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Dólar 'no colchão' e prêmios: como milhares de argentinos foram à Copa mesmo com país em crise
O comerciante argentino Esteban Citara e um grupo de dez amigos viajaram à Copa do Mundo no Catar e assistiram a todos os jogos da Argentina no mundial, até testemunharem a apoteose do título mundial no domingo (18/12). Foi a sétima vez que o grupo — que se batizou de "los mundialistas" — esteve numa Copa. Falando de Doha à BBC News Brasil, antes de embarcar de volta para Buenos Aires, Citara contou que a primeira vez que o grupo esteve num Mundial foi na França em 1998. Depois, "los mundialistas" não perderam mais nenhuma das partidas argentinas numa Copa. Eles estiveram na competição no Japão em 2002, na Alemanha em 2006, na África do Sul em 2010, no Brasil em 2014, na Rússia em 2018 e no Catar neste 2022. Dono de "choripanerias" — lanchonetes especializadas no sanduíche típico de pão com linguiça — nos bairros de Palermo e de San Telmo, na cidade de Buenos Aires, Citara contou como ele e os amigos, que não são ricos, fazem para não perder uma Copa, apesar das crises econômicas na Argentina. Fim do Matérias recomendadas "Daqui a um mês, já vamos começar a planejar, em detalhes, como viajaremos no próximo Mundial. Esse é nosso método. Compramos as passagens com muita antecedência e reservamos a hospedagem também muito antecipadamente. Na próxima Copa, já sabemos que vamos alugar um motorhome, disse Citara. A Fifa anunciou que o Mundial de 2026 será no Canadá, no México e nos Estados Unidos." O comércio de Citara recebe, principalmente, turistas — e especialmente brasileiros. "Eu acho que a vitória da seleção argentina na Copa vai gerar mais turismo e vai melhorar o comércio. Não tenho dúvidas. Estou muito entusiasmado", disse ele, que mandou fotos da casa que o grupo alugou em Doha e foi decorada por eles com cartazes de Maradona e de Messi. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para entender melhor como cerca de 40 mil argentinos viajaram para torcer para a Argentina no Catar, a reportagem conversou com agentes de viagens, empresários e economistas. Afinal, a economia argentina deverá registrar cerca de 90% de inflação neste ano de 2022, ficando atrás, na América do Sul, apenas da Venezuela. O Produto Interno Bruto (PIB) está em desaceleração e o índice de pobreza chega a 36,5% da população de cerca de 45 milhões de habitantes, segundo dados oficiais. O economista brasileiro Gustavo Perego, da consultoria Abeceb, de Buenos Aires, disse que para entender o contexto argentino é preciso, primeiro, compreender que a economia do país é "bimonetária". Ou seja, funciona em pesos, a moeda nacional, e em dólares. Os que podem poupam a moeda americana no "colchão", em casa, ou no exterior. E eles, que podem ser acadêmicos, empresários médios ou grandes e médicos, por exemplo, também não são considerados sempre ricos. "As pessoas que são de fora da Argentina não entendem o conceito de economia bimonetária. Estão acostumadas a viver com a moeda nacional, a moeda local. Na Argentina, é diferente. O Banco Central tem, no papel, US$ 40 bilhões de reservas, sendo US$ 5 bilhões, em termos líquidos. Mas os argentinos têm no exterior e no 'colchão', fora do sistema financeiro, mais de US$ 300 bilhões", disse ele. Quando aparece uma "oportunidade", como viajar para assistir à seleção capitaneada por Messi, a poupança em dólares é usada. Um executivo argentino, que trabalha no setor de consumo, disse que, como o peso argentino está desvalorizado e "ficou muito difícil comprar bens duráveis" como um apartamento, a "melhor opção" é gastar a poupança "nos bons momentos". Pode ser viajar para a Copa do Mundo ou pagar entradas para assistir ao show da banda britânica Coldplay, disse ele, que preferiu se manter no anonimato. A banda britânica realizou, em novembro deste ano, dez shows lotados no estádio River Plate, em Buenos Aires, apesar de os preços das entradas terem variado entre 9.500 pesos a 23.000 pesos. Na Argentina, o salário mínimo é de cerca de 57 mil pesos — o equivalente a seis entradas das mais baratas para o show . "Somos loucos por futebol e adoramos viajar, é da nossa cultura. E se o dinheiro que temos alcança para viajar e para ver futebol, perfeito", disse o executivo. Agentes de viagens lembraram que, em função da crise, o governo não permite que compras de passagens internacionais e pagamentos de hotéis no exterior sejam feitos em parcelas, como era possível até pouco antes da pandemia do coronavírus. Muitos argentinos também viajaram para a Copa no Catar porque empresas compraram pacotes para, por exemplo, premiar clientes, como contou Sebastian Christiansen, que atende o setor empresarial. "Tivemos muitos casos de empresas que compraram pacotes para premiar empregados, clientes ou distribuidores de seus negócios", disse Christiansen. Ele lembrou que, na reta final da Copa, a companhia aérea Aerolíneas Argentinas ampliou a quantidade de voos. Empresas internacionais também ofereceram mais alternativas saindo da Argentina e com preços mais baixos do que os oferecidos no início do Mundial. O empresário Nicolas Castro Bronstein, do ramo musical, lembra também que muitos dos 40 mil argentinos que estiveram nos estádios do Catar não necessariamente partiram de Buenos Aires. "Muitos torcedores contaram, quando entrevistados, que moram em Sydney, em Miami e em outras cidades no exterior. Pra eles, deve ter sido mais barato do que sair daqui de Buenos Aires", diz Bronstein, que não viajou para a Copa do Catar.
2022-12-19
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64034271
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Copa do Mundo 2022: as histórias de 22 imagens icônicas do torneio contadas pelos fotógrafos
Na Copa do Mundo deste ano, a agência Getty Images tinha uma equipe de mais de 50 fotógrafos e uma equipe de operações no Catar, além de 20 profissionais espalhados pelo mundo editando as imagens em tempo real e disponibilizando-as para acesso em segundos. A seguir, você confere uma seleção de 22 das mais icônicas fotografias da Copa do Mundo de 2022 — e a história por trás delas. Dan Mullan: Eu estava posicionado na passarela do estádio bem acima do campo, vestindo um arnês (equipamento de segurança usado em escaladas que prende o corpo) com duas câmeras e duas lentes amarradas a mim, enquanto Neuer foi enviado para disputar um escanteio nos momentos finais da partida. Não é muito comum você tirar uma foto com os dois goleiros na imagem. Também gosto do fato de que você não pode dizer qual time está atacando e qual está defendendo. Um ângulo alto como esse é algo que você não consegue na maioria das partidas de futebol. O que faz esse quadro funcionar é o fato de a bola estar no ar, o que significa que todos os jogadores estão olhando para ela. Ver os rostos deles realmente contribui para a imagem — especialmente vista de cima. Fim do Matérias recomendadas Lars Baron: Os jogadores croatas se aqueceram no campo quando o gramado estava dividido: metade na sombra e metade com a luz do sol. Quando o fundo estava em plena luz, achei que seria uma boa silhueta para capturar, então me mudei para a posição certa e obtive um bom ângulo de Luka Modric — que ainda é um dos melhores jogadores do mundo. Eu configurei minha câmera no expositor de destaque para obter sua cabeça como uma silhueta — todos podem reconhecer que é Modric por causa da forma. Lars Baron: Quando o Marrocos teve a oportunidade de fazer uma cobrança de falta fora da área, a Croácia estava em uma posição perfeita para ilustrar uma barreira defensiva. A maioria das equipes agora coloca um jogador deitado no chão para parar uma bola rasteira se a barreira pular, então desta vez pensei que seria bom focar no jogador deitado com as chuteiras dos defensores pulando. Michael Steele: Esta imagem de Richarlison marcando seu gol espetacular contra a Sérvia foi capturada por uma câmera remota montada na tribuna de imprensa. O acesso à posição elevada só acontece em grandes torneios de futebol e cria novos ângulos. Eu tinha duas câmeras montadas e presas a um trilho alinhado com a área de 18 jardas (16,4 metros) — uma com uma lente mais ampla mostrando os torcedores e este quadro mais estreito, que acionei com a câmera portátil de minha posição na linha intermediária. Dan Mullan: Esta foto foi tirada com uma pequena câmera remota colocada dentro do gol e disparada da minha posição ao lado do campo. É um ângulo único no qual estamos trabalhando há algum tempo. O que faz essa imagem funcionar é o goleiro mexicano mergulhando no ar quando a bola cruza a linha. Encontrar diferentes ângulos em uma partida de futebol é muito difícil hoje em dia, mas de vez em quando aparece algo que funciona — e este é um deles. O crédito deve ir para meus colegas da Getty Images, que aperfeiçoaram a tecnologia nos bastidores para nos permitir capturar momentos como este. David Ramos: A Getty Images é a agência fotográfica autorizada pela Fifa desde 2009. Um dos objetivos dessa relação é documentar o que acontece nos bastidores. Esta imagem é um exemplo claro disso. Os jogadores desceram todos juntos do ônibus quando chegaram ao estádio e entraram no vestiário dançando e cantando. Eu sabia que a chegada de Gana era especial e resolvi esperar por eles em um corredor entre o ônibus e o vestiário, onde poderia me misturar com os jogadores. A foto foi fácil — apenas um ângulo aberto que captura o ritual do grupo. É uma pena que Gana não tenha progredido mais na Copa do Mundo. Matthias Hangst: Fui designado para trabalhar na passarela desta partida. Isso significa que você pode ficar no telhado do estádio, preso com um arnês e os cabos de segurança para cobrir uma partida de futebol do ponto de vista de um pássaro. Dá uma perspectiva única e diferente. Eu estava totalmente focado no ataque da Argentina, já que Messi é um dos jogadores-chave neste torneio. Não é frequente que ele sofra choques em confrontos com o goleiro, e fiquei feliz em cobrir isso com uma lente de 400 mm. A mão do goleiro acabou no rosto de Messi em vez de acertar a bola. O argentino perdeu o pênalti, mas a seleção ainda ganhou o jogo. Shaun Botterill: É divertido capturar momentos de vitória, mas a parte mais difícil do trabalho é fotografar um time na saída da Copa do Mundo. Depois de perder a primeira partida, a Alemanha estava sob pressão. Kai Havertz saiu do banco para marcar dois gols e ser eleito o melhor jogador da partida, mas, ainda assim, eles estavam voltando para casa. Você tenta ser discreto, ao fotografar com uma lente mais longa e não ficar muito tempo na linha dos olhos dos atletas. Consegui tirar algumas fotos para capturar esse momento. Francois Nel: Durante as partidas iniciais, é muito importante ficar atento a incidentes fora da bola. Antes do jogo entre Suíça e Sérvia, nossos editores nos informaram sobre os principais jogadores suíços: Xhaka e Xherdan Shaqiri. Eles têm raízes kosovares e, na Copa de 2018, os dois marcaram gols contra a Sérvia e comemoraram fazendo o símbolo da água de duas cabeças com as mãos — uma referência à bandeira albanesa. Esta informação vital torna você mais consciente do que está acontecendo em campo. A bola saiu de jogo e Xhaka e Milenkovic trocaram palavras, então fiquei focado nos dois jogadores caso a situação piorasse. Maja Hitij: Sempre há um burburinho de emoção no túnel quando Lionel Messi está presente, principalmente entre as crianças que acompanham os jogadores. Ele sempre procura se envolver com as crianças para tornar a experiência memorável — às vezes, é como se os outros atletas nem existissem. O túnel é uma área repleta de câmeras de televisão, por isso temos que ficar atentos e não nos posicionar no enquadramento da transmissão ao vivo — com isso, pode ser difícil encontrar o local ideal. Me posicionei do lado da Argentina e esperei que Messi comandasse o time a partir dos vestiários. Ele cumprimentou todas as crianças, mas uma garota — que não era sua companheira de entrada em campo — se esgueirou até a frente e disse que era uma grande fã. Este foi o momento em que ela levantou os polegares e sorriu. Laurence Griffiths: Tivemos jogadores fantásticos neste torneio, mas existem as mega estrelas do futebol mundial, que roubam todas as atenções. Mbappé, da França, certamente se encaixa nesse segundo critério. Ele também foi a estrela da noite, marcando dois gols sensacionais, então eu estava procurando uma foto para ilustrar a habilidade e o ritmo que ele possui. Eu consegui essa foto usando uma velocidade de obturador incrivelmente lenta enquanto movia minha câmera exatamente em sintonia com o movimento do francês — não é uma técnica fácil para obter um rosto tão nítido e claramente reconhecível. François Nel: O Brasil é conhecido por suas comemorações extravagantes ao marcar gols, e muito se falou sobre a comemoração ser desrespeitosa com o adversário. Quando Neymar marcou o segundo gol de seu time de pênalti, eu sabia que poderia haver uma comemoração especial para capturar, então fiquei focado nele correndo em direção ao meu canto para fazer esse clique. Depois, notei alguns de seus companheiros de equipe se aproximando para comemorar o gol, daí usei uma lente de zoom mais curta para ter certeza de capturar todos os quatro jogadores dançando. Alex Grimm: Como fotógrafo esportivo especializado na Copa do Mundo, você sempre pode planejar uma foto antes de capturá-la. No entanto, nem sempre dá para prever os jogadores que correrão com adrenalina e aqueles que congelarão em estado de choque e descrença. Nesses raros momentos, por apenas alguns segundos, toda a concentração em conseguir o ângulo perfeito é misturado com emoção e euforia — especialmente quando o azarão Marrocos venceu a Espanha e chegou às quartas de final. Patrick Smith: Holanda x Argentina foi sem dúvida uma das partidas mais icônicas do torneio. O jogo foi para os pênaltis após um encontro muito apimentado e cheio de incidentes. Minha câmera remota atrás do gol capturou esse momento — a primeira defesa da Argentina que acabou ajudando a selar a vitória. Martínez foi o herói da disputa de pênaltis e deu o tom com esta incrível defesa a partir do chute do capitão da Holanda, Virgil van Dijk. Shaun Botterill: Tive a oportunidade de filmar esta partida da passarela, o ponto de vista único ao qual temos acesso para os torneios da Fifa. A vantagem é que você tem uma visão panorâmica da partida sem ter que pensar na sua posição em campo. Qualquer foto de jogadores assistindo a disputa de pênaltis teria sido uma ótima imagem, mas consegui capturar a comemoração da Argentina assim que a partida foi decidida. Eu não esperava essa reação, especialmente porque foi um jogo tenso, então sempre agradeço por ter alguma sorte no meu trabalho. Patrick Smith: Eu estava trabalhando na passarela e faltava menos de 10 minutos para o final. Cristiano Ronaldo e Portugal estavam de saída do torneio. Minha intenção era acompanhá-lo a cada momento. Assim que saísse do banco no segundo tempo, ele iria influenciar o jogo — talvez marcando um gol decisivo — ou seria eliminado naquela que poderia ser sua última partida de Copa do Mundo. Esta imagem foi resultado de uma oportunidade perdida no final e resume a história da derrota de Portugal e da decepção pessoal de Ronaldo. Alexander Hassenstein: Para este jogo, tive a oportunidade de trabalhar de um ponto alto na tribuna de imprensa, diretamente acima dos bancos. Normalmente, estamos posicionados no campo de jogo, por isso foi bom ter uma perspectiva diferente — especialmente para esta foto de Sofiane Boufal, do Marrocos, dançando e comemorando com sua mãe. Foi um momento mágico quando Boufal encontrou a mãe nas arquibancadas e a acompanhou até o campo. Fiquei completamente fascinado com a diversão e a atmosfera enquanto os dois dançavam tão lindamente — um momento que eles vão lembrar pelo resto da vida. Richard Heathcote: Esta imagem capturou o momento decisivo na jornada da Inglaterra na Copa do Mundo. Ela foi tirada com uma pequena câmera montada no alto do canto superior do gol — um local único que requer muita sorte e alguns equipamentos sofisticados. Pudemos adicionar duas câmeras remotas atrás de cada gol e câmeras de rede dentro dos gols para aprimorar nossa cobertura com uma nova perspectiva da ação na boca do gol. Esses equipamentos são montados algumas horas antes do apito inicial e podem ser afetados por um chute ou qualquer coisa que balance a rede. Então, o fato de eles permanecerem no lugar após o primeiro pênalti batido por Kane foi uma sorte. A capacidade de ver um momento desses atrai o espectador — como se ele fosse um segundo goleiro no fundo da rede. Dan Mullan: Para esta partida, tive a sorte de estar na passarela do estádio entre os equipamentos de iluminação. É um ângulo único no qual trabalhamos duro neste torneio para trazer algo diferente de nossas posições tradicionais no campo. Você tem muito mais liberdade para escolher o ângulo que quiser dessa perspectiva. Ela permite que você pense com antecedência sobre o tipo de imagem que gostaria de capturar. No primeiro tempo, me posicionei bem acima do gol da Croácia, caso a Argentina marcasse. Felizmente, eles fizeram exatamente isso. O que torna esta imagem especial é a forma dos corpos — a perna totalmente esticada de Álvarez chutando a bola para o goleiro que se aproximava, enquanto Borna Sosa jazia no chão sem conseguir impedir o avanço. Michael Regan: Nesta Copa do Mundo, a Getty Images teve acesso exclusivo ao campo logo após o jogo. Nós, fotógrafos, tentamos capturar as reações dos jogadores quando as emoções estavam no auge, e imagens como essas permitem que os jogadores se conectem diretamente com os torcedores através das lentes de uma câmera. Eu sabia que Mbappé daria uma ótima imagem — tudo o que eu precisava fazer era chamar sua atenção gritando Yeeesssss Kyliaaaaannnnn! ('Sim, Kylian!', em tradução livre). Isso funcionou, pois ele me deu a foto perfeita, comemorando bem na minha lente. Ele está vestindo a camisa do Marrocos de seu companheiro de equipe no PSG, Achraf Hakimi, o que é um belo toque. Para mim, esse visual resume a emoção que se acumula antes de uma final. Matthias Hangst: Que final! Messi levou a Argentina à glória mundial com outra atuação incrível. Esta imagem joga o foco inteiramente em Lionel Messi, colocando-o perfeitamente no centro das atenções momentos antes de subir ao palco para erguer o troféu da Copa do Mundo. Posicionei-me na passarela da cobertura do estádio para obter este ângulo único do maior jogador do mundo. David Ramos: Esta imagem de Lionel Messi nos ombros de Sergio Aguero é uma reminiscência das cenas em 1986, quando Maradona da Argentina segurava alto o troféu da Copa do Mundo no Estádio Azteca, no México. Desta vez, houve um momento de comédia, pois Messi teve que abaixar um pouco para não bater a cabeça no travessão! Todas as fotografias estão sujeitas a direitos autorais.
2022-12-19
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64025974
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Argentina tricampeã: o que acontece com a taça da Copa do Mundo depois da comemoração
A Argentina venceu a França nos pênaltis neste domingo (18/12), na final da Copa do Mundo 2022, se tornando tricampeã e entrando para o seleto clube de seleções com três estrelas na camisa. Os argentinos receberam o troféu, que é parte fundamental das comemorações pela vitória no Mundial, em um enredo que se repete a cada quatro anos. Para deixar a vitória registrada na taça oficial do campeonato, após a comemoração, o objeto é encaminhado para a pacata cidade de Paderno Dugnano, na região metropolitana de Milão, no norte da Itália. Ali, em um galpão simples, localizado em uma tranquila rua de uma região industrial, os ourives que trabalham na fábrica da empresa GDE Bertoni estão prontos para receber a famosa taça. Eles precisarão deixar o troféu tinindo como se fosse novo e gravar, no disco circular que fica em sua base, o nome da seleção da Argentina. Fim do Matérias recomendadas O padrão é: o ano do campeonato seguido pelo nome do vencedor, em grafia que respeite o idioma do campeão. Assim, em 1994 e 2002, foi escrito Brasil, exatamente da maneira como escrevemos, em português. Em 2006, a taça foi recebida em clima de festa para a gravação no ano em que a Itália conquistou o mundial. Essa gravação é o único processo mecanizado pelo qual passa o troféu da Copa do Mundo, com seus cerca de 6 quilos de ouro. A taça, obra idealizada em 1971 pelo ourives e escultor Silvio Gazzaniga, que morreu aos 95 anos em 2016, é toda confeccionada de forma artesanal. Os países que vencem a Copa do Mundo recebem uma réplica da taça da disputa. É um objeto idêntico à taça original, que tem ouro 18 quilates e está sempre em posse da Fifa. A GDE Bertoni é responsável por produzir essas réplicas, idênticas em forma e com peso semelhante à original, que são entregues, em definitivo, às seleções campeãs. Em vez de ouro, há uma liga de cobre e zinco - mas banhada a ouro em três demãos. E são réplicas assim que todos os países que venceram a Copa do Mundo desde 1974 guardam em suas salas de troféus. Em 1970, o Brasil chegou a receber uma taça original, o troféu Jules Rimet - pois o combinado era que a primeira seleção que vencesse três vezes a Copa ficaria com a posse definitiva da taça. Após o tricampeonato brasileiro, foi aberto um concurso para escolher a premiação substituta. Participaram 53 empresas de todo o mundo. A GDE Bertoni, empresa fundada em Milão pelo ourives Emilio Bertoni, já tinha certa experiência no ramo esportivo, pois havia feito as medalhas para os Jogos Olímpicos de Roma, em 1960. A firma era então gerida por Giorgio Losa, neto do fundador. O funcionário Gazzaniga fez o desenho. Losa levou pessoalmente um molde de gesso até a sede da Fifa para o certame. Levou a melhor e voltou com a missão: fabricar a taça que já seria utilizada na Copa de 1974. Desde então, a cada quatro anos a taça original e única da Copa retorna a Paderno Dugnano para a gravação do nome. Aquelas duas faixinhas verdes, feitas de uma pedra chamada malaquita, são substituídas por novas. O troféu também é limpo e polido. Fica novinho em folha antes de retornar à sede da FIFA, em Zurique, na Suíça. Todo esse processo costuma levar pelo menos duas semanas. É feito em sigilo, sem alarde, por razões de segurança - e para não quebrar o sossego da silenciosa e quase sem movimento ruazinha onde a GDE Bertoni se localiza. Assim que a taça original for encaminhada para a gravação, a Argentina receberá a posse da réplica oficial que lhe é de direito. E a original seguirá da Itália para Zurique, na Suíça, no aguardo do Mundial de 2026. *Com informações de reportagem de Edison Veiga, publicada em 2018 na BBC News Brasil.
2022-12-18
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63994417
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Argentina ganha a Copa de 2022 e é tricampeã mundial
Em uma partida disputada até o último minuto, a Argentina confirmou o favoritismo e conquistou neste domingo a Copa do Mundo de 2022, realizada no Catar. Os argentinos venceram a França nos pênaltis, após uma partida emocionante que havia terminado em 3 a 3 no Estádio Nacional de Lusail, em Doha. A argentina marcou 4 gols durante os pênaltis. A França teve um dos chutes defendidos pelo goleiro argentino Emiliano Martínez e outro chute para fora do gol. Os gols da Argentina no primeiro tempo foram marcados por Messi, de pênalti, e Di María, num contra-ataque fulminante. A França empatou nos últimos 15 minutos do segundo tempo, com dois gols de Mbappé — o primeiro de pênalti e o segundo num sem-pulo da grande área. Fim do Matérias recomendadas Mbappé fez um gol durante a prorrogação, que logo foi seguido por outro gol de Messi, encerrando a partida em 3 a 3. Com o título de 2022, a Argentina entra para o seleto grupo das seleções que conseguiram conquistar a Copa do Mundo três vezes. Fazia 20 anos que um time sul americano não ganhava a competição, desde o penta do Brasil em 2002 Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A trajetória da Argentina pelo Catar começou de forma bem turbulenta, com a inesperada derrota para a Arábia Saudita, por 2 a 1. Desde esse episódio, porém, a equipe não perdeu mais. Ainda na fase de grupos, ganhou de México (2 a 0) e Polônia (2 a 0). No mata-mata, superou a Austrália (2 a 1), a Holanda (2 a 2, decisão nos pênaltis), a Croácia (3 a 0) e, na grande final, bateu a França (3 a 3) nos pênaltis. Com o título de 2022, a Argentina fatura o seu terceiro título mundial. As outras duas conquistas aconteceram em 1978, na Copa disputada na própria Argentina, e em 1986, no México. Com isso, os sul-americanos se tornam tricampeões do mundo e superam França (1998 e 2018), Uruguai (1930 e 1950), Espanha (2010) e Inglaterra (1966). Acima de Argentina no número de títulos, aparecem Brasil (1958, 1962, 1970, 1994 e 2002), Itália (1934, 1938, 1982 e 2006) e Alemanha (1954, 1974, 1990 e 2014). Com a atuação na final de 2022, Lionel Messi se tornou o atleta que mais participou da competição, com 26 partidas. Ele superou o recorde anterior, que era do alemão Lothar Matthäus. Aos 35 anos, Messi foi um dos grandes destaques do torneio e entra definitivamente para o rol dos maiores ídolos da história do futebol argentino, ao lado de Diego Maradona, Gabriel Batistuta, Daniel Passarella e Alfredo Di Stéfano. Outro recorde batido vem do banco de reservas: Lionel Scaloni se sagrou como o mais jovem treinador a conquistar uma Copa do Mundo. Ele superou a marca de seu compatriota César Luis Menotti, que foi o técnico da seleção campeã em 1978.
2022-12-18
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64018691
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Qual a origem da rivalidade entre Brasil e Argentina — e o que está mudando nessa rixa
Assim que a seleção argentina eliminou a Holanda na Copa do Mundo do Catar, em 9 de dezembro, alguns torcedores do Brasil enviaram mensagens para amigos brasileiros e argentinos que moram em Buenos Aires comemorando o resultado. "Que jogo, que torcida linda. Parabéns, hermanos", disse um deles. Na terça-feira (13/12), quando a Argentina venceu a Croácia por três a zero, novas mensagens, em tom de admiração, voltaram a se repetir. E algumas delas incluíram até trechos de tango. "Arte e luta em doses iguais", escreveu um deles, elogiando a atuação da seleção capitaneada por Lionel Messi e anexando um tango de Astor Piazzolla à mensagem. Com a saída do Brasil da Copa, alguns brasileiros famosos e anônimos aderiram à torcida pela seleção argentina — inclusive o narrador Galvão Bueno, da Rede Globo, conhecido por já ter dito que "ganhar é bom, mas ganhar da Argentina é melhor ainda". Fim do Matérias recomendadas Até o correspondente do jornal britânico The Guardian na América Latina, Tom Phillips, se surpreendeu com o apoio de brasileiros à seleção do país vizinho. "O que está acontecendo?", brincou ele no Twitter. Será que algo está mudando na rivalidade histórica entre Brasil e Argentina, alimentada por disputas em Copa do Mundo e décadas de comparação entre o desempenho de Maradona e Pelé? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para entender isso, a BBC News Brasil ouviu analistas especializados em história, em antropologia e em futebol, que observaram que esse sentimento atual reflete vários motivos. A admiração por Messi, que coleciona sete Bolas de Ouro de melhor jogador do mundo e costuma ser elogiado por sua "simplicidade" e "zero arrogância", a "garra dos jogadores e da torcida argentina" e a percepção das novas gerações de brasileiros, que se identificam como latino-americanos são elementos que contribuem para apaziguar a rivalidade histórica. O professor João Manuel Casquinha, do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), que faz pesquisas sobre futebol, atendeu à reportagem da BBC News Brasil quando acabava de sair de uma reunião com outros dois professores. Os três acadêmicos estão torcendo pela Seleção Argentina, que neste domingo (18/12) disputará a final do mundial contra a França. "Vou dar uma percepção bem de torcedor. Os jogadores argentinos sempre nos encantaram pela sua dedicação, pelo seu amor pela pátria. Aquela coisa de jogar pela bandeira e de terminar os jogos e ir para o meio da torcida. Muita garra, muita vibração. E, além de toda garra argentina, eles têm o melhor jogador do mundo e a gente acaba ficando com uma certa invejinha no Brasil", disse Casquinha. Coordenador do Grupo de Estudos de História do Esporte e das Práticas Lúdicas (Stadium), o professor entende que até o videogame tem contribuído para as novas torcidas brasileiras por Messi. "Vemos os mais jovens que curtem o Messi, que o viram jogar no Barcelona, o veem jogar no Paris Saint Gemain e passaram quatro anos (até a Copa) jogando com 'Messi' no videogame. E eles acabam tendo tanta identidade com Messi como têm com o Neymar. Eu diria que, em alguns casos, eles têm até mais identidade com o Messi do que com a maioria dos jogadores brasileiros, que nem sempre conhecem porque jogam em equipes europeias menores e praticamente não atuam no território brasileiro", disse Casquinha. "A gente tem uma nova geração de torcedores que torce para o Arsenal, para Manchester City, para o Paris Saint Germain, para o Barcelona... É um fenômeno que vemos acontecendo nos países sul-americanos. Tem a ver com a globalização. E esses clubes têm trabalhado uma inserção na América Latina", afirmou. Essa mesma geração se identifica, em muitos casos, mais como latino-americana, ao contrário do que pensavam seus pais e seus avós no passado. Esse sentimento também explica a torcida de muitos brasileiros, na visão do professor Casquinha — ele próprio diz querer "uma vitória dos sul-americanos" neste domingo. O técnico da seleção argentina, Lionel Scaloni, também tentou cultivar isso. Scaloni é amigo de vários jogadores brasileiros, se declara "fã" do Brasil e disse que seria "estimulante" ter o apoio da torcida brasileira e das outras nações da América do Sul na final — desde 2006, os europeus são os únicos a erguer a taça da Copa do Mundo. Mas, para deixar a rixa de lado, é preciso entender suas origens. É na política, e não no futebol, que alguns historiadores situam esse princípio. O historiador Boris Fausto, coautor de Brasil e Argentina: Um Ensaio de História Comparada (1850-2002), diz que a rixa começou no século 19, quando os dois países passaram a disputar a liderança regional na América do Sul. Para Fausto, essa rivalidade política acabou sendo assimilada pela sociedade. E, com isso, se descolou de fatos históricos e invadiu outros setores, como o futebol. O cientista político argentino Rosendo Fraga também acha que Brasil e Argentina herdaram a rivalidade que existiu entre os ex-colonizadores, Portugal e Espanha, no processo de ocupação da América do Sul. E nisso, a disputa pela região chamada Cisplatina, nos arredores do rio da Prata, tem papel importante. Essa disputa chegou ao ápice na Guerra da Cisplatina (1825-28), que opôs o Brasil, já independente de Portugal, e as chamadas Províncias Unidas do Rio da Prata, que mais tarde viriam a formar a Argentina. O Brasil sofreu duras derrotas em três batalhas da guerra e acabou desistindo de ser dona do território. Os argentinos também não ficaram com a Cisplatina, que acabou virando outro país: o Uruguai. Mas a desconfiança bilateral continuou, apesar da falta de hostilidades ou conflitos dali em diante. Inclusive Brasil, Argentina e Uruguai foram aliados na Guerra do Paraguai (1864-1870). O cientista político argentino Vicente Palermo, autor de La Alegria y la Pasión - Relatos Brasileños y Argentinos en Perspectiva Comparada ("A Alegria e a Paixão - Relatos Brasileiros e Argentinos em Perspectiva Comparada", em tradução livre) acha que, historicamente, era comum que argentinos exibissem um ar de superioridade perante os brasileiros. Isso por causa do período histórico em que a Argentina foi um dos países mais ricos do mundo em PIB per capita, com uma classe média mais pujante. Mas ele acha que isso mudou principalmente depois da ditadura militar instalada no país entre 1976 e 1983, quando os argentinos se viram diante de problemas semelhantes ou até mais graves que os brasileiros, como a sucessão de crises econômicas. Hoje, Vicente Palermo acha que os argentinos mudaram completamente a visão sobre o Brasil e enxergam o país como um ator global de peso. Mas os clichês se mantiveram, em particular no futebol e, mais ainda, em Copas do Mundo — com um saldo de taças obviamente favorável ao Brasil. Mas, agora, para o pesquisador João Manuel Casquinha, o comportamento de Messi contribui para que a torcida brasileira se envolva mais com a seleção argentina. "Uma coisa que o Messi não faz é ficar ostentando, indo pra balada. Enquanto isso, nossos jogadores fazem churrasco, comem carne com ouro... Então, o torcedor brasileiro vê que essa galera [os jogadores brasileiros] está cada vez mais distante dele", opina Casquinha. José Paulo Florenzano, professor de antropologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e ex-membro do conselho consultivo do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), entende que, apesar de histórica, a rivalidade entre o Brasil e a Argentina não se manifesta sempre da mesma maneira: tem altos e baixos, a depender do contexto. "Dependendo da conjuntura esportiva, você tem um acirramento desse sentimento de antagonismo e de rivalidade. Em determinadas conjunturas, como agora em 2022, você tem a possibilidade de uma identificação transversal que atravessa as fronteiras do Estado-Nação", avalia. Para o especialista, essa identificação além fronteiras é responsabilidade de Messi. "A seleção argentina do Messi consegue transcender os limites nacionais da Argentina. Existe a identificação em vários países com a figura do Messi e o futebol que ele representa e joga", pontua. A política também tem um peso no debate. Neymar conquistou críticos de um lado e admiradores do outro ao declarar apoio a Jair Bolsonaro (PL) na campanha presidencial de 202. "Neymar também tem admiradores no mundo inteiro pelo futebol exuberante que joga. Mas acredito eu que hoje seja muito mais fácil para um brasileiro torcer para a Argentina do Messi do que o inverso, um argentino se identificar com o Brasil do Neymar", opina Florenzano. O antropólogo acha que o estilo de Messi é mais agregador a torcedores não argentinos do que o de Diego Maradona — que, embora fascinante, era visto como rebelde e, por vezes, controverso. Num documentário recente da Netflix, lançado pouco antes da Copa do Mundo, Messi fez uma espécie de discurso de motivação para os jogadores da Seleção Argentina, falando sobre a importância da oportunidade de vencer no Maracanã a final da Copa América contra o Brasil, em 2021. Ele não citou a rivalidade e buscou colocar o foco no próprio time. "Já sabemos quem é a Argentina e quem é o Brasil. Não quero falar sobre isso. Formamos um time lindo. Vamos levantar essa copa, vamos levá-la para a Argentina para desfrutar com nossas famílias, com nossos amigos, com as pessoas que sempre apoiaram a Argentina", disse. Essa foi a conquista mais importante que a seleção liderada por Messi conquistou para a Argentina até a disputa do mundial de 2022 — e um momento crucial também para mudar a percepção dos torcedores argentinos a respeito de Messi, até então admirado, mas visto como alguém que trazia mais conquistas ao times europeus do que à Seleção Argentina. Mas qual foi o sentimento predominante na Argentina, quando o Brasil foi eliminado? Algo de 'alívio' foi detectado em alguns torcedores argentinos. "O Brasil seria um competidor muito difícil pela fortaleza de seu futebol", explicou um dos comentaristas esportivos do canal 13, de Buenos Aires. Nas redes sociais, circulou imagem atribuída à TV Crónica, que costuma exibir títulos originais com letras maiúsculas na sua tela, dizendo: "Lá se vai o avião brasileiro (com os jogadores)". Um comentárista disse que a eliminação significava "um gigante a menos para enfrentar" — talvez sem imaginar que a seleção de seu país contasse agora com o apoio de setores da torcida do próprio Brasil.
2022-12-17
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64008317
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Protestos no Peru deixam 20 mortos e 63 feridos
Os protestos desencadeados no Peru após o impeachment e a prisão do ex-presidente Pedro Castillo — que tentou dissolver o Congresso e estabelecer um governo de emergência — deixaram cerca de vinte mortos na última semana, segundo dados do Ministério da Saúde do país. Numa atualização publicada na sexta-feira (16) no Twitter, as autoridade sanitárias contabilizavam 20 mortos e 63 hospitalizados. Desde a saída de Castillo em 7 de dezembro, os protestos se espalharam por todo o país, mas foram especialmente violentos em algumas áreas do interior. Em outros casos, os manifestantes se expressaram pacificamente. A convulsão social dos últimos dias levou às primeiras renúncias no gabinete da atual presidente Dina Boluarte. A ministra da Educação, Patrícia Correa, apresentou na sexta-feira (16) uma carta de demissão, argumentando que a morte de compatriotas em protestos sociais "não tem justificativa". Fim do Matérias recomendadas Pouco depois, ocorreu a renúncia do ministro da Cultura, Jair Pérez Brañez, pelos mesmos motivos. Ainda na sexta (16), após uma longa sessão iniciada na quinta-feira (15), o Congresso Nacional não aprovou o projeto de lei para antecipar as eleições. Embora 49 parlamentares tenham votado a favor do projeto de reforma constitucional que propunha a antecipação, 33 votaram contra e 25 se abstiveram, de modo que a proposta não foi adiante. O projeto propunha a realização das eleições em dezembro de 2023, encurtando o mandato de Boluarte, a quem coube assumir a chefia do Estado para completar o mandato presidencial para o qual Castillo foi eleito — e que só termina em meados de 2026. Quinta-feira (15) foi um dia de grande tensão e fortes protestos. Um juiz ordenou 18 meses de prisão preventiva para Castillo, acusado dos crimes de rebelião e formação de quadrilha, enquanto o governo Boluarte — que já havia declarado estado de emergência nacional na véspera (14) — decretou toque de recolher noturno por cinco dias em 15 províncias do país para lidar com problemas de ordem pública. Um dos incidentes mais graves ocorreu em Ayacucho, cidade andina localizada a cerca de 390 quilômetros a sudeste de Lima, onde uma massa de manifestantes tentou tomar o aeroporto da cidade. O confronto entre militares e policiais com os manifestantes deixou oito mortos e 52 feridos somente naquele dia, segundo a autoridade regional de Saúde de Ayacucho. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A defensora pública Eliana Revollar explicou à agência AFP que o confronto ocorreu quando os militares foram cercados pela multidão. Ela acrescentou que o ocorrido merece uma investigação criminal, porque as vítimas morreram por ferimentos de bala — e o estado de emergência não elimina a obrigação de respeitar o direito à vida. Além disso, cerca de 5 mil turistas ficaram retidos em Cusco, disse à agência AFP Darwin Baca, prefeito de Machu Picchu. Cusco é a base da qual as pessoas partem para conhecer a cidadela inca no alto da Cordilheira dos Andes. O aeroporto de Cusco foi fechado na segunda-feira (12) depois que os manifestantes tentaram invadir o terminal. Na sexta-feira (16), as operações aéreas foram retomadas com um primeiro voo que partiu às 13h30 no horário local (15h30 no horário de Brasília), informou o Ministério da Defesa do Peru. O serviço de trem que vai de Machu Picchu a Cusco está suspenso desde terça-feira (13). Cerca de 800 turistas ficaram presos na antiga cidade inca, acrescentou Baca. A BBC News Brasil entrou em contato com o Itamaraty para saber se há brasileiros retidos na cidade e o que está sendo feito para trazê-los de volta. O Ministério das Relações exteriores informou que, "por meio da Embaixada do Brasil em Lima, mantém contato com as autoridades peruanas e presta a assistência cabível a brasileiros retidos em Cusco e em outras regiões do país". "O aeroporto de Cusco já está em funcionamento e tem previsão de voos a partir de sexta-feira, 16 de dezembro. Estradas de acesso à cidade também estão sendo progressivamente liberadas." No site do Governo, o Itamaraty também destacou as "iniciativas coordenadas pela Municipalidade de Machu Picchu no sentido de organizar eventual retirada de turistas retidos naquela localidade". "Nesse sentido, a Embaixada orienta que os turistas brasileiros, sobretudo aqueles que necessitem de atenção médica urgente ou se encontrem em situação de vulnerabilidade, solicitem aos seus respectivos hotéis apoio imediato para seu registro em formulário específico da municipalidade ('formulario de turistas varados') ou, se houver dificuldades, entrar em contato com a Municipalidade pelos números de telefone (5184) 21 1375 / (5184) 21 1099 ou presencialmente no módulo de Informação Turística localizado na Plaza Manco Ccapac nº 101."
2022-12-17
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64012174
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Copa do Mundo 2022: por que Messi era 'rejeitado' e agora se tornou a esperança dos Argentinos na final
*Esta reportagem foi atualizada na sexta-feira (16/12). Quando a seleção Argentina entrar em campo para a final contra a França neste domingo (18/12), um dos principais nomes em evidência será o do atacante Lionel Messi, de 35 anos, estrela do time. Com apenas 13 anos, o argentino deixou seu país natal. Na época, ele tinha baixa estatura e era descrito como tímido. Com o tempo e os tratamentos que realizou, como ele mesmo conta, ganhou centímetros na sua altura, colecionou troféus internacionais e se tornou capitão da seleção argentina de futebol. Hoje, Messi é ídolo em seu país e está em alta em razão do seu bom desempenho no Mundial do Catar. Na disputa, ele conquistou um feito histórico ao se tornar o maior artilheiro da seleção Argentina, com 12 gols em Copas do Mundo, ultrapassando o ex-atacante Gabriel Batistuta. Fim do Matérias recomendadas Além disso, Messi está empatado com Mbappé, da seleção francesa, na liderança da artilharia do torneio em 2022. Os dois, que irão se enfrentar na final deste domingo, até o momento fizeram cinco gols. Em meio ao destaque mundial, uma característica da origem de Messi é notada mesmo após tanto tempo longe de Rosário, na província argentina de Santa Fé. Ele continua falando como um rosarino. Em Rosário, costuma-se falar eliminando o "r" e o "s" das palavras finais das frases. Em uma entrevista transmitida pela TV Pública Argentina (TVP), em novembro do ano passado, por exemplo, Messi comentou sobre suas expectativas para a Copa do Mundo do Catar em 2022 e disse, "engolindo" o "s": "Ainda falta para sermos um dos grandes candidatos (a campeão do Mundial)". Esse é apenas um detalhe na identidade do rosarino, como observam seus compatriotas. "Essa é uma característica nossa. Por exemplo, em vez de 'espetacular', falamos 'espetaculá'. Para mim, é mais um motivo para sentir orgulho dele. Tanto tempo longe e Messi não fala como os espanhóis, mas como nós, rosarinos. Por isso, diz 'che' (cara) e não 'tio', como na Espanha", disse o publicitário Lucio Reitich, que mora em frente à casa dos sogros de Messi, em entrevista por telefone à BBC News Brasil. Ex-jogador do Barcelona e jogador do Paris Saint Germain, Messi viaja com frequência para Rosário, mantém a amizade com os amigos de infância e ali, a cerca de 300 quilômetros de Buenos Aires, realizou a festa de casamento com sua namorada desde os tempos de criança Antonela Roccuzzo, em 2017. A festa contou com a presença de jogadores de vários países entre os convidados. Mas apesar de manter vivas suas raízes, entre as quais passar as festas de fim de ano na casa dos sogros, também em Rosário, Messi demorou a conquistar o coração de muitos argentinos que o viam como "pouco apaixonado" na hora de entrar em campo com a camiseta da seleção do país. Nas Copas passadas, era comum ouvir em Buenos Aires queixas de taxistas e comerciantes que diziam que ele jogava "muito bem" no Barcelona, mas "não tinha a mesma garra" na seleção argentina. Esse sentimento mudou, pelo menos por enquanto, quando Messi ergueu a taça de time campeão no Maracanã, na Copa América em julho de 2021, observa o jornalista esportivo argentino Carlos Ares, com 40 anos de experiência e atualmente colunista da revista Perfil, de Buenos Aires. Foi a primeira vez, na fase adulta, que Messi conquistou um troféu para seu país, apesar dos vários triunfos no Barcelona, onde jogou durante mais de quinze anos, e apesar de colecionar sete prêmios 'Bola de Ouro' de melhor jogador do mundo, além de premiações como melhor jogador da Europa, entre outras láureas internacionais. Messi joga há quase 20 anos com a camiseta argentina. Nas seleções sub-20 e na sub-23, quando era chamado, principalmente, de 'Pulga', em função de sua baixa estatura, ganhou prêmios para o país e abriu seu caminho para a estreia, aos 18 anos, na Copa do Mundo de 2006. Foi o jogador mais jovem de uma seleção na época, segundo a imprensa argentina. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A Copa no Catar, a quinta do ídolos argentino, tem sido apontada por especialistas como a 'Copa de Messi', principalmente depois da conquista da Copa América. "Com este troféu, Messi se liberou do peso (da cobrança de prêmios) que carregava quase exausto", escreveu o jornalista Daniel Arcucci, do jornal La Nación, de Buenos Aires. Segundo ele, Messi está agora em seu melhor momento. "Maduro, feliz e líder. Ele é um animal competitivo e tem como meta ganhar a Copa do Mundo, que é o que lhe falta", afirmou Arcucci. O bom desempenho do atleta ao longo do Mundial deste ano reforçou essas afirmações que apontavam para o destaque do argentino na disputa no Catar. Mas na Argentina, Messi enfrenta comparações quase permanentes com outro craque do país, Diego Armando Maradona (1960-2020). "Com a Copa América, em pleno Maracanã, Messi ficou a um passo do altar que a Argentina reserva para Maradona", diz Ares. A imprensa argentina afirmou que Messi tinha conquistado um 'Maracanazo', vencendo o Brasil em casa e que a notícia percorreu o mundo. Mas para alguns setores no país, ainda há diferença de escalas entre Messi e Maradona, já que o ex-craque também venceu a Copa do Mundo em 1986, no México. No início da Copa no Catar, especialistas chegaram a acreditar que o prestígio de Messi poderia estar em risco, após a derrota da seleção argentina (2 a 1) para a Arábia Saudita, em sua estreia na disputa em 22 de novembro. Na data do primeiro jogo no Mundial, o cientista político e professor da Universidade de Buenos Aires (UBA) Martín Leguizamon chegou a afirmar que notava que a "desolação foi total" e havia quem temesse por mais uma "frustração argentina", num país que, segundo ele, tem um histórico de sonhos interrompidos e de altos e baixos tanto no futebol como no âmbito politico, por exemplo. Em relação à comparação com o outro ídolo argentino, o cientista político Leguizamon disse que Maradona era carismático, mas como dizia o intelectual alemão Max Weber, citou ele, o carisma não se compra. "Messi tem características muito diferentes das que tinha Maradona. Messi é um bom rapaz, bem comportado, admirado no exterior e fica até difícil falar mal dele", afirmou Leguizamon. Ele observa que o atleta é, principalmente, admirado pelos jovens do país. Para alguns analistas, a "paixão" por Maradona e seu estilo controvertido estava associada ao fervor do tango que simboliza o país. Mas a vida do ex-craque, de gols e de escândalos com ampla cobertura pela imprensa, parece diferente da vida de Messi. Para o ex-jogador Jorge Valdano, que jogou com Maradona e costuma falar com Messi, os dois atletas são brilhantes. "Maradona era mais artístico do que Messi. Mas os dois são igualmente gênios", disse. "Muita gente o criticava porque faltava que ele ganhasse um troféu para a Argentina. Mas essa comparação é injusta. Na minha geração é difícil não achar quem não goste de Messi, quem não torça por ele. Acho que é um orgulho termos a Maradona e a Messi no mesmo país", diz o rosarino Lucio Reitich, de 23 anos. Fã de Messi, Reitich tem três fotos com o capitão da seleção argentina e que foram tiradas em anos diferentes, mas sempre nas redondezas da sua casa que fica em frente à casa dos sogros do jogador. "Na primeira vez, eu o vi de bicicleta, e eu e um amigo ficamos tão nervosos que nossas mãos tremiam e ficamos com medo de não conseguir tirar a foto com ele. Mas Messi é sempre tão simples e tão afável que tirou a foto sem problemas", conta. No seriado da Netflix chamado Sejam eternos: campeões da América ('Sean eternos: campeones de America'), que estreou no início deste mês, conta-se, com depoimentos dos jogadores argentinos e de outros países — como Neymar, que é amigo do argentino — como o time liderado por Messi venceu no Maracanã. "Muchachos, chegamos até aqui e agora vamos vencer", diz ele aos jogadores antes de entrarem em campo. O comentarista esportivo Gonzalo Bonadeo, da emissora TN (Todo Noticias), disse que Messi se firmou, nos últimos tempos, como um líder. "Messi se transformou em líder. Ele jogou cerca de 60 partidas em cerca de quinze anos. Hoje podemos dizer que ele é velocidade, mas também um profissional responsável. Contou com a ajuda da ciência, da alimentação apropriada. Mas ele não dá detalhes", diz Bonadeo, pouco antes do jogo contra a Arábia Saudita e quando a Argentina parecia muito mais otimista com o Mundial. Agora, a vitória contra o México, neste sábado, por enquanto evitou a eliminação ainda na fase de grupos. A jornalista rosarina Hagar Blau Makaroff, do portal Rosario Plus, conta que em Rosario já são vários os murais com o rosto do jogador, como uma forma dos moradores de homenagearem o atleta que "saiu de Rosario, mas Rosario não saiu dele". "E agora, na Copa de Catar, o bairro dele, que fica no sul da cidade, está cheio de bandeiras da Argentina", diz. A professora Andrea Sosa, da escola Las Heras, que deu aulas para Messi na infância, lembrou que Messi era "disciplinado, tímido e caladinho". Mas que na hora do jogo de futebol, chamava a atenção por suas piruetas em campo. Foi nessa época que o técnico espanhol Carles Rexac, do Barcelona, ouviu sobre um jovem e talentoso jogador de Rosario. "Pensei que fosse alguém de 17 ou 18 anos. Mas era um menino de treze anos", conta Rexac. Ele lembrou à imprensa espanhola que o desafio era levar um menino para longe de casa. Por isso, propôs que a família toda viajasse com ele para Barcelona. O espanhol diz que na comissão do clube observavam que além da idade, Messi era "baixo e magrinho" e seu físico seria outro desafio. "Ele era muito tímido, calado, mas no campo era espetacular". Em uma entrevista ao canal América, de Buenos Aires, o jogador contou que fez um tratamento com hormônios para o crescimento. "Tinha uns onze ou doze anos e a cada noite recebia uma injeção de hormônios do crescimento na perna. Meu pai e minha mãe me aplicavam, mas depois passei a fazer isso sozinho. Era algo de rotina e eu não sentia nenhuma dor", disse. O endocrinologista argentino Diego Schwartzstein, que foi quem diagnosticou a carência de hormônios do crescimento em Messi, disse que sem o tratamento ele poderia ter medido cerca de dez centímetros menos. O atleta mede 1,70 m. O torcedor rosarino de Messi, Lucio Reitich, fez o mesmo tratamento que seu ídolo. "Acho que Messi contribuiu também para sabermos que esse problema existe. Tenho motivos de sobra para admirá-lo dentro e fora dos campos. Para mim, ele é um exemplo de superação", diz. Hoje, Messi e sua família são donos de um "empório" que inclui empreendimentos também em Rosario, como observa Carlos Ares. Mas ainda falta vencer a Copa do Mundo para ser admirado pela maioria dos argentinos, acrescenta ele.
2022-12-16
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Copa do Mundo 2022: o que diz música pop que virou 'hino' da Argentina no torneio
Uma música pop argentina se tornou o hino não oficial da Copa do Mundo para Lionel Messi e companhia. "Muchachos, ahora nos volvimo' a ilusionar" ("Meninos, agora voltamos a sonhar", em tradução livre) — uma canção da banda argentina La Mosca Tsé-Tsé — tem tocado nos estádios do Catar durante o torneio e também dentro do vestiário da Alviceleste. O som característico da banda é uma mistura inebriante de ska, rock e pop. A canção se tornou um grito de guerra para a nação bicampeã da Copa do Mundo e seus 40 mil fãs no Catar. Segundo a agência de notícias AFP, a embaixada da Argentina em Doha informou que entre 35 mil e 40 mil argentinos viajaram para o Catar na esperança de ver sua seleção erguer a taça da Copa do Mundo pela primeira vez em 36 anos, no que também pode o último mundial de Messi, de 35 anos. Fim do Matérias recomendadas Juntamente com o semifinalista Marrocos, os torcedores argentinos ajudaram a criar uma atmosfera carnavalesca durante todo o torneio. O hino que se tornou seu grito de guerra é na verdade uma regravação de uma música de 2003 originalmente intitulada "Muchachos, Esta Noche Me Emborracho" ("Meninos, esta noite vou ficar bêbado"). Essa versão era sobre desgosto. Não tão empolgante. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No entanto, o vocalista da banda, Guillermo Novellis, explicou que um torcedor chamado Fernando Romero escreveu uma nova letra comemorando a jornada da Argentina rumo à final da Copa América de 2021. Novellis e sua banda gravaram essa versão e a lançaram antes da Copa do Mundo. A frase de abertura da nova edição faz referência explícita aos dois maiores ícones do futebol argentino: "Nasci na Argentina, terra de Diego e Lionel, dos rapazes das (Ilhas) Malvinas, que nunca vou esquecer." Não é à toa que Messi e seus companheiros são fãs da música. O próprio Messi afirmou no início deste ano na televisão argentina que esse era seu canto de futebol favorito. Após a vitória da Argentina sobre o México no Grupo C, a seleção foi flagrada dançando no vestiário, entoando o hino de La Mosca a plenos pulmões. Quando a Argentina bateu a Austrália nas oitavas de final, o La Mosca postou um vídeo em sua própria conta no Instagram, mostrando fãs no Estádio Ahmad bin Ali tocando sua música. A Argentina venceu a Croácia na terça-feira pela semifinal no Lusail Iconic Stadium, garantindo seu lugar na final da Copa do Mundo. Sua rival será a França, que também busca o tricampeonato. Os argentinos não ganham uma Copa do Mundo desde que Maradona liderou a Alviceleste rumo à vitória em 1986. Antes disso, venceu o Mundial em 1978. Se conseguirem derrotar os franceses, vitoriosos em 1998 e 2018, muito provavelmente saberemos qual será a trilha sonora. Veja abaixo a canção original em espanhol, bem como sua tradução livre em português: En Argentina nací / Nasci na Argentina Tierra de Diego y Lionel / Terra de Diego e Lionel De los pibes de Malvinas / Dos rapazes das Malvinas Que jamás olvidaré / que eu nunca vou esquecer Porque no vas a entender / Por que você não vai entender Las finales que perdimos / As finais que perdemos Cuantos años la lloré / Quantos anos chorei Pero eso se terminó / Mas isso terminou Porque en el Maracaná la final con los Brazucas la volvió a ganar papá / Porque no Maracanã a final com os Brazucas foi ganha de novo pelo papai Muchachos / Garotos Ahora nos volvimos a ilusionar / Agora voltamos a sonhar Quiero ganar la tercera, / Quero ganhar a terceira (copa) Quiero ser campeón mundial / Quero ser campeão mundial Y al Diego en cielo lo podemos ver / E podemos ver Diego no céu Con don Diego y con la Tota / Com Don Diego e con la Tota (pais de Maradona) Alentandolo a Lionel / Torcendo pelo Lionel Muchachos / Garotos Ahora nos volvimos a ilusionar / Agora voltamos a sonhar Quiero ganar la tercera / Quero ganhar a terceira (copa) Quiero ser campeón mundial / Quero ser campeão mundial Y al Diego en cielo lo podemos ver / E podemos ver Diego no céu Con Don Diego y con la Tota / Com Don Diego e con la Tota Alentandolo a Lionel / Torcendo por Lionel Y ser campeones otra vez / E ser campeões novamente Y ser campeones otra vez / E ser campeões novamente
2022-12-15
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Copa do Mundo 2022: 3 trunfos de França e Argentina para a final
Havia três grandes favoritos antes do início da Copa do Mundo de 2022: França, Argentina e Brasil. Dois deles jogarão a grande final, marcada para o próximo domingo (18/12). A final no Catar será uma repetição das oitavas de final da Copa da Rússia em 2018, quando os franceses venceram os argentinos em uma partida emocionante, que terminou 4 a 3. A seguir, analisamos as três razões que fazem da França e da Argentina os finalistas de 2022 — e os trunfos que podem fazer a diferença na partida decisiva. 1. Força mental e manejo da pressão Fim do Matérias recomendadas "Pessoal, agora estamos empolgados de novo. Quero ganhar a terceira, quero ser campeão mundial." A canção da banda argentina La Mosca Tsé-Tsé é o hino da torcida nesta Copa e reflete a ilusão e a pressão exercida sobre esta equipe. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A Argentina desembarcou no Catar com a insígnia de favorita e com o peso de um país empolgado e convicto de que está diante de uma oportunidade histórica. Afinal, essa é possivelmente a última Copa do Mundo de Lionel Messi — e só falta este título para colocar a cereja no topo do bolo na carreira dele. O jogador foi um dos líderes do elenco que venceu a Copa América de 2021, disputada no Brasil, que quebrou a seca de 28 anos da Argentina sem um grande título internacional. As expectativas eram altas — e a derrota na estreia para a Arábia Saudita transformou todas as partidas da Argentina em finais antecipadas. Quando surgiram dúvidas, os atletas responderam. E mostraram que sabem jogar sob a pressão de não poderem se dar ao luxo de sofrer mais um revés. Pelo caminho, os argentinos deixaram México, Polônia, Austrália, Holanda e Croácia. 2. Confiabilidade nas semifinais A camisa argentina é uma das mais pesadas da história do futebol. Ela carrega duas estrelas de conquistas em Copas do Mundo e uma confiabilidade extraordinária quando joga nas semifinais da Copa. Sempre que essa seleção disputou as semifinais, saiu vencedora e avançou para a final. Essa confiança histórica voltou com tudo frente à Croácia, naquele que talvez tenha sido o jogo mais confortável de todo o campeonato (pelo menos do ponto de vista dos argentinos). A última vez que a Argentina passou de uma semifinal foi em 2014, na Copa realizada no Brasil, após uma vitória contra a Holanda na disputa de pênaltis. Há oito anos, porém, a seleção sul-americana não conseguiu vencer e a Alemanha sagrou-se campeã. 3. Messi, o recordista Aos 35 anos, Lionel Messi, o homem que conquistou sete Bolas de Ouro, mostra que ainda tem muita habilidade. Durante as semifinais, ele inaugurou o placar ao bater perfeitamente um pênalti e deu assistências mágicas para seus companheiros, especialmente na jogada que selou o terceiro gol dos argentinos. O gol e a assistência fazem dele o jogador que mais marcou no torneio pela Argentina. Messi foi peça fundamental em oito dos 12 gols que a seleção fez neste campeonato. Ele está empatado com o francês Kylian Mbappé na tabela de artilheiros — e com o português Bruno Fernandes, o inglês Harry Kane e o francês Antoine Griezmann na lista de passes para gol. Messi também igualou o alemão Lothar Matthäus como o jogador com mais aparições na história da Copa do Mundo, com 25 partidas. E, como muito provavelmente estará na final, superará o recorde. Com o gol na semifinal, ele ainda superou Gabriel Batistuta como o maior artilheiro da Argentina em Copas do Mundo e se tornou o jogador mais velho a marcar cinco gols em uma única edição da Copa. 1. A seleção com os três artilheiros mais efetivos da Copa do Mundo O ataque da França impõe respeito. Kylian Mbappé tem cinco gols e é o artilheiro do torneio ao lado de Lionel Messi. Olivier Giroud já anotou quatro e Antoine Griezmann, outros três. Só esses três jogadores somam o total de gols (12) que toda a seleção argentina fez no torneio. Conter esse poderio ofensivo será um desafio para a Argentina e uma das chaves para a conquista da Copa pelos franceses. 2. Didier Deschamps, um treinador histórico O técnico francês liderou a França na conquista da Copa do Mundo de 2018 e agora colocou a seleção de volta na final de 2022. Das 18 partidas em que Deschamps dirigiu a França em Copas do Mundo até o momento, ele venceu 14, perdeu duas e empatou outras duas. A vitória sobre o Marrocos o igualou em número de vitórias ao brasileiro Luiz Felipe Scolari e o coloca a duas vitórias do recorde de 16 jogos conquistados pelo alemão Helmut Schön. No entanto, Deschamps terá um adversário difícil no próximo domingo. Com menos experiência, o argentino Lionel Scaloni conseguiu levar a seleção de seu país a uma conquista de Copa América e chegou à final de uma Copa do Mundo em apenas quatro anos no cargo. 3. Geração de especialistas em finais Em 2022, a França mantém grande parte do elenco que garantiu o título mundial em 2018, na Rússia. Vários dos principais nomes da equipe, como o goleiro e capitão da equipe Hugo Lloris, o zagueiro Raphael Varane e os atacantes Kylian Mbappé, Olivier Giroud e Antoine Griezmann, foram titulares na final em Moscou, quando venceram a Croácia por 4 a 2. Trata-se, portanto, de uma geração com experiência em finais de Copa do Mundo e isso pode ser um fator decisivo. Na Argentina, apenas Messi e Ángel Di María permanecem do elenco que perdeu a final contra a Alemanha, na Copa de 2014 no Brasil. A França é a primeira seleção a chegar a duas finais consecutivas de Copa do Mundo desde o Brasil, em 1994 e 1998. O recorde de participações consecutivas em final é de Alemanha (1982, 1986 e 1990) e Brasil (1994, 1998 e 2002).
2022-12-15
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63985179
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Crise no Peru: o que é o estado de emergência decretado após protestos
O governo peruano decretou estado de emergência em todo o país por 30 dias, informou o ministro da Defesa, Alberto Otárola, na quarta-feira (14/12), após uma reunião do Conselho de Ministros que está em sessão permanente. O ministro disse que esta medida é uma resposta "contundente" à onda de protestos violentos que abalou o país nos últimos dias, após o afastamento pelo Congresso do presidente Pedro Castillo, a quem a Justiça acusou de rebelião após ele tentar dissolver o Congresso e estabelecer um "governo de exceção". Otárola indicou que esta medida implica a suspensão dos direitos à liberdade de reunião, liberdade de trânsito, liberdade e segurança pessoal; e o direito à inviolabilidade do domicílio. O anúncio estende assim o estado de emergência a todo o país, depois de a presidente, Dina Boluarte, o ter declarado para "as áreas de alto conflito social" no sul na segunda-feira (12/12). Nesse mesmo dia, Boluarte apresentou ao Congresso uma proposta para antecipar as eleições gerais para abril de 2024 e, posteriormente, manifestou sua vontade de antecipá-las para o final de 2023. Fim do Matérias recomendadas Foi convocada para a manhã de quinta-feira (15/12) uma reunião do plenário do Congresso para discutir a proposta. Espera-se que o ministro da Justiça, José Tello, compareça para fazer uma avaliação técnica do assunto. Desde a remoção de Castillo da Presidência, os protestos se espalharam por todo o Peru, mas foram especialmente violentos em algumas áreas do interior do país. Até quarta-feira, eles haviam causado a morte de pelo menos seis pessoas. Essas manifestações foram realizadas por diferentes motivos, como exigir eleições imediatas, solicitar o fechamento do Congresso ou exigir a renúncia imediata da atual presidente. Na terça-feira (13/12), foi publicada nas redes sociais uma carta enviada por Pedro Castillo desde o local onde se encontra detido, na qual pedia aos seus seguidores que não caíssem no "jogo sujo das novas eleições". Ele afirmou que isso faz parte de uma "estratégia das forças políticas de direita peruanas". Castillo está detido provisoriamente a pedido do Ministério Público. Uma audiência está prevista para quinta-feira para avaliar a manutenção ou suspensão da medida cautelar.
2022-12-14
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63980721
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'Que mirás, bobo?': a história por trás da bronca de Messi após jogo que viralizou
"Qué mirás, bobo. Andá p'allá". A frase — que pode ser traduzida como "está olhando o que, bobo? Sai para lá" — foi dita na última sexta-feira (09/12) pelo jogador Lionel Messi durante uma entrevista após a partida entre Argentina e Holanda pelas quartas de final da Copa do Mundo. O comentário viralizou nos últimos dias, ao ponto de ser imortalizado em diferentes mídias e produtos — como memes, vídeos do TikTok, letras de música, bonés, camisetas e canecas. Mas, afinal, a quem se dirigia o insulto da estrela argentina captado pelas câmeras de televisão? A partida entre a seleção Argentina e da Holanda — que terminou com a vitória da primeira na disputa de pênaltis — foi marcada pela tensão nos minutos finais do tempo regulamentar, com o gol de Wout Weghorst que empatou o jogo em 2 a 2 para Holanda e levou a partida para a prorrogação. Fim do Matérias recomendadas Houve vários embates entre os jogadores de ambas as equipes e algumas brigas no final da partida em que os argentinos venciam até o minuto 100. Após o jogo, Messi deu uma entrevista ao canal TyC Sports, e antes de começar a responder as perguntas, aparece em um vídeo olhando para longe e dizendo: "Está olhando o que, bobo? Está olhando o que, bobo? Sai para lá, bobo, sai para lá." Nessas imagens, não se via a quem o capitão argentino estava se dirigindo. Mais tarde, um vídeo gravado de outra perspetiva revelou que Messi falava com Weghorst, autor dos dois gols da Holanda. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Parece que ao final da partida Weghorst abordou Messi, segundo o jogador holandês, com a intenção de apertar sua mão e pedir sua camisa, mas ele recusou. No segundo vídeo, Weghorst é visto discutindo com os argentinos Lautaro Martínez e 'Kun' Agüero, que está no Catar atuando como comentarista. De acordo com Agüero, enquanto o capitão argentino se preparava para dar a entrevista, Weghorst olhava para ele de longe e dizia em tom de provocação: 'É, Messi, é, Messi'. Foi quando a estrela argentina proclamou a agora célebre frase: "Está olhando o que, bobo?" Weghorst também deu sua versão do que aconteceu após o incidente em uma entrevista. "Eu queria apertar a mão dele depois da partida. Tenho muito respeito por ele como jogador de futebol, mas ele jogou minha mão para o lado e não quis falar comigo. Meu espanhol não é muito bom, mas ele disse palavras desrespeitosas para mim e isso me decepcionou, estou muito decepcionado", declarou o jogador.
2022-12-13
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63955515
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Vídeo, A nova erupção do perigoso Vulcão de Fogo na GuatemalaDuration, 1,00
O Vulcão de Fogo, na Guatemala, entrou em erupção no domingo (11/12), liberando uma gigantesca nuvem de cinzas e fumaça no ar. Próximo da cidade turística de Antigua, o vulcão é um dos mais ativos da América Central. Em junho de 2018, quase 200 pessoas morreram após erupções violentas – elas não foram evacuadas a tempo. Confira imagens da erupção atual no vídeo.
2022-12-12
https://www.bbc.com/portuguese/media-63947480
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Vulcão Láscar: coluna de fumaça de 6.000 metros leva a decreto de alerta no Chile
As autoridades do Chile decretaram um "alerta amarelo" neste domingo nos arredores do vulcão Láscar, depois que ele liberou uma coluna de fumaça e gases quentes que atingiu 6.000 metros de altura. O vulcão Láscar, localizado no norte do Chile, mais precisamente na região de Antofagasta, entrou em atividade na tarde de sábado, provocando também pequenos tremores de terra. Até este domingo, não havia registro de feridos ou danos a residências nas cidades vizinhas. No entanto, para proteger os habitantes das áreas circundantes, o Serviço Nacional de Geologia e Minas (Sernageomin) emitiu um alerta amarelo e fez uma reunião para determinar as ações preventivas a serem tomadas. O órgão observou que o vulcão mostrou atividade incomum nas últimas horas e está "instável". Fim do Matérias recomendadas Os moradores de Talabre, em Antofagasta, afirmaram ter notado as primeiras atividades do vulcão por volta do meio-dia de sábado. Apesar da gigantesca nuvem de fumaça que o Láscar emitiu, composta de cinzas vulcânicas e gases quentes, acredita-se que nenhuma casa tenha sido danificada. As autoridades estabeleceram um perímetro de isolamento, a cinco quilômetros da cratera do vulcão. Láscar, no norte do país, fica a 70 km de San Pedro de Atacama, um destino turístico popular para caminhadas e visitas ao deserto de Atacama, o lugar mais seco da Terra. Em abril de 1993, uma fina camada de cinzas do vulcão Láscar chegou à cidade de Porto Alegre, e encobriu carros e casas. Na época, o vulcão registrou uma de suas mais fortes erupções.
2022-12-11
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63938100
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'Ouvi minha mulher sendo estuprada e não pude fazer nada': a brutalidade das gangues que assola o Haiti
Na capital do Haiti, Porto Príncipe, se você não souber onde pisa, pode estar em sério risco. Gangues rivais estão destruindo a cidade, sequestrando, estuprando e matando à vontade. Os criminosos demarcam seu território com sangue. Atravesse uma zona controlada por uma gangue para outra e talvez você não consiga voltar com vida. Quem mora aqui carrega um mapa mental, dividindo essa cidade fervilhante em zonas verdes, amarelas e vermelhas. Verde significa livre de gangues, amarelo pode ser seguro hoje e mortal amanhã, e vermelho é uma área proibida. A área verde está diminuindo à medida que facções fortemente armadas aumentam seu controle sobre a capital haitiana. Grupos armados controlam — e aterrorizam — pelo menos 60% da capital e seus arredores, segundo grupos de direitos humanos. Eles cercam a cidade, controlando as estradas de entrada e saída. E a ONU diz que essas gangues mataram quase mil pessoas aqui entre janeiro e junho deste ano. A cidade de Porto Príncipe está aninhada entre colinas verdes e as águas azuis do Caribe. É tomada pelo calor e negligência. O lixo chega até os joelhos em alguns lugares — um símbolo pútrido de um país em decomposição. Não há chefe de estado (o último foi morto no cargo), nenhum parlamento em funcionamento (gangues controlam a área ao redor) e o primeiro-ministro apoiado pelos Estados Unidos, Ariel Henry, não foi eleito e é profundamente impopular. Na prática, o estado não exerce qualquer poder, pois as crises se sucedem. Quase metade da população — 4,7 milhões de haitianos — enfrenta fome aguda. Na capital, cerca de 20 mil pessoas enfrentam condições semelhantes à fome, segundo a ONU. É a primeira vez que isso acontece nas Américas. A cólera voltou a assombrar o país. Mas a maior praga são as gangues armadas. Fim do Matérias recomendadas A hora do rush pela manhã — entre 6h e 9h — é o horário de pico dos sequestros. Muitos são arrancados das ruas a caminho do trabalho. Outros são afetados na hora do rush da noite — das 15h às 18h. Cerca de 50 funcionários do nosso hotel no centro moram aqui porque é muito perigoso para eles irem para casa. Poucos saem após escurecer. O gerente diz que nunca sai do edifício. O sequestro é uma indústria em crescimento. Foram 1.107 casos notificados entre janeiro e outubro deste ano, segundo a ONU. Para algumas gangues, é uma grande fonte de renda. Os resgates podem variar de US$ 200 (R$ 1.050) a US$ 1 milhão (R$ 5,3 milhões). A maioria das vítimas volta viva — se o resgate for pago — mas não sem sofrimento. "Os homens são espancados e queimados com materiais como plástico derretido", diz Gedeon Jean, do Centro de Análise e Pesquisa em Direitos Humanos do Haiti. "Mulheres e meninas estão sujeitas a estupros coletivos. Essa situação estimula os parentes a encontrar dinheiro para pagar o resgate. Às vezes, os sequestradores ligam para os parentes para poderem ouvir o estupro sendo realizado pelo telefone". Andamos de carro blindado. Normalmente reservado às linhas de frente em zonas de guerra como a Ucrânia, em Porto Príncipe tamanha segurança é vital para afastar os sequestradores. É uma proteção que muitos aqui não podem pagar. O Haiti é o país mais pobre do hemisfério ocidental, propenso a desastres naturais e políticos. Ao nos deslocarmos para uma entrevista em uma manhã no fim de novembro, nos deparamos com uma cena de crime no subúrbio de classe média de Delmas 83. Cartuchos de bala espalhados pela calçada, brilhando à luz do sol, e um homem jaz morto em um beco, com o rosto no chão em uma poça de sangue. Ao lado dele, uma caminhonete 4x4 cinza batida contra um muro, um de seus lados cravado de buracos de bala. Uma AK-47 encontra-se no chão. Policiais fortemente armados cercam a picape, alguns com rostos cobertos e armas em punho. Espectadores se aglomeram em volta. Ninguém faz perguntas, mesmo que as tenha. Quando você vive na sombra das gangues, vale a pena ficar calado. A polícia nos disse que se envolveu em um tiroteio com um grupo de sequestradores, que saíram cedo na esperança de capturar a próxima vítima. O bando fugiu a pé, um deles deixando um rastro de sangue. O suposto sequestrador foi perseguido até o beco, onde foi morto. "Houve um tiroteio entre um policial e os bandidos. Um deles morreu", conta um policial veterano de 27 anos que não quis ser identificado. Ele diz que a situação na capital nunca esteve pior. Perguntei se as gangues eram imparáveis. "Nós as paramos. Hoje", responde. Do outro lado da cidade, naquela mesma manhã, François Sinclair, um empresário de 42 anos, ouviu uma rajada de tiros quando estava no trânsito. Presenciou homens armados assaltando os dois carros à sua frente, então pediu ao motorista que desse meia-volta. Mas ao tentarem fugir, foram avistados. "Do nada, fui baleado dentro do meu próprio carro e havia sangue por toda parte", ele nos conta, sentado em uma cadeira de rodas em um hospital gerido pela ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF). "Poderia ter levado um tiro na cabeça", diz ele, "e havia outras pessoas no carro também". Há um curativo em seu braço, justamente onde foi atingido por um disparo. Pergunto se ele já pensou em sair do país para fugir da violência. "Dez mil vezes", ele responde. "Não consegui nem ligar para minha mãe para contar o que aconteceu [comigo] porque ela é idosa. Do jeito que as coisas estão aqui, é melhor ir embora se puder." Essa é uma frase que ouvimos a todo o momento, mas para a maioria dos haitianos, não há para onde ir. As enfermarias do hospital de MSF estão cheias de vítimas de tiros, muitas delas atingidas por balas perdidas. Claudette, que perdeu parte da perna esquerda, me diz que nunca poderá se casar agora que está incapacitada. Deitada por perto está Lelianne, de 15 anos, que está fazendo palavras-cruzadas para passar o tempo. Ela foi baleada no estômago. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Minha mãe e eu saímos para comer alguma coisa", diz ela. "Enquanto estávamos fazendo o pedido, senti algo. Foi quando caí e gritei de agonia. Não esperava sobreviver. Costumo ouvir tiros mais longe da minha casa. Naquele dia eles chegaram mais perto." Mesmo o último presidente em exercício do Haiti não estava seguro em sua própria casa. Jovenel Moïse foi morto por pistoleiros em julho de 2021. A polícia culpou mercenários colombianos, dos quais cerca de 20 foram presos. Mas, mais de um ano depois, ninguém foi julgado aqui por puxar o gatilho ou ordenar o assassinato. Ativistas de direitos humanos dizem que quatro juízes entraram e saíram do caso. Está agora nas mãos de um quinto. A morte do presidente criou um vácuo de poder que as gangues têm competido para preencher — com a ajuda de comparsas. Especialistas dizem que os grupos armados têm ligações com figuras políticas corruptas — no poder e na oposição. Eles abastecem as gangues com armas, finanças ou proteção política. Em troca, as gangues fazem seu trabalho sujo, gerando medo, apoio ou instabilidade, conforme necessário. Empresários ricos também têm ligações com as gangues. "Sempre houve relações entre políticos e algumas gangues, localizadas principalmente em bairros pobres com grande número de eleitores. Mas desde a eleição em 2011 essas relações se institucionalizaram", diz James Boyard, especialista em segurança e professor de Relações Internacionais da Universidade Estadual do Haiti. "Elas [as gangues] são contratadas para criar violência política". Ativistas de direitos humanos dizem que existem cerca de 200 grupos armados em todo o país, mais da metade deles atuando na capital. Se um membro de gangue for preso, um telefonema de seus apoiadores pode libertá-lo sem demora — e com suas armas. Ativistas de direitos humanos dizem que há muitos crimes, mas nenhuma punição. "Não há Justiça", diz Marie Rosy Auguste Ducena, da Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos do Haiti (RNDDH). "Os juízes não querem trabalhar nesses casos. Eles são pagos pelas gangues. E alguns policiais são como um sistema de apoio para as gangues, dando-lhes carros blindados e gás lacrimogêneo." Outros policiais são membros de gangues, diz o ativista de direitos humanos Gedeon Jean. "Sabemos que há pelo menos dois policiais em exercício ou ex-policiais em cada quadrilha. Sabemos que carros com placas de polícia são usados para sequestros. Se a polícia, como instituição, está envolvida, não sabemos." Alguns policiais atuais e antigos têm sua própria gangue, chamada Baz Pilatos. Ativistas de direitos humanos dizem que ela controla parte da rua principal no centro de Porto Príncipe. O conluio da polícia não é um mistério. Os policiais ganham cerca de US$ 300 (R$ 1,6 mil) por mês, e alguns vivem em bairros controlados por gangues. Para eles, pode ser uma questão de sobrevivência, não de escolha. O que está acontecendo aqui — a cerca de duas horas de voo de Miami (EUA) — vai muito além da mera violência. É como se as gangues de Porto Príncipe estivessem envolvidas em um concurso de brutalidade, e qualquer pessoa nesta cidade de cerca de 1 milhão de habitantes possa se tornar a próxima vítima. Um homem magro na casa dos 30 anos — que não tem ligação com gangues — vem nos contar o que ele e sua esposa sofreram alguns meses atrás. Seu bairro é controlado por uma facções, e rivais começaram uma matança. Para sua segurança, não vamos mencionar a área ou o grupo armado envolvido. Quando ele começa a falar, continua por 13 minutos sem parar — como se não pudesse conter suas palavras ou sua angústia. "Disse a mim mesmo que os tiros estavam muito perto de nós e que deveríamos tentar sair", diz ele. "Mas eles já estavam invadindo a vizinhança. Voltei para dentro de casa com minha esposa. Estava com tanto medo que tremia. Não sabia o que fazer. Eles matam principalmente homens jovens. Minha esposa me escondeu debaixo da cama e me cobriu com uma pilha de roupas. Meu sobrinho estava escondido no guarda-roupa." Logo os homens entraram na casa, batendo na esposa e exigindo informações sobre os membros da gangue local. Quando o sobrinho tentou fugir, atiraram nele e o mataram. O marido permaneceu escondido e angustiado sem que nada pudesse fazer. "Queria fugir. Queria gritar. O que mais me dói é que quando estava debaixo da cama, não podia ver, mas podia ouvir aqueles homens estuprando minha esposa. Eles a estavam estuprando, e estava debaixo da cama, e não conseguia dizer nada." Depois disso, sua casa foi incendiada e ele e sua esposa fugiram em direções opostas. Eles ainda vivem separados, com amigos e parentes, mas esperam que possam voltar a morar com o filho pequeno. O que aconteceu "é uma cicatriz que atinge o corpo e a alma", descreve o homem. Sua esposa agora está grávida, e eles não sabem se ele é o pai ou se é um dos agressores. De qualquer forma, nos diz que vai aceitar a criança e dar-lhe o seu nome. "O que eu suportei não foi nada", diz ele. "Há uma senhora que teve apenas um filho. Eles cortaram a garganta dele na frente dela. O menino não tinha nenhuma ligação com gangues." Marido e mulher foram roubados de quase tudo, incluindo o amor pelo país. "O Haiti foi apagado de nossos corações", diz ele. "Qualquer chance que tivermos, iremos embora." Após dizer isso, ele desmorona, seu peito arfando enquanto chora. Os testemunhos que reuni aqui estão entre os piores que já ouvi em mais de 30 anos como correspondente estrangeira, fazendo reportagens de mais de 80 países. E parece que isso é apenas uma pequena amostra da tragédia que assola esse país. Para as gangues de Porto Príncipe, não há limites. Em poucos dias, conheci três vítimas de estupro coletivo — a mais nova tinha apenas 16 anos. Ela e uma parente foram estupradas pelos mesmos agressores, que depois ameaçaram queimá-las vivas dentro de casa. A outra mulher estava grávida de seis meses na época em que foi atacada. Enquanto era abusada, seu marido foi executado. Meses depois, ela segue buscando o corpo dele. Cada vez mais, o estupro é usado como arma pelas gangues. Eles têm como alvo mulheres e meninas que vivem em áreas controladas por seus rivais. Durante uma guerra territorial em julho no bairro mais pobre do Haiti, o Cité Soleil, ativistas dizem que mais de 300 pessoas foram assassinadas — a maioria dos corpos foi carbonizada — e pelo menos 50 mulheres e meninas estupradas por gangues. A ONG Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos do Haiti (RNDDH), que documentou os estupros em Cité Soleil, diz que muitas sobreviventes "se arrependem de estarem vivas". Vinte delas foram estupradas na frente de seus filhos. Seis viram seus cônjuges serem mortos antes de serem estupradas por vários homens. A maior parte de Cité Soleil é controlada pela mais poderosa facção de Porto Príncipe — a G-9 e seus aliados. Fontes locais dizem que a gangue tinha laços estreitos com o presidente assassinado e seu partido no poder. Sua especialidade é a extorsão. O G-9 bloqueou o principal terminal de combustíveis da cidade em setembro, paralisando o país por quase dois meses e desencadeando uma crise humanitária. Seu líder é um ex-policial chamado Jimmy Cherizier, apelidado de "Churrasco", que dá ocasionalmente entrevistas a jornalistas. Solicitamos uma entrevista por intermediários, mas não tivemos resposta. Ele pode querer falar menos hoje em dia porque foi recentemente submetido a sanções pelo Conselho de Segurança da ONU, acusado de ameaçar a paz e a estabilidade do Haiti. Os Estados Unidos e o Canadá recentemente sancionaram dois políticos haitianos, incluindo o atual presidente do Senado, Joseph Lambert, por supostamente colaborar com as gangues. Fontes dizem que as sanções estão gerando algum impacto, porque os políticos que usam as gangues agora querem se esconder. Quando Jean Simson Desanclos chegou à rua deserta na periferia de um subúrbio repleto de facções, ele não encontrou nada de sua família exceto a carroçaria queimada da Suzuki preta da família. Os restos mortais carbonizados de sua esposa e duas filhas já haviam sido levados para o necrotério. Josette Fils Desanclos, de 56 anos, estava levando uma de suas filhas Sarhadjie, de 24, para a universidade, e a outra, Sherwood Sondje, fazia compras para seu aniversário. Estava prestes a completar 29 anos. As duas meninas estudaram Direito como o pai. Eram suas "princesas". "No dia 20 de agosto, perdi tudo", diz ele. "E não foi só minha família. Ao todo, oito pessoas foram mortas naquele dia. Um massacre." Desanclos acredita que sua esposa e filhas resistiram a uma tentativa de sequestro e foram baleadas por uma famosa facção chamada 400 Mawazo, que estava expandindo seu território. "Minha suspeita é que foram eles", diz. Os assassinatos aconteceram nos arredores de uma área chamada Croix des Bouquet, que já estava sob o controle da quadrilha. Desanclos, de fala mansa e roupas elegantes, é advogado e ativista de direitos humanos. Ele agora é um homem desolado — ansiando pelas vozes que nunca mais ouvirá. "Você está sempre esperando uma ligação de sua filha dizendo 'papai isso' ou 'papai aquilo'. Perdi o amor da minha vida e as duas filhas que criamos neste país difícil. É como se você fosse um multimilionário e de repente, você perde tudo." Apesar do risco para si mesmo, ele busca justiça para sua esposa e filhas. "A família é uma coisa sagrada. Não lutar por justiça seria traí-los", diz ele. "Minhas filhas sabem que seu pai é um lutador, que nunca abandona ninguém, muito menos a própria família. O risco é enorme, mas o que mais posso perder agora?" Ele quer que o mundo entenda uma coisa sobre o Haiti de hoje — que as gangues não têm limites. "Criminosos tomaram um país como refém", diz ele. "Eles fazem suas próprias leis. Eles matam. Eles estupram. Eles destroem. Gostaria que minhas filhas fossem o último sacrifício, as últimas mulheres jovens mortas." Ele fala com dignidade e convicção, mas sabe que seu desejo pode não ser atendido. No Haiti, são as gangues que detêm o poder, e não o Estado. O primeiro-ministro Ariel Henry não consegue nem chegar ao seu escritório porque grupos armados controlam a área. Fizemos vários pedidos de entrevista com ele, mas todos foram negados. O governo do Haiti — ou o que sobrou dele — emitiu "um pedido de socorro" para uma força internacional para ajudar a restaurar a ordem. Fala-se nas Nações Unidas sobre a necessidade de uma força armada não pertencente à ONU, mas ninguém parece ter pressa em liderá-la, ou mesmo em participar. Intervenções estrangeiras têm má fama e um histórico ruim aqui. A última missão da ONU é lembrada por alegações de abuso sexual e por trazer cólera para o Haiti, por meio de forças de paz da ONU do Nepal. A epidemia matou cerca de 10 mil pessoas. Existem opiniões distintas aqui sobre a ideia de soldados estrangeiros atuando no país. Há apoio de alguns empresários — que usaram grupos armados, mas agora querem que eles sejam controlados — e daqueles presos em áreas controladas por gangues. Por outro lado, há oposição de líderes da sociedade civil que dizem que o Haiti precisa agir sozinho. Enquanto a comunidade internacional debate o futuro do Haiti, massacres continuam acontecendo. Fontes locais dizem que grupos armados estão expandindo brutalmente seu território porque não houve eleições. Quando os políticos vêm em busca de votos — em áreas controladas por gangues — têm que subornar os pistoleiros. A última onda de violência ocorreu na entrada norte de Porto Príncipe em 30 de novembro. Segundo a imprensa local, testemunhas oculares dizem ter visto homens armados — de uma gangue em ascensão — tentando se firmar e informaram a polícia. Os pistoleiros retaliaram à noite, matando pelo menos 11 pessoas. Alguns dos corpos foram carbonizados. Os limites aqui são mais uma vez redesenhados em sangue. Quem mora na cidade precisa atualizar o mapa mental, pois mais uma área está passando do verde para o vermelho. Colaboraram com esta reportagem Wietske Burema, Göktay Koraltan e André Paultre
2022-12-11
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63874735
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O crânio com perfuração retangular que confirmou que incas realizavam cirurgias complexas
Em 1864, o arqueólogo e jornalista americano Ephraim George Squier viveu uma experiência insólita. Ele segurou nas mãos a primeira evidência inquestionável de algo que os cientistas há muito tempo julgavam impossível: a neurocirurgia antiga. A descoberta foi um acidente — e se deveu, em certa medida, ao cocô de pássaros. Com a eclosão da Guerra Civil dos Estados Unidos em 1861, garantir fertilizantes para o cultivo de alimentos se tornou uma necessidade estratégica para o então presidente Abraham Lincoln. E o melhor fertilizante do mundo na época era encontrado nas montanhas de algumas ilhas da América do Sul, que durante séculos haviam acumulado guano, um substrato que tem origem nas fezes de animais e é rico em nitrogênio e fósforo. Fim do Matérias recomendadas Foi por causa do guano que, em 1864, Lincoln enviou uma delegação ao Peru, da qual Squier fazia parte. Garantido o suprimento de fertilizante, o diplomata disse à mulher que voltasse sozinha para Nova York. Apaixonado por arqueologia, ele decidiu ficar no país para se dedicar a pesquisas. Depois de um ano viajando, percorrendo desde o litoral até as florestas, e escalando os picos dos Andes, ele chegou a Cusco, uma "altiva, porém isolada cidade de montanha". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A viagem de Lima a Cusco era muito mais demorada e incômoda do que a viagem da capital peruana a Nova York, escreveu Squier no livro Peru: Exploração e Incidentes de Viagem na Terra dos Incas. Depois de descrever detalhadamente os magníficos sítios arqueológicos que encontrou na região, assim como a cidade, sua história, população e aspecto moderno, ele se deteve em um lugar: "Vou me referir especialmente à residência da senhora Zentino, senhora que residia na Praça de São Francisco, cuja atenção aos estrangeiros era proverbial, e que estabeleceu uma honrosa reputação como colecionadora do melhor e mais valioso museu de antiguidades no Peru." "Esta casa seria chamada de 'palácio' até em Veneza, se não fosse por sua arquitetura, certamente por sua extensão. Na amplitude de seus cômodos e em seus ricos e variados conteúdos e decoração, louvavelmente poderia ser comparada com algumas das mais belas do Grande Canal." A "señora Zentino" era María Ana Centeno de Romainville (1816/1817-1874), uma mulher enriquecida pela "leitura frequente" e que começou a colecionar objetos desde jovem, com uma "paixão que beirava a loucura", segundo conta a pioneira educadora peruana Elvira García y García em seu livro A Mulher Peruana Através dos Séculos (1925). Esse fascínio a levou a reunir um tesouro com peças de diferentes lugares, a ponto de ter um verdadeiro "museu histórico-arqueológico, por meio do qual era possível conhecer toda a história do Peru em suas diferentes épocas". Além de antiguidades pré-colombianas feitas de pedra, cerâmica e metais preciosos, havia desde um mosaico romano e objetos japoneses até pássaros empalhados e obras misteriosas. Afinal, seu objetivo não era "criar um museu arqueológico — mas, sim, um de curiosidades", escreveu García y García. O "palácio" da senhora Zentino era um ponto de encontro parecido com os salões que existiam na Europa do Iluminismo. Era onde a elite cusquenha e convidados estrangeiros proeminentes se reuniam para falar sobre ciência, arte e literatura. Um deles foi Ephraim Squier, e foi numa dessas ocasiões que colocou as mãos em uma peça inusitada que mudaria a história da cirurgia. "De certa forma, a relíquia mais importante na coleção da sra. Zentino é o osso frontal de uma caveira, do cemitério inca no Vale de Yucay", escreveu o americano. O que chamou sua atenção na peça foi um buraco retangular de 15x17mm. Não era natural, pensou: a natureza não costuma trabalhar em ângulos retos. Ele também achou ter visto sinais de crescimento de novos ossos, indicando que a pessoa não apenas estava viva durante a perfuração, como havia sobrevivido a ela. Um pensamento surpreendente lhe ocorreu: será que o buraco poderia ser o resultado de uma cirurgia, uma abertura feita no crânio para fins curativos? Ele concluiu que não havia dúvida de que estava lidando com "um caso claro de trepanação", uma técnica antiga de perfuração craniana. "A senhora Zentino gentilmente me cedeu a peça para pesquisa. Ela foi analisada pelos melhores cirurgiões dos Estados Unidos e da Europa, sendo considerada por todos como a evidência mais notável do conhecimento de cirurgia por parte de povos nativos já descoberta neste continente. A trepanação é um dos processos cirúrgicos mais difíceis", descreveu Squier em seu livro. Mas não foi tão fácil assim chegar a essa conclusão. O relato do americano, publicado em 1877, omitiu um episódio que ocorreu logo após seu retorno, em uma reunião da Academia de Medicina de Nova York. Ao ver o crânio, os presentes se recusaram a acreditar que alguém havia sobrevivido a um procedimento de trepanação conduzido por um indígena peruano. A ideia de que os antigos incas pudessem realizar uma cirurgia tão delicada sem anestesia ou ferramentas de metal parecia simplesmente absurda. A taxa de sobrevivência de trepanações realizadas pelos cirurgiões mais habilidosos nos melhores hospitais da época na região raramente chegava a 10%. O que eles não levaram em conta é que o percentual era semelhante ao observado em outros tipos de procedimento. A teoria microbiana, que apontou para micro-organismos como causadores de várias enfermidades e revolucionou o tratamento e diagnóstico de doenças, ainda não vigorava nessa época, e muitos pacientes acabavam morrendo de infecção. Squier não se deu por vencido. Decidiu levar o crânio para a França, para que fosse examinado pela maior autoridade europeia em crânio humano, Paul Broca, professor de patologia externa e cirurgia clínica na Universidade de Paris e fundador da primeira sociedade antropológica. Broca ficou mundialmente famoso em 1861, ao descobrir o primeiro ponto de linguagem conhecido no cérebro humano, agora chamado de área de Broca, o primeiro caso de localização cerebral de uma função psicológica. Ao examinar o buraco retangular, o cientista concluiu que ele havia sido feito de forma deliberada. Depois de analisá-lo ao microscópio, encontrou evidências de crescimento ósseo ao redor da perfuração — o que indicava que o paciente havia sobrevivido à operação. Mesmo diante do prestígio de Broca, a Sociedade Antropológica de Paris se mostrou cética quanto a suas conclusões. Mas alguns anos depois, sua interpretação seria finalmente confirmada, com a descoberta, na região central da França, de crânios com orifícios arredondados, cicatrizes nas bordas e discos ósseos do mesmo tamanho (talvez usados ​​como amuletos) pertencentes ao Neolítico — o que confirmava que, já naquele período, se praticava a trepanação com sucesso. Os cientistas não tiveram escolha a não ser considerar a possibilidade de que haviam subestimado civilizações mais antigas a esse respeito. O crânio inca estimulou uma mudança de postura nos antropólogos, que começaram a vasculhar suas próprias coleções e examinar buracos que haviam sido interpretados no passado como resultado de ferimentos de guerra, acidentes ou ataques de animais. E encontraram mais crânios trepanados, alguns dos quais datados de 8.000 a.C. Hoje sabe-se que era uma prática difundida e que diferentes culturas ao redor do mundo usavam uma variedade de ferramentas para cortar crânios: pedras afiadas, ossos de animais, ferros em brasa e até dentes de tubarão. No caso do Peru, em locais de enterro de incas eram encontradas pequenas facas curvas de metal usadas em cerimônias, — chamadas tumi —, que podem ter sido usadas para realizar o procedimento. Estudos indicam ainda que médicos da Antiguidade conseguiam inclusive prevenir infecções. Uma pesquisa feita em 66 crânios antigos trepanados mostrou que apenas três tinham sinais de infecção. O resultado é semelhante ao de um relatório produzido em Londres na década de 1870. Enquanto 75% dos pacientes neurocirúrgicos na cidade inglesa morriam, na Nova Guiné, onde os cirurgiões ainda perfuravam crânios com métodos tradicionais, a taxa de mortalidade era de 30%. O que não se sabe ao certo é por que culturas antigas praticavam a trepanação, já que não se encontrou nada escrito sobre o procedimento. Broca sempre argumentou que eles trepanavam os crânios para liberar o que acreditavam ser espíritos malignos que estavam presos dentro do cérebro. Ele afirmava que essa associação era comum, especialmente em casos envolvendo ataques epiléticos ou alucinações. Esse foi certamente o caso na Europa, mas não há evidências de que tenha ocorrido também em um passado mais distante. Ephraim Squier e outros arqueólogos sempre questionaram as teorias que remetem ao sobrenatural. Eles argumentavam que os antigos neurocirurgiões estavam fazendo exatamente o que pareciam estar fazendo: tratando ferimentos na cabeça, principalmente de quedas e resultantes de combates. A pesquisa moderna aponta mais nessa direção, sobretudo no caso dos incas. Crânios com perfurações foram encontrados mais em homens do que em mulheres, o que é interpretado como resultado do fato de que havia mais guerreiros do sexo masculino do que feminino. Esses orifícios geralmente ficam no lado esquerdo do crânio, onde um oponente destro atacaria com sua arma. As trepanações teriam sido uma forma de limpar as feridas e evitar que o sangue se acumulasse. A superstição pode ter desempenhado um papel nas primeiras trepanações. Mas também é possível que aqueles antigos neurocirurgiões usassem o procedimento para salvar a vida de pessoas, como seus colegas ainda fazem hoje.
