para o sucesso eleitoral. Ainda mais em estados-pêndulo como a Pensilvânia e Michigan, que votam ora republicano, ora democrata e possuem importantes organizações sindicais. "Ali, onde 2 mil votos podem fazer a diferença, a capacidade dos sindicatos de aglutinar as pessoas e fazê-las votar é central", diz Main. O sindicalismo vive um ressurgimento nos EUA, e o patamar de aprovação da população aos movimentos sindicais está acima de 70%, algo alcançado pela última vez em 1965. Ciente disso, o presidente americano relançou sua candidatura na sede da AFL-CIO, a maior central sindical do país e uma histórica entusiasta e defensora de Lula. O provável oponente de Biden será o republicano Donald Trump, que tenta se associar aos trabalhadores a partir de uma agenda nacionalista, que defenderia os interesses do proletariado americano ao manter imigrantes fora do país e proteger a indústria nacional, privilegiando produtos originários dos EUA (algo que, aliás, também é defendido por Biden). No ano passado, um dos ideólogos de Trump, Steve Bannon, afirmou à BBC News Brasil que a direita populista pretendia obter cada vez mais entrada junto aos sindicatos. Auxiliares de Lula afirmam que também no Brasil o presidente está preocupado com o avanço da direita sobre os trabalhadores. "Se querem consolidar a base e ter sucesso eleitoral, Lula e Biden têm pela frente a missão de mostrar que seus governos podem entregar mais aos trabalhadores em um momento em que o populismo de direita apresenta uma retórica que têm apelo com os trabalhadores", diz Main. Fontes envolvidas na negociação disseram à BBC News Brasil que a premissa do documento é a definição de "trabalho decente", da Organização Internacional do Trabalho, que define como tal o trabalho produtivo e de qualidade e que garante a liberdade sindical, o direito de negociação coletiva, promove a proteção social e elimina o trabalho forçado, infantil e formas de discriminação. Assim, estarão contemplados na iniciativa princípios para a garantia de liberdade de associação com atuação sindical, respeito a convenções e acordos coletivos atingidos pela categoria sobre negociações individuais, salvaguardas a trabalhadores de aplicativos, como entregadores ou motoristas, que não devem ser tratados como empreendedores ou micro-empresários e sim como força de trabalho. Há também a previsão de que o material trate dos empregos da nova economia verde, um dos temas que mais preocupa os líderes sindicais, já que a transição econômica do combustível fóssil para a redução de emissão de carbono tende a eliminar mais postos de trabalho do que gera. É o que se vê, por exemplo, na indústria automobilística, na qual a fábrica de veículos elétricos demanda 40% menos trabalhadores do que automóveis à combustão. Tanto Biden quanto Lula são entusiastas da transição energética e das energias renováveis. Nos EUA, Biden não é apoiado pelo maior sindicato de metalúrgicos do país, a United Auto Workers (UAW), em parte pelo temor do que sua política para uma economia verde pode causar de impacto para os trabalhadores do setor. Os metalúrgicos da UAW estão neste momento em greve contra as três maiores montadoras do país, General Motors, Ford e Stellantis. Pressionada pelos movimentos grevistas, os maiores neste verão desde a década de 1970, a Casa Branca tem dito que "ninguém quer greve", mas que "Biden respeita o direito dos trabalhadores de usarem suas possibilidades para obter um acordo coletivo". O lançamento da coalizão deve colocar na mesma foto pela primeira vez na história de Brasil e EUA os dois presidentes e líderes sindicais americanos, como a AFL-CIO e a UFCW, quanto do Brasil, como da CUT. Também estarão presentes o Ministro do Trabalho do Brasil, Luiz Marinho, além de representantes do Conselho de Segurança Nacional dos EUA. Brasil e EUA têm leis trabalhistas muito distintas. Historicamente, o Brasil oferece muito mais garantias aos trabalhadores formais do que os EUA. Aqueles com carteira assinada no país tem acesso a trinta dias de férias remuneradas anuais, a licença médica de 15 dias seguidas sem perda salarial, a licença maternidade de ao menos 4 meses e ao fundo de garantia ao trabalhador por tempo de serviço acrescido de multa de 40% em caso de demissão sem justa causa. Nada disso é padronizado nos EUA: o trabalhador precisa negociar diretamente com o patrão suas férias e dias de licença médica, que com frequência são a mesma coisa e não superam os 15 dias anuais. Licença-maternidade também não é assegurada nacionalmente e depende da política do empregador e de alguma cobertura do governo local para existir. Não há qualquer tipo de FGTS. O funcionário dispensado nada tem a receber pela rescisão do contrato, que não precisa ser justificada. Ainda assim, segundo os entusiastas da iniciativa, Brasil e EUA têm muito a trocar em relação ao assunto, até porque no Brasil existe uma enorme informalidade dos trabalhadores, que estariam ainda mais desprotegidos do que a média dos americanos. "Nós vamos construir isso. Para o Brasil é importante primeiro pelo reconhecimento do presidente Lula como uma liderança global", disse em Nova York o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, que negociou o texto. É exatamente na condição de liderança global que Lula pretende se apresentar no púlpito da Assembleia Geral da ONU. Na próxima terça, 19/9, ele abrirá o evento pela sétima vez, com um discurso no qual pretende reapresentar as credenciais do Brasil aos 193 países que compõem a audiência da ONU. Na fala do presidente estarão as pautas — e os resultados já obtidos pelo governo — da proteção ambiental, a militância pelo combate a todo tipo de desigualdade (seja econômica, climática ou de representação em organismos multilaterais), e um chamado pela paz no mundo e busca por saídas diplomáticas, com menção à Guerra da Ucrânia e a outros conflitos na África e no Oriente Médio. Existe a possibilidade, ainda, de que o adiado encontro entre Lula e o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky se concretize em Nova York. Depois de um desencontro no Japão — em que cada lado culpou o outro lado pelo desfecho — e de trocarem palavras ríspidas em público, Zelensky teria sinalizado com interesse de sentar-se à mesa com o brasileiro que, segundo o senador Jaques Wagner, líder do governo, ofereceu aos ucranianos duas possibilidades de horário. Diplomatas brasileiros vêem Zelensky em um momento de "maior baixa de popularidade" desde o início do conflito. Ainda sem resultados militares robustos na contra-ofensiva à Rússia, tendo tido que demitir seu ministro da Defesa e ouvido críticas públicas sobre sua estratégia militar dos americanos, os maiores financiadores do esforço bélico ucraniano, na perspectiva de diplomatas brasileiros, talvez agora Zelensky esteja mais interessado em saídas diplomáticas que Lula possa ajudar a costurar e menos em armas — que o Brasil já afirmou que não dará.
2023-09-18
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A professora que viaja 108 km de carona todos os dias para dar aulas a 2 crianças
A professora María Domínguez precisa contar com a generosidade de motoristas para chegar à escola rural onde leciona, no interior do Uruguai. Às margens da estrada, onde começa a rodovia n° 56, María Domínguez — vestida com sua bata branca, para que as pessoas identifiquem que ela é professora — estende o braço direito e levanta o dedão. São oito horas da manhã de uma gelada manhã de inverno no interior do Uruguai. Domínguez tem 29 anos e está na entrada da pequena cidade de Florida, 90 km ao norte da capital, Montevidéu. Ela tenta fazer com que algum motorista pare e ofereça uma carona. A professora precisa chegar antes das 10 da manhã à escola rural de Paso de la Cruz del Yí — a 108 km de sua casa, no meio do nada, para dar aula para Juliana, de 4 anos, e Benjamín, de 9. Eles são os dois únicos alunos daquele centro educacional. "São filhos de famílias que moram na região e trabalham no campo", conta ela à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC). Fim do Matérias recomendadas María Domínguez não tem outra forma de chegar à escola que não seja pedindo carona — ou, como se diz no Uruguai, "fazendo dedo". Domínguez não tem carro próprio. Mesmo se tivesse, não teria como pagar pelo combustível para uma viagem tão longa, todos os dias. Ela tem moto, mas conta que o trajeto não é adequado pra o veículo. "Nunca conseguiria, são muitos quilômetros e, na primeira viagem, destruiría a moto. E a estrada não está em condições", explica ela. Domínguez destaca que existe um fluxo considerável de veículos pesados nessas estradas. Por isso, fica perigoso viajar em duas rodas por mais de 100 km para ir e outros 100 km para voltar. E o problema não termina aí. Para usar o transporte público, seria preciso pegar dois ônibus. O primeiro sai de Florida às 6h15 da manhã. O segundo, pela tabela de horários, deveria passar no ponto de embarque às nove horas. "Mas, como a rodovia está em obras, ele, com sorte, passa às 9h30, de forma que não chegaria a tempo", lamenta a professora. E, depois, há a volta. O primeiro ônibus passa pela rodovia na altura da escola logo após o por do sol. Mas, para o segundo trajeto, só há transporte público no dia seguinte. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Domínguez chega ao ponto de partida de moto e a estaciona ao lado de um posto de gasolina. Às vezes, chega a deixar a chave na ignição. Ela sabe que, quando voltar, irá encontrar a moto intacta. Essa moto que ela usa em Florida não é dela, mas do seu marido. Ele não precisa usar a moto e a empresta para que ela possa cumprir com a primeira parte da sua longa viagem de todos os dias. Naquele ponto, Noelia está à sua espera — uma colega que trabalha em outra escola rural próxima. Quando conseguem fazer com que alguém pare o carro para levá-las de carona, elas têm pela frente um primeiro trecho de viagem de 31 km para o leste. "Tenho mais sorte com os caminhoneiros", conta Domínguez. E também com trabalhadores do campo. Quase sempre, os motoristas que concordam em levá-la são homens. Depois desse primeiro trecho, elas descem em um ponto de ônibus em San Gabriel, um povoado de 172 habitantes. Ali, a estrada por onde viajavam se encontra com outra, que cruza o país de norte a sul. Elas então voltam a se posicionar à beira do asfalto, em busca de alguém disposto a parar o veículo e levá-las rumo ao norte. María Domínguez tem pela frente um trajeto de 63 km. Noelia desce um pouco antes. Domínguez conta que, às vezes, a pessoa que as leva encerra a viagem ou se desvia do trajeto antes do seu ponto de destino. Nestes casos, ela precisa recorrer à generosidade de um terceiro motorista. Depois de 40 minutos de viagem, Domínguez chega à fazenda Jazmín. Lá, ela encontra Eco, como ela chama, "ou a Guerreira, porque passou por tantas coisas..." "Ela nunca havia passado por estrada de terra. Começou a fazer estrada de terra no ano passado", conta a professora, como se falasse de uma pessoa. Eco, na verdade, é uma motocicleta de baixa cilindrada que ela ganhou de presente da sua mãe quando completou 15 anos de idade. "Ela me pediu que escolhesse entre a festa e a moto", recorda Domínguez. "Sempre pensei que a moto me serviria muito mais do que uma festinha que iria me alegrar por uma noite e acabar." Agora, é a moto que a leva à escola distante todos os dias. E, graças ao caseiro da fazenda Jazmín, Umpiérrez, ela pode deixar a Eco protegida. María Domínguez se formou em magistério em 2019. No ano seguinte, começou a pandemia de covid-19 e as aulas presenciais foram suspensas no Uruguai e no resto do mundo. Os primeiros estudantes a voltarem à sala de aula foram os da zona rural, em maio de 2020. Por isso, Domínguez começou a lecionar como professora suplente em escolas rurais. As diretoras das escolas da região compartilhavam seu contato, para que ela substituísse as ausências dos professores titulares. "No começo, quando me escreviam, eu primeiro respondia que sim e depois perguntava como chegar", ela conta. Mas, em 2020 e 2021, ela conseguia ir e voltar de ônibus das escolas onde deveria dar aula. Segundo ela, "a experiência de pedir carona começou no ano passado". Em 2022, ela foi destacada para outra escola rural, perto da atual. E, certo dia, aconteceu: ninguém a levou de volta e ela precisou retornar da escola de moto antes de anoitecer. À noite, é impossível transitar pelas estradas de terra e pedras com a luz da moto, que é muito fraca, e o gado que anda solto pelo campo. O trajeto prossegue. Na fazenda Jazmín, Domínguez sobe na moto e dirige por 1,5 km, até entrar em uma sinuosa estrada de terra. Ela então passa por outra escola rural e por uma estação de trem abandonada desde a década de 1990 (com os trilhos cobertos de mato). A professora percorre 12 km até chegar à escola, entre 9h45 e 9h50, com pequena antecedência para poder abrir as portas, esperar a chegada de Juliana e Benjamín — e, às 10 horas, começar a aula. Mas por que é preciso manter a escola aberta para apenas duas crianças? "Pode haver diversos motivos que façam com que essa criança precise ir a esta escola", responde a professora. "Porque ela mora longe e a escola mais próxima é esta; devido ao trabalho dos pais, que podem deixar a criança ali no caminho; ou porque existe um córrego que transborda nos dias de chuva e a escola a que ela consegue ter acesso é esta." A escola de Paso de la Cruz del Yí é uma casa simples de dois andares. Ela tem uma sala de aula, dois banheiros, uma cozinha e um pequeno dormitório que, agora, ninguém mais usa. Mas a professora mantém ali um colchão e cobertores, para o caso de precisar passar a noite. Benjamín chega à escola com sua mãe, Carla. No fim de março, ela foi contratada pela administração da educação pública para