2022-12-10
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63849364
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Por que economia da Venezuela vai crescer 12% em 2022 após quase 10 anos de queda
A Venezuela será um dos países com maior crescimento econômico em 2022 na América Latina, e a expectativa é que registre uma das principais expansões do Produto Interno Bruto (PIB, soma de bens e serviços) também em 2023, segundo a Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal). Segundo a organização ligada às Nações Unidas, a economia venezuelana crescerá 12% neste ano e 5% no ano que vem. Para efeitos de comparação, a economia brasileira deverá crescer 2,6% neste ano e 1% em 2023, informou a Cepal. A Argentina, por sua vez, tem previsão de crescimento de 3,9% neste ano e de 1% no próximo ano. A economia venezuelana perde a liderança neste ranking apenas para a da Guiana, que também fica na América do Sul, e que em 2022 terá um salto de 52% e em 2023 outro pulo de 30%. Nos dois casos, da Venezuela e da Guiana, o petróleo é o principal responsável pelos resultados, segundo analistas — a Guiana descobriu imensas reservas dessa matéria-prima recentemente. Países vizinhos entre si e que fazem fronteira com o Brasil, a Venezuela possui uma das maiores reservas de petróleo do mundo e tradição neste ramo. Na Guiana, por sua vez, a história da perfuração de petróleo é recente e tem contribuído para o forte incremento de seu PIB há dois anos. Outra diferença é o tamanho da população dos dois países — a da Venezuela é de cerca de 28,5 milhões de habitantes e a da Guiana não chega a 1 milhão de habitantes (aproximadamente 800 mil habitantes). Em entrevista à BBC News Brasil, o economista Ramón Pineda, da Divisão de Desenvolvimento Econômico da Cepal, com sede em Santiago, no Chile, disse que essa "é a primeira vez" que a economia venezuelana cresce desde 2013-2014. Fim do Matérias recomendadas "E é um crescimento de 12%. Em 2023, também estamos antecipando que vai ocorrer um crescimento da atividade econômica de 5% e com recuperação da produção petrolífera", diz Pineda. Segundo ele, apesar da previsão de queda nos preços do petróleo, a expansão do ano que vem seria factível diante "da retirada ou suavização de algumas sanções (sanções econômicas)" contra a Venezuela e da maior atividade no setor de petróleo. "Esse incremento permitiria compensar a queda nos preços do petróleo em 2023", disse. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Neste ano, os pilares da expansão de 12% da economia venezuelana são o incremento de cerca de 20% na produção petrolífera em 2022 na comparação com 2021 e os preços do produto. "O aumento nos preços do petróleo gera uma forte quantidade de recursos tanto para a gestão do fisco como para financiar as importações venezuelanas. Importações no que se refere a insumos e também a bens finais. Isto contribuiu para diminuir as carências de combustíveis e de insumos que permitiram que a agroindústria e a indústria farmacêutica também tenham se fortalecido durante 2022", diz o economista da Cepal. Com mais dinheiro, o Banco Central da Venezuela (BCV) e o governo do presidente Nicolás Maduro têm mais recursos para as importações necessárias para fazer a economia — e o cotidiano dos venezuelanos — funcionar. "Por exemplo, no caso dos combustíveis, e especialmente da gasolina, também podem ser realizadas importações com os recursos provenientes da atividade petrolífera", disse Pineda. Na semana passada, o governo dos Estados Unidos autorizou a empresa Chevron a retomar, após três anos, as operações de produção e exportação de petróleo venezuelano. O acordo seria de seis meses, com possibilidade de renovação, e envolveria a estatal venezuelana PDVSA, segundo especialistas que analisaram a negociação. O anúncio do entendimento e do alívio das sanções americanas foi feito após a retomada do diálogo entre o governo Maduro e a oposição venezuelana, durante o qual os dois lados concordaram em criar um fundo, que seria gerido pelas Nações Unidas, para financiar programas de alimentação, saúde e educação na Venezuela. Outro fato que favorece o "menor isolamento" da Venezuela é a retomada do diálogo do governo Maduro com a Colômbia, após a posse de Gustavo Petro, em agosto passado em Bogotá. Mas, apesar destes entendimentos e do crescimento econômico deste ano, os indicadores sociais e o cotidiano dos venezuelanos seguem sendo um desafio. O analista político e econômico venezuelano Luis Vicente León, da consultoria Datanálisis, assinala que os venezuelanos percebem a melhoria econômica no país quando comparam a situação atual com "o pior quadro mais recente" — a 'hipercrise' de 2018, quando havia amplo desabastecimento e longas filas. "Mas ainda hoje muita gente está vivendo com falta de energia, de água e de capacidade de consumir", analisa Léon. E acrescenta: "Agora, o país não está bem porque perdemos 75% do PIB em sete anos e estamos longe da recuperação", diz. De acordo com levantamento de sua consultoria, "somente 40% da população entendem que o país está bem ou muito bem". Em entrevista a uma rádio local, o economista Asdrubal Oliveros, da consultoria Ecoanalítica, de Caracas, disse que o crescimento econômico existe e é impulsionado, principalmente, pelo setor privado. Ele, porém, ressalvou: "Estávamos no nível 12 abaixo de zero e agora estamos no 8. O crescimento econômico é real, mas ainda não é percebido pela maioria dos venezuelanos". Na Venezuela, a falta de energia elétrica e de combustíveis está entre os principais desafios enfrentados pela população do país, segundo economistas locais. A Associação Venezuelana de Energia Elétrica, Mecânica e Profissionais Afins (AVIEM) observou que nos últimos 20 anos, a "Venezuela era um país totalmente eletrificado (97% de cobertura) e tinha um sistema robusto que era exemplo na América Latina. Agora, vive às voltas com um sistema elétrico em colapso operacional, deteriorado, difícil de ser recuperado", segundo informação recente da emissora alemã DW. O economista venezuelano Daniel Cardenas, professor de macroeconomia da Universidade Central da Venezuela (UCV) e da Universidade Metropolitana de Caracas, diz à BBC News Brasil que a produção de petróleo entre 2021 e 2022, passou de 300 mil barris diários para cerca de 700 mil barris por dia. No entanto, esse número não é nada comparável à produção nos anos 1990, quando o país chegou a produzir mais de 3 milhões de barris diários. Cardenas acredita que o desempenho da economia venezuelana poderia continuar melhorando, a partir do maior alívio nas sanções econômicas contra o país. Mas, em sua visão, os "determinantes" do crescimento venezuelano ainda são "muito frágeis". Ele cita a média salarial dos venezuelanos que estaria entre US$ 120 e US$ 130 (R$ 630 e R$ 680). "Não estamos falando de salário mínimo. Estamos falando de média salarial. E o salário mínimo aqui é em bolívares (a moeda nacional), e está em torno dos US$ 12 e muito longe dos cerca de US$ 300 a US$ 400 pagos em outros países da América Latina. Mas as empresas não pagam esses US$ 12 porque ninguém aceitaria trabalhar", disse. Cardenas opina que o consumo nas casas dos venezuelanos ainda é muito baixo, apesar da "modesta recuperação" recente. "Com a inflação ainda alta é difícil que o consumo suba", afirmou. Cardenas calcula suas estimativas sobre a economia do país a partir de indicadores como o da arrecadação fiscal, a produção industrial e do setor comercial, já que outros dados oficiais não são divulgados periodicamente, ressalva. Para ele, a economia venezuelana deverá crescer cerca de 9% neste ano de 2022 — longe dos 12% previstos pela Cepal. "As taxas são altas e inesperadas, mas o crescimento surge depois da pandemia e das quarentenas", diz. As estimativas do Banco Central da Venezuela (BCV) foram as mais otimistas até o momento. O BCV informou que a economia do país registraria expansão de 18% neste ano, sendo o maior da região. No início de 2022, a Venezuela deixou, oficialmente, o período de hiperinflação que marcou seus quatro anos seguidos, a partir de 2017 e chegando a superar quatro dígitos anuais. Nesta semana, porém, o Observatório Venezuelano de Finanças (OVF) informou que a alta de preços de novembro foi de 21,9% e que o acumulado neste ano chega a quase 200% (195,7%). A expectativa era que o país pudesse manter a inflação de um dígito mensal que chegou a ser registrada no início de 2022. Medida em dólares, a alta de preços neste ano chega a 50%, segundo escreveu o economista Asdrubal Oliveros em suas redes sociais. Os desafios venezuelanos ainda são "enormes", conclui Luis Vicente León.
2022-12-10
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63873293
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Por que Peru, com 6 presidentes em 4 anos, é tão difícil de governar
O Peru é uma "máquina de moer presidentes". Pedro Castillo foi o último a cair, mas divide com seus antecessores mais recentes o pouco tempo que durou no cargo. Sua sucessora, a recém-empossada Dina Boluarte, torna-se a primeira mulher presidente da história do Peru, mas também a sexta chefe do Estado peruano desde 2018. Além de Boluarte e Castillo, também governaram o país nos últimos 4 anos Pedro Pablo Kuczynski, Martín Vizcarra, Manuel Merino e Francisco Sagasti. A precariedade é tanta que muitos peruanos se distanciaram da política e de suas turbulências permanentes. Fim do Matérias recomendadas O que torna o Peru tão ingovernável? Uma constante se repetiu nos últimos anos: a batalha entre o Congresso e o presidente termina com a derrota deste último, que acaba deixando o poder. Castillo foi o mais recente. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Numa aparente tentativa de impedir a votação da moção de vacância contra ele no Congresso, Castillo surpreendentemente anunciou a dissolução do Congresso e a criação de um governo de exceção. Mas, poucas horas depois, ignorando o anúncio presidencial, os parlamentares se reuniram e decretaram a destituição do presidente, que ficou nas mãos da Polícia e do Ministério Público, acusado ​​de rebelião. A situação decorre da Constituição Política do Peru, aprovada em 1993, que estabelece que a Presidência da República fica vaga por "incapacidade temporária ou permanente do presidente, declarada pelo Congresso". Isso abriu as portas para uma espécie de espada de Dâmocles que paira permanentemente sobre a cabeça do presidente e que pode cair sobre ele assim que os 87 votos exigidos forem reunidos no Congresso. Foi o que aconteceu agora com Castillo, com Vizcarra em 2020 e quando Alberto Fujimori fugiu para o Japão em 2000, e o Congresso teve que declarar sua destituição. Essa peculiaridade constitucional explica por que os presidentes peruanos têm uma fragilidade tão grande no cargo. Os sucessivos Congressos perceberam que o processo de vacância lhes dá a possibilidade de demitir o presidente e não hesitaram em usá-lo. A ponto de haver especialistas que apontam que o sentido original foi distorcido. Omar Cairo, professor de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica do Peru, aponta que o Peru é o único país do mundo que tem o instituto da vacância por incapacidade moral. "Mas a incapacidade moral, que está nas Constituições peruanas desde 1839, aludia no século 19 à incapacidade mental do presidente", disse à à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC. "Agora, sempre que os congressistas considerarem o presidente imoral, eles podem destituí-lo a seu critério apenas com a força dos votos, e esse termo 'imoral' é uma coisa muito efervescente hoje em dia." E a isso se soma a crescente fragmentação experimentada pelas forças políticas peruanas nos últimos anos. Cairo explica que "o Parlamento não é formado por blocos parlamentares sólidos, mas por uma multidão de pequenos grupos que respondem mais a interesses particulares do que a programas ou ideologias, e isso torna muito difícil para os presidentes obter apoio no Congresso". Dessa forma, o sistema peruano se configura como uma raridade no mapa dos sistemas políticos latino-americanos, onde predominam os regimes presidencialistas. "O Peru não é um regime parlamentarista como o britânico ou o espanhol, em que o primeiro-ministro ou o presidente do governo é eleito pelos deputados no Parlamento, mas o presidente é eleito diretamente pelos votos do povo nas eleições, enquanto a existência da vacância permitiu um mecanismo discricionário para depor o presidente que não existe em outros países da nossa região." O presidente peruano mantém alguns poderes que não o deixam totalmente à mercê do Congresso e também ajudam a explicar por que o Executivo e o Legislativo vivem em permanente tensão no Peru. Segundo a Constituição, o presidente pode dissolver o Congresso se este negar duas vezes a confiança no Executivo. A tentativa final de Castillo de permanecer no poder incluiu anunciar a dissolução do Congresso, entre outras medidas excepcionais consideradas inconstitucionais pela maioria dos analistas e pelo Ministério Público e que levaram à sua prisão. Desta forma, ele imitou Alberto Fujimori, um ex-presidente duramente criticado por Castillo e muitos de seus seguidores que, em 1992, ordenou o fechamento do Congresso. Em novembro passado, Castillo assegurou que o Congresso havia negado a ele confiança por sua posição contra uma lei de referendos no país. Uma segunda recusa lhe teria permitido dissolver o Parlamento. Mas o Congresso negou que mesmo aquela suposta primeira negação de confiança tivesse ocorrido e apelou para a Corte Constitucional, que concordou provisoriamente com ela. Foi a última disputa entre o Congresso e Castillo antes da batalha final que terminou com ele fora da Presidência. E, mesmo com uma nova presidente, esta briga dificilmente terá sido a última. A nova presidente, Dina Boluarte, inaugurou seu mandato pedindo uma "trégua" no Congresso e a construção de "um governo de unidade nacional". Mas, embora hoje a maioria dos congressistas tenha votado para derrubar Castillo e torná-la a nova chefe de Estado, não está claro se ela terá o apoio necessário para formar um governo estável. Boluarte não tem uma bancada que a apoie no Legislativo. Para Cairo, sua Presidência corre o risco de ser marcada pela mesma incerteza de seus antecessores. "Com a vacância em termos tão vagos quanto atualmente, é provável que ele sofra o mesmo destino."
2022-12-08
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63908709
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3 pontos para entender caos político que causou queda e prisão de Castillo no Peru
O Peru mergulhou no caos político na quarta-feira (07/12) após a decisão do então presidente, Pedro Castillo, de dissolver o Congresso e estabelecer um "governo de exceção" — que, segundo ele, governaria por meio de decretos-lei até que um novo Parlamento com poderes constituintes elaborasse uma nova Constituição. O anúncio do mandatário foi imediatamente recebido com acusações de que ele estava organizando um "golpe de Estado". A decisão do presidente foi questionada não só pela oposição, mas também por outras autoridades do Estado — incluindo a Polícia e as Forças Armadas —, e gerou uma onda de renúncias de altos funcionários, incluindo vários ministros e embaixadores. Enquanto isso, os membros do Congresso adiantaram a sessão que estava marcada para debater e votar uma moção de vacância, algo similar a um impeachment, contra Castillo, que acabou resultando em sua destituição do cargo. Após seu anúncio, Castillo compareceu perante o departamento de polícia de Lima, onde foi preso. Fim do Matérias recomendadas "O Ministério Público ordenou esta tarde a detenção de Pedro Castillo Terrones pelo suposto crime de rebelião, previsto no artigo 346 do Código Penal, por violação da ordem constitucional", informou a Procuradoria. Pouco depois, a até então vice-presidente do Peru, Dina Boluarte, tomou posse como a primeira presidente mulher do país. A seguir, apresentamos três pontos-chaves para você entender o caos político que assola o país. Castillo assumiu a presidência em julho de 2021. Desde então, passou por diversas crises de governo que o obrigaram a substituir seus ministros em mais de uma ocasião. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A sessão de quarta-feira foi a terceira tentativa da oposição no Congresso de tirá-lo do poder, declarando sua saída do cargo por "incapacidade moral permanente" para governar. Na véspera, Castillo havia acusado a oposição de querer "dinamitar a democracia" e voltado a se declarar inocente das acusações de corrupção contra ele. A convocação do Congresso para discutir a destituição de Castillo, que estava prevista antes do anúncio do governo de exceção, se baseava na suposta incompetência do presidente para governar, já que em um ano e meio de gestão ele havia nomeado cinco gabinetes e cerca de 80 ministros. Há várias acusações de corrupção contra o ex-presidente que envolvem membros de sua família, mas que — em alguns casos — também o atingem diretamente. Na verdade, em outubro, o Ministério Público apresentou uma denúncia constitucional contra Castillo, a quem acusa de liderar "uma organização criminosa" para enriquecer com contratos do Estado e obstruir investigações. No entanto, durante a sessão de quarta-feira para destituí-lo do cargo, pouco depois de Castillo anunciar a dissolução do Congresso e o estabelecimento de um governo de exceção, o argumento mais citado pelos parlamentares para votar contra ele foi a necessidade de preservar a democracia e o Estado de direito. Para destituir Castillo, era necessário o voto de dois terços dos 130 membros do Congresso, cerca de 87 parlamentares — e a moção foi aprovada com o apoio de uma folgada maioria de 101. Após a aprovação da moção de vacância, coube à então vice-presidente, Dina Boluarte, assumir a presidência do país até o final do mandato presidencial, em julho de 2026. Boluarte foi vice na chapa de Castillo, lançada pelo partido Peru Libre, e ocupou o cargo de ministra do Desenvolvimento e Inclusão Social até 25 de novembro. Quando Castillo anunciou sua decisão de dissolver o Congresso na quarta-feira, Boluarte se distanciou publicamente dele, afirmando que se tratava de uma violação da ordem constitucional. Com a queda de Pedro Castillo e a ascensão de Dina Boluarte, o Peru já contabiliza seis presidentes da República desde 2018. Em março daquele ano, aconteceu a renúncia do então presidente Pedro Pablo Kuczynski, que havia sido eleito nas eleições de 2016 e escolheu renunciar ao cargo antes que o Congresso realizasse uma votação — que o mandatário considerava perdida — para destituí-lo. Kuczynski foi substituído por seu vice, Martín Vizcarra, que foi retirado do cargo pelo Parlamento em 2020. Tanto Kuczynski quanto Vizcarra estão sendo investigados pelo Ministério Público, mas até o momento não há processos judiciais contra eles. Vizcarra foi substituído pelo parlamentar Manuel Merino, que renunciou cinco dias depois de assumir a presidência. No lugar dele, o Congresso empossou Francisco Sagasti, que governou o país até a eleição de Castillo. Analistas sugerem que, além dos possíveis casos de corrupção em que esses ex-presidentes podem estar envolvidos, as recorrentes mudanças na presidência do país também se explicam pela fragmentação política e pela estrutura institucional do país, que facilita que tanto o Congresso quanto o presidente possam anular as faculdades do outro poder. "O que aconteceu hoje é o fim da rivalidade permanente entre Pedro Castillo e o Congresso do Peru. É mais um exemplo do difícil equilíbrio e da luta permanente em que a atual estrutura constitucional do Peru coloca essas duas instituições", avalia Guillermo Olmo, correspondente da BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, no Peru. "Nos últimos anos, já vimos quantos presidentes, com os Congressos com os quais tiveram que conviver, tiveram uma relação em que um está permanentemente visando o outro. O Congresso tem o mecanismo de vacância, e o presidente conta com o mecanismo do fechamento do Congresso. Isso dificulta muito a governabilidade do país", acrescenta. Castillo compareceu na tarde de quarta-feira perante o departamento da Polícia Nacional do Peru (PNP), onde foi colocado sob custódia acusado de rebelião. Antes de Castillo ser detido, o presidente do Tribunal Constitucional, Francisco Morales, o acusou de violar "flagrantemente" a Constituição do país e anunciou que apresentaria uma queixa-crime contra o agora ex-presidente. Por outro lado, o chanceler do México, Marcelo Ebrard, disse que seu país poderia receber Castillo se ele solicitar. "Temos uma política favorável ao asilo. Se ele pedir, não devemos nos opor, mas ele não pediu", disse à imprensa. Já a nova presidente, Dina Boluarte, fez um apelo às forças políticas do país, em seu discurso de posse, para que promovam o diálogo e o entendimento. "Peço uma trégua política para instalar um governo de unidade nacional. Esta grande responsabilidade deve ser assumida por todos", declarou. "Cabe a nós conversar, dialogar, chegar a um acordo, algo tão simples quanto inviável nos últimos meses. Por isso, convoco um amplo processo de diálogo entre todas as forças políticas representadas ou não no Congresso." O correspondente da BBC News Mundo no Peru, Guillermo Olmo, destaca que, por enquanto, o que aconteceu na quarta-feira pôs fim à presidência de Castillo, mas não é o fim da crise política no Peru. "Isso supõe o fim da presidência de Castillo, mas não o fim da crise política no Peru. O Congresso ainda está muito dividido e, segundo as pesquisas, é tão impopular quanto o ex-presidente. E não há um acordo à vista que vá além do fato de que Castillo tinha que ser removido. Não está claro se há um consenso sobre qual governo e qual programa seguir", resume Olmo.
2022-12-08
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63900456
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Vídeo, Como Peru chegou a dia caótico que culminou com presidente presoDuration, 5,46
O presidente do Peru, Pedro Castillo, foi destituído pelo Congresso nesta quarta-feira (07/12) após anunciar a dissolução da Casa e o estabelecimento de um "governo de exceção". Tudo aconteceu depois que Castillo fez o anúncio inesperado - que foi descrito como um "golpe de estado" por representantes de todo o espectro político - poucas horas antes de uma sessão do Congresso em que seria votada uma moção de vacância, algo similar a um impeachment, contra ele. Após o anúncio, o Congresso acabou declarando a exoneração do presidente. A Casa determinou que a vice-presidente Dina Boluarte assumisse a Presidência. Neste vídeo, nossa repórter Mariana Sanches explica como o país chegou a esse ponto – uma turbulenta história recente recheada de crises, impeachments e prisões de presidentes.
2022-12-08
https://www.bbc.com/portuguese/media-63900596
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Quem é Dina Boluarte, primeira mulher a assumir Presidência do Peru
A vice-presidente do Peru, Dina Boluarte, assumiu a Presidência do país nesta quarta-feira (07/12), depois que o Congresso aprovou a destituição de Pedro Castillo do cargo. Mais cedo, ele havia anunciado o estabelecimento de um "governo de exceção" e a dissolução do Congresso, mas não teve apoio e acabou sendo removido do cargo após uma votação dos parlamentares. Assim, Boluarte se torna a primeira mulher na presidência do Peru. O mandato dela deve se estender até 2026, a menos que convoque eleições antecipadas. Quando Castillo anunciou sua decisão de dissolver o Congresso, Boluarte demarcou distância dele e descreveu o ato como "inconstitucional". "Rejeito a decisão de Pedro Castillo de levar à frente a quebra da ordem constitucional com o fechamento do Congresso. É um golpe de Estado que agrava a crise política e institucional que a sociedade peruana terá que superar com o estrito cumprimento da lei", escreveu Boluarte em suas redes sociais. Fim do Matérias recomendadas Pouco depois de Castillo ser deposto e preso, Boluarte foi empossada como presidente perante o Congresso peruano. Em sua primeira mensagem à nação, a presidente novamente rejeitou o que chamou de "tentativa de golpe" de Castillo, afirmando que o ato "não encontrou eco nas instituições democráticas e nas ruas". "Peço uma trégua política para instalar um governo de unidade nacional. Esta grande responsabilidade deve ser assumida por todos", escreveu na mensagem. "Cabe a nós conversar, dialogar, chegar a um acordo, algo tão simples quanto inviável nos últimos meses. Por isso, convoco um amplo processo de diálogo entre todas as forças políticas representadas ou não no Congresso." Boluarte anunciou que a sua primeira medida é fortalecer o combate à corrupção nas instituições do Estado, para o que pediu o apoio do Ministério Público Federal para "enfrentar sem meias medidas as instituições corruptas". Dina Boluarte nasceu em Apurímac no ano de 1962, e hoje tem 60 anos. Em meados de 2021, a chapa dela e de Castillo pelo partido Peru Libre venceu as eleições em segundo turno. Advogada de profissão, Boluarte fez mestrado em Direito Notarial e Registral na Universidade San Martín de Porres. Desde 2007, ela trabalhou como funcionária do órgão Registro Nacional de Identificação e Estado Civil (Reniec) e já foi diretora assistente da Ordem dos Advogados de Lima. Nas eleições municipais de 2018, Boluarte foi candidata a prefeita de Surquillo pelo partido Peru Libertário, mas teve apenas 2.040 votos e ficou em nono lugar. Além da vice-presidência, durante o breve governo de Pedro Castillo, Boluarte também ocupou o cargo de ministra do Desenvolvimento e Inclusão Social. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A ascensão de Dina Boluarte como a primeira mulher presidente do Peru é, na opinião do cientista político Gonzalo Banda, um marco histórico para o país — mas infelizmente ocorre em um momento traumático. "Não é um momento muito feliz para este importante evento acontecer. Deveria ter ocorrido em um período menos traumático", avalia. Para o analista, Boluarte tem credenciais para assumir o cargo, apesar de não ter muita experiência política. "Boluarte assumiu o cargo de ministra por mais de um ano, um cargo de alto risco porque não se costuma durar muito nele. Esse tempo permitiu que ela aprendesse como se faz política no Peru. Além disso, ela tem liderança maior que Castillo e mais capacidades políticas". No entanto, Banda alerta que a nova presidente não terá vida fácil se não conseguir o apoio dos partidos que têm maioria no Congresso. "Temos um parlamento com maioria na oposição ao partido Peru Libre. Ela precisa dos votos dos congressistas dos quais se distanciou e do resto das forças para conseguir algum progresso." O cientista político não acredita que a ampla crise política peruana termine com a chegada da nova presidente, porque podem surgir investigações e questionamentos por ela ter feito parte do governo Castillo. No entanto, o analista afirma que Boluarte na Presidência pode representar uma trégua, caso ela consiga formar um gabinete plural.
2022-12-07
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63897141
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Presidente do Peru é detido após tentar dissolver Congresso
O presidente do Peru, Pedro Castillo, foi detido e destituído pelo Congresso nesta quarta-feira (07/12) após anunciar a dissolução da Casa e o estabelecimento de um "governo de exceção". Tudo aconteceu depois que Castillo fez o anúncio inesperado — que foi descrito como um "golpe de estado" por representantes de todo o espectro político — poucas horas antes de uma sessão do Congresso em que seria votada uma moção de vacância, algo similar a um impeachment, contra ele. Após o anúncio, o Congresso acabou aprovando com 101 votos a vacância da Presidência, ou seja, a destituição de Castillo. O argumento do Parlamento, que é unicameral, foi a "permanente incapacidade moral" dele para exercer a Presidência. Foi a terceira vez que o Congresso votou a destituição de Castillo, mas desta vez a votação superou os 87 votos necessários, que não tinham sido alcançados nas sessões anteriores. Fim do Matérias recomendadas Segundo a mídia local, após a sua destituição, Castillo compareceu à delegacia de polícia de Lima, onde foi preso. A Polícia Nacional do Peru anunciou em um tuíte, excluído posteriormente, que "em cumprimento de nossas faculdades e atribuições descritas no artigo 5 do DL nº 1267 da Lei de Polícia Nacional do Peru, as tropas do PNP intervêm junto ao ex-presidente Pedro Castillo". O analista Alfredo Torres, do instituto Ipsos Peru, afirmou que "fracassou a tentativa de golpe de Estado por parte de Castillo e ganhou a democracia. Todas as instituições rejeitaram o golpe, incluindo a Justiça, o Ministério Público e o Tribunal Constitucional e as Forças Armadas e a Polícia Nacional". "O golpe de Castillo foi uma manobra desesperada para tentar conservar o poder porque existem várias denúncias, com depoimentos, de corrupção contra ele", disse Alfredo Torres, da Ipsos, de Lima. Algumas horas antes, de terno e gravata, com a faixa presidencial e sem o chapéu que o caracterizou durante sua campanha presidencial, Castillo assegurou, em mensagem à nação, que sua decisão de dissolver o Congresso foi uma resposta ao "obstáculo" imposto pelo Poder Legislativo ao seu governo. "Em resposta à reivindicação cidadã em todo o país, tomamos a decisão de estabelecer um governo de emergência visando a instauração do Estado de direito e da democracia", afirmou, antes de anunciar as medidas que a sua decisão implicava. Eram elas: Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "O modelo econômico baseado em uma economia social de mercado será escrupulosamente respeitado", afirmou o presidente. "A propriedade privada será respeitada e garantida." Os portais peruanos de notícias também qualificaram o gesto de Castillo como um golpe de Estado. "Golpe de Estado: Pedro Castillo anuncia fechamento do Congresso", publicou o El Comercio, de Lima, crítico da gestão presidencial. Na mesma linha, o La República publicou: "Pedro Castillo dá golpe de Estado". Castillo assumiu a Presidência em julho de 2021. Desde então, enfrentou diversas acusações de corrupção e foi obrigado a substituir seus ministros em diversas ocasiões. Após o anúncio do presidente, anunciaram renúncia os ministros da Economia, Justiça, Trabalho e Relações Exteriores, bem como o embaixador do Peru nas Nações Unidas. O advogado de Castillo também anunciou que estava renunciando ao cargo de representante de seu cliente. Pouco depois, as Forças Armadas e a Polícia Nacional emitiram um comunicado conjunto no qual anunciaram: "Qualquer ato contrário à ordem constitucional estabelecida constitui uma violação da Constituição e gera descumprimento por parte das Forças Armadas e da Polícia Nacional do Peru". A Corte Constitucional, entre outras instituições, qualificou o governo Castillo como "usurpador". Após o anúncio, os Estados Unidos também enviaram uma mensagem instando a reversão da medida de fechamento do Congresso. A embaixadora americana no Peru, Lisa Kenna, escreveu em sua conta oficial do Twitter que os "EUA rejeitam categoricamente qualquer ato extraconstitucional do presidente (Pedro) Castillo para impedir o Congresso de cumprir seu mandato". Kenna escreveu ainda que os "EUA instam veementemente o presidente Castillo a reverter sua tentativa de fechar o Congresso e permitir que as instituições democráticas do Peru funcionem de acordo com a Constituição. Encorajamos o público peruano a manter a calma durante este período de incerteza". O governo argentino também reagiu. O Ministério das Relações Exteriores da Argentina divulgou em suas redes sociais que "lamenta e expressa profunda preocupação com a crise política que enfrenta a irmã República do Peru e pede a todos os atores políticos e sociais que resguardem as instituições democráticas, o Estado de Direito e a ordem constitucional". Professor primário rural de 51 anos, Castillo foi eleito em 2021 após uma eleição acirrada contra a candidata de direita e herdeira do ex-presidente Alberto Fujimori, Keiko Fujimori. O pleito foi tão acirrado que demorou mais de um mês para que Castillo fosse proclamado vencedor — Fujimori acusou a eleição de fraudulenta e abriu uma batalha judicial. Castillo é um ex-rondero (membro das rondas camponesas, organizações de defesa comunais), professor primário rural desde 1995 — com mestrado em psicologia educacional— e importante dirigente docente. Nascido em Cajamarca, região serrana do norte do Peru, ele ganhou notoriedade em 2017 ao liderar uma greve de professores em várias regiões do país que durou 75 dias. Os manifestantes exigiram, entre outras coisas, um aumento salarial para professores peruanos. Três anos depois, em 2020, anunciou sua candidatura presidencial representando o Peru Libre, que se define como um partido da esquerda marxista, depois que o líder da sigla, Vladimir Cerrón, foi condenado a três anos e nove meses de prisão. Durante a campanha, ele propôs uma série de reformas estruturais que implicam, entre outras coisas, em uma mudança total do modelo econômico peruano. Para isso, Castillo promoveu a ideia de criar uma nova Constituição Política por meio de uma assembleia constituinte que atribuiria ao Estado um papel ativo como regulador do mercado. Castillo costumava viajar a cavalo e tinha sua base de apoio no meio rural peruano, que conquistou apelando à sua origem humilde e às grandes desigualdades que existem no Peru. Assim, conseguiu captar o descontentamento das classes mais pobres, especialmente as do interior do país, historicamente esquecidas pelo centralismo da capital, Lima. Mas apesar de suas tendências mais à esquerda, ele se posicionava contrariamente ao aborto e ao casamento entre pessoas do mesmo sexo e favoravelmente a uma "linha dura" na segurança. Com reportagem de Mariana Sanches, de Washington, e Marcia Carmo, de Buenos Aires
2022-12-07
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63895783
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EUA condenam 'governo de exceção' anunciado por presidente do Peru
A embaixadora dos Estados Unidos no Peru, Lisa Kenna, escreveu em sua conta oficial do Twitter que os "EUA rejeitam categoricamente qualquer ato extraconstitucional do presidente (Pedro) Castillo para impedir o Congresso de cumprir seu mandato". Kenna escreve ainda que os "EUA instam veementemente o presidente Castillo a reverter sua tentativa de fechar o Congresso e permitir que as instituições democráticas do Peru funcionem de acordo com a Constituição. Encorajamos o público peruano a manter a calma durante este período de incerteza". A manifestação de Kenna, endossada por Brian A. Nichols, Secretário Adjunto para Assuntos do Hemisfério Ocidental, do Departamento de Estado dos EUA, acontece nesta quarta-feira (07/12) pouco depois que o presidente peruano, Pedro Castillo anunciou, em rede nacional de televisão, sua decisão de fechar o Congresso e estabelecer um "governo de exceção". Castillo fez o anúncio inesperado - que foi descrito como um golpe de Estado por representantes de todo o espectro político - poucas horas depois que uma moção de vacância, algo similar a um pedido de impeachment, foi discutida contra ele, em meio a inúmeras acusações de corrupção contra seu governo. Em uma mensagem de 10 minutos, o presidente disse que suas decisões são uma resposta ao "obstáculo" imposto pelo Poder Legislativo à sua administração. Fim do Matérias recomendadas O governo Biden tem tentado fortalecer a democracia tanto nos EUA quanto na América Latina. No ano passado, pouco depois de assumir a Casa Branca, o presidente americano convidou mais de cem países, entre eles o Peru, para um encontro sobre os desafios da Democracia ao redor do mundo. Já a reunião do Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos (OEA), com sede em Washington, foi temporariamente suspensa após o anúncio de Castillo no Peru. A sessão interrompida discutia o dia internacional das pessoas com deficiência. Ainda não há posicionamento oficial do órgão. A OEA atuou recentemente na observação eleitoral das eleições municipais no Peru. O Conselho Permanente se reunirá amanhã (8/12) para discutir a situação do país. Em seu anúncio sobre a decisão de estabelecer um "governo de exceção", Castillo anunciou as medidas que serão tomadas. São elas: "O modelo econômico baseado em uma economia social de mercado será escrupulosamente respeitado", afirmou o presidente. "A propriedade privada será respeitada e garantida." Após o anúncio, alguns legisladores do Congresso anunciaram que permaneceriam na legislatura. Os parlamentares marcaram uma sessão para a tarde desta quarta-feira em que devem discutir uma moção de vacância que, se aprovada, afastaria o presidente de suas funções. Castillo assumiu a Presidência em julho de 2021. Desde então, enfrentou diversas acusações de corrupção e foi obrigado a substituir sua pasta de ministros em diversas ocasiões. Após o anúncio do presidente, os ministros da Economia, Justiça, Trabalho e Relações Exteriores anunciaram suas renúncias. O comandante do Exército, general Walter Córdova Alemán, também entregou seu cargo em mensagem enviada ao Ministério da Defesa.
2022-12-07
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Cristina Kirchner: por que vice-presidente da Argentina foi condenada a 6 anos de prisão
Um tribunal penal da Argentina condenou, nesta terça-feira (06/12), a vice-presidente do país, Cristina Fernández de Kirchner, a seis anos de prisão pelo crime de administração fraudulenta durante os 12 anos que ela e seu falecido marido, o ex-presidente Néstor Kirchner, governaram o país — de 2003 a 2015. No entanto, a vice-presidente foi absolvida da acusação de chefiar uma associação ilegal. A sentença inabilita a ex-presidente a ocupar cargos públicos durante a vida toda. É a primeira vez na história do país que um vice-presidente no cargo é julgado e condenado. Entretanto, a decisão não significa que Kirchner irá imediatamente para a prisão, já que recursos devem levar o processo para a Câmara de Cassação e para a Corte Suprema, o que pode levar anos. Fim do Matérias recomendadas Kirchner também goza de privilégios que a impedem de ser presa até 10 de dezembro de 2023, quando termina seu mandato como vice-presidente. Ela poderá concorrer a um novo cargo nas eleições do ano que vem, o que pode estender sua imunidade. Ela nega as acusações e afirma ser vítima de lawfare, uma espécie de perseguição a inimigos políticos por meio da Justiça. Nesse sentido, ela sempre se comparou ao ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que irá assumir o Planalto em 1º de janeiro de 2023. Lula passou cerca de um ano e meio na prisão por uma condenação de que posteriormente foi anulada. A ex-presidente foi acusada e condenada por ter favorecido um sócio e mais dez funcionários kirchneristas em obras rodoviárias milionárias. Confira abaixo detalhes sobre o caso, o que diz a defesa de Cristina Kirchner e o que deve ocorrer com ela. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A ex-presidente foi condenada pela condução de obras públicas na província patagônica de Santa Cruz, que Néstor Kirchner governou por mais de uma década antes de se tornar presidente e onde a vice-presidente ainda mantém residência. Os promotores Diego Luciani e Sergio Mola disseram que os Kirchner "instalaram e mantiveram dentro da administração nacional e provincial de Santa Cruz uma das mais extraordinárias matrizes de corrupção que, lamentavelmente e infelizmente, se desenvolveram no país". A acusação assegurou que, dias antes de Nestor assumir a presidência, em 2003, o casal criou uma construtora, a Austral Construcciones, à qual foram posteriormente direcionadas a maior parte das obras rodoviárias realizadas em Santa Cruz. Segundo os promotores, os Kirchner colocaram um sócio e amigo da família no comando da construtora, o qual atuou como testa de ferro: Lázaro Báez, ex-gerente do Banco de Santa Cruz que, segundo o Ministério Público, não tinha experiência no campo da construção. Báez, que no ano passado foi condenado a 12 anos de prisão por lavagem de dinheiro, também foi condenado no julgamento decidido nesta terça-feira, junto com outros onze ex-funcionários dos Kirchner. Um deles é o ex-secretário de Obras Públicas José López, que já está detido por outros casos de corrupção. Em 2016, ele foi filmado levando sacolas cheias de dólares a um convento. Segundo Luciani e Mola, a Austral Construcciones foi escalada em licitações para construir 51 obras — 79% das obras na província de Santa Cruz durante o período em que os Kirchner governaram o país.Mas apenas duas foram concluídas a tempo e metade nunca foi concluída. Além disso, os promotores afirmaram que a empresa foi favorecida com superfaturamentos milionários."Todas as licitações foram uma farsa. Havia um cartel organizado pelo Estado nacional", acusaram, estimando que o esquema de corrupção prejudicou o Estado em mais de US$ 1 bilhão, dinheiro que eles pediram que fosse confiscado dos bens dos condenados. Em suas alegações, os promotores disseram que as irregularidades em favor de Báez se multiplicaram em 2007 e 2011, anos de eleições nacionais — que o kirchnerismo venceu. Luciani e Mola garantiram que a organização ilícita buscava arrecadar fundos para as campanhas. A Austral Construcciones deixou de operar em dezembro de 2015, quando Cristina Kirchner deixou o poder. Para os promotores, isso demonstra que havia um vínculo entre a construtora de Lázaro Báez e os Kirchner. O principal argumento da defesa de Cristina Kirchner é que o Ministério Público não produziu qualquer prova — nenhum documento ou mensagem — que mostrasse direta e pessoalmente o vínculo da ex-presidente com a concessão de obras a Lázaro Báez. "Entre a Presidência da Nação e as obras denunciadas, existem doze instâncias administrativas de natureza nacional e provincial", explicou a vice-presidente na sua conta no Twitter, onde refutou muitos dos argumentos apresentados pelos promotores. A defesa também sustentou que a Justiça não tem competência para julgar como um governo eleito democraticamente distribui o investimento público. Kirchner afirmou que um chefe de Estado não pode ser responsabilizado pela forma como as licitações públicas são conduzidas. "Quem executa o orçamento é o chefe de gabinete, não o presidente ou a presidente da nação", disse a atual vice-presidente, acrescentando que o Congresso aprovou os investimentos nas obras ao sancionar a lei orçamentária, inclusive com alguns votos de aliados do ex-presidente Mauricio Macri. "O investimento em obras públicas rodoviárias em Santa Cruz foi fortemente justificado pelo déficit demonstrado por sua rede rodoviária em 2003".Cristina Kirchner defendeu ainda que as 51 obras em questão já tinham sido investigadas pela Justiça da província, que não encontrou indícios de corrupção. O Tribunal Oral formado por Giménez Uriburu, Jorge Gorini e Andrés Basso anunciará os argumentos de sua sentença em 9 de março de 2023, após o recesso judicial de verão. Nessa ocasião, os advogados da vice-presidente poderão recorrer da decisão perante a Câmara de Cassação. Se esta instância ratificar a sentença, a defesa ainda pode recorrer à Corte Suprema. Enquanto isso, Cristina Kirchner estará livre e poderá concorrer às eleições gerais de outubro de 2023. Se sua sentença for mantida após os recursos e ela estiver ocupando algum cargo no Executivo ou Legislativo, para ir à prisão, primeiro ela deve ser afastada por meio de um processo político. Caso isso aconteça, Kirchner poderá, eventualmente, cumprir pena em prisão domiciliar, já que no próximo mês de fevereiro ela completará 70 anos — idade a partir da qual o benefício pode ser demandado. Além do caso Vialidad, o primeiro a ir a julgamento, a ex-presidente também está sendo processada em outro grande caso, conhecido como o dos "cadernos da corrupção". Nele, Cristina Kirchner é acusada de receber propina de empresários em obras públicas. O caso foi levado a julgamento em 2019, mas o processo — no qual também são acusados ​​ex-funcionários e vários empresários, inclusive um primo de Mauricio Macri — ainda não tem data para começar.
2022-12-06
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Por que imigração está causando 'crise humanitária sem precedentes' em Nova York
"Vim para Nova York sonhando com um futuro melhor." É o que diz sorrindo Beruska*, de 22 anos, sentada ao lado de uma sacola cheia de doações de alimentos e produtos de higiene em uma sala do Museu Metropolitano de Arte de Nova York, mais conhecido como MET. É um dos museus mais famosos do mundo, onde anualmente é realizado o Met Gala, evento beneficente que reúne celebridades internacionais com seus vestidos extravagantes. Beruska, por sua vez, é venezuelana e está grávida de 9 meses. Há dois anos, ela saiu do Equador caminhando rumo aos Estados Unidos. No trajeto, ela passou sete dias na selva, foi roubada no México, atravessou o Rio Bravo (conhecido como Rio Grande nos EUA), e chegou ao território americano no início de novembro — sem nada. Fim do Matérias recomendadas "Parecia que ia morrer ali. De tanto chorar, comecei a sentir dor no estômago", diz ela à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, na sala aquecida do museu, enquanto a temperatura do lado de fora chegava perto de 0 °C. Agora, ela dorme em um dos hotéis — alguns com até quatro estrelas — designados pela prefeitura de Nova York para receber os mais de 22 mil migrantes que chegaram à cidade desde abril passado: muitos são venezuelanos fugindo da crise econômica em seu país; outros estão tentando escapar da insegurança na América Central. Em outubro, o prefeito de Nova York, Eric Adams, declarou estado de emergência quando os abrigos começaram a lotar devido ao grande número de migrantes — que, em sua maioria, depois de cruzar a fronteira no Texas ou no Arizona, chegaram de ônibus a Nova York. Esses ônibus são custeados por organizações beneficentes e, agora, sobretudo, por governos estaduais republicanos que querem dar um golpe político ao transferir o desafio da imigração para territórios democratas, como Nova York. A cidade chegou a montar uma tenda gigante na Randalls Island durante quase um mês, como forma de ampliar a oferta de alojamento. A cidade de Nova York enfrenta "uma crise humanitária sem precedentes", informou o gabinete do prefeito em um comunicado ao prorrogar o estado de emergência em 21 de novembro. "Se os solicitantes de asilo continuarem chegando no ritmo atual, a população total dentro do sistema de abrigos ultrapassará 100 mil pessoas no próximo ano", alertou. Trata-se de um número nunca antes registrado nos abrigos da cidade, segundo as autoridades locais. Historicamente, a cidade de Nova York sempre foi um farol para os migrantes. É o que mostra seu símbolo: a Estátua da Liberdade. No século 19, a estátua deu as boas-vindas a milhares de migrantes de vários continentes que buscavam na cidade americana um novo lar. Mas essa nova onda de migrantes que cruzam a fronteira sul dos Estados Unidos está colocando à prova sua reputação de "cidade-santuário": as autoridades locais se recusam a aplicar as duras políticas de migração do governo federal. Por lei, Nova York deve dar refúgio a quem solicitar. "Não estamos dizendo a ninguém que Nova York pode abrigar todos os migrantes da cidade. Não estamos incentivando as pessoas a enviar oito, nove ônibus por dia. Estamos dizendo que, como cidade-santuário e com direito à moradia, vamos cumprir nossa obrigação", declarou Adams em setembro. Mais de dois milhões de migrantes foram detidos na fronteira entre os Estados Unidos e o México no ano passado, um número recorde que preocupa politicamente o governo de Joe Biden. A maioria dos que tentam cruzar a fronteira a pé são venezuelanos, nicaraguenses e cubanos, segundo dados do Departamento de Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA (CBP, na sigla em inglês). Mais de 150 mil venezuelanos conseguiram entrar em território americano pela fronteira com o México durante o último ano fiscal, um aumento de 293% em relação ao ano anterior. É por isso que, em meados de outubro, o governo de Joe Biden decretou que "os venezuelanos que entrarem nos Estados Unidos sem autorização por áreas localizadas entre os portos de entrada serão devolvidos ao México". O CBP afirma que, desde que essa medida foi aplicada, houve uma queda significativa de 35% de setembro (33.804) a outubro (22.044) no número de venezuelanos que tentavam cruzar a fronteira. O governo também criou um sistema para que 24 mil venezuelanos cheguem legalmente, nos moldes do sistema criado para receber os ucranianos que fogem da invasão russa. Em geral, as autoridades processam os migrantes na fronteira — eles são então liberados e autorizados a se movimentar pelos EUA enquanto aguardam o processo judicial de solicitação de asilo, que em alguns casos pode levar anos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Beruska é um dos migrantes que conseguiu atravessar a fronteira pelo Texas e chegar a Nova York. "Estou bem no hotel. Tenho comida e um lugar para dormir", diz ela agradecida, enquanto carregava um bolo de Ação de Graças doado aos mais de 250 imigrantes que participaram do evento de "Dia da Comunidade" no MET. Mas ela sabe que a ajuda que recebe hoje não vai durar para sempre. Ela conta que fez uma consulta médica em um hospital por causa da gestação quando chegou a Nova York. E foi orientada a voltar quando sentisse dor. Mas ela não sabe quais são os próximos passos em relação à sua cobertura de saúde, um dos grandes desafios para os recém-chegados ao país. Apesar do seu otimismo e do fato de o marido ter acabado de arrumar um emprego em uma rede de fast food, Beruska se pergunta se essa renda será suficiente para criar e sustentar sua filha em uma cidade com tantos obstáculos para que migrantes sem documentação possam conseguir trabalho, seguro de saúde e um teto. "Uma pergunta: vocês trouxeram roupas masculinas?", indaga um rapaz durante uma noite fria em Manhattan, em meados de novembro. A pergunta é dirigida a Yajaira "Yaya" Saavedra, que chegou pouco antes com dois carros carregados de caixas e sacolas na esquina do hotel The Row, uma das acomodações ocupadas por migrantes na área de Hell's Kitchen, em Nova York. A mulher de 34 anos é dona do La Morada, um restaurante familiar de comida mexicana no Bronx. Mas ela diz que metade de sua operação é dedicada agora à distribuição de doações. "Desde abril, estamos ajudando as pessoas que vêm para Nova York. Às terças e quintas, saímos para distribuir. Recebemos doações, mas compramos a maioria", afirma à BBC News Mundo. Junto a um grupo de colaboradores, ela distribui alimentos e principalmente roupas nos hotéis e abrigos em que os migrantes estão hospedados, porque a maioria deles chega só com a roupa do corpo. "Esta é uma das cidades mais ricas do mundo. Se eu, com o pouco dinheiro que tenho, ajudo, creio que o governo pode fazer mais. A cidade deve oferecer moradia às pessoas. Isso é desumano", diz ela, apesar da ajuda prestada pela cidade. "Este país não pode existir sem migrantes", acrescenta "Yaya", que chegou aos Estados Unidos cruzando a pé a fronteira há três décadas. Nessa mesma esquina, na 8ª avenida com a rua 44, surge Sara, de 17 anos, com um bebê de pouco mais de 1 ano. Ela saiu da Venezuela caminhando com seu companheiro. "Vim porque quero dar um futuro melhor para minha filha. Também estou procurando um futuro para mim, quero estudar", ela afirma, enquanto recebe algumas mudas de roupa para a filha. "Graças a Deus estou em Nova York. Aqui poderei alcançar meu objetivo", diz esperançosa. Ela explica que passou alguns dias no Texas, mas sabia que receberia mais ajuda na Big Apple. Osiris Pulgar, de 21 anos, está em busca de uma comida quente — e compartilha da mesma opinião. "Vim para Nova York porque sei que aqui eles priorizam a ajuda mais do que em outros estados", diz ela, depois de passar um tempo com a filha de 4 anos e o companheiro no Texas, onde não se sentiam bem-vindos. "Estou procurando um emprego para fazer qualquer coisa, faxina, qualquer coisa. Não consigo encontrar. Preciso dos papéis e aprender inglês. Mas não vou desistir. Quero dar à minha filha o que não pude ter", afirma. Os papéis a que Osiris se refere é o pedido de asilo nos Estados Unidos. Após ser aprovado, garantiria a ela permissão para trabalhar. "Tenho esperança e fé de que as coisas vão melhorar aqui", diz ela. "Não hesitaria em me mudar para outro estado se conseguisse um emprego." Pelo menos uma dúzia de migrantes com quem a BBC News Mundo conversou em Nova York repetem com otimismo que buscam um futuro melhor do que o que seus países podem oferecer. E pretendem atingir seus objetivos trabalhando. Eles também reiteram que arrumar emprego não é fácil. "Vamos progredir trabalhando", diz confiante Lorena, uma colombiana de 43 anos que chegou a Nova York com a filha Loraine, de 12 anos, que é venezuelana. Ela conta que a filha mais nova ficou na Venezuela com a avó, porque não tinha dinheiro para levar toda a família. E reza para que possa trazê-la logo. "Vamos ver como fazemos com os papéis. Temos um agendamento [com a migração] para 2024", diz ela. Karen Barrolleta, de 41 anos, conta que chegou com a família da Venezuela há cerca de três meses — e mora com o marido e a filha, Eliexy Ramos, de 14 anos, em um dos hotéis destinados a migrantes perto da Times Square, em Manhattan. "Muita gente chega aqui em busca do sonho americano, mas o sonho americano não existe. Não vão te receber com uma casa ou um carro. Se você não trabalhar, ninguém vai te dar de mão beijada. Tudo na vida que vale a pena custa e se conquista trabalhando", enfatiza. Nova York é a cidade mais cara dos Estados Unidos — 8,5 milhões de pessoas vivem aqui; só em Manhattan são cerca de 1,7 milhão. O índice de custo de vida é 237,8% mais alto do que a média nacional, de acordo com o Council for Community and Economic Research. Tudo é caro na cidade, desde comida até transporte público e moradia. A renda média per capita é de quase US$ 77 mil. A taxa de desemprego da cidade com ajuste sazonal foi de 5,9% em outubro de 2022, uma alta de 0,3% em relação a setembro e uma queda de 2% em relação a outubro do ano passado. A taxa de desemprego nacional está próxima de 3,7%. Conseguir emprego não é uma tarefa fácil para os migrantes. E é muito mais complicado sem documentação ou treinamento. Por exemplo, no setor de construção em Nova York, os trabalhadores precisam de dois cursos que custam entre US$ 100 e US$ 400. "Oferecemos cursos gratuitos. Não é uma autorização de trabalho, mas é uma preparação para que possam entrar nessa rede de construção", explica Yesenia Mata, diretora executiva da La Colmena, organização que ajuda e representa a comunidade e os trabalhadores migrantes em Staten Island, em Nova York. "A missão é garantir que os trabalhadores e as trabalhadoras migrantes possam, por meio da educação, se defender sozinhos no trabalho", explica. Desde abril passado, Mata conta que o fluxo de migrantes aumentou significativamente. E que o sotaque venezuelano predomina nas consultas que são feitas todas as manhãs na sede da organização. "Temos uma lista de espera de 300 pessoas para os cursos", acrescenta. "A necessidade do trabalhador migrante que está aqui há algum tempo é muito diferente da necessidade de quem acaba de chegar", pontua Mata, contando que a organização introduziu cursos para os migrantes que chegaram nos últimos meses, para ajudá-los a se inserir na sociedade de Nova York. "Muitos dizem que o migrante não é forte. Mas uma pessoa que passou por tanto para chegar aqui é muito forte, resiliente. Os migrantes precisam de uma oportunidade para se superar", afirma. Enquanto isso, na sala do MET, Beruska não perde o sorriso caloroso, apesar de tudo o que passou para chegar a Nova York. "Valeu a pena", repete em voz alta. "Saí do Equador porque tinha muita criminalidade, e da Venezuela, por causa da crise que já se conhece. Espero em Nova York começar uma nova vida com meu marido e minha princesa, que vai nascer em breve", diz ela. "Estou pensando em chamar minha filha de Victoria. Chegar aqui é uma vitória." *Vários entrevistados preferiram não revelar o sobrenome por medo de represálias.
2022-12-05
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Melhor que Messi?: o desconhecido craque argentino que impressionou Maradona e Pelé
Ele era um número cinco com uma canhota de camisa 10. Jogou apenas quatro partidas na primeira divisão. Em três desses jogos, saiu lesionado. Na primeira divisão, jogou em apenas dois clubes. Foi uma lenda. Fim do Matérias recomendadas Esta é a história de Tomás Felipe "el Trinche" Carlovich, o homem a quem Diego Armando Maradona deu uma camisa com a dedicatória "você foi melhor que eu". El Trinche Carlovich nasceu em 19 de abril de 1946 em Rosário, uma das cidades mais futebolísticas da Argentina, berço de Lionel Messi, entre outros. Sempre disse que nunca soube por que recebeu o apelido que inevitavelmente substituiria seus dois nomes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast El Trinche jogou toda a sua vida em clubes de divisões inferiores, incluindo o time do seu coração, o Central Córdoba de Rosário. "O amor que me deram aqui me toca e sobra", costumava dizer quando perguntavam a ele por que não jogava no exterior, segundo o jornal argentino Clarín. Foi definido de várias maneiras: "personagem de conto", "ídolo fantasma", "boêmio habilidoso". Da sua história nasceram um livro, uma peça de teatro e dezenas de reportagens jornalísticas. "Carlovich personifica o espírito amador e romântico do futebol, aquele estágio onírico antes do profissionalismo", diz à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, o jornalista argentino Alejandro Caravario, autor do livro Trinche. Un viaje por la leyenda del genio secreto del fútbol ("Trinche. Uma viagem pela lenda do gênio secreto do futebol", em tradução literal). Para explicar esta aura de mistério que ronda o personagem, Caravario afirma que "a lenda é feita de potencialidades", e que o mito deste jogador está repleto de "o que teria acontecido se...": se fosse comprado por um grande clube, como o River, se tivesse vestido a camisa do Milan, se tivesse jogado com o Pelé no New York Cosmos. Para explicar por que não chegou a se consolidar como um jogador na primeira divisão, quem o viu jogar também se vale de recursos poéticos: "foi o último rebelde", "não queria correr sem a bola", "gostava mais de jogar futebol do que ser jogador de futebol". Ele se definia como um solitário, "um pouco lascivo", que nunca chegava cedo a lugar nenhum, a não ser para as partidas. Aos 50 anos, Carlovich concedeu uma entrevista ao jornalista Miguel Pisano, da mítica revista El Gráfico, na qual relembrou como começou jogando peladas em campos improvisados, e também sua temporada nas divisões inferiores do Rosario Central, onde sua habilidade tinha um preço. "Me davam voltas como meias. Me chutavam até a morte! Chegava em casa destruído. Nunca usei caneleiras, nem bandagens, quando era garoto jogávamos com as pernas até morrer." Para Caravario, El Trinche nunca deixou essa fase para trás: "Eu apelaria, de uma forma um tanto selvagem, para a teoria psicanalítica", disse ele à BBC News Mundo, na Argentina, para explicar como um jogador com essas características não se firmou no mundo do futebol. "Ele nunca superou a fase infantil na relação com a bola, aquela noção do futebol como um jogo, e rejeitou tudo o que o afastasse da diversão de levar a bola com os pés, como os treinos repetitivos ou a obrigação de marcar um adversário." No Rosario Central, ele teve sua primeira oportunidade na primeira divisão em 1970, mas jogou apenas uma partida e saiu revoltado com os dirigentes (há diferentes versões — algumas atribuem a raiva a uma dívida, e outras ao fato de que depois daquele primeiro jogo não voltaram a colocá-lo como titular). Ele levaria mais sete anos para voltar à primeira divisão do futebol argentino, por meio do Colón de Santa Fe, no qual se lesionou nas três partidas que disputou. Mas a data mítica é 17 de abril de 1974. Naquele dia, a seleção argentina disputou um amistoso contra a seleção regional de Rosário diante de cerca de 35 mil pessoas no estádio do Newell's Old Boys, como parte da preparação para a Copa do Mundo da Alemanha. Reza a lenda que devido ao "baile" que a seleção regional estava dando na seleção nacional, o técnico Vladislao Cap pediu que retirassem o camisa 5 da equipe de Rosário para evitar mais constrangimentos. Quando saiu de campo aos 60 minutos, a seleção já perdia por 3 a 0. "É raro que eles tirem você jogando bem aos 15 do segundo tempo, então houve algo assim", disse ele ao jornalista Julián Bricco em uma entrevista muitos anos depois sobre esse pedido. Carlovich era o único daquela equipe de Rosário que jogava na série B. Como diz Caravario, "foi o jogador da segunda divisão que tinha que se provar e jogou uma partida extraordinária". Os outros dez jogadores que entraram em campo naquele dia eram da primeira divisão — cinco do Newell's e cinco do Rosario Central —, incluindo Carlos Aimar, Mario Zanabria e Mario Alberto Kempes, que seria o artilheiro da Copa do Mundo de 1978. Foi justamente o técnico da seleção campeã do mundo em 1978, César Luis Menotti, que daria uma das declarações mais famosas sobre El Trinche: "Parecia que a bola o levava, uma bola inteligente que gosta de fazer coisas artísticas e arrasta atrás um jogador de futebol." Em 1976, quando Carlovich jogava pelo Independiente Rivadavia, de Mendoza, Menotti o convocou para um amistoso da pré-seleção para a Copa do Mundo. Reza a lenda que o jogador preferiu ficar pescando. Ele negou esta versão. Outros jogadores da seleção que disputou e venceu a Copa do Mundo na Argentina enfrentaram El Trinche ao longo de sua carreira — e relembraram as habilidades deste meio-campista anos depois na revista El Gráfico. "Quando joguei no Sarmiento de Junín, na divisão inferior, me apaixonei por Carlovich. Foi o melhor jogador que vi antes de chegar à primeira divisão. Uma estrela, gostaria de ser como ele", declarou Daniel Passarella, capitão da seleção argentina nas Copas do Mundo de 1978 e 1982. "Todos os técnicos que tive durante minha carreira queriam incorporá-lo em suas equipes, mas o magricela nunca quis sair de Rosário, uma verdadeira pena", acrescentou Leopoldo Luque. Um dos campeões de 1978, o goleiro Ubaldo Fillol resumiu o que aconteceu na partida de 1974 com duas exclamações: "Que baile nos deram naquela noite! E como aquele rapaz jogou!" De acordo com as histórias que giram em torno de Carlovich, o Milan da Itália queria comprá-lo quando jogava no Independiente Rivadavia, mas a história que mais contribui para a lenda é que o próprio Pelé queria ele no New York Cosmos. "Mandou cartas e tudo, mas depois, de repente, não deu em nada", recordava El Trinche. O encontro com o histórico camisa 10 da seleção brasileira nunca se concretizou — mas com o lendário camisa 10 do seu país, ele teve mais sorte. Uma reportagem do jornal argentino Clarín lembra que em 1993, quando Maradona voltou ao futebol argentino por meio do Newell's Old Boys, ele disse que acreditava ser o melhor, "mas desde que cheguei a Rosário ouvi maravilhas de um certo Carlovich, então não sei mais". Em fevereiro de 2020, quando Maradona liderava a equipe do Gimnasia y Esgrima La Plata, os dois habilidosos canhotos se encontraram — e "el Trinche" conseguiu que "el Diego" autografasse uma camisa do Central Córdoba para ele. "Foi um luxo e uma alegria enorme ter compartilhado minutos com o Diego. Falei no ouvido dele e disse que estava feito, que minha vida estava completa. Depois de conhecê-lo, posso ir tranquilo", declarou na ocasião. E, em maio daquele ano, ele faleceu. El Trinche foi agredido por um homem que tentou roubar sua bicicleta em Rosário — a pancada na cabeça causou primeiro um derrame e acabou levando à sua morte. Imediatamente, Maradona escreveu um último adeus ao jogador em suas redes sociais: "Com sua humildade, você deu um baile em todos nós, Trinche. Não consigo acreditar, te conheci faz pouco tempo, e você já se foi." Maradona morreria seis meses depois.
2022-12-03
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A curiosa origem da paixão pelas seleções de Brasil e Argentina em Bangladesh
Uma apresentadora do canal de notícias de Bangladesh Somoy News aparece no ar com uma peça inusitada: uma camisa da seleção argentina de futebol. A imagem, que foi ao ar no sábado (26/11), pode parecer estranha até mesmo para os próprios argentinos, que raramente veem seus apresentadores vestindo a camisa da seleção diante das câmeras. Para os 168 milhões de habitantes de Bangladesh, contudo, ela faz parte de uma espécie de ritual que tem se repetido nas últimas décadas cada vez que os argentinos jogam. A razão? O pequeno país asiático reúne uma multidão de torcedores que apoiam a Argentina, que está a 17 mil quilômetros, do outro lado do mundo. Para o jogo contra o México na primeira fase da Copa do Catar, que começou à 1h da manhã do horário local, milhões de pessoas lotaram as praças onde havia telões transmitindo a partida. Fim do Matérias recomendadas Mas não se trata apenas do time de Lionel Messi. Muitos dos bengalis também torcem pelo Brasil. Nessa história também há espaço para a rivalidade entre brasileiros e argentinos - uma dinâmica que acabou em confusão entre torcedores na cidade de Brahmanbaria, 120 quilômetros a leste da capital, Dhaka, às vésperas do final da Copa América em 2021. A polícia teve que intervir. Embora o críquete seja esporte nacional desta ex-colônia britânica, a cada quatro anos o foco se volta para a Copa do Mundo masculina de futebol. A paixão pela seleção argentina começou no Mundial disputado no México, em 1986, quando muitos bengalis se encantaram com a atuação de Diego Armando Maradona, que levou a equipe ao título. A partida memorável contra a Inglaterra nas quartas-de-final, com os episódios da "mão de Deus" e o "gol do século", marcou uma geração no país. "A 'mão de Deus' também gerou debate aqui, embora a maioria tenha optado por ignorar a polêmica porque a memória da guerra das Malvinas ainda estava viva na mente dos bengaleses", diz uma coluna no jornal Dhaka Tribune. O conflito entre Inglaterra e Argentina a que o texto faz referência aconteceu em 1982. A vitória argentina em 1986, quatro anos depois, foi vista por muitos como um posicionamento contra o poder britânico. Sentimento que acabaria compartilhado também em Bangladesh, que por quase 200 anos, até 1947, esteve sob controle britânico. Sedimentada a paixão pela Argentina, ela também acabou encontrando em Bangladesh a rivalidade brasileira. "Como um país do 'terceiro mundo', Bangladesh está muito bem conectado com os países latino-americanos, que também sofreram os mesmos danos econômicos e exploração do Ocidente", acrescenta o artigo do Dhaka Tribune. Se as previsões estiverem corretas e Brasil e Argentina avançarem na Copa do Catar, as duas seleções podem se enfrentar nas semifinais. Esse é um confronto que desperta atenção da polícia bengali, que já teve que agir durante a final da Copa América de 2021 para acalmar os ânimos dos torcedores de ambos os lados. Durante a Copa 2018, um menino de 12 anos foi eletrocutado ao prender uma bandeira do Brasil a um poste de rede elétrica. Em outro caso, um homem e seu filho ficaram gravemente feridos quando torcedores se enfrentaram no subdistrito de Bandar, na região central do país. Por causa de problemas como esses decidiu-se que neste o jogo, caso aconteça de fato, não seria transmitido em telões gigantes em algumas províncias do país, para evitar aglomerações.
2022-12-01
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63825936
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Por que brasileiros que sonham em ser médicos estão indo para Argentina
A estudante Maria Alice de Oliveira, de 22 anos, chegou a Rosário, na Argentina, pouco antes da pandemia de covid-19 para cursar medicina. Como não queria passar anos fazendo curso pré-vestibular, tinha começado a procurar faculdades estrangeiras onde pudesse ter uma formação de qualidade e sem pagar um preço exorbitante. "Eu não queria ter que ficar seis anos no cursinho, pois essa é a média para passar numa faculdade pública. Já as particulares são caras e faturam muito", conta em entrevista à BBC News Brasil. A jovem afirma que as regras de acesso à universidade no país vizinho permite que estudantes com baixa renda possam ingressar em cursos superiores. Diferentemente das faculdades tradicionais brasileiras, que apresentam vestibulares próprios ou usam o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) como forma de nivelar e eliminar candidatos, nas instituições argentinas basta se inscrever no curso, seguir um ciclo com matérias específicas e, se atingir a nota exigida, o candidato de fato começa a estudar matérias de medicina. Em algumas universidades esse ciclo básico comum pode durar de três meses a até um ano. Fim do Matérias recomendadas "Na minha faculdade, fiz um curso de ingresso que tinha matérias que envolviam química, física, biologia, anatomia e para quem é estrangeiro tem o espanhol. A gente faz esse curso de ingresso, depois tem as questões e entrevista com o reitor e professor. No final, eles fazem um ranking com um número de pessoas aprovadas", explica a estudante. Mesmo tendo opções públicas de ensino, Maria Alice optou por uma faculdade privada pelas oportunidades de intercâmbio cultural e de trabalhar na Europa ao fim da graduação. Atualmente, ela estuda no Instituto Universitário Italiano de Rosário, uma faculdade italiana que fica a quase 600 quilômetros da capital Buenos Aires. "Temos materiais em inglês e italiano e todas as matérias são em espanhol. Temos aula de inglês médico e italiano para conhecer a língua. Penso em ir para Espanha ou Itália depois da graduação, pois a Argentina tem um tratado com a Espanha", diz a jovem, que paga R$ 1,2 mil de mensalidade na atual faculdade. Mesmo tendo ajuda financeira dos pais e não podendo trabalhar por causa da carga horária puxada, ela conta que viver no país como estudante é uma realidade possível para muitos brasileiros que buscam qualidade de vida e ingresso em boas instituições. Hoje, ela consegue morar sozinha em um apartamento. Seus gastos com a mensalidade da faculdade, aluguel, alimentação e passeios estão em torno de R$ 2,5 mil a R$ 3 mil por mês. Cursando biomedicina no Brasil, Nattascha Dumke, de 30 anos, mudou seus planos quando começou a estagiar na área - e descobriu que suas aptidões eram mais voltadas à medicina. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Estudante de escola pública, ela diz que teria sido quase inviável tentar prestar vestibular para uma faculdade pública ou pagar uma instituição privada. "Eu estava muito longe do conteúdo do ensino médio. Não tinha uma base boa e teria que fazer muito tempo de cursinho. As (universidades) particulares começavam em R$ 8 mil e tinha algumas que chegavam a custar R$ 12 mil", afirma. Foi então que ela começou a procurar por faculdades na Argentina e se mudou para o país em 2018. No início, entrou na Universidade de Buenos Aires (UBA), uma das principais referências em ensino público na América Latina. Assim como as particulares, não é necessário prestar um vestibular para ingressar na instituição de ensino. Ela diz que gostava do curso, mas que a UBA carecia de estrutura em algumas modalidades. Por isso decidiu mudar a graduação para uma faculdade privada, na qual paga R$ 600 de mensalidade. "Eu estudo na Fundación Barceló. Senti uma diferença no número de alunos por sala, na didática e achei ela mais moderna. Eu fiz a troca de faculdade quando estava indo para o terceiro ano", conta. Ela também afirma que graças ao baixo custo do ensino do país, é possível ter uma qualidade de vida excelente e morar em um bom apartamento. Ela pretende fazer o Revalida (o Exame Nacional que valida diplomas médicos expedidos por universidades estrangeiras) quando voltar para o Brasil, mas seu maior desejo é trabalhar na Europa quando se formar. Mariel Ramos, de 33 anos, também escolheu uma faculdade particular para seguir com os estudos em medicina e mora em Buenos Aires há cinco anos. Ela também não queria mais lidar com os custos de cursinho e faculdades particulares no Brasil. "Tive vários gastos financeiros e emocionais. A pessoa acaba se dedicando muito e de forma intensa. Fora isso, o ingresso nas faculdades particulares acaba limitando o acesso e a pessoa tem que fazer um financiamento para entrar. É um ingresso extremamente difícil e você ainda fica com dívida", diz. Formada em Ciências Sociais por uma faculdade federal do Paraná, ela resolveu trocar de área e planejou a mudança para a capital da Argentina. Porém, ao contrário de muitos estudantes que têm a ajuda dos pais ou conseguem seguir com a faculdade sem trabalhar, ela teve de cumprir uma estressante rotina de jornada dupla, conciliando trabalho e estudos. "Já trabalhei de gerente administrativo em uma assessoria especializada em trâmites para brasileiros e equatorianos virem estudar aqui. Depois, como Inside Sales, em uma startup relacionada ao agro. Com a renda desses trabalhos, comecei um negócio próprio e desde maio estou só com ele", afirma. Atualmente, ela estuda medicina no período noturno na Universidad Abierta Interamericana (UAI). "Nas particulares, até o quarto ano você consegue escolher o turno. Após esse período, o curso segue em hospitais e não tem opção de escolha". Ela conta que são seis horas todos os dias, incluindo aulas aos sábados, que vão das 8h às 14h. Mesmo tendo um ritmo de vida mais puxado, ela afirma que vive muito bem com aproximadamente R$ 3 mil mensais. "Pago R$ 1 mil por mês na minha faculdade e essa foi a melhor opção para mim. Tenho uma vida social bem ativa, gosto de bons restaurantes e entendo que hoje meu custo é um pouco elevado comparado com o de outras pessoas", diz. Em relação aos cursos no Brasil, ela acredita que não saiu perdendo na escolha, pois as matérias são muito parecidas e até alguns termos usados também são semelhantes. "Minha faculdade tem até hospital próprio e eu diria que 80% do vocabulário é o mesmo." Embora o processo de admissão no curso pareça fácil, terminar a graduação de medicina no país pode ser bem demorado e complicado. Ao contrário de muitas faculdades brasileiras, em que o professor passa as matérias para os alunos e há muitas aulas presenciais, em algumas instituições de ensino argentinas não há essa prática. No caso da Universidade de Buenos Aires (UBA) há métodos próprios e o estudante aprende muitas coisas sozinho. Diogo Alves Schmidt, de 20 anos, cursa o primeiro ano da carreira de medicina na instituição e defende os critérios adotados pela faculdade tanto na admissão dos alunos quanto nas provas. Vindo de um ritmo "frenético" de aulas no cursinho pré-vestibular no Brasil, o estudante reforça que as matérias do primeiro ano foram bem tranquilas. "Eu estava em um ritmo de cursinho, que hoje considero extremamente tóxico, e que consome sua saúde mental. A melhor coisa é não ter vestibular", diz. Ela afirma ainda que as provas na faculdade são orais, o que é considerado, na visão dele, um diferencial na graduação da Argentina. Além disso, é menos provável haver "colas" ou fraudes nos exames. "O professor não vai correr atrás de ti. É bem diferente do Brasil e basicamente depende muito do aluno", destaca. O único ponto negativo que aponta é a falta de contato com pacientes. Em alguns cursos de medicina no Brasil, o estudante tem uma troca logo no primeiro ano, enquanto que, na faculdade pública argentina, a prática clínica só irá ocorrer no quarto ano. "No Brasil você começa cedo nos postinhos e UPAs, por exemplo", diz. Assim como Diogo, Gabriela Landini, de 18 anos, escolheu a UBA para cursar medicina na Argentina. Morando na capital há sete meses, ela conta que não achava justo ingressar em universidades por meio de um vestibular. "Você fica muito tempo estudando em um cursinho ou pagando caro, no fim acaba não passando e se frustra. Eu conheço pessoas que fizeram cursinho por quatro anos, desistiram e mudaram de carreira", ressalta. Ela desembarcou no país para realizar o sonho de ser médica e teve o apoio de toda a família, já que sua mãe também se mudou para o território argentino. A pesquisa para entrar na instituição pública começou com um ano de antecedência. "Tivemos que legalizar todos os documentos escolares, pessoais e ainda tive que fazer uma prova de proficiência em espanhol, porque para fazer a inscrição na faculdade precisava ter pelo menos um certificado com um nível B2 no idioma", diz. Ela também elogia o método de ensino local. "Aqui os estudantes são mais autônomos e vejo um incentivo para o aluno ir buscar e aprender sobre o assunto por conta própria", diz. Mesmo estando apenas no primeiro ano do curso, ela já afirma que não pretende trabalhar no Brasil. "Quero ir para Espanha e mais para frente posso até escolher algum outro país da Europa", diz. Não há dados oficias do Ministério da Educação da Argentina sobre o número de brasileiros que entram todos os anos para cursar medicina no país. Mas os relatos todos são de que há muitos. "Na minha sala tem 60% de brasileiros", destaca Nattascha. Já Maria Alice também afirma que pelo menos um quarto dos alunos da sua graduação são estudantes do Brasil. Terminar a graduação no país vizinho e voltar para o território nacional não é tão simples, caso o brasileiro queira exercer a profissão de médico. Ao retornar, é necessário prestar o Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos Expedidos por Instituição de Educação Superior Estrangeira, conhecido como Revalida. A prova é destinada aos estrangeiros e brasileiros que se graduaram no exterior. A avaliação é dividida em duas etapas eliminatórias, que possuem provas escritas e de habilidades clínicas. "É essencial que o Brasil tenha essa avaliação da qualificação. Em outros países são realizadas até outras exigências quanto à prática e o local de formação. Nos Estados Unidos só serão habilitados para fazer a prova estudantes que tenham se formado em escolas de qualidade", explica Julio Braga, coordenador da Comissão de Ensino Médico do Conselho Federal de Medicina. Braga acredita que o alto índice de reprovação se dá à baixa qualificação dos estudantes. "Inicialmente, o exame é feito dentro de metodologias bem reconhecidas, a imensa maioria não questiona a qualidade do Revalida. Então, a baixa taxa de aprovação não é porque o exame seja ruim. Eu acredito que os formados no exterior na verdade não têm a capacitação adequada. Muitos fizeram medicina em países cuja metodologia e prática são questionáveis." Atualmente, o Revalida pode ser feito duas vezes ao ano, no primeiro e segundo semestre. De acordo com dados divulgados pela instituição, no segundo semestre durante a primeira etapa, 5.259 brasileiros se inscreveram no teste, sendo que apenas 680 foram aprovados, ou seja menos de 13% dos inscritos.
2022-12-01
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63782955
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Como Irã ajudou Venezuela a ser 1º país latino-americano com drones armados
Na noite do dia 8 de fevereiro deste ano, os dissidentes das guerrilhas colombianas Farc viveram um inferno, segundo o relato de militares da Colômbia. Às 3h da manhã, guerrilheiros dissidentes que estavam no Estado venezuelano de Apure, próximo à fronteira com a Colômbia, foram bombardeados pelo ar pelas Forças Armadas da Venezuela. Conforme publicado alguns dias depois pelo jornal El Colombiano, citando fontes de inteligência das Forças Armadas da Colômbia, o ataque foi realizado com drones armados. "Isso seria uma novidade porque, se confirmado, faria da Venezuela o segundo país do hemisfério, depois dos Estados Unidos, a usar armamento real a partir de drones", afirma Andrei Serbin Pont, diretor da Coordenadoria Regional de Pesquisas Econômicas e Sociais (CRIES), uma rede de centros de pesquisa na América Latina e no Caribe. As autoridades venezuelanas nunca confirmaram o uso de drones armados no conflito em fevereiro. Entretanto, alguns meses depois, o governo de Nicolás Maduro exibiu, durante um desfile militar, drones com capacidade de ataque. Fim do Matérias recomendadas Assim, a Venezuela tornou-se, segundo especialistas, o primeiro país da América Latina a ter drones armados. Para saber como o país conseguiu isso, é preciso voltar a atenção para suas relações com o Irã. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em 5 de julho, durante o desfile militar para comemorar o Dia da Independência, as Forças Armadas da Venezuela mostraram dois modelos diferentes de drones com capacidade ofensiva. O Antonio José de Sucre 100 (ANSU 100) foi apresentado como um meio de "observação, reconhecimento e ataque". Já o Antonio José de Sucre 200 (ANSU 200) foi descrito como uma aeronave de "velocidade, alto sigilo e capacidade de observação, reconhecimento, ataque, caça antidrones e supressão da defesa aérea inimiga". Segundo o narrador do desfile, ambos os dispositivos eram de "design e fabricação venezuelana". No entanto, vários especialistas apontaram que pelo menos o ANSU 100 é na verdade uma versão modernizada do drone iraniano Mohajer 2. Esses dispositivos não tripulados foram os primeiros comprados pela Venezuela do Irã durante o governo de Hugo Chávez. De acordo com as informações disponíveis no banco de dados de equipamentos militares ODIN, pertencente ao Exército dos Estados Unidos, a Venezuela assinou um acordo com o Irã em 2007 para montar 12 unidades do Mohajer 2, a partir de partes e peças fornecidas pela Força Quds da Guarda Revolucionária do Irã. Os aparelhos começaram a ser montados em 2009 pela Cavim, a estatal venezuelana responsável pela produção de armas e munições. Em junho de 2012, em uma transmissão pela televisão, Chávez mostrou pela primeira vez esses dispositivos não tripulados. Foi dito que eles seriam usados ​​em missões de reconhecimento e que os funcionários venezuelanos que trabalharam no projeto haviam sido treinados no Irã. Foi dito ainda que o modelo montado pela Cavim dispunha de câmeras de vídeo e fotografia de alta resolução e que, embora em princípio ele só pudesse ser utilizado em voos diurnos, estava em curso a adaptação para voos noturnos. Os ANSU 100 exibidos no desfile de 5 de julho são vistos como uma versão modernizada do Mohajer 2. Nos últimos anos, a relação entre Irã e Venezuela só se fortaleceu, principalmente porque os dois países são alvos de sanções impostas pelos Estados Unidos, que consideram autoritários tanto o governo de Caracas quanto o de Teerã. "Em teoria, supõe-se que é uma modernização baseada no Mojaher 6 [o modelo mais avançado desse tipo de drone]. Se você olhar as fotos do Mohajer 2, verá que em vez de um trem de pouso eles tinham tipo esquis, porque eram lançados de uma plataforma", diz Serbin Pont. "Como parte da modernização recente, o que se fez foi colocar um trem de pouso com rodas, com a ideia de que possam operar diretamente em pistas normais." O analista afirma que esses dispositivos foram exibidos juntamente com um tipo de munição guiada Qaem, também fabricada no Irã, que permite atacar alvos no ar com considerável precisão. Ele ressalva, porém, que ainda há muitas incógnitas sobre o funcionamento desses drones mais modernos. "Não temos evidências sobre as condições de operação desse novo modelo e se ele foi usado com essa arma. Há fontes que indicam que sim", aponta Serbin. Deve-se notar que, durante o desfile de 5 de julho, tanto o ANSU 100 quanto o ANSU 200 foram exibidos enquanto eram transportados por veículos terrestres. Este detalhe é especialmente importante no caso do ANSU 200, pois antes do desfile, apenas eram conhecidos desenhos e maquetes dele, sem que sua operacionalidade tenha sido demonstrada. Em novembro de 2020, durante uma transmissão televisiva, Maduro anunciou que a Venezuela também iria fabricar drones multiuso e "para defesa nacional". O presidente disse que os aparelhos seriam construídos com alumínio venezuelano e seriam produzidos também para exportação. As imagens mostram um objeto que parece ser uma maquete do Mohajer 6. O desenvolvimento de drones na Venezuela tem sido marcado por duas características: o apoio do Irã e o sigilo. "O programa de drones da Venezuela vem do Irã. A Venezuela não tinha um programa de drones antes de sua cooperação com o Irã", diz Joseph Humire, diretor executivo do Centro para uma Sociedade Segura e Livre (Center for a Secure Free Society), um centro de estudos com sede em Washington. Humire indica que, quando estas parcerias foram lançadas, entre 2006 e 2007, acordos de cooperação militar foram embutidos em acordos comerciais e em acordos energéticos — nos quais participavam as empresas estatais de petróleo de ambos os países. No início, essa cooperação avançou lentamente. Levou anos para que os primeiros drones iranianos fabricados na Venezuela ficassem prontos, por volta de 2011. Os aparelhos foram fabricados e montados nas instalações da Cavim na base aérea Libertador, na cidade de Maracay, no centro da Venezuela. Apesar dos contratempos, Humire avalia que se trata de uma iniciativa séria que pode até ter dupla aplicação: civil e militar. O analista lembra que o programa foi pausado entre 2013 e 2016. A partir daí, os dois países decidiram fortalecer a cooperação na área de defesa, mas tiveram que lidar com as restrições impostas pelas sanções das Nações Unidas, que impediam o Irã de exportar sistemas de armas. Logo depois, a Venezuela criou seu primeiro batalhão de drones, incluindo não apenas aeronaves iranianas, mas também outros aparelhos de vigilância vindos da China e da Rússia. "Assim, a Venezuela se equipou pela primeira vez, com sucesso, de um verdadeiro programa de drones — já que, inicialmente, o que houve foi como um programa piloto", diz o especialista. Segundo Humire, foi graças ao uso de drones iranianos que as autoridades venezuelanas conseguiram detectar a chamada Operação Gideon, a tentativa fracassada de pouso de um grupo de exilados venezuelanos acompanhados por dois ex-veteranos dos Estados Unidos em maio de 2020, com o suposto objetivo de capturar Maduro. "Portanto, temos visto o uso de drones principalmente em tarefas de vigilância, mas isso vai muito além do que eles faziam no passado: voos de teste e pequenas missões de reconhecimento." A modernização venezuelana do Mohajer 2 foi realizada pela empresa de serviços aeroespaciais Eansa — uma subsidiária da companhia aérea estatal Conviasa, que também tem sede na base aérea Libertador, em Maracay. Não está claro o quão avançado está o programa de drones armados da Venezuela, pois eles não foram vistos em ação e não se sabe quantos deles existem. Tampouco há respostas sobre se os drones são apenas Mohajer 2 atualizados ou se foram fabricados do zero ou comprados. A BBC New Mundo (serviço em espanhol da BBC) entrou em contato com o Ministério das Comunicações venezuelano para solicitar informações sobre seu programa de drones, mas até o momento da publicação, nenhuma resposta havia sido recebida. O que os especialistas concordam é que a Venezuela seria o primeiro país da região a ter drones com capacidade ofensiva. Jochen Kleinschmidt, pesquisador em relações internacionais do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade Católica Eichstätt-Ingolstadt (Alemanha), afirmou que o Brasil está buscando formas de integrar mísseis antitanque modernos em seus veículos aéreos não tripulados (UAVs, como drones são conhecidos por sua sigla em inglês), além de se equipar com drones suicidas. "Como tudo isso está em seus estágios iniciais, seria correto, até onde eu sei, dizer que os únicos drones armados na América Latina são talvez os Mohajers venezuelanos e seus derivados, e os drones civis armados usados ​​por algumas organizações criminosos mexicanas", diz Kleinschmidt. Joseph Humire, por sua vez, avalia que a Venezuela tem objetivos que vão muito além de usar os drones ofensivamente. "É muito mais do que apenas os drones. A Venezuela não quer produzir os drones apenas localmente, mas também exportá-los", diz o analista. "Na Venezuela, eles estão criando uma estrutura local endógena para produzir drones em meio a uma estratégia militar mais ampla — algo em que os iranianos são muito bons em termos de uso de drones: capacidades anfíbias assimétricas, basicamente a combinação de drones com lanchas rápidas de ataque e com sistemas de satélite que permitem monitorar as águas", explica. "O Irã faz isso constantemente no Estreito de Ormuz e no Golfo Pérsico. A Venezuela não tem essa capacidade hoje, mas pretende obtê-la no futuro", conclui.
2022-12-01
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63816546
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Por que 'voz' da Revolução Cubana passou a criticar regime de Fidel Castro
Pablo Milanés, morto nesta terça-feira (22/11) em Madri aos 79 anos, foi uma referência cultural do sistema socialista cubano e da esquerda latino-americana. Fundador do movimento Nueva Trova junto com Silvio Rodríguez e Noel Nicola, dedicou parte de seu repertório musical às ideias suscitadas pela revolução liderada por Fidel Castro em 1959. Mas, embora o regime castrista perdure até hoje, o apoio de um de seus artistas de referência foi se esvaindo. Ao longo dos anos, Milanés passou a descrever o governo da ilha como "repressivo", afirmou que o socialismo era um "fracasso" e pediu a transição do atual sistema de partido único para a democracia. Milanés, que desde criança já se destacava em programas de televisão e grupos vocais, viu triunfar a Revolução Cubana no início da adolescência. Fim do Matérias recomendadas Filho de um militar e de uma costureira, como muitos jovens da época, voltou-se para os ideais de humanismo e justiça social propostos pelo novo regime após a derrubada da ditadura de Fulgêncio Batista (1952-1959). "A origem está no que Cuba significou no ano 59 para o mundo. Tinha 15 anos e quando mergulhei na realidade social da América Latina me tornei um revolucionário", explicou em entrevista ao jornal espanhol El País em 2015. Na década de 1960, marcada pelo acirramento da Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética (URSS), Cuba adotou o modelo soviético e, com ele, suas inflexíveis políticas culturais. "Pablito fazia parte daqueles que defendiam a originalidade da Revolução Cubana; uma originalidade que foi questionada após a aliança com a União Soviética, que marcou o fim do pensamento crítico", explica o cientista político cubano Carlos Alzugaray à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC. "Apesar de apoiarem a revolução, essas pessoas viam as coisas de maneira diferente, eram mais libertárias, voltadas para os direitos dos indivíduos", acrescenta. Assim, em um dia de 1966, agentes do regime apareceram na casa de Pablo Milanés. "Eles me enganaram e me disseram que eu havia sido recrutado para o serviço militar. E, na verdade, fui enviado para um campo de concentração ", lembrou o cantor em um documentário de 2020 sobre sua trajetória musical. Ele foi um das dezenas de milhares de jovens encaminhados para as Unidades Militares de Auxílio à Produção (UMAP), os campos de trabalhos forçados nos quais eram presos homossexuais, religiosos, artistas e intelectuais rebeldes; enfim, aqueles que eram considerados "desprezíveis", nas palavras do próprio Milanés. O cantor relembrou a UMAP — de onde fugiu para logo ser preso novamente — como uma fase "brutal" em que foi vítima de maus-tratos e foi obrigado a trabalhar incansavelmente da madrugada à noite. Décadas depois, ele repetidamente repreendeu o governo cubano por nunca ter se desculpado por isso. De qualquer forma, após sua libertação, Pablo Milanés consolidou-se não apenas como cantor e fundador da Nueva Trova, mas também como uma das principais vozes do movimento de esquerda latino-americano que patrocinou e defendeu o regime de Fidel Castro. "Bolívar lançou uma estrela que brilhou com Martí / Fidel a dignificou / Caminhar por estas terras", diz sua famosa "Canción por la unidad latinoamericana" de 1976, que percorreu o continente. As ditaduras militares de direita em países como Chile, Argentina e Uruguai marcaram os anos 1970 na América Latina, razão pela qual as ideias de esquerda, tendo Cuba como referência, cativaram grande parte da juventude da região. Muitos deles ouviam Milanés, Silvio Rodríguez e outros cantores da Nueva Trova que dedicaram parte de sua música e seus esforços à promoção do socialismo, estabelecendo-se como referências da chamada "canção de protesto". Apesar de a maioria de suas canções falar de amor e apenas uma minoria aludir à política, a década seguinte dos anos 1980 foi de crescimento e consolidação para Pablo, não apenas como artista, mas como ícone cultural da causa cubana. "Será melhor afundar no mar/ Do que antes de trair a glória que se viveu", cantou em "Cuando te encontré" (1989), uma canção de culto aos revolucionários da época na ilha. A década de 1990 foi um período turbulento para Cuba, que após a derrocada da União Soviética, sua principal benfeitora, mergulhou em uma profunda crise econômica — e, para muitos, existencial — conhecida como Período Especial. Embora no início da década ele tivesse sido deputado da Assembleia Nacional do Poder Popular (Parlamento) de Cuba, Milanés logo começou a expressar abertamente suas divergências com o regime. "Sou um porta-estandarte da revolução, não do governo. Se a revolução emperra, se torna ortodoxa, reacionária, contrária às ideias que a originaram, é preciso lutar", dizia então o artista, em uma de suas primeiras declarações críticas. Mais tarde, ele explicou essa mudança de posição que pegou muitos de surpresa: "Em 1992, estava convencido de que o sistema cubano havia falhado definitivamente e o denunciei". "Fiquei desapontado como revolucionário porque eles insistiram em continuar com uma questão que não funcionou e que não funciona até agora", alegou. Após o Período Especial, Milanés continuou a criticar o governo cubano, mas nunca deixou de se considerar um esquerdista e ainda em 2006 enviou uma mensagem de lealdade a um convalescente Fidel Castro (que acabou se recuperando e só morreria por dez anos depois). "Prometo representar você e o povo cubano como este momento merece: com unidade e coragem diante de qualquer ameaça ou provocação. Um abraço, seu Pablo Milanés", escreveu ao líder, segundo o jornal oficial cubano Granma. Na década seguinte, o artista expressou sua admiração por lideranças de esquerda mais moderadas da região, como o ex-presidente uruguaio José Mujica. Ao mesmo tempo, o vencedor de dois Grammys latinos de melhor álbum de cantor e compositor (2006) e excelência musical (2015) endurecia o tom em suas críticas às autoridades cubanas. "O stalinismo ainda está em vigor e a repressão impede os protestos de rua; a greve é impossível porque não há sindicatos independentes e a imprensa cubana é silenciosa ou cúmplice", disse ele em uma entrevista na TV em 2015. O governo cubano, porém, não o retaliou — por meio das proibições de entrada e saída que frequentemente aplica a outras vozes críticas — e Milanés, que viveu em Madri seus últimos anos, visitava com frequência Havana, onde em junho passado realizou aquele que foi seu último show na ilha. O presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel, até dedicou um obituário emocionado a ele. Para o cientista político Carlos Alzugaray, Pablo Milanés "é uma figura muito importante para os cubanos e o governo percebeu que, embora algumas das coisas que ele disse o incomode, não tem escolha a não ser abraçá-lo".