limpar e cozinhar na escola. Entre o início das aulas, em 6 de março, e a contratação de Carla, Domínguez precisava tratar de limpar e cozinhar para as crianças, além das tarefas acadêmicas. A cada 15 dias, a professora vai ao supermercado e faz as compras de alimentos e produtos de limpeza que forem necessários para a escola. Com o cardápio preparado antecipadamente pelos nutricionistas da administração pública, ela procura os ingredientes que Carla irá usar para cozinhar para as crianças e para elas próprias. Lecionar, ao mesmo tempo, para dois alunos de idades tão diferentes não é uma tarefa simples. Um deles precisa aprender a multiplicar e dividir, enquanto a menor ainda não sabe ler e escrever. Por isso, a professora começa a aula conversando sobre o que as crianças desejarem compartilhar e, depois, distribui as tarefas de cada um, tentando encontrar formas para que os dois trabalhem juntos, ainda que seus níveis de aprendizado sejam diferentes. "Sobre uma mesma frase, posso pedir à pequena que desenhe e, ao maior, que escreva. Se for um trabalho manual, posso juntar o grande com a pequena", descreve a professora. "Seria uma pena se, todos os dias, eles ficassem separados, cada um na sua bolha." O horário de aula termina às três da tarde, depois de um intervalo de uma hora para comer e brincar. Com tão poucas pessoas na escola, tudo se torna muito familiar. "As crianças me chamaram, mais de uma vez, de 'mamãe'", ela conta. "É inevitável, pois o vínculo é muito próximo." María Domínguez fecha a escola e volta para a fazenda na Eco. Ali, ela guarda a moto e segue novamente para a margem da estrada. E fica à espera da próxima carona.
2023-09-18
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A extraordinária história de Tony Osornio, a primeira mulher paraquedista do México
A mexicana Tony Osornio sempre teve paixão pelo paraquedismo. Seu amor por esse esporte de alto risco a levou a conquistar vários campeonatos e até a alcançar a patente de subtenente no exército de seu país, em uma época em que mulheres não tinham espaço. No entanto, em 1984, ela sofreu um acidente que mudou sua vida para sempre. Este artigo é uma adaptação, escrita em primeira pessoa, da entrevista que Tony concedeu ao programa de rádio BBC Outlook sobre sua incrível trajetória. Nasci e cresci em um lar muito tradicional em San Juan del Río, Querétaro, a cerca de duas horas da Cidade do México. Sou a mais nova e a única mulher entre 4 irmãos. Sempre fui tão inquieta que meu pai dizia que eu tinha a energia dos meus três irmãos juntos. Fim do Matérias recomendadas Com minha mãe, tive problemas, porque ela dizia que as mulheres pertenciam ao lar e que os homens eram os que deveriam sair para a rua. Ela nunca me deixou estudar na cidade de Querétaro. Eu sentia que, em vez de me aproximar, me afastava com tantas exigências. Até me castigava por desobediência. Mas, ainda assim, eu me escondia dela para fazer as tarefas dos meus irmãos, jogar futebol com eles e me molhar na chuva, tudo o que eu supostamente não deveria fazer. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Eu me sentia como se estivesse em uma prisão. Chegou a um ponto em que não podia suportar mais. Se minha mãe não me deixava sair, então teria que encontrar uma maneira de escapar. Decidi que me casaria com o primeiro homem que quisesse se casar comigo. Antes de completar 17 anos, meu primeiro e único namorado me pediu em casamento. Eu disse sim, com a condição de que me permitisse estudar, sair e ter mais liberdade. Meu pai tentou me convencer a não fazer isso. Até me disse que me compraria um carro se eu ficasse até terminar o ensino médio. Mas eu estava determinada. Queria me casar para sair daquela situação. Casei-me realmente empolgada com a ideia de ter essa liberdade, de viver uma aventura. Meu marido estava no exército, então senti que estava entrando em um mundo novo. Ambos adorávamos atividades cheias de adrenalina, como dirigir carros rápidos, motos e até paraquedismo. A verdade é que, no começo, meu casamento foi muito divertido. Tínhamos interesses em comum e aprendi muito com ele, já que ele era 11 anos mais velho do que eu. No dia em que me casei, não estava apaixonada, mas com o tempo me apaixonei e ambos nos amávamos muito. Depois veio minha primeira filha, Mariela. Foi algo lindo e maravilhoso, mas também muito desafiador para mim. Meu marido continuava no exército e viajava muito, às vezes por meses. Foi avassalador sentir que eu tinha que estar lá com ela e cuidar dela. Senti que aquela criança estava atrapalhando meu caminho. Meu marido dirigia uma escola