2022-11-26
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63769245
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Como Austrália desbancou sul-americanos e se tornou maior produtora de lítio do mundo
A cerca de três horas de carro ao sul de Perth, na Austrália Ocidental, atrás da histórica cidade mineira de Greenbushes, o terreno além da escola primária revela uma cicatriz cinza e profunda. Ali ficava uma antiga mina de estanho, conhecida como Cornwall Pit. Com cerca de 265 metros de profundidade, sua parede com desníveis representa um século de trabalho que começou em 1888, quando meio quilo de estanho foi retirado de um riacho próximo. Quando o metal da superfície se esgotou na região, os métodos de extração acabaram dando lugar à mineração a céu aberto do veio de pegmatito - uma rocha com textura áspera, similar ao granito. Até que, em 1980, outro metal foi encontrado em Greenbushes: o lítio. Mas os donos das minas não deram muita atenção a ele na época. O lítio é um metal alcalino reativo, macio e com cor de prata esbranquiçada. Ele era mais considerado uma bizarrice geológica. Uma operação mineradora em pequena escala começou em 1983 para extração de lítio para uso em operações industriais específicas, como a fabricação de vidro, aço, fundição, cerâmica, lubrificantes e ligas metálicas. Fim do Matérias recomendadas Somente décadas depois, o risco existencial representado pelas mudanças climáticas foi amplamente percebido e os governos começaram a falar em substituir os cerca de 1,45 bilhão de carros movidos a gasolina em todo o mundo por veículos elétricos. Foi então que as reservas de Greenbushes começaram a ser observadas de forma muito diferente. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Hoje, a mina de estanho de Cornwall está fechada e Greenbushes tornou-se a maior mina de lítio do mundo. Em menos de dois anos, os preços do espodumênio australiano - a matéria-prima rica em lítio que pode ser refinada para uso em baterias de laptops, telefones e veículos elétricos - subiu mais de dez vezes. Segundo a empresa especializada Benchmark Mineral Intelligence, com sede em Londres, o espodumênio atingiu US$ 4.994 (cerca de R$ 26,8 mil) por tonelada em outubro de 2022, contra US$ 415 (cerca de R$ 2,2 mil, em valores de hoje) em janeiro de 2021. E, em 2040, a Agência Internacional de Energia prevê que a demanda por lítio cresça mais de 40 vezes sobre os níveis atuais, se o mundo pretender atingir os objetivos do Acordo de Paris. Esta situação gerou comentários sobre uma nova corrida do lítio e a Austrália posicionou-se para ser o principal fornecedor mundial. O que traz a questão: enquanto o mundo busca esse metal para tentar ajudar na redução de carbono, a mineração de lítio é sustentável? Em 2021, somente o lítio extraído em Greenbushes representou mais de um quinto da produção mundial e espera-se que o volume cresça ainda mais. Em 2019, a empresa dona da mina, a Talison Lithium, foi autorizada a dobrar o seu tamanho. A expansão custará 1,9 bilhão de dólares australianos (US$ 1,2 bilhão, cerca de R$ 6,4 bilhões). Quando completa, a mina irá cobrir uma área de 2,6 km de comprimento, 1 km de largura e 455 m de profundidade. O prédio mais alto de Londres, The Shard, poderia ser confortavelmente enterrado na mina, com seus 310 metros de altura - bem como os prédios mais altos do Brasil. Greenbushes é a maior mina de lítio da Austrália, responsável por 40% das 55 mil toneladas do metal extraídas no país em 2021. Mas existem diversas outras minas logo atrás dela. Ao todo, há outras quatro operações de extração de lítio de rocha bruta nas regiões mineradoras da Austrália Ocidental, perto de Kalgoorlie, no leste, e de Pilbara, no extremo norte do Estado. Uma sexta mina de lítio - a única fora da Austrália Ocidental - é uma mina a céu aberto perto de Darwin, no Território do Norte, que iniciou operações no início de outubro de 2022. Duas outras minas estão em planejamento, com outras propostas, em vários estágios de implantação. Sua produção combinada permitiu que a Austrália fornecesse cerca de metade do lítio extraído no mundo em 2021. Seus maiores concorrentes são o Chile e a China, que extraem seu lítio de "piscinas" de salmoura. Mas isso deve mudar nos próximos anos, quando os países do chamado "triângulo do lítio" da América do Sul - Chile, Argentina e Bolívia, que juntos detêm a maior parte das reservas conhecidas de lítio do mundo - ampliarem a sua produção. O Chile, sozinho, atualmente é responsável por um quarto da produção mundial e detém mais de 40% dos recursos mundiais. Em termos de recursos, a Bolívia tem 24% das reservas de lítio conhecidas e a Argentina, 21%, embora nenhum deles contribua significativamente para a produção global. Com todos esses países procurando desenvolver sua indústria do lítio, o mundo enfrenta duas opções muito diferentes de fontes desse metal indispensável: da rocha sólida, como na Austrália, ou do lençol freático salino, como no Chile. "Com relação à mineração do lítio em rocha sólida, o impacto ambiental é basicamente o mesmo de qualquer outra operação de mineração comparável", afirma o professor Gavin Mudd, da Universidade RMIT de Melbourne, na Austrália. "A salmoura é radicalmente diferente." Mudd é presidente do Instituto de Políticas Minerais, uma organização independente que monitora a indústria mineradora australiana. Ele afirma que é comum haver desinformação e confusão sobre a mineração de lítio. Segundo ele, por exemplo, a ideia de que o lítio é um recurso escasso já foi desmentida, mas continua presente. "O lítio, na verdade, é um mineral muito comum", afirma Mudd. "Ele é encontrado em toda parte, mas historicamente não nos preocupamos com a sua mineração." Quando o assunto é o impacto ambiental da mineração de lítio na Austrália, ele afirma que as pessoas frequentemente confundem a situação com o que ocorre na América do Sul. A diferença começa na geologia. Em terrenos mais jovens como a América do Sul, o lítio é encontrado no fundo de lagos salgados incrustados nas grandes altitudes. Já na Austrália, a geologia é mais antiga. Depósitos de pegmatito que contêm lítio são encontrados em todo o país, em pedaços de massa terrestre que colidiram há centenas de milhares de anos para formar o continente australiano. Essas regiões incluem os crátons (rochas continentais estáveis há mais de um bilhão de anos) de Pilbara e Yilgarn, na Austrália Ocidental, a Província de Pine Creek, no Território do Norte, a região de Georgetown, em Queensland, e a área central do Estado de Victoria. O processo de refino traz riscos ambientais causados pelo uso intensivo de energia e substâncias químicas. Mas Allison Britt, diretora de consultoria mineral da agência governamental Geoscience Australia, afirma que o processo de extração de lítio na Austrália não é muito diferente das outras formas de mineração de metais. Quando um recurso economicamente viável é identificado, a superfície é limpa, a terra é retirada, a rocha é dinamitada e os resíduos são removidos para serem processados, formando um concentrado. "Cada depósito de rocha bruta é único", afirma Britt. "Em depósitos com grau mais alto, você cava menos rocha em comparação com o lítio produzido." Na América do Sul, o processo é mais parecido com um grande e trabalhoso jogo de química. Como o lítio está no fundo de um lago salgado, ele normalmente é misturado com uma série de outros minerais. Sua retirada exige o bombeamento da salmoura do fundo de um lago salgado para uma piscina e esperar a evaporação da água à luz do sol, até que as concentrações de lítio atinjam 6 mil partes por milhão. É um processo que consome muita água - cerca de 1,9 milhão de litros são perdidos para a evaporação para produzir uma tonelada de lítio - e sempre existe o risco de vazamentos. Da mina, o lítio - tanto na Austrália quanto na América do Sul - precisa ser processado para poder ser utilizado. O carbonato de lítio retirado dos tanques de salmoura no Chile precisa ser transformado em hidróxido de lítio, que é o material preferido pelos fabricantes de baterias. Já a rocha escavada do solo na Austrália precisa ser moída e torrada para produzir espodumênio. Esse material contém cerca de 6% de lítio e é então embarcado da Austrália para a China, que refina 60% do lítio do mundo e 80% do hidróxido de lítio do planeta. Mas isso pode estar mudando. Como parte dos esforços para diversificar a cadeia de fornecimento, o governo da Austrália Ocidental está trabalhando para construir instalações locais de refino, perto das suas próprias minas de lítio. Existem três propostas de novas instalações de refino de lítio na Austrália. E essas instalações enfrentarão seus próprios desafios ambientais. Torrar espodumênio para criar o concentrado exige quantidades significativas de energia e de ácido sulfúrico. Ao final, os resíduos também precisarão ser descartados - um processo que precisa ser monitorado para evitar que cause poluição. A mineração australiana de lítio ainda está nos seus primórdios, mas Maggie Wood, diretora-executiva do Conselho de Conservação da Austrália Ocidental (uma organização sem fins lucrativos que representa mais de 100 grupos ambientais em todo o Estado), afirma que a indústria está sendo cuidadosamente acompanhada. "Por um lado, sabemos que precisamos reduzir a pegada de carbono o mais rápido possível e minérios fundamentais, como o lítio e uma série de outros, são parte desse caminho", afirma Woods. "Mas também sabemos que a mineração destrói o meio ambiente." Os ambientalistas já levantaram preocupações, por exemplo, de que o sedimento da mina do Projeto de Lítio de Finniss, na Austrália Meridional, pode ter contaminado um riacho próximo. A BBC entrou em contato com a Core Lithium, dona do Projeto de Lítio de Finniss, para responder a essas afirmações, mas não recebeu resposta. Kirsty Howey, uma das diretoras do Centro Ambiental do Território do Norte (organismo ambiental do Território), afirma que está preocupada com o impacto ambiental cumulativo da abertura de diversas minas para extrair depósitos de lítio entre Darwin - a capital do Território do Norte - e o famoso Parque Nacional de Litchfield, a uma hora de carro ao sul da cidade. "Existem terrenos de lítio por todo o caminho", afirma Howey. "Você tem essas vastas áreas do Território bastante preservadas pelos padrões globais que agora estão sujeitas [a permissões para mineração futura de lítio]." "É um ecossistema tropical, de forma que você tem maior risco de ciclones, você tem enormes chuvas - a chuva é a inimiga da mineração. É com ela que os metais são levados para os cursos d'água e causam danos", explica Howey. "Temos que suspender o desenvolvimento dos combustíveis fósseis, mas também precisamos controlar a mineração." A BBC entrou em contato com o Conselho de Minerais da Austrália, o organismo que representa a indústria de mineração do país, em busca de comentários sobre as preocupações a respeito do impacto da mineração do lítio, mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem. Alguns dos líderes políticos da Austrália argumentam que obter metais para reduzir a pegada de carbono é a prioridade. No início de outubro, quando o Projeto de Lítio de Finniss abriu o terreno a 80 km de Darwin, a Ministra da Indústria e da Mineração do Território do Norte Nicole Manison estava no local. Em pronunciamento à imprensa, a Ministra disse: "precisamos ser realistas sobre esta transição. Existem materiais que você certamente precisa minerar para atingir a redução de carbono e combater as mudanças climáticas de frente - e muitos desses materiais são disponíveis no Território do Norte." Os problemas da mineração de lítio na Austrália não são diferentes dos geralmente verificados na indústria. A mineração a céu aberto escava cicatrizes profundas na paisagem, muitas vezes em ecossistemas que já estão sob pressão. As operações de mineração podem levantar poeira, que pode contaminar os cursos d'água ou ser levada até as cidades, onde pode ser inalada pela população. Chuvas fortes podem deslocar os minerais e levá-los com a água para os rios próximos ou causar sua infiltração no lençol freático. E, quando uma mina fecha, os trabalhos de reabilitação podem não ter sido adequadamente planejados ou seus operadores simplesmente desaparecem da noite para o dia. Gavin Mudd afirma que esses problemas podem ser administrados. Estimativas indicam que a mineração de lítio de rochas sólidas será responsável pela emissão de 10 milhões de toneladas de CO2 até 2030, mas as refinarias podem ser construídas perto da fonte de extração para evitar o transporte para o exterior e assim reduzir parte das emissões causadas pelo transporte. Enquanto isso, no Canadá, uma mina de ouro demonstrou que o equipamento de mineração pode ser eletrificado, possibilitando o uso de energia renovável para alimentar os seus sistemas e reduzir as emissões de CO2. Mudd também observa que o lítio provavelmente não será minerado de forma tão intensiva na Austrália e, ao contrário do esperado, pode resultar em redução líquida da atividade de mineração em geral, à medida que se reduz a demanda de carvão. "Na Austrália, estamos minerando algo da ordem de cinco a oito bilhões de toneladas [de rocha residual] por ano, apenas para conseguir nosso carvão", afirma ele. "As pessoas não estão calculando que, se excluirmos o carvão da equação, o impacto é enorme." "Para mim, tudo traz muita esperança", segundo ele. "Ainda existem questões sobre a forma de fazer as coisas, mas não é um problema com o lítio, é um problema com a forma em que regulamentamos a mineração." Outra forma de reduzir ainda mais esses impactos é diminuir a necessidade de novas minas de lítio, ampliando as taxas de reciclagem. Atualmente, a Austrália recicla apenas 10% das suas baterias de íons de lítio usadas. Libby Chaplin, executiva-chefe do Conselho de Gerenciamento de Baterias (BSC, na sigla em inglês), uma organização criada para supervisionar a reciclagem de baterias usadas onde, de outra forma, seria caro demais para a indústria privada, afirma que a reciclagem irá se tornar uma questão premente no final da década, quando as baterias dos veículos elétricos começarem a atingir o final da sua vida útil. "Se não cuidarmos deste assunto, em um futuro não muito distante, teremos um problema muito sério de baterias usadas e pilhas de baterias de lítio de veículos elétricos estocadas", afirma Chaplin". "É a última coisa que queremos, pois a armazenagem de baterias de veículos elétricos pode ser problemática." Para Chaplin, se começar agora em pequena escala, a Austrália pode construir a infraestrutura adequada para impedir que isso se torne um problema, particularmente porque a distância é uma dificuldade. A necessidade de coleta, transporte e seleção de materiais através de um país continental é algo caro e difícil, mas a Austrália tem bons exemplos a seguir. Chaplin indica o sistema australiano de reciclagem de baterias automotivas de chumbo-ácido, que muitos consideram um sucesso, para demonstrar como isso pode ser feito. E já existem medidas sendo tomadas nessa direção. Em janeiro de 2022, o BSC formou um esquema colaborativo em parceria com fabricantes de baterias que aumentou a taxa de recuperação de pequenas baterias, de menos de 8% para mais de 16% em seis meses. Para cada bateria importada, os fabricantes pagam 4 centavos de dólar australiano (US$ 0,03, cerca de R$ 0,16) por unidade de bateria equivalente (24 g) para participar do esquema. Esse valor é depositado em um fundo que cobre o custo de transporte dos locais de coleta em todo o país até os centros de reciclagem. Este programa não inclui apenas as baterias de íons de lítio, mas mostra como enormes ganhos podem ser atingidos com rapidez. Algumas pessoas questionam se é possível uma indústria de reciclagem de lítio em larga escala. Chaplin acredita que sim. O lítio representa apenas 1% da bateria de um carro elétrico, mas a maior parte dos materiais - aço, plástico, alumínio e cobre - é recuperável. O restante - que inclui lítio, grafite e cobalto - é mais difícil, mas também pode ser recuperado. Chaplin afirma que, desses materiais, a prioridade deve ser a recuperação de cobalto, que é o metal cuja mineração mais destrói o meio ambiente. Cerca de 70% da produção mundial atualmente têm origem na República Democrática do Congo. Acredita-se que recuperar esse "valor perdido" pode atingir US$ 3,1 bilhões (cerca de R$ 16,6 bilhões). E a União Europeia, que aprovou uma norma sobre baterias que exige que os fabricantes misturem pelo menos 4% de lítio reciclado nas baterias novas, demonstrou como as regulamentações podem ajudar. Chaplin concorda que é preciso melhorar a reciclagem das baterias de lítio para minimizar a demanda por mais extração. "Não podemos conversar sobre o lítio ou as mudanças climáticas sem discutir como garantir que essas baterias sejam recuperadas no final da sua vida útil", afirma ela. "Após a extração, temos a obrigação de manter o material em uso." *Com colaboração de Miriam Quick.
2022-11-22
https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-63712106
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'Prefiro uma velhice cheia de amigos, de pessoas felizes, sem o peso de um marido antipático'
Emilia vai reformar a cozinha de casa. Não porque queira — a ideia é do marido, que tomou a decisão sem consultá-la. Ele tinha vontade de ter uma cozinha mais moderna e ela, em vez de começar uma briga, resolveu aceitar resignadamente a obra. Assim começa Qué hacer con esos pedazos (O que fazer com esses pedaços, em tradução livre) o novo romance da colombiana Piedad Bonnett, no qual examina os fragmentos de sua própria vida e de temas que compõem a existência: pessoas, decisões, violências, rupturas, culpas, perdas, sucessos, silêncios, saudades, dores. Piedad Bonnett sabe de tudo isso. Sua extensa obra poética tem sido amplamente reconhecida, assim como seus ensaios, romances e textos autobiográficos, como Lo que no tiene nombre (O Que Não Tem Nome), em que narra com delicadeza, honestidade e profundo amor o suicídio, aos 28 anos, de seu filho Daniel, que sofria de esquizofrenia. A autora, que participou do Festival HAY, evento cultural peruano realizado na cidade de Arequipa, conta que na nova obra quis falar sobre "os abusos que sempre me interessaram, os pequenos abusos que as mulheres aceitam com uma passividade aterradora, sem armas para enfrentá-los. Porque se um homem te bate ou te chama de 'vadia' você tem como reagir". Fim do Matérias recomendadas Assim aparecem as faces de Emilia, a personagem que é uma escritora na casa dos 60 anos e que nos revela, enquanto a cozinha desmorona, um marido egocêntrico, um ex-namorado estuprador, um pai punitivo, uma irmã controladora e uma filha distante. BBC Mundo - O que fazer com esses pedaços? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Piedad Bonnett - Periodicamente as pessoas fazem avaliações da vida, do passado, da transformação desse passado em presente; você pensa em quantos amigos você perdeu, nos distanciamentos que aconteceram na família. Durante a pandemia fui muito afetada pela situação dos meus pais, que são muito idosos e corriam risco de se infectar. Pensei na solidão da velhice, no que eu não sabia sobre meu próprio pai ou minha mãe e no meu próprio envelhecimento — porque envelhecemos muito, mas também porque estou em uma idade em que a curva aponta para baixo, e isso é irremediável. O tema da família foi se impondo, e me interessou profundamente: o pai, a mãe, os filhos, porque você também faz um balanço da relação com seus filhos, um assunto do qual pouco se fala, porque muitas mães que têm relações ruins com seus filhos escondem ou negam, não querem aceitar. BBC Mundo - Como a relação áspera de Emilia com sua filha Pilar, como se cada uma vivesse em mundos muito diferentes... Bonnett - Os filhos julgam os pais com extrema severidade, e não entendemos quem eles são até ficarmos muito velhos. Isso pode nos levar a ser cruéis ou indiferentes e a nem mesmo perguntarmos sobre suas vidas. É também um grande tabu; as mães minimizam a indiferença, a incompreensão e até as agressões que podem receber dos filhos. BBC Mundo - Mas as agressões também vêm dos pais. Emilia foi castigada pelo pai e acha que "os laços familiares também são algemas". Você concorda? Bonnett - Muita gente não se atreve a encarar esses problemas e tenta fugir deles, porque são os mais insolúveis. Você coloca o dedo em algum lugar e eles começam a aparecer. O vínculo familiar é acompanhado por um imperativo social e quase divino: com sua mãe você não briga, com seu pai, com seus irmãos e seus filhos você não briga. Com amigos você pode ter uma mágoa, mas não essa enorme culpa. Pelo menos na América Latina, e vejo isso na Colômbia, há uma idealização das relações familiares. O que é diferente é a relação com o pai, existem muitos romances acusatórios do pai. BBC Mundo - Do que eles são acusados? Bonnett - Os pais causam muitos danos pela masculinidade mal administrada. Meu pai me castigava quando era pequena; não foi muito, e nada que configurasse maus tratos, mas era aceitável que o pai desse umas palmadas e uns cascudos, e isso me afetou profundamente. Comecei a odiar a autoridade masculina, a odiar a Deus, que exigia tantas coisas de mim. Era contra todo tipo de autoritarismo. Mesmo das freiras. Não é só o (autoritarismo) masculino, mas uma ordem que te subjuga, te aprisiona. Então compreendi algo que me salvou: que meu pai era uma pessoa que tinha medo da vida, porque ficou órfão muito novo. Aos 14 anos, foi morar em um hotel abandonado, pois seu pai se casou com outra mulher. Ele tinha medo de não exercer o papel de pai, e minha mãe atribuía toda a responsabilidade a ele: "seu pai está chegando". Ele desempenhava o papel que a sociedade lhe impunha, que incluía o que haviam feito com ele: bater nele, espancá-lo, gritar ou socar a mesa, coisas que eram aterrorizantes para mim. Quando entendi, comecei a perdoar, mas isso fica ali, como uma cicatriz. BBC Mundo - O marido de Emilia, um homem pouco empático, parece estar em segundo plano, já que ela se refugia em sua escrita. E a pergunta que fica: o que é o amor quando se está junto há tanto tempo? Bonnett - Quis falar sobre o quarto de Virginia Woolf, que para ela é o trabalho e literalmente um quartinho do apartamento em que se refugiava. Também de um momento nos casamentos... Porque aos 35, você vai embora, mas quando se tem 60 você diz: "Por que eu vou sair?" Há muito medo da solidão na velhice. O marido é um personagem perturbador, é possível se concentrar e ignorá-lo, como quando há um mosquito que zumbe perto do ouvido o tempo todo — que você pode espantar, mas não toma uma decisão. Um casamento de 30 anos é unido por muitas coisas, solidariedades, conhecimentos; se não há violência de fato ou infidelidade, fica difícil jogar tudo para o alto, e eu queria mostrar essa complexidade. É comum que se diga a um amigo que tem um casamento morno algo como 'ah, se separa', mas não é tão fácil. No caso das mulheres latino-americanas, elas também têm medo de que os homens procurem as de 30 anos, e não as que têm 65. A ideia de que ninguém se interessará por você ou amar você de novo. É uma velhice com amigas, mas não com homens. Ultimamente tenho me interessado pelo tema aposentadoria: o homem que saía todos os dias e chegava às 6 da tarde, só te deixava ver alguns ângulos da vida dele, mas quando você o tem lá e ele envelhece, te mostra um futuro inesperado. BBC Mundo - Os homens são necessários ou uma velhice com as amigas é suficiente? Bonnett - Se tivesse que escolher, preferiria uma velhice cheia de amigos, de pessoas felizes, rindo, sem o peso de um marido antipático. BBC Mundo - Além da violência cotidiana que você descreve, há outra violência maior, como a do namorado da juventude que engravidou a companheira. Uma noite ela se recusou a fazer sexo, mas "ele montou nela rudemente, abriu suas pernas com um dos joelhos e a penetrou sem preâmbulos". Como os limites são impostos aos abusadores? Bonnett - O episódio com o namorado me interessou para mostrar que ela não é burra, porque ela toma uma decisão e aborta. Ela o deixa e logo acaba se casando e reconstruindo sua vida. Mas depois há a morte do filho e alguns silêncios, por conta de coisas que não foram ditas. BBC Mundo - É a morte de um bebê, uma morte súbita. Você viveu a experiência de perder seu filho Daniel, e no livro fala-se que "a morte não é algo natural, com o qual podemos concordar", Como as duas coisas estão vinculadas? Bonnett - A morte de um filho quebra uma vida para sempre, embora um filho de 28 anos não seja o mesmo que um bebê. Eu roubei essa experiência de uma amiga, a quem aconteceu exatamente isso. Mas repare que depois tem o episódio em que ela guarda as coisinhas do bebê, e que o marido a joga no chão com uns tapas, porque ele odeia o fato de que aquela ferida ainda esteja aberta nela. Ele quis fechá-la, porque é um homem com sensibilidade limitada. Por outro lado, ela é uma pessoa... Eu sei que há leitoras em quem Emilia desperta raiva. BBC Mundo - Por quê? Bonnett - Ela (Emília) é da minha geração, mulheres que achavam que tínhamos rompido com tudo porque tomamos a pílula, pedimos divórcio, fomos para a universidade, criamos filhos trabalhando. No entanto, a educação que recebemos nos deixou com males atávicos. Alguns arraigados. Tenho amigas que são pessoas muito importantes e que dizem: "Tenho que ir porque meu marido está chegando em casa". As mudanças de mentalidade acontecem muito lentamente, a literatura tem o dever de revelar essas mentiras que contamos a nós mesmos. Por isso gostei muito do livro Fierce Attachments, de Vivian Gornick, (lançado em espanhol com o título Apegos feroces, e no Brasilcomo Afetos Ferozes), porque é esse apego, essa palavra tão forte. BBC Mundo - "Quantos anos levou para que ela deixasse de se sentir escrava da culpa. Culpa por odiar sua mãe, que a mandava se calar apenas com os olhos durante as visitas familiares; seu pai, que a cercava com suas proibições e a humilhava com seus castigos; sua irmã, que a julgou..." Como é o processo de se libertar da culpa? Bonnett - É muito difícil desapegar, porque recebemos aquela educação religiosa que tem toda a ênfase na culpa. Mas sou uma mulher que quase não carrega culpa. Em relação à morte do Daniel quase não tenho. Talvez a mais prevalente seja a de não poder ir ver meus pais tantas vezes quanto deveria. BBC Mundo - Isso veio naturalmente ou houve um esforço? Bonnett - Eu fiz um esforço, naturalmente você não chega a se livrar totalmente da culpa. Mas há também uma epígrafe em uma obra de Susan Sontag que diz: "Olhe para si mesmo nas relações com os outros e se pergunte: será que eu também contribuo?" Há pessoas que não são capazes de se fazer essa pergunta. Somos cegos para nós mesmos, é difícil entender até que ponto somos culpados. Emilia parece uma pessoa sem culpas, ela não sente culpa em relação ao bebê, embora às vezes diga que talvez ela o tenha deixado em uma posição em que não o tocou, não o protegeu, não o levou ao médico. Mas é uma reflexão externa, ela não está atormentada. BBC Mundo - "O corpo não responde, a máquina está desligando... isso não dura muito", disse a Emilia seu pai. Ao que ela pensa: "Como responder a isso, que banalidades, que falsos consolos?" Como é olhar a velhice de frente? Bonnett - A velhice tem duas fases: quando se entra nela e se começa a ver as mudanças que ela traz, abre-se mão de algumas coisas, mas ainda assim a vida é cheia de opções. Essa primeira velhice, entre 60 e 75 anos, é uma época de grande produtividade para os intelectuais. Há mais compreensão, mais bondade, há liberdade em relação ao tempo, às tarefas. Mas aquela que vivi com meus pais, a segunda velhice, é dolorosa, porque envolve algo horrível que é a paralisia na espera da morte. BBC Mundo - "Quem envelhece fica feio", ela pensa, e "o feio é aquele que se odeia". "Como não sentir um certo desgosto ao ver as estrias no baixo ventre, os joelhos roliços, a flacidez que já está causando estragos"... Como você lida com a deterioração física? Bonnett - Alguns se envolvem em uma guerra contra o tempo. São as mulheres que vivem com base no não-envelhecimento e que travam essa batalha diariamente. E há outros, entre os quais me incluo, que estamos registrando as mudanças e buscando as contrapartidas, mas as mudanças doem. Quando você não consegue mais subir e descer escadas no mesmo ritmo, quando você está fazendo turismo e é difícil chegar àquele lugar mais alto, onde a vista é mais bonita. São renúncias duras. Há algum tempo li sobre uma escritora argentina que se suicidou porque não suportava ver-se fisicamente. É preciso acumular sabedoria para não chegar a esses momentos de desespero. BBC Mundo - Como compensa as mudanças físicas? Bonnett - Ouço muita música, leio livros, vou à praia, e não ao Himalaia. Como muito — é o que os velhos fazem, comem —, bebo um bom vinho. Idealmente, tudo poderia se encaixar, mas nunca se encaixa. Sempre falta alguma coisa. BBC Mundo - A que se refere? Bonnett - À saudade do sexo, por exemplo. A renúncia da sexualidade, a renúncia do amor! Nem pense em sexualidade, pense em amor, aquela coisa agitada que existe até os 50 anos; ou mesmo nos 60, há mulheres que se apaixonam nessa idade. Os homens se apaixonam até os 80 anos. BBC Mundo - E por que não as mulheres? Bonnett - Eu estava conversando com Chantal Maillard, uma escritora belga que mora em Málaga, e ela me disse que os homens têm um fardo que nós não temos, que é a libido. Nós, mulheres, a perdemos mais rápido. Aquele impulso brutal que os leva a assistir pornografia o tempo todo ou a se tornarem velhos horríveis que tentam tocar as meninas, nós não temos essas coisas patéticas. Não se vê uma velha tentando colocar a mão na nádega de um jovem de 20 anos, certo? BBC Mundo - Perdemos a libido por conta da nossa natureza ou porque tivemos que reprimi-la e controlá-la culturalmente? Bonnett - Também fomos educadas para reprimir, e isso está reformatando nosso cérebro. É sobre o que vou escrever agora, a relação com meu corpo, que é uma relação geracional, social. Como quando te faziam acreditar que você era "puta" se beijasse um rapaz quando tinha 14 anos. BBC Mundo - Ver a vida como um todo que desmorona é ilusório? Bonnett - É uma maneira metafórica de dizer algo como: minha vida está em pedaços, como dizem as pessoas; ou minha vida foi destruída. Mas há muitas outras tramas que estão lá. O que acontece é que de repente no processo de autoavaliação há uma percepção do trágico. BBC Mundo - O que acontece quando tudo se despedaça? Bonnett - Duas coisas possíveis: ou você afunda, pensa que sua vida é um fracasso, e isso te derruba; ou que você renasce como Emilia, que tem o ímpeto de um segundo nascimento. BBC Mundo - E qual seria o seu equilíbrio? Bonnett - A literatura me salvou, esse é o meu equilíbrio. Ensinou-me a amadurecer e serviu de apoio quando Daniel morreu. Claro que minha vida também tem buracos, como um queijo gruyère, porque você está sempre descontente com algo sobre você ou sobre a realidade, e é por isso que você sente vontade de continuar escrevendo. A literatura é um grande suporte, no meu caso, também tendo sido professora e transmitindo aos outros a visão da arte como caminho de transcendência. Essas duas coisas. E o amor dos poucos que amaram alguém. Agora tenho três netas, e por isso não quero morrer ainda, quero que tenham uma ideia da avó, de quem fui, do que fui, e que não se esqueçam de mim.
2022-11-18
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63602842
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Como a máfia albanesa opera na América Latina e até onde chegam seus tentáculos
No dia 9 de junho de 2022, um carregamento rotulado como sendo de "aspargos finos" deixou a cidade de Trujillo, no noroeste do Peru, em um caminhão de 18 toneladas. A carga se dirigia a Callao, o mais importante porto peruano, perto de Lima. Ali, ela seria levada para um navio que tinha como destino o porto de Roterdã, na Holanda. Mas a carga nunca chegou nem perto de sair do Peru. Os agentes da Direção Antidrogas (Dirandro) da Policia Nacional do país descobriram que as latas de aspargo levavam cocaína líquida. "A droga em Huallaga [norte do Peru] talvez esteja custando US$ 500 ou US$ 700 [cerca de R$ 2,7 mil a 3,8 mil]. Para ir até Lima, seu valor sobe para US$ 1,3 mil [cerca de R$ 7 mil] e, ao chegar a um porto europeu, atinge o preço de US$ 40 mil [cerca de R$ 216 mil] por quilo", explica o diretor da Dirandro, Deny Rodríguez. Foram encontradas duas toneladas da droga no carregamento — que poderia render estimados US$ 77 milhões (cerca de R$ 416 milhões). Fim do Matérias recomendadas Rodríguez afirma que, na pirâmide desta operação de tráfico de cocaína, havia dois cidadãos albaneses: Malo Franc, conhecido como "Pedro", e Meta Gentjan, o "Barbas". Ambos entraram legalmente no Peru como turistas, através da fronteira com o Equador. Mas a Dirandro vem vigiando os dois durante sua permanência no país. "Esses cidadãos albaneses são os encarregados das questões financeiras e logísticas para criar operações de tráfico ilícito de drogas no território peruano", afirma Rodríguez. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Embora não seja numerosa, a presença de homens albaneses em países onde operam os cartéis de produção e tráfico de drogas na América Latina não é algo novo. Desde a década de 2000, membros de clãs familiares da chamada "máfia albanesa" viajaram para a região para ampliar seus negócios na Europa. "Os clãs criminosos albaneses estão na América Latina por um motivo: comprar cocaína a preços baixos", segundo o investigador Alessandro Ford, da organização jornalística InSight Crime. Há pelo menos duas décadas, os albaneses estabeleceram contato com cartéis e grupos de narcotraficantes em países como a Colômbia, Equador, México e Peru. Sem precisar contar com um comando de muitos homens e armas de alto calibre, como fazem os cartéis latino-americanos, eles vêm fazendo negócios substanciais com os cartéis locais. "Sua função é fazer as conexões dos negócios, fechar acordos e tratar de questões logísticas", explica o investigador mexicano Víctor Sánchez, que estuda o crime organizado. "Mas nunca veremos [na América Latina] um comboio armado da máfia albanesa, a não ser guardas para oferecer proteção." Seu poder reside no controle compartilhado com outras máfias, como a italiana, de portos na Europa por onde ingressam drogas e outros produtos ilegais. A Albânia é historicamente um corredor comercial entre a Ásia e a Europa na península dos Bálcãs. E, "quando o comunismo entrou em colapso, a Albânia, junto com a antiga União Soviética, sofreu uma dramática revitalização do crime organizado", explica Ford. Do tráfico ilegal de heroína e armas até cigarros e pessoas, "os clãs criminosos albaneses contrabandeavam de tudo", segundo o investigador. No início da década de 2000, os albaneses começaram a se associar à máfia italiana. Eles se vincularam especialmente aos clãs da 'Ndrangheta, uma poderosa organização criminosa do sul da Itália. "Mas os albaneses logo enviaram seus próprios emissários para a América Latina, para negociar a compra de cocaína no atacado, a preços baixos", explica Ford. "Essas pessoas se estabeleceram principalmente em duas cidades portuárias do Pacífico: Guaiaquil, no Equador, e, em menor escala, Callao, no Peru." A partir de então, eles estabeleceram contatos com outros países onde as drogas são produzidas, como a Bolívia, a Colômbia e o México. A máfia albanesa não é um grupo único. Existem diversos clãs espalhados pela Europa, segundo os especialistas. A organização mais importante, que reúne vários clãs, é a autodenominada Kompania Bello. Ela se estende por países como Reino Unido, Holanda, Bélgica, França, Espanha, Portugal, Itália e Alemanha. "Ela funciona como uma espécie de diáspora, de certa forma como funcionaram, por muitos anos, máfias italianas como a Cosa Nostra, a Camorra e a 'Ndrangheta", explica Sánchez. "O que a máfia albanesa fez foi exatamente começar a colonizar outros países com maiores entradas. E os imigrantes albaneses se reúnem então como uma espécie de família e começam a controlar os mercados ilegais", segundo ele. A Kompania Bello fortaleceu seu poder ao longo dos últimos 20 anos. Mas a Interpol anunciou, em 2020, uma grande operação em 10 países europeus que levou à captura de 20 de seus membros importantes. Foi um duro golpe para os clãs familiares. Segundo a Agência da União Europeia para Cooperação Policial (Europol), a máfia albanesa decidiu cobrir toda a cadeia de venda de drogas, "desde organizar grandes envios diretamente da América do Sul até a distribuição por toda a Europa". Para isso, os clãs conseguiram controlar o tráfego ilegal nos portos de Roterdã, na Holanda, e Antuérpia, na Bélgica, de onde distribuem drogas e praticam o comércio ilegal. A Europol informou que a Kompania Bello vem lavando dinheiro através de "um sistema clandestino alternativo de transferências de origem chinesa, conhecido como sistema 'fei chien'". "Da mesma forma que o sistema de transferências hawala, as pessoas que usam o fei chien depositam uma soma em uma 'agência' da rede em um país. Outro operador retira o montante equivalente em outro lugar do mundo e o transfere para o destinatário desejado", segundo a agência. Desta forma, milhões de euros foram lavados ao longo dos anos, "sem deixar rastros de evidências reveladoras para os investigadores". Mais recentemente, a máfia albanesa na América Latina se associou com uma ala do poderoso cartel de Sinaloa, no México, dirigida por Ismael "El Mayo" Zambada, associado ao traficante Joaquín "El Chapo" Guzmán. Reportagens na imprensa, mencionando informações do Gabinete de Segurança do governo mexicano, indicam que "El Mayo" Zambada formou uma associação com o objetivo de lavar dinheiro com membros do clã dos irmãos Hysa. Com sua ajuda, eles criaram empresas de fachada, como cassinos, restaurantes e uma empresa de exportação, nos Estados mexicanos da Baixa Califórnia, Quintana Roo e Sonora, segundo documentos de inteligência. Para Víctor Sánchez, que é especializado nas operações de grupos criminosos no México, essa associação tem lógica, pois os albaneses "são melhores para lavar dinheiro que os mexicanos". "Para ter boas relações com as organizações mexicanas, eles podem ajudá-las com a lavagem de dinheiro. Mas, certamente, o que gerou o contato foi a venda de drogas", afirma ele. E, para albaneses como os irmãos Luftar, Arben, Fatos e Ramiz Hysa, cuja presença foi detectada no México, os países da região latino-americana oferecem condições favoráveis para os seus negócios. Alessandro Ford afirma que a região é "muito atraente", mesmo para aqueles que não são apenas emissários, mas que se estabelecem por longos períodos ou de forma permanente. "Muitos dos migrantes já têm antecedentes penais na Europa, enquanto alguns são foragidos", explica ele. "Cruzar o Atlântico significa o anonimato, uma segunda oportunidade. Eles podem forjar novas identidades, viver em comunidades fechadas ricas e explorar a menor capacidade de aplicação da lei para traficar cocaína." É o caso do narcotraficante Dritan Rexhepi, que emigrou para o Equador no início da década passada e formou um esquema de envio de drogas para a Kompania Bello. Rexhepi chegou a ser chamado de "rei da cocaína". Ele fugiu da Europa, onde era procurado pela Justiça da Itália e da Albânia, e adotou diversas identidades, como Edmir Kraja e Mutaraj Lulezim, entre outras. Em 2014, foi detido e sentenciado a 13 anos de prisão. A Europol o identificou como "cabeça da organização" e ele continuou a liderar o narcotráfico para a Europa mesmo de dentro da prisão. "Qualquer pessoa perseguida na Europa pode encontrar refúgio relativamente seguro [na América Latina], devido à força das organizações aliadas, à corrupção imperante e às condições econômicas", afirma Sánchez. Mas o especialista adverte que, para grupos como os albaneses, seria muito difícil se estabelecer nos países da região como um cartel completo e independente. "O estabelecimento de uma célula da máfia albanesa desta forma parece complicado porque chamaria muito a atenção", segundo ele. "Para os concorrentes, seria muito fácil eliminá-los, especialmente porque seria uma organização nova que chega sem proteção." Na verdade, há poucos albaneses nesta região e seus lucros na América Latina não são tão grandes quanto os dos grandes cartéis locais do narcotráfico. Seus principais negócios estão na Europa. "Eles levam uma fatia do bolo, mas organizações como as mexicanas detêm a maior parcela", conclui Sánchez.
2022-11-17
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Brasil ainda é visto como ator-chave no mundo apesar de política conturbada
Quarta maior democracia do planeta (atrás de Índia, EUA e Indonésia), o Brasil continua sendo, apesar da crise recente, uma economia em ascensão e um dos países mais influentes entre as nações emergentes. O país avançou social e economicamente desde o fim da ditadura militar em 1985. Nos anos 1990, a moeda foi estabilizada e os indicadores de educação e cobertura vacinal melhoraram. A partir de meados dos anos 2000, 28 milhões de brasileiros foram tirados da linha da pobreza. Apesar dos avanços econômico e social, o Brasil continua sendo um dos países com maior concentração de renda do planeta. Segundo a organização Oxfam, o Brasil levaria 60 anos para atingir o mesmo padrão de distribuição de renda da Espanha. Comparado com vizinhos, o Brasil está 35 anos atrás do Uruguai e 30 da Argentina, segundo a Oxfan. O Brasil é um dos maiores exportadores de produtos agropecuários do mundo, mas o crescimento do agronegócio tem se dado em muito através do avanço da exploração da floresta amazônica, e de outros biomas ameaçados, o que constitui uma das maiores preocupações internacionais, por seu papel na preservação da biodiversidade do planeta e regulação da mudança climática. O Brasil é visto no exterior como um importante ator internacional. Foi um dos primeiros a endossar a ONU, razão pela qual cabe ao chefe de Estado brasileiro a honraria de fazer anualmente o discurso de abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas. Fim do Matérias recomendadas O país é um membro ativo de organizações multilaterais, incluindo o Fundo Monetário Internacional (FMI), do qual passou de devedor a credor em 2009, o Banco Mundial, grupos como o G20 (principal grupo de articulação de países ricos e emergentes) e Brics (junto com China, Rússia, Índia e África do Sul), além de iniciativas de integração latino-americanas. FATOS Capital: Brasília População208 milhões Área8,55 milhões de quilômetros quadrados Principal línguaPortuguês Principal religiãoCristianismo Expectativa de vida(2020): 76 anos (80 para mulheres e 72 para homens) MoedaReal Presidente: Jair Bolsonaro O capitão aposentado do Exército Jair Bolsonaro, político conservador de direita, obteve uma vitória decisiva sobre o Partido dos Trabalhadores (PT), de centro-esquerda, nas eleições presidenciais de outubro de 2018. Antes, Bolsonaro tinha exercido sem grande destaque o mandato de deputado federal por 29 anos, com poucos projetos propostos e nenhum aprovado. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na presidência, seu governo foi marcado por uma coalizão de apoio que combinou conservadorismo social e políticas pró-mercado. Entre eles, destacam-se evangélicos, partidários da flexibilização de leis econômicas e ambientais, defensores do porte de armas, apoiadores da ditadura militar e críticos de políticas sociais para minorias, incluindo a população indígena, o contingente LGBT e descendentes de pessoas escravizadas. Eleito sob uma plataforma de combate à corrupção na esteira da operação Lava Jato, que revelou transações ilícitas bilionárias durante o governo do PT, Bolsonaro fez um governo que, no entanto, também foi acusado de corrupção. Entre os casos mais controversos estiveram as acusações a membros do governo de tentativas de fraudar a compra de vacinas durante a pandemia de covid. O presidente foi acusado de piorar os efeitos da pandemia ao minimizar a seriedade da doença e boicotar as medidas sanitárias de prevenção, como o uso de máscaras. Ao adotar um discurso extremo, que inclui a apologia à tortura e a promessa de "limpar" a esquerda do país, Bolsonaro acendeu temores pela democracia brasileira tanto entre a sociedade brasileira quanto a comunidade internacional. Por outro lado, ele conseguiu incensar seus partidários e perdeu a eleição de 2022 para Lula por uma pequena margem. Com um governo marcado por controvérsias mas estabelecendo uma comunicação direta com seus seguidores através de uma forte atuação nas mídias sociais em que pregava valores tradicionais, Jair Bolsonaro se tornou um ícone da direita conservadora brasileira. Após a derrota nas urnas em dois turnos para o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silvia (PT), milhares de seguidores de Jair Bolsonaro saíram às ruas, bloquearam estradas federais e pediram anulação da eleição e intervenção militar no país. Bolsonaro se tornou o primeiro e único presidente a não conseguir ser reeleito. E Lula o primeiro a ser reeleito para um terceiro mandato. A imprensa no Brasil goza de ampla liberdade, embora jornalistas que investigam temas sensíveis fora dos centros urbanos (ou em áreas violentas dos centros urbanos) sejam alvo de ameaças, intimidações, violência e assassinatos. A relação entre a imprensa e o governo se deteriorou muito desde a chegada de Bolsonaro ao poder. O presidente regularmente atacou jornalistas e fomentou a hostilidade contra a imprensa, que também virou alvo de grupos bolsonaristas. Segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras, a concentração de propriedade dos meios de comunicação é o maior desafio para a liberdade de imprensa no Brasil. "O cenário da mídia brasileira é marcado pela alta concentração da propriedade privada, caracterizada por uma relação quase incestuosa entre os círculos políticos, econômicos e religiosos dominantes," diz a organização. "Dez grandes conglomerados empresariais, pertencentes ao mesmo número de famílias, compartilham o mercado. Os maiores são Globo, Bandeirantes, Record e Folha. O trabalho independente dos jornalistas está em constante perigo, já que a imprensa sofre forte interferência do governo." 1500 (22 de abril) - Chegada dos portugueses, que inicialmente batizaram o território brasileiro de "Ilha de Vera Cruz" e logo "Terra de Santa Cruz" - os primeiros de muitos nomes que o país viria a ter. Estima-se que viviam no Brasil entre um e cinco milhões de indígenas de dezenas de grupos étnicos, entre os quais os tupis e os guaranis que ocupavam a maior parte da costa. A primeira missa é celebrada em 26 de abril de 1500. 1532 - Fundação de São Vicente, a primeira vila do Brasil 1534 - Estabelecimento das divisões do Brasil em capitanias hereditárias com o fim de colonizar o país. O território foi dividido em 14 capitanias e concedido a 12 beneficiários, que eram antigos navegantes, homens de guerra e personagens da corte. Eles se tornaram capitães e governadores nas novas divisões. 1549 - Liderados pelo Padre Manuel da Nóbrega, os jesuítas chegaram ao Brasil com a missão de catequizar os índios e integrá-los aos costumes portugueses. Fundação da cidade de Salvador. 1565 - Fundação da cidade do Rio de Janeiro 1624 - Salvador é tornada capital do Estado do Brasil e assim permanece até 1763 quando a capital é transferida para o Rio de Janeiro. 1750 - Reis João 6º de Portugal e Fernando 6º de Espanha assinam o Tratado de Madrid, que substituiu o Tratado de Tordesilhas (1494) para definir os limites das colônias sul-americanas. O novo entendimento deu ao Brasil contornos muito mais próximos do atual. 1763 - Transferência da capital de Salvador para Rio de Janeiro 1808 - Fugindo da ameaça representada pelo imperador francês Napoleão Bonaparte, a corte portuguesa deixa Portugal e se muda para o Rio de Janeiro. Abertura dos portos e criação de instituições como a Imprensa Régia, a Real Fábrica de Pólvora, o Banco do Brasil, a Real Academia Militar e o Laboratório Químico-Prático. 1815 - Elevação do Brasil a Reino Unido de Portugal e Algarve 1822 - Dia do Fico. Após mais de uma década residindo no Brasil, a corte foi pressionada a retornar a Portugal. Dom João embarcou a Lisboa em 1821 e deixou Dom Pedro como príncipe regente do Brasil. 1822 (7 de setembro) - Dom Pedro declara a independência de Portugal e vira o imperador Pedro 1º. 1831 - Dom Pedro 2º se torna o imperador brasileiro. 1888 - Abolição da escravatura após décadas de abertura gradual. 1889 - Proclamação da República. A monarquia é derrubada e uma república federal é estabelecida; nas décadas seguintes, o governo é dominado pelos proprietários europeus das plantações de café. 1930 - Getúlio Vargas chega ao poder através de um golpe. Seu governo segue uma linha nacionalista, anticomunista e autoritária. Vargas dá impulso a uma industrialização fomentada pelo Estado e introduz melhorias no bem-estar social. 1945 - Vargas é derrubado por um golpe que restabelece o regime democrático e inaugura a segunda República Brasileira. 1960 - A capital é transferida do Rio de Janeiro para a recém-construída Brasília. 1964 - O presidente de esquerda João Goulart é deposto num golpe que dá início a duas décadas de governo militar. O regime reprime a liberdade de expressão e tortura os opositores, sobretudo a partir do Ato Institucional nº 5 (AI-5) em dezembro de 1968. A economia dá saltos, mas grande parte do "milagre econômico" é possibilitada pelo aumento descontrolado da dívida externa. 1985 - Retorno do governo civil. Tancredo Neves é eleito indiretamente pelo Congresso, mas morre antes de tomar posse. José Sarney vira o primeiro presidente da redemocratização. 1988 - Promulgação da nova Constituição. 1989 - Primeiras eleições presidenciais diretas, nas quais Fernando Collor derrota Luiz Inácio Lula da Silva no segundo turno. Collor sofre um impeachment em 1992. 1993 - Brasileiros votam em plebiscito para escolher a sua forma de governo: república ou monarquia, sistema presidencialista ou parlamentarista. 87% votam pela república e 70% pelo presidencialismo. 1994 - Plano Real iniciado durante o governo de Itamar Franco (1992-1994) para controlar a inflação e estabilizar a moeda brasileira. Creditado com o sucesso do plano, Fernando Henrique Cardoso, ex-ministro da Fazenda e das Relações Exteriores, é eleito presidente. 2002 - Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), popularmente conhecido como Lula, vence as eleições e se torna o primeiro presidente de esquerda do Brasil em mais de 40 anos. Lula é posteriormente reeleito para um novo mandato de 4 anos. 2011 - Ao assumir a presidência em 1º de janeiro. a aliada e sucessora de Lula, Dilma Rousseff, se torna a primeira mulher a ocupar o cargo máximo no Executivo brasileiro. 2016 - Um após ter sido reeleita para um segundo mandato, Dilma sofre um impeachment. Ela é acusada de irregularidades financeiras, mas seus apoiadores dizem que a manobra foi um golpe para permitir à direita voltar ao poder. 2018 - Lula é preso em abril após ser condenado em segunda instância pelo juiz Sérgio Moro, no contexto da Operação Lava Jato. Com a condenação, Lula fica inelegível. Em dezembro de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) autoriza o ex-presidente a responder pelos processos em liberdade, e Lula deixa a cadeia em Curitiba. 2018 - Jair Bolsonaro vence as eleições presidenciais, derrotando o candidato do PT, Fernando Haddad. 2019 - Uma série de revelações do site The Intercept apontam conluio entre o juiz da Lava Jato, Sérgio Moro, e o ex-procurador Deltan Dallagnol, para condenação de Lula na operação. 2021 - STF anula as sentenças contra Lula nos processos da Lava Jato. Moro foi considerado parcial no caso e a vara de Curitiba não foi considerada como a corte correta para efetuar o julgamento. 2021 - CPI da covid-19 revela diversas irregularidades na forma como o governo Bolsonaro lida com a pandemia no Brasil. Seu governo é acusado de demora e de irregularidades na compra de vacinas, de promover métodos comprovadamente ineficazes de tratamento da doença, e de boicotar medidas sanitárias de prevenção. Até o fim de 2022, cerca de 688 mil brasileiros tinham morrido em consequência da covid-19. 2022 - Lula vence as eleições de outubro. Apoiadores de Bolsonaro saem às ruas inconformados com o resultado, bloqueiam importantes rodovias federais e fazem manifestações em diversas cidades e em frente a quartéis pedindo anulação das eleições e intervenção das Forças Armadas no governo.
2022-11-15
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Costa Rica, o país que extinguiu seu exército para investir em saúde e educação
A pequena república centro-americana da Costa Rica é exceção em uma região marcada por exércitos inclinados a intervir na política. O país aboliu suas forças armadas em 1948, dando início a uma tradição de pacifismo e neutralidade em conflitos bélicos. Em 1987, o ex-presidente Óscar Arias recebeu o prêmio Nobel da Paz por mediar o histórico acordo de paz de Esquipulas 2, que pôs fim a guerras civis nos vizinhos El Salvador e Nicarágua. Um estudo do Observatório de Desenvolvimento da Universidade da Costa Rica afirmou, em 2018, que a abolição das forças armadas e a política de pacifismo permitiram ao país aumentar seus investimentos em saúde e educação. Hoje, a Costa Rica tem níveis de bem-estar acima da média latino-americana. Embora não possua forças militares, as forças de segurança costarriquenhas, civis, são bem-treinadas e mais numerosas que os exércitos de nações vizinhas. A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) tem sua sede na capital, San José. Fim do Matérias recomendadas Como o próprio nome indica, a Costa Rica possui uma exuberante riqueza natural nas suas costas do Atlântico, do Pacífico e do Caribe. O país é uma potência no ecoturismo, aproveitando a beleza de suas praias, cadeias montanhosas, vulcões e vida selvagem. Tradicionalmente produtor de bens agrícolas, como o café e a banana, o país se converteu em uma economia diversificada, em que o turismo é uma importante fonte de renda. Capital: San José População4,8 milhões Área51 mil quilômetros quadrados Principal línguaEspanhol (oficial), inglês Principal religiãoCristianismo Expectativa de vida(2020): 80 anos (83 para mulheres e 78 para homens) MoedaCólon costarriquenho Presidente: Rodrigo Chaves Robles Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O economista Rodrigo Chaves foi empossado presidente em maio de 2022 após vencer um pleito marcado pela polarização política e uma abstenção recorde de 43% no segundo turno. Antes das eleições, Chaves era considerado um "azarão" com pouca experiência política. Durante a campanha, ele subiu o tom contra os partidos tradicionais e criticou duramente o seu rival, o ex-presidente José María Figueres. Porém, foi acusado de fazer populismo eleitoral. Chaves é doutor em economia pela Universidade de Ohio, nos EUA, e recebeu uma bolsa da Universidade Harvard para estudar o fenômeno da pobreza na Ásia. Ele foi diretor do escritório do Banco Mundial na Indonésia, instituição onde trabalhou por quase 30 anos. Em uma breve passagem pela política, Chaves foi ministro da Economia por seis meses, enfrentando o desafio de reavivar uma economia combalida pelos efeitos da pandemia. Costarriquenhos ouvidos por institutos de pesquisas de opinião dizem que as prioridades de seu governo devem ser o desemprego e a economia. A Costa Rica possui um cenário diversificado para a imprensa e radiodifusão. Segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras, os princípios de liberdade de imprensa e liberdade de expressão são respeitados e os jornalistas contam com um sólido marco legal para exercer sua profissão. Além de vários veículos de comunicação nacional, existem vários veículos regionais com uma variedade de pautas (política, cultural, religiosa, comercial, universitária, etc.) Em 2020, mais de 80% da população costarriquenha tinha acesso à internet, segundo o Banco Mundial. Brasil e Costa Rica mantêm relações diplomáticas desde 1906, mas a primeira visita oficial de um presidente brasileiro à Costa Rica só aconteceu em 2000, com Fernando Henrique Cardoso. Presidentes costarriquenhos haviam feito até então três visitas ao Brasil (em 1974, 1997 e 1999). As relações bilaterais se intensificaram desde então. O ex-presidente costarriquenho Óscar Arias visitou o Brasil em 2008 e Luiz Inácio Lula da Silva retribuiu a vista em 2009. Em 2010, os costarriquenhos adotaram o padrão de TV digital brasileiro, ISDB-TB, uma adaptação do padrão japonês. Em setembro de 2020, o Mercosul apresentou à Costa Rica uma proposta para um acordo de livre comércio. Os países assinaram um mecanismo de consulta política em 2021 para discutir temas como comércio, cooperação e estabilidade regional. Por sua posição nas relações globais, a Costa Rica é vista pelo Itamaraty como uma nação parceira em temas como multilateralismo, direitos humanos, meio ambiente e desenvolvimento social. Além disso, segundo o Itamaraty, muitos surfistas brasileiros visitam as cidades costeiras da Costa Rica, sobretudo do Pacífico, onde permanecem durante toda a temporada de surfe. Os principais destinos dos turistas brasileiros são San José, Alajuela, Heredia e Cartago. Em 2019, mais de 26 mil brasileiros entraram no país. Datas importantes na história da Costa Rica: 1502 - Cristóvão Colombo avista a Costa Rica. Colonização espanhola começa em 1522. 1563 - Espanhóis estabelecem a primeira capital oficial da Costa Rica, na cidade de Cartago (sudoeste de San José). 1821 - Costa Rica declara sua independência da Espanha e adere ao império mexicano. 1823 - Costa Rica se torna uma província da Federação Centro-Americana, ao lado de El Salvador, Guatemala, Honduras e Nicarágua. 1838 - A Costa Rica se torna um país independente após a desintegração das Províncias Unidas da América Central. 1849-59 - Liderados por Juan Rafael Mora, costarriquenhos resistem aos ataques de William Walker, um filibusteiro (corsário) americano que tentava controlar a região com um exército de mercenários. Mais tarde, Mora se tornaria presidente do país. 1948 - Ex-presidente Rafael Angel Calderón Guardia perde a eleição por uma pequena margem e se recusa a aceitar a vitória de Otillio Ulate. Começa uma sangrenta guerra civil que dura 44 dias. Ao final, toma posse um governo temporário liderado por José Figueres. 1948 - A Costa Rica adota uma nova Constituição que suprime o exército. Na esteira da guerra civil, país deixa para trás um longo histórico de conflitos resolvidos pela força. 1955 - Disputas de fronteira com a Nicarágua são resolvidas por mediação da Organização dos Estados Americanos (OEA). 1987 - Líderes da Nicarágua, El Salvador, Guatemala e Honduras assinam o acordo de paz de Esquipulas 2, elaborado por Óscar Arias Sanchez. O presidente costarriquenho leva o Prêmio Nobel da Paz naquele ano. 2009 - Arias, eleito para um segundo mandato em 2006, diz que a Costa Rica restabelecerá os laços com Cuba, 48 anos após o rompimento com o país em 1961. 2010 - Laura Chinchilla vira a primeira mulher a presidir a Costa Rica. 2015 - Quase 8 mil migrantes cubanos partem para El Salvador como parte de um programa-piloto acordado pelos países centro-americanos para permitir sua passagem segura para os EUA. Eles haviam permanecido na Costa Rica por quatro meses, depois de a Nicarágua recusar passagem. 2015 - A Costa Rica ganha uma longa disputa territorial com a Nicarágua, depois que o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), em Haia, decide que o país tem direito a uma pequena área de pântano conhecida como Isla Portillo no rio San Juan. 2022 - Rodrigo Chaves Robles torna-se o 49º presidente costarriquenho, após vencer eleições marcadas por polarização e alta abstenção.
2022-11-15
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Equador é colcha de retalhos étnica e possui variedade natural em abundância
Com um rico passado colonial e indígena, o Equador é uma colcha de retalhos de identidades étnicas. O país exibe ainda uma impressionante variedade natural, que inclui uma costa de mais de dois mil e duzentos quilômetros e seu território abriga parte dos Andes e da Amazônia, em uma área aproximadamente do tamanho do Rio Grande do Sul. Além disso, o país possui o arquipélago das Galápagos, ilhas vulcânicas cuja rica e exclusiva fauna serviu de base para Charles Darwin elaborar sua teoria da evolução. A história do país remonta a pelo menos 11 mil anos atrás, quando o território equatoriano era habitado por grupos indígenas organizados em clãs, que interagiam entre si. Entre as mais antigas culturas deste período formativo está a cultura Las Vegas, que existia na península de Santa Elena entre os anos 9 mil e 6 mil antes da era cristã. Ao longo dos milênios seguintes, novas culturas foram surgindo, baseadas na agricultura e fazendo uso da cerâmica. No início do século 16, essas civilizações caíram sob o jugo do império Inca, o maior da América pré-colombiana. O imperador Huayna Capac fez de Quito a capital secundária do império, mas logo toda a civilização inca seria subjugada à coroa espanhola. Em 1822, o Equador se tornou independente como parte da Grã-Colômbia nas guerras de libertação lideradas por Simón Bolívar. Tradicionalmente um país agrícola, a economia do Equador foi transformada a partir dos anos 1960 pelo desenvolvimento da indústria e a descoberta do petróleo. A economia cresceu rapidamente e houve progresso na saúde, educação e habitação. Nos anos 1970, o país esteve sob regimes autoritários, incluindo um regime militar apoiado pelos Estados Unidos sob o pretexto de conter o avanço do comunismo e da influência cubana no país. O país vivenciou altas taxas de crescimento com grandes níveis de endividamento. A crise da dívida e a queda dos preços do petróleo nos anos 1980 afundaram a economia do país. Fim do Matérias recomendadas A partir do fim dos anos 1990, o Equador enfrentou uma grave crise econômica complicada por medidas neoliberais, que resultaram em crises políticas. Dois presidentes foram destituídos entre 1997 e 2000, quando um golpe de Estado catapultou um coronel aposentado, Lucio Gutiérrez, aos olhos do mundo. Gutiérrez foi eleito em 2002, mas caiu três anos depois após tentar dissolver o Supremo Tribunal e perder o apoio das forças armadas. Em 2007, Rafael Correa assumiu como presidente do Equador. Ao lado do venezuelano Hugo Chávez e o boliviano Evo Morales, Correa liderou a onda mais radical de esquerda que se espalhou pelos países andinos nessa época. Beneficiando-se do boom das commodities, Correa adotou uma série de medidas de cunho social e incorporou o apoio das principais entidades indígenas - que desde os anos 1990 vinham se tornando uma importante força política no país. Após três mandatos consecutivos, Correa passou a faixa ao ex-vice-presidente Lenin Moreno, que logo se distanciou do seu ex-mentor político, adotou políticas vistas como neoliberais e se aproximou dos Estados Unidos. Em 2019, essas medidas levaram a uma série de protestos que obrigaram o governo a mudar temporariamente a sua sede de Quito à cidade costeira de Guayaquil. Em maio de 2021, o banqueiro Guilherme Lasso se tornou o primeiro líder de direita no Equador em 14 anos. Capital: Quito População16,5 milhões Área272 mil quilômetros quadrados Principal línguaEspanhol (oficial) e outras 14 línguas ancestrais, como quéchua e shuar Principal religiãoCristianismo Expectativa de vida(2020): 77 anos (80 para mulheres e 75 para homens) MoedaDólar americano President: Guillermo Lasso Derrotado nas eleições de 2013 e 2017, Lasso venceu por uma estreita margem o socialista Andrés Arauz, apoiado pelo ex-presidente Correa, que vive em exílio na Bélgica. Entre suas medidas após tomar posse, em 2021, Lasso tem anunciado um amplo programa de privatizações que inclui a empresa pública de telecomunicações e o Banco del Pacífico. A chamada Lei de Criação de Oportunidades (CREO), homônima ao seu partido, inclui uma reforma fiscal e a flexibilização do emprego. As posições de Lasso no campo social são conservadoras: ele é membro da Opus Dei e se opõe à legalização do aborto mesmo em casos de estupro e mal-formação fetal. Jornalistas e veículos de comunicação enfrentam um ambiente político e jurídico hostil no Equador, segundo grupos de liberdade de imprensa. As leis dão ao governo poderes para regular o conteúdo editorial e impor sanções. O rádio é um dos meios de maior alcance popular. Há centenas de estações no país, algumas transmitindo sua programação em línguas indígenas. As novelas brasileiras e, mais recentemente, seriados de televisão, constituem um dos principais passatempos para os telespectadores equatorianos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Junto com o Chile, o Equador é um dos poucos países na América do Sul que não fazem fronteira com o Brasil. Entretanto, os países possuem importantes relações comerciais e no campo do investimento, cultura e desenvolvimento desde 1844. Além disso, integram blocos regionais, como a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), e o Tratado de Cooperação Amazônica, criado em 1978 para discutir o desenvolvimento sustentável da região. Desde 2004, o Equador é também um membro associado do Mercosul. Ao longo do século 20, o Brasil foi um importante mediador nas disputas territoriais entre o Equador e o Peru, que levaram à assinatura de um acordo de paz em Brasília em 1998. Tensões políticas, no entanto, também existiram. Em 2008, Correa expulsou a construtora brasileira Odebrecht do país sem aviso prévio, acusando a empresa de não corrigir danos estruturais na hidrelétrica de San Francisco, que fornece 12% da energia do Equador. Em resposta, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva cancelou uma visita que faria ao país. Em 2010, a Petrobras abandonou suas operações do território equatoriano após se negar a assinar um novo contrato que previa ganhos maiores para o Estado. Em 2016, por outro lado, Correa solidarizou-se com Dilma Rousseff após o seu impeachment, retirando seu embaixador em Brasília. Os presidentes Guilherme Lasso e Jair Bolsonaro são aliados políticos na região. Bolsonaro compareceu à posse de Lasso em maio de 2021. Segundo o órgão de promoção comercial equatoriano, ProEcuador, o país andino é o principal fornecedor de chumbo refinado e conservas de pescado para o Brasil. O órgão também destaca a entrada de novos produtos equatorianos no mercado brasileiro, como o camarão. Datas importantes na história do Equador: 1534 - Conquista espanhola. 1822 - O Equador passa a fazer parte da Gran Colômbia independente, que também abrange a Colômbia, Panamá e Venezuela. O país se torna totalmente independente em 1830. 1934 - José Maria Velasco Ibarra é eleito presidente. Nos próximos 30 anos, ele será eleito presidente cinco vezes e derrubado quatro vezes. 1941 - Equador é invadido pelo Peru e no ano seguinte cede ao inimigo cerca de 200 mil km2 de território em disputa. 1968 - Velasco é eleito mais uma vez. Dois anos mais tarde, em meio a uma crise financeira, ele suspende a constituição e passa a governar por decreto. Quatro anos depois, é deposto por um golpe militar. 1972 - Início da extração de petróleo. Equador surge como um importante produtor da commodity. 1979 - Fim do regime militar. 1995 - Disputas territoriais levam à chamada Guerra do Cenepa com o Peru em janeiro e fevereiro de 1995. As negociações para delimitar as fronteiras envolveram Brasil, Argentina, Chile e Estados Unidos e culminaram com a assinatura da Ata de Brasília em 1998. 1997 - Protestos pedindo a demissão do Presidente Abdala Bucaram Ortiz reúnem dois milhões de pessoas em Quito, após o anúncio de aumentos de preços de 600%. O Congresso aprova a sua demissão por incompetência mental. 2006 - O socialista Rafael Correa vence as eleições presidenciais. Ele lança um programa de reforma social para aliviar a pobreza e ampliar a propriedade estatal da indústria petrolífera. 2008 - Uma nova constituição é aprovada em referendo por 64% dos eleitores. O Estado se define como plurinacional e intercultural, reconhecendo diferentes povos indígenas e nacionalidades. 2009 - Correa é eleito pela nova Constituição. Ele anuncia a nacionalização da produção petroleira e se recusa a estender o uso da base militar de Manta pelos EUA. 2012 - Equador concede asilo ao fundador do Wikileaks, Julian Assange, em sua embaixada em Londres. Autoridades suecas pedem sua extradição por estupro. Assange qualifica as acusações de politicamente motivadas pela revelação de segredos militares dos EUA, aliados da Suécia. Autoridades suecas abandonam o caso em 2019, mas os EUA continuam pedindo a extradição de Assange. 2017 - Eleito Lenin Moreno, ex-vice de Correa. Moreno se distancia do seu mentor político e adota medidas neoliberais. 2018 - Equatorianos decidem em referendo limitar os mandatos presidenciais a dois consecutivos. 2021 - Guilherme Lasso encerra 14 anos de governo de esquerda ao vencer o candidato socialista Andes Araúz, preferido de Correa. 2022 - Lasso anunciou amplo programa de privatizações que inclui a empresa pública de telecomunicações e o Banco del Pacífico.
2022-11-14
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México, a nação de cultura milenar que que se tornou a segunda maior economia latino-americana
Dotado de uma cultura milenar, o México abrigou algumas das mais importantes civilizações do período pré-hispânico, ou seja, anterior à chegada dos europeus às Américas. Essas culturas incluem os astecas, olmecas, izapas, maias, zapotecas, mixtecas, huastecas, purépechas, totonacs e toltecas. Ao longo de milhares de anos, esses povos floresceram na zona conhecida como Mesoamérica, que inclui o sul do México, a Península de Yucatán (onde fica a cidade de Cancún), Guatemala, Belize, El Salvador e as zonas costeiras de Honduras, Nicarágua e Costa Rica. Seu legado contém algumas das contribuições mais importantes para o patrimônio histórico mundial. Entre 2.000 a.C e 1697 d.C, os maias habitaram a região sudeste do México, assim como toda a Guatemala e Belize. Eles desenvolveram um dos mais sofisticados sistemas de escrita da América pré-colombiana, e ficaram conhecidos por sua arte, arquitetura, matemática, calendário e sistema astronômico. Os astecas floresceram entre 1300 e 1521. As ruínas de sua capital, Tenochtitlán, estão localizadas na atual Cidade do México. O México declarou sua independência em 1821, ao fim de uma sangrenta década de luta contra os espanhóis. Em 1845, os Estados Unidos anexaram a área do atual Texas. Na guerra que se seguiu, o México foi derrotado e perdeu territórios que hoje incluem a Califórnia, Nevada, Novo México, Arizona e Utah. Fim do Matérias recomendadas A Revolução Mexicana de 1910, sete anos antes da vitória dos bolcheviques na Rússia, pôs fim a 35 anos da ditadura militar de Porfírio Diaz. Seus líderes defendiam a reforma agrária, expropriação dos latifúndios, expansão do voto e valorização da cultura indígena. Muitos desses objetivos foram alcançados em parte, mas muitos problemas persistiram. Ao longo do século, o México vivenciou uma deterioração do regime político dominado pelo Partido Revolucionário Institucional (PRI), que governou por 70 anos, de tendência conservadora. O México tem a segunda maior economia da América Latina, uma das 15 maiores do mundo e é um grande exportador de petróleo. Mas a prosperidade não chega a todos e a pobreza é alta nas zonas rurais e periferias das zonas urbanas. Vários carteis disputam entre si o controle do tráfico de drogas em diferentes partes do país. A violência aflige principalmente a fronteira norte, onde milhares de mexicanos desiludidos tentam migrar para os Estados Unidos. O país assumiu importância crescente na indústria cultural no século 21 com o avanço de sua produção cinematográfica. Três diretores mexicanos - Alfonso Cuarón, Alejandro González Iñarritu e Guillerme del Toro - ganharam Oscars de melhor diretor - Cuarón e González Iñarritu duas vezes cada. FATOS Capital: Cidade do México População130 milhões Área1,95 milhão de quilômetros quadrados Principal línguaEspanhol e outras 67 línguas indígenas Principal religiãoCristianismo Expectativa de vida(2020) 75 anos (78 para mulheres e 72 para homens) MoedaPeso LÍDER Presidente: Andrés Manuel López Obrador Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Andrés Manuel López Obrador, conhecido popularmente no país como AMLO, obteve uma vitória esmagadora nas eleições presidenciais de julho de 2018. Para alguns analistas, ele é considerado o expoente de uma nova onda de esquerda na América Latina, após vários governos de direita na região. AMLO foi eleito com uma plataforma de combate à corrupção e aos efeitos econômicos de décadas de política econômica de livre mercado. Para o presidente, tais políticas resultaram em maior desigualdade social e níveis endêmicos de violência, forçando muitos jovens mexicanos a buscar melhores condições de vida no exterior. López Obrador foi prefeito da Cidade do México e se candidatou à presidência em duas ocasiões anteriores - perdendo para Enrique Peña Nieto, do PRI, de centro-esquerda, em 2012. Para dar um exemplo de probidade pessoal, suas primeiras medidas no cargo incluíram uma redução do próprio salário e a venda do avião oficial. Ele também se recusou a usar a tradicional residência de Los Pinos, afirmando que o conjunto de mansões e escritórios de luxo não era condizente com um governo voltado para os pobres. MÍDIA Segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF), "ano após ano, o México continua sendo um dos países mais perigosos e mortais do mundo para os jornalistas". Embora a liberdade de imprensa seja garantida por lei, na prática a censura é exercida por meio de ameaças ou ataques diretos a jornalistas. Desde 2000 e até 2022, mais de 150 jornalistas haviam sido mortos no país, ainda de acordo com a RSF. A violência é cometida tanto pelos carteis de crime organizado quanto pelas autoridades corruptas que atuam em conluio. Além disso, aponta a organização, o México é um dos países com maior concentração midiática do mundo. O setor de telecomunicações é dominado pela Telmex. O de rádio e televisão, pela Televisa. O grupo Organización Editorial Mexicana, que possui 70 jornais diários, 24 estações de rádio e 44 sites, é outro ator importante. Nesse contexto, os pequenos veículos independentes têm muita dificuldade de se estabelecer e até mesmo de existir. A entidade diz que não apenas López Obrador não iniciou reformas para conter a espiral de violência contra a imprensa, como adota uma retórica violenta e estigmatizante contra jornalistas. RELAÇÕES COM O BRASIL Brasil e México mantêm relações diplomáticas desde 1825. Através de sua mãe, a imperatriz Maria Leopoldina, Dom Pedro 2º era primo do imperador Maximiliano, que governou o México por três curtos anos antes de ser executado pelos republicanos em 1867. Ambos os países se tornaram independentes sob inspiração do Iluminismo e da Revolução Francesa. As duas maiores economias da América Latina cooperam em diversos âmbitos internacionais, incluindo fóruns regionais de cooperação, entidades multilaterais como a Organização dos Estados Americanos (OEA) e grupos de coordenação política e econômica, como o G-20. Desde 1994, o México faz parte da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), um clube ao qual o Brasil aspira um dia pertencer. Devido, em parte, às suas posições geográficas distintas, Brasil e México veem o mundo por prismas diferentes. O México compõe o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA, em inglês) com Estados Unidos e Canadá. Já no Brasil muitos setores se opuseram nos anos 1990 à criação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), um bloco econômico que integraria todo o continente. Tanto o Brasil quanto o México experimentaram processos de industrialização voltados para seus mercados internos. Isso não impediu, porém, que os dois países assinassem acordos em inúmeras áreas, incluindo comercial, científica, turística, educacional, meio ambiente, combate às drogas e fiscal. As percepções mútuas são influenciadas pela cultura popular, incluindo a música, as artes plásticas e as telenovelas - produtos de exportação de ambos os países. O carro do personagem senhor Barriga, no popular seriado "Cháves", é uma Brasília, produto de exportação brasileiro. Muitos mexicanos amantes do futebol recordam com afeto que o Brasil conquistou o seu tricampeonato mundial no Estádio Azteca em junho de 1970, com uma performance histórica do elenco que incluía Jairzinho, Pelé, Gérson, Tostão e Rivelino. LINHA DO TEMPO Importantes datas na história do México: Séculos 3 a 7 - Auge da civilização maia, considerada uma das mais desenvolvidas das Américas no período anterior à chegada dos europeus. Séculos 14 a 16 - Consolidação da civilização asteca, herdeira dos povos que a anteceram na região. 1519 - O Exército da Espanha, liderado por Hernán Cortés, chega a Veracruz, marcando o início da conquista espanhola do México. 1521-1820 - O México forma parte do Vice-reino da Nova Espanha. 1810-21 - A Guerra de Independência termina com a criação do Impérico Mexicano, que dura pouco e inclui a América Central, até a fronteira com a atual Costa Rica, assim como o que hoje é o sul dos Estados Unidos. 1824 - O México torna-se uma república federal. Províncias centro-americanas se tornam independentes. 1846-8 - A Guerra Mexicana-Americana termina com o México sendo forçado a vender aos Estados Unidos suas províncias do norte (incluindo os futuros Estados americanos da Califórnia, Nevada, Novo México, Arizona e Utah). 1910-20 - A Revolução Mexicana, liderada por nomes como Pancho Villa e Emiliano Zapata, leva ao estabelecimento de uma república constitucional. 1929 - Formação do Partido National Revolucionário, que mais tarde se tornaria o Partido Revolucionário Institucional, ou PRI, que dominou a política no país até o ano 2000. 1968 - Forças de segurança mexicanas reagem violentamente, a tiros, a uma manifestação estudantil na Cidade do México. Centenas de manifestantes são mortos ou feridos. 1976 - Enormes reservas de petróleo marítimas são descobertas no Golfo do México. 1994 - Rebeldes zapatistas, liderados pelo carismático subcomandante Marcos, iniciam um levante exigindo mais direitos para os cerca de 10 milhões de indígenas no México, 4 milhões deles no Estado de Chiapas. 2000 - Vicente Fox quebra o domínio político de sete décadas do PRI ao vencer as eleições presidenciais. 2006 - Presidente Felipe Calderón lança uma guerra interna contra as quadrilhas de traficantes de drogas. A violência aumenta e se transforma numa crise nacional de segurança. 2018 - O esquerdista ex-prefeito da Cidade do México Andrés Manuel López Obrador obtém uma ampla vitória nas eleições presidenciais. 2022 - Cumprindo promessa de campanha, o presidente Obrador convoca referendo para que os mexicanos decidam se ele deve ou não continuar liderando o país. Obrador foi confirmado na presidência por cerca de 90% dos eleitores.
2022-11-14
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A vida extraordinária de Flora Tristán, a sindicalista feminista que inspirou até Karl Marx
Você pode não saber exatamente quem ela é, mas Flora Tristán não é exatamente uma desconhecida. Embora tenha desaparecido da história por um tempo, ela foi resgatada com tanta força que, além de livros e inúmeros artigos sobre ela tanto na França quanto no Peru, agora há ruas, escolas e organizações de ajuda feminina que levam seu nome. E não é só isso. Flora Tristán é uma das duas protagonistas de O Paraíso na Outra Esquina, romance escrito pelo Prêmio Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa. O outro protagonista é o pintor pós-impressionista Paul Gauguin, seu neto. Então, por que escrever outro livro sobre ela, como acaba de fazer a autora Brigitte Krülic, professora da Universidade de Paris-Nanterr ? Fim do Matérias recomendadas "Flora Tristán é uma personalidade excepcional do século 19, não só porque é mulher, mas também porque é uma mulher que resume todas as dificuldades ligadas ao destino das mulheres na primeira metade desse século e depois disso", disse a autora à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC). "Ao mesmo tempo, ela é um exemplo de uma capacidade incomum de como superar essas dificuldades." "Ela é precursora de muitas coisas: sindicalismo, feminismo, a exigência de liberdade para que as mulheres evoluam no espaço público sem serem incomodadas. Além disso, ser francesa e peruana é uma ponte entre dois mundos." Para a especialista em história das ideias políticas, Flora Tristan é uma personalidade extremamente interessante. "Flora Tristán é uma filha espiritual e política da Revolução, parte daqueles pensadores que viveram a onda de choque da Revolução Francesa, seja para condená-la ou pensar em suas consequências ou tentar cumprir suas promessas." Mas havia algo além disso. "Ela não apenas escreveu e estabeleceu marcos, mas teve uma vida digna de um romance de aventura. Ela era irresistível: eu precisava olhar mais a fundo como essa franco-peruana viveu sua vida, lutou suas batalhas e escreveu." Flora nasceu em 7 de abril de 1803. "Seu pai era uma personalidade da aristocracia crioula peruana", diz Krülic. Sua mãe era uma francesa que havia fugido para Bilbao, na Espanha, durante a Revolução. "No começo, tudo parecia um conto de fadas." Sua casa em Paris era frequentada por personalidades como Simón Bolívar, o futuro libertador de cinco nações; o escritor e filósofo Simón Rodríguez, e o naturalista Aimé Bonpland. Mas logo tudo isso mudou. "Aos 4 anos, ela perdeu o pai e ficou em uma situação em que acumulou todos os problemas e todas as desvantagens." Embora seus pais tivessem se casado diante de um padre na Espanha, o procedimento não era válido para as autoridades e leis francesas, pois eles não haviam se casado no civil. Portanto, ela não foi reconhecida como herdeira legal de seu pai, cujo irmão era vice-rei do Peru. "Como mulher, bastarda, órfã e pobre, ela não teria educação." Mas Flora era autodidata. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Aos 17 anos, ela casou-se com seu patrão, André-François Chazal, um homem violento que a deixou quatro anos depois com dois filhos para criar e uma terceira a caminho. Essa terceira filha era Alina, que viria a se tornar mãe de artista francês Paul Gaugin. Assim, começou uma luta desesperada pelo divórcio, que durou 14 anos. Ela saiu de casa e passou a viver como se fosse uma fugitiva. Flora precisou se esconder e trabalhar o máximo que podia para sustentar seus filhos, mesmo sem o apoio de sua mãe — para quem uma mulher que abandonava o marido era pior que uma prostituta. Segundo seu próprio relato, depois de realizar vários trabalhos, ela conseguiu um emprego com uma família inglesa com quem viajou pela Europa e visitou o Reino Unido pela primeira vez. Ela voltaria para a França em 1839 e em 1840 publicaria Passeios em Londres, obra em que denunciava as desigualdades que presenciara, culpando os aristocratas e o sistema capitalista por tal injustiça. O livro se tornou um dos textos fundamentais do incipiente movimento socialista. Mas nem esse livro nem todos os outros que ela escreveu provavelmente teriam visto a luz do dia se não fosse pela viagem que realizou em 1833. "Decidi ir para o Peru e refugiar-me no seio da minha família paterna, esperando encontrar lá uma posição que me fizesse voltar a entrar na sociedade", escreveu ela em Peregrinações de umaPária, de 1838. Como em um romance de aventuras, conta Flora, a ideia da viagem surgiu depois de uma conversa casual em um albergue parisiense com um capitão chamado Zacarías Chabrié. Em suas viagens, Chabrié havia conhecido a poderosa família Tristán, chefiada por don Pío Tristán y Moscoso, irmão mais novo do pai de Flora. O capitão sugeriu que ela escrevesse uma carta para ele. A resposta do tio demorou a chegar e, embora não prometesse nada, ele enviou dinheiro para que ela fosse visitá-los em Arequipa. Embora fosse incomum e perigoso uma mulher viajar desacompanhada naquela época, Flora atravessou o oceano sozinha, acompanhada por 18 homens. Ela foi recebida na casa majestosa da família e desfrutou de muito conforto nos 8 meses em que esteve no Peru. Mas mesmo assim seu tio deixou claro que ainda a considerava uma bastarda e que ela não teria direito a nenhum bem da família. "Fiquei sozinha, completamente sozinha, entre duas imensidões: a água e o céu", diz a última página de Peregrinações de uma Pária, livro de memórias sobre sua jornada. Foi entre essas "duas imensidões" que ele finalmente se encontrou. Ela havia partidoda França como uma lutadora e rebelde que sonhava em recuperar seu lugar perdido na aristocracia. Mas retornou ao país em 1834 como uma revolucionária determinada a conquistar com a força das palavras um lugar justo para todos na sociedade. Desde o início ela tinha uma visão clara de como o mundo poderia ser melhor. Sua visão de mulheres independentes era ambiciosa, o que ficou claro já em seu primeiro livro, Da necessidade de acolher mulheres estrangeiras, de 1835. Nele, "ela imagina maneiras de ajudar as mulheres a viajar", afirma Krülic. "Quando uma mulher chegava a um hotel, a pergunta mais comum era 'Madame está viajando sozinha?', algo obviamente condenável: uma mulher que viaja sozinha é considerada uma aventureira, ou até mesmo uma 'mulher de vida ruim'." "Flora mesma foi acusada quando esteve sozinha em um hotel: 'Provavelmente é porque ela quer receber amantes', disseram." "O que Flora reivindica é o direito das mulheres de serem anônimas, de poderem fazer tudo o que não é proibido — ir a um hotel, ao banco, a um museu — sem serem julgadas." "E esse problema da visibilidade das mulheres, da liberdade das mulheres no espaço público, infelizmente ainda não foi completamente resolvido." Em 1837, ela publicou Petição para a Reintegração do Divórcio, detalhando uma das causas pela qual mais lutou, bem como pela abolição da pena de morte. Mas foi Peregrinações de umaPária que lhe abriu as portas dos salões parisienses. Em Arequipa, no entanto, a obra causou uma rejeição tão forte que houve uma queima pública do livro, pois suas descrições do Peru em meados do século 19 ofenderam seus anfitriões no país. Mais tarde, a obra foi reavaliada pelos historiadores peruanos e, nas primeiras décadas do século 20, foi acolhida como literatura peruana. Na medida em que ficava mais famosa, Flora voltou a cairr na mira de seu marido. Chazal perseguiu-a nas ruas e a espancou. Tentou tomar a custódia dos filhos na Justiça. Alina precisou ser escondida depois de ter sido sequestrada pelo pai. Foi só depois que Chazal feriu Flora gravemente com um tiro que ele foi preso. Finalmente Flora e Alina estavam livres. Alguns anos depois, "de uma forma extremamente ousada e premonitória", diz Krülic, Flora examinaria a questão do consentimento amoroso e da liberdade de movimento das mulheres no espaço público. "Ela levantou uma noção que, no século 19, era completamente tabu: a do consentimento. Naquela época, nem homens nem mulheres estavam interessados ​​nisso. E ela não se limitou à necessidade de a mulher dizer 'sim'." "Ele questionou quais as condições sob as quais o sim é dito... Haveria a opção de se dizer 'não'? Ela perguntou porque ela mesma viveu isso: ela consentiu em se casar aos 17 anos, mas poderia ter feito outra coisa?" Quase 180 anos após sua morte, essa noção ainda é tema de debates. E é um dos motivos que levou Krülic a escrever seu livro. "Flora Tristán não é apenas uma mulher mal casada que quase foi morta pelo marido", declara. "Sua personalidade e seu trabalho vão muito além: ele desenvolveu uma série de ideias extremamente inovadoras e interessantes." Embora nas décadas de 1960 e 1970 Flora Tristán tenha sido reconhecida como pioneira do feminismo e do movimento sindical, Krülic considera que "há uma profunda injustiça" no fato de "sua contribuição para o pensamento político e social não ter sido apenas minimizada, mas praticamente ignorada". Até mesmo Karl Marx, que a reconheceu como "precursora de elevados ideais", não a citou em seu Manifesto Comunista de 1848, embora conhecesse "sua ideia de que, além das particularidades de profissão, sexo, origem geográfica, localização, a classe trabalhadora constitui uma entidade única que tem interesses comuns". "Marx pegou essa ideia, desenvolveu-a, teorizou-a, respaldou-a com sua imensa cultura filosófica e econômica, com os meios intelectuais que tinha, mas Flora não." "Foi uma ideia extremamente forte, poderosa e original de Flora Tristán. Por que ele não a citou como os outros se, na verdade, foi a ideia dela que desempenhou um papel desencadeante para ele?" "Eu acho que há duas razões principais." A primeira, segundo Krülic, é simples: ela era uma mulher e ele um homem do seu tempo. A segunda é uma diferença de expressão. "Ela tinha o vocabulário dos autores românticos. Ela lia muito, tinha uma cultura vasta e estava imbuída de pensamento cristão, totalmente dissociada da Igreja e anticlerical, mas não antirreligioso, e isso era um ponto fundamental de discordância com Marx." Mas embora "Marx escreva sobre os trabalhadores e seu admirável trabalho conceitual, a verdade é que requer estudo; não é uma leitura, como diz Flora, para os trabalhadores". Seu estilo era mais concreto. "Ela sabia que os trabalhadores tinham uma jornada de trabalho muito longa, que muitos não sabiam ler e que tinham que ser abordados em uma linguagem simples que os incitasse à ação. "Isso também foi muito inovador e a diferenciou dos socialistas de sua época". E ela colocou essa ideia em prática. Ela se autodenominou "apóstola do Sindicato dos Trabalhadores" e em abril de 1844 fez uma viagem pela França, sendo perseguida pela polícia da época. Seu fervor foi profundamente apreciado. Quando morreu em Bordeaux seis meses depois, incapaz de terminar sua tour pela França, as pessoas por quem havia lutado gravaram as palavras em seu túmulo: "Em memória da senhora Flora Tristán, autora de 'A União Trabalhadora', os trabalhadores gratos. Liberdade, Igualdade, Fraternidade, Solidariedade".
2022-11-13
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Por que a população de Cuba não passa de 11 milhões de habitantes desde 1997
A população mundial cresceu no último quarto do século a uma taxa média de 1,2% ao ano, chegando a quase 8 bilhões de habitantes. A tendência foi semelhante na América Latina, onde a população já passa de 600 milhões. Exceto em casos de guerra ou outros eventos extremos, é incomum que a população de um país fique estagnada ou até mesmo diminua em um período de 25 anos. Mas Cuba não é um país normal. Em 1984, a ilha ultrapassou a marca de 10 milhões de habitantes; em 1997, de 11 milhões; e, depois de alguns altos e baixos, o dado mais recente, relativo a 2021, é de 11,1 milhões. Fim do Matérias recomendadas Para se fazer uma comparação: no Brasil, a população em 1984 era estimada em 132 milhões; em 1997, de 167 milhões, e em 2021, de 212 milhões. Quais são os motivos que explicam essa tendência incomum em Cuba? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Em Cuba, você pergunta a qualquer um quantos filhos quer ter, e a resposta é 2 filhos, e tem até a ordem, primeiro um menino e depois uma menina. É um ideal reprodutivo que vem de nossos avós espanhóis", explica à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, Juan Carlos Albizu-Campos, professor do Centro de Estudos da Economia Cubana da Universidade de Havana. O acadêmico, que é autor de diversos estudos sobre o tema, destaca que, desde o início do século 20, Cuba sempre teve um comportamento demográfico diferente de seus vizinhos latino-americanos. "Já em 1900, a fecundidade era relativamente baixa em comparação com o resto da América Latina, de 6 filhos por mulher (no México, por exemplo, eram 7, e em outros países da região, o número era ainda maior), e a população começou a adotar o esquema de famílias pequenas", explica. Na primeira metade do século passado, a ilha alcançou níveis de desenvolvimento inatingíveis em outros países da região e recebeu uma grande onda de migrantes europeus, principalmente espanhóis. Ambos os fatores marcaram sua tendência demográfica diferenciada. A partir de 1960, o declínio da mortalidade infantil e o maior acesso aos serviços de saúde e maternidade, entre outros fatores, levaram a um "baby boom". Mas não durou mais de uma década: nos anos 1970, a taxa de 2,1 filhos por mulher que garante a substituição geracional caiu pela primeira vez. Assim, no final de 1985, a combinação de fecundidade e expectativa de vida em Cuba já "se assemelhava mais à média europeia do que à latino-americana", diz Albizu-Campos. Cuba registrou em 2021 o menor número de nascimentos, 99.096, e o maior número de mortes, 167.645, das últimas seis décadas. Embora o número de mortos tenha sido elevado pela onda mortal de covid-19 que atingiu o país, os registros de nascimentos confirmam uma tendência de queda acentuada que vem de anos atrás. Hoje, a taxa de fecundidade total é de 1,45 filhos por mulher, bem abaixo da taxa de reposição — e também da média de 2 filhos na América Latina, segundo dados do Banco Mundial. Essa tendência ocorre em um momento de extrema crise em Cuba, onde há escassez de alimentos, remédios, artigos médicos e outros bens básicos. Segundo Albizu-Campos, o país está passando pelo que alguns acadêmicos chamam de "malthusianismo da pobreza". "Em Cuba, até 3 ou 4 gerações vivem juntas na mesma casa, e a comida também é escassa. Assim, a primeira pergunta que um jovem casal faz quando quer ter um filho é: onde vou colocá-lo?, e uma vez que isso está resolvido, o que vou dar de comer a ele?." Em outras palavras, hoje as mulheres cubanas percebem o nascimento de mais um filho como um risco real para os que já estão na família. Quando essa situação se mantém ao longo do tempo, ele ressalta, "acaba transformando o padrão reprodutivo, e as mulheres protagonizam uma queda no nível de fecundidade, como aconteceu no 'período especial'". O "período especial" foi a crise extrema que se instalou em Cuba após o colapso da União Soviética no início da década de 1990, com uma situação de escassez generalizada que muitos comparam com a atual. "No 'período especial', o número de filhos por mulher caiu de 1,8 para 1,6 e, como foi uma crise sustentada ao longo do tempo, modificou o padrão reprodutivo da sociedade cubana", indica Albizu-Campos. A doutora em sociologia Elaine Acosta, pesquisadora associada da Universidade Internacional da Flórida, nos EUA, observa que Cuba "lidera os processos de envelhecimento na América Latina" devido à sua pirâmide demográfica mais parecida com a de um país europeu. "Mesmo em comparação com o que se vive nas sociedades europeias, o salto produzido entre 1970 e hoje foi mais vertiginoso em Cuba, onde a população idosa passou de 9% do total para 20%", afirma. No entanto, ela considera problemática a combinação, nos últimos 25 anos, de uma pirâmide populacional semelhante à de um país desenvolvido com a deterioração gradual dos níveis de bem-estar e desenvolvimento humano. Esta última questão, segundo ela, não só contribuiu para a redução da fecundidade, como também fomentou outro fator que explica a estagnação populacional na ilha: a emigração. Estima-se que quase um milhão de cubanos deixaram o país nos últimos 25 anos. Destes, mais de 800 mil emigraram para os Estados Unidos, segundo os registros oficiais deste país. O fluxo vinha oscilando entre 30 mil e 70 mil migrações por ano até a pandemia, mas somente nos primeiros nove meses de 2022, chegaram 200 mil cubanos ao país norte-americano — um recorde histórico que supera o de êxodos em massa anteriores, como o de Mariel em 1980 (quando 125 mil cubanos deixara a ilha em apenas 7 meses) ou a crise dos balseiros durante o "período especial". "O aumento descontrolado da inflação, a queda do valor real dos salários e pensões, a insegurança alimentar, a escassez de medicamentos e a deterioração da habitação, entre outros, reduziram os níveis de bem-estar a níveis mínimos semelhantes aos do período especial, mas com menores níveis de proteção social e em um ambiente de maior tensão política e insatisfação popular", explica a socióloga. "Tudo isso acaba influenciando milhares de jovens e até idosos a se juntarem à debandada migratória que recomeçou quando os voos foram reabertos, em novembro de 2021." Isso significa que, após 25 anos de estagnação, a população cubana pode estar iniciando uma tendência de queda, especialmente se levarmos em conta que grande parte dos emigrantes são jovens ou pessoas em idade fértil que vão gerar filhos fora da ilha. O demógrafo Albizu-Campos previu anos atrás que a população cubana retornaria à marca de 10 milhões de habitantes a partir de 2030, com toda a geração do baby boom dos anos 1960 na velhice. No entanto, o processo parece ter acelerado, e a redução do patamar de 11 milhões poderá ocorrer já neste ano, quando o cadastro for atualizado com os novos dados de nascimentos, óbitos e emigrantes. "A combinação perversa entre a emigração sustentada e o aumento das mortes pode indicar que estamos mais perto novamente de baixar essa marca", diz o especialista. O panorama demográfico se mostra ainda mais complicado para 2050, quando mais de 3,7 milhões de cubanos de uma população estimada em 10,1 milhões de habitantes terão mais de 60 anos, segundo projeções das Nações Unidas. Destes, quase 1,3 milhão serão idosos com mais de 80 anos. Elaine Acosta observa ainda que estas projeções foram formuladas antes da atual crise migratória. "Consequentemente, a contração da população pode ser ainda maior do que a esperada."