de paraquedismo. Eu sentia que era minha obrigação ajudá-lo. Mas, na realidade, estava cansada de viajar todos os fins de semana para acompanhá-lo. Até que um dia, um amigo do meu marido disse a ele: "Você deveria envolvê-la mais para que ela não se entedie e canse tanto de vir aqui. Deixe-a dar um salto conosco." Então, meu marido me perguntou: "Você quer saltar?" "Claro que não. Não vou fazer isso", respondi. "Você está com medo", ele me desafiou. Ele sabia que eu era orgulhosa. Então eu disse: "Não, não, não. Me inscreva para o próximo salto." Não era um salto qualquer. Fazia parte de uma competição de paraquedismo. E chegou o dia. Subi no avião, observei como um por um dos outros saltava, e chegou minha vez. Me aproximei sorrateiramente da porta aberta. E saltei. Senti o vento no rosto e senti que flutuava. Foi maravilhoso me sentir conectada com o céu, com o ar, com uma liberdade que não posso descrever em palavras. Uma sensação tão profunda quanto a de ser um com tudo. E soube que aquele era o lugar a que pertencia. Foi um choque total para mim. Foi um prazer que não posso descrever completamente. Foi maravilhoso. E a única coisa que veio à minha mente foi que eu tinha que fazer de novo. Conquistei o segundo lugar naquela competição. Foi uma surpresa completa, pois descobri que tinha essas habilidades. A altitude, o equilíbrio e a precisão no ponto de aterrissagem me eram naturalmente fáceis. O troféu foi o de menos em comparação com as sensações que experimentei e que me acompanharam durante toda a semana. Enquanto lavava a louça, dirigia ou cozinhava, revivia o que tinha experimentado. Continuar saltando não foi fácil, pois não é um esporte barato. Mas meu marido era comandante da brigada paraquedista, então costumava realizar saltos militares com o exército. Perguntei se poderia saltar com ele do avião militar sempre que ele saltasse. Eu poderia vestir um uniforme. Ninguém perceberia e não custaria nada. Ele disse que eu estava louca. Após um mês de insistência, ele cedeu. Eu escondia meu rosto sob o capacete e não olhava para ninguém. Até que um dia houve uma demonstração na presença do Secretário-Geral e do Presidente do Exército. Pensávamos que, como estávamos longe, ninguém perceberia, então eu saltei e tudo correu perfeitamente. Fui a primeira a pousar, tirei o macacão e fiquei em formação saudando a bandeira. "Por que há uma mulher aqui? Não há mulheres no exército", perguntou o Secretário-Geral. Foi uma situação estranha. Meu marido poderia ser punido por quebrar as regras. Então aproveitei a oportunidade e pedi para me alistar no exército. Todos me olhavam como se eu estivesse louca. "Com o seu apoio, prometo que seremos um grupo de paraquedistas que elevará o nome do México", disse ao Secretário. Para me tornar uma soldada e receber o mesmo tratamento que os outros, teria que passar por testes físicos rigorosos. Um deles era correr 20 quilômetros carregando uma mochila pesada. Na primeira tentativa, só consegui correr cinco quilômetros e vomitei. Os outros recrutas zombaram de mim e fiquei furiosa. Mas não desisti. Então, antes de levar minha filha para a escola, corria pelo bairro inteiro. Passaram meses até eu poder provar que as mulheres também podiam fazer isso. Comecei a enxergar a beleza de estar no exército e defender meu país. Por outro lado, era doloroso porque muitos homens zombavam de mim e falavam pelas costas. Houve noites em que cheguei em casa e passei a noite chorando, pensando que não conseguiria lidar com todos aqueles homens. Um dia, fiquei muito zangada e gritei: "Quando puderem fazer os saltos que faço e tiverem todos os troféus que tenho, então aceitarei seu julgamento, mas não antes". Ganhei o respeito deles. Lembro-me de meu pai dizendo: "Filha, você já participou de campeonatos, saltos militares, saltos livres. Por favor, cuide-se. Não consigo dormir de preocupação". Mas eu respondia a ele que sem o paraquedismo, eu morreria. Mesmo quando estava grávida de meu filho Paco, continuei saltando. Eu estava indo competir em um campeonato em Paris, então não queria divulgar isso. Mas quase o perdi em um salto. Essa paixão me levou ao limite da irresponsabilidade. Eu fui irresponsável. Tudo o que eu queria era ter um avião à minha frente e poder saltar, sentir aquela sensação, aquela adrenalina. Agora, com os anos passados, questiono como ousei fazer tudo isso. Naquela época, sentia que estava na melhor fase de minha vida, mais apaixonada por meu marido do que nunca, com dois filhos maravilhosos, um bom salário e praticando o esporte que me apaixonava. Um dia, em fevereiro de 1984, tudo mudou. A oportunidade de fazer um salto na frente do então Presidente do México, Miguel de la Madrid, surgiu. Na noite antes daquele salto, senti algo que nunca havia sentido antes. Uma sensação estranha, como se não quisesse saltar. Havia muito vento. E para os paraquedistas, o vento é o mais perigoso, então pediram para que apenas os mais experientes participassem. Uma vez a bordo do helicóptero, disse ao meu marido: "Não quero fazer isso". Ele respondeu: "Você? Sempre quer saltar e hoje não? Hoje, quando o presidente está assistindo? Não podemos decepcioná-lo. Já estamos no ar. É tarde demais". Pedi um beijo e saltamos. Tínhamos que nos enganchar para criar uma bandeira mexicana no ar e, em seguida, nos soltar. Criamos a bandeira perfeitamente, mas o vento começou a nos arrastar. Senti que ia cair em cima do Presidente e arrastar toda a multidão. Como eu era a mais leve, o vento me puxava com mais força. Puxei o freio com toda a força que pude. Mas naquela época, se você puxasse o freio com tanta força, o paraquedas se romperia. E foi o que aconteceu. Aterrissei após uma queda livre de 25 metros. Não tive tempo de abrir o paraquedas de emergência. Senti o estalo de todos os meus ossos. Depois, uma sensação muito estranha: eu não sentia o meu corpo de forma alguma, apenas a minha cabeça. Por alguns instantes, vi tudo em câmera lenta, iluminado por uma luz branca intensa, algo muito bonito. Mas de repente, uma dor intensa no meu pescoço me trouxe de volta à minha realidade. Eu estava caída no chão e todo o meu corpo estava flácido como um trapo. Eu não conseguia mexer absolutamente nada. A primeira reação das pessoas ao meu redor foi me tirar do local, porque a cerimônia deveria continuar. No entanto, o presidente, aos pés de quem eu caí, disse: "Não, não, não, levem-na no meu helicóptero diretamente para o hospital militar." Foi a primeira vez que percebi a importância da respiração, porque senti que não conseguia respirar. Eu tentava puxar o ar, mas não conseguia sentir. Paco, meu filho, tinha quatro anos e me viu saltar naquela vez. Lembro-me de vê-lo e pensar: "Você tem que aguentar porque ele está aqui". Vê-lo me deu forças para continuar. Eu estava à beira da morte. Enquanto me levavam, consegui piscar para ele. Foi o momento exato em que minha vida deu uma reviravolta drástica, de ter tudo para não ter nada. Passei três anos olhando para o teto. Perfuraram três pregos no meu crânio para me prender a algo chamado halo ortopédico. Eu tive que suportar um peso de mais de 18 quilos na cabeça para tentar alinhar meu pescoço com a coluna vertebral. Reconstruíram meu pescoço com um pedaço de osso do meu quadril, porque ele tinha desabado completamente. Eu tive que suportar muita dor, muita desesperança, a ponto da loucura. Nas primeiras semanas, eu estava quase inconsciente. Os médicos não acreditavam que eu sobreviveria. Meu diagnóstico foi tetraplegia. Disseram que eu nunca mais seria capaz de mover do pescoço para baixo. Eu também não controlava minhas funções corporais. Tive que usar um cateter e fraldas. Mentalmente, eu fui para um lugar muito sombrio. Eu estava presa, incapaz de me mover ou sentir. Eu tinha úlceras em todo o corpo de tanto tempo imóvel, que ficaram infectadas e cheiravam mal. Eu me sentia como um trapo inútil. E então, meu marido me abandonou por uma enfermeira. Digo que, se o inferno existe, eu o vivi e meus filhos viveram comigo. Mas isso também nos fortaleceu. Meus filhos foram a força motriz que me levou a continuar. Isso e a raiva que eu sentia do meu ex. Eu estava devastada. Eu senti como se estivesse nas profundezas da escuridão e me perdesse em pensamentos de que seria mais fácil se eu estivesse morto. Quando voltei para casa, meus filhos estavam pulando de alegria, mas fiquei arrasada pela depressão. Foi muito triste para meus filhos descobrirem que tinham uma mãe tão raivosa e exigente; Eu estava fora de mim. Às vezes há tanta dor interna que você não sabe onde colocá-la. Eu descontei neles. Mariela parou de falar. Os professores dela me contaram que ela ficava num canto durante o recreio completamente muda. Paco brigava com outras crianças sempre que tinha oportunidade. Ele foi expulso de 7 escolas. Então sim, nossas vidas mudaram muito quando saí do hospital. Eu realmente acreditava que iria sair do hospital, então não poder fazer isso me deixou muito irritada e deprimida. Pensei: “De que adiantarei eu para os meus filhos se, quando voltam da escola, encontrarem uma mãe deitada, sem treino esfincteriano e sem comida na mesa para eles?” Eu não queria esmolas de ninguém. Ela era