2022-11-13
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Como Miami foi de bastião democrata na Flórida a centro da onda conservadora latina
"Obrigado ao condado de Miami-Dade." Esta foi uma das primeiras frases do discurso de vitória do governador do Estado americano da Flórida, Ron DeSantis, comemorando sua reeleição na noite de terça-feira (8/11). E não era para menos. Miami votou massivamente nos candidatos republicanos nas eleições de meio de mandato de 2022, algo que não ocorria há 20 anos. A principal cidade da Flórida tornou-se também a principal cidade americana de maioria latina onde o Partido Republicano saiu vitorioso. Cerca de 70% da população do condado de Miami-Dade são de origem latina. Destes, cerca de metade tem origem cubana. E a metrópole atualmente é o sinal mais claro de um terremoto eleitoral que está transformando a política dos Estados Unidos: o realinhamento para a direita de uma parcela importante do eleitorado latino do país. Fim do Matérias recomendadas Esta vitória é particularmente reconfortante para os republicanos. Há décadas se dava como certo que os eleitores americanos de origem latina inclinavam-se para o lado democrata. À medida que crescia a população latina do país, os democratas confiavam neste segmento do eleitorado como uma espécie de garantia de um futuro para o seu partido em nível nacional. A comunidade cubana de Miami é tradicionalmente mais conservadora que os demais grupos latinos dos Estados Unidos. Mas, desde o começo do século, a juventude cubano-americana parecia estar se movendo para esquerda. Aliada a outros grupos, como os afro-americanos e os brancos de tendência progressista, ela contribuiu para que Miami se tornasse o grande bastião democrata no Estado da Flórida, considerado o principal campo de batalha eleitoral do país. Mas esta narrativa agora é posta em dúvida, após a derrota dos candidatos democratas em Miami nas eleições de 2022. Miami-Dade é o coração da maior região metropolitana do Estado da Flórida. O condado votou majoritariamente na reeleição do governador DeSantis, contra seu oponente democrata Charlie Crist. Os resultados parciais disponíveis na noite da eleição indicavam uma vantagem de 55% para DeSantis contra 43% de Crist — uma diferença já impossível de ser revertida. O último candidato republicano ao governo da Flórida a vencer em Miami foi Jeb Bush, irmão do ex-presidente George W. Bush, na sua reeleição como governador em 2002. E os outros resultados eleitorais em Miami no pleito de 8 de novembro foram igualmente decepcionantes para os democratas. O senador republicano Marco Rubio foi reeleito para representar o Estado da Flórida, vencendo a candidata afro-americana Val Demings, considerada uma das figuras em ascensão do Partido Democrata. Já na disputa pela Câmara dos Representantes, a congressista conservadora de origem cubana Maria Elvira Salazar venceu a democrata Annette Taddeo, de origem colombiana. Salazar comemorou sua vitória no emblemático restaurante La Carreta, no bairro da Pequena Havana, em Miami. Ela declarou à imprensa que "esta eleição comprova o que dizia [o ex-presidente americano] Ronald Reagan, que os latinos são republicanos, mas ainda não sabem disso". A ampla vantagem obtida pelos republicanos em Miami nas eleições demonstra sua força entre os cubanos, mas também que eles parecem ser populares entre outros latinos, como os eleitores de origem colombiana e venezuelana. Este fenômeno não surgiu da noite para o dia. Ele só foi possível porque os republicanos vêm ganhando força em Miami há mais de uma década. Em 2012, cerca de 50% dos eleitores cubano-americanos haviam votado no democrata Barack Obama para presidente. Mas, em 2016, apenas 41% votaram em Hillary Clinton. Esta tendência trouxe eleições cada vez mais disputadas em Miami. E, se ela se mantiver, é provável que o candidato presidencial republicano ganhe na cidade em 2024, o que praticamente garantirá que o Estado da Flórida — o terceiro maior do país — entre na lista dos Estados conservadores. Se essa tendência observada em Miami continuar se espalhando para o restante do país, pode haver consequências eleitorais profundas. Afinal, os latinos são a minoria étnica mais numerosa do país e representam 19% do total da população americana. A tendência conservadora crescente dos eleitores latinos está fortalecendo a posição republicana em outros Estados com grande população de origem latina, como o Texas e Nevada. E os motivos que explicam esse êxodo de votos democratas para o lado republicano ficam cada vez mais claros. Muitos eleitores cubano-americanos ou descendentes de sul-americanos em Miami não têm a mesma preocupação com os temas migratórios, característica dos outros grupos latinos no restante do país. Por isso, eles não ficam tão assustados com o discurso contra os imigrantes ilegais, que se tornou tão importante para os republicanos desde a chegada de Donald Trump ao poder, em 2016. Por outro lado, o discurso antissocialista dos republicanos encontra ressonância em muitos desses eleitores latinos, que abandonaram seus países escapando de governos de esquerda que os amedrontavam. E muitas pessoas de origem latina também mantêm posição conservadora em temas culturais e religiosos. Além disso, muitos analistas defendem que os republicanos, há muitos anos, são mais eficientes e disciplinados na busca dos votos dos eleitores latinos em Miami e em outras regiões. Enquanto isso, os democratas consideravam que os votos latinos eram automaticamente deles. E hoje se sabe que não é bem assim. Em 2024, Joe Biden — ou outro candidato democrata que venha a disputar a presidência — precisará esforçar-se para evitar que os eleitores de origem latina, que supostamente eram a salvação do seu partido a longo prazo, não se tornem o grupo que entregará a Casa Branca aos republicanos.
2022-11-09
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Como pobreza e corrupção nos EUA se comparam às da América Latina
Sabemos o impacto que as preocupações com pobreza e corrupção têm nas eleições na América Latina. Mas quão influentes são esses dois fatores na política dos EUA, em especial nas eleições de meio de mandato desta terça-feira, 8 de novembro? Para responder a essa pergunta, pode ser útil estabelecer primeiro a gravidade do problema nos Estados Unidos, em comparação com o que ocorre na América Latina. Em geral, os problemas de pobreza são de magnitude diferente nos países da América Latina em comparação com o que se vive nos Estados Unidos. Também é verdade que a percepção geral da corrupção institucional é mais grave em muitos dos países latino-americanos. Mas, como vários especialistas dizem à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, isso não significa que a ansiedade em relação à pobreza e à corrupção também não esteja influenciando as eleições nos Estados Unidos. Fim do Matérias recomendadas Ambos são vistos como problemas recorrentes que, em muitos casos, convencem os americanos a votar de uma forma ou de outra. É claro que é complexo comparar a pobreza nos Estados Unidos, a nação mais poderosa do mundo, com a dos países latino-americanos. Ser considerado pobre nos Estados Unidos não é o mesmo que em outros lugares. De acordo com o Departamento do Censo dos Estados Unidos, naquele país uma família de dois adultos e duas crianças é classificada como pobre se a renda familiar não ultrapassar US$ 26 mil (R$ 134 mil) por ano. Cerca de 12% da população dos EUA se enquadra nessa categoria. No entanto, como exemplo, uma família na Colômbia que ganha a mesma quantia, equivalente a cerca de 10 milhões de pesos colombianos por mês, seria considerada parte da classe média do país sul-americano. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ao tentar medir a pobreza dos EUA em relação à dos países da América Latina, as constantes mudanças no valor de suas respectivas moedas, diferenças no custo de vida, disponibilidade de ajuda estatal e outros fatores socioeconômicos fazem com que o valor do salário por si só não seja a única variável a considerar. O Banco Mundial tentou criar um índice que leve em consideração algumas dessas diferenças de custo de vida e valores monetários para estimar qual porcentagem da população vive com menos de US$ 2,15 por dia, ajustado pelo poder de compra das diferentes moedas. Chegam assim a uma estimativa do número de pessoas que enfrentam as dificuldades da extrema pobreza em cada país. Medido dessa forma, 1% da população dos EUA está nessa condição de pobreza absoluta. De acordo com esse método, há menos pobreza extrema no Chile, onde essa população vulnerável é 0,7% do total. Em contrapartida, segundo o Banco Mundial, o México atinge 3,1%, Guatemala 9%, Colômbia 10,8%, Honduras 12,7% e Haiti, 29%. A Organização das Nações Unidas tem outro mecanismo, o Índice de Desenvolvimento Humano, que, além do salário, examina quanto acesso a maior parte da população tem a condições materiais de bem-estar. Em um índice de 0 a 1, onde 1 reflete as comunidades com maior desenvolvimento humano, o Chile, com pontuação de 0,855, está muito próximo dos 0,92 obtidos pelos Estados Unidos. México, Brasil e Colômbia obtêm 0,75. Enquanto a Bolívia atinge apenas 0,6 e o ​​Haiti mal chega a 0,53. Finalmente, há o prisma da pobreza relativa e da desigualdade. Em muitos países, o impacto político da pobreza é ampliado por sentimentos de desigualdade. Se os pobres sentem que os ricos têm demais, isso pode aumentar sua raiva do sistema. O índice de Gini mede o grau de desigualdade em uma sociedade. Quanto menor o número, menor a desigualdade. Segundo informações do Banco Mundial, esse índice chega a 41,5 para os Estados Unidos. O mesmo índice classifica o Uruguai com 40,2, uma sociedade que, nessa medida, é mais igualitária. Por outro lado, o índice de Gini sobe para 48,9 para o Brasil e para 54,2 para a Colômbia, um dos países em pior situação do mundo nesse sentido. Então, ao fazer a comparação da pobreza e da desigualdade entre a América Latina e os Estados Unidos, o primeiro esclarecimento que deve ser feito é: estamos falando de qual país da América Latina, uma região de enormes diferenças internas nos resultados do combate à pobreza? De qualquer forma, os especialistas indicam que a pobreza nos Estados Unidos, embora muitas vezes substancialmente menor do que na América Latina, tem efeitos importantes na política. É o que pensa Shailly Barnes, diretora de políticas do Kairos Center, um think tank com sede em Nova York que busca soluções para a pobreza nos Estados Unidos. "A narrativa comum sobre os pobres nos Estados Unidos é que eles não participam de eleições e não se importam com política. Descobrimos que isso não é verdade. Em 2020, cerca de 60 milhões de pessoas de baixa renda votaram nas eleições presidenciais ", diz Barnes à BBC News Mundo. Ela usa o exemplo do que aconteceu nas últimas eleições de 2020 no estado da Flórida para mostrar a relevância da questão da pobreza no mundo político americano. Ela destaca que foi um Estado vencido pelos republicanos, partido cujas políticas estão tradicionalmente associadas a um maior apoio ao grande capital. Mas, lembra Barnes, "esse mesmo eleitorado da Flórida aprovou em referendo uma medida que aumentou o atual salário mínimo no Estado". No entanto, a especialista preocupa-se com o fato de muitas vezes "a nossa política não responder às necessidades destas pessoas". Ela alerta que, como em muitos outros países, a ansiedade que as preocupações com a pobreza podem estar gerando nos Estados Unidos alimenta outros fenômenos políticos, como o populismo. "Vimos isso na última década", diz Barnes, apontando, por exemplo, para o "uso de discurso racista" por alguns políticos em resposta a um eleitorado preocupado com a deterioração dos níveis de bem-estar material. Além da pobreza, outro tema recorrente de discussão na política latino-americana contemporânea é a corrupção. Em geral, mas nem sempre, as medidas sobre a percepção da corrupção deixam as instituições dos Estados Unidos em melhor situação do que as dos países latino-americanos. Mas ninguém nega que se trata também de um tema extremamente atual na política dos EUA. A Transparência Internacional é uma das organizações que tenta qualificar e comparar com um índice a percepção pública sobre o grau de corrupção prevalente em muitos países. A versão mais recente do índice indica que a Dinamarca é a nação com a menor percepção de corrupção, com uma pontuação de 88 em 100. Os Estados Unidos alcançam a 27ª posição, com 67 pontos, resultado que o coloca no mesmo patamar do Chile, e superado pelo Uruguai, localizado na 18ª posição com 73 pontos. A Colômbia aparece em 87º lugar com 33 pontos. A Argentina ocupa o 96º lugar, juntamente com o Brasil, a Guatemala 150º e a Venezuela 177º, superando apenas três países nesta tabela: Somália, Síria e Sudão do Sul. A discussão da corrupção, em todo caso, abala a política dos EUA tanto ou mais do que muitos países latino-americanos. Basta lembrar que um dos gritos de guerra de Donald Trump em sua vitoriosa campanha presidencial de 2016 foi sua promessa de "drenar o pântano", como o então candidato se referia à corrupção em Washington, uma cidade construída sobre um pântano. Este ano, a discussão muitas vezes se concentrou em questões de suposta corrupção eleitoral, disse Gabriel Sanchez, especialista associado ao centro de pesquisa Brookings Institute em Washington e professor da Universidade do Novo México, à BBC News Mundo. A polêmica em torno das eleições presidenciais de 2020 e a derrota de Trump marcaram a percepção do público americano sobre a corrupção, apesar de nunca ter sido encontrada nenhuma evidência de fraude nas referidas eleições. "Estamos vendo níveis recordes de informações imprecisas direcionadas aos latinos neste ciclo eleitoral, principalmente latinos de língua espanhola. Grande parte desse conteúdo está focado nas alegações contínuas de Trump sobre suposta eleição fraudada em 2020, o que está ajudando a gerar percepções de corrupção entre alguns latinos", diz Sanches. O especialista identifica repercussões dessa discussão nas eleições de meio de mandato desta terça-feira. "É evidente em lugares como o Arizona, onde há vários candidatos que aderiram à mensagem da campanha de Trump para 2020 sobre corrupção eleitoral. Se outra eleição apertada acontecer agora, pode levar vários dias para calcular os resultados, o que pode alimentar acusações defraude eleitoral e gerar maior preocupação com a corrupção." Em um mundo interconectado e interdependente, os discursos políticos em diferentes partes do planeta tornaram-se mais semelhantes, mesmo entre regiões tão diferentes quanto os Estados Unidos e a América Latina. E apesar de mostrar indicadores tão diferentes em questões como corrupção e pobreza, a indignação dos cidadãos em relação a essas questões ajuda a explicar pelo menos alguns dos resultados eleitorais em ambos os lugares.
2022-11-08
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'Tripledemia': os 3 vírus respiratórios que lotam hospitais nos EUA e América Latina
Quando tudo sugeria que poderíamos finalmente respirar aliviados e deixar para trás a crise de saúde pública causada pela covid-19, uma nova onda de vírus respiratórios voltou a lotar as alas pediátricas de hospitais em alguns países. Trata-se, de acordo com os especialistas, de um fenômeno muito menos grave do que o da pandemia de coronavírus, que entre dezembro de 2019 e este ano causou pelo menos 6,5 milhões de mortes em todo o mundo, segundo a plataforma Our World In Data. Hoje, a maioria dos infectados por covid apresenta sintomas leves, que não exigem internação hospitalar. No entanto, a confluência de germes está gerando o que alguns chamam de "tripledemia": três epidemias que coexistem e voltaram a lotar hospitais em várias partes do continente americano, especialmente infantis. De acordo com os dados epidemiológicos mais recentes da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), os países mais afetados na região são os Estados Unidos, no hemisfério norte, e as nações mais austrais do hemisfério sul — Argentina, Chile, Uruguai e Brasil. Fim do Matérias recomendadas Nesses países, há uma combinação dessas três doenças respiratórias. Por um lado, a covid continua, com novas variantes muito menos letais que as originais, mas muito mais contagiosas. Mas o vírus SARS-CoV-2, causador da covid-19, não é mais o vírus predominante. Esse posto está sendo ocupado pelo vírus Influenza A, com duas variantes diferentes que causam a chamada gripe suína (que gerou sua própria pandemia em 2009-2010). Todos os três vírus apresentam sintomas parecidos: febre, congestão, tosse, dor de cabeça e dor de garganta. Para a maioria das pessoas, eles representam um risco: bastam alguns dias de repouso e medicação para tratar os sintomas, se necessário. Mas para aqueles com sistemas imunológicos mais vulneráveis ​​— como bebês, idosos ou aqueles que apresentam fatores de risco —, podem ser perigosos. E, quando todos atacam ao mesmo tempo, podem deixar os sistemas de saúde à beira do colapso e criar um problema de falta de funcionários no trabalho devido ao número de pessoas doentes ao mesmo tempo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A imprensa nos EUA está noticiando que os hospitais infantis já estão sofrendo com o número alto de crianças que chegam com problemas respiratórios. "Um aumento drástico e excepcionalmente cedo no VSR, uma infecção que obstrui as vias aéreas, está sobrecarregando as unidades pediátricas nos EUA, causando longas esperas por tratamento e forçando os sistemas hospitalares a remanejar funcionários e recursos para atender à demanda", informou o jornal americano New York Times no dia 1º de novembro. Os Centros para Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC, na sigla em inglês) informaram que algumas regiões do país estão "atingindo os níveis máximos sazonais" de VSR. A isso, se soma a gripe. De acordo com o último relatório epidemiológico da OPAS, "a maior parte do país relatou um aumento precoce na atividade do (vírus) influenza (causador da gripe)", e o CDC sugere que esta é a pior temporada de outono da doença desde a pandemia de gripe suína (H1N1) em 2009. O que mais preocupa os especialistas é que essas doenças estão chegando com força quando ainda não estamos nem na metade do outono no hemisfério norte — e a estação mais fria ainda está por vir. Estima-se que a gripe tenha chegado cerca de seis semanas mais cedo do que o habitual e, até 22 de outubro, já havia causado pelo menos 6,9 mil hospitalizações e 360 ​​mortes, segundo o CDC. A cepa predominante de influenza A, chamada H3N2, é diferente da de 2009 (H1N1). O que está acontecendo nos EUA é semelhante ao que vem ocorrendo há semanas em alguns países do Cone Sul, onde as enfermarias dos hospitais também foram tomadas por pacientes com sintomas de gripe, principalmente crianças pequenas. Segundo a OPAS, na Argentina e no Chile houve um aumento do vírus influenza A, com duas variantes da gripe suína circulando ao mesmo tempo: H3N2 e H1N1. A organização alertou ainda que "a atividade do VSR continua alta no Brasil e no Uruguai". Dados surpreendentes para esta época do ano, quando já faz calor nesta região. Especialistas em saúde acreditam que se trata de um fenômeno pós-pandemia, gerado por uma série de fatores. "O principal é que o coronavírus ocupou um espaço muito importante — o que os médicos chamam de nicho epidemiológico — durante os dois anos anteriores. Em 2020 e 2021, foi praticamente o único vírus que circulou", explica o pediatra argentino Gustavo Pueta à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC. "Quando a circulação caiu, graças às vacinas, todos os vírus que costumam estar presentes ao longo do ano explodiram exponencialmente." Pueta afirma que em suas três décadas de carreira nunca viu nada parecido. "Os pediatras estão acostumados a ter momentos de alta demanda em determinadas épocas do ano, mas este ano as crianças passaram de uma doença para outra", observa. Um segundo fator pós-pandemia que se acredita ter contribuído para a disseminação desses vírus foi a baixa imunidade da população, sobretudo das crianças, que, graças às medidas de distanciamento social, não tiveram a exposição habitual a patógenos que permite a elas gerar defesas. "É como uma tempestade perfeita", resume Pueta. "A explosão de vírus por um lado e, por outro, a baixa imunidade natural das pessoas devido à falta de vínculos." As quarentenas contra o coronavírus, que a maioria dos países aplicaram na época para frear o avanço da covid-19, parecem ter gerado um segundo efeito que hoje prejudica principalmente os pequenos. Muitos bebês nascidos pouco antes ou durante a pandemia não foram expostos a vírus como o VSR, que, segundo a Clínica Mayo, "é tão comum que a maioria das crianças já foi infectada por volta dos 2 anos". Isso significa que hoje as enfermarias pediátricas não apenas recebem bebês doentes com menos de 1 ano — o grupo geralmente com maior risco de vírus respiratórios como este —, como também crianças mais velhas que em circunstâncias normais teriam sido infectadas antes. É por isso que muitos hospitais dos EUA estão sobrecarregados, embora ainda falte várias semanas para a chegada do inverno no hemisfério norte, geralmente o pior momento para a transmissão de doenças respiratórias, especialmente a gripe. Mas, embora o cenário seja preocupante, Pueta lembra que existe uma arma fundamental no combate aos vírus: as vacinas. "A vacina contra a gripe tem 70% de eficácia e, assim como a vacina contra a covid, previne doenças graves", diz ele. Embora a vacinação contra gripe geralmente seja recomendada para maiores de 65 anos e menores de 2 anos, além daqueles que apresentam fatores de risco, o especialista afirma que "está sendo considerada a vacinação de todas as crianças até 5 anos, para que todos em idade pré-escolar estejam cobertos". Por outro lado, embora ainda não exista vacina contra o VSR, o médico destaca que atualmente há laboratórios trabalhando para criar uma vacina que proteja não só contra esse vírus, como também contra os da gripe e covid.
2022-11-08
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As supreendentes descobertas de estudo sobre passado genético das Américas
Já se sabe há algum tempo que a ocupação do continente americano se deu, principalmente, do norte em direção ao sul. Mas cientistas revelaram recentemente uma rota migratória na direção inversa, datada de cerca de 1.500 anos atrás: do Uruguai ao Panamá, um trajeto com mais de 5.200 km. Outra descoberta surpreendente foi a detecção, em parte dos genomas analisados, de componentes genéticos de uma espécie extinta de hominídeos da Ásia: os denisovanos. "Usamos dentes de esqueletos para extrair DNA e, a partir disso, fizemos a análise computacional desse genoma", explica o arqueólogo brasileiro André Luiz Campelo dos Santos, principal autor do estudo e atualmente pesquisador da Florida Atlantic University, nos Estados Unidos. Foram analisados dentes de cerca de mil anos encontrados em dois sítios arqueológicos no Brasil e dentes de cerca de 1.500 anos achados no Uruguai e cedidos pelos arqueólogos Mónica Sans e Gonzalo Figueiro, da Universidade da República em Montevidéu. Fim do Matérias recomendadas "Expandimos o trabalho para a região onde nasci. Cresci no Nordeste do Brasil, no Ceará. E analisamos dentes encontrados em dois sítios em Pernambuco: Pedra do Tubarão e Alcobaça", disse Santos à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC). "Buscamos analisar dentes em vez de ossos porque o DNA dentro dos dentes é mais protegido. O osso é mais poroso e exposto ao ambiente." Os genomas do Uruguai e do nordeste do Brasil também foram comparados com outros de vários pontos do continente, como dos Estados Unidos, Panamá e sudeste brasileiro, revelados por estudos anteriores, Segundo o arqueólogo brasileiro, a pesquisa confirmou uma forte migração do noroeste do continente americano (Estreito de Bering e Alasca) para a América do Sul, provavelmente através da costa do Pacífico. Os humanos que chegaram à América do Norte provavelmente vieram da Ásia central (Mongólia à Sibéria). "Dali, subiram para o extremo nordeste da Ásia e atravessaram o Estreito de Bering, que no passado era uma grande ponte terrestre (chamada de Beríngia) por causa do baixo nível do mar. De lá, foram para o norte do Canadá e depois se espalharam para o resto da América." Mas como os cientistas conseguem estabelecer a direção de uma migração, se de norte a sul ou sul ao norte, com base no material genético? "Fazemos análises comparando o material genético dos indivíduos, levando em conta também suas idades", explica o arqueólogo. "Por exemplo, quando você faz uma análise genealógica, você vê quem foi o avô, o pai e o filho. Nossa análise filogenética busca ver quem seria o ancestral e quem seria o descendente." "Assim, vimos que os ancestrais em geral eram da América do Norte e os descendentes, da América Central e do Sul. Então, a migração deve ter começado na América do Norte e depois descido para a América do Sul." Foi usando essa técnica de análise filogenética que os cientistas confirmaram pela primeira vez a existência de uma rota do sul para o norte. "Encontramos rotas de migração em locais perto do Atlântico que eram independentes das do Pacífico." "Acreditamos que há cerca de 1.500 anos houve uma migração que conectou o Uruguai ao Panamá, ao longo de mais de 5.200 km. Essa conexão é muito clara nos resultados que obtivemos", diz o pesquisador. Santos e seus colegas encontraram semelhanças nos genomas dos locais que faziam parte dessa rota. "Todos eles compartilham material genético. Encontramos uma semelhança muito grande entre os genomas do Uruguai, sudeste do Brasil, nordeste do Brasil e Panamá." "Acreditamos que a origem dessa semelhança está no sudeste do Brasil. De lá, houve uma expansão tanto para o nordeste do Brasil quanto para o Uruguai e do Uruguai, outra expansão para o norte." O cientista brasileiro afirma que "esses povos de 1.500 anos atrás eram muito parecidos com os indígenas latino-americanos de hoje". No contato com os colonizadores europeus, essas etnias passaram por mudanças, mas elas ainda têm características comuns — não apenas no DNA, mas também na cultura. "Elas tinham uma cultura de fazer pinturas rupestres, como as que você vê no nordeste do Brasil. Elas também tinham rituais funerários e enterravam seus mortos, às vezes em túmulos coletivos." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Hoje, o gênero humano é definido pela nossa espécie, o homo sapiens, também chamada de "humano moderno". Mas, no passado, essa espécie conviveu com outras que já foram extintas. Uma delas é a dos neandertais, que ocuparam a Eurásia, da Espanha à Sibéria. "Os neandertais desapareceram há cerca de 40 mil anos e chegaram a viver com os humanos modernos." Outra espécie de hominídeo desaparecida é a dos denisovanos. "Na Indonésia, na Papua Nova Guiné, na Austrália e na Polinésia é possível encontrar vestígios genômicos de denisovanos", diz Santos. "A relação no passado não era necessariamente de conflito. Muito provavelmente, o desaparecimento de neandertais e denisovanos se deu por assimilação, pois eles acabaram incorporados a grupos de humanos modernos." "É por isso que, hoje, basicamente todas as populações do mundo, exceto os africanos subsaarianos, têm uma porcentagem de DNA neandertal e uma porcentagem menor de DNA denisovano." O estudo recente sobre as Américas encontrou maior presença de DNA neandertal e menor de DNA denisovano. Mas houve exceções. "As amostras do Uruguai e do Panamá, só elas, têm uma composição genética maior de denisovanos do que de neandertais." "É algo muito intrigante que ainda não conseguimos explicar. Gostaríamos muito de poder encontrar outros genomas antigos que mostrem essa mesma característica." John Lindo, professor de antropologia da Universidade Emory, nos Estados Unidos, e um dos autores do estudo, diz que aproximadamente uma dezena de genomas antigos da América do Sul foram completamente sequenciados — muitos menos do que as centenas da Europa. Por isso, ainda há muito a descobrir a partir desse tipo de material. "Encontramos componente genético da Australásia. Isso significa um sinal maior de afinidade genética com indivíduos modernos da Oceania, incluindo Austrália e Papua Nova Guiné, do que com outras populações não americanas", diz o antropólogo. "Em outras palavras, há um sinal de parentesco genômico maior com indivíduos da Oceania do que da Europa ou da Ásia, por exemplo." Dois outros grupos de cientistas já haviam encontrado esse componente genético da Oceania no sudeste do Brasil e entre o povo Suruí na Amazônia. "Por isso, pensava-se que esse sinal da Australásia só existia na América do Sul. Mas também o encontramos no material do Panamá", explica Santos. Os cientistas não sabem como esse traço da Australásia chegou às Américas. "Nós analisamos genomas de indivíduos norte-americanos e nenhum deles tinha esse sinal." "Assim, temos a impressão de que ele não veio pelo estreito de Bering e pelo noroeste da América do Norte, mas por outras rotas que ainda não conhecemos." O arqueólogo brasileiro e seus colegas consideram "todas as hipóteses", inclusive a de que o componente genético da Australásia tenha chegado pelo Pacífico. "Talvez, no passado, o nível do mar fosse mais baixo e houvesse mais ilhas, então era mais fácil migrar de ilha para ilha", explica o cientista. "Mas isso é apenas um palpite, uma hipótese, não temos nenhuma indicação no momento de que isso esteja correto."
2022-11-08
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Lula presidente: críticas virão da esquerda e da direita, diz Pepe Mujica
O diálogo é interrompido por uma ovação, e José "Pepe" Mujica avisa: "Há uma algazarra porque o Lula está chegando". É domingo (30/10) à noite, e o ex-presidente uruguaio está em São Paulo, no "bunker" do amigo Luiz Inácio Lula da Silva, que acaba de ser eleito para um terceiro mandato de presidente com 50,90% dos votos válidos, em uma vitória apertada. Ele viajou para acompanhá-lo no encerramento da campanha e em sua eleição mais importante. Foi de lá que, quando o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) confirmou a vitória de Lula contra o presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro, Mujica concedeu uma entrevista à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC. Os dois líderes de esquerda se conhecem bem desde a época em que foram presidentes, o petista entre 2003 e 2010, e o uruguaio de 2010 a 2015. Fim do Matérias recomendadas Mas Mujica alerta que os tempos mudaram. E os desafios também. A seguir, você confere um resumo da conversa por telefone com o ex-guerrilheiro que ganhou reconhecimento internacional como presidente por suas mensagens contra o consumismo e por um governo democrático, sob o qual o Uruguai legalizou a maconha, o aborto e o casamento entre pessoas do mesmo sexo. BBC News Mundo - Como você avalia essa vitória do Lula? José Mujica - É um erro grosseiro considerar que havia aqui uma disputa entre a esquerda e a direita. Aqui a disputa de base é da democracia com o autoritarismo. O aparato de Estado nas mãos de alguém com o temperamento que o presidente (Bolsonaro) tinha e com o qual ele agia, pode ter as formalidades de uma democracia representativa. Mas o uso abusivo do poder desvirtua permanentemente os fundamentos das relações democráticas. Talvez o Brasil seja a mais formidável experiência de miscigenação do mundo contemporâneo. É uma população de origem diversa, que tem a alegria de viver típica dos africanos. E havia uma polarização que estava rompendo esse caráter cultural. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Espero fervorosamente que o Brasil se recupere, porque Lula é, em termos políticos, um verdadeiro social-democrata, no sentido de lutar pelo Estado de bem-estar. Ele realizou uma façanha porque enfrentou um Estado: todo o aparato do Estado estava em jogo nisso. É um homem de 77 anos com vitalidade e uma origem humilde. E seu verdadeiro apoio foi dado pelo Brasil mais pobre. Ele ganhou por isso. E chegou perto de perder com o país de classe média, relativamente desenvolvido do sul. Uma coisa paradoxal. Espero que o rancor possa ser superado, e que ajude a marcar a presença da América Latina no mundo, porque essa é outra característica de Lula. BBC - Você espera que Lula tenha uma presidência mais centrista, diferente de seus primeiros dois governos? Mujica - Eu o defini como lutador por um Estado de bem-estar. Ou seja, buscar que a economia brasileira funcione e distribua melhor. Mas vão criticá-lo por ser pouco radical, por parte da esquerda. E da direita vão criticá-lo por ser populista. É inevitável, porque os social-democratas não estão na moda nesta fase da nossa história. Lula nunca foi radical no sentido estrito do termo. Ele foi e é um desfazedor de erros. Ou seja, um dirigente sindical que passou a vida inteira tentando consertar problemas para encontrar as melhores saídas possíveis. É o que esperamos. Qual é o ponto fraco? A sucessão: o que vem depois de Lula? BBC - Bolsonaro perdeu, mas muitos acreditam que o bolsonarismo mostrou sua força nesta eleição. Você está preocupado com a oposição que Lula pode ter em seu próximo governo? Mujica - É preciso entender o que é o Brasil, que tem uma doença constitucional. O Congresso brasileiro é muito parecido com uma bolsa de valores, porque há vários partidos de Estados que na hora de se alinhar, tomam a decisão, negociam e dizem ao Poder Executivo: eu voto nessa lei se você construir essa ponte ou essas estradas para mim. Há um mundo de negociação nos bastidores. É incrível ver qual é a realidade política do Brasil quando a analisamos de perto. Então, é verdade que o bolsonarismo se saiu muito bem na votação. Ele usou todos os recursos. Mas é formado por uma estirpe negociadora de uma névoa de correntes políticas com interesses locais. E haverá um mundo de negociações, inevitavelmente. Isso não é simples, nem para o Lula, nem para quem está lá. Só Deus pode lidar com essa realidade. E como um senhor tão importante não lida com política, Lula terá que lidar. BBC - Que erros Lula e o PT devem evitar voltar a cometer no governo? Mujica - Lula tem 77 anos. O problema vem depois, porque o Brasil não é a Argentina. O Brasil não tem aquela coisa estranha que ninguém sabe o que é, mas é um bicho que existe, que se chama peronismo, que aguenta ditaduras, isso acontece, e tem toda uma camada de gente que não faz ideia de quem era Perón nem Evita, mas os têm como Deus. O Brasil não tem essa mística. Pode ser, não sei, que a passagem de Lula gere isso ao longo do tempo. Mas tudo isso ainda está para ser revelado. Sou apenas um amigo, um companheiro de Lula, que estava lá quando ele decidiu acatar (a ordem) e ir para a prisão com uma multidão de pessoas que o apoiavam e bancaram isso. Depois fui vê-lo na prisão. E agora vou vê-lo de volta, presidente. Tive a glória de viver para vê-lo. BBC - Você diz que criar um sucessor para a liderança de Lula é um dos desafios do PT... Mujica - Sem dúvida, porque os homens passam, e as causas permanecem. Esse é um problema que todos nós temos. E realmente nos últimos anos tenho visto os partidos históricos desaparecerem na França, na Itália e em outros lugares. O que está acontecendo não é simples, porque há mudanças culturais que vão além de nossas avaliações políticas. Tenha piedade de mim: você está falando com um lutador que tem 87 anos e não pode deixar de ver a realidade através das lentes de sua vida. Isso é o que me limita. BBC - Você mencionou a vez em que foi visitar Lula quando ele estava na prisão. Sua condenação por corrupção foi anulada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), devido a erros no processo e falta de imparcialidade do juiz que o julgou. Mas muitos acreditam que a corrupção é um dos calcanhares de Aquiles dos governos do PT no Brasil e outros governos de esquerda na América Latina... Mujica - E por que você deixa de fora os governos de direita? Acha que os governos de direita têm um pacto com o diabo? A corrupção é inerente à civilização humana. É mais velha que o amor. Sempre esteve e é óbvio que está nas sociedades modernas. Teria que dedicar horas ao funcionamento do Congresso brasileiro. Existe algo chamado "orçamento secreto", que é distribuído e pouco tem a ver com decisões políticas. Há uma série de instituições que são incríveis. Não creio que sejam responsáveis ​​pela corrupção. Sabe quem é o responsável pela corrupção? Que tacitamente nas sociedades contemporâneas de fato tendem a nos ensinar que ter sucesso na vida é ficar rico, seja lá como for. Aqueles que realmente gostam de dinheiro deveriam ser afastados da política. Porque política é outra história. Não é que não haja interesses, mas não são interesses materiais. Há outras coisas que estão em jogo. Como você pode ver, são questões que vão além dessa passagem eleitoral, quase filosóficas. "Poderoso cavaleiro é dom Dinheiro, capaz de transformar ouro em bosta, e bosta em ouro", dizia Quevedo há 500 anos. BBC - A questão era se você acredita que o PT vai ter que tomar alguma precaução especial com questões de corrupção agora que volta ao governo. Mujica - Não é um problema do PT. É um problema para todo o Brasil, porque agora outras artimanhas vão ser descobertas. Tenho confiança em Lula porque sei quem Lula é, e como ele vive. Mas daí a dizer que em uma organização coletiva não haja gente que se desvie, não me atrevo a dizer isso de ninguém. A condição humana é frágil. E sempre estaremos expostos a isso. BBC - A onda de governos de esquerda que surgiu nos últimos anos na América Latina é comparada com aquela onda anterior, da qual você fez parte em 2010. Você vê semelhanças ou uma onda não tem nada a ver com a outra? Mujica - Acredito que não. Porque (Gustavo) Petro é um pensamento na Colômbia; há um pensamento novo. E também no Chile. Às vezes, não se encaixa. E eu me felicito. Porque as novas gerações têm que ter a coragem de cometer seus erros, mas não repetir os nossos. Porque se não, não vivemos nada. BBC - Então para você não há uma comparação possível? Mujica - Não, é outra circunstância. E estamos sobretudo em outro mundo. Estamos no alvorecer de uma brutal mudança de época. E temos um desafio primeiro na América que, às vezes, não entendemos: ou nos desenvolvemos e temos dinheiro para investir na cabeça de nossos filhos, ou vamos ficar no pelotão de irrelevantes. Porque se o capital foi relevante para o desenvolvimento, a partir de agora o conhecimento será cada dia mais (relevante). E isso depende da qualidade intelectual das novas sociedades. Não acredito que a formação técnica e científica seja barata. É preciso investir muitos recursos econômicos nisso. Se não, estagnamos. Aqui arriscamos nossas vidas, porque o que está por vir não é uma época de muitas mudanças; É uma mudança de época. Em breve, haverá robôs andando pelos campos praticamente sem trabalhadores, bancos que serão uma máquina e operações sem cirurgiões. Esse é o mundo que está por vir. Não vou estar lá por causa da minha idade, mas temos que trabalhar para que aqueles que estejam, estejam à altura do desafio. Porque do contrário, eles não vão ter trabalho nem para lavar chão. BBC - Quando Lula tomar posse, a grande maioria da América Latina vai estar sob governos de esquerda. É possível que esses governos articulem uma agenda comum? Mujica - Esse é um dos pontos fracos. Temos que parar com isso de esquerda e direita na América Latina e ter a capacidade de nos unir com o que existe. Para que? Para nos defender. Se não, seremos liquidados pelo mundo rico. Se estamos esperando para concordar 100%, não vamos nos unir nunca. Portanto, temos que ter muita paciência estratégica e nos unir aos negligenciados. BBC - No início, você mencionou o "uso abusivo do poder" por Bolsonaro, que você disse que desvirtua a democracia. Agora, uma crítica que é feita à esquerda na América Latina é que ela não soube criticar com firmeza os governos de esquerda que fazem o mesmo uso abusivo. Você acha que isso é uma deficiência ou algo que a esquerda tem que mudar? Mujica - Não, o problema é outro: aqui na América estamos acostumados a ter chefes que se metem em tudo. Tem coisas que eu não gosto que aconteçam, mas não devo me meter. Não podemos confundir definições que são distintas. Os países desenvolvidos têm um estilo abusivo. Criam chefes que têm o direito de impor seus pontos de vista em qualquer lugar da Terra. E os mais velhos lembram que as sanções impostas à Espanha não afetaram Franco, afetaram o povo espanhol que passou fome. O mesmo aconteceu com as impostas na Itália. As sanções econômicas que impõem sacrificam os pobres.
2022-10-31
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63456429
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'América Latina vive onda de esquerda, mas com diferentes visões sobre democracia', diz analista
A eleição do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) fortalece uma onda de governos de esquerda vitoriosos na América Latina, mas os mandatários da região carregam visões diversas em relação à democracia e ao autoritarismo, avalia Michael Shifter, ex-presidente e membro do instituto de análise política Inter-American Dialogue, com sede em Washington. "A vitória de Lula reforça a tendência de governos mais à esquerda na América Latina. Há apenas três governos da América do Sul que não são esquerdistas neste momento: Equador, Uruguai e Paraguai", afirmou o analista americano à BBC News Brasil. "Mas esses governos são muito diferentes uns dos outros em termos de suas visões em relação à democracia." Shifter cita o caso do México, governado desde 2018 por Andrés Manuel López Obrador, do esquerdista Movimento Regeneração Nacional. "López Obrador usa cada vez mais os militares como pilares de seu governo. Minha sensação é de que Lula não fará isso no Brasil", disse o professor da Universidade de Georgetown, onde leciona sobre política latino-americana. Fim do Matérias recomendadas "Aliás, ele provavelmente tentará desmilitarizar o Brasil e reverter o que foi feito no governo de Bolsonaro." Venezuela e Nicarágua, por sua vez, são dois exemplos de países da região governados por líderes de esquerda autoritários. Lula foi eleito presidente neste domingo (30/10) com 50,83% dos votos válidos. O presidente Jair Bolsonaro (PL) teve 49,17%. No ano passado, Pedro Castillo foi eleito no Peru e Gabriel Boric no Chile. Neste ano, Gustavo Petro também tornou-se o primeiro presidente de esquerda da história da Colômbia. Já Alberto Fernández, filiado ao Partido Justicialista, foi eleito na Argentina em 2019 em uma disputa contra o ex-presidente de centro-direita Mauricio Macri. Bolívia, Venezuela, Suriname, Guiana e Guiana Francesa também são liderados por chefes de Estado de esquerda atualmente. Entre os três países que se enquadram como exceções à atual onda na América do Sul estão o Equador, que é governado desde 2021 por Guillermo Lasso, o Paraguai com Mario Abdo Benítez e o Uruguai, liderado por Luis Lacalle Pou, de centro-direita. Michael Shifter observa, além de uma onda de esquerda na região, um movimento de rejeição aos líderes e partidos incumbentes nas últimas eleições na América Latina. "O único incumbente reeleito na região foi Daniel Ortega, da Nicarágua, mas que realmente não deve ser levado em consideração porque trata-se de um autocrata", diz o americano. "Essa tendência anti-incumbente demonstra que há um sentimento de infelicidade e insatisfação na América Latina." Esse ciclo começou em dezembro de 2015 na Argentina, com a vitória de Mauricio Macri. Desde então, todas as eleições da região foram ganhas pelas oposições. A única exceção é o Equador onde, em 2017, Lenín Moreno ganhou as eleições como candidato do ex-presidente Rafael Correa. Porém, logo depois de assumir, Moreno rompeu com Correa e passou a ser "opositor" do padrinho político. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para o analista, no caso do Brasil, a eleição de Lula é sintoma, principalmente, do descontentamento da população com a gestão do governo Jair Bolsonaro da pandemia de covid-19 e da economia. Porém, segundo Shifter, Lula enfrentará circunstâncias muito distintas das encaradas em seus governos anteriores (2003-2010). "Há um contexto, tanto nacionalmente quanto internacionalmente, totalmente diferente. Dentro do Brasil, a característica mais saliente é certamente a enorme polarização, mas poderíamos citar também os desafios econômicos, entre eles a inflação alta, o desemprego e a insegurança alimentar." "Os desafios são enormes e só podem ser superados com um governo de coalizão capaz de unir diferentes forças e facções políticas." O analista afirma, porém, que um dos trunfos do presidente eleito do Brasil é sua capacidade de trabalhar por um movimento de maior cooperação na América Latina. "Lula certamente exercerá um papel importante em encorajar uma maior colaboração na América Latina e no Sul", afirma. "O único líder que tem capacidade de reunir a região em desafios comuns é o Lula. Mesmo que os demais governos queiram, eles não têm o peso do Brasil ou a experiência do presidente eleito nos anos 2000 para isso."
2022-10-30
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63451020
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'Argentina, 1985': como foi o julgamento histórico que revelou horrores da ditadura
Poucos dias antes de 22 de abril de 1985, o juiz Ricardo Gil Lavedra encontrou um colega no Palácio da Justiça de Buenos Aires e, depois de conversarem sobre assuntos corriqueiros, o outro magistrado perguntou incrédulo a ele: "Me diz uma coisa, vocês realmente vão fazer esse julgamento?" "Esse julgamento" sobre o qual o colega de Gil Lavedra perguntava não tinha outros precedentes na história do século 20 além do julgamento de Nuremberg, que ocorreu entre 1945 e 1946, sobre os crimes do nazismo, e de um julgamento de 1975 contra coronéis gregos que lideraram o golpe de Estado no país em 1967. Na Argentina, tratava-se de julgar em um tribunal civil os nove líderes das três primeiras juntas militares que governaram o país após o golpe de Estado de 1976, por crimes que iam desde homicídio e tortura até privação ilegítima de liberdade. Organizações de direitos humanos estimam que 30 mil pessoas desapareceram durante aqueles anos. A história do julgamento chegou às telonas com o filme Argentina, 1985, do diretor Santiago Mitre, que estreou nos cinemas argentinos em setembro deste ano, e já foi exibido em festivais como o de Veneza e San Sebastián (neste último, ganhou o prêmio do público). No Brasil, está disponível no Amazon Prime Video. O contexto em que o julgamento ocorreu não foi muito propício a nível local — a democracia argentina recém-recuperada ocupava há um ano e meio a Casa Rosada —, nem na região, como lembra o promotor Luis Moreno Ocampo à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC. Fim do Matérias recomendadas "No Chile, (Augusto) Pinochet tinha todo o poder; o Uruguai, por referendo popular, se recusou a investigar seus militares; havia oficiais militares em muitos governos da região, e a Argentina — como sempre oscila entre o abismo e o topo — fez algo totalmente inesperado." Por isso, nem sequer os seis juízes que iriam presidir as audiências tinham certeza de que conseguiriam finalizar o processo: "No próprio Palácio da Justiça, nos olhavam como aberrações, e isso nos gerava uma grande incerteza, não sabíamos se conseguiríamos realizar o julgamento", conta Gil Lavedra, que tinha 36 anos na época e era o mais jovem dos seis magistrados. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Moreno Ocampo lembra que o julgamento fez parte de um processo que havia começado nas eleições de 1983, quando a questão dos "desaparecidos", as vítimas da ditadura cujos corpos não apareciam, se tornou parte da campanha eleitoral que levou Raúl Alfonsín à presidência. Alfonsín criou a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep), que compilou os depoimentos de sobreviventes e familiares de vítimas da ditadura, e tentou fazer que os próprios militares julgassem os ex-comandantes, mas acabou sendo a justiça civil — aplicando o Código de Justiça Militar — o cenário do julgamento. "Optamos pelo Código de Justiça Militar porque possibilitava um julgamento oral e isso também dava a melhor proteção para o tribunal, ou seja, todos podiam ver o que estava acontecendo", diz Gil Lavedra. E o que aconteceu é que a crueza dos depoimentos de mais de 800 testemunhas foi registrada todos os dias pelos mais de 500 jornalistas que cobriram o julgamento, e isso — nas palavras dos protagonistas — permitiu o apoio da opinião pública que havia se mostrado reticente. Moreno Ocampo, cuja família tinha uma parte civil e uma parte militar, lembra como sua mãe, que havia apoiado a ditadura, ligou para ele um dia depois de ouvir vários depoimentos e disse: "Ainda gosto (do ex-presidente militar Rafael) Videla, mas você está certo: ele tem que ser preso". "Os testemunhos para nós que cobrimos o julgamento foram tremendos", diz o jornalista Marcelo Pichel. "Todos os dias era como se um prédio tivesse caído em cima de você. Você saía de lá meio destruído, não havia risadas, não havia nada. Em um velório, por exemplo, se conta uma piada, ali não havia chance de piada alguma. Tudo o que foi dito era tomado pelo que era... terrível." Cada um que teve acesso às audiências se lembra do depoimento que mais o marcou. Para Pichel, jornalista da publicação "El Diario del Juicio", criada especificamente para cobrir o julgamento, as declarações às vezes eram impactantes porque se referiam a pessoas que ele conhecia pessoalmente, outras pela aberração das torturas: "Me lembro do caso do depoimento da família de Floreal Avellaneda. Tudo o que aconteceu com crianças e mulheres doía mais. O caso dele fala de uma crueldade que superou tudo o que se poderia esperar, que se imaginava na Argélia dos franceses ou na Nicarágua de (Anastasio) Somoza: eram bestas, nem sequer animais, e ainda me dói lembrar disso". León Arslanián, o juiz que presidiu o tribunal e, portanto, leu a sentença, ainda guarda em sua memória o depoimento de Adriana Calvo de Laborde, que havia sido sequestrada quando estava grávida e prestes a dar à luz: "Ela teve o filho, foi tratada da pior maneira, arrancaram a placenta dela, a jogaram no chão, forçaram ela nua a lavar todo o lugar", diz ele à BBC News Mundo. "Nunca nos acostumamos de ouvir histórias horríveis, não importa o número de depoimentos", observa Gil Lavedra. "Por exemplo, no final das audiências, em agosto, quando já achávamos que tínhamos uma certa couraça, veio um (depoimento) terrível do Hospital Posadas de Gladys Cuervo, uma enfermeira que foi brutalmente torturada, e voltamos a nos comover como no primeiro dia." Mas como foi para as testemunhas prestarem depoimento no julgamento? Para Marcelo Pichel, os juízes fizeram o seu trabalho, os promotores foram uma espécie de "missionários" encarregados da parte mais sensível do processo, mas "quem deu valor foram as testemunhas". Miriam Lewin, que foi sequestrada aos 19 anos e passou por dois centros de detenção clandestinos — o centro Virrey Cevallos e a Escola de Mecânica da Marinha (ESMA) — lembra que nem todos achavam que as condições eram adequadas para testemunhar no tribunal. "Não sabíamos se haveria represálias contra nós, nós que sobrevivemos aos centros clandestinos havíamos sido fichados e identificados pela inteligência militar, e a verdade é que a Justiça não nos ofereceu segurança, nenhum tipo de custódia, por isso alguns não testemunharam." Ela conta que foi aconselhada a não ficar em sua casa e a deixar temporariamente o trabalho nos dias anteriores e posteriores ao depoimento — "e isso mostrou que a própria promotoria entendeu que estávamos vulneráveis". O filme Argentina, 1985 gira em torno do trabalho do Ministério Público. O promotor principal era Julio César Strassera, seu vice era Luis Moreno Ocampo, e — nas palavras deste último — eles foram apoiados por um grupo muito particular. "Era uma equipe de jovens, porque eu tinha 32 anos, mas na equipe de assistentes, o mais velho tinha 27 e os outros 20, 21 anos. Sete rapazes, dos quais dois eram advogados. Ainda hoje quando nos reunimos, nos perguntamos como fizemos isso." Para Miriam Lewin, o Ministério Público forneceu o isolamento que as testemunhas precisavam antes e depois de depor, porque — como ela mesma descreve — o cenário do tribunal no Palácio da Justiça era assustador. "Era muito imponente, a plataforma sobre a qual os juízes estavam, a sala inteira cheia de gente, a área da imprensa, o fato de que nas minhas costas estavam os nove comandantes-em-chefe, os principais responsáveis daquele governo ilegítimo que havia assassinado milhares de pessoas, a verdade não contribuía para a estabilidade emocional, apesar de que obviamente o Ministério Público havia tentado tranquilizar as testemunhas que finalmente decidiram falar." Embora nem sempre, como lembra Moreno Ocampo, os interesses de alguns coincidiam com a dor de outros: "Lembro de um dos rapazes da promotoria recebendo uma senhora que explica a ele que o oficial que levou seu filho devolveu a ela os restos mortais numa sacola, alguns ossos e um documento que confirmava que haviam sequestrado aquela pessoa, o que era muito raro, e enquanto ela chorava, o rapaz dizia a ela: 'Senhora, seu caso é ótimo', porque estávamos obcecados em provar os fatos." Após os depoimentos das testemunhas em agosto, setembro e outubro, vieram os meses das argumentações da promotoria e dos advogados de defesa. Na memória dos protagonistas do julgamento, assim como no filme, a figura de Julio César Strassera e seu discurso final ocupam um lugar de destaque. "Eu tinha o general Videla a um metro e meio de distância e (Emilio) Massera a três metros, então foi um momento único porque senti que estávamos falando em nome da sociedade argentina e poderíamos dizer na cara dessas pessoas o que haviam feito", diz Moreno Ocampo. "E depois Julio, que realmente se transformava no tribunal, , encerrou sua argumentação de uma forma que foi maravilhosa e que emocionou a todos, quando ele disse: 'Senhores juízes, nunca mais', o tribunal vibrava, e as pessoas choravam. Foi incrível." Para Arslanián, o promotor Julio Strassera — interpretado pelo ator Ricardo Darín no filme — teve, como dizem os franceses, o physique du role para assumir a função que desempenhou nesse julgamento oral: "Era um homem culto, e o cigarro havia dado a ele um tom de voz que era extraordinariamente propício ao que ele estava fazendo." Santiago Mitre, diretor do filme Argentina, 1985, disse à BBC News Mundo que quando começou a pesquisar sobre Strassera, "começaram a aparecer muitos ingredientes porque ele era uma pessoa muito particular e poderia se transformar em um personagem muito atraente em um filme, essa personalidade um pouco explosiva que ele tinha com seu humor meio estranho." Além das características do promotor, falecido em fevereiro de 2015, o cineasta considerou outro aspecto ao focar nos jovens integrantes do Ministério Público: sua audiência. "Há gerações na Argentina que nasceram dando a democracia como algo certo. E eles não se lembram, não só do julgamento, como mal se lembram da ditadura, e acham que é algo pré-histórico", afirma Mitre à BBC News Mundo. Para o diretor, no país sul-americano se vê — como em outras partes do mundo — muitos jovens reproduzindo discursos bastante reacionários e quase reivindicadores de governos ditatoriais. "A imagem de Strassera com sua equipe de jovens, a forma como organizou a investigação tendo que recorrer aos jovens porque a maioria dos oficiais da Justiça não acreditava ou não queria o julgamento por apatia ou por medo ou por adscrição em algum caso, me pareceu muito inspiradora, principalmente considerando que esse filme tinha que falar com esses jovens que lembram pouco da ditadura." "Se alguém vê este filme e ouve o testemunho de Adriana Calvo de Laborde, me parece que é difícil que volte a relativizar a democracia", conclui o diretor. Para Marcelo Pichel, "o filme pode ajudar, mas não basta, o fundamental é a educação". "Há uma batalha cultural que está se perdendo com o tempo. A sociedade não consegue responder. A Alemanha continua falando de nazismo nas escolas. E acredito que aqui a educação deve explicar o que aconteceu durante a ditadura porque é a única maneira de não repetir", avalia o jornalista. Em 9 de dezembro de 1985, os juízes leram a sentença de 709 casos apresentados durante o julgamento. Videla e Massera foram condenados à prisão perpétua; Orlando Agosti foi condenado a quatro anos e seis meses de prisão; Roberto Viola, a 17 anos; e Armando Lambruschini, a oito anos; Omar Graffigna, Fortunato Galtieri, Jorge Anaya e Basilio Lami Dozo foram absolvidos. Anos depois, alguns dos condenados receberam indultos, e alguns dos absolvidos foram condenados, em casos de violações de direitos humanos que continuam até hoje na Argentina.
2022-10-26
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63387423
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A líder indígena que desafiou Cristóvão Colombo e foi condenada a uma morte trágica
Seu nome significava "flor de ouro" — e Anacaona era realmente uma bela e poderosa princesa do povo taíno. E também foi uma mulher culta e talentosa, que acreditava na paz, na convivência e pagou com a vida por isso. Talvez por esta razão ela seja uma das poucas indígenas cujo nome é mencionado nos primeiros anos da conquista da América, no final do século 15. Na sua História das Índias (1527-1547), o frei Bartolomeu de las Casas a descreveu como "uma mulher admirável, muito prudente, muito graciosa e palaciana em suas palavras, artes e gestos, muito amiga dos cristãos". E o padre jesuíta francês Pierre François Xavier de Charlevoix escreveu no seu livro Histoire de l'Isle Espagnole ou de S. Domingue ("História da ilha de La Hispaniola ou de São Domingos", em tradução livre) que ela era uma mulher "muito inteligente, superior ao seu sexo e à sua nação". Embora poucos cronistas a tenham conhecido ou tenham sido testemunhas dos fatos, escritos como estes permitiram traçar a história de uma mulher que se tornou lenda. Sua memória permanece viva até hoje, mais de 500 anos após a sua morte. Fim do Matérias recomendadas Acredita-se que Anacaona tivesse 18 anos de idade no dia 5 de dezembro de 1492, quando Cristóvão Colombo e sua tripulação chegaram à ilha que os nativos chamavam de Quisqueya ("mãe de todas as terras"), Bohio ("casa dos taínos"), Babeque ("terras do ouro") e Ayti. Os europeus batizaram a ilha de La Hispaniola, hoje dividida entre o Haiti e a República Dominicana. Naquela época, a ilha era principalmente dominada pelo povo taíno. E, segundo De las Casas, havia cinco caciques, cada qual responsável por uma região da ilha — os cacicados. A região maior e mais populosa era Jaragua, que estava sob o comando do cacique Bohechío, irmão de Anacaona. Ela morava em Maguana, depois de ter se casado com o cacique daquela região, Caonabo. Anacaona era respeitada e querida não só pela sua posição, mas também por compor poesias e canções. Por isso, ela se destacava nos areítos, que eram manifestações culturais e religiosas do povo taíno, que usavam narração de histórias e dança para celebrar eventos importantes, como a visita de um cacique ou o sucesso da colheita. A história de Anacaona é repleta de lendas, mas afirma-se que sua posição perante a chegada dos espanhóis inicialmente foi positiva e, mesmo após diversas decepções e consciente do poderio dos conquistadores, nunca deixou de defender a paz e a convivência. Em dezembro de 1492, Colombo ordenou a construção da Fortaleza de La Navidad, com os restos do navio Santa Maria, no litoral norte da ilha de La Hispaniola. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Colombo indicou 39 homens para cuidar dessa primeira construção espanhola na ilha e, antes de partir, ordenou a eles que não abusassem dos nativos. Mas os homens não o obedeceram e, quando Colombo regressou, em 1493, o forte estava destruído. O primeiro cronista oficial das Índias, Gonzalo Fernández de Oviedo, relatou que todos os homens haviam sido mortos pelos indígenas, "que não suportaram seus excessos, já que eles tomavam as mulheres e as usavam como quisessem, além de praticarem outros abusos e causarem ressentimentos, como pessoas sem liderança e desordenadas". Caonabo foi considerado responsável e alguns relatos indicam que Anacaona, ao saber dos maus tratos dos espanhóis às mulheres indígenas, foi quem o convenceu a atacá-los. Mas existem historiadores que contestam esta versão, como Luisa Navarro, ex-diretora da Faculdade de História e Antropologia da Universidade Autônoma de Santo Domingo, na República Dominicana. Segundo a historiadora, era quase impossível chegar à Fortaleza de La Navidad sem meios de transporte adequados. "Para chegar ao local onde ficava a fortaleza, era necessário subir pela cordilheira setentrional e descer pelo outro lado, até chegar à região costeira do vale do Atlântico", explicou Navarro à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC. Seriam necessárias 63 horas para fazer esse trajeto a pé. "Como Anacaona teria feito essa viagem para saber o que estava acontecendo e voltar para contar a Caonabo?", questiona ela. Outros historiadores suspeitam que Caonabo foi declarado culpado por razões políticas e que as acusações que o navegador espanhol Alonso de Ojeda usou para detê-lo, dois anos depois, eram falsas. E até a forma de aprisioná-lo foi enganosa. Segundo Navarro, antes de prendê-lo, Ojeda propôs um acordo. Ele ofereceu ao cacique um presente e, quando ele estendeu as mãos para aceitá-lo, puseram-lhe os grilhões. "Caonabo morreu aprisionado com correntes e grilhões", segundo De las Casas, quando uma tempestade afundou a embarcação que o levava à Espanha, em 1496. Anacaona tornava-se assim a rainha viúva de Maguana. Anacaona mudou-se para viver com seu irmão Bohechío, na vizinha região de Jaragua. Ali, ela era "respeitada e temida" como o cacique, segundo Gonzalo Fernández de Oviedo. Pouco depois, chegou à região Bartolomeu, o irmão mais novo de Cristóvão Colombo. E, mesmo com a deterioração das relações com os conquistadores, Anacaona convenceu Bohechío a reconhecer a soberania dos reis católicos e comprometer-se a pagar um imposto que já era cobrado em outras regiões da ilha. Os cronistas da época relatam que a visita de Bartolomeu Colombo foi um evento festivo, marcado por celebrações. Os presentes foram tantos que ele precisou fretar uma caravela para poder transportá-los. Colombo, de sua parte, convidou Anacaona e Bohechío a visitar seu navio. Quando foram dados tiros em sua honra, o ruído os perturbou tanto "que quase se jogaram na água de espanto; mas, quando viram Bartolomeu rindo, acalmaram-se", segundo o cronista Antonio de Herrera y Tordesillas. O mesmo cronista acrescenta que, após o incidente, eles "observavam a popa e a proa ao seu redor, entraram na caravela, foram ao porão e ficaram atônitos". Já segundo De las Casas, a visita à caravela "deixou o rei e a rainha alegres, bem como a todos os senhores, e seus acompanhantes ficaram muito satisfeitos". Este é um dos poucos fatos conhecidos da vida de Anacaona — e um dos mais felizes. Em 1502, Anacaona, cacique de Maguana, perdeu seu irmão. E, em reconhecimento ao seu valor e inteligência, ela foi nomeada cacique da "coluna vertebral" da ilha: Jaragua. Naquela época, La Hispaniola estava abalada. Havia ocorrido uma rebelião de espanhóis frustrados, além de um levante de diversos caciques indígenas que lutavam contra os invasores. O novo governador das Índias — o comendador de Lares, frei Nicolau de Ovando — propôs-se a pacificar a ilha. A longínqua região de Jaragua estava na sua mira, não só porque ali se haviam refugiado os rebeldes espanhóis, mas também porque haviam chegado rumores de que Anacaona e outros caciques estariam conspirando contra a coroa espanhola. Por isso, as ideias de "pacificação" do governador e da cacique eram muito diferentes. Apesar do desprezo e dos contínuos abusos dos espanhóis contra os indígenas, Anacaona estava convencida de que somente uma paz estável poderia salvar seu povo. Mas a paz que Ovando desejava não trazia acordos, nem salvações. O governador organizou suas tropas e partiu em direção a Jaragua, enquanto Anacaona organizava uma grande recepção para o comendador. Em um domingo de julho de 1503, Anacaona recebeu Ovando na praça de Jaragua com grandes festas, cantos e danças, como era de costume. O governador chegou com 70 homens a cavalo e 200 andarilhos. Compareceram também à celebração dezenas de caciques, súditos de Anacaona. Ela foi uma das últimas a chegar à praça, acompanhada da filha e de outras líderes mulheres. "Ela organizou um areíto para Ovando... e mais de 300 donzelas participaram da dança, todas suas criadas, solteiras...", conta Fernández de Oviedo. Depois de várias demonstrações das celebrações dos taínos, os homenageados convidaram os indígenas a reunir-se em uma choupana para retribuir as honras com um espetáculo próprio. Entusiasmados e desarmados, os caciques e seus acompanhantes reuniram-se em uma casa de madeira e palha. Enquanto eles presenciavam uma competição, Ovando deu o sinal combinado para seus homens, que os capturaram, amarraram e queimaram vivos. Enquanto isso, outros espanhóis atacavam os indígenas que estavam no lado de fora. De las Casas conta que eles cortaram as pernas das crianças enquanto elas corriam. E, quando algum espanhol tentava salvar uma criança fazendo-a montar no seu cavalo, outro se aproximava e "atravessava a criança com uma lança". Por vários meses depois do massacre, Nicolau de Ovando conduziu uma sangrenta campanha de perseguição contra os indígenas, até que foram quase exterminados da ilha, segundo Samuel M. Wilson no seu livro Hispaniola: Caribbean Chiefdoms in the Age of Columbus ("La Hispaniola: Os cacicados do Caribe no tempo de Colombo", em tradução livre). Suas campanhas sangrentas e uma série de epidemias reduziram a população de La Hispaniola, das 500 mil pessoas estimadas na época da chegada de Colombo, para apenas 60 mil nativos, segundo dados do censo de 1507 no Manual de la Historia Dominicana ("Manual da história dominicana", em tradução livre), do historiador Frank Moya Pons. Anacaona e sua filha sobreviveram ao ataque, que passou para a história como o Massacre de Jaragua. O sobrinho da cacique, Guarocuya ou Enriquillo, também se salvou e se rebelaria contra os espanhóis 15 anos depois. Mas a sorte da cacique seria efêmera. Ela foi capturada, levada a Santo Domingo e condenada à forca por conspiração. O diretor do Museu de Anacaona afirma que ela "foi a rainha taína mais adorada pelo povo. Não baixou a cabeça até o último dia e deu sua vida por eles". Já Navarro a descreve simplesmente como "a líder máxima de toda a população, não somente nesta ilha [La Hispaniola], mas também em Porto Rico, Cuba e parte da Jamaica". Sua história é recordada em canções, como "Anacaona", do cantor porto-riquenho Cheo Feliciano, e nos poemas que levam seu nome, escritos pela poetisa dominicana Salomé Ureña. * Com edição de Dalia Ventura e Leire Ventas.
2022-10-21
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63343598
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Perfis de países: Uruguai
O Uruguai é historicamente um país mais afluente e com melhor qualidade de vida que outras nações da América do Sul. O pequeno vizinho brasileiro, que faz fronteira com o Rio Grande do Sul, é conhecido por ter sistemas de educação e de previdência avançados e leis socialmente liberais. Foi a primeira nação da América Latina a estabelecer um Estado de bem-estar social, mantido por meio de índices de tributação relativamente altos sobre a indústria. A tradição democrática uruguaia fez com que o país passasse a ser chamado de "Suíça da América do Sul". O setor agrícola é muito significativo, e o Uruguai é um grande exportador de carne. Instabilidades política e econômica, porém, dominaram o Uruguai no começo dos anos 1970, inclusive com ataques de guerrilha urbana de esquerda. O governo da época suspendeu a Constituição e lançou um período autoritário de regime militar, que durou até 1985. Desde a restauração da democracia, sucessivos governos uruguaios liberalizaram a economia. Um dos setores que mais se beneficiaram foi o de turismo, movimentado pela atração gerada por pequenas cidades coloniais, resorts de praias e um clima ameno. O país vive um cenário político de estabilidade, especialmente em comparação com outras nações latino-americanas, com alternância de poder entre blocos de direita e esquerda. Bicampeão mundial de futebol, o Uruguai conseguiu por meio do esporte uma projeção internacional muito maior do que o tamanho de sua população - de 3,5 milhões - poderia sugerir. No século 21, o país destacou-se ao aprovar, num espaço curto de tempo, a legalização do aborto e da maconha, tanto seu consumo como sua produção. Fim do Matérias recomendadas FATOS Capital: Montevidéu População3,5 milhões Área176.215 quilômetros quadrados Principal línguaEspanhol Principal religiãoCristianismo Expectativa de vida74 anos (homem), 81 anos (mulher) MoedaPeso uruguaio LÍDER Presidente: Luis Lacalle Pou Um dos mais jovens presidentes do Uruguai, Luis Lacalle Pou assumiu o comando do país em março de 2020, aos 46 anos de idade. Membro do Partido Nacional, uma legenda conservadora, ele derrotou em segundo turno Daniel Martinez, da esquerdista Frente Ampla, no pleito disputado em novembro de 2019. Ao longo da campanha, o principal tema que preocupava os eleitores era o aumento da criminalidade no país. Foi a segunda tentativa de Lacalle Pou de chegar à Presidência, tendo sido derrotado quatro anos antes por Tabaré Vazquez. Seu pai, Luis Alberto Lacalle, também foi presidente do Uruguai entre 1990 e 1995. Lacalle Pou interrompeu um ciclo de 15 anos em que o bloco de esquerda governou o Uruguai - com os presidentes Vázquez e José Mujica. Em sua posse, o novo presidente defendeu o Mercosul, mas também afirmou ser a favor de acordos bilaterais entre membros do bloco regional. MÍDIA Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os uruguaios têm acesso a uma ampla oferta de diferentes pontos de vista por meio dos veículos privados de mídia do país. A rádio e a televisão públicas são operadas pelo serviço oficial de radiodifusão, SODRE. Alguns jornais são de propriedade de - ou ligados a - partidos políticos. A liberdade de expressão é garantida pela Constituição e, segundo a entidade Freedom House, é geralmente respeitada. Segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras, uma lei de 2014 foi elogiada por encorajar a pluralidade na mídia e por estabelecer um regulador independente para o setor. Segundo o InternetWorldStats.com, em dezembro de 2018, cerca de 3 milhões de uruguaios - 88% da população - acessavam a internet. O Facebook é a principal rede social usada no país. RELAÇÕES COM O BRASIL Brasil e Uruguai compartilham não apenas uma realidade e uma história próximas, mas já foram parte do mesmo reino e formaram o mesmo país. Um ano antes da declaração de independência do Brasil, o território uruguaio foi formalmente anexado por Portugal e passou a pertencer ao Reino Unido de Brasil, Portugal e Algarves, como Província Cisplatina. Com isso, assim que Dom Pedro 1º deu seu grito ao lado do Ipiranga, a Cisplatina passou a fazer parte do Brasil. Não durou muito. A guerra entre Brasil e Argentina pela Cisplatina, iniciada em 1825, resultou na independência do território, que não ficou com nenhum dos lados do conflito. Nasceu assim o Uruguai, que tem laços culturais próximos à região sul do Brasil, especialmente o Estado do Rio Grande do Sul. Assim como o Brasil, Paraguai e Argentina, o Uruguai é membro fundador do Mercosul, bloco lançado com a assinatura de um tratado em 1991. A nova entidade aumentou a interação política e o comércio entre as nações do Cone Sul, aproximando ainda mais Brasília e Montevidéu. Segundo o Ministério das Relações Exteriores brasileiro, o comércio entre os dois vizinhos aumentou de US$ 2,6 bilhões para US$ 4,2 bilhões por ano de 2008 a 2018. A fronteira entre os dois países estende-se por 1.069 quilômetros. Entre as cidades de Jaguarão, no lado brasileiro, e Rio Branco, no lado uruguaio, foi erguida uma ponte no final da década de 1920. A Ponte Internacional Barão de Mauá, sobre o rio Jaguarão, foi reconhecida como patrimônio cultural do Mercosul. Os governos brasileiro e uruguaio mantêm boas relações, situação vista ao longo da história independentemente da linha de governo existente em cada país. Em 2020, o presidente Jair Bolsonaro participou da posse do colega uruguaio, Luis Lacalle Pou. LINHA DO TEMPO Importantes datas na história do Uruguai: 1516 - O navegador espanhol Juan Diaz de Solis é morto por indígenas enquanto explorava o Rio da Prata. Sua morte desestimulou a colonização europeia da área por mais de cem anos. 1726 - Os espanhóis fundam Montevidéu e tomam dos portugueses o território correspondente ao atual Uruguai. Muitos dos indígenas da região são mortos. 1776 - Território à margem direita do Rio da Prata torna-se parte da Vice-realeza de La Plata, cuja capital é em Buenos Aires. 1816 - Forças portuguesas invadem o território do futuro Uruguai e, em 1821, o anexam ao Reino Unido de Brasil, Portugal e Algarves, como Província Cisplatina. 1822 - Com a declaração de independência do Brasil, a Província Cisplatina torna-se parte do território brasileiro. 1825 - Guerra entre Argentina e Brasil pela Província Cisplatina. 1828 - Fim do conflito. Em acordo, Argentina e Brasil retiram suas respectivas reinvindicações de posse da Cisplatina, que se torna independente como República Oriental do Uruguai. 1838-65 - Guerra civil entre Brancos - os futuros conservadores - e Colorados - os futuros liberais. 1865-70 - Guerra do Paraguai - também conhecida como Guerra da Tríplice Aliança. O Uruguai se une a Argentina e Brasil contra o Paraguai, que é derrotado. 1903-15 - Em seus dois mandatos consecutivos como presidente, o reformista José Batlle y Ordonez, do Partido Colorado, dá às mulheres o direito a voto, estabelece o Estado de bem-estar social e elimina a pena de morte. 1939-45 - Segunda Guerra Mundial. O Uruguai fica neutro durante grande parte do conflito, mas se une aos Aliados mais tarde. Anos 1960 - Surgimento do grupo armado de esquerda Tupamaros, que organiza ataques de guerrilha. As Forças Armadas lançam uma violenta resposta. 1973 - Golpe de Estado introduz regime militar, caracterizado por extrema repressão. No período, o Uruguai é chamado por muitos de "a câmara de tortura da América Latina" e acumula o maior número de prisioneiros políticos per capita do mundo. 1984 - Protestos violentos contra a repressão e a deterioração da economia. 1985 - O Exército e líderes políticos concordam com o retorno a um governo constitucional e a libertação de presos políticos. Legislação concede anistia a membros das Forças Armadas acusados de violações de direitos humanos durante os anos da ditadura. Julio Maria Sanguinetti torna-se presidente. 1989 - Referendo endossa a anistia a acusados de abusos de direito humanos. 2002 - Uruguai rompe relações diplomáticas com Cuba. A decisão ocorre após Havana acusar o país de estar operando a mando dos Estados Unidos quando patrocinou uma resolução da ONU pedindo que Cuba implementasse reformas para proteger direitos humanos. 2004 - Candidato esquerdista Tabaré Vázquez vence as eleições presidenciais, provocando uma dramática mudança na política uruguaia. 2005 - Tabará Vázquez assume a Presidência e logo reata as relações com Cuba, assina um acordo de energia com a Venezuela e anuncia um pacote de assistência para combater a pobreza. 2007 - Ex-presidente e ditador Juan Maria Bordaberry e seu ex-ministro do Exterior são presos em conexão com o assassinato de quatro opositores políticos em 1976. 2009 - A Suprema Corte decide que a legislação protegendo oficiais do regime militar de processos judiciais por abusos contra direitos humanos é inconstitucional. O ex-governante militar Gregorio Alvarez é condenado a 25 anos de prisão por assassinato e violação de direitos humanos. O ex-rebelde de esquerda e ex-preso político José Mujica, da Frente Ampla, vence a eleição presidencial. 2010 - Mujica assume a Presidência. O ex-presidente Bordaberry é condenado a 30 anos de prisão por assassinato e violação da Constituição no golpe miliar de 1973. Devido a sua idade avançada, ele cumpre a sentença em casa e morre no ano seguinte. 2011 - O Congresso uruguaio aprova a revogação da lei de anistia que protegia oficiais militares de processos por crimes cometidos durante o regime militar de 1975 a 1983. 2012 - O Uruguai torna-se o primeiro país latino-americano depois de Cuba a legalizar o aborto para todas as mulheres - até 12 semanas de gravidez. 2013 - O Uruguai torna-se o primeiro país a legalizar o cultivo, a venda e o consumo de maconha para uso recreativo, como medida para combater o poder dos traficantes de drogas. A agência para drogas da ONU diz que a medida viola a legislação internacional. 2018 - O país é o primeiro do mundo a produzir e vender maconha legalmente para uso recreativo. 2019 - Vitória do conservador Luis Lacalle Pou encerra período de 15 anos da esquerda no poder no Uruguai.
2022-10-17
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-56530323
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Por que venezuelanos estão migrando em massa para os EUA através do México
"Balseiros do ar" é uma expressão que se tornou popular há algumas décadas para descrever os venezuelanos que emigraram para os Estados Unidos depois que Hugo Chávez assumiu o poder em 1999. Morto em 2013, Chávez governou a Venezuela por 14 anos. Essa frase não descreve mais como os venezuelanos entram nos EUA, que ultimamente está mais para os chamados "wetbacks" ("costas molhadas", em tradução livre), um termo cunhado na década de 1920 — e muitas vezes usado de forma depreciativa — para se referir àqueles que atravessaram a fronteira nadando pelo Rio Grande do México. Em agosto deste ano, o número de venezuelanos que tentou cruzar a fronteira do México para os Estados Unidos foi maior que o de guatemaltecos e hondurenhos. Apenas os próprios mexicanos fizeram mais travessias. Naquele mês, a patrulha de fronteira americana deteve 25.349 cidadãos venezuelanos, número quatro vezes maior do que o de agosto de 2021 (6.301). Fim do Matérias recomendadas Já o número de brasileiros tentando cruzar a fronteira do México com os EUA caiu no mesmo período - foram 5.750 detenções contra 9.100 um ano antes. Em dezembro do ano passado, por pressão do governo americano, o México passou a cobrar visto de turista de brasileiros. Em setembro, segundo o Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos (DHS, na sigla em inglês), aumentou ainda mais o contingente de venezuelanos detidos na fronteira sul: 33 mil. Mas talvez os dados que mostrem mais claramente como as coisas mudaram nos últimos dois anos sejam os seguintes: entre os anos fiscais de 2014 e 2019, a média mensal de detenções de venezuelanos foi de 127. No total, entre o ano fiscal de 2021 e o ano fiscal de 2022 (que terminou em 30 de setembro), as detenções de venezuelanos na fronteira aumentaram 293%, segundo o DHS. Diante dessa situação, o governo do presidente americano Joe Biden anunciou nesta quarta-feira (12/10) uma nova política que prevê a expulsão para o México de todos os venezuelanos que entrarem nos EUA sem autorização pela fronteira, mas que, ao mesmo tempo, concederá permissão humanitária para cerca de 24 mil deles, atendida uma série de requisitos. Mas por que tantos venezuelanos estão entrando nos Estados Unidos pela fronteira sul? Historicamente, os venezuelanos não tinham tradição de emigrar. Pelo contrário. No século 20, a Venezuela serviu durante décadas como local de acolhimento para pessoas vindas, sobretudo, de outros países da América Latina e do sul da Europa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A profunda crise que a Venezuela experimentou nos últimos sete anos mudou completamente essa dinâmica e o país se tornou um grande emissor de migrantes. Cerca de 7,1 milhões de venezuelanos (cerca de 20% da população) vivem atualmente como migrantes ou refugiados em diferentes partes do mundo, segundo dados da ONU de setembro de 2022. Segundo Juan Navarrete, vice-diretor para a crise de refugiados da Anistia Internacional Venezuela com sede em Bogotá (Colômbia), esse número mostra que a crise migratória venezuelana não deu sinais de arrefecimento — em agosto o número de refugiados era de 6,8 milhões de pessoas. "O fluxo de pessoas que sai da Venezuela continua, embora talvez não na mesma proporção do período 2015-2017", diz Navarrete à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC. Julia Gellat, analista sênior do Migration Policy Institute, um centro de estudos com sede em Washington (Estados Unidos), acredita que uma combinação de condições econômicas e políticas difíceis vem forçando os venezuelanos a deixar o país. Em sua visão, algumas pessoas que decidiram permanecer na Venezuela até agora estavam esperando a queda do governo de Nicolás Maduro e, como isso não aconteceu, agora acreditam que é hora de sair. A Venezuela saiu de um longo período de hiperinflação em dezembro de 2021, mas continua sendo um dos países com a inflação mais alta do mundo. Nos últimos dois meses, a moeda venezuelana se desvalorizou cerca de 30% em relação ao dólar, cuja cotação oficial passou de 6,28 bolívares por dólar em agosto para 8,26 bolívares por dólar nesta semana, o que deixa o salário mínimo mensal dos venezuelanos em torno de US$ 16 ou R$ 85 — no Brasil, para efeitos de comparação, o salário mínimo é de R$ 1.212. Desde o início da crise migratória, a maioria dos venezuelanos que decidiu deixar o país migrou para outras nações da América Latina e do Caribe: cerca de 5,96 milhões. Estima-se que existam quase 2,5 milhões de venezuelanos na Colômbia, 1,5 milhão no Peru, 500 mil no Equador e 450 mil no Chile. No Brasil, são cerca de 260 mil, segundo dados da ONU. No entanto, Navarrete explica que as condições de entrada e permanência de venezuelanos na região ficaram mais difíceis nos últimos anos. Isso levou a uma mudança na tendência migratória. Portanto, agora, em vez de procurarem rotas para o sul, os venezuelanos que buscam uma vida melhor no exterior passaram a olhar mais para o norte. "Assim como no norte existe o Estreito de Darién [uma selva muito perigosa que os migrantes que vão da Colômbia ao Panamá devem atravessar], no sul, desde a pandemia de coronavírus, os países da região começaram a exigir dos venezuelanos vistos e outros documentos de difícil obtenção", diz. O especialista indica que a essas dificuldades se somam alguns episódios de xenofobia ocorridos em alguns países como Chile e Peru, que os migrantes também levam em consideração ao pensar em possíveis destinos. Soma-se a tudo isso o fato de que, desde a pandemia do coronavírus, a situação econômica nos países da América Latina se deteriorou tanto para a população local quanto para os imigrantes, que ficaram em situação ainda mais precária. "Acho que uma mudança que ocorreu recentemente é que as condições econômicas em outros países levaram os venezuelanos a virem para os Estados Unidos", diz Julia Gelatt. Navarrete explica que, diante da deterioração das condições econômicas e das dificuldades crescentes de ir para outros países latino-americanos, os EUA podem aparecer como um lugar mais atraente na mente dos migrantes venezuelanos. "Um migrante venezuelano que vive mendigando dinheiro nas ruas da Colômbia pode pensar que pode conseguir muito mais dinheiro nos Estados Unidos, onde os meios de subsistência são melhores. Então, em sua imaginação, eles preferem ir rumo ao norte em vez de ao leste, sem pensar que os riscos da rota norte são muito maiores", argumenta. A isso se soma o fato de que os Estados Unidos tinham uma política benevolente em relação aos migrantes venezuelanos, que as autoridades daquele país consideram vítimas do governo Maduro, descrito como um "ditador" tanto por Biden quanto por seu antecessor, o republicano Donald Trump. Em um comunicado de imprensa Alfândega e Proteção de Fronteiras dos Estados Unidos (CBP, na sigla em inglês) divulgado em setembro, destaca-se que "o grande número de pessoas que foge dos regimes comunistas fracassados na Venezuela, Nicarágua e Cuba está contribuindo para um maior número de migrantes tentando atravessar a fronteira." Por volta desses mesmos dias, questionado pela imprensa, o próprio presidente Biden disse que não era "racional" devolver os migrantes a esses três países. Até agora, na prática, essa posição significava que, durante meses, quando os venezuelanos cruzavam a fronteira para os EUA vindos do México, eles "se rendiam" à patrulha de fronteira, porque achavam que não seriam deportados, mas que simplesmente seriam detidos por alguns dias e depois soltos enquanto aguardavam o processamento de seu pedido de asilo perante um juiz de imigração. Isso era uma diferença fundamental em relação ao tratamento dado aos migrantes de muitos outros países expulsos dos EUA para o México ou deportados para seus países de origem. "Alguns imigrantes achavam que até agora os Estados Unidos estavam deixando os venezuelanos entrarem e não os expulsavam com base no Título 42 (uma regra da era Trump que permite que eles sejam devolvidos ao México com a desculpa da pandemia de coronavírus), ao contrário do que acontece com os migrantes de outros países. Acho que essa informação se espalhou entre as redes de migrantes", diz Gellat. Navarrete se refere a esse fenômeno como "inteligência migratória": a troca de informações entre migrantes que, como explica, no caso dos venezuelanos, ocorre muito por meio de redes sociais como TikTok e Facebook. Segundo o especialista, a soma de todos esses elementos vem tornando a ideia de emigrar para os EUA atraente na mente dos migrantes venezuelanos. Mas podemos esperar alguma mudança após o governo Biden anunciar que vai expulsar para o México os venezuelanos que tentarem entrar na fronteira sul sem visto? Navarrete acredita que, em parte, isso dependerá do que acontecer com essas informações e como elas são tratadas nas redes de migrantes, e aponta que muitos dos que estão emigrando são jovens, de classes populares, que não conhecem as normais legais sobre migração. Ele acrescenta ainda que os grupos de contrabando de migrantes encontraram nos venezuelanos uma oportunidade de negócio. Julia Gelatt, por sua vez, considera ser possível que, embora alguns decidam permanecer na Venezuela ou ir para outros países, haja quem insista em ir para os Estados Unidos. "Se as pessoas estão fugindo da fome, da pobreza e da repressão política na Venezuela, é muito provável que façam a viagem de qualquer maneira e possam tentar atravessar a fronteira, mesmo que não estejam mais procurando por agentes de patrulha de fronteira para que lhes permita entrar e ficar. As pessoas ainda podem estar tentando entrar, mas clandestinamente", diz. "Quando as condições são tão difíceis, haverá pessoas que precisam emigrar para sobreviver e essas ainda podem tentar vir para os EUA", conclui.
2022-10-17
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63264545
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Os dados que mostram o sério declínio da vida selvagem (e por que a América Latina é a área mais afetada)
Acontece em dezembro um evento global do interesse de milhões de pessoas. Não, não é a final da Copa do Mundo no Catar, mas mais um encontro internacional que disputará com o futebol a atenção do público: a Conferência das Partes da Convenção sobre Biodiversidade ou COP15, que acontecerá em Montreal, no Canadá. O objetivo da cúpula é estabelecer metas e mecanismos para proteger a biodiversidade em todo o mundo, e a urgência de tomar medidas ficou ainda mais clara com o novo Relatório Planeta Vivo que acaba de ser divulgado. Baseado em um índice compilado a cada dois anos pela organização World Wide Fund for Nature (WWF) e o zoológico de Londres, o documento revela um sério declínio na vida selvagem. E a queda mais acentuada foi, de longe, na América Latina e no Caribe. A equipe da BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, selecionou dois pontos centrais do documento e explica abaixo o que significam. Fim do Matérias recomendadas As populações monitoradas e incluídas no relatório foram reduzidas entre 1970 e 2018 em uma média de 69% em todo o mundo. Para entender corretamente este fato fundamental, é necessário fazer dois esclarecimentos, explicou à BBC Mundo Luis Germán Naranjo, diretor de Conservação e Governança da WWF na Colômbia. Em primeiro lugar, o relatório fala apenas de vertebrados. E dentro destes, considera apenas 32 mil populações monitoradas pela ciência e que correspondem a 5.320 espécies em diferentes partes do mundo. "Para as pessoas terem uma ideia disso, é preciso entender que só as aves, por exemplo, abarcam cerca de 11 mil espécies no mundo inteiro. Se adicionarmos anfíbios, além de peixes, mamíferos e répteis, estamos falando de mais de cem mil espécies", disse Naranjo. "Aqui estamos falando de uma amostra." O segundo esclarecimento é que o declínio médio de 69% globalmente não se refere ao número de animais individuais, mas às porcentagens pelas quais as populações monitoradas foram reduzidas. O relatório explica essa diferença com um exemplo esclarecedor. Imagine que monitoramos três populações: pássaros, ursos e tubarões. As aves diminuem de 25 para 5, uma queda de 80%. Os ursos caem de 50 para 45 animais, uma redução de 10%. E os tubarões caíram de 20 para 8, um declínio de 60%. Neste exemplo, a redução média no tamanho da população é então de 50%. Mas o número total de animais caiu de 150 para 92, uma queda de cerca de 39%. Quando o declínio é observado não globalmente, mas regionalmente, o maior ocorreu na América Latina e no Caribe: 94%. Esta região é seguida pela África com 66% e Ásia e Pacífico, com 55%. "O número é alarmante", disse Naranjo. "É claro que é apenas uma pequena fração da biodiversidade, mas se assumirmos que a situação é semelhante para outros organismos não avaliados, é realmente assustador". O representante da WWF na Colômbia deu à BBC Mundo dois exemplos da crise da biodiversidade na América Latina. "A situação dos anfíbios é realmente séria, principalmente nos ecossistemas montanhosos do norte dos Andes." Entre as causas desta crise está, por um lado, a expansão da fronteira agrícola. "E outro fator é a mudança climática que aparentemente contribuiu para a disseminação de um fungo que afeta os anfíbios". O segundo exemplo são as espécies de peixes de água doce. "As espécies migratórias estão sendo muito afetadas na América Latina e isso é grave porque, por exemplo, nas bacias do Orinoco e Amazônica há grandes migrações de peixes. Muitos estão sendo afetados pela modificação dos canais dos rios por barragens e também pela poluição, principalmente pela contaminação por mercúrio." Quanto à Amazônia, o relatório Planeta Vivo reúne dados publicados em 2021 por um grupo de especialistas do Painel Científico da Amazônia, segundo os quais 17% da bacia amazônica foram desmatados e outros 17% do ecossistema estão degradados. "A COP 15 é uma enorme oportunidade que temos pela frente para estabelecer metas vinculantes e ambiciosas que levem a investir os recursos necessários para deter a perda de biodiversidade e começar a recuperá-la", disse Naranjo. "Isso soa muito romântico, mas há algo que me parece importante. Neste ano, as Nações Unidas reconheceram o direito universal a um ambiente saudável e limpo. Com a pandemia de covid-19, a humanidade aparentemente começou a perceber sua dependência de um ambiente saudável. "E isso é algo que sempre foi o pilar das cosmogonias dos povos indígenas ao redor do mundo. Parece que estamos finalmente adotando esse tipo de pensamento e para mim isso é esperança."