orgulhosa demais para conseguir ajuda. Comecei a vender coisas pelo telefone. Lutei pela minha pensão e por encontrar uma maneira de sobreviver. Mas continuei afundando na escuridão e na depressão. Cheguei a um ponto em que pensei que era melhor deixar meus filhos órfãos de mãe do que ter que suportar isso. Eu nem queria mais abrir os olhos. Eu tinha decidido cometer suicídio. Ele não comia há vários dias. Eu estava desaparecendo. Foi então que conheci Martha, minha terapeuta. Quando falei com ela, senti algo muito especial em seus olhos, senti que ela estava falando do coração. Lembro-me perfeitamente de ela ter dito: "Vi pessoas que movem seus corpos, mas não se movem interiormente. Você tem um vulcão dentro de si". Acredito que, assim que começamos a curar nossa alma internamente e realmente acreditamos que é possível, então nossa saúde pode melhorar. Meu corpo era o menos importante para minha verdadeira cura. Só quando enfrentei toda aquela desesperança, ciúmes e intolerância é que meu corpo começou a se mover. No começo, muito pouco. Mas depois, mais e mais. Foi um milagre. Os médicos que viram meus exames não conseguiam acreditar no que estavam vendo. Com meu diagnóstico, supostamente só podia mover os olhos e nada mais. Mas tenho recuperado mais e mais movimentos. O que mais me custa é mover as mãos. Mas consigo sentir meu corpo. Sinto até mais intensamente do que quando andava. Nesse caminho, houve um dia em que estava meditando em meu jardim e senti uma iluminação, uma sensação de felicidade que nunca havia sentido em minha vida, nem mesmo durante meus melhores saltos. Fui inundada por tanta energia e prazer. Cheguei até a pensar que a cadeira de rodas, que tanto odiava usar todos os dias, tinha sido minha melhor professora. Então fui procurar Martha, minha terapeuta, e disse que queria compartilhar o que aprendi em meu processo com outras pessoas com deficiência. Foi assim que encontrei minha missão na vida. Com sua ajuda, criei a Fundação Humanista de Ajuda a Deficientes, ou Fhadi, para ajudar outros mexicanos com deficiência motora. Ao longo desses mais de 25 anos, encontramos pessoas em situações muito graves de abandono: não tinham uma cadeira de rodas. Eram deixadas no chão, indefesas, com apenas 23 ou 28 anos. Foi muito triste descobrir que tudo isso existe. Mas agora um dos maiores tesouros da minha vida é ver essas pessoas crescerem e prosperarem, assim como eu fiz. Isso me traz muita alegria e satisfação. Agora sou mais livre do que nunca. E consegui isso estando presente em minha própria vida, a cada momento, da maneira mais simples e natural possível. Ainda preciso de fisioterapia e ajuda porque não consigo mover as mãos. Mas saboreio a vida mais profundamente e me sinto até melhor do que quando andava. Estou feliz.
2023-09-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c985922z55eo
america_latina
A planta amazônica que virou a espécie invasora mais dominante do planeta
Os incêndios no Havaí deixaram centenas de mortos e imagens desoladoras em uma das paisagens mais idílicas do planeta. Mas também chamaram a atenção para o perigo das plantas exóticas invasoras - tipos de grama não-nativa teriam, segundo especialistas, deixado o Havaí muito mais vulnerável a incêndios. Como elas são estranhas aos ecossistemas "invadidos", elas prejudicam a natureza local, abalam cadeias alimentares e ameaçam a saúde humana a um custo anual estimado em US$ 423 bilhões, aponta o relatório, com base em dados de 2019. Segundo os especialistas, as plantas invasoras amplificam os efeitos que as alterações climáticas causam no planeta. “A ação de plantas invasoras resulta frequentemente em incêndios mais intensos e frequentes, como alguns dos devastadores ocorridos recentemente em todo o mundo, liberando ainda mais dióxido de carbono na atmosfera”, observa o relatório. Fim do Matérias recomendadas E, entre essas plantas, há uma que predomina sobre as demais espécies: a Pontederia crassipes, mais conhecida como jacinto-de-água ou aguapé. Originária da América do Sul, especialmente da região amazônica, ela é a espécie terrestre invasora exótica mais difundida. “Com o aumento do uso da terra para a produção agroindustrial, aumenta também o uso de plantas exóticas que acabam se tornando invasoras, como estamos vendo em todo o planeta”, diz a professora Helen Roy, especialista em plantas invasoras e membro do Centro Britânico de Ecologia e Hidrologia. Roy, que liderou o relatório feito à ONU, salienta que essa planta em particular causou efeitos profundos em diferentes regiões, como o Lago Vitória, na África. “O lago, uma das principais fontes de alimento de milhões de pessoas, está ficando sem peixes, mais especificamente a tilápia, porque o aguapé absorve nutrientes essenciais para os animais que vivem ali”, explica. E essa planta, que também é reconhecida pela beleza da sua flor, já chegou a muitas regiões onde causou graves e diversos danos. O jacinto-de-água é uma planta nativa da região amazônica e do rio Orinoco, o principal da Venezuela, onde encontra seu habitat perfeito nos enormes cursos d'água. Ela é uma planta flutuante que possui uma capacidade incrível de se reproduzir e crescer rapidamente. Outra de suas características é que suas raízes e folhas têm a capacidade de absorver substâncias tóxicas da água e filtrar seu conteúdo. Segundo especialistas, o que aconteceu é que os exploradores que percorreram o Orinoco no final do século 19 pensaram que o aguapé poderia ser uma planta ornamental perfeita para fontes artificiais em seus países de origem. Isso ocorre porque elas são plantas flutuantes e têm uma flor violeta marcante. Dessa forma, a espécie chegou a países como Estados Unidos e Japão. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast “Algo que favorece o aguapé para o trabalho de invasão é que os ambientes de água doce são todos muito semelhantes em todo o mundo, especialmente aqueles localizados na zona tropical”, explicou à BBC Mundo (serviço em espanhol da BBC) Anibal Pouchard, professor de assuntos florestais da Universidade de Concepción, no Chile. Ainda há outro fator: especialistas aprenderam sobre a capacidade dessas plantas de filtrar elementos tóxicos na água, inclusive fertilizantes, o que aumentou sua demanda em todo o mundo. O que não levaram em conta foi a enorme capacidade invasiva que esta planta possui. O caso do Lago Vitória – localizado na fronteira de Uganda, Tanzânia e Quênia – é apenas um reflexo do que tem acontecido em dezenas de países onde a planta invasora está presente. Seus efeitos assumem diferentes formas. “Por conta da sua exuberância e capacidade de dominar os ambientes aquáticos onde vive, ela não permite a existência de outras plantas nativas, o que acaba afetando o equilíbrio do habitat onde invade”, afirma Pouchard. Também por esse motivo afeta a navegabilidade por rios e lagos. Além disso, a capacidade do aguapé de absorver e processar materiais tóxicos e metais pesados ​​faz com que ele emita grandes quantidades de dióxido de carbono e gás metano quando se decompõe, contribuindo para as alterações climáticas. Mas o problema não termina aí. Tanto Roy quanto Pouchard apontam que, para eliminar o aguapé, são necessários gastos milionários, muitas vezes insuficientes. “Outro problema do aguapé é que a semente dele pode durar anos sem germinar. Portanto, mesmo que todos os aguapés possam ser removidos, digamos, de um lago, ainda existe a possibilidade de que eles cresçam novamente, de forma rápida e exuberante, algum tempo depois”, observou Roy. A expansão de plantas invasoras é considerada crítica por cientistas e ambientalistas. “É uma situação que afeta toda a sociedade em diferentes níveis, independentemente da sua origem ou status: atacam o centro dos habitats e as cadeias de abastecimento que saem do ambiente”, explica Roy. A principal solução é a prevenção no manejo de plantas destinadas à exportação ou importação. “É preciso levar em conta que muitas dessas plantas que hoje são invasoras foram trazidas para proporcionar algum benefício às pessoas. O problema é que não se teve cuidado com os efeitos que isso poderia causar”, diz Roy. Por essa razão, tanto Roy como Puchard avaliam que a prevenção e o controle da flora e da fauna nas fronteiras é uma das medidas mais eficazes que podem ser implementadas para prevenir a chegada de espécies invasoras. “Nem todas as plantas que são levadas de um habitat para outro pelo homem são invasoras, mas temos de saber quais podem ter um efeito prejudicial na natureza desse novo local”, diz a pesquisadora. Segundo o relatório das Nações Unidas, os programas que avançam na erradicação de espécies invasoras têm funcionado de forma eficaz, especialmente quando essas plantas podem ser isoladas e quando a sua espécie nociva é detectada rapidamente. No caso específico do jacinto-de-água, estão sendo implementadas uma série de intervenções que têm conseguido controlar a sua expansão. “No caso do aguapé, existe um elemento biológico que é um inseto (Neochetina bruchi), que se parece com um besouro. Ele faz o trabalho de controlar o crescimento dessas espécies”, concluiu Roy.
2023-09-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c727vygjx8jo