2022-10-16
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63260842
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'Bolsonaro adota medidas do manual de Chávez': entenda semelhanças e diferenças entre Brasil e Venezuela
A reportagem abaixo, publicada originalmente em agosto de 2021, voltou a circular em outubro de 2022, depois que o presidente Jair Bolsonaro disse que recebeu propostas para aumentar o número de ministros do Supremo Tribunal Federal e que pode discutir o tema após as eleições. A sugestão foi comparada por muitos - inclusive pelo empresário João Amoêdo (Novo), candidato à presidência em 2018 - ao que aconteceu na Venezuela. Em 18 de outubro de 2018, poucos dias antes do segundo turno da eleição presidencial que o confirmaria como o novo presidente do Brasil, Jair Bolsonaro foi ao Twitter e se dirigiu aos brasileiros. "Sempre dissemos que não existe salvador da pátria, mas graças a união do brasileiro temos a chance real de não virarmos a próxima Venezuela. Juntos, daremos o pontapé para fazermos do Brasil uma das mais respeitáveis potências mundiais", escreveu o então candidato pelo PSL. Ali, ele repetia um dos temas mais frequentes em sua campanha eleitoral: o medo dos brasileiros de que a crise política, econômica e social que assolou o país vizinho em decorrência das políticas do regime chavista pudessem se replicar no Brasil. No imaginário da população brasileira, o colapso da Venezuela ganhava cores cada vez mais vivas com a chegada em massa de migrantes do país via Pacaraima, em Roraima, em fuga da fome. "Vamos vencer e quebrar a engrenagem que quer nos tornar uma Venezuela!", tuitou o candidato em 10 de outubro de 2018, em outro exemplo dentre as dezenas de mensagens sobre o assunto que ele disparou naquele ano. Mais de dois anos e meio após a posse de Bolsonaro, no entanto, especialistas em política latino-americana ouvidos pela BBC News Brasil dizem que o atual presidente brasileiro é o líder mais próximo ao estilo de Hugo Chávez que o Brasil já teve no período democrático recente. "Bolsonaro se cercou de militares, cria embate com outros poderes, desacredita o processo eleitoral e tenta calar a imprensa. Todas medidas tiradas do manual chavista", afirmou à BBC News Brasil Jorge Castañeda, ex-ministro de Relações Exteriores do México e professor da New York University. Fim do Matérias recomendadas As semelhanças entre ambos não se esgotam nas coincidências biográficas ou no modo como souberam explorar as redes sociais e a imagem de outsiders para conquistar os eleitores. Com mais ou menos sucesso, ambos operaram avanços sobre as Supremas Cortes e apostaram nos embates com instituições democráticas, especialmente com a imprensa. Ambos ainda incentivaram ou promoveram o armamento da população civil e militarizaram o Estado ao mesmo tempo em que interferiam em órgãos investigativos, expurgavam servidores públicos não alinhados e tentavam levar os dados oficiais a apoiar narrativas de seus governos, nem sempre condizentes com a realidade. "Em 2018, baseado no meu trabalho sobre líderes populistas e militares na democracia na América Latina, eu já dizia que Bolsonaro era a figura que mais se parecia com Chávez no Brasil e isso se mantém", afirmou à BBC News Brasil Harold Trinkunas, especialista em política latino-americana da Universidade Stanford e da Brookings Institution. Trinkunas explica: "Apesar de defenderem ideologias obviamente diferentes, os dois são líderes populistas. Os populistas alegam conhecer e defender a vontade do povo e argumentam que são as instituições e as elites os empecilhos para que eles as coloquem em prática. O viés antielites e anti-instituições em Bolsonaro é tão claro quanto era em Chávez". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Embora tenha adotado Chávez como um de seus antagonistas principais na eleição presidencial, Bolsonaro admitiu em 1999 beber da fonte chavista em sua formação política. Em uma entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o então deputado federal afirmou que "Chávez é uma esperança para a América Latina e gostaria muito que essa filosofia chegasse ao Brasil". Na ocasião, o deputado admitiu que pretendia ir ao país vizinho para tentar ser recebido em visita no Palácio Presidencial de Miraflores. "Acho que ele [Chávez] vai fazer o que os militares fizeram no Brasil em 1964, com muito mais força. Só espero que a oposição não descambe para a guerrilha, como fez aqui", analisou o então deputado federal Bolsonaro, filiado ao PPB, atual PP. Em 2020, já presidente, Bolsonaro repetiu, em uma live, que achou "maravilhoso" ver Chávez vencer as eleições. "Depois fez besteira, e virei opositor, como sou ao governo Maduro", disse. Chávez e Bolsonaro têm origem parecida. Ambos nasceram em cidades pequenas e de interior de seus países, tiveram infância simples e ingressaram jovens em academias militares, onde fariam carreira. O primeiro chegou a coronel. O segundo, a capitão. E os dois incorreram em faltas disciplinares graves, o que os afastou da carreira nas Forças Armadas e os lançou definitivamente na política. No caso de Chávez, em 1992, como tenente-coronel, ele comandou subordinados na tentativa de dar um golpe de Estado na Venezuela. O ato, mal-sucedido, o levou à prisão por dois anos. Posteriormente, Chávez acabaria anistiado. Bolsonaro se manifestou publicamente por melhorias salariais para as Forças em 1986, uma tomada de posicionamento político público que lhe rendeu 15 dias de prisão. No ano seguinte, ainda em protesto, teria arquitetado um plano para explodir adutoras de abastecimento de água do Rio de Janeiro. Em 1988, foi julgado pelo Superior Tribunal Militar, que considerou não haver provas suficientes para condená-lo. Naquele mesmo ano, ele passou à reserva e se elegeu como vereador no Rio de Janeiro. Depois de sua tentativa de golpe, Chávez levaria mais seis anos para se converter no "Comandante", como era chamado já na Presidência de seu país. Para Bolsonaro, o caminho foi mais longo: levou 30 anos até que ele se convertesse em "Mito" e passasse a ocupar o Palácio do Planalto. Há, no entanto, uma enorme coincidência de contextos que favoreceram as vitórias presidenciais de cada um deles. "Ambos são políticos que chegam ao auge do poder em uma terra arrasada. Há um profundo sentimento de fim de festa nos dois países, uma aguda crise econômica, política e social que explica essa ascensão", afirma a cientista política Daniela Campello, da Fundação Getúlio Vargas. No fim dos anos 1990, a Venezuela já não era um dos países mais ricos do mundo, como fora entre 1950 e 1980, período que lhe rendeu o apelido de "Venezuela saudita". Nos anos 1970, graças às suas reservas petrolíferas, os venezuelanos tinham o maior poder de compra entre os países América Latina — quase três vezes maior que o dos brasileiros —, segundo um índice da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Tudo mudou na década de 1980, com a flutuação do preço do petróleo. Com menos dinheiro, problemas históricos ficaram evidentes: a falta de acesso à educação para a população de baixa renda, o aumento da pobreza em meio à escalada da inflação, a corrupção e o desvio de dinheiro público das elites políticas do país. Em 1989, o Exército é chamado a reprimir uma enorme manifestação popular em Caracas, o Caracaço. Uma multidão revoltada e faminta, que saqueava e depredava tudo o que havia, acabou massacrada pelos militares. Chávez surge nesse contexto, como um outsider, alguém que propõe mudanças e lidera uma recém-criada agremiação, o Movimento Quinta República, com a qual se elege e derrota os dois partidos que polarizavam a eleição havia quatro décadas na Venezuela. Chávez só viria a formalizar um partido próprio em 2006, o Partido Socialista Unido da Venezuela. Do mesmo modo, Bolsonaro encerra um período de mais de duas décadas de vitórias presidenciais de PT e PSDB, cujas imagens sofreram fortes abalos após as investigações da Operação Lava Jato. Mas não era só: o país também enfrentava a pior recessão econômica desde 1948. E embora Bolsonaro fosse deputado por quase três décadas, jamais tivera expressão nacional e surgia como uma figura alternativa, à frente de um até então partido nanico, o PSL, cuja sigla os brasileiros mal conheciam. "Não estou dizendo nem vagamente que os dois são a mesma pessoa, mas não dá pra ignorar que existem traços claros de poder em Chávez que deságuam em Bolsonaro e que, em certa medida, superam esses dois personagens e remontam a toda uma tradição política latino-americana", afirma o correspondente da BBC na América Latina Will Grant, autor do recém-lançado Populista: the rise of Latin America's 21st Century Strongman, ou, em tradução livre, Populista: a chegada ao poder dos caudilhos da América Latina no século 21, em cuja capa Chávez e Bolsonaro se encaram. "Sou apenas um homem, um soldado, um patriota". A frase, que pelo estilo e pelos valores que evoca facilmente caberia na boca de Bolsonaro, na verdade foi enunciada por Chávez. "O soldado que vai à guerra e tem medo de morrer é um covarde!" A afirmação poderia ser atribuída à Chávez, mas foi dita por Bolsonaro, em seu terceiro ano de mandato como presidente, em meio ao embate contra o Tribunal Superior Eleitoral sobre a impressão do voto. "Uma vez no poder, tanto Bolsonaro quanto Chávez mantêm a retórica do maniqueísmo, do bem contra o mal, para surfar os sentimentos da população contra o establishment, e a estratégia de manter vivo o conflito institucional para tentar esticar os limites de seus poderes", afirma o cientista político Fernando Bizzarro, da Universidade Harvard. Um dos alvos centrais de ambos os presidentes em suas investidas contra as instituições são as Supremas Cortes de cada país. Chávez acusava o Tribunal Constitucional venezuelana de golpismo e corrupção e dizia que os juízes da Corte atentavam contra os interesses nacionais. Em 2003, ele finalmente conseguiu fazer com que a Assembleia Nacional aprovasse, em plena madrugada, uma lei que permitia o aumento do tribunal de 20 para 32 ministros. Além de povoar a corte com aliados, Chávez conseguiu também que a nova lei permitisse o afastamento de outros ministros por decisão do governo em casos em que suas condutas ferissem "o interesse nacional". Na prática, a regra se tornou um salvo-conduto para que Chávez e, posteriormente, seu sucessor Nicolás Maduro tirassem juízes que tomassem medidas que os desagradassem. Durante a campanha eleitoral, Bolsonaro chegou a defender o aumento no número dos juízes, dos 11 atuais para 21. "É uma maneira de você colocar dez isentos lá dentro porque, da forma como eles têm decidido as questões nacionais, nós realmente não podemos sequer sonhar em mudar o destino do Brasil", disse Bolsonaro em entrevista, em julho de 2018, à TV Cidade, de Fortaleza. Já no governo, em 2020, o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, chegou a dizer em uma reunião ministerial que ministros do STF deveriam ser presos. O próprio presidente colecionou duros embates com diversos ministros da Corte. O mais recente deles tem sido com o ministro Barroso, a quem já chamou de idiota e mentiroso, e com Alexandre de Moraes, a quem qualificou como "ditatorial" e alertou que "a hora dele vai chegar". Bolsonaro não ficou só em ataques verbais. Em seu primeiro ano de governo, tentou emplacar na Reforma da Previdência uma regra que retirava a especificação de idade-limite para a aposentadoria dos integrantes do STF. A ideia seria determinar uma nova idade, menor do que a atual, via lei complementar. Assim, ele abriria uma grande quantidade de vagas para nomear nomes alinhados aos seus interesses. A manobra, no entanto, foi detectada pelo Congresso, que a desmontou. Esse ano, conforme a previsão legal, Bolsonaro deverá nomear seu segundo ministro (o primeiro foi Kássio Nunes Marques), em substituição a Marco Aurélio Mello. O indicado é André Mendonça, ex-advogado-geral da União e ex-ministro da Justiça sob Bolsonaro. Em outra frente, Bolsonaro desfez regras tácitas sobre a definição dos comandos de órgãos de investigação e controle. Ele ignorou a lista tríplice do Ministério Público Federal, na qual os procuradores indicam três lideranças da carreira aptas a assumir o posto de Procurador-Geral, e nomeou para o posto um aliado, Augusto Aras. Embora seja uma prerrogativa do presidente, uma intervenção como essa no órgão de investigação não acontecia desde o início do governo de Lula, em 2003, e foi recebida como um golpe sobre a autonomia investigativa do órgão. Do mesmo modo, o então ministro da Justiça de Bolsonaro, Sergio Moro, se demitiu acusando o presidente de tentar interferir na autonomia investigativa da Polícia Federal. De acordo com Moro, Bolsonaro queria trocar a chefia nacional e o comando de superintendências estaduais da PF, como a do Rio de Janeiro, sem apresentar uma justificativa plausível para isso. O presidente reiterou que a mudança era uma prerrogativa de seu cargo. Desde a posse de Bolsonaro, já houve quatro nomeações para chefes da PF, além de afastamentos locais, como o do delegado Alexandre Saraiva, ex-superintendente do Amazonas, retirado do cargo um dia após pedir que o STF investigasse o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, um dos mais fiéis aliados ao presidente. Bolsonaro, no entanto, não inventou a estratégia. Em 2000, Chávez conseguiu aprovar na Assembleia Nacional seu então vice-presidente, Isaías Rodriguez, para o posto equivalente ao de procurador-geral, desalojando da cadeira um servidor que questionara a legalidade de algumas ações de seu governo. De acordo com a oposição ao regime chavista, os órgãos de investigação passaram a se comportar de maneira totalmente comprometida com os interesses do mandatário. A nova procuradoria sob Chávez passou a considerar críticas ao governo como atentados aos interesses nacionais. No Brasil de Bolsonaro, algo semelhante aconteceu. O então ministro da Justiça, André Mendonça, pediu à Polícia Federal investigação de críticos do governo sob a alegação de que feriam a Lei de Segurança Nacional. Um dos alvos foi o ex-ministro Ciro Gomes, investigado por ter dito que "Bolsonaro para mim é um boçal, irresponsável e criminoso. E ladrão". Inquéritos semelhantes também surgiram por iniciativa de polícias locais. A Polícia Civil do Rio chegou a abrir apuração contra o youtuber Felipe Neto por ele ter chamado Bolsonaro de "genocida". "O melhor exército que pode existir para conseguir a liberdade é o povo armado. Eu não quero ditadura no Brasil, quero liberdade", disse Bolsonaro, durante reunião ministerial, em 2020. E seguiu: "Eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta pra impor uma ditadura aqui! Que é fácil impor uma ditadura! Facílimo!" Desde o início do governo, Bolsonaro tem editado decretos que facilitam o acesso da população civil ao armamento. Boa parte deles têm sido barradas no STF. Ainda assim, o número de armas entre civis no Brasil bate recorde. Nos dois primeiros anos do governo do governo Bolsonaro, 274 mil novas armas de fogo foram registradas, um aumento de 183% em relação ao total de novos registros no biênio anterior e o maior patamar da série histórica, medida desde 2009. As justificativas dadas por Bolsonaro para expandir o acesso ao armamento à população civil — a necessidade de defender a liberdade do povo e a soberania do país — ressoam àquelas dadas por Chávez, em 2006, quando deliberadamente iniciou a formação de uma milícia, que hoje conta com quase 1 milhão de civis, como ele mesmo planejava. "A Venezuela precisa ter 1 milhão de homens e mulheres bem equipados e bem armados", disse o líder venezuelano, após ter negociado a importação de 100 mil fuzis da Rússia e fechar acordo bilionário com a Espanha para a compra de equipamentos militares. "Peço permissão para comprar outro carregamento de armas, porque os gringos querem nos desarmar. Temos de defender nossa pátria", complementou Chávez. A milícia de Chávez é uma espécie de exército paralelo e político e foi gestada depois da tentativa de golpe sofrida por ele em 2002, quando ficou claro que apenas o Exército poderia não ser o bastante para assegurá-lo no comando. Os alistados na milícia são pessoas comuns, que recebem um treinamento de 5 dias de tiro, disciplina militar e doutrina nacional. Na prática, funcionam também como olheiros do regime para qualquer sinal de sublevação social. O governo Chávez também distribuiu armas para os chamados coletivos, grupos paramilitares politicamente alinhados aos partidos e que já se envolveram em atos mais extremos. "A comparação tem limites porque embora haja a flexibilização para acesso a armas no caso de Bolsonaro, não há um planejamento, uma organização hierárquica orientando o contingente de pessoas que compra essas armas. No caso de Chávez, não. Ele realmente preparou a população para a Guerra Civil", diz Rafael Ioris, cientista político da Universidade do Colorado. A despeito do discurso favorável ao armamento de grupos específicos e aliados, Chávez lançou campanha de redução à circulação de armas entre a população em geral, restringindo o acesso a elas às Forças Armadas, às milícias e aos coletivos. A tentativa de desarmamento foi, aliás, uma das raras pautas em que chavistas e a oposição concordaram e trabalharam juntos. A gestão Chávez ficou marcada por perseguições a funcionários públicos não alinhados ao regime. Em novembro de 2006, o canal televisivo RCTV chegou a transmitir imagens do então ministro da Energia de Chávez dizendo aos funcionários da empresa estatal de petróleo, a PDVSA, que eles deveriam se demitir se não apoiassem a agenda política do presidente. No Brasil, situações semelhantes têm acontecido. Uma das mais notórias foi a demissão, em 2019, do então diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) Ricardo Galvão. Embora tivesse um mandato, Galvão foi dispensado depois de divulgar dados sobre o desmatamento na Amazônia que desagradaram Bolsonaro. Na ocasião, o presidente chegou a afirmar que Ricardo Galvão estava "agindo a serviço de uma ONG". "Com toda a devastação que vocês nos acusam de estar fazendo e de ter feito no passado, a Amazônia já teria se extinguido", declarou Bolsonaro. Em outro caso com paralelo na Venezuela sob Chávez, Bolsonaro tem descumprido uma regra tácita, que vigorava desde os anos 1990, de nomeação do reitor de universidades federais. Historicamente, o nomeado é eleito pelos professores, funcionários e alunos das instituições. Bolsonaro, no entanto, tem optado por exercer o direito de escolher seus nomes preferidos, eventualmente até mesmo fora da lista tríplice elaborada pelas universidades. Segundo cálculo da Folha de S.Paulo, isso já aconteceu ao menos em um quarto das nomeações. Embora não haja uma explicação oficial para tais decisões, a leitura das universidades é de que há interferência política na gestão universitária. Em março de 2019, Bolsonaro deixou claro que agiria conforme suas possibilidades e se justificou: "O ambiente acadêmico com o passar do tempo vem sendo massacrado pela ideologia de esquerda que divide para conquistar e enaltece o socialismo e tripudia o capitalismo. Neste contexto, a formação dos cidadãos é esquecida e prioriza-se a conquista dos militantes políticos". Também em 2019, o sucessor de Chávez, Nicolás Maduro, obteve uma vitória no Tribunal Supremo do país para alterar as regras de votação de reitores de universidades nacionais e retirar o peso dos professores na escolha. O ambiente acadêmico venezuelano é considerado pelo governo como um dos últimos bastiões de oposição à chamada revolução bolivariana. Em maio de 2020, o governo de Nicolás Maduro anunciou o que foi tomado como um "absurdo" pela Universidade John Hopkins: a Venezuela teria tido, até então, apenas 10 mortos por covid-19. O líder venezuelano defendia que seu combate à pandemia — baseado em parte no uso da cloroquina, um medicamento cuja ineficácia foi comprovada e que também foi adotado por Bolsonaro como tratamento para covid-19 no Brasil — era um grande sucesso. A médica da Universidade Jonh Hopkins Kathleen Page, que entrevistou equipes de saúde venezuelanas para o relatório da instituição sobre a pandemia, disse à AFP que se tratava de um dado falso. Em uma estimativa conservadora, segundo ela, o número de óbitos pelo vírus no país chegaria "em pelo menos 30 mil" naquele momento. Os dados sobre mortalidade da covid-19 se tornaram apenas o exemplo mais recente da falta de confiabilidade das estatísticas do governo Chávez-Maduro. O problema se acentuou conforme o país se aprofundava na crise. A Venezuela passou ao menos dois anos sem publicar dados sobre mortalidade infantil, por exemplo, para não dar munição aos que criticam o regime. Chávez chegou a expulsar do país integrantes de organismos internacionais, como a Human Rights Watch, que denunciavam os problemas nos dados, entre outras críticas ao governo venezuelano. No caso brasileiro, o governo Bolsonaro foi duramente criticado quando, na gestão do ministro Eduardo Pazuello, tentou alterar o cálculo de vítimas da covid-19 no Brasil. Em junho de 2020, o governo deixou de divulgar os dados completos de mortalidade e o histórico de vítimas da pandemia, e manteve acessíveis apenas os dados sobre óbitos registrados nas 24h anteriores, o que reduzia drasticamente o dado. Alterou ainda o horário de divulgação dos boletins epidemiológicos, das 19h para as 22h. Ao comentar o assunto pela primeira vez, Bolsonaro afirmou: "Acabou matéria no Jornal Nacional." Diante do apagão de dados, o site da Universidade John Hopkins chegou a tirar o Brasil de sua contagem. E órgãos de imprensa criaram um consórcio para apurar os números junto aos Estados. Os dados do Conselho Nacional de Secretarias de Saúde (Conass) passaram a balizar as análises. Diante da pressão, o governo recuou. Essa, no entanto, não foi a primeira vez que a gestão Bolsonaro se debateu com dados oficiais negativos. Como mostra o caso da demissão do diretor do Inpe, o governo federal tentou repetidas vezes alterar a forma de cálculo e divulgação dos dados sobre a devastação ambiental. Recentemente, chegou a anunciar que o monitoramento ficaria sob responsabilidade do Ministério da Agricultura. Diante das críticas — já que o desmatamento é impulsionado justamente por atividades de parcela do setor ruralista — o governo voltou atrás. Há outros exemplos. No fim de julho, o ministro da Economia, Paulo Guedes, atacou o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) diante da nova estatística de desemprego — que aponta 15 milhões de brasileiros sem emprego. Segundo Guedes, o IBGE "está na idade da pedra lascada" e seu dado não deveria ser considerado. O governo também não destinou recursos suficientes para realização do Censo populacional, atrasado em dois anos. "A chegada de Chávez e Bolsonaro à Presidência marca também o retorno, com força, dos militares à máquina do Estado. A verdade é que até esse momento, os militares já não faziam parte da política cotidiana nem no Brasil, nem na Venezuela", afirma Fernando Bizzarro, da Universidade Harvard. Tanto Venezuela quanto Brasil viveram períodos de ditadura militar. Mas no caso venezuelano, o regime havia se encerrado em 1958, o que significa que os militares estavam fora do centro nervoso político há mais de 40 anos quando Chávez ascendeu. O histórico brasileiro é mais complexo. A ditadura se encerrou em 1984, e o retorno dos militares a funções centrais no Estado é iniciado pela gestão de Michel Temer. Impopular e diante de uma crise econômica, Temer recria o GSI, um órgão de segurança nacional que controla a Abin (Agência Brasileira de Inteligência) extinto em 2015. Para o comando da pasta, ele nomeou Sérgio Etchegoyen, que até então ocupava o cargo de Chefe do Estado-Maior do Exército e passou a ser uma das vozes mais influentes do círculo do presidente. Esse teria sido o ponto de início de um processo que Bolsonaro aprofundaria de maneira que não encontra paralelos nem com a própria ditadura brasileira. Um levantamento feito pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em 2020 identificou 6.157 militares da ativa e da reserva em cargos civis no governo Bolsonaro. O número é mais que o dobro do que havia em 2018, na gestão Temer (2.765) e supera as cifras registradas durante os governos militares no período 1964-84. Mais do que isso, em fevereiro de 2020 a BBC News Brasil mostrou que, naquele momento, o Brasil tinha mais militares na chefia de ministérios do que a própria Venezuela. E embora esse número possa flutuar, o dado aponta o patamar de importância que as Forças Armadas adquiriram no governo de Jair Bolsonaro, já que a manutenção do regime chavista se fia hoje basicamente no apoio militar que ainda detém. Segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, no entanto, a presença de militares na gestão Chávez foi aumentando ao longo dos anos, como resposta a diferentes crises que o governo enfrentava: a tentativa de golpe contra Chávez ou uma greve geral na PDVSA (a estatal petrolífera venezuelana). Em contraponto, eles afirmam, Bolsonaro já iniciou a gestão cercado de militares. O resultado, no entanto, é bastante semelhante. Assim como Bolsonaro, Chávez também investiu no aumento da educação militar no país, nomeou um general para o comando da petroleira estatal, do mesmo modo que Bolsonaro, em 2021, com a Petrobras, e alocou um militar até no Ministério da Saúde, o que Bolsonaro repetiria anos mais tarde com Eduardo Pazuello à frente da pasta. "Ambos também foram operando expurgos nas Forças Armadas para deixar em melhor posição os seus aliados", afirma Daniela Campello, da FGV, citando o caso da demissão do então ministro da Defesa, Fernando de Azevedo e Silva, e dos três chefes das forças em março de 2021. Para o lugar de Azevedo e Silva, Bolsonaro indicou o general Walter Braga Netto. Braga Netto se envolveu em ao menos dois episódios recentes vistos por parlamentares e analistas políticos como intromissão das Forças Armadas na política brasileira. O primeiro, quando admoestou o senador Omar Aziz, por nota, junto aos demais chefes das forças, por comentários do presidente da CPI acerca da "banda podre das Forças Armadas". A CPI investiga o possível envolvimento de militares que ocupavam cargos no Ministério da Saúde em esquemas fraudulentos de compras de vacina. O segundo quando se posicionou, também por nota, em favor do voto impresso, posição também apoiada pelos Clubes Militares. Bolsonaro tem afirmado publicamente que se não houver voto impresso nas eleições de 2022, não haverá o pleito. No caso da Venezuela, o preço do apoio dos quartéis a Chávez foi alto. Além do loteamento de cargos estatais, o chavismo franqueou aos comandantes aliados generosos espaços em diferentes setores da economia venezuelana. O grupo de militares, chamado de "boliburguesia", a burguesia bolivariana, assumiu o controle da cadeia de produção petroleira, além da extração de outros minérios, incluindo ouro. Empresas vinculadas aberta ou sigilosamente a comandantes militares firmaram contratos públicos para atuar em ramos tão diversos quanto produção de alimentos e bens de consumo a serviços de coleta de lixo. Esses laços ajudariam a explicar porque o regime se mantém, a despeito da enorme crise. A oposição venezuelana tem acenado com anistia para que os militares troquem de lado. No caso do Brasil, os militares como classe já experimentam benefícios bem palpáveis: foram excluídos da reforma da previdência, que impôs mais anos de trabalho e menor benefício à população brasileira, e são a única categoria que poderá receber reajuste salarial em 2021. Em meio à crise fiscal, o orçamento do Ministério da Defesa tem sido relativamente preservado e chegou a patamares semelhantes ao do Ministério da Educação, por exemplo. Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam ser impossível saber o grau de compromisso das Forças Armadas com o projeto de poder de Bolsonaro e o quão dispostas estariam em bancar alguma eventual tentativa de ruptura democrática. "Acredito que isso não aconteceria. Mas, veja, só o fato de estarmos discutindo aqui o que querem as Forças Armadas do Brasil, que deveriam ser totalmente subordinadas aos civis, já é extremamente preocupante", aponta Trinkunas, da Universidade Stanford. Braga Netto tem negado que haja uma politização das Forças Armadas. "Hugo Chávez foi o primeiro presidente na América Latina a ter perfil consistente nas redes sociais, comunicação que Bolsonaro dominaria anos mais tarde", afirma Campello, da FGV. Enquanto Bolsonaro tem encontro direto com o eleitor toda quinta-feira, em lives de Facebook, Chávez costumava comandar um programa televisivo dominical batizado de Alô, Presidente. Em 2020, a equipe de comunicação de Bolsonaro chegou a lançar um piloto de programa no qual Bolsonaro responderia a perguntas de eleitores, batizado igualmente de Alô, Presidente. A revelação pela imprensa de que os supostos entrevistados nesse piloto na verdade não existiam, e que suas fotos eram imagens genéricas compradas de agência, aliada à comparação com o programa de Chávez, no entanto, fizeram com que a Secretaria de Comunicação abandonasse a ideia. Nos programas de Chávez e Bolsonaro, o governo se faz ao vivo. O presidente venezuelano chegou a anunciar, em 2008, na TV que enviaria batalhões do Exército para a fronteira com a Colômbia, gerando uma crise diplomática séria com o país vizinho. Já Bolsonaro usa seus programas para endossar aliados fustigados por denúncias, fornecer interpretações sobre fatos políticos que possam ser usados como propaganda por sua militância ou defender medidas que quer adotar no governo. No fim de julho, passou mais de duas horas em uma live em defesa do voto impresso, para a qual não conta com votos no Congresso nem respaldo no Supremo, e apelou até para notícias falsas para argumentar que o atual sistema eleitoral brasileiro não é seguro, Por causa do episódio, Bolsonaro está sob investigação no inquérito das Fake News no STF. Além disso, como o evento foi retransmitido pela emissora estatal TV Brasil, Bolsonaro foi alvo de notícia-crime enviada ao STF por parlamentares petistas, que o acusam de a improbidade administrativa, propaganda eleitoral antecipada e abuso de poder político e econômico. A ministra Carmen Lúcia qualificou as acusações como "graves" e pediu parecer à Procuradoria-Geral da República. A comunicação direta com o eleitor não é só uma preferência dos dois líderes, mas também uma forma de driblar perguntas incômodas da imprensa, com quem Chávez e Bolsonaro acumularam embates. Em 2020, Bolsonaro chegou a pôr em dúvida a renovação da concessão pública da TV Globo, emissora mais vista do país. "Vocês vão renovar a concessão em 2022. Não vou persegui-los, mas o processo vai estar limpo. Se o processo não estiver limpo, legal, não tem renovação da concessão de vocês, e de TV nenhuma. Vocês apostaram em me derrubar no primeiro ano e não conseguiram", disse, acusando a cobertura de seu mandato de ser "porca"e uma "patifaria". Chávez foi mais longe. "Não será renovada a concessão para este canal golpista de televisão que se chama Radio Caracas Televisión (RCTV)", anunciou em 2006, cumprindo ameaças que fazia não apenas porque o veículo trazia reiteradas denúncias contra seu governo como também porque não dava destaque às manifestações a favor de Chávez na cobertura. A emissora saiu do ar em 2007. A RCTV chegou a ter alguma sobrevida como canal por assinatura, mas mesmo isso acabou em 2010. Uma determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos ordenou, em 2015, que a TV fosse reaberta, mas o regime chavista ignorou a decisão. O governo de Chávez também abriu investigações administrativas contra outros veículos de imprensa quando avaliava que a cobertura não lhe era favorável, segundo relatórios da ONG Human Rights Watch. Tais processos resultaram algumas vezes em sufocamento financeiro desses órgãos de imprensa. Em outras situações, o governo usou seu poder de financiamento por meio de compra de anúncios para obter a simpatia de veículos em sua cobertura. Entre 2003 e 2019, ao menos 200 órgãos de imprensa, entre emissoras de rádio e televisão e jornais, tiveram seus trabalhos interrompidos. E, de acordo com o levantamento do Instituto Prensa y Sociedad, que monitora as condições de trabalho da imprensa no país, houve ao menos 213 violações ao trabalho jornalístico apenas no primeiro semestre de 2021, entre elas dez prisões arbitrárias de repórteres. Pela primeira vez em 20 anos, o relatório da ONG Repórteres sem Fronteiras colocou o Brasil na zona vermelha, a mais restrita em termos de liberdade de imprensa, a mesma em que está a Venezuela. No relatório, no entanto, a ONG destaca que a situação venezuelana (em 148º lugar num ranking de 180 países) segue sendo pior do que a do Brasil (111ª posição). "O trabalho da imprensa brasileira tornou-se especialmente complexo desde que Jair Bolsonaro foi eleito presidente, em 2018. Insultos, difamação, estigmatização e humilhação de jornalistas passaram a ser a marca registrada do presidente brasileiro", afirma o relatório de 2021 da organização. As relações de Bolsonaro com a imprensa se revelam também por meio da maneira como o governo federal aloca seus recursos publicitários. Um relatório do Tribunal de Contas da União de 2020 mostrou que, sem demonstrar os critérios para as decisões, a gestão Bolsonaro cortou em 60% a verba destinada à propaganda federal na TV Globo, líder de audiência. Por outro lado, os repasses para SBT e TV Record, cuja linha editorial é considerada menos crítica ao governo, aumentaram em cerca de 25% para cada uma delas. Além disso, investigações da Polícia Federal e da Procuradoria-Geral da República sobre atos antidemocráticos apontaram que 12 canais no YouTube de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro receberam cerca de US$ 1,1 milhão em monetização dos vídeos. O valor, que vai de junho de 2018 a maio de 2020, corresponde a cerca de R$ 4,2 milhões em valores convertidos com o câmbio médio da época. Esses canais são conhecidos por disseminação de conteúdo falso e já sofreram diferentes sanções de plataformas como Youtube e Facebook. Ao menos 3 aspectos são centrais para entender os limites do uso do manual chavista por Bolsonaro: a popularidade presidencial, a quantidade de recursos disponíveis e a força das instituições desafiadas. "Quando Bolsonaro chega ao poder, chega com bem menos do que os mais de 60% dos votos que Chávez teve em sua primeira eleição. E também teve o caminho facilitado na vitória porque Lula foi impedido de concorrer. Então há, de saída, uma diferença no grau de popularidade deles", afirma Jorge Castañeda, da New York University. Chávez aproveitou o embalo das urnas e a insatisfação popular no país para lançar uma Constituinte, na qual 9 em cada 10 membros eram aliados a ele. Era o início do que o cientista político Luis Vicente Léon chamou de um processo de "colonização das instituições". O próprio Léon, porém, observa que a forte popularidade de Chávez nos anos iniciais do regime dispensou a necessidade de qualquer tipo de fraude eleitoral para que ele vencesse as eleições presidenciais de 2000, 2006 e 2012 e os pleitos legislativos de 2000, 2005 e 2010. Sua única derrota aconteceu em 2007, quando ele tentou aprovar por referendo popular um terceiro mandato. Dois anos mais tarde, o presidente refez a consulta e venceu. Mas, afinal, o que fez de Chávez um presidente tão popular a despeito de seus ataques a instituições democráticas? O período dele no poder coincide com uma alta histórica no preço do petróleo, base primordial da economia venezuelana e cuja receita se concentra na mão do Estado, já que o recurso é explorado por uma estatal. Chávez encaminhou a abundância de verba para a população mais pobre do país e de fato gerou impacto imediato na vida de milhões de pessoas. De acordo com o Instituto Nacional de Estatísticas, em 1999, 20,1% dos venezuelanos viviam na extrema pobreza. Em 2007, o índice havia caído para 9,5%. Suas políticas, no entanto, não eram estruturantes e quando o preço do barril de petróleo voltou a cair, a pobreza retornou com mais força do que antes ao país. De forma semelhante, Bolsonaro experimentou o incremento de popularidade que a transferência direta de renda pode trazer. O auxílio emergencial federal de R$ 600 durante a pandemia alavancou seus índices de popularidade a 37% em agosto, segundo o Datafolha (ante aos atuais 24%). Seis vezes maior que a economia da Venezuela, a do Brasil é também muito mais diversa, dinâmica e muito menos atrelada ao Estado. "Além disso, o governo enfrenta uma crise fiscal, o que reduz muito as possibilidades de gastos do governo", afirma Daniela Campello, da FGV. Justamente o Orçamento apertado forçou a redução e interrupção do auxílio, que Bolsonaro tenta relançar até o fim do ano como um substituto ao programa Bolsa Família. Agora, o valor seria de R$ 400 (hoje é de R$ 190) e o nome do programa seria Auxílio Brasil. Dada a falta de recurso público para fazer esse aumento, o ministro da Economia, Paulo Guedes, sugeriu que o governo estuda formas de não cumprir os pagamentos dos precatórios, dívidas do Estado chanceladas judicialmente, para bancar o programa, o que causou alarme nos mercados e derrubou a bolsa na semana passada. "É importante lembrar que Bolsonaro partiu de uma pauta bastante elitista, de austeridade fiscal, e chegou a ser contra o auxílio emergencial de R$ 500, até que se deu conta de que isso lhe trazia ganhos de popularidade. Ele tenta agora uma reedição disso, mas é muito difícil dada a situação da economia", afirma o cientista político Rafael Ioris, especialista em América Latina da Universidade do Colorado. Por fim, o Brasil possui instituições e uma oposição política consideradas mais sólidas do que as da Venezuela pelos especialistas. "Na Venezuela, o descrédito das instituições democráticas, da classe política, da elite empresarial entre 1999 e 2003 era muito maior do que hoje no Brasil. Logo, é mais difícil para Bolsonaro intervir nas regras do jogo", afirma Castañeda, para quem as tentativas de Bolsonaro de lançar descrédito sobre as urnas eletrônicas têm poucas chances de levar a algum resultado prático em 2022. No início de agosto, a Proposta de Emenda Constitucional do voto impresso, encampada por Bolsonaro, foi derrotada na comissão especial da Câmara onde era analisada. Ainda assim, deve ser levada ao plenário da Câmara, onde também se espera uma derrota. Will Grant, da BBC, também chama a atenção para a condição da oposição tanto no Brasil quanto na Venezuela. Em quase todo o período que esteve no poder, de 1999 a 2013, Chávez contou com maioria folgada na Assembleia Nacional, o equivalente ao Congresso brasileiro, e com controle sobre a Suprema Corte do país. O que não conseguiu fazer manipulando os outros dois Poderes, ele fez por meio de referendos. Bolsonaro, apesar de ter sido o presidente que mais liberou recursos para emendas parlamentares, segundo levantamento do jornal O Estado de S. Paulo, foi também o presidente que menos aprovou seus projetos no Congresso nos últimos 18 anos. No STF, a interlocução com os ministros foi interrompida após os insultos que o presidente lançou contra alguns membros da Corte. E enquanto na Venezuela, os partidos contrários a Chávez tiveram que lidar com a quase impossibilidade de se financiar, já que a maior parte dos recursos que a economia girava passavam diretamente pelo governo, no Brasil, essa questão não existe. O fundo eleitoral público de R$ 4 bilhões será distribuído entre os partidos para o pleito de 2022 e o principal beneficiário dos recursos é o PT, partido do principal adversário de Bolsonaro nas urnas, o ex-presidente Lula. Em forma de protesto contra as condições de competição política, a oposição venezuelana optou por boicotar eleições-chave, como ao Legislativo em 2005, o que na prática apenas facilitou a permanência de Chávez no poder. "Na Venezuela, Chávez passou a ser o próprio Estado. Ou os políticos e grupos de oposição da sociedade civil encontravam espaço político para operar dentro da revolução bolivariana, ou não havia espaço real fora dali. No caso brasileiro é diferente, Bolsonaro não tem o domínio das instituições e tem como antagonista um personagem forte, Lula. Em última instância, isso o impede de realmente ser capaz de assumir as rédeas do poder no Brasil por mais de dois mandatos", afirma Grant. Ioris, da Universidade do Colorado, vai mais longe. Para ele, a escalada de tensão do presidente brasileiro em relação às demais instituições por meio de ataques verborrágicos é um dos poucos recursos que sobram a Bolsonaro nesse momento. "Diferente de Chávez, o governo Bolsonaro sequer chega a ter uma agenda muito clara. Defende acabar com muitas coisas, mas não sabe bem o que colocar no lugar. Então escolhe questões pontuais pra defender. Devemos ver cada vez mais lives raivosas", aposta. Elas, no entanto, podem ter um efeito negativo para o próprio presidente. A live de duas horas em que defendeu o voto impresso e disseminou informação falsa sobre o sistema eleitoral renderam a Bolsonaro a abertura de inquéritos tanto pelo Tribunal Superior Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal. Se o Judiciário concluir que houve abuso de poder econômico e político e crime eleitoral, Bolsonaro poderá até mesmo ser barrado da disputa presidencial em 2022. "Há mais consciência dos perigos do populismo autoritário na América Latina, do que havia com Chávez, no começo dos anos 2000. Todos nós já vimos esse filme. Sabemos como isso termina. E essa consciência, tanto dentro quanto fora do Brasil, é certamente uma das diferenças mais importantes entre as situações dos países de Chávez e Bolsonaro", resume Jorge Castañeda, da New York University.
2022-10-11
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58124049
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Impacto da eleição brasileira na América Latina vai da ideologia à economia
A eleição presidencial brasileira deve impactar os demais países da América Latina, na visão de analistas, políticos e cidadãos ouvidos pela BBC News Brasil, e se refletir nas relações políticas, na economia, no comércio, no debate ideológico e no voto dos eleitores além das fronteiras brasileiras. A atual percepção sobre o efeito da eleição brasileira ocorre porque o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente Jair Bolsonaro (PL), que lideram as pesquisas de intenção de voto, são conhecidos dos eleitores dos países vizinhos que acompanham a corrida ao Palácio do Planalto. Lula já era renomado por ter governado o Brasil durante dois mandatos e, mesmo antes de ser presidente, entre sindicalistas e acadêmicos por sua trajetória de vida. Bolsonaro passou a ser conhecido, principalmente, após sua eleição em 2018. "O Brasil tem um peso maior do que o do México e o da Argentina e não só na América Latina. E o resultado eleitoral pode irradiar para toda a região", diz o cientista político Juan Lucca, professor da Universidade Nacional de Rosario. Para Amílcar Salas, professor de Ciências Políticas da Universidade de Buenos Aires (UBA), essa é uma eleição "decisiva" no âmbito regional e também global. Fim do Matérias recomendadas Os que são simpatizantes de Lula acreditam que sua eleição poderia consolidar um "giro à esquerda" da região, especialmente a América do Sul e reaquecer o diálogo entre países com líderes que fazem parte deste campo do espectro político. Os que não o apoiam entendem que a reeleição de Bolsonaro evitaria o fortalecimento dos movimentos políticos definidos como de esquerda ou centro-esquerda e o presidente brasileiro se firmaria como uma referência para a direita na região. Em 22 de setembro, a eleição e a recente história política brasileira foram tema de seminário, com sala lotada, na Universidade Nacional de San Martín (UNSAM), na Argentina. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Em 2018, não vislumbrávamos um Bolsonaro na Argentina. E, agora, com a radicalização da direita, nada seria impossível", comentou um dos presentes na plateia. A percepção é que, além das questões de geopolítica, o resultado das urnas brasileiras poderiam ter influência no voto do eleitorado vizinho. Uma fisioterapeuta da cidade de Buenos Aires, que se declarou avessa ao kirchnerismo, liderado pela ex-presidente e vice-presidente Cristina Kirchner, disse à reportagem que espera que o presidente Bolsonaro seja reeleito. E não porque ela seja bolsonarista. "Se Lula for eleito, apoiará Cristina. E não quero que ela volte a ser presidente. Temos uma série de problemas aqui, como a inflação altíssima, que o kirchnerismo não resolve e, além disso, Cristina tem várias denúncias na Justiça", disse. Um assessor de uma das maiores entidades do agronegócio na Argentina observou que "não é que exista simpatia clara do ramo por Bolsonaro", mas que o problema, neste caso, é que os produtores rurais e o kirchnerismo vivem em "constante queda de braço" e, caso Lula seja eleito, esse movimento político poderia sair fortalecido. Existe outro argumento, disse o assessor, o entendimento de que, apesar das dificuldades, a economia brasileira "vai bem melhor" do que a da Argentina. A cientista política Dolores Rocca Rivarola, da UBA, recorda que Bolsonaro passou a ser conhecido na Argentina quando discursou, em 2016, e surpreendeu os argentinos. Naquele discurso, ele defendeu o coronel Brilhante Ustra, militar reconhecido pela Justiça como torturador. Em 24 de setembro, o político kirchnerista Axel Kicillof, governador da Província de Buenos Aires, a maior do país, participou de um ato de campanha, com artistas argentinos, na cidade de La Plata, em apoio à eleição de Lula, em mais um sinal da influência direta do que ocorre no Brasil. Defender, publicamente, o retorno do ex-presidente ao Planalto, passou a ser algo frequente nesta campanha, como se viu no seminário da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), realizado no mês passado, em Buenos Aires. "Que o Brasil regresse à Celac, com Lula, obviamente", disse a mexicana Alicia Bárcena, ex-secretária executiva da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal). Segundo ela, o combate à pobreza foi uma de suas políticas, na Presidência, que deve ser destacada e que esteve em sintonia com outros governos da região, na época. No mesmo encontro, o ex-primeiro-ministro da Espanha José Luis Rodríguez Zapatero disse que, caso Lula seja eleito, o Brasil e a América Latina como um todo ganharão maior peso no cenário internacional. "Somente a América Latina não tem confrontos com outros continentes e possui relações amplas no âmbito comercial, incluindo Estados Unidos e China", declarou. "Estes são ativos importantes para a reconstrução do sistema multilateral. Mas está claro que isso só poderá ser feito depois da eleição no Brasil. E o que esperamos é que o Brasil vote em Lula." A plateia aplaudiu e alguns gritaram: "Lula já". Na visão de políticos de centro-esquerda e esquerda, o retorno de Lula à Presidência será decisivo para a retomada da fluidez do diálogo regional. Nos bastidores do governo argentino, afirma-se que "será mais fácil trabalhar com um (eventual) governo Lula". O raciocínio inclui o fato de países da América do Sul serem presididos por líderes do espectro político de Lula, como Gabriel Boric no Chile, Gustavo Petro na Colômbia, Luis Arce na Bolívia e Alberto Fernández na Argentina. Hoje, os presidentes pouco dialogam em relação a tempos passados. "O problema não é que Bolsonaro e Fernández não se falam. O fato é que Bolsonaro não fala com ninguém", disse o ex-chanceler do governo Lula, Celso Amorim. Ao contrário da eleição de 2018, quando a extrema-direita estava praticamente ausente do debate político argentino, agora o nome de Bolsonaro é associado a este setor que passou a fazer parte das pesquisas de opinião e preferências, ainda que tímidas em relação aos demais movimentos políticos, do eleitorado argentino. Em entrevistas, o político Javier Millei, que busca ser presidente e é amigo do deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), tem elogiado e declarado respaldo à reeleição do presidente brasileiro. "Bolsonaro está fazendo um excelente governo. É bom se ter consciência do que está acontecendo na economia brasileira, que registra deflação. O problema é a esquerda", disse Millei. Em uma paródia que fez recordar uma das músicas da Copa do Mundo, um "Jair" cantou em um quadro de humor político na emissora de televisão TN: "Argentina, decime que se siente con inflación del 90%" (Em tradução livre: Argentina, me diz como se sente com uma inflação de 90%). A expectativa é que a Argentina registre este índice de aumento de preços neste ano. Entre os analistas ouvidos pela BBC News Brasil sobre os possíveis impactos da eleição brasileira, Juan Lucca diz que o efeito é inegável. "Com Lula eleito, a expectativa é que a região, como um todo, volte a crescer, especialmente se ocorrer um novo boom de commodities (como do início do século)", disse o cientista político. "Se Bolsonaro for reeleito, já sabemos o cenário que existe. Mas a influência política (direta), no caso da Argentina, que realiza eleição presidencial no ano que vem, vai depender do desempenho do (eventual) governo Lula. As pessoas no Brasil terão pressa de resultados, e isso pode influenciar a eleição argentina também." Para o professor, a influência da eleição brasileira poderá ocorrer em quatro pilares: político, econômico, comercial e ideológico. Ele concorda de certa forma com Zapatero ao dizer que, caso Lula seja eleito, poderão surgir debates internacionais como a ampliação dos Brics, bloco de países emergentes formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Setores da Argentina defendem a entrada do país no grupo. Salas também acredita que, com Lula na Presidência brasileira, a Argentina poderia "consolidar" sua entrada no bloco. Além disso, afirmou, o Mercosul ganharia novo impulso. Para ele, uma eventual eleição de Lula "teria impacto positivo" na política interna de outros países, como Argentina e Paraguai, por exemplo. Na visão dos analistas, o diálogo presidencial voltaria a ser mais constante na região. "Com Bolsonaro, no Brasil, com Lacalle Pou, no Uruguai, e com Marito (Mario Abdo Benítez) no Paraguai, isto hoje não ocorre", diz Lucca. Fontes dos governos do Uruguai e do Paraguai argumentam que a pandemia contribuiu para esfriar o diálogo, já que cada um se voltou para cuidar de seus próprios problemas. A eleição brasileira, entende o analista, pode "irradiar" para o resto da região, fortalecendo o centro-esquerda e setores da esquerda, como a Frente Ampla, no Uruguai. Para Lucca, se Bolsonaro for reeleito, a "direita radical" o terá como referência ainda mais forte. "Neste caso, Javier Millei e outros que se definem como 'libertários' e os que defendem a tenência de armas terão mais motivos para justificar seus discursos", afirmou. E o amplo e histórico movimento peronista, hoje fragmentado, precisará se unir, como opção de centro-direita e até à esquerda. O analista venezuelano Luis Vicente León, da consultoria política Datanalisis, o impacto da eventual reeleição de Bolsonaro, em termos regionais, seria "menos relevante" que no caso da eleição de Lula. "Lula poderia, sem dúvida, representar a consolidação de grupos mais de esquerda, com seus diferentes matizes, e acho que isso abriria portas para o fortalecimento dos grupos regionais com blocos, incluindo uma recolocação da Venezuela", disse.
2022-10-02
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Por que prisões de imigrantes na fronteira EUA-México bateram recorde de 2 milhões
Mais de 2 milhões de imigrantes foram detidos na fronteira entre os Estados Unidos e o México em apenas 11 meses, um número recorde que é motivo de preocupação política para o governo de Joe Biden. De acordo com novos números da Alfândega e Proteção de Fronteiras dos Estados Unidos (CBP, na sigla em inglês), o número de 2,15 milhões de detenções no ano fiscal que termina em 30 de setembro representa um aumento de 24% em relação ao período anterior. As estatísticas mostram que o número de imigrantes da Venezuela, Nicarágua e Cuba aumentou dramaticamente, enquanto o número de imigrantes do México e do norte da América Central — El Salvador, Guatemala e Honduras — diminuiu. Em um comunicado, o comissário do CBP, Chris Magnus, disse que "regimes comunistas fracassados" estavam levando a "uma nova onda de imigração" através da fronteira. Especialistas apontam outras razões que podem explicar o aumento, incluindo um grande número de travessias repetidas e problemas econômicos persistentes relacionados à pandemia na América Latina. Fim do Matérias recomendadas O crescente número de imigrantes na fronteira representa uma questão controversa para a política americana, pouco antes das eleições de meio de mandato presidencial que ocorrerão em novembro. A oposição criticou o presidente Joe Biden e outros democratas pelo aumento, enquanto cresce a tensão entre a Casa Branca e alguns governos estaduais republicanos sobre a forma como os imigrantes estão sendo transportados de ônibus ou levados de avião para áreas controladas pelos democratas, como Nova York e Washington. O número de imigrantes que chegam à fronteira aumentou drasticamente depois que Biden assumiu o cargo no final de janeiro de 2021. Especialistas apontam uma série de razões para o aumento, incluindo desastres ambientais e problemas econômicos em El Salvador, Honduras e Guatemala. Em outros casos — como Cuba, Nicarágua e Venezuela —, os problemas econômicos foram agravados pela repressão política. "Há um nível de desespero que nunca vimos antes", disse Adam Isacson, especialista em imigração e fronteiras da organização sem fins lucrativos Washington Office on Latin America. "E há pessoas vindas de países que não enviaram imigrantes em números significativos no passado, em grande parte devido à falta de oportunidades econômicas. Os contrabandistas se aproveitam disso." Muitos dos imigrantes estão agora buscando asilo, um processo que foi severamente restringido pelo governo de Donald Trump. Imigrantes do México e do norte da América Central continuam a representar a maior parte do total, com apenas os mexicanos respondendo por cerca de 744 mil das detenções no ano passado. No entanto, os números de agosto do CBP mostram mudanças nos padrões de imigração. O número de mexicanos, salvadorenhos, guatemaltecos e hondurenhos caiu 43% em relação a agosto de 2021. Já o de cubanos, nicaraguenses e venezuelanos aumentou 175% no mesmo período. Juntas, essas três nacionalidades são responsáveis ​​por cerca de 494 mil detenções de imigrantes este ano. Ariel Ruiz, especialista em políticas do centro de estudos Migration Policy Institute, com sede em Washington, observa que as ligações econômicas entre esses países também estão contribuindo para os aumentos. Cuba, por exemplo, perdeu grande parte da ajuda que recebia da Venezuela antes da pandemia, o que aumentou suas dificuldades econômicas. A decisão da Nicarágua no ano passado de eliminar a exigência de visto para cubanos facilitou para que os cubanos agora eles tenham um ponto de partida para iniciar sua jornada da América Central para os EUA. A falta de relações diplomáticas entre os EUA e essas nações significa que os presos não podem ser repatriados para seus países de origem. Biden, por sua vez, disse que enviar imigrantes de volta a Cuba, Venezuela ou Nicarágua "não é racional" e que está trabalhando com o México e outros países para "interromper o fluxo". Desde que assumiu o cargo, Biden manteve uma política controversa da era Trump que permite que as autoridades expulsem automaticamente imigrantes indocumentados que desejam entrar no país, sem aplicar as leis e proteções que os imigrantes normalmente têm. A política, conhecida como Título 42, foi originalmente destinada a impedir a propagação da covid-19 em instalações de detenção de imigrantes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O número crescente de imigrantes representa um problema político crescente para o governo Biden, principalmente com as eleições de meio de mandato que se aproximam. Três Estados controlados pelos republicanos — Texas, Arizona e Flórida — anunciaram iniciativas para transferir imigrantes para Estados liderados por democratas, às vezes deixando-os em lugares como a luxuosa ilha de Martha's Vineyard, em Massachusetts, ou perto da residência da vice-presidente, Kamala Harris, em Washington. Autoridades desses Estados argumentaram que a tática visa mitigar o impacto dos fluxos migratórios nas comunidades locais. O governador da Flórida, Ron DeSantis, por exemplo, que no início de setembro começou a levar imigrantes para Massachusetts, disse que, "no momento em que mesmo uma pequena fração do que essas cidades fronteiriças enfrentam todos os dias chega à sua porta, eles [democratas] têm um surto repentino". A questão dos imigrantes na fronteira provavelmente terá impacto nas urnas. Uma pesquisa recente da rádio pública norte-americana NPR, por exemplo, concluiu que a imigração é a principal questão eleitoral, depois da inflação, para 20% dos eleitores republicanos, em comparação com 1% dos democratas.
2022-09-24
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Por que nenhum país da América Latina tem armas nucleares – e o papel do Brasil nisso
Durante a segunda metade do século 20, a humanidade viveu com medo de um possível holocausto nuclear. Era uma espécie de pesadelo apocalíptico. À possibilidade de um confronto com armas atômicas entre as duas superpotências rivais, Estados Unidos e União Soviética, logo se somou a preocupação com a chamada proliferação nuclear: a possiblidade de que outros países e — ainda mais preocupante — organizações terroristas pudessem obter o controle da bomba. Para tentar conter essa possibilidade, o governo do presidente americano Dwight Einsenhower lançou em 1953 a iniciativa "Átomos para a Paz", que prometia facilitar o acesso a usos pacíficos da energia nuclear para países que renunciassem a se equipar com a bomba. Em 1957, foi criada a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), que faz parte do sistema das Nações Unidas; e pouco mais de uma década depois, em 1968, foi estabelecido o Tratado de Não-Proliferação Nuclear para fazer frente a esse perigo. Essas iniciativas, no entanto, não foram capazes de impedir que em praticamente todas as regiões do mundo exista pelo menos um país que tenha desenvolvido armas nucleares. Fim do Matérias recomendadas Aos Estados Unidos e à Rússia (herdeira do arsenal soviético) somaram-se países da Europa (Reino Unido e França); da Ásia (China, Coreia do Norte, Índia e Paquistão); do Oriente Médio (Israel, que não admite formalmente ter a bomba) e da África (África do Sul, único país que desenvolveu a bomba e depois voluntariamente se desfez dela). Assim, Estados de praticamente todas as partes do mundo têm ou tiveram armas nucleares com uma notável exceção: a América Latina, onde não apenas não há potências nucleares, como foi a primeira região densamente povoada do mundo a se declarar uma zona livre de armas nucleares. Como isso aconteceu? As razões são várias, mas as primeiras razões são encontradas há seis décadas. "A história de por que a América Latina não tem armas nucleares remonta à crise dos mísseis em outubro de 1962, quando a União Soviética posicionou mísseis em Cuba, dando origem a uma crise entre os Estados Unidos e a União Soviética", explica Luis Rodríguez, pesquisador de pós-doutorado do Centro de Segurança e Cooperação Internacional da Universidade de Stanford, na Califórnia (EUA). "Como resultado, vários países da América Latina decidiram começar a formar uma resposta multilateral para evitar que outra crise de mísseis aconteça na região. Essa foi a primeira vez que países da América Latina viram riscos nucleares tão próximos de casa", acrescenta o especialista sobre o episódio considerado o ponto mais próximo que a humanidade esteve de uma Terceira Guerra Mundial. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Rodríguez explica que, desde o final da década de 1950, surge a preocupação de impedir que outro país fizesse aquilo que os Estados Unidos fizeram em Hiroshima e Nagasaki. Na Europa, a Irlanda foi um dos países que promoveram essa ideia e, na América Latina, foi a Costa Rica. No entanto, até então, esse risco era visto como algo distante. Ryan Musto, da Faculdade de William e Mary (Virgínia, EUA), concorda que a ideia de banir a bomba existia na América Latina desde antes de 1962, mas avalia que então tudo mudou. "A Crise dos Mísseis de Cuba foi um catalisador, e o Brasil então propõe tornar a América Latina uma zona livre de armas nucleares como uma possível solução para essa crise, porque poderia facilitar a retirada de mísseis de Cuba, ao mesmo tempo em que permitia livrar a cara tanto dos Estados Unidos, como da União Soviética ", diz Musto à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC. Essa iniciativa não prosperou e a crise dos mísseis foi resolvida através do diálogo direto entre Washington e Moscou. Mas muitos países latino-americanos continuaram a ver a criação de uma zona livre de armas nucleares como uma forma de evitar que uma crise semelhante voltasse a acontecer no futuro. Assim, a região iniciou um processo de negociações que culminou em fevereiro de 1967 com a criação do Tratado de Tlatelolco (bairro da Cidade do México onde foi celebrado o acordo) que proíbe o desenvolvimento, aquisição, teste e instalação de armas nucleares na América Latina e Caribe. Este tratado entrou em vigor em 1969, mas com ele os riscos de proliferação nuclear na região não chegaram ao fim, pois havia dois Estados-chave na região relutantes em aceitá-lo plenamente. Embora o Brasil tenha sido um dos proponentes iniciais da criação de uma zona latino-americana livre de armas nucleares, logo mudou sua posição sobre o assunto, cedendo esse posto de liderança ao México. O esforço mexicano foi recompensado com o fato de o tratado levar o nome de Tlatelolco, sede do Ministério das Relações Exteriores daquele país, e com o Prêmio Nobel da Paz concedido ao diplomata mexicano Alfonso García Robles em 1982. "Depois do golpe no Brasil em 1964, as elites militares do país decidiram investir menos no projeto de desmilitarização da América Latina", diz Rodríguez. Outro país da região, relevante do ponto de vista da tecnologia nuclear, que se recusou a aceitar totalmente o Tratado de Tlatelolco foi a Argentina. "Depois de 1962, o México se torna a face visível dessa iniciativa. O Brasil se distancia dela. Há cientistas que questionavam internamente: 'Queremos mesmo abrir mão do nosso direito de ter armas nucleares em troca de nada? O que acontecerá se um dia precisarmos delas?'", diz Musto. O especialista afirma que ambos os países apoiaram formalmente o Tratado de Tlatelolco porque "pegaria mal" não apoiar, e participaram da elaboração do acordo tentando influenciar para que fosse permitido o que então era conhecido como "explosões nucleares pacíficas". Rodríguez explica que, naquela época, acreditava-se que a energia nuclear poderia ser um instrumento para acelerar o desenvolvimento dos países latino-americanos e que essas "explosões pacíficas" poderiam ser usadas, por exemplo, para abrir minas, canais de navegação ou até mesmo para obras de hidrelétricas. "Foi isso que levou países como Brasil e Argentina a desenvolver certos programas nucleares de tecnologia de uso duplo, que poderiam servir ​​para fins civis ou militares, o que gerou certas tensões, principalmente com organizações internacionais", diz Rodríguez. Rodríguez e Musto afirmam que não foi comprovado que os governos da Argentina e do Brasil tivessem planos de desenvolver armas nucleares, embora haja indícios de que houve pessoas dentro dos governos dos dois países partidárias dessa possibilidade. "O que Brasil e Argentina fizeram foi criar um programa nuclear fora das regulamentações da Agência Internacional de Energia Atômica, por isso são chamados de programas secretos do Brasil e Argentina", diz Rodríguez. "Há historiadores como Carlos Pati, um italiano que trabalha no Brasil, que não constataram que as motivações foram puramente militares ou que foram para criar armas nucleares. O que se vê é que houve uma divisão nos dois países entre facções das elites que queriam armas nucleares e facções que decidiram não tê-las", acrescenta. Musto indica que ambos os países estavam muito preocupados com as limitações que os acordos internacionais poderiam impor às suas opções de desenvolvimento nuclear. "Ambos os países queriam desenvolver um ciclo completo e independente de produção de combustível nuclear. Não queriam que sua soberania nuclear fosse afetada", diz. Apesar de tudo, no início da década de 1990, ambos os países renunciaram ao direito às explosões nucleares pacíficas, se integraram totalmente ao Tratado de Tlatelolco e, posteriormente, fizeram o mesmo com o Tratado de Não-Proliferação Nuclear. Essas decisões foram acompanhadas pelo abandono, tanto pela Argentina, quanto pelo Brasil, de seus programas de desenvolvimento de mísseis balísticos. Projetos que, combinados com seus programas de desenvolvimento nuclear fora do Tratado de Não-Proliferação, geraram preocupação na comunidade internacional. Além do impacto da crise dos mísseis, há outros fatores que contribuíram para que nenhum país da América Latina — e especialmente Brasil e Argentina, que estavam em melhor posição para isso — se equipasse com a bomba. Ryan Musto aponta, por exemplo, para o fato de a região não ter o tipo de rivalidades intensas e conflitos que ocorrem em outras partes do mundo. "Sim, Brasil e Argentina são rivais, mas isso nunca chegou a um ponto forte o suficiente para levar a uma corrida armamentista. Em geral, a América Latina parece ser uma região relativamente estável quando se trata de conflitos interestatais", destaca o especialista. Outro elemento que contribuiu no caso do Brasil e da Argentina foi que ambos os países fizeram a transição de ditaduras militares para a democracia em meados da década de 1980. O alto custo de um programa atômico também pode ter desempenhado um papel importante em dissuadir a proliferação nuclear na região. "Desenvolver um programa nuclear é muito caro. Precisa de muita infraestrutura, especialistas e conhecimento", diz Rodríguez, da Universidade de Stanford. Esse alto custo, além disso, não é medido apenas pela quantidade de dinheiro que o programa de armas nucleares exige. Também são altos os custos diplomáticos e de prestígio derivados de ir contra a corrente do consenso internacional contra a proliferação de armas e também das oportunidades perdidas relacionadas ao uso pacífico da energia nuclear. Um exemplo claro disso, segundo Musto, ocorreu em 1975, quando o Brasil assinou com a Alemanha Ocidental o maior acordo da história em termos de transferência de tecnologia nuclear para um país do sul global. "O acordo deveria ajudar o Brasil a construir oito reatores nucleares. Bem, os Estados Unidos pressionaram a Alemanha Ocidental porque o Brasil não era membro do Tratado de Não-Proliferação Nuclear e havia suspeitas sobre seu programa atômico — e talvez também devido a alguns interesses comerciais dos EUA. No fim, o acordo não se concretizou", afirma. "Então, esses tipos de aspirações desapareceram porque Brasil e Argentina não participaram plenamente do sistema de padrões nucleares previsto no regime do Tratado de Não-Proliferação", acrescenta. Assim, chegou-se a um ponto em que, para ambos os países, havia mais benefícios e oportunidades se estivessem totalmente integrados às instituições internacionais que regulam o uso pacífico da energia atômica, do que tentando preservar sua liberdade de ação fora delas.
2022-09-23
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Como milhares de livros foram salvos de fogueiras nas ditaduras no Chile e na Argentina
Uma família que escondeu milhares de livros dentro das paredes de uma casa, um homem que comeu 30 páginas para salvar seus companheiros e livreiros lutando para recuperar livros perdidos. Quando, em 11 de setembro de 1973, Augusto Pinochet depôs o governo do socialista Salvador Allende no Chile com um golpe, além do horror que foi cometido contra os militantes e suas famílias, iniciou-se também uma perseguição aos livros, sob o argumeto de que eles ajudaram na doutrinação comunista. Essa mesma prática foi replicada na Argentina, quando o governo militar foi estabelecido em março de 1976. Milhares de títulos foram banidos. Nas décadas posteriores, imagens de homens uniformizados destruindo e queimando livros se multiplicaram. Esta reportagem mostra o outro lado: conta três histórias de como livros foram salvos da fogueira e da destruição durante esses anos sombrios. Fim do Matérias recomendadas "Onde estão as odes que Neruda me deu?", perguntou o advogado argentino Salomón Gerchunoff. E sempre, antes que alguém pudesse lhe responder, ele mesmo suspirava e dizia: "Devem estar na casa daquele homem". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A casa a que ele se referia era dele há mais de 20 anos. Era uma construção térrea, localizada no bairro Parque Vélez Sarsfield da capital Córdoba, a segunda maior cidade da Argentina. Lá viveu com sua esposa, Eva Maltz, e seus cinco filhos até o golpe de 1976. "Meu pai era um militante reconhecido do Partido Comunista em Córdoba e colaborador permanente do movimento sindical na cidade, então ele tinha uma biblioteca que era coerente com esse pensamento", explica Luis Gerchunoff, um dos cinco filhos de Salomón. E esse pensamento começou a ser banido. Perseguido. Ao lado de Luis estão Nora, Ana e Beatriz, as outras irmãs. Só falta Robert. É 24 de março, Dia Nacional da Memória pela Verdade e Justiça na Argentina. Quarenta e seis anos se passaram desde o golpe militar e em uma escola próxima eles exibem um documentário com a história da família. É a primeira vez em muitos anos que os irmãos estão na mesma cidade ao mesmo tempo e ativam a coleção de memórias a quatro vozes. A primeira: quando seus pais decidiram esconder os livros dentro de uma das paredes da casa. "Foi logo após o golpe", diz Luis. "Nos anos anteriores, meu pai havia distribuído seus livros mais incriminadores entre vários amigos para evitar as batidas que já aconteciam regularmente. Mas quando ocorreu o golpe, ele percebeu a gravidade do que estava acontecendo e disse 'basta, vou juntar meus livros para evitar problemas para eles'." Meses antes daquele março de 1976, Salomón e Eva decidiram reformar a casa, então aproveitaram os restos de materiais de construção para esconder a maioria dos livros dentro das paredes da parte superior do quarto principal. "Nós sete vivemos aquele momento. Lembro-me do sentimento de medo que nos acompanhou. Colocamos todos os tipos de livros, literatura política, sobre Marx, Engels, mas também César Vallejo, O Pequeno Príncipe, o livro de histórias infantis 'Um elefante ocupa muito espaço', de Elsa Bornemann, que também foi proibido pela ditadura", lembra Ana Gerchunoff. Um dos exemplares mais premiados da coleção de Salomón foi um livreto de quatro páginas com duas odes de Pablo Neruda: à Pantera Negra e à Borboleta. No verso, um autógrafo na inconfundível tinta verde usada pelo ganhador do Prêmio Nobel chileno e a dedicatória: "Para Gerchunoff. Do seu amigo Pablo". "Em 1956, Neruda decidiu passar alguns dias em Villa del Totoral, que é uma cidade vizinha. E ele queria organizar um recital, mas estávamos na ditadura de Aramburu, e ele não recebeu o palco principal da cidade, que era o teatro San Martín. Então meu pai, junto com outras pessoas, moveu céus e terra para que o poeta pudesse se apresentar em outro espaço", diz Luis. Para recompensar os esforços dos envolvidos, Neruda encomendou 500 exemplares de um livreto com as duas odes de uma gráfica local. "E ele dedicou um especialmente ao meu pai", observa Ana. "Embora não nos lembremos de colocá-lo na parede, meu pai tinha certeza de que estava lá." Eva, que era arquiteta, ficou encarregada de cimentar a parede e terminar tudo para não deixar indícios de que havia um buraco aberto naquela superfície. Menos de um ano depois, em maio de 1977, os militares levaram Salomón. "Eles o mandaram para La Perla, que mais tarde se tornaria um centro de tortura clandestino. Ele passou cinco anos lá." Os quatro irmãos se lembram com precisão milimétrica do dia em que tiveram que sair daquela casa. "Por ficar sozinha, minha mãe não conseguia se sustentar e foi obrigada a vender a casa com prejuízo", conta Ana. "Tivemos que levar nossas coisas em lençóis porque não tínhamos dinheiro para a mudança. Meu pai foi sequestrado. Foi muito doloroso", conta Beatriz, a irmã mais velha. Nos anos seguintes, Eva e os cinco irmãos viveram como puderam em lugares diferentes. Em 1982, Salomón foi solto e, com o fim do regime militar, a primeira coisa que fez foi pedir permissão ao novo dono da casa para derrubar o muro e tirar seus livros. "O cara se recusou a deixá-lo entrar", diz Ana. "Aí meu pai, frustrado, deu uma ordem para todos nós: 'Vamos esquecer os livros. Aqui encerramos essa história.'" "Mas muitas vezes ele se lembrava de suas odes de Neruda e não podia deixar de se referir à casa 'daquele homem'", lembra Luis. Eva morreu em 1994 e Salomón em 2002. Nora e Beatriz se mudaram para Israel e Ana, Luis e Roberto formaram família e se estabeleceram em diferentes lugares em Córdoba. Eles nunca voltaram para a casa. Em 2008, enquanto Ana visitava um escritório no centro da cidade como parte de seu trabalho no Ministério da Justiça, ela foi abordada por uma mulher que pediu para falar em particular. "Ele me perguntou se eu era Ana Gerchunoff, a da casa dos livros perdidos. Fiquei sem palavras e pensei 'Claro, os livros do papai!'." A mulher, que era inquilina da casa há alguns anos, contou-lhe que se espalhou pelo bairro um boato de que havia livros dentro das paredes. "Ela me disse que era como um fantasma e que era muito difícil para ela morar em uma casa onde ela sabia que havia uma biblioteca embutida na parede." Ele disse a ela que eles iriam abri-lo. A notícia pegou os irmãos de surpresa. Beatriz e Nora de Jerusalém disseram enfaticamente que queriam estar presentes quando as paredes fossem derrubadas. Mas a urgência venceu: a mulher disse-lhes que tinham de pegar os livros o mais rápido possível antes que o dono descobrisse, pois ele era o mesmo que havia negado a entrada de Salomón. "De um dia para o outro tínhamos que ir com um pedreiro e quebrar tudo. Nora e Beatriz não tiveram tempo de chegar", observa Luis. Foi um procedimento simples: o pedreiro bateu duas vezes com o cinzel e abriu um buraco na parede de tijolos secos. E eles viram a maravilha através do buraco. Os livros estavam intactos, legíveis, como se tivessem sido colocados lá no dia anterior e não 30 anos antes. "Mamãe tinha feito um bom trabalho", diz Ana. "Ficamos atordoados, não só pelo estado dos livros, mas por todo o peso emocional que eles tinham, porque os livros fazem parte de seus donos. Eles preservaram parte do cheiro que a casa tinha quando morávamos lá, então, mais do que pensar nos livros, começamos a lembrar de tudo que vivemos naqueles anos", conta Luis. Em meio a uma nuvem de nostalgia, um dos filhos da inquilina pegou a obra de Neruda e o olhou com especial interesse. "E o que é isso?", ele perguntou. "Era o caderno. Estava exatamente como eu me lembrava, então peguei dele e disse 'Nada. Papéis velhos'... e guardei", continua Luis. Os três irmãos pensaram que só iriam encontrar fragmentos do que tinham deixado e, como naquela vez em que saíram de casa, há três décadas, tiveram que levar os livros em folhas. Nora, a mais nova, permanece em silêncio. Ele apenas observa, em silêncio, enquanto seus irmãos contam a história, mas no final ele explode. Ela coloca a cabeça no ombro de Beatriz para que seus olhos não sejam vistos. "O fato de terem tirado os livros foi libertador para mim. Minha infância ficou dentro daquelas paredes, com aqueles livros que a ditadura nos obrigou a guardar e que sequestraram meu pai", conclui. "Eu senti como se estivesse reencontrando aquela menina de 9 anos que morreu um pouco quando tivemos que sair daquela casa sem livros para levar." Quando abriu os olhos, Luis Costa viu três soldados da Marinha chilena apontando seus fuzis G-3 para seu rosto. "Eles me pegaram", foi a primeira coisa que ele pensou. Atrás da fileira de fuzileiros entrou o comandante, que inspecionou seu rosto e, depois de descartar que era a pessoa que procuravam - um homem albino e muito mais velho -, disse-lhe: "Continue descansando, agora o que nos interessa são seus livros". Seis meses antes, Pinochet havia derrubado o governo de Salvador Allende e, por sua militância no Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), Costa vivia na clandestinidade. Quase 50 anos depois, em sua casa em Quilpué, município a 10 quilômetros de Valparaíso, a segunda maior cidade do Chile, Costa aponta para uma rústica cadeira de madeira com o encosto em ângulo reto. "O batista Van Schouwen, el Baucha (um dos comandantes históricos do MIR), sentou-se naquela cadeira quando realizamos reuniões em minha casa. Ele disse que o ajudava com suas dores nas costas." Foi precisamente El Baucha quem lhe deu as primeiras instruções uma vez consumado o golpe de Pinochet: esconda-se, sobreviva e, se não for possível salvá-los, desfaça-se das bibliotecas de seus companheiros o mais rápido possível. "Durante os anos da Unidade Popular de Salvador Allende houve um apogeu do livro. E muitos de nós aproveitamos isso para adquirir textos de literatura política para nos educarmos", diz. "No entanto, o golpe de Pinochet foi tão certeiro que em menos de um dia o MIR já estava desmantelado, então a missão principal e quase a única que pudemos realizar foi esconder ou, infelizmente, destruir as bibliotecas de nossos camaradas para evitar que pudesse incriminá-los. Ter um livro considerado perigoso era o suficiente para ser preso", explica. Destruir as cópias tornou-se uma questão de vida ou morte e, embora tenha sido um ato triste, pelo menos impediu que caíssem nas mãos dos militares. Era uma tarefa de tentativa e erro: eles começavam por submergir os livros nas banheiras ou nas pias das casas para que as páginas amolecessem e depois pudessem jogá-los no vaso sanitário. "Mas os canos entupiam facilmente", diz Costa. "Então tivemos que ir queimá-los." "Primeiro nós tentamos no forno e nos fogões da cozinha, mas levamos muito tempo para queimar cada livro." Eventualmente, eles concordaram com o último recurso: fazer fogueiras à noite "para evitar que as pessoas sentissem a fumaça e nos denunciassem". No entanto, ele não queimou tudo. Apesar do perigo que representava, havia exemplares que conseguiu salvar. Costa para sua história e percorre seu escritório, um espaço repleto de objetos e recordações de seus anos de militante, que distribuiu entre familiares e amigos quando teve que se exilar, depois de passar um tempo nos centros de detenção de Villa Grimaldi e Três Alamos. E que logo recuperou. . Ele sobe as escadas que levam ao segundo andar, ao seu quarto. Lá ele agora tem sua biblioteca, da qual tira um livro coberto com uma folha preta. "Havia livros que eram muito pessoais ou muito úteis, que a gente arriscava preservar. Este, por exemplo", diz ao abrir e revelar o título "Manual do Guerrilha Urbano", do brasileiro Carlos Marighella. "Foi muito útil para as tarefas clandestinas que estávamos realizando naqueles dias." Mas ele também foi forçado a recorrer a táticas extremas para salvar sua vida e a de seus companheiros. Na manhã em que acordou com os canos dos fuzis apontados para ele, Costa passava pela casa de uma família que morava em Villa Alemana, município a cerca de 30 quilômetros de Valparaíso. A família, que não tinha relação com ele, fazia parte da rede de pessoas que apoiavam os militantes da esquerda. Uma cama improvisada havia sido arrumada para ele no único quarto disponível: uma pequena biblioteca no primeiro andar. Lá estava ele dormindo quando o pelotão de fuzileiros o surpreendeu. Costa obedeceu ao comandante e se deitou, ainda tremendo. Mas no meio de sua vigília, os militares o incomodaram novamente. "Jovem, você pode me explicar sobre o que é este livro?", ele perguntou, entregando-lhe um volume com um título atraente, "Cibernética e a Revolução Industrial". Costa levantou-se e explicou brevemente, com o que lembrava do tempo na Universidade de Santa María, que se tratava do estudo dos sistemas que controlam as máquinas. O homem uniformizado fez um gesto nebuloso e colocou o volume de lado com a ordem de confiscar. "Interessante. Mas há a questão da revolução e isso é perigoso", disse. Deitando-se novamente, Costa percebeu que na mesa de cabeceira, também improvisada, havia um livreto de 30 folhas de papel de arroz para enrolar cigarros onde estava descrita a situação da Secretaria-Geral do MIR, que lhe chegara naquela mesma tarde. Agarrou o documento durante um descuido dos soldados, rasgou-o furtivamente, colocou-o na boca e começou a mastigá-lo sorrateiramente. "Primeiro tentei umedecer com saliva, mas foi muito difícil, porque eram 30 folhas", conta. "Foi difícil para mim porque também não queria fazer barulho." Costa lembra que tudo isso aconteceu com os militares ali ao lado. Ele tentando fazer o documento desaparecer e eles procurando livros pela sala. "Não me lembro quanto tempo levei, mas finalmente consegui engolir tudo." "Não doeu o estômago nem nada, mas o que tive foi uma sensação estranha na boca, tipo de tinta seca, que sempre defino como minha primeira experiência com literatura gastronômica", conclui com uma cota de humor e ironia. Marjorie Mardones deixa seus dedos navegarem por uma prateleira de livros usados ​​como uma criança em uma loja de brinquedos. Ela é bibliotecária do Centro Quilpué e professora da Universidad de Playa Ancha e nos últimos anos se propôs a descobrir o que aconteceu com milhares de livros que foram censurados e destruídos nesta região chilena durante o regime de Pinochet. Por isso, caminha com o entusiasmo de salvadora pela livraria: mais do que notícias, procura sobreviventes. Qualquer pista serve: um título politicamente inclinado publicado em décadas anteriores, o selo de um editor perseguido. Capa enganosa. Uma capa forrada para esconder o título original. "Minha ideia é buscar esses livros, que foram retirados de suas bibliotecas por serem considerados perigosos, e devolver para uma estante, para uma biblioteca, que é o lugar deles" Na bolsa, Mardones carrega um dos achados que fez nos últimos anos, uma cópia que revela uma das manobras usadas para salvar os livros do apocalipse: a camuflagem. O livro está envolto em uma capa azul clara, onde está impresso "A poesia de Nicanor Parra: anexos de estudos filológicos nº 4". Mas quando ela abriu, outro título: "Trotsky, o grande organizador de derrotas", que ela suspeita ter sido publicado por uma editora soviética que, aproveitando o auge do livro no Chile, começou a publicar títulos em espanhol, mesmo embora seus escritórios ficassem em uma rua de Moscou. "Era um método muito tradicional, tiravam a capa com muita delicadeza para não danificar a lombada e depois colavam a capa nova, que também havia sido retirada da mesma forma de um livro menos perigoso. Foi feito com livros muito específicos ou que eram importantes para seu dono, porque era um processo muito demorado e não podia ser aplicado a todos os livros." Sua pesquisa foi exibida em uma exposição em 2017 na Universidade de Playa Ancha sobre livros perseguidos em Valparaíso, na qual exibiram não apenas os livros, mas também as histórias de como sobreviveram. "Mostramos que o que vimos no Chile foi uma destruição fundamentalista do livro. À medida que as pessoas eram perseguidas, as ideias eram perseguidas", acrescenta. "E foi um aviso do que estava por vir. Como disse o poeta alemão Heinrich Heine, 'onde os livros são queimados, as pessoas também são queimadas'." Mardones cita o ensaio "Deseja, possui, enlouquece", no qual o renomado semiólogo italiano Umberto Eco, falecido em 2016, aponta três formas de biblioclastia ou destruição de livros: biblioclastia fundamentalista, descuido ou interesse próprio. "Eco aponta claramente: 'O biblioclasta fundamentalista não odeia os livros como objeto, teme pelo conteúdo e não quer que os outros os leiam. Além de criminoso, é um louco, pelo fanatismo que o motiva. A história registra poucos casos extraordinários de biblioclastia, como o incêndio na biblioteca de Alexandria ou as fogueiras nazistas'", lê Mardones, que acrescenta: "E as ditaduras no Cone Sul". "Depois dessa destruição, desse apagão cultural como muitos chamam, o que a ditadura fez foi criar uma cultura de consumo rápido, onde o livro não tem mais lugar", observa. Para ilustrar o que acaba de relatar, ele pronuncia um nome que parece um animal mitológico: "Editora Quimantú". A cerca de 90 quilômetros dali, Ramón Castillo tira um livro de sua coleção: é um pequeno exemplar cuja capa mostra um homem carregando um busto de Napoleão. É "Sherlock Holmes e o mistério dos seis bustos", mas ele se concentra no logotipo da editora que o publicou: um círculo com representações indígenas em torno de um "q" minúsculo. "Este é um livro da editora nacional Quimantú, da coleção de livros de bolso", diz entusiasmado. Além de acadêmico da Faculdade de Letras da Universidade Diego Portales, Castillo também seguiu a vocação de salvador de Mardones: à sua frente, na mesa da sala de sua casa no bairro Bellavista de Santiago, repousa uma montanha de livros. A maioria deles com o selo do Quimantú. Após a chegada de Salvador Allende ao poder, em 1970, dentre muitas medidas implementadas, houve uma que visava popularizar o livro. Para isso, foi adquirida uma editora estatal, controlada pelos trabalhadores, que produziria 11 milhões de livros em três anos. Não foi apenas literatura universal como o livro de Sherlock: nos últimos anos, Castillo conseguiu recuperar exemplares com títulos mais combativos, como "O que é o materialismo histórico", assinado por Marta Hernecker, e uma compilação da revista "Cabro Chico", dedicado às crianças. "Tinha um alcance enorme. Um dos funcionários da Quimantú nos contou uma história que mostra isso: depois de uma doação para vários centros educacionais que ficavam fora da capital, um professor ligou para agradecer o gesto, mas sobretudo para pedir humildemente que também mandassem estantes, porque era a primeira vez que tinham livros na escola." Após o golpe, Pinochet e os soldados que o acompanhavam fizeram uma perseguição sistemática a títulos que consideravam perigosos (na verdade, foram feitas transmissões televisivas com a queima de livros e convocadas coletivas de imprensa para anunciá-los), mas, sobretudo, dos livros da Quimantú. Em poucos meses o nome foi mudado (Editorial Gabriela Mistral) e a maioria dos livros foi destruída. Mas ele insiste em ecoar um único objetivo: "Muitas pessoas tiveram a coragem de preservar algo que acreditavam ser algo mais do que um livro, que destruí-lo era como destruir a si mesmos. Eu só quero que os livros tenham uma prateleira para que não nos esqueçamos do que aconteceu". • No caso do Chile, após o golpe de 11 de setembro de 1973, iniciou-se uma destruição de livros considerados "subversivos" em bibliotecas públicas, universidades, algumas casas e livrarias. • Isso levou a um processo de autocensura, com muitos civis destruindo ou escondendo várias cópias de suas bibliotecas pessoais para evitar serem enquadrados pelos militares. • A fase seguinte do regime foi a da censura prévia. Embora já realizasse operações de censura, foi em 1976 que o governo militar criou a Direção Nacional de Comunicações, a Dinaco. Todo o conteúdo cultural produzido no país tinha que passar por esse escritório para aprovação. • Na Argentina, o processo é diferente. Quando ocorre o golpe de estado de março de 1976, o controle é imediatamente estabelecido sobre a produção de livros. • Foram proibidos mais de 125 títulos contrários aos "valores nacionais" que o processo de reorganização da junta cívico-militar pretendia promover. • Houve queima de livros. A mais significativa ocorreu em 26 de junho de 1980 no distrito de Sarandi, na província de Buenos Aires, quando foram queimados quase um milhão e meio de livros. • Houve uma perseguição especial aos livros infantis. Por exemplo, o livro de contos "Torre de cubos", da escritora Laura Devetach, foi proibido por um decreto que apontava que seu conteúdo de "fantasia ilimitada" poderia ser prejudicial às crianças.
2022-09-23
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63011835
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Como consegui fugir de mosteiro onde vivi por 12 anos como freira enclausurada
Numa manhã de domingo, sem pedir permissão, Florencia Luce pegou o telefone e ligou para os irmãos. "Esperem por mim em casa. Preciso falar com vocês", disse a eles. Ela juntou os poucos pertences que tinha, atravessou o portão e saiu para a rua. A ideia de tomar essa atitude estava na cabeça dela há meses, ou anos. Mas foi só em um dia de dezembro de 1982 que Luce reuniu coragem suficiente para fugir do mosteiro contemplativo onde havia passado os últimos 12 anos de sua vida como freira enclausurada. Não que ela estivesse forçosamente isolada e privada de liberdade por lá. Mas o controle e a manipulação psicológica por trás das portas da instituição religiosa impossibilitaram que ela pensasse em sair de outra forma. De longe, Luce — que cresceu em uma típica família argentina de classe média em um bairro tradicional — vê a experiência que teve como resultado de uma confusão interna, da necessidade de encontrar uma voz em meio a uma família numerosa e do esmagador peso das influências do ambiente em que circulava. Fim do Matérias recomendadas O idealismo, o desejo de mudar o mundo e os conselhos errados que recebeu de um guia espiritual a levaram a um caminho completamente errado para sua vida. Embora reconheça ter passado belos momentos ("Gostava do canto gregoriano, do estudo, do carinho das minhas companheiras"), a vida monástica foi marcada pela pequena mesquinhez do dia a dia em confinamento, pela hipocrisia, pelo sigilo e pelo acúmulo de preocupações triviais longe da vida espiritual que ela tanto ansiava quando entrou na instituição. Mesmo assim, ela levou mais de uma década para conseguir sair. "É como quando estar em um casamento ruim e não entender o porquê está em um culto", explica, refletindo sobre a própria experiência, que capturou no romance El Canto de las Horas ("A Canção das Horas", em tradução livre), inspirado nas experiências que teve. De Nova Jersey, nos Estados Unidos, onde trabalha e mora com o marido e a filha, Luce conversou com a BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC para a América Latina. A seguir, você confere um resumo da história que ela conta em primeira pessoa. Eu cresci em Buenos Aires em uma família de classe média de cinco irmãos. Embora na minha infância fôssemos à missa, a religião estava ausente em nossa casa. Mas as aulas do Ensino Médio tinham um forte componente religioso. Foi nesse ambiente, e por meio dos meus amigos, que absorvi esse espírito. Aos 19 anos, comecei a pensar na minha vocação. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Já como estudante de agronomia na Universidade Católica, senti o "chamado". Foi repentino. Lembro-me perfeitamente do momento em que tive a sensação de que Deus me convocava. Era algo físico. Nessa época, comecei a ter um conselheiro espiritual, um padre que me falava do mosteiro e dizia que eu era a pessoa ideal para aquele lugar de vida contemplativa. Quando penso em tudo isso agora, não concordo mais com aquilo tudo. Acho que aquele "chamado religioso" fazia parte dos meus delírios e questionamentos. Digo sempre que isso me foi apresentado de fora para dentro, e não de dentro para fora. Hoje em dia, vejo como algo que encontrei e tentei aceitar, porque senti necessidade de sair de casa. Assim como meus amigos — em um ambiente tradicional e conservador — se casaram aos 20 anos por causa da necessidade de sair da casa dos pais, me foi apresentada a possibilidade de ir para um mosteiro. Embora não existissem grandes conflitos na minha família, havia muita gente na minha casa, muito barulho, e eu precisava encontrar um espaço próprio. Foi um erro, um impulso. Eu era muito idealista e precisava encontrar algo transcendental, queria fazer algo pelo mundo. Poderia ter ido em missão para outros lugares se meu conselheiro espiritual tivesse sugerido. Mas ele me guiou até aquele mosteiro contemplativo. Tirando meus pais, nunca ninguém me disse que aquilo não era algo para mim. Quando lhes contei da minha decisão, eles reagiram mal, não conseguiram entender. Meus irmãos me disseram que eu era louca. À época, antes de entrar na clausura, eu tinha muitos amigos, era uma pessoa sociável, atleta, tinha namorado, ia dançar... Porém, quando fui falar com a abadessa do mosteiro, não pensei em mais nada. Fiquei fanática e decidi entrar. Eles me aceitaram de imediato, nunca me disseram para esperar, pensar direito, terminar a faculdade primeiro. Nem questionaram minha fé frágil. E quando me contaram sobre a vida monástica, tudo parecia perfeito. Ao entrar no mosteiro, você corta o vínculo com o mundo exterior. Peguei uma bolsa com roupas bem simples. Não se pode levar livros, rádio ou qualquer coisa pessoal. Fui encaminhada para uma jovem, que me mostrou o lugar e explicou as rotinas e as regras — porque você entra em um mundo onde terá que obedecer muitas regras. A do silêncio, por exemplo: enquanto cozinha, limpa ou vai à aula, não pode falar nada. Há apenas um recesso onde é possível conversar livremente. Você se levanta antes do amanhecer e o dia é marcado por orações litúrgicas — que na vida contemplativa são cantadas em conjunto —, meditação, estudo, trabalho e mais orações. Você ora pela família ou pelos conflitos que eles indicam a você. Hoje em dia, por exemplo, um dos motivos das preces sem dúvida seria a guerra na Ucrânia. A abadessa é quem decide tudo. Ela recebia o jornal todos os dias, recortava as páginas que considerava de interesse geral e as deixava em uma sala onde todas podíamos ler. Todas as informações eram filtradas e censuradas. Não havia acesso a outras notícias: a fonte era a superiora ou o que a família dizia se porventura viesse vê-la, em visitas cada vez mais espaçadas. A ideia era que todas essas atividades a levassem a um estado de meditação e adoração a Deus. Eu me afeiçoei muito às irmãs que estavam lá. Eram pessoas que se tornaram uma família para mim. Mas, pensando bem, agora vejo que havia muito conflito ali. Era um ambiente extremamente fechado com muitas regras a respeitar — mas que também eram constantemente quebradas. O que se espera de você é que alcance a pureza espiritual, que se entregue a Deus. Mas é uma meta tão alta que poucas conseguem alcançá-la, e dá pra ver que há muita gente que não deveria estar ali. Você descobre que, na realidade, vive num mundo de inveja e competição, onde há grupos e pessoas que querem mandar, como se estivéssemos numa empresa. Trata-se de uma organização vertical onde a madre superiora é a guia espiritual de cada uma das outras mulheres. Ela é a única com quem você tem permissão de falar sobre os conflitos — e muitas vezes ela mesma está no centro deles. Aos poucos, você começa a se sentir atraída e a competir por afetos e favores que só ela pode oferecer. A mesma coisa acontece com os outras oportunidades que aparecem vez ou outra, por meio das demais freiras. São gerados laços que não são nada saudáveis. Você começa a viver por isso, para que essas pessoas prestem atenção em você. Aos poucos, é como se deixássemos de viver para Deus e passássemos a viver para a madre superiora. Em relação ao desejo físico, cada uma vivia de uma maneira diferente e encontrava formas de sublimá-lo. Mas tudo isso era deslocado para a parte psicológica — e por isso persistia aquele desejo de que a superiora ou outra freira olhasse ou prestasse atenção em você. Tudo isso foi a causa de muitos transtornos mentais que se traduziam em sintomas físicos. Eu vi garotas com muita dor de cabeça, que foram medicadas. Muitas irmãs sofriam de problemas estomacais e dores. Quando um médico as examinava, nunca encontravam nada. Ao meu ver, tudo tinha a ver com o confinamento. Éramos um grupo de mulheres trancadas sempre no mesmo lugar, sem distrações, onde se via cada pequeno problema amplificado com uma lupa. Quando se está em silêncio e não se pode falar, você fica presa pensando nas pequenas coisas em vez de se concentrar no transcendental. Além disso, não nos exercitávamos. Era possível ver muitas jovens confusas. Aquele ambiente era mental e emocionalmente muito desgastante, e isso me fez começar a questionar o que eu realmente estava fazendo lá. Comecei a questionar se tinha ou não vocação religiosa desde o primeiro ano. Mas, no início, gostava da vida comunitária. Além disso, adorava o estudo e a música. Mas eu tinha crises vocacionais muito regulares e a abadessa sempre me dizia que isso acontecia com todas, que era apenas algo passageiro, que eu havia me adaptado muito bem e tinha uma verdadeira vocação. Fui vê-la algumas vezes. Tinha vontade de chorar, mas sempre me segurava. Sinceramente, não acho que houve má intenção, mas acho que ela estava tentando fazer com que as garotas que tinham uma certa formação intelectual ficassem. Ela nos colocou "sob a asa" e nos favoreceu, porque pensou que poderia nos moldar para o futuro. Como eu sabia dirigir, a abadessa me levava para ver a mãe dela, ir almoçar, tomar chá, fazer compras... Todas as coisas que eu não podia fazer por conta própria e sobre as quais não devia falar nada. No começo, eu gostava de tudo isso. Mas foi justamente isso o que causou a crise. Chegou um momento em que percebi que, embora você entre pensando que vai se transformar e ajudar a mudar o mundo, a vida ali envolve cuidar de coisas muito pequenas. Rezei bastante, mas, no final das contas, o mais importante eram outras coisas — como estar bem com as outras pessoas dali, que podiam gostar de mim e acabavam me colocando numa tarefa melhor do que lavar os banheiros. É algo paradoxal, porque em vez de esquecer de si mesmo e pensar em Deus, você acaba olhando para o próprio umbigo. Mas o gatilho foi uma viagem que fiz a um mosteiro na França, onde fui enviada para ajudar. A distância me permitiu ver as coisas de outra perspectiva. Quando voltei, senti que tinha sido deslocada (algo que eu deveria aceitar porque era a vontade de Deus) e, para acabar de vez com a situação, minha avó morreu. Eu tinha uma relação muito próxima com ela, e a direção do mosteiro não permitiu que eu fosse ao seu funeral, embora eu tivesse permissão para ir tomar chá com a mãe da abadessa. Isso me ajudou a ver tudo com mais clareza e comecei a questionar ainda mais a minha vocação. O mais grave foi que percebi que estava ficando doente e com a saúde mental abalada. Então, depois de 12 anos, consegui tomar a decisão. Tentei muitas vezes sair, mas a superiora sempre me convencia a ficar. Por isso, parei de falar com ela e, um dia quando ela estava fora, deixei uma carta na mesa em que explicava que ia embora porque não podia seguir por outro caminho. Peguei minhas coisas e, sem dizer nada a ninguém, pedi que abrissem a porta para mim. Não considero a minha decisão como uma fuga. Era a única maneira de ter 100% de certeza de que poderia sair dessa escravidão psicológica e afetiva. Mas soube que depois, no mosteiro, fui duramente criticada por isso. Saí sem planejar, mas sabia que precisava deixar o local e que teria o apoio da minha família. Chegar em casa resultou em um encontro emocionante. Muitos anos se passaram e eles não tinham noção dos meus conflitos internos. Conversamos, choramos e minha família ficou feliz. Quando saí, estava pálida, quase transparente de tão magra. Estava comendo muito pouco, consumida pela angústia. Demorou semanas para me reconstruir fisicamente. Aos poucos, comecei a estudar, consegui um emprego, fui morar no centro, conheci o meu marido, que é americano, e o resto é história. A terapia me ajudou a sair dessa, assim como o apoio da família e dos amigos. Tive muita sorte. Ao retornar ao mundo real, minha mente voltou praticamente para onde estava antes de eu entrar. Eu estava curiosa sobre tudo. Me adaptei com facilidade, era como se fosse um peixe voltando à água. O que me custou foi questionar por que fiquei presa tantos anos. Isso ainda é uma grande pergunta para mim. Gostava da vida em comunidade, de ter tempo para estudar e ler, mas acho que a maior força foi a influência da abadessa, uma mulher carismática e com muito poder sobre todos. É como quando você se pergunta por que as pessoas permanecem em um culto ou por que alguns insistem em um casamento disfuncional. Não considero um erro ter entrado no mosteiro, porque foi uma experiência muito rica. Mas me arrependo de ter ficado tanto tempo por lá. A minha experiência não me fez perder a fé em Deus ou na vida espiritual, mas agora a encontro muito mais nos textos literários, ou ao ouvir um concerto. Não percebo mais o mesmo na instituição da Igreja, cujas contradições, hipocrisias e mandatos ainda me provocam uma grande rejeição. Aconselharia a quem pensa iniciar uma vida monástica a não tomar decisões abruptas, a ter antes outras experiências e a não desistir de uma carreira. Aos sacerdotes, que são guias espirituais, pediria que não convençam imediatamente as jovens a entrar no mosteiro. Peça que elas esperem um pouco. No momento em que estão vulneráveis, elas acreditam 100% que a palavra de um líder religioso é sempre a palavra de Deus.
2022-09-19
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62926103
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8 gráficos para entender inflação no Brasil e em 5 países da América Latina
Os preços de itens essenciais já vinham em trajetória de alta em razão dos efeitos causados ​​pela pandemia de covid-19. Mas a guerra na Ucrânia piorou a situação: o início do conflito armado no final de fevereiro gerou uma crise energética e alimentar. Mais de seis meses se passaram, os bancos centrais se viram obrigados a aumentar as taxas de juros para tentar controlar a espiral inflacionária e o custo de vida atingiu níveis recordes não vistos havia décadas. Para se ter uma ideia do impacto no bolso das pessoas é usada uma cesta básica de bens e serviços que cada país produz de acordo com o consumo das famílias. Essa cesta inclui centenas de produtos e serviços que vão desde gastos com saúde, aluguel ou educação, até o preço do combustível e da alimentação. Nas 6 maiores economias da América Latina, a inflação em 12 meses (na comparação entre julho de 2021 e julho de 2022) atingiu 71% na Argentina, 10% no Brasil, 13,1% no Chile, 10,2% na Colômbia, 8,1% no México e 5,6% no Peru. Fim do Matérias recomendadas Com a ideia de simplificar a comparação entre os países, a BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, escolheu oito produtos básicos de consumo de massa para mensurar o impacto da inflação sobre alguns itens essenciais. O óleo de cozinha tem sido um dos produtos com maior aumento de preço nos mercados internacionais. Além da diminuição da oferta devido a secas e ao aumento do consumo após a pandemia, a guerra na Ucrânia fez com que o preço do produto batesse recordes históricos. Como ucranianos e russos são os maiores exportadores mundiais de óleo de girassol, a escassez na exportação gerou picos dos preços. Outro outro complicador foi a alta demanda por óleos vegetais para uso na indústria de biocombustíveis, reduzindo ainda mais a oferta do produto. O aumento da farinha de trigo arrastou o preço do pão com ele, enquanto o aumento da farinha de milho elevou o valor de produtos como tortilhas e arepas, muito populares em países como México e Colômbia. Novamente, a guerra teve um profundo impacto nesse segmento. A Ucrânia produz 16% do milho e 9% do trigo no mundo. Somou-se a isso o fato de que as remessas de trigo da Rússia — o maior exportador mundial — tiveram queda. Além de ser utilizado como base da principal farinha de alguns países, o milho é um insumo importante e requisitado na criação de aves para abate, o que pressiona o preço. Com o aumento dos custos de produção, produtos lácteos sofreram grandes elevação nos preços. Muitos produtores têm preferido se desfazer de parte do rebanho, vendendo as vacas menos produtivas para os matadouros. Diante do aumento do preço da carne bovina, muitas famílias buscaram outras proteínas ou, no caso das mais vulneráveis, ficaram sem elas. A variação dos preços depende, entre outros fatores, se o país é produtor ou importador de carne bovina (o Brasil direciona 65% de sua produção para o mercado interno, por exemplo), de como as diferentes partes da cadeia produtiva impactam no custo final ou se há algum tipo de controle de preços. Em países como Argentina, Colômbia e Chile, os consumidores registraram aumentos em 12 meses de 61,7%, 27,1% e 26,3%, respectivamente, em julho. Nos meses que se seguiram à guerra, o preço do petróleo e da gasolina atingiu níveis historicamente altos em meio à incerteza internacional causada pelo conflito. Embora mais recentemente os preços tenham desacelerado a alta, o custo para as famílias continua alto. Para mitigar os efeitos do aumento do custo da gasolina e do diesel, os governos intervêm por meio de mecanismos como subsídios diretos, redução de impostos ou gestão de preços por meio de empresas estatais. Chile, Colômbia e Peru têm um fundo de estabilização de preços que busca suavizar as flutuações. O preço do açúcar desacelerou sua alta nos últimos cinco meses embora ainda represente um peso para muitas famílias na América Latina. No ano passado, a Argentina registrou um aumento de 136% e o Peru, de 43,6%. No Brasil, o maior produtor mundial de cana-de-açúcar, respondendo por mais de 30% do mercado global, o item teve alta destacada no ano passado devido à falta de chuvas. Na América Latina, outros produtores de destaque são o México e a Colômbia. O aumento do valor da ração de frango tem sido um dos fatores determinantes para a alta do produto. Alimento para aves (especialmente milho e soja) responde por cerca de 70% da cadeia produtiva avícola. A troca da carne bovina, também inflacionada, por frango também representou um elemento de pressão. Os grãos são alguns dos produtos cujo valor sofreu um dos maiores aumentos devido à guerra na Ucrânia, país que ficou conhecido como "o celeiro da Europa". Graves surtos de gripe aviária nos Estados Unidos e na França reduziram a oferta mundial de ovos, enquanto a guerra na Ucrânia interrompeu as exportações para a Europa e o Oriente Médio. O valor do produto também foi influenciado pela escassez de fertilizantes (usados para plantar os grãos que servem de ração das aves) e pelo alto preço do combustível. E a isso se soma a situação dos mercados locais. No Peru, por exemplo, o aumento do custo do produto teria sido impulsionado pela queda na produção nacional de milho duro, principal alimento das galinhas. O aumento do preço dos ovos está atingindo mais fortemente as famílias mais vulneráveis ​​que dependem deles como substituto da carne e única fonte de proteína de baixo custo. (*Gráficos elaborados por Cecilia Tombesi).
2022-09-18
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'Panini criou um monstro': a agitação que as figurinhas da Copa causam no Brasil e na América Latina
Rodrigo Condori tem 10 anos e está animado. Esse pequeno argentino, fanático por futebol, está ansioso pela Copa do Mundo de 2022 que acontece no Catar e começa no mês de novembro. Enquanto isso ele coleciona as figurinhas do álbum que é vendido pela empresa Panini, uma tradição que acontece a cada quatro anos antes do início do torneio. "Todos os meus colegas estão colecionando figurinhas e trocamos as repetidas na escola", disse ele à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC. Rodrigo não sabe exatamente quantas figurinhas tem, mas afirma que são mais de 260. Para completar o álbum neste ano são necessárias 670. Fim do Matérias recomendadas O problema é que na Argentina está difícil encontrar as figurinhas. Seu pai, Abraham, diz que é uma missão quase impossível. "Ficamos três horas na fila com um amigo e compramos 100 pacotes. Agora não tem mais", conta. A falta de figurinhas na Argentina chegou a motivar até um protesto no final de agosto em frente aos escritórios do distribuidor oficial da Panini e inflacionou os preços nos mercados paralelos. Isso vem ocorrendo em vários países da América Latina. O grupo Panini, fundado em 1961, com sede em Modena, Itália, é o fabricante oficial do álbum da Copa. A empresa é referência no mercado de figurinhas — principalmente para crianças — na Europa e na América Latina e possui filiais e distribuidores oficiais em várias partes do mundo. Desde 1970, a empresa fabrica o álbum onde os colecionadores podem colar as figurinhas de 49 x 65 mm dos atletas das 32 equipes participantes do torneio, além dos estádios, da taça, do mascote e da bola oficial. Os pacotes vêm com 5 unidades para completar as 80 páginas do álbum. A BBC News Mundo solicitou números de vendas à empresa para ter uma dimensão do impacto do negócio, mas não obteve resposta. O interesse em completar o álbum da Copa do Mundo varia nos países da região. "Como a Colômbia não se classificou para a Copa do Mundo, então a febre é menor", diz o jornalista colombiano da BBC Mundo Alejandro Millán. Brasil, Argentina, Equador, Uruguai, México e Costa Rica são os países latino-americanos que disputarão a Copa do Mundo no Catar 2022. Em algumas ruas e feiras, principalmente em Montevidéu, são montadas barracas improvisadas para trocar repetidas, e nos intervalos escolares o assunto chama a atenção. Tem até pais que trocam figurinhas no trabalho em nome dos filhos. Um uruguaio criou um aplicativo para facilitar a troca de figurinhas. No Brasil, o Procon de São Paulo pediu na semana passada à Panini local informações sobre a distribuição de álbuns e figurinhas após receber 432 reclamações sobre falta dos produtos. Entre outras coisas, a empresa foi consultada sobre o volume de material vendido, preços e prazos de distribuição, bem como as respostas sobre reclamações por falta ou atraso na entrega. A Panini, que tem até sexta-feira (09/09) para responder à entidade pelos direitos do consumidor, disse à TV Globo que o tamanho do Brasil apresenta desafios logísticos. A empresa afirma que ampliou as vendas online e acordos com o varejo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas talvez o caso mais marcante tenha acontecido em Buenos Aires. "O que acontece nesta Copa não vi na da Rússia, Alemanha, nem dos Estados Unidos", afirma a BBC Mundo Claudio Páez, que há 30 anos tem uma banca de revista no bairro de Almagro. Ele diz que os clientes fazem fila e os pacotes e os álbuns de figurinhas se esgotam em poucas horas. "As pessoas estão nervosas, desesperadas", diz. O dono da banca acredita que o grande interesse se deve ao fato de que "a seleção argentina gera entusiasmo e há esperança. É um povo que ama muito o futebol, e com a magia proporcionada por Messi a 100%, tudo explodiu". Mas reconhece que "é difícil entender este fenômeno porque as pessoas não têm o que comer, estamos vivendo uma situação econômica muito ruim". A Argentina enfrenta uma crise que culminou numa inflação anual de 71% em julho passado, a maior em 20 anos. No tuíte abaixo, o vice-presidente da associação de donos de bancas na Argentina pede que a Panini não comercialize as figurinhas em outros canais. "Alguns compram as figurinhas em grande quantidade [e depois revendem]. Assim, a Panini criou um monstro", diz Páez. O preço sugerido de um pacote de figurinhas na Argentina é de 150 pesos (aproximadamente R$ 5,50, no preço oficial), mas, com a falta nas bancas, o valor chega até dobro ou o triplo nos mercados paralelos. Pode ser que a agitação, a escassez e até os protestos sejam uma característica muito argentina. Mas o fenômeno inflacionário dos cromos chega a diversos países. Na Colômbia, por exemplo, o envelope passou de cerca de 2.000 pesos colombianos (cerca de R$ 2,40) na Copa da Rússia para 3.500 pesos colombianos (R$ 4,14) agora, informa o jornal El Espectador. No Brasil, cada pacote é vendido por R$ 4, o dobro do que era quatro anos atrás. Isso eleva o custo para completar o álbum, segundo o site da Bloomberg, para R$ 3.865 — uma vez e meia a renda média mensal do país, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Em 2018, um matemático da Universidade de Cardiff, no Reino Unido, calculou que são necessárias 4.832 figurinhas em média para completar todas as páginas. No México o preço das figurinhas é de 18 pesos (R$ 4,73). Isso representa 50% a mais que os valores da Copa do Mundo da Rússia em 2018. Na Argentina, a inflação do pacote de figurinhas se aproximou de 1.000% em apenas quatro anos. "Na verdade, estou terminando e é muito caro", diz Alejandro Millán, que mora em Londres. No Reino Unido, de acordo com o especialista em finanças do futebol Kieran Maguire, o álbum oficial pode custar até 883,80 libras esterlinas (R$ 5.355) para ser completado. O analista, entrevistado pelo jornalista da BBC Newsbeat Manish Pandey, diz que o preço de um pacote subiu de 20 pence (R$ 1,21) há muitos anos para 90 pence (R$ 5,45) agora. Por que os preços subiram? Kieran explica que "a Panini tem que pagar um valor de royalties à FIFA". "E eles têm que negociar com as associações de futebol individualmente para obter os direitos de uso da camisa e do escudo. Então é um negócio caro para eles", acrescenta. Mas ele ressalta que é a tradição que mantém as pessoas com o passatempo. "Não há sensação melhor do que colar a última figurinha, especialmente se acontecer antes do início do torneio", diz o especialista. Enquanto isso, na Argentina, Abraham Condori conta que quando criança, no Peru, também colecionava figurinhas para a Copa do Mundo. Agora ele revive o momento com Rodrigo e seus outros filhos, visitando as bancas de Buenos Aires, tarde após tarde, em uma espécie de caça ao tesouro. "Para uma figurinhas, as pessoas podem enlouquecer", diz ele.
2022-09-12
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Como inflação de 70% ao ano na Argentina gera explosão de consumo e pobreza ao mesmo tempo
O supermercado do meu bairro em Buenos Aires costumava abrir às 8h da manhã todos os dias, mas há algumas semanas passou a abrir cada dia mais tarde. Frustrada com esse atraso, um dia reclamei com o caixa pela falta de pontualidade. "Antes de abrir temos que atualizar os preços dos produtos que aumentaram, e a cada dia a lista do que temos de remarcar é mais longa", explicou o funcionário, pedindo desculpas. Se deparar com preços mais caros a cada vez que você vai às compras é uma das consequências de morar em um país com mais de 70% de inflação ao ano, uma das mais altas do mundo. Esse problema não é novidade para os argentinos. Fim do Matérias recomendadas Enquanto em outras partes do mundo os consumidores estão horrorizados porque o aumento do custo de vida chegou a 10% ao ano, como consequência da pandemia e da invasão da Ucrânia pela Rússia, na Argentina, ter números como esses seria um sonho. Por aqui, há uma década, a inflação não fica abaixo de 25% ao ano, e nos últimos anos esse número dobrou. No entanto, nada se compara ao que vivemos este ano, em que problemas internos, aprofundados por problemas externos, levaram a uma aceleração da inflação não vista desde a crise de 2001-2002, que deixou mais da metade da população na pobreza. Desde março, o país vem registrando aumentos mensais de preços superiores a 5%. Em julho a inflação atingiu 7,4%, valor mensal mais alto das últimas duas décadas, e a maioria dos consultores estima que em agosto a alta de preços tenha ficado em torno de 6,5%. Esta é a razão pela qual, nas últimas semanas, as maquininhas de remarcar preços não têm dado conta do serviço. Mas o pior é que poucos preveem que a inflação vá desacelerar. Ao contrário: a última Pesquisa de Expectativas de Mercado do Banco Central da Argentina indica que a projeção de inflação é de 90% até o final do ano. E vários analistas acreditam que o número pode chegar a três dígitos. Mesmo aqueles que têm muita experiência em conviver com a inflação perdem a bússola com esse nível de reajustes. É que uma das consequências mais danosas de ter uma inflação tão alta é que não temos mais o que os economistas chamam de "âncoras", ou seja, referências de preços. Os comerciantes reajustam valores de acordo com o custo que estimam que terão de pagar no final do mês para substituir aquele produto. Alguns reajustam de acordo com a inflação do mês anterior. E não faltam aqueles que aproveitam a confusão generalizada para lucrar, ampliando suas margens de ganho. Por outro lado, há setores que sofreram muito durante a pandemia, como turismo, gastronomia e vestuário, que aproveitam a reabertura da economia e a necessidade de muitos regressarem à vida normal para impor fortes aumentos de preços para recuperar um pouco do tempo perdido. O que isso gera é uma distorção de preços que faz com que os consumidores não saibam mais o quanto as coisas deveriam valer. "Outro dia comprei um par de sapatos infantis online e paguei 13.000 pesos (cerca de US$ 90, considerando a cotação dólar 'oficial', ou US$ 45 no paralelo), o que me pareceu caro", comenta Yanina, uma amiga professora, que não sabe se fez uma compra boa ou ruim. "Depois fui ao supermercado e gastei quase o mesmo só na compra semanal", diz ela. A confusão é ainda maior se você tiver que pagar por um serviço, desde contratar um encanador ou eletricista para consertar um problema na casa, até pintar as unhas ou levar o carro para a oficina. Você não tem a menor ideia do que eles podem cobrar. Vai me custar 3.000 pesos? 5.000 pesos? Ou 10.000? É impossível saber o que é caro e o que é um preço razoável, porque não há nada para comparar. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Dada a falta de âncoras, os argentinos estão mais atentos do que nunca à cotação do dólar, moeda que historicamente tem sido usada como referência e reserva de valor na Argentina. Mas longe de ser uma bússola, a moeda americana se tornou um elemento fundamental da crise atual. Primeiro, porque na Argentina não há uma cotação única do dólar. Hoje temos pelo menos seis (que são as mais usadas) e a diferença entre a cotação mais baixa e mais alta é tão grande que às vezes ultrapassa os 100%. Por que temos seis cotações do dólar? Porque os constantes ciclos inflacionários fizeram com que o peso argentino perdesse grande parte de seu valor, levando à adoção do dólar norte-americano como moeda de reserva, utilizada para realizar grandes transações, principalmente a compra de imóveis. Mas como a Argentina não produz os dólares necessários para suprir a demanda de sua população e economia — dependente de insumos importados para a produção —, os governos impõem controles de capital — "cepos", como são chamados aqui — e fixam a cotação do dólar. Isso cria um dólar "oficial", de menor cotação, e toda uma gama de outros dólares — o "ahorro" (poupança), o "tarjeta" (cartão), o "bolsa" —, e o mais conhecido e acompanhado por todos: o "blue", nome dado aqui ao dólar paralelo, comumente conhecido em outros lugares como "câmbio negro". Esse dólar "blue", que sobe e desce dependendo do humor do mercado, também é muito sensível às crises políticas: subiu quase 10% em um único dia no início de julho, após a renúncia do ministro da Economia Martín Guzmán. E este é o segundo fator que está causando a escalada inflacionária. Porque, sendo a principal referência de preço para muitos — especialmente os empresários —, quando o "blue" sobe, quase todos os preços sobem. E quando a cotação desse dólar dispara — como nos últimos meses, quando o dólar "oficial" dobrou de valor em relação à moeda argentina — abre-se uma brecha que distorce a economia, trazendo mais pressão para a desvalorização do peso. Todas essas complexidades da economia argentina fazem com que os locais tenham que se tornar quase especialistas em economia para fazer o melhor uso possível de seus salários. Uma das manobras financeiras mais populares é o chamado "purê". Consiste em comprar US$ 200 ao preço "oficial" — o máximo mensal permitido pelo governo, que aplica sobre o valor 65% de imposto — e vendê-los em "cuevas" (instituições financeiras ilegais, muito comuns aqui) a um valor "blue", gerando uma diferença suculenta que multiplica o rendimento. Embora a inflação afete a vida de todos os argentinos, o impacto é muito desigual dependendo do grupo em que você está. Quem tem salários reajustados para repor a inflação vive uma realidade, e a grande maioria, que perde poder aquisitivo mês a mês, vive outra. Os primeiros são os grandes responsáveis pela explosão de consumo que a Argentina vive, fenômeno que surpreende muitos, que se perguntam como é possível que os restaurantes estejam lotados e os shoppings cheios em meio à crise. Ou que o grupo britânico Coldplay tenha conseguido esgotar dez shows no enorme estádio do River Plate, um recorde absoluto para este país. A explicação não é apenas que ainda existam mais de 20% da população com renda alta ou média-alta. Mas também que muitos deles, e mesmo pessoas com rendimentos mais modestos, optam por consumir em vez de poupar. "As pessoas que têm pesos tentam se livrar porque eles 'derretem'", explica o economista Santiago Manoukian, da consultoria Ecolatina, referindo-se à alta inflação que corrói o valor da moeda local. Com acesso limitado ao seu instrumento de poupança favorito, o dólar — por conta do limite "oficial" de US$ 200 e da cotação recorde do "blue" —, muitos optam por comprar bens duráveis para manter o valor de seu dinheiro, ou gastam em atividades que lhes dão prazer, como comer fora, assistir a um show ou viajar. Isso permitiu à Argentina manter um bom nível de atividade econômica, com crescimento superior a 6% no primeiro semestre do ano e baixo desemprego, de 7%. Mas do outro lado dessa opulenta Argentina há milhões de pessoas que não conseguem sobreviver e cada vez mais têm que apertar o cinto, até mesmo cortando produtos básicos. Os principais prejudicados pela inflação são as pessoas mais pobres, que hoje representam quase 40% da população argentina. Eles costumam ter empregos informais, que não são protegidos pelas "paritarias", como são chamadas as negociações setoriais que definem reajustes salariais para compensar a inflação. A maior parte desta população mais vulnerável sobrevive com a ajuda do Estado, mas essa assistência também não consegue acompanhar o aumento dos preços. No entanto, mesmo os trabalhadores com carteira assinada perderam muito poder de compra devido à inflação. Porque nos últimos anos, enquanto o custo de vida disparou, os salários foram na direção oposta. A queda começou durante o governo de Mauricio Macri (2015-2019) e já dura cinco anos consecutivos, o que significa que hoje a maioria dos argentinos tem renda menor do que no final de 2017. Segundo a consultoria LCG, a perda de poder aquisitivo nos últimos cinco anos foi de 23% em média. Mas não é só a inflação alta que explica a queda dos salários. Também mudou a forma como o bolo é dividido, ou seja, a distribuição da riqueza. Em 2017, o salário dos trabalhadores representava 52% da renda nacional e os lucros dos empresários, 39%. A partir de então, a relação de forças começou a se inverter e, em 2021, os rendimentos dos trabalhadores representavam apenas 43% da riqueza nacional, e o capital, 47%, segundo estudo da Cifra, centro de estudos da Central de Trabalhadores da Argentina (CTA). O resultado é o fenômeno que mais preocupa muitos aqui: o dos trabalhadores pobres. Historicamente, na Argentina, considerava-se que a diferença entre ser pobre e não ser era conseguir um emprego formal. Mas hoje o salário mínimo não compra metade de uma cesta básica, conjunto de alimentos e bens essenciais necessários a uma típica família de quatro pessoas. Ou seja, mesmo um casal com empregos formais não tem garantia de uma renda mínima para não cair na pobreza. Isso levou quase um em cada cinco assalariados a serem pobres e um terço de todos os argentinos ocupados a viverem na pobreza, segundo pesquisas realizadas em 2021 pelo Centro de Estudos Distributivos, Laborais e Sociais (Cedlas) da Universidade Nacional de La Plata e o Observatório da Dívida Social Argentina da Universidade Católica Argentina. É algo que nunca vi antes neste país, e um problema que o novo ministro da Economia, Sergio Massa, pretende mitigar dobrando entre setembro e novembro o abono que os 1,1 milhão de trabalhadores formais de salários mais baixos recebem por criança. Como argentina nascida há quase meio século, vivi muitas das crises econômicas mais dramáticas atravessadas por este país, que há apenas cem anos era um dos mais prósperos do mundo. Vivi inflações ainda piores do que a atual — em 1989, quando cursava o ensino médio, a alta do custo de vida atingiu seu recorde, acima de 3.000% ao ano. E na primeira década deste século, fui uma entre milhares de jovens que se mudaram para o exterior em busca de melhores oportunidades, enquanto meu país mergulhava no pior desastre de sua história. Embora o presidente Alberto Fernández, que fez parte do governo que tirou a Argentina dessa crise, garanta que o país vai se reerguer, como então, é difícil manter o otimismo. É verdade que a situação internacional, em particular devido à guerra entre Rússia e Ucrânia, fez com que os grãos argentinos voltassem a valer fortunas — a valorização das commodities foi uma das chaves que permitiram a recuperação da economia a partir de 2003. Também dá esperança que, mesmo com previsão de desaceleração econômica para o segundo semestre, organismos internacionais como Banco Mundial e FMI (Fundo Monetário Internacional) concordem que o país deva fechar 2022 com crescimento próximo de 4%, acima da média regional. Mas não posso deixar de me perguntar como poderá se reerguer um país em que 45% da população depende de auxílios estatais, segundo dados do Observatório da Dívida Social. E acima de tudo: que futuro espera a Argentina quando mais da metade de suas crianças são pobres e meio milhão abandonou a escola após o prolongado fechamento do ensino presencial durante a pandemia, como advertiu no começo do ano letivo a Associação Civil pela Igualdade e Justiça (ACIJ).
2022-09-11
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'Expurgo' no comando e limite a bombardeios: como medidas de Gustavo Petro abalam militares na Colômbia
A política de defesa e segurança do novo presidente da Colômbia, Gustavo Petro, foi descrita como "ambiciosa", "ousada" e, para os mais críticos, "provocativa". Petro chegou ao poder anunciando ter dois propósitos em mente: "paz total" e "segurança humana". O primeiro consiste em negociar e firmar tratados de paz com os quase 30 grupos armados do país. O segundo tentará oferecer segurança não por meio da vigilância ou perseguição de criminosos, mas por meio de oportunidades, acesso a serviços básicos e infraestrutura. O adjetivo ambicioso é, sem dúvida, o que tem mais consenso. Petro chegou à Presidência após uma carreira política virtuosa denunciando corrupção e violações de direitos humanos. Seu plano para a paz na Colômbia vai nessa linha: deixar para trás as estratégias de guerra e persecutórias herdadas da Guerra Fria, promover um debate internacional sobre a legalização das drogas e transformar a raiz do modelo econômico desigual que, segundo ele, promove a discórdia no país. Fim do Matérias recomendadas O agravamento da violência na Colômbia continuou no mês em que Petro chegou ao poder: no período, foram registrados 12 dos 73 massacres que foram relatados até agora neste ano e 13 líderes sociais foram assassinados. Na sexta-feira, uma emboscada contra a polícia deixou sete agentes mortos e aumentou a pressão sobre um governo que, segundo especialistas, não esclarece como vai conseguir a paz em meio à guerra que o Estado ainda trava contra grupos guerrilheiros e narcotraficantes, apesar do acordo de paz assinado com as Farc em 2016. Para seu projeto, Petro precisa das Forças Armadas ao seu lado, mas suas primeiras iniciativas no âmbito militar e policial parecem ter gerado mais preocupação do que confiança. "Tudo o que aconteceu neste primeiro mês foi uma montanha-russa que deixou a todos sem saber para onde vamos", diz John Marulanda, um influente coronel da reserva ativa do Exército. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O especialista em segurança Jorge Mantilla aponta para uma preocupação semelhante. "Há um alto grau de improvisação e desarticulação nos anúncios de medidas, e isso dificulta a relação com a Força Pública (instituição que engloba forças militares e a Polícia Nacional), cujo papel na estratégia de segurança não é claro (...) A segurança humana, que em tese propõe ampliar a oferta de bens e serviços do Estado, ultrapassa as atribuições daquela instituição." "O conflito na Colômbia mudou e foi preciso repensar a estratégia do Estado para enfrentá-lo. As primeiras decisões de Petro foram necessárias, enviam mensagens claras sobre as prioridades em relação ao tema e tiveram que ser tomadas rapidamente, em um momento de apoio popular, político e de legitimidade." "A ideia de segurança humana é uma iniciativa positiva", acrescenta Alejo Vargas, especialista em segurança e violência. "Mas a primeira parte do governo deve estar focada na segurança integral que inclua a segurança pública nas regiões (conflagradas), porque se não houver uma resposta contundente do Estado e da sociedade rechaçando a violência contra a polícia, vamos continuar na lógica comum desses grupos de testar o governo para ver como ele reage." Os assassinatos dos sete policiais podem criar mais condições para falar em paz, mas também aumentar o ceticismo em relação a Petro dentro das Forças Armadas. Desde que anunciou seu ministro da Defesa — Iván Velásquez, um jurista dedicado aos direitos humanos que denunciou crimes militares durante anos —, Petro fez de sua agenda de paz a prioridade número um. Na semana passada, ele apresentou um amplo projeto legislativo para avançar no tema. Até a aproximação com o governo da Venezuela, onde algumas guerrilhas se refugiam, pode ser vista como parte dessa estratégia. Abaixo, entenda as quatro medidas de Petro em segurança e defesa, inéditas na história recente desse país em guerra, que abalaram o setor militar. Todos os presidentes colombianos tendem a reorganizar as estruturas hierárquicas das Forças Armadas assim que chegam ao poder. Nenhuma alteração, porém, foi tão grande quanto a de Petro. Em menos de um mês, pelo menos 70 generais e coronéis do Exército e da Polícia — mais da metade — foram removidos de seus cargos. Alguns porque são acusados ​​de crimes; outros, sem explicação. Os anúncios têm sido feitos aos poucos, sem mecanismos formais. Houve um grupo que foi informado de sua demissão à meia-noite. Outro cuja nomeação logo foi suspensa. A preocupação dos peritos é a improvisação e o descaso com os mecanismos formais, tradicionais e acadêmicos que costumavam definir as diretrizes para afastamentos e nomeações. No lugar dos que foram removidos, Petro nomeou coronéis e brigadeiros que apoiaram o processo de paz com os guerrilheiros das Farc firmado em 2016, que não são acusados ​​de crimes e que, pelo menos aparentemente, não respondem a nenhuma das questionadas ​​estruturas de poder que administraram as Forças Armadas por décadas. A mídia local também informou que o interesse de Petro é promover mais mulheres para a cúpula. O resultado é que, neste momento, a Polícia Nacional, entidade que Petro quer retirar do Ministério da Defesa, tem apenas oito generais para liderar quase 200 mil membros. Após o ataque à polícia na sexta-feira, Petro anunciou que cerca de 2.000 agentes da Polícia Nacional da Colômbia serão realocados para partes menos violentas do país. O ministro Velásquez anunciou na semana passada que uma operação crucial na estratégia que os militares têm usado para enfrentar grupos armados ilegais será reformulada: os bombardeios. O objetivo do ministro é evitar que civis morram em ataques a supostos guerrilheiros — especialmente crianças, que muitas vezes são recrutadas à força e usadas como escudo. Um relatório do Instituto Médico Legal estima que um em cada três bombardeios matou menores de idade nos últimos anos. "Os menores recrutados são vítimas", disse Velásquez em entrevista coletiva. "Portanto, qualquer ação militar que seja realizada contra organizações ilegais não pode colocar em risco a vida dessas vítimas da violência", assegurou. A medida mostra preocupação com os direitos humanos. O Exército detalhou que os bombardeios não vão parar, mas terão novos protocolos. No entanto, especialistas dizem que na mentalidade militar não é assim: para eles é normal que haja danos colaterais e consideram o bombardeio como a arma mais eficaz para encurralar os guerrilheiros. Alguns dos líderes históricos das Farc — Alfonso Cano, Raúl Reyes e Mono Jojoy — foram mortos em ataques aéreos. O novo governo também disse que pretende reformar — mas não eliminar, como alguns pedem — o Esquadrão Móvel de Choque da Polícia (Esmad), órgão preparado para conter protestos. Durante a agitação social de 2019 e 2021, o Esmad foi questionado pelo uso indevido da força e por ter causado a morte de dezenas de manifestantes. A ONU responsabilizou a polícia por 28 mortes nos protestos de 2021. Alguns especialistas da época avaliaram que o órgão atuava sob a lógica do conflito armado, onde todo dissidente do sistema era visto como insurgente, e por isso era necessário reformar a entidade com diretrizes mais civis do que militares para enfrentar as situações de operação. O novo diretor da Polícia, general Henry Sanabria, deu algumas pistas do que pode vir a ser essa reforma: cores menos intimidantes que o preto nos uniformes dos agentes, tanques convertidos em ambulâncias e um novo nome para o esquadrão, que passaria a se chamar Unidade de Diálogo e Acompanhamento à Manifestação Pública. "Tem que haver uma mudança, claro, esclarecendo que toda força policial requer uma unidade que possa conter uma manifestação que se torne violenta", afirma Sanabria. Um comunicado interno das Forças Armadas noticiado nesta semana pelo site La Silla Vacía assegurou que será implementada a Doutrina de Damasco, um código de conduta civil para a instituição idealizado pelo então presidente Juan Manuel Santos após a assinatura da paz com as Farc. Outra política que pode ser uma diferença substancial entre o Petro e os governos anteriores tem a ver com o narcotráfico, problema que historicamente vem sendo abordado a partir das áreas de segurança e defesa em aliança com os Estados Unidos. "A paz é possível se a política contra as drogas vista como uma guerra for mudada por uma política de forte prevenção do consumo nas sociedades desenvolvidas", disse Petro em seu discurso de posse em 7 de agosto. O que parece uma política de saúde é, no entanto, uma mudança no campo militar, pois foi anunciada a suspensão dos programas de erradicação forçada das lavouras de coca e dos estudos para retomar a pulverização aérea de plantações com glifosato. Ambas são políticas que contrastam com o governo de Iván Duque, que em geral estava mais em sintonia com a maioria das diretrizes militares. Petro, no entanto, disse que "suspender a fumigação aérea para cultivos ilícitos não é permissão para semear mais plantas de coca". "O PNIS (programa de substituição de cultivos ilícitos) deve ser implementado imediatamente, junto com substituição de terras e projetos de agroindustrialização de cultivos lícitos em propriedade do campesinato", assegurou o presidente. Além da conveniência ou não dessas novas medidas, especialistas mostram-se céticos quanto à forma como foram anunciadas, isso porque apontam que houve ausência de diálogo prévio com o setor militar e, sobretudo, falta de um plano que permita entender como todas essas novas iniciativas serão articuladas. Enquanto isso, a violência no país continua aumentando. Mantilla, da Fundação Ideias para a Paz, conclui que "se Petro não adotar rapidamente uma política de segurança clara acompanhada de planos de intervenção territorial diferenciados em que a Força Pública tenha um papel específico, suas boas intenções serão apenas boas intenções".
2022-09-07
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62814436
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Vídeo, Como Porto Rico virou território dos EUADuration, 7,03
Culturalmente, Porto Rico é tão latino-americano quanto qualquer outro país da região. No entanto, a ilha é um território pertencente aos Estados Unidos há mais de 120 anos. Depois de pertencer à Espanha por quase quatro séculos, Porto Rico passou a ser dos EUA no fim do século 19. Ou seja, nunca foi um país independente. Para alguns, trata-se da colônia mais antiga do mundo. Neste vídeo, Camilla Costa explica como isso aconteceu e qual é o status atual da ilha – que tem Constituição e um limitado governo próprio, mas que ainda têm suas principais questões decididas em Washington. Assista e confira.
2022-09-07
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62819136
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Chile: o que acontece agora após rejeição da nova Constituição
O resultado acachapante contra o texto da nova Carta Magna causou surpresa entre políticos e analistas. A vitória do voto contra era esperada, mas ninguém previu que fosse por margem tão ampla, reconheceram analistas ouvidos pela BBC News Brasil. A participação nas urnas — 13 milhões de eleitores — também foi recorde, com a implementação do voto obrigatório. O plebiscito para substituir a atual constituição — de 1980, do regime de Augusto Pinochet, e que recebeu reformas no governo de Ricardo Lagos em 2005 — foi convocado após os fortes protestos de 2019 no país. Em 2020, havia sido realizado um plebiscito para saber se os chilenos queriam mesmo uma nova Carta Magna. Na ocasião, quase 80% responderam a favor de haver um novo texto. Mas agora a proposta de Constituição Pública da República, redigida pela Convenção Constitucional, foi rejeitada. Fim do Matérias recomendadas A revelação das urnas do plebiscito de domingo desperta a seguinte pergunta: o que acontece após o voto contra? Em discurso à nação, na noite de domingo, o presidente Gabriel Boric disse que o resultado mostrou que os chilenos ficaram insatisfeitos com a proposta realizada pela Convenção Constitucional, mas deixou claro que o processo para uma nova Carta Magna deve continuar. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Me comprometo a fazer todo o esforço para construir, em conjunto com o Congresso Nacional e a sociedade civil, um novo itinerário constituinte que nos entregue um texto que, a partir dessa aprendizagem, consiga interpretar a maioria dos cidadãos", disse Boric. Nesta segunda-feira, ele deverá se reunir com os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado, além de se encontrar com os representantes dos partidos do Congresso Nacional. "Hoje, o Chile demonstrou ser exigente e confiar na democracia. Temos, todos e todas, que estar a altura deste novo momento. Por isso, peço, de coração, a toda a cidadania, independentemente da opção que tenha tomado no plebiscito, união na construção do futuro." A constituição que continua em vigor é a atual, de 1980. O governo não tem maioria dos votos no Congresso Nacional. A oposição, reunida em setores da centro-direita, na direita e na extrema direita, tem a maior quantidade de cadeiras. O presidente da Câmara, o deputado Raúl Soto, do Partido Pela Democracia (PPD), concordou com o presidente ao dizer que "devemos construir uma nova rota constitucional, com todos os chilenos sentindo-se incluídos e abrindo negociações no Congresso Nacional". Os apoiadores do novo texto dizem que os artigos do projeto de constituição não foram bem comunicados à população e acusam uma campanha de "fake news" (desinformação). Entre eles está a senadora Isabel Allende, filha do ex-presidente socialista Salvador Allende, que morreu no golpe liderado por Pinochet em 1973. Analistas ouvidos pela BBC News Brasil disseram que o processo constitucional deverá ser retomado, mas após acordo de Boric com os congressistas. "Vai ser aberto um novo processo constitucional. Mas esse processo ainda vai começar a ser negociado a partir das conversas de Boric com os partidos políticos. Deverá ocorrer uma simbiose de várias ideias, mantendo a paridade de gênero, a visão feminista e o respeito às minorias e aos povos originários, além de maior clareza sobre o setor privado e seus limites", disse o analista chileno Guillermo Holzmann, da Universidade de Valparaiso. Para ele, ao ressaltar, em seu discurso, a importância do Congresso Nacional, Boric abrirá um novo processo constituinte e, provavelmente, uma nota etapa em seu governo, com mudança ministerial e possíveis novas alianças partidárias. "O presidente abrirá um novo processo constituinte, mas totalmente institucionalizado e com os partidos políticos e as instituições do Estado. Quer dizer, deixa de lado os que não tenham representação política no Congresso", disse Holzmann. Ele lembrou que Boric apoiou a realização do plebiscito, apesar de seus partidários não terem seguido o mesmo caminho, na ocasião, o que agora poderia lhe dar "maior liberdade" para seguir adiante com o processo, cujas regras e etapas ainda dependem das suas reuniões e conversas com o Congresso Nacional. "O resultado do plebiscito de domingo deixa Gabriel Boric debilitado frente à sua coalizão política, mas, ao mesmo tempo, ele sai fortalecido para conduzir um processo institucional que, finalmente, leve à uma nova constituição. E já há conversas entre os partidos da centro-direita para dar respaldo a ele neste sentido", afirmou. O ex-candidato presidencial Ricardo Israel, ex-professor e analista político, entende que Boric "foi um dos grandes derrotados" já que "uniu o destino do seu governo à opção que acabou perdendo" no plebiscito de domingo. E o que acontecerá a partir de agora na sua visão? "As reformas voltam a ser deliberadas pelo Congresso. E tudo indica que haverá um grande acordo (político). Para se fazer uma nova Convenção Constitucional será necessário uma nova reforma constitucional (que a habilite). E o novo texto constitucional deverá ser redigido a partir de acordo e não de imposição e aprovado ou rejeitado em outro plebiscito", afirmou. Israel concorda com Holzmann que o reconhecimento constitucional aos povos indígenas, "através da multiculturalidade em vez da plurinacionalidade", e a regionalização do Chile, que ele define como muito centralizado, devem fazer parte dos novos entendimentos. A professora e especialista em movimentos sociais e movimentos feministas, Lucia Miranda, da Universidade Católica Silva Henriques, de Santiago, concorda que será preciso um acordo nacional para os próximos passos porque o governo não tem maioria no Congresso. Para ela, após o resultado e sem o governo ter a maioria no Congresso, a direita poderá acabar tendo papel maior do que se esperava na atualidade chilena. Em um programa de entrevistas da emissora de televisão TVN, no início da madrugada desta segunda-feira, políticos de diferentes tendências discutiram o resultado e o quais seriam os possíveis próximos passos. "Todos nós políticos temos a responsabilidade de caminhar para redigir um novo texto constitucional. E ainda nos falta entender os motivos para a vitória da rejeição neste domingo", disse o deputado Gonzalo Winter, da Convergência Social, de esquerda. Para a presidente do Partido Socialista, Paulina Vodanovic, o resultado "não foi um triunfo da direita" e, para ela, as preocupações dos chilenos, como a economia, a falta de moradias, a educação, a saúde e o sistema de aposentadorias, continua em vigor. Por sua vez, o presidente do partido UDI, de direita, Javier Macaya, disse que Boric "não pode se desvincular do resultado do plebiscito", mas apoia um acordo político e "que seja rápido", ainda nesta semana, para que os próximos passos sejam definidos.
2022-09-05
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62792789
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Vídeo, O ambiente de tensão e rachas políticos em que ocorre ataque contra Cristina KirchnerDuration, 6,12
O ataque contra a vice-presidente Cristina Kirchner é visto por muitos como a expressão mais grave de um processo tensão crescente na Argentina. Um homem de origem brasileira tentou atirar contra Cristina diante do prédio onde ela mora, em Buenos Aires. A arma não disparou. Segundo a polícia, ele segue páginas extremistas nas redes sociais e guardava munição em casa. A Argentina está há quase duas décadas sob forte polarização. De um lado estão os kirchneristas, apoiadores da corrente populista que governou o país entre 2003 e 2015 e integra o peronismo, movimento que predomina na política do país há sete décadas. Cristina é um símbolo por ser viúva de Néstor Kirchner e ela própria ex-presidente. Do outro estão anti-kirchneristas, em especial o grupo alinhado ao ex-presidente de centro-direita Mauricio Macri, que repudiou o ataque. A animosidade chegou ao auge depois que um promotor pediu que Cristina seja condenada a 12 anos de prisão e impedida de ocupar cargos públicos por um suposto esquema de corrupção. Desde então, o bairro onde ela mora, a Recoleta, vinha sendo palco de protestos contra e a favor. Em 27 de agosto, um deles terminou com 14 policiais feridos e 3 pessoas detidas. Neste vídeo, nossa repórter Camilla Veras Motta explica em três pontos o ambiente de tensão que, para muitos no país, culminou com a ataque frustrada a Cristina Kirchner. Confira.
2022-09-05
https://www.bbc.com/portuguese/media-62793241
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Chile rejeita proposta de nova Constituição
Por ampla maioria, a população do Chile decidiu neste domingo rejeitar a proposta de uma nova Constituição para o país. Por volta das 22h20 (horário de Brasília), com 99,4% das mesas apuradas, a rejeição ao texto tinha quase 62% dos votos contra 38% da aprovação. No início da noite, a vitória da rejeição era vista como irreversível. O resultado mantém em aberto o processo de mudança constitucional que se apresentava como solução para resolver as tensões sociais do país. Depois de aprovar a redação de uma nova Constituição (em 2020) e eleger os membros da Constituinte para escrevê-la (em 2021), o país finalmente decidiu, por meio de um referendo obrigatório, rejeitar a proposta da nova Carta Magna. O resultado da Constituinte, formada igualmente por mulheres e homens, foi um texto composto por 178 páginas, 388 artigos e 54 regulamentos transitórios. Fim do Matérias recomendadas Porém, o texto foi amplamente rejeitado na votação. Em 2020, cerca de 80% da população votou pela alteração da Constituição de 1980, feita durante a ditadura militar de Augusto Pinochet (1973-1990). A nova proposta nasceu como resposta aos protestos que tomaram conta do país a partir de 2019. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A coalizão governista liderada pelo presidente Gabriel Boric havia proposto mudanças mesmo que a Constituição fosse aprovada, na tentativa de mitigar os temores dos partidários de rejeição de que certos pontos do texto eram "radicais". Boric, que defendeu a aprovação, convocou todos os partidos para dar continuidade ao "processo constituinte" a partir de segunda-feira. Com a reprovação ao texto, a Constituição de 1980 vai permanecer em vigor, em contraste com a esmagadora maioria (quase 80%) que votou pela sua substituição. Espera-se agora que haja algum tipo de acordo entre os setores políticos para modificar o texto atual ou propor a redação de outra versão da Carta Magna. Após o anúncio do resultado, Boric fez um pronunciamento à nação. "O povo chileno não ficou satisfeito com as propostas e decidiu rejeitá-las claramente. Esta decisão exige que as instituições trabalhem com mais empenho e diálogo até chegarem a uma proposta que dê confiança e nos una como país", disse Boric, eleito presidente em dezembro de 2021. "Não esqueçamos por que chegamos aqui: o mal-estar ainda está latente e não podemos esquecê-lo", acrescentou Boric, que prometeu liderar "um novo itinerário" para chegar a um texto "que consiga interpretar uma ampla maioria de cidadãos". "Apelo a todas as forças políticas para que coloquem o Chile à frente e concordem o quanto antes com um prazo para um novo processo constitucional. O Congresso Nacional deve ser o principal protagonista", acrescentou o presidente.
2022-09-04
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62791155
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'Paraíso do Diabo': as atrocidades do 'holocausto da borracha' na Amazônia colombiana
"Quando passava um avião, minha avó ficava com medo e nos dizia: 'Onde vamos nos esconder? Veja onde há um buraco grande porque aqueles que vão nos queimar estão chegando.'" O que a professora Odilia Mayoritoma relata é uma espécie de milagre. Sua avó foi uma das poucas pessoas que conseguiram sobreviver ao que é conhecido como o "holocausto da borracha": um período de mais de 30 anos, iniciado em 1879, em que a indústria da borracha escravizou povos indígenas da Amazônia até serem quase dizimados. Os números não são muito claros. Alguns estimam em 100 mil e outros em 50 mil a população nativa naquela época. O que se sabe é que hoje sobrevivem menos de 4 mil. Foi um período sombrio, ignorado por muitos, em que uma árvore, um empresário, uma casa, um sequestro, uma expedição e um roubo determinaram o destino da Amazônia colombo-peruana e de seu povo. Fim do Matérias recomendadas A BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, viajou para La Chorrera, na Colômbia, para entender a história e saber como os povos que habitam hoje essa região conseguiram sobreviver. "Em toda esta floresta não há um tronco saudável. Eles estão cheios de nós, mas se você avançar dois, três ou quatro quilômetros, lá você vê", diz o cacique Calixto Kuiru, enquanto caminha pela selva perto de sua maloca, localizada na vila de Puerto Milán. Ele se refere às seringueiras que cresceram selvagens, durante séculos, na Amazônia. Elas também são conhecidas como "árvores que choram" porque quando um corte linear é feito em seu tronco, elas soltam gotas de um líquido branco leitoso. Os povos indígenas foram os primeiros a descobrir esse líquido e o utilizaram para fazer objetos como bolas e bastões. Mas eles tinham um problema. O material era muito volátil: com o calor derretia e com o frio endurecia. A solução só apareceu em 1839 quando, nos Estados Unidos, foi descoberta a vulcanização; um processo químico que transforma a borracha em um material resistente às condições ambientais. Décadas depois, surgiram os pneus e com eles bicicletas e carros. Foi assim que o líquido leitoso se tornou o tesouro da economia no final do século 19. E por isso, também, os troncos das árvores estão cobertos de cicatrizes em meio à exploração excessiva. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Julio César Arana, empresário e político peruano, assumiu o negócio de exportar borracha da Amazônia e construiu uma espécie de monopólio no coração da selva. Era como uma grande fábrica de distribuição. A borracha colhida das árvores era transportada pelos rios e de lá saía pelos portos da Amazônia: Iquitos no Peru e Manaus no Brasil, a caminho da Europa. Arana conseguiu sua façanha, principalmente, por três motivos. O primeiro é que se apropriou do Putumayo, uma parte da Amazônia localizada entre a Colômbia e o Peru, que na época não pertencia oficialmente a nenhum dos dois países. A segunda é que conseguiu capital inglês para financiar a operação. Na Inglaterra, não apenas lhe deram dinheiro, mas também forneceram mão de obra de suas colônias. Enviaram trabalhadores de Barbados, país insular da América Central, para servirem como capatazes. E a terceira e mais macabra, é que ele estabeleceu um regime de terror para dobrar os indígenas e forçá-los a serem seus escravos. O negócio de Arana dependia totalmente do trabalho indígena, porque as seringueiras estão espalhadas pela floresta, e eram eles que conseguiam atravessá-la sem se perder e sem morrer pelas condições climáticas ou pelos perigos representados por algumas plantas e animais. A Casa Arana foi um dos principais centros de coleta de borracha e estava localizada às margens do rio Igará Paraná em La Chorrera. "Essa era a praça onde chegavam os indígenas de várias partes da floresta, no dia em que a carga era pesada, dia em que também era embarcada", conta Edwin Teteye, indígena Bora. Nessa mesma praça, diz Edwin, ocorreram eventos atrozes. "Quando os indígenas não atingiam a quantidade exigida de borracha, eram açoitados. Outros eram pendurados, enforcados e chicoteados para servir de exemplo à população." Foi um regime que funcionou graças a uma prática conhecida como "endividamento", que a indústria da borracha estabeleceu pela primeira vez na Amazônia. Era uma espécie de troca onde diziam aos indígenas algo como: "Te dou um facão e você me traz três quilos de borracha". Funcionava porque ferramentas como o facão eram muito valorizadas na região. "Os indígenas não tinham acesso a elas e, quando conseguiam, eram muito úteis para seus cultivos e para o dia a dia na floresta", explica Camilo Gómez, doutor em Antropologia pela McGill University (Canadá). O problema é que quem estabelecia o valor da dívida eram os próprios capatazes. "Eles inflavam tanto os preços, que um indígena poderia levar anos para pagar por um único facão ou acabar deixando a dívida para seu filho", acrescenta. Em 1907, Walter Hardenburg, um engenheiro americano que trabalhava na construção de ferrovias, chegou ao Putumayo. Arana e sua gente decidiram sequestrá-lo porque temiam que fosse um infiltrado. Estavam errados, mas não puderam impedir que Hardenburg se tornasse a primeira testemunha a documentar a crueldade excessiva que imperava ali. Quando conseguiu sair, ele decidiu contar ao mundo. Hardenburg publicou vários artigos em uma revista londrina chamada Truth (Verdade, em inglês) e em 1912 publicou um livro intitulado The Devil's Paradise ("O Paraíso do Diabo", em tradução livre). Seus relatos são explícitos e arrepiantes: "Os pacíficos indígenas de Putumayo são obrigados a trabalhar dia e noite na extração de borracha, sem a menor remuneração, exceto os alimentos necessários para se manterem vivos. Eles são despojados de suas colheitas, suas esposas e filhos para satisfazer a voracidade, luxúria e ganância desta empresa e seus funcionários, que vivem de sua comida e estupram suas mulheres. São espancados desumanamente até que seus ossos ficam expostos e suas peles cobertas por grandes feridas em carne viva. Não recebem tratamento médico, e são deixados para morrer, comidos por vermes, quando servem de comida para os cães dos chefes. São castrados e mutilados, e suas orelhas, dedos, braços e pernas são cortados. São torturados com fogo e água, e amarrados, crucificados de cabeça para baixo." O escândalo forçou o governo britânico a tomar medidas. Decidiram enviar o diplomata Roger Casement à Amazônia. Em 1910, ele viajou com um grupo de pessoas em uma expedição que durou três meses. Ao seu retorno, Casement entregou um relatório que confirmou as alegações de Hardenburg: "O peso acumulado das provas que reunimos de posto em posto, e a condição da população indígena, como tivemos a oportunidade de observar, não nos deixaram dúvidas de que as piores acusações contra os agentes da empresa eram verdadeiras." O mais escandaloso é que o que estava acontecendo na Amazônia não era novo. "Já tinha acontecido em vários lugares, por exemplo na África, no Congo. Então foi ver que isso continuava acontecendo que gerou a indignação das pessoas", explica Gómez. Mas não foi suficiente. A situação não mudou. "A guerra começou nos Bálcãs [região sudeste da Europa] em 1912 e toda a atenção do povo britânico e do mundo se voltou para lá. Então começou a Primeira Guerra Mundial. No fim, aquela indignação na Inglaterra e em Londres não serviu para nada porque a borracha continuou a ser extraída do Putumayo", acrescenta. Em paralaelo ao diplomata Roger Casement, outro inglês, sem intenção, seria decisivo nessa história. Seu nome é Henry Wickhman. Ele viajou para a América Latina em busca de fortuna. Sem dinheiro e sem nada a perder, aventurou-se a plantar seringueiras, mas as condições da floresta o derrotaram e ele não conseguiu habitá-la. Ele então decidiu exportar as sementes. Wickham roubou 70 mil sementes de seringueira da Amazônia e conseguiu levá-las para a Inglaterra, dando origem a um dos primeiros casos do que se conhece como biopirataria. Embora tenham se passado muitos anos até que as árvores produzissem a borracha necessária, até 1930, as colônias asiáticas haviam se tornado as maiores produtoras das "árvores que choram". Transportar a borracha para a Europa deixou de ser lucrativo. Embora Julio César Arana não pudesse mais competir em preço, ele e sua gente sentiam que eram donos da terra e deslocaram para o Peru muitos dos indígenas que restavam em La Chorrera. A avó da professora Odilia vivenciou isso. "Minha avó me dizia que a levaram criança para o Peru e que viviam no meio do algodão. Que tinham que trabalhar na roça para o dono da terra, que havia muitos porcos e galinhas." Enquanto isso, Arana e sua gente se encarregaram de acabar com tudo o que podiam na Colômbia. "Mandaram arrancar todas as sementes e todas as frutas aqui no território, para quê? Eles diziam: 'Bem, para que eles não queiram voltar'. Ou seja, eram ruins e bastante ruins porque queriam nos deixar sem nada e deixar o território desabitado porque era a fazenda deles", conta a líder Fany Kuiru, enquanto esclarece: "Eu não estava aqui naquela época, mas meus avôs e avós estavam." Os antepassados de Fany e daqueles que hoje habitam La Chorrera também viveram a única guerra que a Colômbia teve com outro país. Foi um conflito que durou um ano. Peru e Colômbia disputaram a soberania do Putumayo que terminou com o estabelecimento das fronteiras que conhecemos hoje. Paradoxalmente, a guerra também representou uma oportunidade de fuga para os indígenas escravizados no Peru. Com seus patrões distraídos com o conflito, eles tiveram a oportunidade de planejar sua fuga. "Minha avó tinha 7 anos e fugiu entre pessoas que não eram de sua família direta. Andaram muito, atravessaram o Putumayo. Muitos morreram no caminho por picada de cobra ou malária", conta a professora Odilia. Quando a guerra acabou, alguns indígenas conseguiram retornar ao seu território e outros permaneceram no Peru. "Em outras palavras, nossa família também está no Peru. Os que conseguiram retornar ao território começaram a reconstruir", diz Fany. Mas era uma reconstrução que carregava um passado sombrio. "O processo de etnocídio, que chamamos, é um processo muito forte. Nossos ancestrais também carregavam muita energia, muito manejo da natureza, então toda essa energia também ficou concentrada neste lugar. E realmente pode-se dizer que era uma referência, como um lugar quase que amaldiçoado porque havia muita dor, havia um imaginário muito negativo", explica Edwin. Foi um período tão doloroso que por muito tempo os povos indígenas optaram pelo silêncio. "Minha avó costumava dizer: 'Essa história é muito triste e é bom não lembrar porque é insuportável lembrar disso'", diz Odilia. Edwin me explica que "muitas pessoas mais velhas em algum momento disseram: 'É melhor não destampar estes cestos, algo que já está enterrado, que está tranquilo'". Mas as novas gerações, como a sua, começaram um trabalho para recuperar essa memória. "No processo de organização, queríamos, mais uma vez, que nossos jovens conhecessem nossa história, que a Colômbia conhecesse a história, que o mundo conhecesse o que aconteceu aqui nesta região, por isso foram feitas várias ações para dar visibilidade. Também perante o governo colombiano foi solicitado que esta casa fosse considerada como um bem cultural da Nação". Passaram-se muitos anos até que os povos originários pudessem recuperar legalmente seu território. Quando a guerra terminou, Julio Cesar Arana vendeu a terra ao governo colombiano por US$ 200 mil na época. E o governo colombiano decidiu entregar a gestão dessas terras a uma instituição financeira. Fany estava presente. "Em 1985, um dia a Caixa Agrária [instituição financeira estatal colombiana] chegou em um pequeno avião a La Chorrera e então alguns engenheiros, arquitetos e o diretor do projeto chegaram para dizer que isso era deles e que eles tinham vindo para construir um centro de pesquisa nas ruínas da Casa Arana." Os povos amazônicos se opuseram. Eles temiam que sua cultura fosse ameaçada novamente e empreenderam um longo processo. "Foram cerca de cinco anos até que finalmente conseguimos que o presidente Virgilio Barco, em 1988, nos intitulasse essas terras como reserva indígena para os povos que vivem aqui. Ou seja, recuperamos nosso território", explica Fany. Hoje a reserva indígena Predio Putumayo compreende quase 6 milhões de hectares localizados no coração da Amazônia colombiana. "Há a presença de vários povos, mas principalmente os Uitoto, Bora, Muinane e Okaina, embora estes tenham perdido completamente sua língua porque a última pessoa que a falava morreu", conta Gómez. E se todas as pessoas em La Chorrera concordam em algo, é que esses povos são caracterizados por seu poder de transformação. Os Uitoto, Okaina, Muinane e Bora se uniram para resistir, transformar e reconstruir seu território. Um símbolo disso é o lugar que foi a Casa Arana. Hoje está bem ali, às margens do Rio Igara Paraná, e embora mantenha parte da estrutura original, tem outra finalidade. Chama-se Casa do Saber e foi transformada em escola secundária que atende 840 jovens indígenas de toda a região do Putumayo. Oferece também a modalidade de internato para quem mora em comunidades distantes do centro povoado. Esses jovens recebem uma educação que busca manter a tradição indígena enquanto aprendem sobre a cultura não indígena. Na escola, por exemplo, há aulas de Uitoto e Bora, mas também inglês e português. A professora Odilia é uma das responsáveis pelo ensino de línguas indígenas e criou uma peça de teatro com seus alunos sobre a história de sobrevivência de sua avó. "Na escola, tentamos manter a história viva, primeiro reconhecer quem somos para manter nossa identidade, saber de onde viemos e para onde vamos. Depois, com essa intenção, trabalhamos com os alunos", afirma. "Tentamos passar para eles o que sabemos de nossos ancestrais." De fato, toda vez que os estudantes da Casa do Saber atravessam a escola de uma ponta a outra, passam diante de um imenso mural, pintado pelo artista uitoto Rember Yaguarcan. "Esse mural chama-se O choro dos filhos do tabaco, da coca e da mandioca doce. É feito em três fases, a primeira [esquerda] é o tempo inicial, as malocas e a natureza. Depois temos um palco triste [centro], o tempo do genocídio da borracha onde se refletem todas as situações vividas e o terceiro [direita] é a projeção futura, a luta organizacional", explica Teteye. Essa obra de arte lembra aos mais jovens que seus povos seguem vivos graças ao fato de que, há um século, seus ancestrais resistiram e sobreviveram ao doloroso "holocausto da borracha". *Imagens de: "Álbum de fotografias Viagem da Comissão Consular ao Rio Putumayo e afluentes" (1912) / Arquivo: Centro Amazônico de Antropologia e Aplicação Prática (CAAAP)
2022-09-04
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62770837
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O que a forte desvalorização da moeda venezuelana diz sobre a situação econômica no país
Dominada pelas oscilações dos preços do petróleo há décadas, a economia venezuelana parece uma montanha-russa, com reviravoltas constantes e inúmeros sobressaltos. Essa montanha-russa sofreu um movimento de queda vertiginoso em 2013, que fez o Produto Interno Bruto (PIB) do país encolher em cerca de 80%. Os venezuelanos passaram então a conviver com uma prolongada hiperinflação. Sua moeda, o bolívar, passou a valer mais como papel para artesanato que como meio de pagamento. O bolívar que os venezuelanos sempre conheceram - que havia sido desvalorizado durante o governo do ex-presidente Hugo Chávez (1954-2013) e rebatizado como bolívar forte - transformou-se em bolívar soberano (em 2018) e bolívar digital (em 2021). Ao todo, foram cortados 14 zeros pelo caminho. Apesar de tudo, começaram a surgir boas notícias sobre a economia venezuelana nos últimos tempos. O país saiu da hiperinflação em dezembro de 2021 e começou a aumentar sua produção de petróleo (que havia retornado aos níveis de meados do século passado). Especialistas e instituições internacionais chegaram a prever crescimento do PIB em 2022, em diferentes percentuais. Fim do Matérias recomendadas Mas uma mudança fundamental foi um dos fatores por trás dessas melhorias: a dolarização informal da economia. Desde que Chávez estabeleceu o sistema de controle cambial em 2003, o uso de moeda estrangeira na Venezuela foi reprimido pelo governo e chegou a ser considerado crime. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas, forçado pelas circunstâncias, o governo do presidente Nicolás Maduro revogou em 2018 a Lei de Ilícitos Cambiais, para permitir o uso do dólar na Venezuela. A medida significou uma mudança importante. As empresas, comerciantes e pessoas com acesso a moeda estrangeira agora podiam começar a trabalhar e planejar suas operações com base em uma moeda mais estável, o que era praticamente impossível com o bolívar enfrentando níveis de inflação que, em 2018, atingiram 130.060,2%, segundo os números oficiais do Banco Central da Venezuela (BCV). Por isso, nos últimos tempos, a economia venezuelana começou a se recuperar, ainda que de forma incipiente. Houve pessoas - algumas, irônicas; outras, não - que resumiram a situação em uma frase exagerada: "a Venezuela se arrumou". Até que, em meio a essa aparente tranquilidade, a montanha-russa da economia venezuelana surpreendeu novamente ao registrar uma desvalorização abrupta da moeda, de quase 25%. O dólar oficial era cotado a 6,28 bolívares no dia 23 de agosto (terça-feira) e passou para 7,83 bolívares por dólar apenas dois dias depois, na quinta, 25 de agosto. No mercado paralelo, a desvalorização foi ainda mais forte. No mesmo período, o dólar passou de 7,04 para 9,33 bolívares - uma variação de quase 33%. Esta enorme oscilação alarmou os venezuelanos. Maduro chegou a publicar no Twitter uma mensagem convocando seus seguidores a lutar pela estabilidade econômica. Mas o que há por trás desta forte desvalorização da moeda venezuelana? O analista financeiro Orlando Zamora, que foi chefe da divisão de análise de risco cambial do Banco Central da Venezuela, acredita que a forte desvalorização foi causada por vários fatores - entre eles, o esgotamento das reservas de moeda estrangeira da Venezuela. Zamora afirma que, logo após a desvalorização, o BCV foi flexível e reagiu à lei da oferta e da procura. Por isso, ele assegura que muitas pessoas acreditaram que o dólar oficial passaria a ter seu verdadeiro valor de mercado e que o mercado paralelo deixaria de existir. Mas o BCV começou posteriormente a aplicar uma política de ancoragem para tentar conter a desvalorização do bolívar. Essa tentativa significava que o Banco Central precisava intervir constantemente no mercado, vendendo dólares das suas reservas para satisfazer a crescente demanda pela moeda norte-americana. Até que os seus recursos ficaram reduzidos. "As reservas do Banco Central são de mais de US$ 5,1 bilhões, mas cerca de US$ 4,8 bilhões desse montante são em ouro. Por isso, sobram apenas 16% em dinheiro - e seria preciso ver se todo esse montante é negociável, já que ele certamente inclui bônus de difícil negociação", explica Zamora. "O BCV precisou 'queimar' suas reservas para poder compensar e manter essa política de fornecimento de divisas ao mercado. Agora, a ancoragem [meta para a taxa de câmbio] é quase impossível." "Esta política não funcionou porque o Banco Central superestimou sua capacidade de controlar o mercado, mesmo com o grave problema de não ter reservas com liquidez", afirma ele. O professor Leonardo Vera, titular da Faculdade de Economia da Universidade Central da Venezuela e membro da Academia Nacional de Ciências Econômicas do país, acredita que a "crise cambial" de agosto é uma reação ao esgotamento das reservas de moeda estrangeira e ao aumento da quantidade de bolívares postos em circulação pelas autoridades, em resposta às reivindicações dos trabalhadores. Vera explica que o governo de Maduro vinha aplicando uma espécie de política anti-inflacionária não declarada, que consistia em três medidas: Vera ressalta que a Venezuela vinha aumentando o salário mínimo a cada três meses devido à inflação, mas os aumentos foram suspensos entre maio de 2021 e março de 2022. "O governo decidiu dar um aumento grande porque havia muita inflação acumulada desde maio do ano passado", segundo ele. "Ou seja, o sistema foi rompido." O professor explica que, quando Maduro decidiu pelo aumento, o salário mínimo havia caído para menos de US$ 2 (cerca de R$ 10,40) por mês. O aumento foi de 1.705%, mas o salário mínimo passou a ser de apenas cerca de US$ 28 (cerca de R$ 146) mensais. Paralelamente ao aumento do salário mínimo, o governo tentou conter os pagamentos aos funcionários públicos. Para isso, o Escritório Nacional do Orçamento (Onapre, na sigla em espanhol) emitiu uma instrução reduzindo o pagamento de bônus para os funcionários públicos como complemento aos salários. Esses bônus normalmente representam uma parte importante da receita dos empregados. Vera destaca que esta determinação reduz muitos dos benefícios obtidos pelos trabalhadores por meio dos contratos coletivos. A política gerou aumento dos protestos trabalhistas, que atingiram recentemente seu ponto máximo. Foi quando o governo tentou fracionar o pagamento dos bônus, tradicionalmente pagos aos funcionários públicos em julho de cada ano. Segundo Vera, eles representam cerca de três meses de salário. Esta medida gerou uma grande onda de protestos, que levou o governo de Maduro a honrar seus compromissos financeiros. Os bônus foram pagos aos funcionários públicos na semana anterior à recente desvalorização da moeda. "Muitas dessas pessoas foram aos bancos para comprar dólares, mas não havia dólares [à venda] porque o BCV não estava oferecendo", explica Vera. "Com isso, eles foram ao mercado paralelo, que não aguentou a pressão e começou a subir significativamente - o que faz com que o BCV também reaja, aumentando o câmbio oficial porque, se permitir que a diferença fique muito grande, a debandada será cada vez maior." O especialista explica que este episódio é uma amostra "clara e fiel" da desconfiança que os cidadãos venezuelanos têm pela moeda do país. Segundo ele, este é o principal problema exposto pela desvalorização do bolívar em agosto. Já Orlando Zamora destaca que as pressões sociais levaram o governo a relaxar a disciplina fiscal que vinha sendo aplicada. Em termos financeiros, estas medidas geraram aumento da quantidade de bolívares na economia - que, por sua vez, pressionou a cotação do dólar. "A base monetária ampliada [dinheiro emitido pelo BCV + dinheiro secundário criado pelos bancos na concessão de crédito + todo o dinheiro disponível entre os cidadãos] era de 4,814 bilhões de bolívares (cerca de US$ 626 milhões ou cerca de R$ 3,255 bilhões) em março de 2022 e, no final de agosto, chegou a 11,091 bilhões (cerca de US$ 1,442 bilhão ou cerca de R$ 7,5 bilhões). Cresceu 2,3 vezes em apenas cinco meses", indica ele. A recente desvalorização da moeda venezuelana terá como consequência o aumento da inflação que o país vinha registrando nos últimos meses - e que já colocava a Venezuela entre os cinco países com a inflação mais alta do planeta. Leonardo Vera adverte que isso trará impactos para a população, já que nem todos os grupos sociais têm a mesma capacidade de proteger-se da inflação, o que pode reduzir o poder de compra dos cidadãos. Para ele, "esta é uma notícia ruim para as empresas e, claro, para uma economia que agora começa a se recuperar de uma grande depressão". Além desses efeitos mais concretos e imediatos, Vera acredita que este episódio mostra a importância de reduzir a inflação rapidamente para um dígito ao se aplicar um programa anti-inflacionário como o da Venezuela, pois as restrições à reserva legal, à ancoragem cambial e ao pagamento de salários trazem consequências para a economia e precisam ser temporárias. Para ele, o problema latente é a falta de confiança na moeda venezuelana e nas instituições financeiras e cambiais. O governo Maduro ainda não pôs em prática uma estratégia para lidar com esta questão. Já Orlando Zamora acredita que o processo de desvalorização da moeda venezuelana irá continuar. "É uma situação que, para mim, é irreversível", segundo ele. "Acredito que terão que deixar o bolívar cair com relação ao dólar. É possível que o tipo de câmbio se estabilize, mas todas as causas e fatores que levaram a esta situação de colapso permanecem." Zamora afirma que, no auge da pandemia, a economia estava mais paralisada e o BCV conseguia regular esse mercado menor de forma mais eficiente. Mas, com a incipiente retomada do crescimento econômico, a estratégia entrou em colapso. Para ele, "o plano de ajuste que vinha sendo cumprido se desestruturou e [com ele] a expectativa que havia sobre a recuperação, o controle da inflação, porque, por tudo que se passou, houve um sucesso muito relativo, entre muitas aspas". Zamora acrescenta: "Vamos garantir o sucesso deste plano, a inflação baixa será mantida? Com certeza não, pois os problemas de sempre, como o crescimento do dinheiro inorgânico, a pouca capacidade de produção, a dependência das importações, todos estes fatores persistem e vão continuar gerando esta pressão sobre o que é vital para a economia, o dólar, porque é uma economia claramente importadora". "A persistir esta situação, a montanha-russa da economia venezuelana poderá sofrer novas voltas inesperadas."
2022-09-04
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62770871
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Cientistas desvendam o que está por trás de surto de 'pneumonia misteriosa' na Argentina
Até o momento, a doença foi detectada em 11 pacientes que moram na província de Tucumán, localizada no norte do país. Quatro mortes foram registradas neste grupo. Todos os indivíduos desenvolveram sintomas entre os dias 18 e 25 de agosto, quando estiveram numa clínica privada localizada na cidade de San Miguel de Tucumán. As bactérias do gênero Legionella, especialmente a L. pneumophila, é conhecida por causar surtos de pneumonia grave. O quadro é chamado de doença dos legionários ou legionelose. Saiba a seguir o que se sabe sobre o problema e o que as autoridades em saúde estão fazendo para conter o problema. Fim do Matérias recomendadas À época, ela causou um surto durante uma convenção da Legião Americana (que reúne veteranos de guerra) realizada na cidade da Filadélfia — o nome Legionella, aliás, faz alusão ao grupo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Um pouco antes, em 1968, aconteceu também nos EUA a "Febre de Pontiac". À época, pessoas que visitaram o Departamento de Saúde da cidade de Pontiac, em Michigan, desenvolveram sintomas de uma infecção respiratória. Anos depois, se descobriu que o episódio também estava relacionado com micro-organismos desse mesmo grupo. "Isso geralmente acontece em lugares como hotéis, hospitais e escritórios onde a bactéria se infiltrou na tubulação de água", explica o texto. Ainda segundo o NHS, é possível se infectar com a Legionella por meio de sistemas de ar condicionado, umidificadores de ar, piscinas e banheiras de uso compartilhado, além de torneiras e chuveiros que não são usados frequentemente. A transmissão direta, de pessoa a pessoa, ao beber água, ou através do contato com lagoas, lagos e rios é considerada menos frequente. Entre os sinais mais comuns dessa infecção, é possível destacar incômodos como tosse, dificuldade para respirar, dor no peito, febre e outras manifestações típicas de gripe ou resfriado. Dos 11 casos detectados em Tucumán, sete eram homens, com uma média de idade de 45 anos. "Febre, dor muscular, diarreia, dificuldade para respirar e dor de cabeça foram os sintomas mais frequentes", lista o informativo da Paho. Dez pacientes possuíam comorbidades, como hipertensão, tabagismo e diabetes. Após o diagnóstico, o tratamento costuma ser feito no hospital e envolve o uso de antibióticos, classe de medicamentos que mata os micro-organismos por trás da infecção. Em alguns casos, o paciente também pode necessitar de oxigênio suplementar e respiradores enquanto os pulmões se recuperam. O CDC aponta que o número de casos da doença dos legionários está em alta desde o início dos anos 2000. "Os departamentos de saúde notificaram quase 10 mil casos nos Estados Unidos apenas em 2018", calcula a entidade. "No entanto, como trata-se de uma enfermidade subdiagnosticada, esse número deve ser mais alto. Um estudo recente estima que a verdadeira incidência deve ser 1,8 a 2,7 vezes maior", complementa o texto. Não existem estatísticas recentes sobre pneumonias relacionadas à Legionella no Brasil. A nota divulgada pela Paho indica que, até agora, "todos os casos do surto estavam ligados a um mesmo lugar, e não surgiram novos pacientes após o dia 25 de agosto". "O surto esteve limitado a oito profissionais de saúde e três pacientes", detalha o texto. O Ministério da Saúde da Argentina e as autoridades locais disseram que vão implementar algumas medidas, incluindo uma investigação para determinar a origem do problema. Além disso, eles se comprometeram a acompanhar os pacientes e aqueles indivíduos que podem ter sido expostos à bactéria, com o objetivo de detectar novos casos com rapidez.
2022-09-04
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62786933
america_latina
6 pontos para entender a proposta de nova Constituição rejeitada pela população do Chile
Reportagem atualizada às 22h de 4 de setembro de 2022. Após aprovar a redação de uma nova Constituição (em 2020) e eleger a Convenção para escrevê-la (em 2021), uma ampla maioria do país finalmente decidiu rejeitar o texto por meio de um referendo obrigatório. O resultado da Convenção foi um texto composto por 178 páginas, 388 artigos e 54 normas transitórias. "Sejamos conscientes do momento histórico que vivemos. Pela primeira vez em nossa história republicana vamos tomar uma decisão sobre uma Constituição escrita de forma democrática, onde há duas alternativas, ambas legítimas", disse o presidente Gabriel Boric, antes do pleito. Fim do Matérias recomendadas Durante os trabalhos da Convenção trabalhou e depois de o texto proposto ser divulgado, acentuou-se a divisão no país, que votou por esmagadora maioria para alterar a Constituição de 1980, solução que nasceu como resposta a 2019. O texto não gerou o consenso esperado e, segundo as últimas pesquisas, a "rejeição" já era esperada. A coalizão governista liderada por Boric chegou a propor mudanças mesmo que a Constituição fosse aprovada, na tentativa de mitigar os temores dos partidários de "rejeição" de certas propostas no texto que consideram "radicais". O partido no poder propôs mudanças em questões como plurinacionalidade, pensões, propriedade da casa própria, segurança e Judiciário. Se a "aprovação" vencesse, a novíssima Carta entraria em vigor imediatamente e à medida que forem criados os novos órgãos que ela contempla, como a Agência Nacional de Águas ou a Câmara das Regiões, que substituiria o Senado. Com a rejeição, a Constituição de 1980, imposta pelo então ditador Augusto Pinochet, permanecerá em vigor, em contraste com os 80% de apoio à sua substituição aprovada em 2020. Agora, espera-se que haja algum tipo de acordo entre setores políticos para modificar o texto atual ou propor uma nova versão. A votação marca o fim do processo constitucional que nasceu da crise social de 2019 não terminará. Entenda a seguir algumas das diferenças mais relevantes entre a proposta de Constituição que foi votada e a atual, que vigora há mais de 40 anos. Foi a primeira vez no Chile e no mundo que um grupo com o mesmo número de homens e mulheres escreveu uma Constituição. Este princípio estava refletido na proposta, que definia o Chile como uma "democracia paritária": propunha que as mulheres ocupem pelo menos 50% de todos os órgãos do Estado e medidas para "alcançar a igualdade e a paridade substantivas". "O fato de esta Constituição ter sido redigida com base na paridade [de gênero] se reflete tanto nos direitos que foram considerados como na forma como o Estado está organizado. A democracia paritária é um princípio que permeia toda a Constituição. Essa é uma diferença radical", afirmou Lita Vivaldi, doutora em Sociologia pela Universidade de Londres e integrante da Associação de Advogadas Feministas. A Constituição atual afirma apenas que "homens e mulheres são iguais perante a lei" e que o Estado deve "garantir o direito das pessoas de participar com igualdade de oportunidades na vida nacional". "Não inclui nada relacionado a uma abordagem de gênero e paridade. O mais próximo [que a Constituição atual chegou] foi com a reforma constitucional que estabeleceu que as pessoas nascem livres e iguais em direitos. Antes, só dizia 'homens'", lembra Javier Couso, especialista em Direito Constitucional e pesquisador da Universidade de Utrecht, na Holanda. A atual Constituição não menciona povos nativos ou indígenas. Em uma grande mudança, o novo projeto definiu o Chile como um "Estado plurinacional e intercultural", reconhecendo 11 povos e nações (Mapuche, Aymara, Rapa Nui, Lickanantay, Quéchua, Colla, Diaguita, Chango, Kawashkar, Yaghan, Selk'nam "e outros que possam ser reconhecidos na forma estabelecida da lei", diz o texto). Também ordenava o estabelecimento de Autonomias Regionais Indígenas com autonomia política, especificando que sua atuação não permite a separação do Estado do Chile, nem atentar contra seu caráter "único e indivisível", e que seus poderes serão estabelecidos por lei. A nova Carta preconizava que, dentro das entidades territoriais que compõem o Estado chileno, os povos e nações indígenas deveriam ser consultados e consentir em aspectos que afetem seus direitos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Da mesma forma, a proposta reconheceu os sistemas jurídicos dos povos indígenas, especificando que eles deveriam respeitar a Constituição e os tratados internacionais, e que qualquer impugnação às suas decisões seria resolvida pela Suprema Corte chilena. Para o ex-membro do Tribunal Constitucional chileno Jorge Correa Sutil, o texto em geral não definiu claramente o exercício da autonomia política e da Justiça indígena. "Em uma questão tão importante quanto à igualdade perante à lei, não custaria nada estabelecer alguns limites." "Entendo que o reconhecimento da autonomia política implica poder repudiar uma lei do país. Caso contrário, não sei o que isso poderia significar... A possibilidade de uma Justiça própria para as autoridades indígenas também está estabelecida. Não está definida quais autoridades, em quais assuntos, em quais territórios ou com respeito a quais pessoas... Isso vai exigir uma legislação, que pode ser muito razoável, mas que não tem limites constitucionais", diz. "O conceito de autonomia não pode ser lido sem observar que é sempre 'de acordo com a lei e a Constituição'", responde o constitucionalista Patricio Zapata. "E, quanto ao pluralismo jurídico, não só no Equador ou na Bolívia, o Estado nacional, ao constatar que dentro dele existem comunidades que têm direito próprio, admite que certos conflitos sejam resolvidos de acordo com ele. O Canadá o faz com os francófonos de Quebec, os Estados Unidos com suas primeiras nações, Nova Zelândia, Austrália. Não há nada de estranho nisso. E o encerramento de qualquer julgamento será feito pela Suprema Corte." Zapata aprofunda a importância da plurinacionalidade: "É uma das mudanças mais profundas. Significa mudar a forma como a república chilena se relaciona com os povos indígenas, mas também a forma como ela se vê". "Muda a ideia de que, da mistura espanhola e indígena, teria surgido uma 'raça chilena' mestiça, vitoriosa sobre nossos vizinhos... e ignora o fato da pluralidade, da diferença. Este é um ponto de virada". A atual Constituição protege explicitamente "a vida do nascituro", mas não impediu em 2017 a descriminalização do aborto em três situações, porque o Tribunal Constitucional afirmou que a criminalização não era "um mecanismo ideal para proteger o nascituro" e que a sanção penal absoluta contraria os direitos das mulheres. A proposta de lei fundamental reconheceu o exercício livre, autônomo e não discriminatório dos direitos sexuais e reprodutivos e estabelece que o Estado deveria garantir as condições para a gravidez, parto e maternidade voluntárias e protegidas e para a interrupção voluntária da gravidez. "Esse direito não implica interromper a gravidez em qualquer momento. Será um direito que será regulamentado e regulamentado pelo legislador, quem dirá quais são os prazos e como fazê-lo", explica Vivaldi. A demanda geral das convulsões sociais de outubro de 2019, que abriram caminho para o processo constitucional no Chile, foi recuperar um senso de dignidade prejudicado pelas deficiências do modelo político e econômico endossado na Constituição de 1980, que favorece as ações de instituições privadas sobre o Estado na provisão de bens sociais como educação, saúde e previdência (neste último caso, com exceção das Forças Armadas). O novo documento constitucional descreveu o Chile como um "Estado social e democrático de direito" que deveria fornecer bens e serviços para garantir os direitos do povo. A Constituição vigente, por outro lado, estabelece que o Estado deve "contribuir para a criação das condições sociais" para a realização das pessoas, mas impede a participação estatal em atividades empresariais a não ser em casos autorizados pela lei. "A Constituição de 1980 afirma que se prescinde do Estado sempre que o setor privado possa [exercer uma atividade]. Agora, afirma-se com força que é dever do Estado se preocupar com educação, moradia, saúde, previdência, trabalho. Essa é uma mudança de paradigma no modelo político chileno, que atende as demandas dos protestos", diz Claudia Heiss, chefe do Departamento de Ciência Política da Universidade do Chile. No caso das aposentadorias, ambas as Constituições consagram o direito à segurança social. A atual indica que o Estado deve garantir benefícios básicos uniformes concedidos por instituições públicas ou privadas. A proposta recentemente elaborada propunha um Sistema de Segurança Social público, financiado com rendimentos nacionais e contribuições obrigatórias. Não mencionava fornecedores privados. Em relação aos serviços de saúde, tanto a nova redação da Constituição quanto a vigente incluem prestadores públicos e privados. Mas a lei atual permite que as pessoas destinem 100% dos seus recursos a operadoras privadas, enquanto a nova proposta previa a criação de um Sistema Nacional de Saúde, que receberia todas as contribuições obrigatórias de saúde, deixando em aberto a opção de contratar um seguro privado extra. "A segregação na saúde no Chile está acabando", diz Couso. "O sistema público de saúde é mais fraco quando as elites não estão incluídas. Nesta Constituição, a contribuição da saúde irá para um fundo comum de saúde, como na Inglaterra. E, embora haja provedores privados, eles estarão sob o regime público." O caráter social do Estado também se expressava em outras regulamentações, como o direito à cidade, à moradia digna, o reconhecimento do trabalho doméstico e a criação de um Sistema de Atenção Integral, um sistema de proteção social, universal e solidário. "O direito ao cuidado surgiu de uma iniciativa popular e reconhece as três dimensões: o direito ao cuidado, a ser cuidado e ao autocuidado. Este é um direito fundamental que, juntamente com outros direitos econômicos e culturais, faz uma diferença substancial em obter uma vida mais digna, que foi o que motivou o surto de 2019", destaca Vivaldi. A Constituição vigente tem uma breve menção à água no Chile. Afirma que "os direitos privados sobre as águas, reconhecidos ou constituídos de acordo com a lei, conferirão aos titulares sua propriedade". A proposta redigida recentemente estabelecia a água como um bem "que não pode ser apropriado". Também estabelecia um "direito humano à água", prioritário em relação a outros usos, e cria uma Agência Nacional de Águas para seu uso sustentável. Esta é uma questão de especial importância no Chile, onde, em meio a uma grande seca, diversas comunidades vivem em situação de emergência hídrica, setores no campo que dependem da água distribuída por caminhões-pipa e até mesmo a possibilidade de racionamento na capital Santiago. O uso, o acesso e a preservação da água estão no centro do debate no Chile e fazem parte de um número crescente de conflitos ambientais e processos judiciais. "Se antes não havia nada sobre questões indígenas, agora havia um capítulo completo. Vamos de uma Constituição extremamente breve sobre questões ambientais para uma Constituição que é atravessada por mudanças climáticas e preocupação ecológica. Reconhece até mesmo os direitos à natureza", enfatizou Couso, antes da votação deste domingo. O texto declarava que pessoas e povos "são interdependentes com a natureza e formam, com ela, um todo inseparável. A natureza tem direitos. O Estado e a sociedade têm o dever de protegê-los e respeitá-los". Em ambos os textos o governo e a administração do Estado correspondem à figura presidencial. No novo texto, a idade para se candidatar ao cargo cairia de 35 para 30 anos. O período presidencial permanecia em quatro anos, mas a reeleição consecutiva seria autorizada uma vez. Quanto ao Legislativo, a Constituição de 1980 define um Congresso Nacional com "dois poderes: a Câmara dos Deputados e o Senado" e especifica que ambos atuam na formação de leis — o Senado pode "aperfeiçoar" o trabalho da Câmara. No novo texto, o Senado seria eliminado e seriam criadas duas Câmaras de poder equivalente: um "Congresso de Deputados e Deputadas" para a formação de leis (com ao menos 155 membros) e uma Câmara das Regiões, dedicadas à legislação de interesses regionais. Para o advogado Correa Sutil, "a atual Constituição tinha um hiperpresidencialismo muito forte, em que o governo funcionava desde que se acertasse com o Congresso: quando o governo tinha minoria no Congresso, havia crise". "Funcionou muito bem nos primeiros anos da transição [para a democracia] devido a um acordo entre os partidos que tinha a ver fortemente com o medo dos setores de esquerda a um retorno ao autoritarismo." Com o novo texto, advertiu antes da votação de domingo, "vamos experimentar um sistema inédito no mundo, que é o presidencialismo com câmaras com poderes muito assimétricos, muito típico dos sistemas semipresidenciais ou semiparlamentares". "Vejo que há vários elementos que implicam riscos de deterioração da política no Chile, porque os partidos políticos não são regulamentados, não há sistema eleitoral na Constituição: isso será definido pelo próprio Congresso." O processo legislativo chileno, que exige um alto quórum para realizar reformas em áreas-chave, é um dos elementos que definem a Constituição de 1980. A nova proposta reduzia o quórum e acrescentava elementos como iniciativas de lei popular. "A Constituição de 1980 é extremamente hostil à democracia participativa. Esta é uma Constituição que introduz elementos de democracia direta", descreve Couso. Em maio de 2022, Tom Ginsburg, professor de Direito Internacional da Universidade de Chicago, destacou como o processo chileno poderia mostrar ao mundo a possibilidade de canalizar uma série de energias políticas muito diversas em um projeto constitucional. "Temos que ver o que vai acontecer, mas até agora, o Chile tem chance de alcançar essa conquista", disse ele à agência de notícias Bloomberg. "Quando se olha o processo como um todo, houve grupos que não quiseram seguir as regras, houve provocações, houve uma direita que sabotou o processo desde o primeiro dia. Gostaria de ter mais abertura de setores radicalizados e maximalistas. Mas prevaleceu o bom senso. Poderia ter sido melhor, poderia ter havido mais diálogo", acrescenta Couso. "Mas considerando como o país estava dividido e o início da pandemia, eu diria que se trata de um processo no nível da herança republicana chilena."
2022-09-03
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62772664
america_latina
Como atentado contra Cristina Kirchner põe lenha na fogueira da crise política argentina
A tentativa de assassinato contra a vice-presidente da Argentina, Cristina Kirchner, na noite de quinta-feira (1/9), colocou mais lenha na fogueira da crise política no país. Além disso, o atentado foi realizado apenas dez dias depois de o Ministério Público pedir 12 anos de prisão para a ex-presidente por supostas irregularidades nos tempos em que governou o país. Na quinta-feira, num primeiro momento, após o choque que a notícia do atentado contra Kirchner provocou entre os argentinos, o governo inteiro e a oposição pareciam estar do mesmo lado, com discursos contra a "violência política" e o "repúdio generalizado" à tentativa fracassada de assassinato contra a vice-presidente. Logo depois, na mesma noite, porém, o ambiente de unidade deu lugar a um novo bombardeio de críticas de um lado e do outro, entre governistas e opositores. Fim do Matérias recomendadas Em um discurso em cadeia nacional de rádio e de televisão, o presidente Alberto Fernández atribuiu a setores políticos, à Justiça e à imprensa o momento delicado vivido pelo país. "Estamos obrigados a recuperar a convivência democrática que se quebrou com o discurso de ódio espalhado por parte de diferentes setores políticos, judiciais e midiáticos da sociedade argentina", disse o presidente. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Fernández afirmou que os discursos de ódio acabam gerando violência. Imediatamente após sua fala, a presidente do partido opositor, PRO, Patricia Bullrich, escreveu em suas redes sociais que "o presidente está brincando com fogo". Segundo ela, em vez de investigar um caso grave, Fernández preferiu "acusar a oposição e a imprensa e decretar feriado nacional para mobilizar militantes". "Isso é lamentável". Na sexta-feira (2/9), a troca de farpas públicas entre o governo e a oposição continuou. O deputado federal Germán Martínez, líder da bancada Frente para a Vitória (FPV), na Câmara dos Deputados, disse que a ação de Fernando Sabag Montiel com uma pistola contra Kirchner deveria servir de motivo para a "reflexão" de todos os setores políticos "Todos os setores políticos temos que refletir sobre o que está acontecendo. Meu próprio carro foi agredido três vezes. Temos que rejeitar com contundência o que aconteceu e iniciar uma convivência social diferente. Agradeço cada apoio dado a Cristina, inclusive da oposição", disse Martínez. Apesar das diferenças de discursos entre políticos governistas e opositores, uma multidão lotou as ruas e avenidas do centro de Buenos Aires e a Praça de Maio, que fica em frente à Casa Rosada, a sede da Presidência do país. Jovens, adultos, famílias inteiras diziam estar participando da manifestação "em apoio à democracia" e "contra a violência". Nos últimos onze dias, apoiadores da vice-presidente passaram a se reunir nos arredores do edifício onde ela mora, no bairro da Recoleta, desde que o Ministério Público pediu que ela fosse condenada por supostos casos de corrupção no período em que foi presidente do país. Cristina ainda pode recorrer da decisão que, segundo especialistas, seria resolvida pela Suprema Corte de Justiça. Em longas declarações, diante das câmeras de televisão, na semana passada, ela negou as acusações e afirmou ser fruto de perseguições opositoras. Este ambiente ocorre quando a inflação é a maior preocupação dos argentinos, de acordo com analistas políticos ouvidos pela BBC News Brasil. O analista Marcos Novaro, professor de Ciências Políticas da Universidade de Buenos Aires (UBA) e comentarista da emissora de televisão TN disse que a polarização deve crescer ainda mais após o episódio de quinta-feira. "A sociedade vai tentar não entrar no círculo de ódio e de polarização. Mas, enquanto isso, a nossa percepção é que os governistas estão, de certa forma, focados no contrário, tentando usar isso para dar mais estabilidade a Cristina, para fazer mais confrontação ainda contra a Justiça e em favor dela", disse Novaro. Para o analista, o governo pretende "blindar" a ex-presidente das ameaças reais que ela sofreu, quando ocorreram falhas no esquema de segurança na porta de sua casa, e também da mira da Justiça. Para o analista Jorge Giacobbe, a transmissão em cadeia nacional realizada pelo presidente acabou "disparando" reação da oposição, quando o caminho poderia ter sido a oportunidade de diálogo em momento de crise. Na sua visão, os argentinos estão sendo desafiados, a partir do atentado fracassado, a serem "maduros" diante dos problemas. Ele sugeriu que não seria o momento de se colocar ainda mais lenha no fogo. "Alberto Fernández deveria estar convocando a oposição para um diálogo amplo e sério e não ter decretado um feriado para apoiar a Cristina", disse o ex-deputado e cientista político Julio Bárbaro. O analista Rosendo Fraga, do Centro de Estudos Nova Maioria, avalia que a polarização vai aumentar a partir do atentado. "Grupos kirchneristas e contra o kirchnerismo já intensificaram suas trocas de agressões nas redes sociais. E os que a apoiam voltaram a pedir que ela seja candidata à Presidência em 2023", disse Fraga. Ao mesmo tempo, o governo realizou uma reunião ministerial, logo cedo na sexta-feira, para analisar, segundo fontes do governo, a "gravidade" do momento argentino e da preocupação com a violência. Em seu pronunciamento à nação, Alberto Fernández tinha condenado os que definiu como estimuladores do discurso de ódio. Na tarde de sexta-feira, o presidente e Cristina se reuniram durante mais de 40 minutos analisando, de acordo com fontes do governo, o quadro atual do país, após o atentado em que ela foi salva por um triz, segundo imagens registradas por seus apoiadores e reproduzidas pelas emissoras de televisão. Após o atentado, o sistema de segurança da ex-presidente passou a ser questionado por especialistas que viram falhas na sua proteção que permitiram que Fernando Andrés Sabag Montiel ficasse a poucos centímetros dela e com pistola em punho. De acordo com dois amigos de Sabag Montiel, em declarações às emissoras locais de TV, ele seria um "lobo solitário". "É difícil inclui-lo no perfil dos que odeiam a Cristina Kirchner. Ele era solitário e muitas vezes coisas para chamar a atenção. Não me surpreende o que aconteceu", disse um deles a uma TV.
2022-09-02
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america_latina
Vídeo, O momento em que arma é apontada a Cristina KirchnerDuration, 0,28
A vice-presidente argentina Cristina Kirchner foi alvo de um ataque armado malsucedido em Buenos Aires, nesta quinta-feira (1/9). Ela cumprimentava apoiadores quando um homem - identificado pela polícia argentina como Fernando Sabag Montiel - se aproximou com uma arma e apertou o gatilho, mas a arma não chegou a disparar. Montiel foi preso. "Este é o evento mais sério que já aconteceu desde que restauramos a democracia" em 1983, disse em pronunciamento o presidente Alberto Fernández. "Cristina continua viva, porque, por uma razão que não foi tecnicamente confirmada, a arma que continha cinco balas não disparou, apesar de o gatilho ter sido apertado". Cristina Kirchner foi presidente do país entre 2007 e 2015 e hoje enfrenta denúncias de corrupção, que ela diz serem mentirosas.
2022-09-02
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62766995
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O que se sabe sobre o ataque armado contra Cristina Kirchner
Um homem identificado como Fernando Andrés Sabag Montiel é, segundo a polícia da Argentina, o suspeito de ter apontado uma arma e apertado o gatilho contra a vice-presidente Cristina Kirchner na noite desta quinta-feira (1/9) em Buenos Aires. Nascido no Brasil, Sabag chegou à Argentina ainda criança. Imagens veiculadas por canais de televisão do país mostram o momento em que uma pistola é apontada para o rosto de Kirchner e, apesar de o gatilho ser puxado, o disparo falha. Segundo a polícia, a arma teria ficado a centímetros de distância da ex-presidente da Argentina. Montiel, de 35 anos, portava uma pistola Bersa, calibre 32 — de fabricação argentina — carregada com cinco balas, segundo informações da Polícia Federal à imprensa. A ação do homem, que usava uma touca preta e uma máscara facial, chamou a atenção dos apoiadores da ex-presidente que o agarraram, no meio da multidão, conforme mostram as imagens das emissoras locais. Na hora de apertar o gatilho contra Cristina, ele tira a máscara, deixando o rosto visível, como mostram imagens da televisão. Fim do Matérias recomendadas No momento em que foi flagrado, ele tentou fugir, mas foi agarrado pela camiseta, no meio da multidão reunida próximo ao prédio onde a ex-presidente mora no bairro da Recoleta. O homem foi preso e levado para uma delegacia na cidade de Buenos Aires, onde no fim da noite de quinta-feira continuava detido. A expectativa é que ele preste depoimento nesta sexta-feira. De acordo com fontes policiais, ele já teria sido preso pela Polícia da Cidade em março de 2021 quando portava uma faca. Montiel teria chegado à Argentina ainda criança, em 1996. De acordo com informações da polícia, a partir das redes sociais de Montiel, ele possui tatuagens com símbolos nazistas. Nas suas redes sociais, ele se identificava como Fernando "Salim" Montiel e era seguidor de grupos como "comunismo satânico", entre outros "ligados ao radicalismo e ao ódio", como definiu o portal do jornal La Nación, de Buenos Aires. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As fotos de Montiel estão em destaque nos portais de notícias e nas emissoras de televisão da Argentina, que recordam ainda uma aparição recente feita por ele em uma reportagem realizada pela Crónica TV nas ruas de Buenos Aires. Ele aparece opinando que os planos sociais não ajudam. "O que ajuda é sair para trabalhar", diz diante da câmera. Presidente do Senado, Cristina Kirchner tinha saído do Congresso para casa. O ataque ocorreu pouco depois das 21h. Após o atentado, como vem sendo definido por políticos e analistas argentinos, especialistas questionaram o esquema de segurança da vice-presidente. Eles apontaram para a "vulnerabilidade" que teria permitido que o brasileiro chegasse perto do seu rosto. Cristina Kirchner costuma se pronunciar através de suas redes sociais e de discursos públicos. Até a manhã desta sexta-feira (2/9), ela ainda não tinha se manifestado publicamente sobre o atentado que sofreu. Após o caso, o policiamento foi reforçado nos arredores de onde Cristina mora. Em nota publicada na tarde de sexta-feira (2/9), o Ministério das Relações Exteriores afirmou que o governo brasileiro "condena o injustificável ato de agressão contra a Vice-Presidente da República Argentina, Cristina Fernández de Kirchner". "O Brasil repudia toda e qualquer forma de violência com motivação política e reitera seu invariável respaldo à irmã nação Argentina", conclui a nota. O presidente Alberto Fernández realizou um pronunciamento em rede nacional pouco tempo após o ataque. Para ele, é o fato "mais grave" desde o retorno da democracia no país, em 1983. Na suas declarações, Fernández disse que a vice-presidente "está com vida porque, por alguma razão, a arma não disparou". O presidente definiu o caso como de "imensa gravidade". "Esse fato é de imensa gravidade. A arma tinha cinco balas, mas não disparou. Esse atentado merece o total repúdio de todos. A violência não pode ameaçar a democracia", afirmou. "Podemos discordar, podemos ter profundas divergências, mas em uma sociedade democrática os discursos que incitam o ódio não têm lugar porque causam violência, e a violência não pode conviver com a democracia." O presidente também anunciou que decidiu "declarar feriado nacional nesta sexta-feira para que, em paz e harmonia, o povo argentino possa se manifestar em defesa da vida, da democracia e em solidariedade à nossa vice-presidente". O ex-presidente da Argentina Mauricio Macri, opositor de Kirchner, escreveu no Twitter: "Meu repúdio absoluto ao ataque sofrido por Cristina Kirchner, que felizmente não teve consequências para a vice-presidente. Este gravíssimo fato exige um imediato e profundo esclarecimento por parte da Justiça e das forças de segurança." Deputados e senadores da base governista, reunidos na coalizão Frente para a Vitória (FPV), se manifestaram no Congresso Nacional contra o ataque. "Não a mataram porque Deus é grande", disse o senador governista José Mayans. "Pedimos investigação, esclarecimento", disse o deputado governista Sergio Palacio. Políticos da oposição também declararam respaldo à vice-presidente. Mas o decreto de Fernández instituindo feriado nacional, nesta sexta-feira, gerou críticas de setores opositores. O peronista Miguel Ángel Pichetto, atualmente ligado ao ex-presidente Macri, esteve entre os que criticaram o discurso do presidente em cadeia nacional e a decretação de feriado. "O presidente não entendeu nada. A oposição deu sua solidariedade à vice-presidente. Mas ele culpou a oposição, a Justiça e os veículos de comunicação. E feriado nacional, para que?", escreveu Pichetto em suas redes sociais. Nos últimos dias, o prédio onde a ex-presidente mora tem sido ponto de encontro de seus apoiadores que contestam o pedido do Ministério Público para que ela seja condenada a 12 anos de prisão por supostos casos de corrupção durante seu mandato.
2022-09-02
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62762349
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Extremismo nas redes e munições em casa: quem é o homem preso após atentado contra Cristina Kirchner?
O homem que tentou assassinar a vice-presidente da Argentina, Cristina Kirchner, nasceu no Brasil em 1987, mas chegou ainda criança a Buenos Aires, em meados dos anos noventa. Filho de uma argentina e de um chileno, Fernando Andrés Sabag Montiel, de 35 anos, foi preso na quinta-feira (01/09) após o ataque e a polícia argentina confirmou sua identificação. As imagens do ato foram filmadas por seguidores da ex-presidente do país e reproduzidas pelas emissoras de televisão locais, mostrando o momento em que Sabag Montiel aponta a pistola Bersa Thunder, calibre 32, para o rosto de Kirchner. Segundo investigações preliminares, a arma teria chegado a ficar a apenas 20 centímetros da ex-presidente e o brasileiro teria apertado o gatilho duas vezes. Mas os disparos, da arma carregada com cinco balas, falharam. Sabag Montiel foi pego pelos apoiadores da vice-presidente que viram sua ação e o entregaram à polícia, que estava no local, nos arredores do edifício onde Kirchner mora, no bairro da Recoleta, em Buenos Aires. Fim do Matérias recomendadas Sabag Montiel tinha chegado ao local se passando por um apoiador, usando uma touca preta e uma máscara de proteção contra a covid-19. Na hora em que se aproxima de Kirchner, ele tira a máscara e aponta a arma. A ação foi percebida pelos manifestantes que agiram para detê-lo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na primeira etapa da investigação, a Polícia Federal esteve, durante a madrugada, no endereço que aparece no documento do acusado, que seria a residência de Sabag Montiel. No local, porém, os moradores colocaram um pequeno cartaz, escrito à mão, dizendo "Fernando não mora aqui". O endereço corresponderia a um pequeno salão de beleza e o inquilino do imóvel que seria do brasileiro disse não conhecê-lo. Na madrugada desta sexta-feira, ao ver as notícias na imprensa argentina, um homem se apresentou à polícia e disse alugar um pequeno conjugado, de sua propriedade, para o brasileiro na localidade de San Martín, a cerca de duas horas do centro de Buenos Aires. O proprietário declarou à polícia que alugou o imóvel com a garantia de três automóveis, que seriam táxis, dada pelo inquilino e que não teria tido problemas com o acusado. A vida de Sabag Montiel passou a ser um dos principais assuntos na Argentina, após o atentado realizado pouco depois das nove da noite, quando Cristina chegava em casa, após uma sessão no Senado, que é presidido por ela. Desde aquele momento, o esquema de segurança da ex-presidente passou a ser questionado por especialistas que apontaram para a vulnerabilidade a que ela estava exposta. Na casa onde morava o homem, a Polícia Federal encontrou caixas de balas de armas de diferentes calibres. Segundo a Polícia Federal, ele não tinha autorização para porte de armas. Sabag Montiel fez, recentemente, duas aparições na emissora popular Cronica TV. A mais recente foi em agosto, quando uma reportagem nas ruas de Buenos Aires pergunta a populares sobre o que pensavam a respeito da distribuição de benefícios sociais por parte do governo. Sabag Montiel disse ser contra programas sociais. Em suas redes sociais, identificado como Fernando Salim Montiel, ele comenta sobre a entrevista realizada na Avenida Corrientes, no centro de Buenos Aires, dizendo não ser "xenófobo" e volta a justificar porque seria contrário à ajuda social. A imprensa tem exibido fotos com vários estilos do acusado - versões com cabelos longos e barba e cabelos curtos. Segundo informações da polícia, Sabag Montiel se apresentava nas redes sociais como Fernando Salim ou Tedi e era seguidor de grupos "associados ao ódio e ao radicalismo". Nas fotos em suas redes sociais, ele mostrava uma de suas tatuagens, associada ao "Sol Negro" (Schwarze Sonne), símbolo que foi apropriado pelo nazismo e é frequentemente associado a neonazistas atualmente. Em março do ano passado, ele teve passagem pela polícia de Buenos Aires, quando foi flagrado com uma faca e um carro sem placa. Ele, então, declarou que a faca era para "proteção pessoal". O episódio levou a Polícia Federal a informar que Sabag Montiel tem por isso "antecedentes policiais". Sabag Montiel também já teria sido acusado por maus tratos contra animais, apesar de ter um cachorro, cujo nome é Moro, segundo informou o portal do jornal Ambito Financiero, de Buenos Aires. De acordo com a polícia, o acusado estava registrado como motorista e pela descrição do serviço trabalharia em aplicativos de transporte. Nenhum familiar tinha feito declarações públicas sobre o acusado. Um advogado se apresentou nas dependências da Polícia Federal, no bairro de Palermo, informando ser seu defensor após ter sido contratado por familiares, mas evitou dar mais detalhes. O caso sacudiu a política argentina e provoca comoção nacional.
2022-09-02
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62765980
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'América Latina deve reagir' se houver tentativa de golpe no Brasil, diz Boric
Quatro dias após o presidente Jair Bolsonaro dizer durante o debate presidencial de domingo (28/08) que seu colega chileno Gabriel Boric tinha "colocado fogo em metrô lá no Chile", a relação entre os dois líderes ficou ainda mais distante. Em declarações à revista Time, publicada nesta quarta-feira, Boric disse que foi "esperança" ver o manifesto pela democracia no Brasil e que a América Latina deveria se unir em caso de o resultado eleitoral não ser aceito, evitando assim um "golpe" como o que, na sua visão, ocorreu na Bolívia em 2020. A revista deu destaque a Boric, de 36 anos, em sua capa com o título "The new guard" ("A nova guarda", em tradução livre). Presidente mais novo da história chilena, e ex-líder estudantil, ele elogiou o recente manifesto a favor da democracia no Brasil contra da possibilidade de Bolsonaro questionar o resultado eleitoral. A pergunta da Time foi: "Neste momento, se fala muito sobre o que acontecerá no Brasil, caso o presidente Jair Bolsonaro não aceite os resultados das eleições de outubro. O que o senhor faria para apoiar a democracia brasileira, se isso acontecesse?". Fim do Matérias recomendadas Boric respondeu: "Gerou esperanças ver a 'carta de São Paulo' que teve um milhão de assinaturas a favor da democracia. Foi um sinal potente da sociedade civil brasileira. Se chegar a ocorrer uma tentativa, como ocorreu na Bolívia, quando acusaram fraude que não houve, e acabou sendo validado um golpe de Estado, a América Latina tem que reagir em conjunto para colaborar para impedi-lo". Na Bolívia, o então presidente e candidato Evo Morales denunciou ter sido alvo de "fraude" e de "golpe" nas eleições presidenciais de 2019. Morales contou com apoio público de líderes regionais, como o presidente Alberto Fernández e sua vice e ex-presidente Cristina Kirchner, da Argentina. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Nos bastidores do Itamaraty, comenta-se que a relação entre o Brasil e o Chile costumava ser baseada numa "agenda positiva", que envolvia principalmente questões como o comércio bilateral e energias renováveis, sem os conflitos que costumam ser mais frequentes com a Argentina, pela maior intensidade política e econômica da relação. Esse ambiente parece ser diferente a partir da posse do novo líder chileno, à qual Bolsonaro não compareceu, e desde as declarações do presidente brasileiro no debate do domingo. "Lula apoiou o presidente do Chile também, o mesmo que praticava atos de tacar fogo em metrôs lá no Chile. Para onde está indo nosso Chile?", disse Bolsonaro. Ele fez as declarações quando citou outros países da América do Sul, governados por presidentes que demonstram simpatia pela eleição do ex-presidente Lula, como Alberto Fernández, da Argentina, Gustavo Petro, da Colômbia, e Nicolás Maduro, da Venezuela. Fernández visitou o ex-presidente na prisão em Curitiba, no Paraná, acompanhando o ex-ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim. Petro, por sua vez, disse a jornalistas brasileiras em Bogotá "que Lula vença", um dia antes de ser empossado no início deste mês de agosto. A declaração de Bolsonaro sobre Boric foi negada pela ministra chilena das Relações Exteriores, Antonia Urrejola, que convocou o embaixador do Brasil em Santiago, Paulo Roberto Soares Pacheco, no dia seguinte ao debate, num sinal de insatisfação diplomática. Urrejola definiu os comentários como "falsos" e "gravíssimos". Na terça-feira, Bolsonaro ratificou suas afirmações, ao dizer que "falou a verdade" sobre o presidente chileno, durante sabatina organizada pela União Nacional de Entidades do Comércio e Serviços (Unecs). "O presidente chileno agora acabou de chamar seu embaixador. É a maneira que ele tem de demonstrar insatisfação comigo. Se exagerei ou não, não deixei de falar a verdade. O cidadão lá (Boric) teve apoio do cara (em referência a Lula) aqui do Brasil", afirmou, segundo reproduzido pela imprensa brasileira. Em 2019, Bolsonaro elogiou o ditador Augusto Pinochet ao criticar a ex-presidente e socialista Michelle Bachelet. "Se não fosse por Pinochet, que derrotou a esquerda, entre eles seu pai, em 1973, o Chile seria uma Cuba". Bachelet, então Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, que deixa o cargo nesta quarta-feira, tinha criticado a violência policial brasileira. O pai dela, o general Alberto Bachelet, que trabalhava no governo de Salvador Allende, derrubado por Pinochet, foi torturado e morreu na prisão. Ele era contra o golpe. Neste domingo (04/09), o Chile realizará o plebiscito para aprovar ou rejeitar a nova proposta de Constituição nacional. A atual data de 1980 e foi implementada durante a ditadura de Pinochet. As pesquisas de opinião apontam que a rejeição é maior que a aprovação ao novo texto, que já recebeu respaldo de Boric. O plebiscito foi convocado após os protestos de 2019 como uma forma de atender às demandas contra a desigualdade social estrutural no país que era, até então, apontado como modelo econômico e social na região.
2022-08-31
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62745627
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Equador investiga caça de 4 tartarugas-gigantes ameaçadas de extinção em Galápagos
O Equador está investigando a morte de quatro tartarugas-gigantes de Galápagos — que as autoridades temem terem sido caçadas e comidas. Os restos mortais dos répteis foram encontrados em um parque nacional de Isabela, a maior ilha do arquipélago de Galápagos. Matar os animais ameaçados de extinção é proibido desde 1933, mas mais de uma dúzia foram caçados nos últimos dois anos. A carne de tartaruga já foi considerada uma iguaria, mas quem caça estes animais agora pode pegar até três anos de prisão. Em setembro de 2021, guardas florestais encontraram os restos mortais de 15 tartarugas-gigantes de Sierra Negra em Isabela. Fim do Matérias recomendadas Fotos de seus cascos vazios foram amplamente compartilhadas nas redes sociais — e causaram indignação no Equador e mundo afora. As evidências reunidas na época sugeriam que as 15 haviam sido caçadas por conta de sua carne. A recente descoberta dos restos mortais de mais quatro animais reacendeu os temores de que a prática continue apesar da proibição total da caça. Peritos vão realizar autópsias nos restos mortais dos animais — e uma unidade especializada em crimes ambientais está colhendo depoimentos de agentes do parque nacional. As tartarugas-gigantes de Galápagos têm uma expectativa de vida de mais de 100 anos — e ficaram famosas por terem inspirado a teoria da evolução de Charles Darwin. O navio em que Darwin navegou, o Beagle, levou 30 tartarugas vivas em sua longa viagem de Galápagos à Polinésia. A maioria delas foi comida pela tripulação. Existem atualmente cerca de 15 mil tartarugas-gigantes no mundo, em comparação com 200 mil no século 19.
2022-08-30
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62721315
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O que são os raríssimos 'duendes vermelhos' do Deserto do Atacama
Os "duendes vermelhos" que foram observados recentemente a partir de uma estação científica no Chile sempre foram muito difíceis de avistar. Mas o Observatório Europeu do Sul (ESO, na sigla em inglês), no deserto do Atacama, conseguiu registrar em imagem o fenômeno popularmente conhecido como "duendes atmosféricos vermelhos" (red sprites). A imagem mostra as linhas verticais avermelhadas e brilhantes captadas pelo Observatório de La Silla, do ESO — que, apesar do nome mitológico, têm uma explicação meteorológica. "Trata-se de uma forma de relâmpago que acontece bem acima das nuvens de tempestade, descarregando eletricidade na atmosfera da Terra a uma altitude de 50 a 90 km", explica o ESO. "Além de ocorrer muito mais alto no céu do que os relâmpagos normais, são mais frios do que os relâmpagos brancos que costumamos ver e parecem ser muito mais fracos", acrescenta. Fim do Matérias recomendadas Embora possa ocorrer esporadicamente sob condições atmosféricas adequadas, é um fenômeno raramente capturado em imagem. Só em 1989 que se conseguiu o primeiro registro fotográfico deste fenômeno, de acordo com o ESO. Por muito tempo, sua aparição deu origem a inúmeras histórias populares sobrenaturais que renderam a ele o nome de "duendes vermelhos". A escuridão do deserto do Atacama faz com que seja um local ideal para observar o universo, razão pela qual vários telescópios e observatórios estão instalados ali. Mas esta falta de poluição luminosa também favorece o avistamento de fenômenos na Terra, como os "duendes vermelhos". Na fotografia publicada pelo ESO nesta semana também aparece uma tonalidade esverdeada no horizonte conhecida como luminescência atmosférica (airglow), outro fenômeno que se combina com os "duendes vermelhos". "Durante o dia, a luz do Sol afasta os elétrons do nitrogênio e do oxigênio da atmosfera da Terra e, à noite, esses elétrons se recombinam com átomos e moléculas, fazendo-os brilhar", explica o ESO. "Normalmente, a luminescência atmosférica só pode ser vista em céus muito escuros, onde não há poluição luminosa", acrescenta.
2022-08-29
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62715328
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'Desidratado demais para chorar': a viagem mortal dos migrantes no Panamá
Atenção: esta reportagem contém detalhes que alguns leitores podem considerar perturbadores. A pediatra Yesenia Williams ficou tão chocada com o que viu em um centro de recepção de migrantes ao norte da região de Darién, que separa o Panamá da Colômbia, que não conseguia falar sobre o assunto — nem mesmo com seus colegas. "Não esperava tanto sofrimento e tantas dificuldades", relembra ela. Em seus nove dias trabalhando em uma clínica improvisada na cidade panamenha de San Vicente, ela e seus colegas trataram de centenas de migrantes exaustos que haviam caminhado pela densa floresta entre a Colômbia e o Panamá. Ouvindo suas histórias, os médicos tiveram uma ideia da luta para sobreviver no que tem sido descrito como a parte mais traiçoeira da rota migratória mais perigosa do mundo, que as pessoas atravessam na esperança de encontrar refúgio nos Estados Unidos. Fim do Matérias recomendadas As condições das crianças que fizeram a travessia foram o que mais comoveu Williams. Algumas estavam tão desidratadas que seus olhos pareciam afundados. Ela lembra que não havia lágrimas quando elas choravam. Outras estavam tão desorientadas que não conseguiam lembrar seus próprios nomes. "Elas presenciaram coisas que não deveriam ter visto", afirma a pediatra, sobre a violência e os ataques sofridos por parte dos migrantes durante a travessia. A região de Darién estende-se por 575 mil hectares de espessa floresta tropical, formando uma barreira natural entre a América do Sul e a América Central. Não há estradas pavimentadas, nem caminhos sinalizados, para ajudar a atravessar essa terra sem lei, onde assaltos e estupros são comuns. Apesar dos riscos, cada vez mais migrantes atravessam a pé a trilha de 97 km, entre pântanos e montanhas — o que pode levar mais de uma semana. Estima-se que 133 mil migrantes tenham cruzado a selva de Darién em 2021. Desse total, 30 mil eram crianças. Muitas das pessoas que fazem a perigosa travessia são famílias do Haiti, Cuba e Venezuela, mas Williams conta que já viu crianças chegando sozinhas. Nos nove dias que os médicos passaram em San Vicente, eles trataram cerca de 500 migrantes que fizeram a travessia e entrevistaram 70 deles em detalhes. O médico José Antonio Suárez, especialista em doenças infecciosas da equipe, relembra como cuidou de um homem venezuelano de 60 anos que viajava com duas crianças, de quatro e cinco anos. O médico imaginou que fossem os netos do migrante, mas ele contou que não eram da sua família. Ele disse que a mãe das crianças era uma mulher haitiana que ele havia conhecido na selva e pedido que ele os levasse a San Vicente, porque ela não tinha mais forças para andar. "O grau de desespero é tão grande que um pai pode entregar seu filho para um estranho", explica Suárez. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O epidemiologista panamenho Roderick Chen-Camaño, experiente no trabalho com comunidades indígenas na selva, achava que estava preparado para o que encontraria na clínica improvisada. "Não achei que fosse ver algo de novo", afirma ele, relembrando em seguida um migrante venezuelano que desabou em lágrimas quando contou o que havia presenciado durante a viagem. O homem afirma que fazia parte de um grupo de migrantes que estava escalando a cadeia montanhosa que separa a Colômbia do Panamá quando uma mulher haitiana desmaiou. E o que aconteceu em seguida marcou o venezuelano. Segundo o migrante, assim que o marido percebeu que ela estava morta, ele atirou um dos filhos do rochedo. E ele lembra que tentou impedir o haitiano desesperado de fazer o mesmo com o outro filho, sem sucesso. Por fim, o migrante venezuelano contou ao médico que também não conseguiu impedir o homem haitiano de pular para o vazio. A BBC não conseguiu confirmar o relato do migrante de forma independente, mas números da Organização Internacional de Migração indicam que dezenas de migrantes morrem todos os anos cruzando a região do Darién. Yesenia Williams afirma que é frustrante ver que sua equipe só conseguia fazer o mínimo indispensável na clínica improvisada, aliviando parte dos sintomas sem lidar com suas causas. "Nós vemos apenas uma pequena parte da experiência dos migrantes", reflete a médica. Mas José Antonio Suárez, que é da Venezuela, sente-se feliz de poder oferecer ao menos alguma ajuda aos seus compatriotas. A maior parte dos migrantes que atravessou a região de Darién no ano passado foi de haitianos, mas os venezuelanos são a maioria em 2022. Muitos deles deixaram a Venezuela nos últimos anos em meio à crise econômica do país, para tentar ganhar a vida em outros países sul-americanos. Mas os rígidos lockdowns impostos durante a pandemia de covid-19 dificultaram ainda mais a situação desses migrantes. Por isso, muitos deles agora estão se dirigindo para o norte, em busca de novas oportunidades. Um dos pacientes venezuelanos atendidos por Suárez na clínica apresentava uma irritação incomum na pele dos pés e das pernas. Essas lesões vermelhas que causam coceira relembraram ao médico de 67 anos algo que ele não via desde a adolescência, quando visitou a laguna de Unare, no seu país-natal, a Venezuela. Suárez diagnosticou o migrante e mais de 20 outras pessoas que chegaram logo depois dele com dermatite cercarial, também chamada de coceira do nadador. Ela é causada por larvas parasitas que são liberadas por caramujos. As larvas minúsculas penetram na pele dos nadadores, causando erupções. Elas morrem, mas, quanto mais o paciente coça a área afetada, pior fica a irritação, já que a pele ferida pode ser facilmente infectada por bactérias. Mas uma das colegas do Dr. Suárez, a pediatra Rosela Obando, observou que muitos adultos sofriam a irritação, enquanto as crianças pareciam não ser infectadas. E, conversando com os migrantes, eles descobriram o porquê. Os adultos haviam se infectado enquanto atravessavam os muitos cursos d'água que cortam a região de Darién, mas as crianças haviam sido poupadas porque seus pais as carregavam no colo para evitar que fossem arrastadas pela corrente. A irritação raramente causa complicações, mas Suárez adverte que beber a água infestada pelos parasitas pode trazer consequências sérias. E o médico explica que os migrantes que cruzam a região de Darién muitas vezes não têm escolha. Carregar garrafas de água seria um peso muito grande na sua árdua jornada, beber água dos rios infestados com larvas causa gastrite e deixar de beber água causa desidratação. Todos os profissionais da clínica encontraram uma história particularmente marcante. A bióloga Yamilka Díaz conta que decidiu trabalhar na região de Darién depois de conhecer Delicia, uma menina de cinco anos de idade que foi encontrada ao lado do corpo da mãe no meio da floresta. Delicia foi levada ao instituto onde Díaz trabalhava fazendo exames de sangue para determinar doenças tropicais, como a malária e a dengue. Quando Díaz perguntou a Delicia o que ela se lembrava de ter acontecido, ela disse apenas que sua família havia sido "levada pelo rio". A bióloga afirma que atender os migrantes mudou a sua vida e a fez observar temas mais mundanos, como o aumento do custo de vida, com mais lucidez. "Você vê tudo diferente", segundo Díaz, que deixou a clínica improvisada descalça, depois de dar seus sapatos a uma migrante que teve os tênis infectados por fungos.
2022-08-29
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62686752
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Venezuela: os 'salários de fome' que inflamaram nova onda de protestos
O descontentamento voltou a tomar as ruas da Venezuela. Depois de dois anos em que o número de protestos naquele país vinha diminuindo progressivamente, em 2022 a tendência parece ter mudado. De acordo com o Observatório Venezuelano de Conflitos Sociais (OVCS), durante o primeiro semestre deste ano, houve cerca de 3.892 protestos, uma média de 22 por dia, o que significa um aumento de 15% em relação ao mesmo período do ano passado. Mas ao contrário do que aconteceu em 2019 - o ano em que houve mais manifestações na última década - quando os protestos por motivos políticos foram os mais numerosos, durante o primeiro semestre de 2022 foram os direitos trabalhistas que promoveram o maior número de sinais de descontentamento: 42% do total. Essa mudança tem a ver com um embate entre as políticas trabalhistas do governo de Nicolás Maduro e as demandas dos funcionários públicos. Fim do Matérias recomendadas Nos últimos meses, houve um aumento nos protestos de funcionários públicos na Venezuela, especialmente aqueles empregados nos setores de saúde e educação. Só em julho passado, ocorreram cerca de 143 conflitos trabalhistas, segundo o Instituto de Estudos Sindicais Avançados (Inaesin). Por trás desses protestos está uma instrução emitida em março pelo Escritório Nacional de Orçamento (Onapre, na sigla em espanhol) que reduz a renda dos funcionários públicos entre 40% e 70%, segundo o Inaesin. "O Onapre assumiu a incumbência de expedir instruções para o pagamento dos salários dos trabalhadores e, por interferirem nisso, têm violado a Constituição, as leis e os direitos trabalhistas, porque, ao serem aplicadas essas instruções, o salário dos trabalhadores vem diminuindo", diz Belkys Bolívar, membro do conselho nacional da Federação Venezuelana de Professores. Ele explica que, por meio dessas instruções, o Onapre vem desconsiderando os benefícios previstos nos contratos coletivos dos servidores públicos e vem reduzindo os valores dos bônus e prêmios neles previstos, que representam parte importante da renda desses servidores. "Em março deste ano, quando foi dado um aumento salarial por meio do Executivo, eles decidiram baixar todos os nossos bônus que estão no acordo coletivo. Eles baixaram em 50%. Por exemplo, os prêmios de compensação acadêmica para professor que faz pós-graduação, mestrado ou doutorado, todos reduziram em 50%", diz. Destaca também que reduziram, por exemplo, os bônus de antiguidade que, no seu caso, passaram de 60% para 30% do salário, e que o bônus geográfico, para quem trabalha no meio rural, passou de 25% para 10% , um decréscimo superior a 50%. Essa política também afetou outros setores da administração pública. Segundo Pablo Zambrano, secretário-executivo da Federação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (Fetrasalud, na sigla em espanhol), os funcionários da área sanitária da Venezuela também perderam mais de 50% da renda devido à aplicação dessa instrução do Onapre. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Embora essa mais recente instrução tenha gerado manifestações de descontentamento desde sua promulgação em março, a insatisfação piorou recentemente quando os funcionários do setor de educação receberam o abono de férias com um valor muito inferior ao esperado. Segundo Bolívar, a lei estabelece que esse bônus deve ser pago levando em consideração o último salário recebido pelo trabalhador, mas o governo, em vez de levar em consideração aquele salário aprovado em março passado, o fez com base no salário de dezembro de 2021. A diferença é notável. "No meu caso, eles me pagaram 140 bolívares (R$ 102) e deveriam ter pago 2,4 mil bolívares (R$ 1,75 mil)", diz Bolívar. "Por causa dessa arbitrariedade, foi então que começaram a surgir manifestações. O salário não é suficiente para viver. Então, voltamos a protestar e ficamos mais de 3 semanas protestando", diz. E obtiveram uma vitória parcial. Em 15 de agosto, Maduro demitiu o então diretor do Onapre, Marco Polo Cosenza, e nomeou para o cargo Jennifer Quintero de Barrios, até então responsável pelo Tesouro Nacional. Logo depois, os funcionários do setor de educação começaram a receber a diferença pendente do abono de férias em suas contas. No entanto, as instruções do Onapre não foram revogadas, por isso os servidores públicos anunciaram que permanecerão em protesto porque o objetivo é que essa regra seja eliminada e que o governo possa colocar em dia outras dívidas pendentes com eles. Bolívar indica que o desconforto causado pelo pagamento incompleto do abono de férias não tem a ver com as férias dos funcionários, mas com a necessidade que eles têm do dinheiro. "As pessoas sempre esperam as férias para resolver problemas pessoais com esse dinheiro porque não usamos realmente para sair de férias. Isso não é suficiente para sair de férias com nossa família", diz, lembrando que esses recursos são usados ​​para tapar os buracos no orçamento que não podem cobrir com os seus salários. Ele explica que entre os professores que trabalham na administração pública na Venezuela há seis categorias. No mínimo, eles ganham cerca de 400 bolívares por mês (cerca de R$ 290) e no máximo, cerca de 900 bolívares por mês (R$ 655). "São salários indignos. É um salário de fome porque não é suficiente para cobrir nossas necessidades alimentares. Além do fato de termos também necessidades de saúde e outras. Quando ocorre um acidente, quando um familiar morre, não temos como cobrir essas situações e temos que buscar a solidariedade, pedir nas redes sociais, pedir aos nossos colegas e parentes que nos ajudem, porque o salário não nos permite cobrir essas necessidades", diz. A situação não é melhor no caso dos profissionais de saúde. Pablo Zambrano explica que um funcionário administrativo ganha o equivalente a cerca de R$ 150 por mês, enquanto um médico ganha pouco mais de R$ 500. Com esses salários, eles têm que enfrentar um alto custo de vida. A chamada cesta básica - que se refere ao dinheiro necessário para alimentar uma família de cinco pessoas por mês - ficou em R$ 2,35 mil em junho, segundo cálculos do Centro de Documentação e Análise Social da Federação Venezuelana de Professores (Cendas-FVM). Assim, seriam necessários os salários de cerca de três ou quatro médicos por família para cobrir essa cesta mensalmente. O governo Maduro lidou com essa questão com discrição, sem que suas principais figuras a abordassem publicamente. Segundo a imprensa venezuelana, em 8 de agosto, durante um discurso, o presidente foi interrompido por uma mulher que gritou com ele sobre algo relacionado ao Onapre, ao que Maduro respondeu: "O que você está dizendo não é assim e, se você quiser, nós conversamos pessoalmente. Não é verdade. Não é verdade. É uma pequena campanha que fazem nas redes e não é verdade". Nesse mesmo dia, durante uma sessão da Assembleia Nacional, o deputado governista Pedro Carreño defendeu as instruções do Onapre, destacando que o verdadeiro problema era que o Estado não tinha dinheiro. "Essa instrução que demonizam, que submetem ao ridículo público, tornou-se uma espécie de muro de contenção para barrar as pretensões da direita reacionária que quer mostrar que há um problema na Venezuela porque não estão sendo respeitados os direitos dos trabalhadores, quando as instruções na verdade dizem que não há recursos nem meios para resolver as necessidades", disse ele. O Ministério das Comunicações venezuelano foi consultado sobre o tema, mas não respondeu à reportagem. Após um 2019 convulsivo, o desconforto expresso nas ruas venezuelanas diminuiu significativamente. Segundo dados do OVCS, em 2019, houve cerca de 16.739 protestos na Venezuela. O número caiu para 9.633 em 2020 e reduziu para 6.560 em 2021. Vários fatores desempenharam um papel neste declínio, desde um aparente enfraquecimento das forças da oposição até as limitações de mobilidade decorrentes da pandemia de covid-19, entre outros. Pablo Zambrano, da Fetrasalud, garante que os sindicatos permaneceram mobilizados todo esse tempo, mas reconhece que o impulso recente dos protestos tem a ver com algumas mudanças dos últimos meses. Ele destaca que não estão satisfeitos, porque, além de aplicar as instruções da Onapre que cerceiam direitos trabalhistas, a situação se torna ainda pior porque a resposta do governo à reclamação tem sido a perseguição, intimidação e criminalização dos trabalhadores. "Também gerou descontentamento que o governo vem falando em recuperação econômica, mas isso não é sentido entre os trabalhadores. Pode ser para um setor que de alguma forma vai representar 10% da população e que faz parte de todas essas elites que se construíram agora dentro deste governo, mas os trabalhadores, os assalariados não têm neste momento o suficiente para viver com dignidade, para sustentar suas famílias", aponta. Zambrano assegura que um elemento-chave na reativação dos protestos tem sido o fato de os setores de saúde e educação terem se unido para promover conjuntamente os protestos, mas também que o que eles exigem são respostas concretas do governo às demandas dos trabalhadores, sem outras bandeiras. "Conseguimos que os trabalhadores respondessem à reivindicação, mesmo além do partido, além da ideologia, além do debate sobre capitalismo ou comunismo, esquerda ou direita - esses discursos que já estão esgotados. Aqui, neste momento, independentemente de seus pensamentos, as pessoas sabem que o governo está fazendo errado, eles sabem que está cometendo grandes erros e que tem uma política que vai contra a classe trabalhadora venezuelana", diz.
2022-08-28
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62668771
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Cristina Kirchner: as imagens dos confrontos entre apoiadores da vice-presidente da Argentina e a polícia
Milhares de pessoas se manifestaram na Argentina em apoio à vice-presidente Cristina Fernández de Kirchner, que nega as acusações de corrupção contra ela. Apoiadores de Kirchner começaram a se reunir em torno da casa dela, em Recoleta, na região de Buenos Aires, depois que o Ministério Público pediu 12 anos de prisão contra ela, além da inabilitação para o exercício de cargos públicos. O protesto subiu o tom no sábado (27/8), depois que as forças de segurança instalaram cercas ao redor da casa da ex-presidente, que governou o país de 2007 a 2015. "Hoje acordei com a esquina da minha casa literalmente sitiada (...) Eles querem proibir manifestações absolutamente pacíficas e alegres, de amor e apoio que acontecem diante da já inegável perseguição do partido judicial", afirmou Kirchner em uma carta dirigida ao prefeito de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta. "A lógica do senhor Larreta é a mesma do partido judiciário. Para os macristas: cuidado e proteção. Para os peronistas: grades, infantaria da polícia municipal e até paus, gás lacrimogêneo e spray de pimenta como na noite de segunda-feira. Eu disse naquela noite: eles nunca foram e nunca serão democráticos", acrescentou na carta. Fim do Matérias recomendadas Horas depois, simpatizantes da ex-presidente derrubaram as cercas e houve confrontos entre eles e a tropa de choque. Ao menos cinco policiais ficaram feridos e quatro manifestantes foram presos, de acordo com relatos da imprensa local. Ao final de um dia tenso, em meio a milhares de manifestantes e gritando "Cristina presidente", Kirchner fez um breve discurso em um palco improvisado do lado de fora da casa dela. "Em uma democracia, o direito à liberdade de expressão é fundamental", disse ela. Em seguida, dirigiu-se aos seus seguidores dela: "Quero agradecer e pedir que descansem. Foi um longo dia". Fernández de Kirchner, de 69 anos, é acusada de fraudar o Estado, além de ser investigada por estar envolvida em um complô para desviar recursos públicos enquanto foi presidente. O pedido de prisão provocou a indignação de seus seguidores. Kirchner diz que está sendo perseguida.
2022-08-28
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62707008
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Prisão de bispo e expulsões: as ações do governo Ortega contra Igreja Católica na Nicarágua
As relações entre o governo de Daniel Ortega e a cúpula da Igreja Católica na Nicarágua vivem um momento delicado. O último capítulo foi a prisão, na sexta-feira passada (19/08), do bispo Rolando Álvarez, a última voz abertamente crítica ao governo do país centro-americano, que atualmente está em prisão domiciliar. A Polícia Nacional da Nicarágua acusou em um comunicado o bispo de Matagalpa, de 55 anos, de "organizar grupos violentos, incitando-os a realizar atos de ódio contra a população, causando um clima de ansiedade e desordem, perturbando a paz e a harmonia da comunidade, com o objetivo de desestabilizar o Estado da Nicarágua e atacar as autoridades constitucionais", acusações que o religioso nega. Álvarez era conhecido por denunciar violações de direitos humanos por parte do governo Ortega, cuja guinada autoritária tem sido alvo de críticas de instituições e organizações internacionais nos últimos anos. Outro bispo crítico do governo, Silvio Báez, se exilou em 2019 depois de receber várias ameaças de morte. Fim do Matérias recomendadas A BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, tentou obter a opinião do governo nicaraguense, mas não obteve resposta. Após um primeiro mandato presidencial em meados da década de 1980, Ortega retomou o poder em 2007 e, desde 2017, sua esposa, Rosario Murillo, o acompanha como vice-presidente. As últimas eleições de novembro de 2021, que Ortega venceu com 75% dos votos, foram realizadas com sete candidatos da oposição presos e alegações de fraude por parte de organizações internacionais. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) documentou torturas e outras violações de direitos humanos cometidas pelas autoridades nicaraguenses nos últimos quatro anos, bem como o confinamento de mais de 190 presos políticos, alguns deles em condições desumanas. Ortega, apoiado pelos governos de Cuba e Venezuela, descreveu essas acusações como "invenções" em uma campanha para "dar má fama à Nicarágua perante organizações internacionais". Ele também acusou os bispos do país de "tomar partido" e estarem comprometidos com os "golpistas", além de terem promovido a criação de "seitas satânicas" . Nesse contexto, a relação entre o governo e a alta hierarquia católica no país encontra-se em um ponto difícil. "Ortega atingiu a Conferência Episcopal da Nicarágua em seus dois principais nomes: o bispo estrategista, Dom Báez, foi exilado. E o bispo que organiza, Álvarez, está na prisão", disse o sociólogo e analista político nicaraguense Oscar René Vargas à BBC. Além disso, no último um ano e meio, as autoridades expulsaram do país o núncio papal (representante no país da Santa Sé) e 18 freiras da ordem Missionárias da Caridade, fundada por Madre Teresa de Calcutá, prenderam sete padres e fecharam várias estações de rádio católicas. A Igreja Católica recebeu quase 200 ataques entre abril de 2018 e maio de 2022 na Nicarágua, segundo um relatório da ONG Observatorio Pro Transparencia y Anticorrupción. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O cientista político Manuel Orozco, diretor do programa Migração, Remessas e Desenvolvimento do Diálogo Interamericano, acredita que Ortega "sempre foi um indivíduo anticlerical, como ficou demonstrado em sua perseguição à Igreja Católica nos anos 1980 durante a revolução sandinista". "Como qualquer líder autocrático, tudo que vai contra o culto de sua pessoa é uma ameaça. E a fé religiosa na Nicarágua prevalece sobre qualquer outro tipo de culto." Apesar de ter perdido o monopólio da fé contra os ascendentes grupos evangélicos, a Igreja Católica continua sendo a instituição mais influente neste país caracterizado pela acentuada devoção religiosa de seus 6,6 milhões de habitantes. Assim, destaca o cientista político, na primeira década deste século, Ortega firmou uma "aliança tática" com as autoridades católicas do país, cuja influência sobre a sociedade nicaraguense o ajudaria - ou pelo menos não o impediria - de conquistar votos nas eleições de 2007 e as posteriores. Os protestos de abril de 2018 na Nicarágua marcaram um ponto de virada nas relações entre o governo e a Igreja Católica. Uma controversa reforma do sistema previdenciário levou a grandes protestos de rua, que o governo considerou parte de uma tentativa de golpe. A repressão das forças de segurança e milícias relacionadas ao sandinismo deixou 200 mortos reconhecidos pelo governo, 328 contabilizados pela CIDH e mais de 650, segundo organizações civis. Também houve cerca de 2.000 feridos e 1.600 pessoas presas, segundo a CIDH. A Igreja Católica da Nicarágua apoiou os manifestantes, que se refugiaram na catedral da capital Manágua da resposta violenta das forças de segurança. Sua autoridade máxima, o cardeal Leopoldo Brenes, surgiu como mediador do diálogo fracassado entre as partes e denunciou fortemente a perseguição de Ortega à Igreja, que o colocou na mira das autoridades. O presidente endureceu sua retórica contra os eclesiásticos, a quem chamou em várias ocasiões de "golpistas" ou "terroristas". Três anos depois, porém, há quem acuse o cardeal de ter suavizado sua postura em relação ao governo. Ele deixou de condenar abertamente acontecimentos recentes como a prisão do bispo Álvarez na semana passada. No início de agosto, Brenes exigiu que as autoridades "cessem todos os atos de violência contra a Igreja, os padres e os fiéis", embora tenha observado: "Não somos inimigos do governo". "A Igreja está dividida sobre qual atitude tomar em relação ao regime, e o cardeal desempenha esse papel, o de manter a relação", diz o analista Oscar René Vargas. Vargas afirma que o topo da Igreja Católica na Nicarágua está dividido e parte dele opta por cuidar dos laços com o governo em um momento em que os evangélicos ganham espaços protegidos pelo presidente. "A maioria das denominações protestantes, como no Brasil, é a favor do presidente Jair Bolsonaro, aqui apoiam Ortega. Para competir com essa realidade, vários bispos do país querem manter uma relação próxima com Ortega", afirma. Ele também observa que "a história da Igreja Católica na Nicarágua foi de proximidade com o poder ". A Igreja manteve uma estreita relação com a família Somoza, que exerceu o poder autoritário na Nicarágua entre 1936 e 1979. Em geral cooperou com o sandinismo nas décadas seguintes, apesar de algumas divisões internas entre setores conservadores e esquerdistas mais afinados com a Teologia da Libertação. O Vaticano e o Papa Francisco mantiveram uma controversa atitude de reserva sobre as alegações de perseguição à Igreja Católica na Nicarágua. Finalmente o pontífice se pronunciou neste domingo (21/08). Ele pediu a Deus por intercessão de "la Purísima" - Imaculada Conceição de Maria, a padroeira da Nicarágua - e um "diálogo aberto e sincero" para "encontrar as bases de uma convivência respeitosa e pacífica". Suas declarações foram decepcionantes para quem denuncia a repressão. "Ele não mencionou os ataques à Igreja ou a prisão do bispo Álvarez ou dos 11 padres presos. Parece que ele está se referindo a outro país e não ao nosso", lamenta Vargas. O cientista político Manuel Orozco também considera insuficiente a intervenção do Vaticano no conflito com o governo nicaraguense. "O desânimo de muitos católicos na Nicarágua e na América Latina devido ao silêncio do Papa sobre Cuba e Nicarágua está lhe custando a perda de fiéis, o que é uma tática bastante errada em um momento em que a Igreja Católica tenta reconquistar seguidores em todo o mundo." Orozco afirma que a atitude contida do Vaticano e do cardeal Brenes colocou os cidadãos nicaraguenses "entre a cruz e a espada". "Por um lado reconhecem a injustiça contra um regime opressor e os maus tratos à Igreja, mas por outro são muito fiéis à hierarquia católica . Estão algemados por sua lealdade ao cardeal Brenes", considera. "A questão é quanto tempo durará essa tolerância diante das injustiças que existem na Nicarágua", diz.
2022-08-25
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62668700
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Cristina Kirchner: os argumentos do pedido de prisão da ex-presidente da Argentina
Dois promotores da Argentina pediram na segunda-feira (22/8) pena de até 12 anos de prisão e a perda dos direitos de ocupar cargos públicos para a vice-presidente da Argentina, Cristina Kirchner, acusada por eles de corrupção na realização de obras públicas durante seu governo (2007-2015). A ex-presidente é acusada de administração fraudulenta e de ter liderado uma associação ilícita junto com seu falecido marido, o ex-presidente Néstor Kirchner, durante os governos de ambos, entre 2003 e 2015. As irregularidades teriam acontecido na gestão pública de obras na província patagônica de Santa Cruz, reduto dos Kirchner. A denúncia aponta que, antes de assumir a presidência, os Kirchner criaram uma empreiteira, chamada Austral Construcciones, que recebeu licitações para realizar 79% das obras em Santa Cruz durante os mandatos do casal. A empresa deixou de operar em dezembro de 2015, quando Cristina Kirchner saiu da presidência. Segundo os promotores, durante os mandatos dos Kirchner, a empreiteira foi favorecida por grandes aumentos de preços pagos no âmbito das licitações. Os ex-presidentes colocaram um sócio que atuaria como "testa de ferro", Lázaro Báez — também acusado na Justiça, junto com outros onze ex-funcionários kirchneristas. O promotor Diego Luciani assegurou que se tratou da "maior manobra de corrupção do país", com prejuízo em mais de US$ 1 bilhão (R$ 5 bi) para os cofres públicos — quantia que os promotores pediram que fosse confiscada dos acusados em caso de condenação. Fim do Matérias recomendadas Por sua vez, Cristina Kirchner, cujo advogado apresentará sua defesa em setembro, refutou todas as acusações, dizendo ser vítima de "lawfare" (abuso e má utilização dos procedimentos jurídicos para perseguição política). Na terça-feira (23/8), em uma transmissão ao vivo no YouTube, a vice-presidente garantiu que "nada do que os promotores disseram foi comprovado". Logo após a notícia de que os promotores pediram a condenação de Kirchner, o presidente da Argentina, Alberto Fernández, escreveu no Twitter uma mensagem de apoio à sua vice-presidente: "Hoje é um dia muito ingrato para quem, como eu, foi criado na família de um juiz, foi educado no mundo do Direito e ensina Direito Penal há mais de três décadas. Mais uma vez transmito o meu mais profundo carinho e solidariedade à vice-presidente." Vários outros líderes da coalizão governista se manifestaram nas redes a favor da ex-presidente. Mas também foram muitos os que saíram para celebrar o pedido de prisão da líder kirchnerista, tanto na internet quanto nas ruas, agitando bandeiras e batendo panelas. Foram registrados alguns incidentes em frente ao apartamento da vice-presidente em Buenos Aires, por pessoas favoráveis e contrárias à líder. É a primeira vez que a vice-presidente responde a uma ação penal. As investigações anteriores por supostos crimes de corrupção foram arquivadas por falta de provas. Nessa terça-feira, a vice-presidente disse que a Justiça de Santa Cruz já investigou as obras em questão e que os suspeitos foram inocentados. A expectativa é que, após as alegações finais de todas as partes, o que deve levar várias semanas, três juízes da Justiça Federal anunciem a sentença no final do ano. Caso a vice-presidente seja condenada, ela não poderá ser presa porque tem foro privilegiado até 9 de dezembro de 2023, quando termina seu mandato.De qualquer forma, os juristas garantem que, em caso de condenação, haverá recursos e provavelmente o processo terminará na Corte Suprema. Assim, pode levar anos até que haja uma condenação definitiva, e só então Cristina Kirchner seria impossibilitada de ocupar cargos públicos e seria detida — em prisão domiciliar, pois teria mais de 70 anos (hoje, ela tem 69 anos).
2022-08-24
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62654749
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Vídeo, A corrida por criptomoedas em uma pequena cidade do ParaguaiDuration, 6,30
O preço baixo da energia e o excedente da produção de Itaipu têm gerado em uma pequena cidade do Paraguai uma corrida por mineração de criptomoedas — um processo informatizado que utiliza bastante eletricidade. Villarrica tem 60 mil habitantes e 30 mil computadores dedicados ao novo negócio da criptomineração, que chegou à cidade há apenas dois anos. Neste vídeo, a repórter Mar Pichel, da BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC, mostra as oportunidades e críticas a essa "febre".
2022-08-23
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62636322
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'Aprendemos a usar armas, a matar': as crianças recrutadas para a 'guerra eterna' na Colômbia
Corinto parece uma cidade movimentada como qualquer outra: motocicletas sobem e descem pelas ruas principais, moradores andam pelas calçadas e donos de lojas chamam os clientes do lado de fora dos estabelecimentos. Mas, se alguém parar em qualquer esquina, há uma presença mais ameaçadora. Em uma parede está pintada a seguinte frase: "Abaixe o vidro ou balas". E uma assinatura: "FARC-EP", abreviação de Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia-Exército Popular. Esse é um alerta para que os motoristas se identifiquem quando entram no bairro. Ele se repete em muitos muros de Corinto, no sudoeste do departamento colombiano de Cauca. A guerrilha das Farc se desmobilizou em 2016, após assinar um acordo de paz com o governo. O movimento acabou com mais de cinco décadas de conflito civil. Fim do Matérias recomendadas Mas, quase seis anos depois, o acordo ainda não foi totalmente implementado e, embora a violência tenha diminuído depois do pacto, o que está acontecendo na zona rural da Colômbia causa preocupação em especialistas em segurança. Membros das Farc que não aceitaram o acordo, paramilitares de direita e novos grupos criminosos estão disputando território antes controlado pelo grupo guerrilheiro — e todos estão à procura de novos recrutas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Segundo a ONU, cerca de 600 crianças foram recrutadas por gangues armadas nos três anos após a assinatura do acordo de paz, um número que especialistas colombianos dizem ser bastante subestimado. Os colombianos pobres que vivem em áreas rurais antes controladas pelas Farc são os mais propensos a serem alvos de recrutamento. As mais vulneráveis ​​são as crianças indígenas. Derli (nome fictício), uma adolescente de 13 anos, faz parte do grupo indígena Nasa, que tradicionalmente luta contra gangues armadas. Derli está vestindo uma camiseta rosa estampada que diz "Só amor", uma frase contraditória com sua história de violências. Derli fugiu de casa devido a um relacionamento conturbado com a mãe. Ela ficou tentada pelo dinheiro oferecido pelos dissidentes das Farc e porque alguns de seus amigos haviam partido antes dela. Mas logo se arrependeu. "Aprendemos a usar armas, aprendemos a matar pessoas e amarrá-las", diz ela, torcendo as mãos de maneira nervosa enquanto conta sua história. "Eles me amarraram, me fizeram passar fome", acrescenta. "Eles sempre disseram que esta vida era para caras durões. Eu tinha que andar de moto enquanto alguém estava sendo executado. Eu nunca quis fazer isso, mas se você não fizesse, você era punido ou morto." Da janela, Derli aponta para a montanha para onde a levaram. Ela conta que foi resgatada uma noite pelo cacique do grupo indígena depois que uma mulher entrou em contato com ele pedindo ajuda. Mas mesmo quando ela estava em casa, seu pesadelo continuou. "Recebi ameaças de morte", conta. Um dia, ela acordou e encontrou algumas pessoas armadas em frente a sua casa. "Minha família me escondeu em um quarto." Segundo o tribunal de justiça de transição da Colômbia, mais de 18 mil crianças foram forçadas a se juntar às guerrilhas das Farc durante um período de 20 anos. Recrutar e treinar crianças-soldados era uma tática conhecida. 'A guerrilha não pagava' Muitos colombianos sentem que a prometida paz ainda não existe na zona rural do país, apesar do cessar-fogo oficial. "Não melhorou, piorou", diz Luz Marina Escué, uma líder comunitária que ajuda indígenas a localizar crianças vulneráveis antes de serem recrutadas ou resgatá-las depois. "As gangues vêm, tiram maços de notas, mandam as crianças comprarem o que quiserem", diz ela. "Não é mais uma guerrilha que luta pelo povo. São grupos que estão matando o povo." Esse é um sentimento ecoado por Boris Guevara, ex-membro das Farc. Ele se juntou à guerrilha quando tinha 16 anos, mas largou as armas em 2016. "As Farc nunca me pagaram. Toda atividade econômica era para apoiar o exército, não para pagar soldados", diz ele. "Eu nunca recebi um centavo pelo trabalho que fiz. Isso causou uma enorme divisão: entre se tornar mercenários pagos e uma consciência política onde você está fazendo sacrifícios por algo em que acredita." Segundo Luz Marina Escué, o recrutamento de crianças por esses grupos está destruindo o futuro da Colômbia. "São as sementes que iriam semear a nossa terra", diz. Por outro lado, grande parte dessa terra ainda está cheia de plantações ilegais. Do outro lado do vale, há plantações de coca e maconha. Nem todos esses campos estão escondidos: alguns são visíveis à beira da estrada. Ao anoitecer, as encostas são iluminadas por pontos de luz suspensos sobre as plantações de maconha. O acordo de paz pretendia conter a produção de cocaína, mas ela continua a aumentar. Segundo os Estados Unidos, a Colômbia produziu cerca de 972 toneladas de coca em 2021. Há dez anos, esse número era de 273 toneladas. Ainda existem agricultores cultivando outros produtos. Mas, enquanto um quilo de laranja é vendido por 15 centavos, a coca ou a maconha pagam centenas de vezes mais. "Não somos narcotraficantes", diz Irma Corpus, uma plantadora de coca. Como parte do acordo de paz, a substituição voluntária de culturas foi incentivada, mas muitos camponeses sentem que o governo não cumpriu sua parte no acordo. "Claro que concordamos com a erradicação (das plantações de coca e maconha), mas tem que ser gradual, não temos alternativas", diz Irma. "O acordo de paz no papel foi muito elegante, eles nos prometeram tudo, mas na realidade nada foi cumprido." São os jovens colombianos que estão pagando o preço da violência contínua. Jovani Chilhueso recebeu US$ 400 (cerca de R$ 2.000) para se juntar a uma gangue. Alguns de seus amigos foram assassinados na região. "Quando peguei uma arma pela primeira vez, senti uma descarga de adrenalina", diz ele. "Era algo que eu gostava, queria atirar, mas a realidade é que uma luta não é o mesmo que atirar." Seu pai, Daniel Rivera, é um vigilante que protege sua comunidade indígena das gangues armadas. Ele não esperava que seu filho se juntasse a uma delas. "Senti muita tristeza e dor pensando que poderia perder meu filho", diz Daniel. "A primeira coisa que você pensa é: onde eu falhei?, o que eu fiz de errado?". Nessas áreas da Colômbia, o caminho dentro da lei é difícil. Muitos esperam que o novo presidente, Gustavo Petro, cumpra suas promessas de campanha de diminuir a violência, alcançar a "paz total" para acabar com o que chamou de "guerra eterna", além de oferecer aos jovens a oportunidade de forjar seu próprio futuro.
2022-08-23
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62639983
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'Brasil vai virar Argentina': como país vizinho virou 'nova Venezuela' nas redes bolsonaristas
"Quatro anos atrás Venezuela era o exemplo, em 2022 temos mais a Argentina", publicou o empresário Luciano Hang, conhecido como "Véio da Havan", no último dia 11 de agosto. A frase escrita por um dos empresários mais alinhados ao presidente Jair Bolsonaro ilustra bem um fenômeno que vem ganhando força nas redes sociais: o uso da crise argentina como estratégia eleitoral. Um levantamento feito pela Diretoria de Análise de Políticas Públicas (DAPP) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a pedidos da BBC News Brasil, mostra que o volume de menções sobre a Argentina no debate político no Twitter já é maior do que o da Venezuela, um país cuja crise foi amplamente utilizada por políticos brasileiros nos últimos anos. De janeiro a agosto de 2022, foram 494,4 mil menções à Argentina, contra 483,6 mil à Venezuela, em posts que envolvem o debate eleitoral. Levando em conta o período entre o fim de julho e começo de agosto, com a proximidade das eleições, a Argentina já é mencionada mais que o dobro de vezes. "Os posts com mais retuítes foram feitos por contas bolsonaristas. O movimento é todo puxado por declarações do presidente e posts de seus apoiadores", diz Victor Piaia, pesquisador responsável pelo levantamento na FGV. Fim do Matérias recomendadas O Twitter, diz Piaia, é representativo por ser "a plataforma que reúne mais condições para a disputa de narrativas e visões entre diferentes grupos políticos". Nos últimos meses, o presidente e pessoas próximas, como o filho Eduardo Bolsonaro, dedicaram espaço em várias redes sociais para falar do país vizinho. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Essa atual crise passa, a que não passa é a do Socialismo, que o PT ajudou a implementar na Venezuela, está em andamento na Argentina", escreveu o presidente em maio. Eduardo fez recentemente uma live no Facebook e Twitter sobre "O fracasso político na Argentina" e pediu para seus seguidores combaterem a "desinformação" compartilhando a situação no país vizinho. Nas eleições de 2018, a situação era diferente. Nos meses que antecederam o pleito, o então candidato Bolsonaro fazia várias menções à Venezuela no Twitter e nenhuma à Argentina, na época governada pelo direitista Mauricio Macri. Já Eduardo mencionava os vizinhos em comentários pontuais sobre futebol. Muda o país, mas o tom segue o mesmo: um "alerta" ou uma "ameaça" de que, se o candidato rival vencer, o destino do Brasil será aquele de vídeos e imagens compartilhadas. Uma análise feita por pesquisadores da Universidade Federal Fluminense (UFF) mostrou que, em 150 grupos de Whatsapp ligados ao bolsonarismo nas eleições de 2018, o número de menções à crise na Venezuela disparou nos meses que antecederam a votação. O professor Viktor Chagas, coautor do artigo "O Brasil vai virar Venezuela: medo, memes e enquadramentos emocionais no WhatsaApp pró-Bolsonaro", ressalta que esse tipo de comparação com as crises venezuelanas vem desde 2002, na campanha de José Serra (PSDB) contra Lula. A campanha tucana utilizou a situação da Venezuela na época (com greve geral e tentativa de deposição de Hugo Chávez), para atacar Lula, sinalizando que o posicionamento do petista levaria a uma crise similar à vivenciada pelo país vizinho. Lula acabou sendo eleito. "Bolsonaro resgata isso, justamente porque o bordão 'Brasil vai virar Venezuela' é capaz de evocar o imaginário antipetista que, para 2018, foi exatamente o mote da campanha", diz Chagas. Por que, então, os holofotes se voltam agora à Argentina? De fato, a Argentina passa por um momento de crise — algo que não é incomum no país nas últimas décadas, seja em governos de esquerda ou direita. A Argentina sofre historicamente com uma falta de fio condutor em sua economia. Nas últimas quatro décadas, os modelos de crescimento têm oscilado bastante entre um governo e outro, indo muitas vezes em direções opostas — como aconteceu, mais recentemente, com o governo liberal de Macri, que sucedeu os dois mandatos de Cristina Kirchner, marcados por um viés mais protecionista. O resultado é que os principais problemas (como inflação, dívida externa e a desvalorização do peso) tiveram bons momentos, mas nunca solução de médio prazo. "Na Argentina, a profunda divisão causada no Peronismo [o movimento político criado pelo presidente Juan Domingo Perón na década de 1940] faz com que, quem assume quer destruir o que o outro fez", explica Carlos Eduardo Vidigal, professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) e especialista nas relações entre Brasil e Argentina. Já em relação ao Produto Interno Bruto (PIB), que é a soma de todas as riquezas de um país, o da Argentina cresceu 0,9% no primeiro trimestre de 2022, em relação ao trimestre anterior (já descontadas as sazonalidades da economia durante o período de fim de ano), e 6% em relação ao mesmo período em 2021. O Brasil cresceu 1% no primeiro trimestre de 2022, em relação ao trimestre anterior, e 1,7%, em relação ao mesmo período em 2021. "As crises de Brasil e Argentina têm naturezas diferentes, com duas situações graves. A Argentina tem muitos e muitos anos de inflação elevada, mas, em termos de pobreza, fome e desigualdade, não saberia dizer qual está pior. O Brasil está numa situação lamentável, mas a Argentina nem sequer tem dados confiáveis para analisar", avalia Carlos Vidigal. "Acredito que esse maior foco na Argentina se deve ao fato de que a Venezuela perdeu visibilidade na mídia. Em 2018, a crise humanitária venezuelana estava no auge, com muitos imigrantes chegando ao Brasil. E também porque a crise se agravou na Argentina, justamente num governo alinhado ao PT", completa. O professor também analisa que não teria como "Brasil virar Argentina'' devido a grandes diferenças estruturais na economia dos dois países, como a grande dívida externa do país vizinho e a dependência que eles têm em relação ao dólar americano. Segundo Vidigal, nas últimas décadas o Brasil conseguiu diversificar mais os seus parceiros comerciais e suas relações internacionais. Além disso, "por mais profunda que seja nossa desindustrialização, a indústria tem ainda um papel relevante no Brasil". Politicamente, a Argentina enfrenta ainda outro desafio, de acordo com o professor: lá, os políticos ligados ao peronismo, como os Kirchner, entram em queda de braço constante com o agronegócio, o setor mais poderoso da economia e a quem chamam de "oligarquias". "Aqui, o agro está em todos os partidos políticos". Não é desde sempre que o que acontece na Argentina repercute no Brasil, apesar da importância histórica dos dois países no cenário regional da América do Sul. De acordo com professor Carlos Eduardo Vidigal, "se fala muito mais do Brasil na Argentina do que se fala da Argentina no Brasil". Isso se dá principalmente devido à importância do Brasil para as exportações argentinas. Mas foi nos governos Lula e Kirchner (Nestor e, depois, Cristina) que o debate ideológico dentro dos países começou a repercutir nos seus respectivos vizinhos, diz Vidigal. "Isso aconteceu porque, até então, não havia uma coincidência [ideológica] tão grande entre os governos dos dois países. Lula fez propaganda para os Kirchner, que usaram politicamente a popularidade do petista". No fim de 2021, Lula foi até o país participar de atos com Alberto Fernández. Essa aproximação é justamente o alvo dos apoiadores de Bolsonaro, que creditam os problemas econômicos a um aliado (Fernández) que age da mesma forma que Lula. Para Victor Piaia, da FGV, os eventos que ocorrem na Argentina estão sendo amplamente utilizados porque a rede de militância digital de Bolsonaro é "muito atenta internacionalmente em relação a temas que são caros à sua agenda". Em agosto, por exemplo, o presidente condenou o país vizinho por ter "aprovado a linguagem neutra". Na verdade, alguns órgãos federais anunciaram a inclusão da linguagem inclusiva em seus documentos oficiais, mas ela não foi "oficializada" no país. Cidades como Buenos Aires vetaram o uso em suas escolas. Piaia explica que a tática mais utilizada é a "inundação informacional" - a disseminação intensa de vários conteúdos caros aos bolsonaristas em todas as redes sociais, como a crise argentina. Ou seja, "se você é pego de surpresa sobre um assunto que não conhece e é bombardeado por diversos conteúdos, pode até não concordar, mas provavelmente alguma dessas informações vai ficar na sua cabeça". Este texto foi originalmente publicado em: https://www.bbc.com/portuguese/salasocial-62567470
2022-08-21
https://www.bbc.com/portuguese/salasocial-62567470
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A escola de ioga de Buenos Aires acusada de explorar prostituição de alunos por 30 anos
O prédio de dez andares no bairro residencial de Villa Crespo, na região norte de Buenos Aires, não chamava muita atenção dos moradores. Ali, funcionou por 30 anos a Escola de Yoga de Buenos Aires (EYBA). Muitos acreditavam que o edifício era simplesmente uma organização da "New Age", que prometia curar as pessoas espiritualmente. Mas, de acordo com a Justiça argentina, o que realmente funcionava naquele prédio era um perigoso esquema de pirâmide. Por trás da fachada de "grupo espiritual", a escola atraia "alunos" — incluindo vários moradores dos Estados Unidos — para explorá-los financeiramente e, no caso de algumas mulheres, para prostituí-las. O objetivo era obter dinheiro e favores. Fim do Matérias recomendadas Os donos da escola não se pronunciaram. Em 12 de agosto, membros do Departamento de Tráfico de Pessoas da Superintendência de Investigações da Polícia Federal argentina invadiram o prédio e cerca de 50 outros locais em busca de 20 pessoas acusadas de liderar a organização criminosa. Ao todo, 20 suspeitos foram presos. Também foi pedida a prisão de outras quatro pessoas que estariam nos Estados Unidos. O juiz federal Ariel Lijo, responsável pelo caso, acusou os detidos de crimes de tráfico de pessoas para efeitos de redução à servidão (agravado por coação, furto qualificado, lavagem de dinheiro, associação ilícita, exercício ilegal de medicina, venda irregular de medicamentos e tráfico de influência). Um dos presos era Juan Percowicz, um contador de 84 anos que é considerado o líder do grupo. Percowicz já havia sido acusado dos mesmos crimes em 1993, mas o caso não avançou. Alguns policiais disseram acreditar que a ligação de Percowicz com autoridades o protegeu de ser condenado na época. Além de prender os acusados, as autoridades fizeram buscas em 37 propriedades, apreenderam 13 carros e mais de um milhão de dólares (cerca de R$ 5,1 milhões). Os bens do grupo também foram congelados. Segundo a investigação, a Escola de Yoga de Buenos Aires faz parte de uma organização maior, a BA Group, com sede na capital argentina. Ela recrutava alunos em três cidades americanas: Nova York, Las Vegas e Chicago. O caso lista "179 alunos, distribuídos em suas diversas localidades". A escola de ioga dizia ser "uma organização espiritual que ajuda a curar vícios e doenças, incluindo o HIV." Percowicz é o líder espiritual do grupo. Seus alunos o chamam de "O Professor" ou "Anjo", e ele ocupa o posto mais alto da pirâmide: o sétimo. Abaixo dele havia toda uma hierarquia de poder. Existiam os "Apóstolos", no nível 6, e abaixo deles os "Gênios". Os "Estudantes" formam o nível 4. Em 3, 2 e 1 havia o que o grupo chamava de "Humanos Comuns". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os investigadores acreditam que, por trás desse esquema de pirâmide, existia uma organização criminosa que lucrava às custas de seus seguidores. A escola teria obtido U$ 5 milhões (cerca de R$ 25 milhões) através de vários canais. Um deles era conhecido como "gueixa VIP". Segundo a investigação, esse canal era uma das principais fontes de financiamento do grupo. Ele consistia na exploração sexual de alguns dos "alunos" da escola de ioga. Algumas mulheres eram obrigadas a "ter encontros sexuais com pessoas de alto poder econômico para arrecadar dinheiro e obter proteção e/ou influência". O objetivo era atrair empresários ou pessoas de poder para "obter grandes somas de dinheiro para a organização". Outro canal era ligado a supostos tratamentos de saúde. A escola operava uma clínica de "cura" para várias doenças, fornecendo medicamentos que prometiam "curar vícios", por exemplo. Muitos pacientes foram recrutados nos Estados Unidos e enviados a Buenos Aires para realizar tratamentos desse tipo. Havia também o "cerimonial", outro canal de financiamento. Esse termo, na verdade, era uma mensalidade de US$ 200 (R$ 1.035) que os "alunos" tinham que pagar para fazer parte da organização. As autoridades acreditam que alguns desembolsavam quantias muito maiores, chegando até US$ 10 mil (R$ 51,7 mil). O grupo também tinha muitas propriedades. Quando eram cooptados pela quadrilha, os "alunos" eram obrigados a colocar seus bens no nome da organização. A investigação encontrou 186 títulos de propriedades pertencentes à escola. De acordo com a agência de notícias estatal argentina Télam, os acusados se recusaram a testemunhar à polícia.
2022-08-19
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62599311
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Nicarágua: quem é Daniel Ortega, presidente que virou personagem da campanha eleitoral no Brasil
A Nicarágua se tornou um tema em destaque nas redes sociais brasileiras nos últimos dias, depois que o presidente Jair Bolsonaro (PL), membros do seu partido e alguns de seus apoiadores associaram o governo autoritário de Daniel Ortega e casos de perseguição religiosa no país à campanha do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Em evento com religiosos e fiéis evangélicos em Juiz de Fora (MG) na terça-feira (16/8), Bolsonaro afirmou que Ortega é "aliado" do petista e vem perseguindo cristãos na Nicarágua. O presidente ainda se referiu a Lula como "descondenado". "Estamos acompanhando o que acontece em outros países da América do Sul, da América Central, como a Nicarágua, onde rádios católicas foram fechadas, procissões impedidas", disse. Nesta quinta-feira (18/8), o filho do presidente e senador Flávio Bolsonaro (PL) compartilhou em seu perfil no Twitter uma postagem que também fazia menção ao país da América Central. "Um aviso aos católicos e evangélicos: Na Nicarágua, o amigo de Lula, anda prendendo padre e fechando igrejas! Vigia!", escreveu. Em sua página no Twitter, Lula afirmou que pretende tratar "todas as religiões com respeito". "Religião é para cuidar da fé, não para fazer política. Eu faço campanha eleitoral respeitando religião, e não uso o nome de Deus em vão", escreveu. Fim do Matérias recomendadas Essas não foram as primeiras vezes em que Bolsonaro e seus aliados usaram a administração de Daniel Ortega como exemplo de esquerda não democrática. As menções ao governo do ex-revolucionário sandinista têm sido cada vez mais presentes entre apoiadores da campanha do atual presidente para atacar adversários. Mas, afinal, quem é Ortega e qual seu papel na atual onda de repressão na Nicarágua? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast De baixa estatura e com grandes óculos quadrados, Daniel Ortega não se parecia com um típico militar quando chamou a atenção do mundo pela primeira vez na década de 1980. No entanto, como líder da revolução sandinista de esquerda da Nicarágua, foi creditado por derrubar um ditador e depois os rebeldes patrocinados pelos EUA, que tentaram bloquear sua empreitada por um poder legítimo. Agora em 2022, quatro décadas depois, Ortega foi empossado para seu quarto mandato consecutivo como presidente após vencer as eleições em novembro do ano passado. O processo eleitoral foi duramente criticado pela comunidade internacional, que o classificou como "antidemocrático", "ilegítimo" e "sem credibilidade". Mais de 30 líderes da oposição foram presos, incluindo sete candidatos presidenciais que não puderam concorrer. Terminado o atual mandato, Ortega soma 20 anos consecutivos no poder. Se contarmos outros mandatos, ele já ocupou a cadeira de presidente da Nicarágua por um total de 29 anos e é o líder mais antigo das Américas. Para seus apoiadores, ele continua sendo um verdadeiro patriota. Eles o chamam de Comandante Daniel, em um misto de reverência e carinho. Seus críticos, que incluem muitos ex-aliados, dizem que ele se tornou um governante corrupto e autoritário, que deu as costas a seus ideais revolucionários e está cada vez mais parecido com o ditador que ajudou a depor. Filho de um sapateiro, Ortega ainda era adolescente quando ingressou na Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), de esquerda. O grupo lutou contra a ditadura de Anastasio Somoza, cuja família governava o país desde 1936. Na década de 1960, o jovem abandonou o curso de direito para se comprometer totalmente com a causa. Quando ainda estava na casa dos 20 anos, ele assaltou uma agência bancária na capital, Manágua, com uma metralhadora, em uma tentativa de arrecadar fundos. Ele foi preso e severamente torturado durante sete anos na prisão. Em 1974, ele conseguiu a libertação antecipada — junto com outros sandinistas — em uma troca de reféns. O acordo previa seu envio para Cuba e ele usou a oportunidade para se especializar em táticas de guerrilha e depois voltou para sua terra natal, onde a revolta liderada por camponeses estava prestes a se transformar em uma guerra civil em grande escala. Os sandinistas tomaram o poder em 1979, forçando o presidente Somoza ao exílio. Ortega foi eleito seu sucessor em 1984, depois de servir no conselho de "reconstrução nacional" de cinco membros dos sandinistas. A maioria dos observadores internacionais reconheceu a eleição de 1984 como livre e justa, apesar das reclamações da oposição. No entanto, o então presidente dos EUA, Ronald Reagan, classificou o pleito como uma "farsa" e intensificou seu apoio a grupos armados contrarrevolucionários conhecidos como Contras. Isso aconteceu no auge da Guerra Fria, quando Washington via os sandinistas como uma frente do comunismo soviético e cubano, e uma ameaça aos governos apoiados pelos EUA em toda a América Central. Dezenas de milhares de nicaraguenses morreram na guerra dos Contras e a Corte Internacional de Justiça (CIJ) mais tarde decidiu que os EUA violaram o direito internacional em sua intervenção. Apesar de ter conquistado ganhos importantes, principalmente em saúde, educação e reforma agrária, o primeiro governo sandinista foi criticado por seus fracassos econômicos. O impacto da guerra com os Contras e as sanções dos EUA tornaram impossível a reconstrução econômica. Nas eleições presidenciais de 1990, Ortega foi derrotado pela candidata liberal da oposição Violeta Chamorro, uma ex-colaboradora que rompeu com os sandinistas cada vez mais radicais e que formalmente encerrou a guerra. Uma combinação de acusações de corrupção e divisões profundas dentro do movimento sandinista levaram Ortega a sofrer mais duas derrotas eleitorais em 1995 e 2001. Entre as duas campanhas, sua enteada Zoilamérica Narváez o acusou de estuprá-la repetidamente quando criança. Ortega negou e evitou o julgamento invocando sua imunidade como membro do Congresso. Sua esposa Rosario Murillo -— uma poetisa que ele conheceu na prisão — o apoiou, dizendo que as acusações de sua filha eram "vergonhosas". As reputações pessoais de Ortega e Murillo foram duramente prejudicadas pelo escândalo. Em 2006, Ortega fez um retorno inesperado para a campanha presidencial das eleições daquele ano ao se afastar de suas fortes raízes comunistas, dizendo que buscaria investimentos estrangeiros para aliviar a pobreza generalizada — a Forbes classifica a Nicarágua como o segundo país mais pobre do hemisfério ocidental. Em uma campanha planejada por sua esposa, as bandeiras sandinistas pretas e vermelhas foram amplamente substituídas por cartazes de campanha cor-de-rosa; o uniforme militar verde-oliva foi trocado por camisas brancas sem gola, e os slogans marxistas foram trocados por um vago compromisso com "cristianismo, socialismo e solidariedade". "Jesus Cristo é meu herói agora", disse ele, em uma tentativa de diálogo com a população mais religiosa. Dias antes de ser eleito, ele provocou ainda mais controvérsia ao indicar que não seria contra uma proibição total do aborto. A atitude recebeu elogios de líderes católicos e evangélicos, mas enfureceu eleitores liberais e grupos de direitos humanos. Em 2009, a Suprema Corte da Nicarágua removeu os obstáculos constitucionais para permitir que Ortega concorresse a mais um mandato — uma medida que a oposição condenou como ilegal. Outras mudanças constitucionais foram feitas para permitir que ele concorresse a um terceiro mandato consecutivo em 2016. Muitos boicotaram a votação, dizendo que era injusta, já que a oposição havia sido anulada. No entanto, Ortega insistiu que as mudanças eram necessárias para a estabilidade do país. Ele escolheu sua esposa como sua companheira de chapa em 2016. Como vice-presidente, Murillo é a mais eloquente do casal, muitas vezes fazendo longos discursos na televisão. Em abril de 2018, grupos pró-governo reprimiram violentamente uma pequena manifestação contra as reformas do sistema previdenciário da Nicarágua. O clamor entre os críticos de Ortega fez com que o movimento se transformasse em um pedido popular por sua renúncia. À medida que a violência continuava, um estudante universitário ganhou destaque por chamar Ortega de assassino em um debate televisionado. Em julho, grupos de direitos humanos disseram que o número de pessoas mortas na violência relacionada aos protestos ultrapassou 300. Ortega resistiu aos apelos para renunciar ou convocar eleições. Murillo atribuiu a crise a "uma invasão de espíritos malignos que querem que o mal reine na Nicarágua". Mais recentemente, multiplicaram-se as acusações de perseguição contra a Igreja Católica no país. A tensão entre o governo de Daniel Ortega e a instituição cresceu desde que o clero forneceu abrigo a estudantes envolvidos nos protestos de 2018. Segundo uma pesquisa enviada à Ajuda à Igreja que Sofre (ACN, na sigla em inglês) e publicada em julho, a Igreja Católica na Nicarágua sofreu mais de 190 ataques e profanações em menos de quatro anos. Em 2019, o bispo auxiliar de Manágua, Silvio Báez, deixou o país após receber várias ameaças de morte. Em março deste ano, o governo expulsou o Núncio Apostólico — o equivalente da Igreja Católica a um embaixador — em um movimento que o Vaticano classificou como uma "medida unilateral injustificada". Em julho, freiras Missionárias da Caridade de Santa Teresa, uma ordem fundada pela Madre Teresa de Calcutá, foram obrigadas a deixar o país depois que sua organização foi considerada ilegal. Além disso, segundo a agência de notícias oficial do Vaticano, o bispo da Diocese de Matagalpa (norte do país), Dom Álvarez, e seis sacerdotes, estão desde 4 de agosto impedidos de deixar o bispado onde vivem, que está cercado por forças especiais da polícia. O próprio presidente Ortega acusou o clero católico de ser "golpista" e os chamou de "demônios de batina". A presidência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) afirmou ter enviado uma carta ao presidente da Conferência Episcopal de Nicarágua, dom Carlos Enrique Herrera Gutiérrez, para expressar sua solidariedade com a atual situação da Igreja Católica no país. "Sentimo-nos profundamente unidos aos irmãos bispos e a todo o povo nicaraguense", afirmou a CNBB na carta divulgada.
2022-08-18
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62598789
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Buraco gigante no deserto do Chile não para de crescer e intriga cientistas
Os moradores vizinhos não conseguiam acreditar no que estavam vendo em uma estrada em Tierra Amarilla, cidade de cerca de 15 mil habitantes na região do Atacama, no norte do Chile. Uma enorme cratera circular de 32 metros de largura e 64 metros de profundidade surgiu no meio de uma estrada que atravessa um terreno de propriedade de uma mineradora. Uma semana depois, o buraco aumentou: seu diâmetro agora é de 36,5 metros, de acordo com as últimas medições de satélite. O Serviço Nacional de Geologia e Mineração do Chile (Sernageomin) ordenou que a companhia de mineração Candelaria interrompesse todas as suas operações na área. Também abriu um processo disciplinar contra a empresa, enquanto uma equipe investiga as possíveis causas do sumidouro. Fim do Matérias recomendadas Geólogos consultados pela BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, explicaram que há vários eventos naturais ou resultado da atividade humana que podem causar um sumidouro deste tipo. Mas consideraram principalmente dois: o primeiro estaria relacionado às chuvas intensas que caíram na região no mês de julho. "Você tem várias camadas no solo, e há várias maneiras pelas quais a água pode erodir", afirma o geofísico chileno Cristian Farías, diretor de construção civil e geologia da Universidade Católica de Temuco, no Chile. Ele explicou que "quando cai muita água da chuva em solos com alto teor de gesso, a água percola e corrói toda a parte inferior por vários dias, o que tira a sustentabilidade da parte superior e acaba gerando um colapso". A segunda hipótese aponta para a influência da atividade mineradora na área. A companhia de mineração Candelaria explora uma jazida de cobre em Tierra Amarilla, e as galerias de sua mina penetram no subsolo, tanto no entorno do buraco quanto abaixo dele a uma profundidade muito maior. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "As informações preliminares que circulam apontam para a intervenção da mineradora que realizou uma exploração excessiva de minerais naquela área", afirma Cristóbal Muñoz, diretor da ONG informativa Red Geocientífica de Chile. Ele destaca que a empresa "tinha uma projeção prevista para extrair 38 mil toneladas de minério, mas extraiu cerca de 138 mil toneladas, mais que o triplo" naquela jazida. A intervenção da mineração pode ter desestabilizado o solo, segundo ele, desviando as águas subterrâneas do seu curso natural e esvaziando os aquíferos, gerando espaços que favorecem o terreno a ceder e cair devido ao seu próprio peso, formando a cratera. A Candelaria reconhece, por sua vez, a superexploração de minerais, mas garante que foi totalmente legal. "Em relação à extração excessiva, isso foi informado pela própria empresa às autoridades", declarou o gerente de relações públicas da empresa, Edwin Hidalgo. Uma fonte do setor explicou à BBC News Mundo que é comum que mineradoras de cobre extraiam mais material do que o estimado devido à detonação de explosivos, entre outros motivos. O representante da empresa alegou que é cedo para tirar conclusões e destacou que "estão sendo investigados os diferentes fatos que podem ter causado o sumidouro, entre os quais se destaca a precipitação registrada no mês de julho". Os moradores de Tierra Amarilla organizaram um protesto no domingo, e o prefeito, Cristóbal Zúñiga, pediu à mineradora que assuma sua responsabilidade, embora não a tenha apontado diretamente como culpada, enquanto aguarda as conclusões da investigação. A ministra de Minas do Chile, Marcela Hernando, prometeu, por sua vez, ir "até as últimas consequências" para punir os responsáveis ​​uma vez que forem identificados. Os deslizamentos de terra nas paredes do sumidouro têm sido constantes nos últimos dias, a ponto de aumentar seu diâmetro em 450 cm até os atuais 36,5 metros. "Primeiro começou a alargar na parte de baixo; depois começou a criar uma forma assimétrica, e o que está em cima não tem suporte, então começa a cair e vai se alargando de forma lenta mas dramaticamente até chegar à forma de cilindro", observou Farías, autor do livro Volcanes y terremotos ("Vulcões e terremotos", em tradução literal). Sendo assim, a previsão é de que o buraco continue a crescer pelo menos até que o diâmetro na superfície se iguale ao do fundo, que é de 48 metros. Muñoz acredita, no entanto, que pode aumentar ainda mais se houver novas desestabilizações no terreno. "De qualquer forma, não poderia ser mais de 200 ou 300 metros, que é o que importa para nós, porque o povoado mais próximo fica a 600 metros", declarou. Ele não descartou, no entanto, que este fenômeno seja reproduzido em outras áreas da região. "As áreas que seriam mais suscetíveis à ocorrência de outros sumidouros também estão sendo estudadas", afirmou. Não é a primeira vez que um fenômeno do tipo acontece em Tierra Amarilla. Em novembro de 2013, uma cratera de 20 metros de comprimento e 30 metros de largura com 30 metros de profundidade apareceu após o colapso de uma estrutura subterrânea de uma operação de mineração. Também chamou a atenção que a cratera forme um círculo quase perfeito. "A aparência redonda de tal buraco se deve à forma do colapso", afirmou Cristian Farías. O geofísico explicou que o colapso "começa em um ponto e se vai se estendendo de forma simétrica, ou seja, para todos os lados, radialmente, e isso faz com que tudo que colapsa o faça em círculo e pare em algum momento, quando encontra estabilidade. "Muitas estruturas de colapsos na natureza ocorrem dessa maneira. Quando os vulcões, por exemplo, desmoronam porque o edifício vulcânico cai devido ao seu próprio peso, ou porque havia fluidos que não estão mais lá, a estrutura que é gerada costuma ser bastante circular; às vezes, um pouco mais oval, mas mais frequentemente circular". Ainda não se sabe também o que o futuro reserva para o inesperado sumidouro de Tierra Amarilla. O buraco será tapado ou ficará à mercê das intempéries? "A capacidade volumétrica que este sumidouro tem é bastante grande. Para ser honesto, não pode ser tapado facilmente, então uma solução seria cercar esse perímetro e colocar barreiras de segurança", avalia o diretor da Red Geocientífica de Chile. Para Muñoz, é importante "garantir que as pessoas não se aproximem para tirar fotos", pois podem ocorrer acidentes. Ele afirmou ainda que, mesmo que se tentasse tapá-lo, poderia ser em vão devido à própria natureza do buraco. "Tem que pensar que parte da terra que caiu não está mais embaixo, porque tem um fluido que é a água. Quando caiu, foi como por um rio." O gerente de relações públicas da mineradora assegurou, por sua vez, que grande parte dos sedimentos teria se acumulado no fundo do buraco, reduzindo sua profundidade de 64 para 62 metros, segundo suas últimas medições.
2022-08-09
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62476278
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Gustavo Petro: os desafios do novo presidente da Colômbia na economia
Primeiro presidente de esquerda da história da Colômbia, Gustavo Petro tomou posse neste domingo (7/8) com um desafio: conciliar uma agenda reformista ambiciosa, que se pretende histórica, com uma grave crise econômica. Ex-guerrilheiro, economista, ex-prefeito de Bogotá e deputado de destaque por duas décadas, Petro chegou ao poder graças à sua proposta de mudar o cenário deste país desigual e violento. Seu plano de governo é talvez o mais ambicioso que já chegou ao poder no país. Propõe mudanças estruturais nos sistemas trabalhista, previdenciário, educacional e de saúde. Aspira aprovar a tão esperada e polêmica reforma agrária. Quer direcionar a economia para uma produção limpa e não extrativista. Petro, no entanto, assume um país em crise, o que limita seu espaço de manobra: pobreza, desigualdade, inflação, valor do peso colombiano, endividamento e déficits fiscais e em conta corrente estão todos no vermelho. Uma anomalia para uma economia tradicionalmente estável. Fim do Matérias recomendadas Soma-se a isso o contexto internacional, com as grandes economias à beira da recessão, inflação disparada e o aumento das taxas de juros nos países desenvolvidos afetando economias emergentes como a Colômbia. Desde que foi eleito, em junho, Petro se dedicou a acalmar os temores de que sua agenda esquerdista pudesse se traduzir em expropriações, gastos públicos desenfreados ou constrangimento do setor privado. Para isso, forjou alianças com os partidos políticos tradicionais, arquitetos do atual modelo colombiano. E nomeou como ministro da Fazenda José Antonio Ocampo, renomado professor socialdemocrata que trabalhou por uma década na ONU (Organização das Nações Unidas) e ocupou a pasta há 25 anos. "Não vou propor loucuras, nem vou aceitar loucuras", disse Ocampo ao jornal colombiano El Tiempo esta semana. "Modéstia à parte, minha nomeação faz parte da credibilidade que o novo governo tem com o compromisso de manter a casa em ordem." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na mesma entrevista, Ocampo alertou sobre a complexa situação do novo governo. Quando questionado sobre o que tira seu sono, respondeu: "Combinar a necessidade de ajuste fiscal com a demanda por recursos para maiores gastos com programas sociais." O relatório de transição apresentado esta semana pelo novo governo reportou ter encontrado um Estado subfinanciado (isto é, com menos recursos do que o necessário), com enormes dívidas no setor de saúde, falta de recursos em entidades chave, orçamentos aprovados sem possibilidade de execução e lacunas em subsídios cruciais como o da gasolina. O presidente em fim de mandato Iván Duque defende que sua gestão foi a que mais investiu em igualdade na história, por ter regularizado a situação de milhares de migrantes venezuelanos e inaugurado importantes obras de infraestrutura. Hoje a Colômbia é uma das economias que mais crescem na região, de acordo com o último relatório do FMI (Fundo Monetário Internacional). No entanto, Duque deixa o cargo com 20% de aprovação, segundo pesquisas, e com críticas de especialistas como Leopoldo Fergusson, professor da Universidade dos Andes: "Duque foi muito irresponsável fiscalmente, fez tudo o que um candidato ortodoxo como ele não deveria fazer." "Tudo o que foi feito antes da pandemia [aumentar os gastos e flexibilizar a regra fiscal com o argumento da migração venezuelana] nos fez receber a pandemia com as finanças públicas em crise", critica o economista. Se Petro quiser manter certa estabilidade macroeconômica, terá então que fazer um ajuste: cortar os gastos do Estado para que o déficit fiscal caia, e assim conter a inflação e a desvalorização cambial. Para isso vai precisar de dinheiro. E de ainda mais dinheiro se quiser cumprir suas promessas ambiciosas em educação, transporte e uma longa lista de anseios frustrados por décadas. As reformas de Petro dependem dos recursos em caixa e emitir dívida não é exatamente uma opção, pois o país já deve o equivalente a 50% do PIB (Produto Interno Bruto), e os juros estão altos desde a perda do grau de investimento em meio a uma crise política em 2021. O grau de investimento é um "selo de bom pagador" atribuído por agências internacionais de avaliação de risco, que atesta que um governo tem boas condições de arcar com seus compromissos financeiros. Ele permite captar recursos no mercado financeiro a custos mais baixos. Por conta de tudo isso, o legado de Petro estará em jogo já em sua primeira reforma: a tributária. Questão sensível pois, há pouco mais de um ano, o país entrou em convulsão social após uma proposta apresentada por Duque. Ocampo anunciou que o projeto será apresentado na segunda-feira (8/8), um dia após a posse presidencial. E o líder da bancada de apoio a Petro e presidente do Senado, Roy Barreras, fala em aprovação "fast track" (por via rápida) no primeiro ano de legislatura. Eles sabem que a lua de mel pode ser curta. "Petro aposta tudo na reforma", diz Fergusson, da Universidade dos Andes. "Sua capacidade de não assustar, de conseguir dinheiro e de dar noções de direção". A economista Marcela Eslava explica que o atual sistema tributário na Colômbia tem dois problemas estruturais: "A arrecadação é insuficiente para cumprir sua obrigação constitucional de reduzir a desigualdade e é muito pesada para as empresas, por isso não gera igualdade, nem prosperidade". A isso se somam as isenções, intrincados mecanismos legais usados por milhares de colombianos para pagar menos impostos. E uma rede de formas de arrecadação considerada por organizações especializadas como um dos sistemas tributários mais complexos do mundo. "Há muitas pessoas que fizeram fortuna na Colômbia e evitam cumprir com sua contribuição, o que nos impede de construir uma sociedade mais justa e segura", diz Ocampo. O novo ministro teve que desmentir relatos de que o imposto sobre ganhos ocasionais — recursos da venda ocasional de bens, ganhos econômicos excepcionais ou ganhos em rifas e loterias — será elevado dos atuais 10% para 35% e que o IVA (Imposto sobre Valor Agregado, que incide sobre o consumo de bens e serviços) aumentará. Ele também diminuiu a urgência de uma das propostas mais polêmicas de Petro durante a campanha: a de acabar com a exploração de petróleo, maior fonte de receitas do país. Embora os detalhes ainda não sejam conhecidos, Ocampo diz que o principal objetivo da reforma é que as pessoas físicas de alta renda contribuam mais e que as isenções sejam regulamentadas. É provável também que ele implemente um imposto sobre o patrimônio para os mais ricos. Em todas essas áreas a Colômbia têm alíquotas muito mais baixas do que o recomendado por organizações internacionais. Com a reforma, a nova gestão pretende arrecadar o suficiente para cobrir o déficit e pagar os compromissos da dívida, que é o mais urgente. E Petro prometeu aumentar a assistência aos mais pobres no dia seguinte à sua posse. A reforma também espera aliviar a pressão sobre as empresas para incentivar a produção, obsessão de Ocampo como economista estruturalista, corrente que prega um capitalismo equitativo, eficiente e desenvolvido. Durante a campanha, Petro disse que sua reforma tributária tentaria gerar ganhos de 50 trilhões de pesos, cerca de R$ 59 bilhões, o equivalente a 5% do PIB colombiano. É muito. Parece inviável. É o dobro do que a reforma de Duque, que desencadeou uma revolta popular em 2021, pretendia arrecadar. "Mas, se algum governo tem a economia política do seu lado para minimizar as dificuldades, é o governo de Petro, porque a mobilização social que derrubou a reforma [de Duque] foi acompanhada por ele e os grupos que se sentiram excluídos são acolhidos por ele", diz Eslava. Recém-eleito, sem desgaste político e com seu "acordo nacional" às vésperas de entrar no Congresso, Petro provavelmente vai propor a reforma tributária mais ambiciosa dos últimos tempos. Dela dependerá o sucesso do seu governo.
2022-08-08
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62444024
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As 43 domésticas sul-americanas que denunciam a Opus Dei por servidão e exploração
Disseram que elas tinham "vocação para santas", que foram chamadas a "servir a Deus". Então submeteram elas a jornadas de trabalho de até 15 horas, isoladas em residências, com uma rotina de oração e penitências que incluía banhos frios e autoflagelação. É o que dizem ter sofrido 43 mulheres da Argentina, Paraguai e Bolívia que, em setembro de 2021, denunciaram a organização católica ultraconservadora Opus Dei ("Obra de Deus", em latim) ao Vaticano por tráfico de pessoas, exploração e servidão. Agora, a ordem religiosa da região do rio da Prata — que inclui Argentina, Paraguai, Bolívia e Uruguai — anunciou a criação de uma "comissão de escuta e estudo", embora diga fazer isso por "uma motivação moral e não legal". "Acreditamos que é necessária uma área que nos permita começar a curar o que precisa ser curado", afirma a assessoria de comunicação da Opus Dei à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, sobre a criação da comissão. Questionada sobre as acusações, a ordem afirma que "não há notificação de denúncia por parte das autoridades eclesiásticas". "Ao final do período de escuta e estudo, a comissão apresentará suas conclusões e recomendações ao vigário regional, para que sejam tomadas as decisões cabíveis", acrescentou a organização. As mulheres, que ainda não foram à Justiça comum esperando colher mais depoimentos, segundo seu advogado, exigem indenização financeira e reconhecimento público da Igreja. Suas histórias têm pontos em comum: elas foram recrutados entre famílias de baixa renda quando tinham entre 12 e 16 anos e trazidas para Buenos Aires nos anos 1970, 1980 e 1990, com a promessa de receber educação. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em vez disso, denunciam, receberam treinamento em tarefas domésticas e trabalharam sem pagamento para altos membros e sacerdotes da obra fundada pelo padre e santo espanhol José María Escrivá de Balaguer. A denúncia apresentada ao Vaticano afirma que "havia um plano de proselitismo" [esforço de converter pessoas a uma crença] e que tudo "foi feito com o conhecimento e consentimento das pessoas que detinham os poderes de organização e controle". "Não houve nenhuma reclamação trabalhista formal nos últimos 40 anos", responde a Opus Dei quando questionada pela BBC News Mundo. "Tampouco desde que foram realizadas as acusações públicas, tendo se passado quase um ano [desde as denúncias] e apesar de a Prelazia sempre ter estado à inteira disposição da Justiça", acrescenta. A BBC News Mundo não obteve resposta do departamento de imprensa do Vaticano ou de outras instituições da Igreja Católica em Roma. Alicia Torancio, uma das 43 denunciantes, reluta em colaborar com a comissão criada pelo Opus Dei. "Como esperam que alguém denuncie o abuso e a exploração a quem abusou e explorou?", diz à BBC. Torancio entrou na organização seguindo uma irmã mais velha que hoje também é uma das denunciantes. Ela ficou ali durante 13 anos. Entrou em 1994 com 16 e saiu em 2007, com quase 30. Agora, aos 44 anos, as marcas do que sofreu ainda estão presentes. "Nos últimos seis anos estive imersa em uma terrível depressão, me trataram com psiquiatras da organização e tive uma tentativa de suicídio. Disseram-me que esta era a minha cruz, o que eu tinha que pagar pelos pecadores, e que com meu sofrimento eu estava apoiando o trabalho apostólico. Eles só me deixaram ir quando eu não estava mais apta para trabalhar." Torancio nasceu e cresceu em Mercedes, a quase 700 km de Buenos Aires. Aos 10 anos, enquanto seus irmãos ficaram para trabalhar no campo com o pai, um trabalhador rural, ela e as irmãs foram enviadas para a casa de parentes na capital argentina para concluir o ensino fundamental e depois trabalhar como empregadas domésticas. Por meio de uma de suas irmãs mais velhas, que já trabalhava lá, ela conheceu um centro de formação para mulheres. "Ofereciam algo tentador, porque era uma casa onde se podia morar e receber treinamento", diz à BBC. Lá chegou Élida, a primeira Torancio a entrar na Opus Dei como numerária auxiliar, a categoria mais baixa de pertencimento à organização, a das "empregadas domésticas". Alicia Torancio não queria ser da Opus Dei. Mas conseguiu um emprego em uma residência masculina pertencente à organização. Como estava sozinha em Buenos Aires, ofereceram a ela alojamento na residência feminina onde ficavam todas as meninas que estudavam no Instituto de Formação em Estudos Domésticos (ICIED, na sigla em espanhol), a "escola de domésticas". "Quando você chega lá, eles começam a fazer sua cabeça. Dizem que você tem vocação para ser santa, que pode contribuir com o mundo com seu trabalho e que vai ajudar a mudar o mundo. E eu era muito idealista", lamenta. Após três meses, ela escreveu a "carta de admissão" às autoridades da organização: um texto à mão em que declarava sua vocação. Uma vez aceita, ela deixou de receber pelo seu trabalho e teve que começar a viver de um dia para o outro com as regras do "plano de vida" dos membros: acordar às 6 da manhã, tomar banho frio, rezar, estudar textos de Escrivá de Balaguer e trabalhar o resto do dia, sem remuneração. "Dizem que você oferece seu trabalho a Deus. Estava preocupada por não poder mais enviar dinheiro aos meus pais. Disseram-me: 'Você não precisa mais se preocupar com seus pais. Agora sua família é a Opus Dei'." Naquele momento, também nomearam uma diretora espiritual com quem ela devia conversar diariamente, e acrescentaram a obrigação de se confessar uma vez por semana a um padre. Recebeu também uma liga de arame com pontas, chamada cilício, e um chicote com um feixe de cordas trançadas e enceradas, a disciplina, juntamente com instruções de uso: usar o arame apertado na perna duas horas por dia e rezar, chicoteando-se nas costas uma vez por semana. Ela ainda tem as cicatrizes do cilício na coxa. Com a admissão, ela teve que ir para a "escola de domésticas". Era como uma escola secundária, mas com apenas três anos e sem diploma oficial. Elas tinham aulas de culinária, limpeza, costura e boas maneiras. As aulas eram das 14h às 19h. Os pais de algumas das meninas pagavam uma mensalidade. Aqueles que não podiam pagar, como Alicia, sentiam a responsabilidade de trabalhar mais para compensar o não pagamento. "Eles cortam seus laços com sua família e com o [mundo] lá fora, mas você também está proibida de fazer amizade com qualquer uma de suas colegas de classe. Eu também não podia compartilhar com minha irmã. Eles observam você o tempo todo e imediatamente chamam a sua atenção." O controle, diz ela, era exercido por meio de "correção fraterna": todos observam todos e relatam tudo o que veem aos diretores, que as corrigem. "Eles transformam você em uma máquina." Uma vez por ano ou a cada ano e meio, a deixavam viajar dois ou três dias para visitar os pais. Tinha que fazer um pedido especial; às vezes eles diziam sim e às vezes não. Quando recebia permissão, ela tinha de ser acompanhada por outra garota. "Você era infantilizada o tempo todo. Tinha que pedir permissão para as coisas mais bobas e não tinha dinheiro para se manter." No restante do ano, podia se comunicar por carta ou telefone. As cartas, tanto as que ela enviava como as que recebia, eram primeiro abertas e lidas pela diretora espiritual, conta Torancio. As transferências entre os centros da Opus Dei eram obrigatórias, mesmo entre províncias e países. Aos 20 anos, Torancio foi enviado para Laya, a maior residência de numerárias auxiliares do país, ao lado da sede principal da organização, "centro de estudos" por onde passam todos os membros do sexo masculino e onde também ficam as mais altas autoridades. Fica na Recoleta, bairro nobre de Buenos Aires. A sede é um grande edifício de nove andares. Ao lado está o prédio das empregadas. Pode-se ver da rua as janelas cobertas que não permitem que se veja o exterior ou o interior a partir do lado de fora. Através de uma ligação subterrânea, com portas duplas, as mulheres vão trabalhar todos os dias no edifício-sede — em horários específicos para evitar cruzar com os homens. Lá estão a cozinha, a engomaria, a tinturaria e a lavanderia. Elas também limpam os quartos e espaços comuns, como o oratório, salas de conferências, de jantar e de estar. Também costuram, bordam e fazem o que for preciso. Alicia Torancio chegou à maioridade e deu o passo final como membro da Opus Dei: a Fidelidade, que é a incorporação para a vida com compromissos de castidade, pobreza e obediência. Esse passo é para todos os membros celibatários, que não podem se casar, e ocupam as casas da obra: os numerários e numerárias, que são de alta hierarquia e profissionais das classes média e alta; e as numerárias auxiliares, mulheres de origem pobre que servem e cuidam dos outros. É o caso de Alicia. Acima de todos eles há uma cúpula de religiosos, mas eles são apenas 2% dos membros no mundo. A Fidelidade envolve o rito de colocar um anel como símbolo de união com a obra e compromisso com a pobreza, que inclui dar tudo o que se possui e se recebe: seja um presente ou o salário, no caso de quem trabalha fora das casas. Aos 22 anos, Torancio foi nomeada chefe de cozinha da sede: era responsável pelo cardápio, compras e serviço aos 100 homens que ali moravam. Foi aí que começou sua crise: "Era muita pressão e comecei a me sentir mal", lembra. Na Opus Dei há um manual para tudo. E qualquer questionamento é tratado como uma dúvida vocacional que tem uma resposta padronizada. "Qualquer dúvida vocacional era abordada pela instituição como um problema psicológico/psiquiátrico com consequente prescrição de psicofármacos para neutralizar a vontade", dizem as 43 mulheres na denúncia ao Vaticano. Os psiquiatras e psicólogos são sempre membros da organização. Alicia foi levada a um psiquiatra que disse que ela não tinha nada e que estava fingindo sua depressão. "O que eles sempre dizem é que se Jesus e os grandes santos suportaram tanta dor, como você pode não suportar?" Levaram-na para outro psiquiatra que decidiu tratá-la. "Me deram medicamentos, mas era sempre algo que funcionava no começo, mas depois voltava a piorar. Eu tomava sete ou oito comprimidos por dia. Ou mais. Eu era um zumbi e pesava 45 kg porque não conseguia comer. Caí em um 'poço' e comecei a ter pensamentos suicidas". Foram seis anos assim. "Eu não conseguia me levantar. Estava tão mal que em dado momento pediram permissão à minha família para me tratar com eletrochoque, mas felizmente eles disseram que não." Depois de uma overdose de medicamentos, ela foi internada em um hospital psiquiátrico e só então recebeu permissão para ir para casa com sua família. Foi aí que a decisão de sair começou a amadurecer. "Veja a lavagem cerebral que eles fazem, eu disse que estava indo embora porque estava prejudicando a imagem deles. Eu me sentia como uma inútil, que havia falhado com Deus. Isso é o que eles dizem." Quando voltou de Corrientes, escreveu a "carta de dispensa", porque, assim como para entrar, também é preciso permissão para sair da Opus Dei. Em ambos os casos, isso é feito por meio de um documento manuscrito que é enviado ao Prelado, autoridade máxima da organização, que reside na sede em Roma. É um edifício a poucos quilômetros do Vaticano. Ali está centralizado o controle dos 68 países em que a organização está presente. Quando saiu da Opus Dei, com quase 30 anos, Torancio tinha apenas uma mala e uma sacola com alguns objetos pessoais. Foi para Corrientes, para a casa dos pais, porque não tinha nada. Nos 13 anos em que esteve na Opus Dei, ela diz que nunca ganhou dinheiro pelo trabalho que fez. Não estava previsto pagamento. "Eles não nos diziam que estávamos trabalhando. Diziam que estávamos nos santificando, que o que Deus estava pedindo de nós era servir e que desta forma estávamos ajudando a transformar o mundo." Foi somente em 2005, com mudanças na legislação trabalhista argentina, que a Opus Dei passou a pagar às numerárias auxiliares. "Nos faziam assinar um recibo, nos mandavam sacar em um caixa automático e depois entregar tudo às diretoras. Não era possível guardar um centavo ", diz Alicia, que assim cumpria o voto de pobreza que a organização exigia. Por conta disso, ela tem os dois últimos anos de contribuições à Previdência. Nos outros 11 anos em que esteve lá, não há registro de sua passagem. "Elas eram membros da Opus Dei. Os católicos encarnam os valores do Evangelho de diversas maneiras. Os membros da Opus Dei fazem-no a partir do seu trabalho e da vida diária. Para as numerárias auxiliares, esse chamado ao trabalho materializa-se na sua escolha profissional de cuidado das pessoas e atividades ligadas à Prelazia", argumenta a organização à BBC Mundo. "Esse trabalho, como qualquer outro, é pago", afirmam. Sobre o sistema trabalhista, dizem que "a Opus Dei se adaptou às leis vigentes de cada época". "O trabalho realizado pelas numerárias auxiliares nos centros da Opus Dei foi ajustado às leis vigentes em cada época." "Eles têm que reconhecer publicamente o que fizeram conosco", afirma Torancio. "Há mulheres mais velhas com muitos problemas de saúde por causa do trabalho e que não podem sequer se aposentar."
2022-08-02
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62401002
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Por que atual boom de commodities pode não beneficiar tanto a América Latina quanto em outros tempos
Após o início da guerra na Ucrânia no final de fevereiro, o preço das matérias-primas subiu freneticamente. Em meio à incerteza, os preços de produtos como petróleo, metais, gasolina, gás natural, trigo, milho e soja dispararam — e em poucos dias começou um novo boom de commodities. A invasão russa e as sanções aplicadas por nações ocidentais a Moscou deram início a aumentos históricos nos preços mundiais de alimentos e combustíveis, levando empresas a buscar fontes alternativas de abastecimento. "Você tem um choque em que faltam produtos básicos, alimentos, energia e também metais, há um problema de segurança alimentar, e [a América Latina] é vista como aquela que vai nos ajudar a superar os problemas", disse Ilan Goldfajn, diretor do Departamento do Hemisfério Ocidental do Fundo Monetário Internacional (FMI) e ex-presidente do Banco Central do Brasil. Ele acrescentou que a América Latina tem sido vista pelos investidores como uma região que pode "fazer parte da solução". Mas alertou que, para aproveitar esse contexto, os governos teriam que promover reformas para aumentar a produtividade e a concorrência, melhorar a educação, alterar os sistemas fiscais e reduzir a desigualdade. Fim do Matérias recomendadas Isso também foi citado por algumas análises econômicas que veem o que está acontecendo como uma oportunidade para a região, dada a diminuição da oferta de produtos de energia e cereais devido ao conflito na Ucrânia. Nessa perspectiva, a possibilidade de a região exportar mais recursos naturais é considerada uma "boa notícia", depois que a pandemia de covid-19 deixou cicatrizes profundas nas economias latino-americanas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Embora, do ponto de vista histórico, basear o crescimento de um país principalmente na exportação de recursos naturais — mesmo em um contexto de crise — seja considerado uma péssima ideia. É o que se costuma chamar de "maldição dos recursos naturais" ou "paradoxo da abundância", que atinge países que, apesar de ricos em matérias-primas, tendem a ficar presos em um baixo nível de desenvolvimento porque exportam produtos sem valor agregado, como óleo, minerais ou grãos. Ao mesmo tempo, são obrigados a importar produtos manufaturados, o que, no atual contexto de inflação elevada, significa que tanto as finanças públicas quanto as famílias são atingidas. Entre as incógnitas deste boom dos preços das commodities, persistem as dúvidas sobre quais setores vão continuar em alta, quais vão passar por curvas de alta e baixa ou por quanto tempo os preços em alta podem durar. Nas últimas semanas, por exemplo, o preço dos metais caiu quase 20% em relação ao pico de março e, dentro desse grupo, o cobre sofreu um golpe ainda maior. Mas o restante das commodities ainda está na parte superior da curva. Por enquanto, não está muito claro se os preços mais altos das matérias-primas nos mercados internacionais vão gerar mais vantagens do que desvantagens para os países latino-americanos devido a um fator fundamental: a inflação galopante que assola o mundo. "O aumento da inflação tem um impacto que provavelmente ofusca os ganhos do ponto de vista dos negócios", diz Elijah Oliveros-Rosen, economista sênior da divisão de Economia e Pesquisa Global da América Latina da consultoria S&P Global Ratings. Em conversa com a BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, ele explica que não existe uma fórmula matemática para calcular exatamente quanto um país ganha com receita de commodities e quanto perde com o impacto da inflação, porque determinar o efeito líquido depende de muitos fatores. De qualquer forma, ao olhar quem ganha e quem perde no atual contexto econômico, o analista propõe avaliar a questão sob dois ângulos: como isso afeta os produtores de matérias-primas e como afeta os consumidores de um determinado país. Sem dúvida, as empresas que produzem commodities, diz Oliveros-Rosen, serão beneficiadas com preços mais altos, sobretudo em países como o Brasil, que é exportador de produtos como petróleo, aço e alimentos. Mas os consumidores estão pagando preços muito mais altos devido à onda de inflação que fez com que muitos países aumentassem as taxas de juros a toda velocidade. No fim das contas, a inflação dos preços da energia e dos preços dos alimentos está afetando muito os bolsos das famílias. A isso se soma que o crédito fica mais caro e a economia se recupera mais lentamente, afetando os rumos da economia, justamente quando as vozes que projetam uma recessão nos Estados Unidos e na Europa estão ganhando espaço. Também não colabora a desaceleração da China no panorama econômico global, já que se trata do segundo maior parceiro comercial da América Latina como um todo depois dos Estados Unidos. No caso do Brasil, a China é o primeiro parceiro. "Uma inflação tão alta pode tirar todos os benefícios do alto preço das commodities", diz o economista. Esta é uma preocupação compartilhada por centros de análise que tentam decifrar o impacto que o novo contexto econômico pode ter na região. "As expectativas de crescimento para este ano continuam moderadas", afirma Daniel Zaga, chefe de análise econômica da consultoria Deloitte México. O salto no preço das matérias-primas gerou, segundo ele, pressão sobre a inflação, mas também afetou a balança comercial e a situação fiscal dos países da região. Os efeitos são muito diferentes para cada economia, porque a alta das matérias-primas e as dificuldades que os países latino-americanos estão passando não são homogêneas. Zaga explica que, na Argentina, por exemplo, onde o efeito comercial e fiscal pode ser ligeiramente positivo neste ano, o impacto negativo por meio da inflação pode ser maior. Atualmente, o aumento do custo de vida ultrapassa 60%, e os analistas projetam que provavelmente continuará a subir. Em outros países, como a Colômbia, que teve a inflação sob controle nas últimas décadas, "o efeito positivo via comércio e finanças públicas será maior que o efeito negativo da inflação", diz o economista. Enquanto isso, em economias como a do México, "o efeito é negativo em todas as áreas: comércio, finanças públicas e inflação". De qualquer forma, teremos que aguardar a evolução do ano para avaliar com maior precisão o impacto que o aumento das matérias-primas terá em cada país. No Brasil, o Banco Central, órgão responsável por manter a inflação sob controle, já reconheceu que a meta estabelecida para 2022 não será cumprida. A projeção da instituição é que o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) fique em 8,8% neste ano, bem acima da meta de inflação, fixada em 3,5% para este ano (com margem para oscilar entre 2% e 5%). E as expectativas dos economistas do mercado financeiro estão hoje em 7,3%, segundo o boletim Focus divulgado na segunda-feira (25/7). O cenário econômico se complicou nas últimas semanas. Um importante indicador de commodities, o Bloomberg Commodity Spot Index, que mede a evolução de contratos nos mercados de energia, metais e cultivos, caiu quase 20% depois de bater um recorde no início de junho, à medida que crescem os temores de uma recessão. Os mercados estão dando sinais de que o Federal Reserve dos Estados Unidos (equivalente ao Banco Central de outros países) não conseguirá controlar a inflação, que atingiu seu nível mais alto em quatro décadas, sem elevar ainda mais os juros, podendo levar a economia a uma recessão. O cenário também não parece bom na Europa, onde as taxas de juros acabaram de ter seu maior aumento em duas décadas, e a desaceleração econômica na China também colabora para um cenário ruim. Isso faz com que os investidores antecipem um futuro adverso e tomem decisões que derrubem os preços das commodities, interrompendo o incrível aumento que haviam registrado. Os preços vão continuar caindo? Vão subir novamente? Só o dos metais vai cair, enquanto o preço dos alimentos continuará subindo? Quanto mais as taxas de juros vão subir nos EUA? Que países vão entrar em recessão? A Rússia deixará de vender gás para a Europa? Com um nível de incerteza tão alto, os grandes capitais têm preferido evitar o risco e buscar refúgio em investimentos mais seguros. À medida que a tempestade internacional continua, a América Latina tenta controlar a onda de inflação que está sufocando as famílias e lidar com cenários políticos complicados que, aliás, também têm profundas repercussões econômicas. Este texto foi originalmente publicado em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62304530
2022-07-30
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62304530
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Por que muitos argentinos preferem 'poupar gastando'
Acostumados com uma das maiores inflações e uma das moedas mais desvalorizadas do mundo, os argentinos estão habituados a adotar uma série de estratégias para fazer render seu salário mensal. Afinal, nesse país, algo tão simples como fazer as compras semanais requer planejamento. Os argentinos planejam qual dia ir e a qual supermercado. Também qual produto compram. Assim, aproveitam as melhores ofertas, descontos e formas de pagamento oferecidas por mercados, bancos e até pelos principais jornais do país. Mas a aceleração da inflação em 2022, que já atinge alta de 64% em 12 meses e continua subindo, e a rápida depreciação do peso, a moeda oficial do país, que perdeu um quarto de seu valor em relação ao dólar nos primeiros seis meses do ano, fazem com que os argentinos tenham que aprimorar ainda mais suas táticas quando se trata de administrar as finanças pessoais. Agora, eles não precisam apenas pensar na maneira mais eficiente de gastar seu dinheiro. Também precisam planejar como proteger o valor de suas economias — se conseguirem guardar algo no final do mês. Fim do Matérias recomendadas Isso porque as formas tradicionais de poupança hoje são limitadas ou não são rentáveis. Os argentinos tradicionalmente recorriam ao dólar como moeda de reserva ou colocavam seus pesos na renda fixa — investimentos com prazo e rendimento pré-determinado. Mas fortes controles de capital — conhecidos como "cepos" — restringiram severamente o acesso ao dólar. Hoje, na Argentina, não se pode comprar dólares em seu valor oficial (cerca de 135 pesos). Para adquirir moeda americana, é preciso pagar taxas de 65%, e o máximo que se pode comprar são US$ 200 por mês — algo permitido apenas para quem tem carteira assinada e para empresas que não receberam auxílio financeiro do Estado durante a pandemia de covid-19. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Recorrer ao mercado informal — como era costume para muitas pessoas de classe média ou alta — também não é uma alternativa para a maioria, devido à escalada vertiginosa da moeda americana, que já ultrapassou a barreira dos 320 pesos, preço recorde que torna essa opção inacessível às pessoas comuns. Enquanto isso, com juros abaixo da inflação, os investimentos de renda fixa não são muito atrativos e, embora existam alguns que são corrigidos, há muitos obstáculos para acessá-los. Diante desse cenário, quem tem salários com "paritarias" (ou reajustados pela inflação), e consegue chegar ao fim do mês com algum dinheiro no bolso, cada vez mais opta por fazer algo que, à primeira vista, soa como um paradoxo econômico: "poupar gastando". Em vez de comprar dólares ou depositar seus pesos excedentes no banco, muitos consideram melhor investimento usá-los para comprar produtos que duram, desde latas de atum, xampu e garrafas de vinho, até bens duráveis, como roupas, celulares, eletrodomésticos e motocicletas. Luis, um pizzaiolo de 35 anos, examina cuidadosamente uma vitrine cheia de máquinas de cortar cabelo em uma rua de comércio popular em San Fernando, bairro de classe média nos arredores de Buenos Aires. Ele diz à BBC News Mundo (serviço de notícias em espanhol da BBC) que planeja comprar uma delas no valor de 3.000 pesos. "Prefiro comprá-la agora, antes de valer 6.000 pesos", diz ele. "É um negócio melhor do que comprar dólares." "Isso é conhecido como fuga do consumo", explica o economista Santiago Manoukian, da consultoria Ecolatina. "As pessoas que têm pesos tentam se livrar porque eles 'derretem', então usam para consumir bens, principalmente aqueles que têm muitos componentes importados, e assim mantêm o valor de seu dinheiro", diz ele. Por que os pesos argentinos derretem? Por um lado, devido à inflação mensal, que vem oscilando entre 5% e 8%, fazendo a moeda perder valor rapidamente. Mas também porque o forte aumento do dólar informal ou "blue" — que subiu quase 100 pesos até o momento em julho e já está sendo negociado quase 140% acima do valor do dólar oficial — aumenta a pressão para que haja uma forte desvalorização do peso, embora as autoridades garantam que isso não vai acontecer. É essa combinação de inflação acelerada e expectativa de desvalorização que leva muitos, como Luis, a antecipar o consumo que acreditam que será mais caro no futuro próximo. "Agora posso comprar, talvez no próximo mês dobre e eu não possa mais", calcula o pizzaiolo. Segundo Manoukian, da Ecolatina, "poupança e investimento nada mais são do que sacrificar o consumo presente para ter mais consumo no futuro. Mas, se você não acredita nisso, o mais provável é que gaste agora, não mais tarde". Daniel é dono há 30 anos de uma loja de produtos para o lar e conta à BBC News Mundo que a demanda, principalmente por eletrodomésticos, está alta. "Vemos que as pessoas chegam desesperadas para se livrar de seus pesos, porque sabem que no mês seguinte vão perder valor", diz. Daniel afirma que a maioria dos compradores não são pessoas de alto poder aquisitivo. "São pessoas de classe média e classe média baixa, e os produtos que mais procuram são fogões, máquinas de lavar, geladeiras, televisão e celular, bens que hoje para muitos são praticamente artigos de luxo." Mas como alguém da classe média ou média baixa consegue pagar o preço desses aparelhos de "luxo"? A maioria financia. "Em geral, pagam com cartão de crédito, aproveitando os planos de 6, 12 ou 18 vezes oferecidos pelo governo", diz o comerciante. Embora o parcelamento tenha juros, o valor é inferior à inflação anual, o que torna essa modalidade de pagamento conveniente, explica. A forte demanda, facilitada por esses planos de financiamento, levou a uma verdadeira explosão de compras. O consumo privado cresceu 9,3% no primeiro trimestre do ano, na comparação com igual período do ano anterior, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística e Censos (Indec). As vendas de eletrodomésticos e eletrônicos cresceram 23,6% entre janeiro e maio deste ano na comparação anual, segundo a empresa de análise de mercado GfK. Outro produto popular são as motocicletas: houve 31,2% mais emplacamentos no primeiro semestre de 2022, em relação ao mesmo período do ano passado, segundo a Associação de Distribuidores de Automóveis da República Argentina (Acara). E o índice de confiança do consumidor na compra de bens duráveis é o maior desde 2018, segundo o Centro de Pesquisa em Finanças da Universidade Torcuato Di Tella. Há também quem prefira gastar suas economias em experiências agradáveis como sair para comer, ir ao teatro, a shows ou viajar, atividades que tiveram que ser adiadas durante o longo confinamento devido ao coronavírus. Isso explica por que, apesar de o país passar por uma crise econômica, os restaurantes estão lotados — com aumento de 126% no movimento entre janeiro e maio, na comparação anual, segundo o Índice de Volume em Restaurantes Tradicionais da prefeitura de Buenos Aires. Há também um recorde para o turismo doméstico: 20% a mais do que em 2019, pré-pandemia. E a banda britânica Coldplay acaba de bater o recorde de shows esgotados do país: lotará dez vezes o estádio Monumental do River Plate entre outubro e novembro, encerrando sua turnê mundial. O governo de Alberto Fernández comemora essa explosão do consumo e considera parte da reativação econômica que permitiu à Argentina reverter em um único ano a queda de quase 10% no PIB (Produto Interno Bruto) que a pandemia havia causado no ano anterior. Para o presidente, o consumo também foi fundamental para que o país continuasse crescendo 6% no primeiro trimestre do ano. "A Argentina é um país que consome 70% do que produz. Quando o consumo é afetado, isso afeta diretamente a produção. Quando afeta a produção, afeta o emprego. E quando afeta o emprego, gera pobreza", disse antes de assumir, explicando por que um de seus principais objetivos seria "recuperar o consumo". Apesar dessa estratégia ter conseguido manter o desemprego nos níveis mais baixos desde 2016 (7% no primeiro trimestre do ano), alguns alertam que o outro lado tem sido a redução dos rendimentos e a maior precarização do trabalho. De fato, embora à primeira vista o alto nível de consumo dos argentinos pareça sugerir que houve uma melhora no poder de compra, na realidade aconteceu o contrário. O salário real vem caindo desde 2018 e nos primeiros cinco meses deste ano foi 4,7% inferior ao mesmo período de 2019, antes da chegada do coronavírus, segundo a Remuneração Média Tributável dos Trabalhadores Estáveis (Ripte). Para Manoukian, trata-se de um paradoxo da economia argentina. "O que se espera é que, quando a inflação acelera muito em um país e os salários reais caem, o consumo cai drasticamente, mas aqui isso não está acontecendo porque as pessoas querem se desfazer de seus pesos para manter o valor do que têm em bens", afirma. Outro paradoxo que ele observa é que, enquanto o Índice de Confiança do Consumidor mostra otimismo na compra de bens duráveis, há pessimismo com relação ao estado da economia e à situação pessoal. Muitos economistas também alertam que essa "festa de consumo" é desigual. Embora a venda de bens duráveis tenha aumentado, relatório da consultoria Scentia, que mede o consumo de massa, indicou que os gastos com alimentação em maio e junho caíram em relação ao ano anterior. O que isso mostra, dizem os especialistas, é que enquanto um setor da população, com salários que sobem em linha com a inflação, protege suas economias comprando bens, o setor mais vulnerável — como os quase 40% de trabalhadores informais, ou aqueles que dependem de pensões ou benefícios do governo — não conseguem suprir suas necessidades básicas. Para piorar a situação, aqueles que têm pesos sobrando estão tão desesperados para gastá-los antes que percam valor que estão validando aumentos de preços bem acima da inflação, tornando os produtos mais caros para todos. O temor é que isso aumente os índices de pobreza, atualmente próximos a 40%, segundo o Observatório da Dívida Social da Universidade Católica Argentina (UCA). Outra preocupação é que o crescimento econômico impulsionado pelo consumo desacelere devido a um problema que aflige a Argentina toda vez que sua produção é reativada: a chamada "restrição externa" ou falta de dólares. A indústria nacional é altamente dependente de maquinário e insumos importados, portanto, quando a produção aumenta, também aumentam as importações (que são pagas com dólares do Banco Central). Nos primeiros cinco meses do ano, a Argentina teve mais exportações do que importações. Mas a partir de junho, a balança comercial se inverteu e começaram a sair mais dólares do que os que entraram, segundo o Indec. A queda das reservas internacionais do Banco Central — que já eram escassas e, portanto, tinham "cepos" para protegê-las — tornou-se tão pronunciada que obrigou o governo a limitar as importações. Sem peças, muitas empresas estão desacelerando ou reduzindo a produção. Daniel, dono da loja de produtos para o lar, diz que isso já está afetando seu negócio. "As pessoas vêm comprar e vão embora de mau humor porque não podemos vender alguns eletrodomésticos, já que as fábricas suspenderam as entregas porque não podem importar determinados produtos", explica. Ele também reconhece que hoje tenta vender "o mínimo possível", porque não sabe "a que preço vamos conseguir substituir esses produtos". Esses problemas levam todos os consultores privados a estimar que a atividade econômica "esfriará" no segundo semestre do ano. A Ecolatina projeta um crescimento do PIB de 3,8% para 2022, 0,2 ponto percentual acima da projeção da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), de 3,6%. O FMI (Fundo Monetário Internacional) e o Banco Mundial têm perspectivas um pouco mais otimistas, com crescimento estimado em 4% e 4,5%, respectivamente. "Sem dúvida, houve uma recuperação da atividade econômica que veio acompanhada de uma melhora pronunciada nas vendas internas", resume Manoukian. "Mas a pergunta é o quanto desse crescimento é sustentável."
2022-07-29
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62343052
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As mulheres que apoiam vítimas de abuso que matam seus agressores
Cynthia Concha chegou ao presídio de Concepción, no Chile, sem outra roupa além daquela que vestia. Os guardas não lhe deram roupas limpas e nem mesmo uma escova de dentes. Ela não pensou em trazer uma mala com pertences. Estava machucada e em estado de choque. Cynthia tinha acabado de matar o marido. Naquele dia de setembro de 2019, o marido de Cynthia ameaçou matá-la e fechou a porta do quarto enquanto ela tentava escapar. Temendo por sua vida, ela brigou com o marido e acabou o matando por asfixia. Ela entregou-se imediatamente à polícia e foi presa. Uma investigação foi aberta. Fim do Matérias recomendadas Após dois meses de prisão preventiva, seguidos de quase dois anos de prisão domiciliar, a promotora finalmente confirmou o que Cynthia mais temia: se condenada, ela poderia enfrentar uma pena de 20 anos de prisão. Mas ela não esperava que uma campanha social nacional defendesse sua liberdade, com o slogan "eu também me defenderia". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O julgamento de Cynthia ocorreu em abril deste ano. Como ela tinha provas bem documentadas de abuso doméstico, incluindo visitas a hospitais, ordens de restrição e boletins de ocorrência, os tribunais aceitaram seu pedido de legítima defesa e a absolveram de todas as acusações. Cynthia diz que se sentiu "impotente" depois de ouvir as acusações do promotor, acrescentando que as redes sociais a fizeram se sentir ouvida: "Sou muito grata pelo seu apoio". Esse é um dos vários casos que ganharam apoio do movimento de várias redes de direitos das mulheres que se opõem à criminalização de sobreviventes de violência doméstica que mataram seus agressores em legítima defesa. "Devo ter feito pelo menos uma centena de denúncias de violência doméstica. Sempre tive olhos roxos e hematomas", disse Cynthia à BBC, exibindo as partes do rosto que foram agredidas. Ela diz que sofreu exploração econômica, violência sexual e traumas psicológicos. Organizações de direitos das mulheres no Chile comemoram a absolvição de Cynthia, mas alertam que há muito mais sobreviventes de abuso doméstico que foram injustamente condenadas por se defenderem. "Muitos casos como esse poderiam ser evitados se o sistema de justiça fizesse seu trabalho", diz Loren Leron, uma ativista feminista que ajuda mulheres na prisão onde Cynthia foi mantida. Leron foi a primeira a alertar as organizações de direitos humanos sobre o caso de Cynthia. "Se uma mulher fosse realmente protegida toda vez que denunciasse abuso doméstico, não haveria casos como esse", explica. Não é a primeira vez que manifestantes no Chile enfrentam a Justiça, Em 2019, o hino de protesto "Um estuprador em seu caminho" viralizou no mundo todo. Naquele ano, durante um período de agitação social, milhares de mulheres em Santiago cantavam as palavras: "O patriarcado é um juiz / que nos julga por nascer". E ao apontar o dedo ao presidente, aos juízes e à polícia, acusados por elas de promover a impunidade contra os abusadores, as mulheres gritavam: "o estuprador é você". A Rede Contra a Violência Contra a Mulher é a maior organização nacional do Chile sobre violência de gênero. Em seu relatório anual de 2021, foram registradas 23.642 queixas de violência doméstica à polícia no primeiro semestre do ano, mas apenas 5.855 prisões. Para os casos de abuso sexual, 74% foram arquivados pelos tribunais e apenas 7% dos casos resultaram em penas de prisão. O relatório também revelou que 81% das mulheres tiveram uma experiência negativa em suas tentativas de denunciar violência doméstica à polícia. Myrna Villegas Díaz, professora de ciências criminais da Universidade do Chile, diz que o sistema legal do país fracassa no tratamento das sobreviventes de abuso. "O patriarcado, mais do que juiz, é legislador", diz ela. Ela também questiona a abordagem do Ministério Público em casos de legítima defesa: "Eles têm que ser objetivos, não só olhar para os elementos para incriminar, mas também para o que pode exonerar". De acordo com a documentação enviada à BBC pela promotoria, houve 224 casos de mulheres que mataram ou tentaram matar seus parceiros entre 2011 e 2022. No total, 86 casos resultaram em condenações criminais e mais de 50 ainda estão abertos. Ativistas reivindicam a liberdade das mulheres que estão presas por matarem seus parceiros em contextos de violência doméstica. Embora as estatísticas não revelem se cada caso ocorreu em contextos de própria defesa, a Rede Contra a Violência Contra a Mulher acredita que isso provavelmente aconteceu em muitos casos. "São mulheres que sofreram violência sistemática. Muitas têm medidas cautelares contra seus agressores, mas o Estado não as protegeu e as criminalizou", diz Lorena Astullido, porta-voz da organização. "Eu também me defenderia se minha vida estivesse em perigo. Não é violência, é defesa." Ymay Ortiz, diretora da Unidade Especializada em Direitos Humanos, Violência de Gênero e Crimes Sexuais do Ministério Público Nacional, ressaltou que a instituição investiga cada caso sob uma rigorosa política de gênero que inclui treinamento obrigatório sobre violência doméstica. Embora Ortiz acolha os comentários e críticas, ela desconfia da campanha do movimento e diz que essa mensagem pode ser perigosa. "Toda pessoa tem direito à defesa, mas isso deve ser considerado proporcionalmente", diz. "Não pode ser usado como um passe livre, de impunidade, ou para conceder proteções especiais." O grito "eu também me defenderia" também se espalhou pela comunidade LGBTQ+. Ativistas dos direitos gays no Chile fizeram campanha pela libertação de um homem trans que foi preso depois de matar seu agressor no início deste ano. Ativistas argumentam que ele estava se defendendo durante um ataque transfóbico com risco de morte. Na Argentina, o movimento também mobilizou muita gente. Neste ano, grandes multidões se reuniram para exigir a absolvição de Eva Analía Dejesús, mais conhecida como Higui, uma lésbica que matou seu agressor enquanto se defendia durante uma tentativa de estupro "corretivo" em grupo. Ela foi absolvida em março. Cynthia é uma das poucas acusadas no Chile que foram absolvidas ou cujos casos foram arquivados nos últimos 10 anos. Ela recentemente encontrou um emprego e se mudou para outra cidade para reconstruir sua vida. Embora esteja aliviada por ter sido absolvida, acredita que a violência doméstica não é levada suficientemente a sério. "Quando você denuncia violência, a polícia olha para você e diz que 'você está bem, pare de chorar por nada'", diz ela. Ela faz uma pausa por um momento, antes de encerrar o telefonema com um apelo emocionado: "Se você vir uma mulher sofrendo violência, ajude-a como puder. Não a abandone."
2022-07-29
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Por que América Latina não tem rede de trens como a da Europa
Há um pequeno trem de passageiros na América Latina que liga dois países. Mas é uma rara exceção em todo o continente. A ferrovia não é uma forma comum de viajar entre cidades em uma região de 19,5 milhões de quilômetros quadrados acostumada ao tráfego rodoviário. Muitos latino-americanos olham com inveja para os trens da Europa, cheios de passageiros e lotados de turistas durante o verão, que ligam as capitais europeias a velocidades vertiginosas por preços acessíveis para o cidadão comum. Tempo, preço, frequência e conforto são as principais características dos trens de alta velocidade na Europa. O que liga Madrid e Barcelona, na Espanha, percorre os 620 km que separam as duas cidades em apenas 2 horas e meia. A mesma viagem por estrada levaria pouco mais de 6 horas de carro. Fim do Matérias recomendadas E como as estações estão localizadas no centro das cidades, a viagem é muito competitiva com relação ao avião, em termos de conforto e custo da passagem. Londres e Paris também estão ligadas por uma ferrovia de passageiros. Ir de trem da capital francesa à britânica leva 2 horas e 16 minutos em velocidade máxima. Na Itália, os viajantes podem ir de Milão a Florença em 1 hora e 54 minutos em uma de suas opções mais rápidas. São 320 km de estrada entre eles. São velocidades e conexões que inexistem atualmente no continente latino-americano. As razões pelas quais não há rede de trens de alta velocidade para passageiros na América Latina são variadas: as distâncias, o custo e a opção pelo carro e avião como meios de transporte principais para viajar distanciaram o continente das viagens de trem de longa distância. Assim, a curta ferrovia entre a cidade argentina de Posadas e sua vizinha paraguaia Encarnación, com apenas 8 km de extensão, é uma passagem de fronteira quase única, mas muito utilizada pelos habitantes das duas cidades que mantêm um intenso fluxo de comércio. Mas por que é tão difícil desenvolver trens rápidos de passageiros na região, especialmente considerando que a América Latina é atravessada por inúmeras linhas ferroviárias? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para começar, é preciso esclarecer que as redes de trens de passageiros existem, mas não são competitivas com outras opções de transporte em termos de velocidade e frequência. Os países pararam de investir na malha ferroviária em meados da década de 1950, mas a falta de investimento se agravou a partir da década de 1980 e culminou na década de 1990. "Na década de 1980, por diversos fatores, inclusive políticos, a rede de transporte de passageiros começou a declinar até o ponto em que estamos agora", explica Sebastián Astroza, professor da Universidade de Concepción (Chile) e pesquisador de questões de mobilidade do Centro de Desenvolvimento Urbano Sustentável. No contexto neoliberal, "o trem passou a ser obrigado a ser economicamente lucrativo, apesar de a grande maioria dos sistemas ferroviários do mundo precisar de subsídios", afirma o pesquisador. Embora os trens tenham um grande impacto social, muitos não são economicamente rentáveis, pois não se autofinanciam. O estado das contas públicas também é uma questão-chave. Um projeto tão caro sobrecarrega as finanças das administrações envolvidas no desenvolvimento da ferrovia. "Os serviços de longa distância de passageiros foram descontinuados, fundamentalmente na década de 1990. Eram serviços muito precários e as concessionárias não tinham interesse em se dedicar a eles", diz Jorge Kohon, engenheiro civil especialista em transporte ferroviário e consultor do Banco Mundial. Além disso, os países queriam reduzir seus déficits fiscais e, consequentemente, a grande maioria dos serviços de passageiros de longa distância desapareceu, afirma o consultor. Um trem por si só já é caro para operar, dizem os especialistas, porque são necessárias equipes de apoio nas estações, mecânicos e pessoal de todos os tipos. "Comparado com a simplicidade de um ônibus ou mesmo de um avião, que agora se tornou muito mais competitivo, é muito difícil para as ferrovias de longa distância sobreviverem", diz Kohon. E isso sem levar em conta o alto custo da infraestrutura. "Uma locomotiva nova custa cerca de US$ 3 milhões [quase R$ 16 milhões]. Um vagão pode custar até US$ 1 milhão", calcula o consultor do Banco Mundial. "E, se falarmos da construção dos trilhos, o custo de um trem de alta velocidade está entre US$ 20 milhões e US$ 30 milhões por quilômetro." Isso faria, por exemplo, que construir um trem de alta velocidade entre Buenos Aires e Córdoba, duas cidades argentinas separadas por cerca de 650 km, custasse cerca de US$ 16,25 bilhões (mais de R$ 85 bilhões) usando custos médios. "Dadas as grandes distâncias existentes na América Latina e a baixa demanda, os projetos se tornam inviáveis", diz. Os outros especialistas concordam. "A tecnologia de construção precisaria ser muito mais barata para ser adotada e utilizada na região", acrescenta Néstor Roa, chefe da Divisão de Transportes do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), referindo-se às longas distâncias que separam muitas das capitais na região. Outra questão que retardou o desenvolvimento da infraestrutura ferroviária na região é a corrupção em todas as suas formas. Do desvio de recursos, ao uso de empresas vinculadas ao poder político, passando por licitações fraudulentas e superfaturamento. "Isso acontece muito na América Latina. São muitas infraestruturas que não foram desenvolvidas por causa da corrupção e algumas que levam décadas para serem concluídas pelo mesmo motivo", diz Jimena Blanco, chefe do Departamento de Análise Latino-Americana da consultoria de risco Verisk Maplecroft. "Ou, na pior das hipóteses, o governo muda e os projetos param", afirma "Devemos lembrar que os maiores casos históricos de corrupção na região quase sempre estiveram ligados à construção de grandes obras de infraestrutura", diz Blanco, lembrando da operação Lava Jato no Brasil e dos escândalos de corrupção envolvendo a Odebrecht na Colômbia, Peru e outros países. Das seis principais economias da América Latina (Brasil, México, Venezuela, Argentina, Colômbia e Chile), todas têm um nível de risco alto ou extremo no índice de corrupção da Verisk Maplecroft. "Dos seis maiores, o Chile é o único que está, digamos, a um passo de cair para o nível médio de risco", diz a analista da Verisk Maplecroft. Além dos custos e da corrupção, novos projetos de trens de passageiros entre cidades latino-americanas enfrentam outro grande problema: a concorrência do avião, cujos preços são agora muito mais acessíveis do que em décadas passadas. "O transporte aéreo de médias e longas distâncias na América Latina é muito competitivo em termos de velocidade e custo", diz Néstor Roa, do BID. "Na Europa, quando o uso do avião começou a se generalizar, os países já haviam desenvolvido uma malha ferroviária para passageiros. E isso é uma grande diferença em relação ao que aconteceu na América Latina", acrescenta. Na região, a descontinuidade das redes de trens de passageiros de longa distância não significou o abandono da rede ferroviária. Ela ainda existe hoje em dia, mas é principalmente dedicada ao transporte de cargas. Além disso, na América Latina existem alguns serviços que podem ser chamados de "trens sociais". "Ou seja, serviços de baixa velocidade e baixa frequência que atendem às necessidades de pessoas com baixa renda, para quem a questão do tempo de viagem não é importante, e que demoram horas para chegar ao destino", diz Jorge Kohon, do Banco Mundial. Seria possível então usar os trilhos que já existem para trens mais modernos e rotas mais rápidas? "São rotas adaptadas ao transporte de minerais, cereais ou materiais de construção como cimento, pedra, entre outros. Para esses tipos de tráfego, não é necessário ter altas velocidades", explica o especialista da instituição financeira internacional. "O que importa é que a pista possa suportar o peso máximo possível dos vagões. A velocidade de tráfego não é tão importante. Nas ferrovias latino-americanas, ela costuma ser de 50 ou 60 km por hora." É viável que um trem de passageiros circule nos trilhos existentes, mas ele poderia no máximo andar cerca de 10 km por hora mais rápido. "Nesses trilhos você pode viajar a 70 ou 80 km por hora com sorte, mas não pode ir a 120, 140 ou 150 [km por hora], muito menos correr em um trem de alta velocidade", explica Kohon. "A essa velocidade, um trem não é competitivo nem com ônibus, muitos dos quais circulam em rodovias expressas, nem com carros, nem, é claro, com companhias aéreas de baixo custo." Apesar de todas as dificuldades, alguns projetos ferroviários de passageiros estão em discussão ou execução na região. Dois recentemente falharam, outro está em construção e, no Chile, uma proposta recente do presidente Gabriel Boric pretende desenvolver um ambicioso plano de "conectividade ferroviária" que ainda precisa provar sua viabilidade. O projeto começaria ligando Santiago a Valparaíso, as duas cidades mais populosas do Chile, com um trem rápido. Segundo o Ministério de Obras Públicas do país, o trem percorrerá 120 km em 45 minutos. No passado, o Chile teve uma rede bastante extensa de trens de passageiros em todo o país e, em certa medida, essa rede ainda existe, mas foi afetada pela falta de investimento. "Existem trens que ligam algumas cidades do Chile, mas estão distantes dos trens de passageiros de alta velocidade", explica o professor Astroza, da Universidade de Concepción. "Os trens que ligam Santiago a Concepción [outra das grandes cidades] são um exemplo. Eles circulam à noite e somente nos fins de semana", acrescenta. Apesar das expectativas criadas, levará tempo para determinar se o plano do Chile é viável. Pesa contra ele a experiência passada do continente, onde muitos outros projetos fracassaram ao longo do caminho. Sob o mandato de Dilma Rousseff (PT), o governo brasileiro propôs um trem-bala para unir Rio e São Paulo, enquanto na Argentina, os Kirchner anunciaram em 2006 uma linha de passageiros que ligaria Buenos Aires, Rosário e Córdoba. Os dois planos foram abandonados. Mas, no México, há um projeto já em construção. A rota de 1.554 km quer unir cinco importantes destinos turísticos da península de Yucatán, como Cancún, Tulum, Calakmul, Palenque e Chichen Itzá, no que pretende ser uma das grandes iniciativas para reativar a economia mexicana. Mas esta ferrovia — uma das principais obras de infraestrutura do governo de Andrés Manuel López Obrador — tornou-se muito controversa não apenas pelo custo, mas também pelos danos ambientais. O desenvolvimento do trem maia nos últimos anos tornou evidente muitas das dificuldades que o continente enfrenta na construção de serviços ferroviários de longa distância.
2022-07-28
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70 anos da morte de Evita: o destino extraordinário e macabro do corpo de Eva Perón
A vida de María Eva Duarte de Perón, mais conhecida como Evita, foi tão mítica que inspirou um dos musicais mais populares da história. Neste 26 de julho, quando se completam 70 anos de sua morte, a ex-primeira-dama permanece como a mulher mais famosa da Argentina. Lendária não foi apenas a vida da mulher de Juan Domingo Perón, o fundador do movimento peronista. A morte de Evita também. Dois milhões de pessoas foram às ruas para acompanhar a passagem de seu caixão. Seu velório durou duas semanas. Mas não acabou aí. O corpo da ex-primeira-dama enfrentou uma odisseia até chegar ao seu atual local de descanso, no cemitério da Recoleta, bairro da elite de Buenos Aires. A atriz que deixou sua carreira para se tornar "mãe dos pobres", que cultivou tanto adoração quanto ódio entre os argentinos durante os tempos de seu marido no poder, morreu aos 33 anos em razão de um câncer de colo do útero. Fim do Matérias recomendadas O nível de fervor que ela gerou e a importância simbólica de Evita para o peronismo foi tal que, pouco antes de sua morte, o Congresso lhe concedeu o título de Chefe Espiritual da Nação. Perón queria que sua segunda esposa fosse embalsamada e que seus restos mortais descansassem no Monumento ao Descamisado, um mausoléu faraônico que seria construído especialmente para Evita. A conservação do corpo foi confiada ao prestigiado anatomista espanhol Pedro Ara, que começou a tarefa poucas horas depois da morte dela. No entanto, transformar Evita em "uma estátua" - como Ara registrou em suas memórias - levaria muitos meses. Enquanto se planejava a construção do gigantesco mausoléu, o médico fazia seu trabalho no segundo andar da Confederação Geral do Trabalho (CGT), principal central sindical da Argentina, para onde o corpo havia sido levado após o histórico funeral. Ara completou sua tarefa um ano depois, mas o mausoléu ainda era apenas um projeto. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os planos tomaram um rumo inesperado em 1955, três anos após a morte de Evita, quando Perón foi derrubado por um golpe militar durante a chamada Revolução Libertadora, que proibiu o peronismo por quase duas décadas. O presidente deposto fugiu para o exílio, mas o corpo de Evita permaneceu na CGT, sob os cuidados de Ara. O que aconteceu em seguida ficou em segredo por 16 anos, e só seria revelado décadas depois graças a investigações jornalísticas e livros como Santa Evita (1995), de Tomás Eloy Martínez, que acaba de ser transformado em série pela plataforma Star+. Um dos trabalhos que foram mais a fundo foi realizado por Miguel Bonasso, jornalista, político e ex-integrante da guerrilha peronista Montoneros. Também serviu de roteiro para o documentário Evita - La Tumba Sin Paz (Evita - O Túmulo Sem Paz, em tradução livre), realizado em 1997 pelo cineasta e atual ministro da Cultura da Argentina, Tristan Bauer. Segundo Bonasso, os militares que derrubaram Perón queriam se certificar que o corpo que jazia na CGT era de fato o de Evita e não "uma boneca de cera". "Para a avergiuação, nomearam uma comissão de médicos notáveis, que ​​extraíram um pedaço de tecido da orelha esquerda para exame histopatológico e cortaram um dedo para [conferir] a impressão digital", diz o documentário sobre as duas primeiras mutilações sofridas pelo cadáver de Evita. Depois de realizar os exames, que incluíram uma série de raios-X, foi confirmado que o corpo pertencia à ex-primeira-dama e que Ara conseguiu preservá-lo "com todos os seus órgãos internos". O medo de que os peronistas tentassem roubar o corpo para "usá-lo como uma tocha para incendiar o país" levou os militares a arquitetar um sinistro plano secreto: sequestrar o corpo de Evita e escondê-lo. O general Pedro Eugenio Aramburu, que comandou a Argentina entre 1955 e 1958, confiou a operação ao tenente-coronel Carlos Moori Köenig, chefe do Serviço de Inteligência do Exército (SIE). Segundo o historiador argentino Felipe Pigna, que escreveu dois livros sobre Eva Perón, a ordem era sequestrar o corpo e dar-lhe "um enterro cristão, que não poderia significar outra coisa senão um enterro clandestino". Mas Moori Köenig desobedeceu ao presidente. Seus homens levaram o corpo em uma caixa comum e sem identificação e tentaram escondê-lo em diferentes partes de Buenos Aires. No entanto, seus movimentos foram seguidos por membros da nascente resistência peronista, que observavam o caminho furtivo do corpo e deixavam velas e flores - segundo Pigna, da planta Myosotis, mais conhecida como "não me esqueça" -, indicando que eles sabiam do paradeiro do corpo. Em seu site elhistoriador.com.ar, Pigna contou como o crescente nervosismo dos sequestradores acabou causando uma tragédia, fato também registrado no livro Santa Evita. Quando Moori Köenig colocou o corpo embalsamado aos cuidados pessoais de seu vice, major Eduardo Arandía, o caixão com o corpo de Evita foi escondido no sótão da casa que dividia com a esposa e a filha pequena. "A paranoia impediu o major Arandía de dormir", diz Pigna. "Uma noite, ele ouviu barulhos em sua casa na avenida General Paz, 500, e, acreditando que era um comando peronista que vinha resgatar o corpo, pegou sua pistola 9 milímetros e esvaziou o pente em um vulto que se movia na escuridão: era sua esposa grávida, que caiu morta no local." Após esse episódio, Moori Köenig levou o corpo de Evita para uma pequena sala ao lado de seu escritório, onde o colocou na posição vertical, escondido dentro de uma caixa que originalmente continha material para transmissões de rádio. Pigna e Bonasso concordam que o coronel tinha uma obsessão pelo cadáver de Evita, que também exibia "como troféu". Mas uma das pessoas a quem Moori Köenig mostrou o corpo, a jovem María Luisa Bemberg - que mais tarde se tornaria uma cineasta premiada - ficou horrorizada e revelou o segredo a um amigo de sua poderosa família que tinha um importante cargo militar. Foi assim que o presidente Aramburu descobriu o segredo. Assim, ele substituiu Moori Köenig e nomeou em seu lugar o tenente-coronel Héctor Cabanillas, um duro antiperonista que havia organizado ataques frustrados contra o ex-presidente no exílio. Cabanillas propôs retirar o corpo do país e em 1957 iniciou a Operação Transferência, também conhecida como Operação Evasão. Entrevistado para o documentário Evita - La Tumba Sin Paz, Cabanillas, morto em 1998, explicou que sua decisão de levar o corpo para o exterior não se baseou apenas em informações que indicavam que "os comandos peronistas estavam preparados para resgatar o cadáver e usá-lo como uma bandeira política para seus propósitos". Ele também temia "pessoas do governo que pretendiam desaparecer com o corpo", seja jogando-o no rio (uma prévia dos "voos da morte" da ditadura argentina da década de 1970) ou "explodindo o prédio" do Serviço de Inteligência do Exército para que os restos mortais sumissem. Foi decidido transferir o corpo para a Itália, objetivo que, disse Cabanillas, foi alcançado "graças à intervenção ativa e muito especial da Igreja [Católica]". "Um representante de Sua Santidade [o papa] interveio diretamente para abrir o caminho", disse o militar sobre a operação - tão secreta que nem o presidente sabia dos detalhes. O representante do Vaticano comprou um túmulo em um cemitério comunal em Milão e ficou encarregado de processar os papéis para a chegada do corpo. Em abril de 1957, o caixão de Eva Perón foi transferido de navio para Gênova, fazendo-o passar como o de uma viúva italiana que havia morrido na Argentina chamada María Maggi de Magistris. Pigna conta que os dois homens encarregados da transferência tiveram um susto quando chegaram ao porto genovês, pois encontraram uma grande multidão esperando a chegada do navio e temiam que fossem adoradores de Evita (que havia sido muito popular durante suas visitas à Itália e à Espanha nos anos 1940). Mas o grupo aguardava por partituras do compositor Giuseppe Verdi que viajavam no mesmo navio e haviam sido repatriadas do Brasil. O caixão foi transferido para Milão, onde os restos mortais foram finalmente enterrados no cemitério Maggiore. Evita passaria 14 anos enterrada sob uma lápide falsa. Para não levantar suspeitas, uma freira chamada Giuseppina foi até paga para levar flores ao túmulo. "Tia Pina", como era conhecida, "nunca soube que levava flores para Eva Perón", diz Pigna, que a entrevistou. O destino dos restos mortais de Evita foi um mistério para os argentinos até 1970. Naquele ano, um grupo de jovens Montoneros sequestrou e assassinou o ex-presidente Aramburu, acusando-o, entre outras coisas, de ter feito o corpo desaparecer. Em meio à crise e ao crescente poder da juventude peronista, o novo líder militar do país, general Alejandro Lanusse, propôs um "Grande Acordo Nacional" com Perón e - como sinal de boa vontade - ofereceu devolver ao ex-presidente exilado os restos mortais de sua segunda esposa. Lanusse pediu a Cabanillas que organizasse a Operação Devolução. No final de 1971, o corpo foi exumado e levado por estrada para a residência de Perón em Madrid. De acordo com a investigação de Bonasso, o ex-presidente tirou fotos do corpo da ex-mulher no local, revelando 35 ferimentos diferentes. Mas essas imagens permaneceram ocultas. Bonasso também afirma que, enquanto o corpo permanecia na residência de Perón na capital espanhola, sua jovem terceira esposa, María Estela Martínez - mais conhecida como Isabel -, realizava cerimônias secretas de "transmutação de poder", de mãos dadas com o seu braço direito, José López Rega, conhecido como "o bruxo" pelas suas conexões com o esoterismo. A intenção era receber "o carisma de Evita" (mas não há provas de que tal episódio tenha de fato ocorrido). Após o retorno de Perón à Argentina, em 1973, e o triunfo nas eleições daquele ano, com Isabel como vice-presidente, cresceu a pressão para que os restos mortais de Evita fossem repatriados. Mas isso só aconteceu depois da morte do fundador do peronismo, em 1974. Em um macabro "olho por olho", o que finalmente fez o corpo embalsamado de Eva Perón retornar à Argentina foi o roubo de outro cadáver: Aramburu, o homem que havia encomendado o sequestro da ex-primeira-dama. A mesma guerrilha que havia executado Aramburu roubou seu corpo do cemitério da Recoleta e exigiu como resgate que o novo governo de Isabel Perón trouxesse de volta a "companheira Evita". Isso aconteceu e, em novembro de 1974, o corpo da ex-primeira dama retornou definitivamente ao seu país, onde foi mumificado, restaurado e exibido junto ao de seu marido - ele, em caixão fechado - na cripta funerária da Quinta de Olivos, a residência presidencial. A ideia de Isabel era criar um grande mausoléu - o Altar da Pátria - para abrigar os restos mortais de ambos e de outros heróis nacionais, mas esse projeto também foi interrompido. Com menos de dois anos de governo, os militares a derrubaram e voltaram ao poder na Argentina, dando origem ao regime mais sangrento do país. O novo governo entregou os restos mortais de Evita aos Duarte, a família da ex-primeira-dama, que a enterrou sob rígidas normas de segurança no mausoléu da família na Recoleta, onde já estavam sua mãe e seu irmão Juan. Foi assim que a "mãe dos pobres" foi parar em uma local no cemitério mais caro e exclusivo de Buenos Aires e, ainda hoje, 70 anos depois de sua morte, segue como o mais visitado.
2022-07-26
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A onda de venezuelanos que buscam asilo na gelada Islândia
Emilet Neda Granados gosta de se deitar na grama úmida do parque Hellisgerði — mais conhecido como o parque das flores — no sul de Reykjavik, capital da Islândia. De alguma forma, esse ritual a faz lembrar da brisa das praias de La Guaira, a cidade venezuelana onde nasceu. "Adoro rios, água, praia e me lembro de tudo isso neste lugar." A distância entre La Guaira e Reykjavik é de 6.800 km, que Emilet tenta evocar apenas fechando os olhos e pensando no mar que banha a cidade natal dela. Quando volta a abri-los, levanta-se com dificuldade e, para andar, tem de travar uma batalha com a perna direita, que mal consegue mexer. Oito meses atrás, enquanto ela reformava seu pequeno apartamento no centro de Reykjavik, uma tábua caiu no meio de seu pé direito, quebrando-o. Desde então, ela iniciou um périplo médico que a levou à depressão — o pé dela ainda não está curado. A partir dali, começou sua rotina de deitar na grama do Hellisgerði para se conectar de olhos fechados com sua Venezuela natal e esquecer a dor por um tempo. Fim do Matérias recomendadas "Passei maus bocados. A única coisa que sei é que, se eu tivesse a minha aguardente de cobra e a minha loção de arnica, estaria curada em um mês", diz. "Melhor dizendo, se eu estivesse na Venezuela, não teria passado por isso." Emilet, como milhões de venezuelanos, fugiu do país devido à crise econômica e política que devastou a Venezuela na última década. O curioso é que uma ilha, mais próxima do Círculo Polar Ártico do que do Caribe e onde no inverno há apenas quatro horas de sol e temperaturas próximas a 20 graus abaixo de zero, se tornou um dos destinos escolhidos pelos venezuelanos para começar uma nova vida. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Segundo o governo islandês, em 2019 e 2021 a Venezuela foi a nacionalidade com maior número de pedidos de asilo aceitos e, até agora, em 2022, só foi superada por outra nacionalidade cujo território está em xeque: a Ucrânia. "Há alguns anos, especialmente desde 2017, os venezuelanos desfrutam do que se chama de proteção subsidiária. Esse é um tipo de asilo que leva em consideração a situação do país mais do que os casos individuais", explica Francisco Gimeno, líder do projeto da Cruz Vermelha Islandesa, à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC. Em 2019, a Islândia aceitou 180 pedidos de asilo de venezuelanos, acima de outras nacionalidades, como iraquianos ou sírios. Em 2020, esse número, por conta da pandemia, foi reduzido para 104, mas em 2021 dobrou em relação a 2019, com 361 casos. E, até abril de 2022, já existiam 265 pedidos aprovados para venezuelanos. Isso ocorre em um país onde a população total é de cerca de 365 mil pessoas. "Esse é um número muito importante, levando em conta quão diferentes são o clima, a língua e, principalmente, a distância entre a Islândia e a Venezuela. Mas muitos deles se adaptaram bem a um país como este", acrescenta Gimeno. No entanto, o aumento do fluxo migratório levou as autoridades islandesas a tentar mudar o procedimento de asilo para os venezuelanos. O escritório de Migração da Islândia indica em um documento enviado à BBC News Mundo que, em dezembro de 2021, foi publicada "uma notificação sobre uma mudança na prática administrativa em relação aos pedidos de proteção internacional de cidadãos venezuelanos". E essa mudança não é uma boa notícia para os imigrantes: aponta radicalmente que, devido à "melhoria das condições" na Venezuela, os cidadãos do país não mais receberiam proteção subsidiária e passariam a ter de argumentar individualmente. "Essa decisão, que também foi tentada em 2020, foi denunciada perante um tribunal islandês. No caso do ano passado, foi revertida quando foi explicado que a situação dos direitos humanos naquele país continua delicada, mas este ano estamos aguardando a decisão do tribunal", explica Gimeno. Emilet sabia que precisava deixar a Venezuela quando seu salário como radiologista, no Centro de Saúde La Guaira, mal dava para comprar alguns utensílios de limpeza. "Naquela época, em 2015, meu pai e um sobrinho, recém-nascido, morreram", lembra. "E como o hospital ficou sem suprimentos para atender os pacientes, tudo o que fazia era aparecer, entrar na sala de raios-X e chorar o dia todo", lembra ela. Embora ela também trabalhasse nos fins de semana organizando festas infantis para complementar o salário, ela decidiu que era melhor deixar o país. Seu primeiro destino foi o Peru, "mas lá passei mais fome do que na Venezuela". "Com um amigo, pesquisamos e percebemos que a Islândia poderia ser um bom destino. Então comecei a me preparar." Além da amplitude dos regulamentos de asilo, a Islândia também é reconhecida globalmente como um dos países "mais amigáveis" para imigrantes. De acordo com pesquisa da Gallup publicada no ano passado, ela fica em segundo lugar, atrás apenas do Canadá. Em 2019, ela finalmente desembarcou no aeroporto de Keflavík, na capital islandesa, e juntou a papelada para pedir asilo. Em alguns meses, ele conseguiu a aprovação. "Senti que tinha chegado à terra prometida: eles nos deram um lugar, ajuda." Mas a pandemia da covid-19, em março de 2020, interrompeu repentinamente tudo isso. Não havia trabalho e ela ficou mal. Quando a economia estava se recuperando, no início de 2021, ocorreu seu acidente no pé. "E eu caí em uma depressão muito forte. Meu pé quebrou primeiro no topo, depois se abriu pela parte de baixo e meses se passaram e não cicatrizou. Havia algo errado." Emilet leva a mão à cabeça ao falar sobre a questão médica. Ela diz que, quando foi ao pronto-socorro para examinar seu pé após o acidente com a tábua, ouviu que não havia fratura e poderia voltar para casa. "Não sei se me entenderam ou não. Primeiro não registraram a fratura e, depois, quando finalmente me engessaram, não entenderam que eu era uma mulher que tinha acabado de entrar na menopausa e que precisava de um tratamento vitamínico para curar minha perna", conta. Um dos diagnósticos que recebeu dos médicos que a trataram é que o atraso na cura teve causas psicológicas, o que para alguns especialistas representa um dos principais desafios enfrentados por quem foge de um país como a Venezuela e chega a um país como a Islândia: reparar seu trauma enquanto se ajusta a um país totalmente diferente do seu. "Muitas das pessoas que chegam da Venezuela estão muito prejudicadas", diz Alma Serrato, psicóloga que trabalha na assistência social aos refugiados que chegam à Islândia. "Alguns foram vítimas de violência, mas, acima de tudo, é muito difícil para eles processarem que esses ataques ou a razão pela qual você foge de seu país são causados ​​pela entidade ou pelas pessoas que deveriam estar encarregadas de cuidar e dar proteção", pensa. E enquanto processam a distância de suas raízes, muitos dos venezuelanos têm que enfrentar uma espécie de renascimento em um país totalmente oposto ao que viviam. "São pessoas que veem a neve pela primeira vez. E precisam aprender coisas tão básicas quanto se vestir para o frio. Aprender coisas no seu nível de adulto responsável, mas logo volta a ser um garotinho novamente. Aprender a andar no gelo, na neve, a comer, a falar." Falar. Para muitos, aprender islandês tornou-se um desafio para a integração. "Não sei o que os vikings estavam pensando quando formaram essas palavras nessa língua", brinca Emilet. No segundo andar de um prédio branco, no meio de um shopping center no centro de Reykjavik, está o Multikulti, um centro de estudos de idiomas. Um dos requisitos da Islândia para as pessoas que recebem proteção internacional é frequentar cursos de islandês oferecidos pelo governo. Naquela tarde, a sala está cheia de venezuelanos. Há um intervalo de 15 minutos. A maioria deles coloca café quente em uma caneca e conversa, como é frequentemente o caso na comunidade imigrante hoje em dia, sobre possíveis mudanças na política de asilo. Um deles comenta que ouviu um boato de que houve muitos roubos no país cometidos por venezuelanos (informação que não é confirmada pela polícia) e que talvez isso dê origem a uma mudança de política que está sendo avaliada. Emilet, que é uma das alunas do curso, ignora a conversa e se concentra no papel com a palavra "nautakjöt", que significa bife em islandês, que faz parte do novo vocabulário diário dela. "O islandês é uma língua de raízes germânicas muito difícil de aprender, principalmente para quem fala espanhol, por vários motivos: não evoluiu muito nos últimos anos e a construção das palavras é totalmente diferente do espanhol", explica Mariel, professor multicultural. E dá o exemplo com um animal: o pinguim. "Em inglês, você diz penguin... e em islandês você diz mörgæs, que vem de 'mor' ou gordura e 'gaes', ganso. Em outras palavras, ganso obeso. O islandês não quer se parecer com nenhuma outra língua e por isso é tão difícil de aprender." Para ela, o problema subjacente é que o país não estava preparado para receber os venezuelanos. "Você pode ver, por exemplo, que não há dicionário islandês-espanhol e não há textos educativos para ensiná-lo, então isso é uma dificuldade", acrescenta. E isso tem consequências diretas na adaptação dos recém-chegados. "Obviamente, as pessoas que vêm protegidas não são todas iguais, há diferentes níveis de educação e de experiência de trabalho, mas se não fala islandês é muito difícil entrar no mercado de trabalho ou, em outros casos, estudar em uma universidade", destaca Gimeno. Isso foi vivido na própria carne por Angelei Quintero. Ela chegou em 2019 e recebeu asilo político após alguns meses, mas, como não fala islandês, tem sido difícil para ela ter acesso a um emprego estável desde que chegou ao país. "Na Venezuela, trabalhei como oficial da Polícia Metropolitana de Caracas por vários anos e, depois, quando foi absorvida pela Polícia Nacional Bolivariana", diz ela. Ela esteve na polícia durante as violentas manifestações de 2017 contra o governo de Nicolás Maduro e foi ali que a vida dela virou de cabeça para baixo. "No meu perfil do WhatsApp, coloquei uma foto de um líder social que morreu durante os protestos que tinha a mensagem 'Abaixo a ditadura'. Um colega meu me denunciou e eles iniciaram um processo." Ela sentiu que deveria fugir. "Eles iam me prender. E eu sabia que um preso político na Venezuela nunca sai da cadeia." Entre as opções que ela tinha, estavam vários países nórdicos, que tinham políticas amistosas em relação aos refugiados. "Escolhi a Islândia", diz ela, ainda vestida com o uniforme do supermercado Krónan, onde começou a trabalhar meio período há algumas semana. Primeiro emprego estável dela desde que chegou à ilha. A Islândia, localizada cerca de 1.500 km ao norte da Noruega, é habitada principalmente por colonos escandinavos que fugiram dos vikings no final do século 9 e baseia sua indústria em duas atividades fundamentais: pesca e turismo. Ambas as indústrias combinadas representam 19% do PIB do país e o turismo é a indústria óbvia em que muitos recém-chegados entram - ou tentam entrar. "Para entrar na indústria do turismo, é preciso falar pelo menos inglês e eu não sabia. Isso me causou muita angústia", diz Angelei. E sua angústia tinha um impulso: quando ela partiu, os dois filhos dela permaneceram na Venezuela. E ela precisava arrecadar dinheiro suficiente para levá-los. Mesmo com as limitações na hora de se comunicar adequadamente — conheceu um namorado falando pelo tradutor do celular — e às restrições de socialização impostas pela pandemia de covid-19, somava-se outra dificuldade: o clima. "O inverno na Islândia é muito duro. Há dias inteiros em que não se vê luz solar. E nós somos da Venezuela, imagine", diz. Em 1990, uma enorme escultura em forma de barco, feita de aço inoxidável, foi erguida em uma das praias de Reykjavik, lembrando os primeiros viajantes que chegaram ao país. A escultura, conhecida como Solfar ou "os viajantes do Sol", obra do escultor islandês Jón Gunnar Árnason, tornou-se um símbolo da cidade. O verão acaba de começar e as dezenas de turistas que se dirigem à enorme escultura para tirar foto são surpreendidos por uma aula de ginástica. Um grupo que se move ao ritmo da salsa de Marc Anthony. Diante de um grupo de ginastas se exercitando ao lado da escultura icônica da cidade está Caryna Bolívar. Ela é da Venezuela, de Caracas, mas não faz parte da diáspora criada pela crise recente. Ela chegou antes: há 20 anos deixou seu país natal com a ideia de morar em Nova York. E acabou na Islândia. "Vi como a população de venezuelanos aumentou e acho que todos concordamos que o clima é muito difícil de lidar: o inverno é muito longo. Faz frio o ano todo. Mesmo agora no verão", diz. Caryna dá aulas de Zumba e ginástica em diferentes partes de Reykjavik e viu que o inverno, onde as temperaturas podem cair para -30°C, leva até mesmo os próprios islandeses à depressão. "Você não vê a luz do sol durante meses e esse aspecto para quem vem de um país tropical como a Venezuela, onde há sol o ano todo, pode ser chocante." Alberto Marcano concorda com isso. Ele foi para a Islândia há dois anos. Deixou a Venezuela por motivos econômicos e se refugiou no Chile. Mas então surgiu o surto social de outubro de 2019 no país do Cone Sul. "Decidi sair porque não queria que minha filha, que estava prestes a nascer, ficasse cercada por aquele ambiente onde eles estavam destruindo tudo", diz ele. Alberto, que também é conhecido por seu apelido Kuzco e sua profissão de comediante, ficou famoso por seus tutoriais no YouTube sobre a vida no país nórdico. Neles, explica como é a língua, as principais atrações turísticas, o que é necessário para sobreviver, mas também como é o cotidiano de um venezuelano na Islândia. "Eu acho que o clima é muito mais difícil que a língua... No final, a língua se aprende, mas o clima continua o mesmo", diz. "Só há luz por cerca de três horas e há aquela escuridão total que dura de dezembro a março. Isso é muito difícil porque parece que você nunca consegue acordar e vai como um zumbi pela rua, como se estivesse entre dormir e acordado." Angelei teve que superar a impressão de que a escuridão lhe causava - e não tanto o frio - através da experiência dele como policial: "Pode ter sido as longas horas de plantão, mas já consigo controlar muito bem quando fico com sono", conta. Essa capacidade de se adaptar a horários e condições extremas permitiu que conseguisse uma série de empregos até juntar dinheiro para levar seus dois filhos. Depois de dois anos separados, Angelei os viu novamente e os abraçou em dezembro de 2021. "Foi um momento muito emocionante", diz ele enquanto enxuga as lágrimas. E tê-los por perto agora lhe permite dizer que emigrar para a Islândia foi a melhor decisão que já tomou. "Quando eles vão para a escola eu não me preocupo se eles vão ser sequestrados ou não. A Venezuela que eu conheci, e na qual eu cresci, não existe mais. É uma memória." "E é muito difícil voltar ao que não existe mais."
2022-07-26
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62261220
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O fotógrafo que registrou intimidade de narcotraficante Pablo Escobar
Trinta anos atrás (em 22 de julho de 1992), o narcotraficante colombiano Pablo Escobar fugia da La Catedral — a prisão onde estava detido com seus seguidores, depois de entregar-se voluntariamente ao governo da Colômbia. Ele seria morto a tiros pelas autoridades em um telhado da cidade colombiana de Medellín, sua cidade natal, pouco mais de um ano depois. E, em julho deste ano, também está sendo publicado o livro El Chino: La vida del Fotógrafo Personal de Pablo Escobar ("O chinês: a vida do fotógrafo pessoal de Pablo Escobar", em tradução livre), do colombiano Alfonso Buitrago — um álbum fotográfico e relato da vida de Edgar Jiménez, que conheceu Escobar ainda jovem e, anos depois, captou com sua câmera os momentos mais íntimos do poderoso chefe do Cartel de Medellín. Edgar Jiménez, conhecido como El Chino ("O Chinês"), foi recentemente entrevistado pelo programa de rádio Outlook, do Serviço Mundial da BBC, sobre esses primeiros anos de amizade na adolescência e como ele restabeleceu sua relação com Escobar, que o contratou para fotografar sua fantástica fazenda, seu zoológico e seus eventos pessoais e familiares. Essa relação estendeu-se desde a "era de ouro" do narcotraficante (como chama o fotógrafo), quando era considerado um benfeitor dos pobres, até a campanha que o elegeu para o Congresso e, por fim, a onda sangrenta de violência de Escobar contra o Estado colombiano. Mesmo depois de acompanhar por vários anos um dos homens mais procurados pela Justiça, ingressar no seu círculo interno, beber com seus impiedosos pistoleiros e saber das atrocidades que eles haviam cometido, Jiménez nãos se arrepende da sua relação próxima com Escobar. Fim do Matérias recomendadas "O narcotraficante não era eu", declarou ele à BBC. "Estava desempenhando uma atividade legal, que era a fotografia." Esta é a história do fotógrafo que teve acesso a um dos mais famosos e perversos personagens do século 20, durante um período dramático da história da Colômbia e do mundo. Edgar Jiménez e Pablo Escobar conheceram-se em 1963, durante o primeiro ano do Ensino Médio no Liceu Antioquenho, uma instituição pública de classe média e baixa, mas considerada de muito boa qualidade. Eles tinham 13 anos e formaram uma amizade típica de colegas de classe: havia camaradagem, praticavam esportes juntos e conversavam nos intervalos. "Fomos muito amigos", segundo Jiménez. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A princípio, Escobar não se destacava muito. "Pablo era um estudante comum. Nem bom, nem péssimo", recorda Jiménez. "Isso não significa que não fosse inteligente, mas suas preocupações eram de outra natureza." Já com cerca de 16 anos de idade, era possível notar que tanto ele quanto seu primo Gustavo Gaviria (que estudava na mesma escola) "eram muito ansiosos para conseguir dinheiro" e começaram a negociar cigarros de contrabando. "Nós, estudantes, tínhamos recursos econômicos de baixos a medianos. Escobar e Gaviria, também, mas eram os que tinham mais dinheiro devido a suas atividades dessa índole", relata Jiménez. Por falta de disciplina acadêmica, Pablo Escobar foi reprovado no quarto ano do Ensino Médio, que precisou cursar novamente em outra instituição. Por não estarem mais na mesma sala, nem no mesmo ano, os amigos começaram a distanciar-se e perderam contato. Edgar Jiménez havia se interessado por fotografia graças a um laboratório muito bem instalado e a uma oficina de fotografia na escola. Quando se formou e entrou na universidade para estudar Engenharia, dedicou-se a fotografar eventos sociais para custear seus estudos. Já Escobar formou-se bacharel um ano depois, mas estava aparentemente frustrado por não conseguir emprego — até que disse à sua mãe que não procuraria mais trabalho, mas jurou a ela que conseguiria seu primeiro milhão antes dos 30 anos de idade. "Foi ali que ele tomou a decisão de tornar-se bandido e delinquente — com cerca de 19, 20 anos", conta Jiménez. Os dois ex-colegas voltaram a encontrar-se somente em 1980. Jiménez já era fotógrafo profissional e estava cobrindo um evento no município de Puerto Triunfo, a cerca de três horas de Medellín. Foi quando um amigo, que era funcionário público, convidou-o a conhecer uma fazenda esplêndida que havia naquela região. Era a fazenda Nápoles, agora conhecida internacionalmente como o extravagante complexo campestre de Pablo Escobar. Já na porta de entrada, havia um pequeno avião, supostamente usado para "coroar" seu primeiro carregamento de cocaína para os Estados Unidos. Jiménez conta que ficou assombrado com as dimensões da fazenda — cerca de 3.000 hectares — que incluía uma zona de selva por onde passava um importante afluente do rio Magdalena, o maior da Colômbia. Tinha ainda cerca de 30 lagos, um lugar para touradas, uma grande pista de aterrissagem, heliporto e hangar. Mas o mais memorável era o espetacular zoológico com "a fauna mais representativa de todos os continentes". Da Austrália, por exemplo, havia emus, casuares e cangurus; da África, havia zebras, rinocerontes, antílopes, elefantes, girafas e hipopótamos. Escobar tinha um aviário com uma grande quantidade de aves magníficas. Além dos faisões, pavões e periquitos, havia "araras de todas as cores, papagaios pretos que haviam custado uma fortuna e uma arara azul de olhos amarelos que havia custado US$ 100 mil [cerca de R$ 550 mil]". Os lagos estavam repletos de todos os tipos de cisnes, gansos, patos, pelicanos e até botos-cor-de-rosa do Amazonas. "Para quem não estava acostumado, era como estar em um safári na África, porque os animais andavam em liberdade e eram muito bem cuidados", recorda o fotógrafo. Pablo Escobar reconheceu imediatamente seu antigo colega de escola e o abraçou efusivamente. Quando soube que era fotógrafo, ele o contratou para que tirasse fotos dos animais do zoológico. Escobar queria montar um inventário com as imagens de todos os seus cerca de 1.500 animais. "Ali começou minha nova relação com Pablo. De 1980 até sua morte", conta Jiménez. Foi uma longa tarefa, que incluiu diversas visitas à fazenda, já que ele tirava fotos de cerca de 50 a 100 animais e regressava depois de 15 ou 20 dias para continuar fotografando. Ele se sente muito orgulhoso das fotos que tirou, particularmente dos primeiros hipopótamos que chegaram à fazenda e agora são "pais, avós e tataravós desses hipopótamos que estão disseminados por uma grande região da Colômbia" e são considerados uma espécie invasora. Ele recorda momentos engraçados. Certa vez, uma avestruz arrancou com uma bicada um cigarro do seu assistente e Jiménez a fotografou como se a ave estivesse fumando. Mas também houve momentos arriscados. Jiménez fotografou um casuar, uma das aves mais perigosas do mundo, com suas patas afiadas como facas e capazes de partir um ser humano. "Não sabia e tirei fotos a um metro de distância. Ele me olhava fixamente. Se me atacasse, teria me matado", relembra ele. Também aconteceu o mesmo quando foi perseguido por avestruzes (que também dão potentes golpes com a pata). Jiménez precisou escapar movendo-se em zigue-zague, até que um trabalhador as interceptou e ele conseguiu escapar ileso. Entre 1980 e 1984, além de organizar o catálogo fotográfico dos animais, Jiménez registrou os eventos sociais e familiares de Pablo Escobar e seus parentes próximos. Ele ingressou no seu círculo mais íntimo. Jiménez também o acompanhou nas atividades cívicas, na distribuição de dinheiro para os pobres e na construção de moradias. As classes populares adoravam o chefão do tráfico por essas ações e ignoravam suas atividades ilegais. O fotógrafo era "muito bem pago" pelo seu trabalho e, embora conhecesse a origem do dinheiro, Jiménez garante que não se arrepende de nada em sua relação durante esses anos que ele chama de "o lado bom, nobre e gentil de Pablo Escobar". Ele conta que, no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, os "mafiosos" que tinham muito dinheiro eram conhecidos, mas bem vistos na sociedade colombiana, não só nas camadas inferiores da sociedade, mas também nas altas esferas políticas e empresariais. "Havia conivência com os narcotraficantes. Eles geravam emprego, negócios e ajudavam muita gente", destaca Jiménez. "E os políticos que mantinham campanhas financiadas por Pablo nunca se perguntaram de onde vinha esse dinheiro." "O narcotraficante não era eu", afirma Jiménez. "Eu estava desempenhando uma atividade legal, que era a fotografia." Em 1982, Escobar entrou na política, tentando uma vaga na Câmara de Representantes. Naquele momento, embora se afirmasse que ele seria mafioso, "não se questionava nem se havia comprovado absolutamente nada", explica Jiménez, que aceitou acompanhá-lo e ser coordenador da sua campanha. "Imaginei que, se a política colombiana havia estado repleta de bandidos há 200 anos, por que outro bandido não poderia chegar à Câmara, ainda mais um que fazia obras sociais?", conta. A experiência política de Jiménez vinha da sua trajetória com a Aliança Nacional Popular (Anapo), um partido de esquerda que se dividiu depois de perder as questionadas eleições presidenciais de 1970. Alguns dos seus integrantes acabaram formando parte do movimento guerrilheiro M-19, responsável por alguns dos ataques mais espetaculares ao governo colombiano. Jiménez foi militante do M-19 desde o princípio. Era uma situação delicada para o fotógrafo, pois, naquela mesma época, o M-19 enfrentava um conflito violento com o Cartel de Medellín. Poucos meses antes, uma célula do grupo guerrilheiro havia sequestrado Martha Nieves Ochoa — do clã Ochoa, sócio de Pablo Escobar no narcotráfico. Devido a esse sequestro, o Cartel de Medellín patrocinou o grupo armado MAS (Morte aos Sequestradores), que foi parte da origem do paramilitarismo na Colômbia, e desatou uma guerra sangrenta. "Eu estava entre duas facções opostas em combate. Duas facções muito violentas", reconhece Jiménez. O fotógrafo conseguiu sair dessa encruzilhada, segundo ele, porque Escobar sabia da sua militância no grupo guerrilheiro, mas "tinha muito apreço" por ele. O narcotraficante sabia que o M-19 era uma guerrilha dividida em grupos e que uma célula independente havia realizado o sequestro de Martha Nieves Ochoa sem autorização E, por outro lado, Edgar Jiménez contou para a cúpula guerrilheira sobre seu trabalho na campanha de Escobar, o que pareceu apropriado para eles e favorável aos seus interesses. "As duas facções sabiam onde eu estava, o que estava fazendo e onde estava minha lealdade. Por isso, não aconteceu nada comigo", garante Jiménez. Ele acrescenta que, em parte, ele foi importante na aproximação entre o M-19 e o Cartel de Medellín para conter essa guerra que havia custado muitas vidas. Mas isso não trouxe o fim do derramamento de sangue. Em 1984, começou uma guerra entre o Cartel de Medellín e o Estado colombiano e o país entrou em um dos períodos de maior convulsão da sua história. O estopim foi o assassinato do então ministro da Justiça da Colômbia, Rodrigo Lara Bonilla, ordenado por Pablo Escobar. Lara Bonilla estava começando a lutar contra os cartéis do narcotráfico. Para Edgar Jiménez, esse fato foi o "divisor da vida de Escobar, [entre] o antes e o depois". O antes era o que ele chama de "era de ouro" do narcotraficante, quando suas atividades não eram associadas à violência, mas sim a "benefícios sociais". O que veio depois foram anos de atentados a bomba e assassinatos de jornalistas, magistrados, militares e policiais. "Com essa violência desenfreada, com esses assassinatos e crimes, eu não podia estar de acordo. Nunca", relatou ele. "Mas também não podia fazer nada, já que eu não era parte do Cartel de Medellín, eu não pertencia àquela estrutura." E ele garante que também não podia denunciá-lo, porque com certeza seria morto. Depois do assassinato de Lara Bonilla, Jiménez foi ainda duas vezes à fazenda Nápoles. A visita de que ele mais se lembra foi em 24 de fevereiro de 1989 — o ano mais violento da história recente da Colômbia. Ele foi fotografar o 13° aniversário do filho de Escobar, Juan Pablo. Ali ele tirou uma foto do capo que ele afirma ser a mais significativa, porque revela muito sobre o momento por que ele passava. "A festa foi muito íntima, com a participação apenas dos familiares e amigos mais próximos", segundo o fotógrafo. Escobar havia se afastado da festa e estava completamente absorto em seus pensamentos, olhando para baixo. Foi quando Jiménez tirou a foto. Aquela imagem, segundo Edgar Jiménez, capta as "profundas reflexões de Pablo, que, naquele momento, enfrentava todo tipo de problemas devido à intensa perseguição contra ele [e] muito provavelmente estavam relacionadas àquela série de acontecimentos trágicos que se aproximavam." "Essa foto eu relaciono com o que veio em seguida", afirma Jiménez. O que veio em seguida foi o assassinato do candidato à presidência Luis Carlos Galán, a derrubada de um avião de passageiros e os atentados a bomba contra as instalações do Departamento Administrativo de Segurança e do jornal colombiano El Espectador. Perseguido pelo exército e pela polícia da Colômbia, além do chamado Bloco de Busca, e com sua extradição exigida pela CIA e pela Agência de Combate às Drogas dos Estados Unidos (DEA, na sigla em inglês), Pablo Escobar decidiu entregar-se às autoridades colombianas, depois de conseguir um acordo segundo o qual ele cumpriria uma pena de prisão e o Estado garantiria sua segurança sem extraditá-lo. Foi um golpe de astúcia do capo. A prisão foi construída sobre uma montanha, segundo suas próprias especificações e repleta de luxos — incluindo uma jacuzzi, sala de bilhar, bar, aparelhos de televisão, móveis importados e um campo de futebol. E, dali, ele continuou cometendo crimes, convocando seus seguidores e até assassinando alguns deles. Até que, por pressão da promotoria pública, o governo ordenou o traslado de Escobar e seus companheiros reclusos para uma "prisão de verdade", mas eles conseguiram escapar facilmente em 22 de julho de 1992, por um muro de gesso construído especificamente para esse fim. Foi quando começou novamente a caçada implacável ao chefe do Cartel de Medellín, até sua morte a tiros em um telhado na cidade de Medelín, em 2 de dezembro de 1993. Naquele momento, Edgar Jiménez encontrava-se no seu laboratório de fotografia no centro de Medellín. Pelo rádio, ele tomou conhecimento da notícia que estava dando a volta ao mundo. Jiménez confessa que seus sentimentos foram contraditórios. De um lado, ele sentiu tristeza por alguém que, mesmo sendo um criminoso que causou tantos danos (como ele bem sabia), não deixava de merecer o afeto mútuo existente entre eles desde a infância. "Comigo, Pablo sempre se comportou muito bem, pessoalmente e como amigo", garante ele. "Foi uma dor para mim que alguém com sua capacidade e inteligência, que havia sido muito útil para a sociedade, tivesse tomado um rumo diferente." Mas, por outro lado, ele reconhece que sentiu alívio "pela sociedade colombiana, pois o país estava apreensivo" com os constantes atentados a bomba que causaram a morte de policiais e muitos civis inocentes, incluindo mulheres e crianças. "Pelo menos, toda essa violência terminava. Isso vi como positivo." Jiménez continuou em contato com a família de Escobar até o início dos anos 2000 — sua mãe e irmãos, além da família Henao da sua esposa, cobrindo eventos sociais. Mas sua vida sempre estará ligada ao antigo chefe do cartel de Medellín. "É o bandido mais famoso da história. Sua vida o transformou em lenda e sua morte, em mito. E eu, de alguma forma, faço parte disso", conclui Jiménez. Todas as fotos têm direitos reservados.
2022-07-26
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62300964
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Os agricultores que dizem ter ficado estéreis por exposição a pesticidas
Dezenas de milhares de ex-trabalhadores de plantações de banana dizem que ficaram estéreis por causa de um pesticida usado por empresas americanas em plantações na América Latina na década de 1970. Os Estados Unidos restringiram e depois proibiram seu uso no território americano por causa dos riscos à saúde, mas os trabalhadores da América Central e da América do Sul continuaram expostos a ele. A jornalista Grace Livingstone narra do Panamá a batalha de décadas dos trabalhadores por justiça. Isabel Coba Mojica tinha 16 anos quando conseguiu um emprego em uma plantação de banana na província de Chiriquí, no Panamá. Quando começou a trabalhar na plantação em 1967, a mesma era administrada por uma subsidiária da gigante americana United Fruit Company, que desde então mudou seu nome para Chiquita Brands International. Fim do Matérias recomendadas Coba esperava começar uma família com sua namorada, mas ela não engravidou. O casal acabou se separando, e ele conheceu outra mulher, mas sua nova parceira também não conseguiu conceber. No terceiro ano dos 25 anos que passou na plantação, Coba decidiu procurar ajuda médica. O médico testou seu esperma e disse que ele não poderia ter filhos. "Não conseguia acreditar. Enlouqueci, achei que não valia a pena continuar vivendo. Foi um sentimento de tristeza e perda", lembra. Coba não foi o único trabalhador em plantações de banana a ter problemas de saúde. Rafael Martínez González trabalhou em duas plantações de banana diferentes administradas pela United Fruit no Panamá. Três anos depois de começar a trabalhar, a esposa de Martínez teve um aborto espontâneo quando estava grávida de seis meses. O casal nunca concebeu outro bebê. Em todo o Panamá, há mais de 1,1 mil ex-trabalhadores de plantações de banana que dizem que um pesticida usado pela United Fruit nas plantações os tornou estéreis. O pesticida, chamado dibromocloropropano ou DBCP, tem como alvo vermes microscópicos que danificam as bananeiras. Mas também pode afetar a fertilidade masculina. Martínez acredita que não eram tomadas precauções suficientes quando o pesticida — que tinha vários nomes comerciais, incluindo Fumazone — era pulverizado. "Eu pulverizava muitos produtos químicos. Normalmente, quando pulverizava Fumazone, me davam uma máscara, mas não me davam luvas, botas ou qualquer outra roupa de proteção", diz ele. Advogados americanos ajudaram Martínez e Coba, juntamente a centenas de outros panamenhos, a entrar com um processo contra a Chiquita e os fabricantes do pesticida, mas os dois homens dizem que nunca souberam que fim levou a ação judicial e nunca receberam nenhuma indenização. O problema tampouco se restringe ao Panamá. Na Costa Rica, Equador, Guatemala, Honduras e Nicarágua, dezenas de milhares de ex-trabalhadores de plantações de banana processaram as empresas que fabricavam o DBCP e as companhias produtoras de frutas que o usavam. As empresas em questão são Dole Fruit, Del Monte e Chiquita, e os fabricantes Shell, Dow Chemical, Occidental Chemical e AMVAC. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os processos judiciais afirmam que havia evidências de que o DBCP causava esterilidade em animais já na década de 1950. Cientistas que trabalhavam para dois dos fabricantes — Dow e Shell — realizaram estudos de exposição em coelhos, ratos e camundongos, que mostraram redução na contagem de espermatozoides e atrofia testicular em alguns casos. Charles Hine, um dos cientistas que realizaram os testes, escreveu em um relatório preliminar de 1961 para os órgãos reguladores dos EUA que a exposição repetida ao DBCP poderia afetar a reprodução humana. Mas, de acordo com uma correspondência da empresa à qual a BBC teve acesso, o funcionário da Shell encarregado de registrar os produtos químicos junto às autoridades respondeu: "Deixe de fora especulações sobre possíveis condições prejudiciais ao homem. Este não é um tratado sobre uso seguro". Quando o pesticida foi licenciado em 1964, o rótulo não fazia referência a possíveis impactos na fertilidade masculina. Hine, que se tornou consultor da Dow e da Shell, também havia aconselhado o uso de roupas de proteção impermeáveis, mas o rótulo do pesticida tampouco mencionava a necessidade de equipamentos de proteção. A Standard Fruit (agora conhecida como Dole Fruit) começou a usar o DBCP em plantações de banana na América Latina na década de 1960, enquanto a Chiquita e a Del Monte começaram no início da década de 1970. De acordo com uma ação movida em tribunais dos EUA, a Dole e a Chiquita continuaram a usar DBCP na América Central após 1977, embora os órgãos reguladores dos EUA tenham restringido seu uso no território americano por causa dos riscos à saúde. Naquele ano, 35 trabalhadores de uma fábrica de DBCP na Califórnia foram considerados estéreis. Em 1977, a Agência de Proteção Ambiental (EPA, na sigla em inglês) americana suspendeu então o uso do DBCP em 19 plantações nos Estados Unidos, e impôs uma "suspensão condicional" em todas as outras plantações no país, o que significava que o produto só poderia ser usado de maneiras bem restritas: somente aplicadores certificados poderiam manuseá-lo e seriam obrigados a usar respiradores e outras roupas de proteção. Em 1979, a Agência de Proteção Ambiental finalmente cancelou o registro do DBCP para todos os usos nos EUA, isentando os produtores de abacaxi no Havaí até 1985. Embora a Shell e a Dow tenham parado de fabricar DBCP em 1977, continuaram exportando legalmente seus estoques não utilizados do pesticida para vários países da América Central, mas não para o Panamá depois desta data. Abordada pela BBC, a Dow disse que "parou de fabricar o DBCP em 11 de agosto de 1977, três semanas depois de saber que o DBCP é capaz de causar efeitos na fertilidade masculina em humanos quando se encontra em doses muito altas nas fábricas". A declaração acrescenta que "a fabricação de DBCP pela Dow, e todas as vendas ou remessas de DBCP, ocorreram bem antes de outubro de 1979", quando o registro do pesticida para uso nos EUA foi cancelado. O nome comercial do pesticida de DBCP da Shell era Nemagon. Um porta-voz da companhia declarou: "A Shell suspendeu voluntariamente a fabricação de Nemagon em 1977, depois que a Agência de Proteção Ambiental dos EUA levantou preocupações sobre os efeitos do DBCP, e já havia cessado toda a venda ou fabricação de Nemagon antes da EPA proibir seu uso nos EUA em 1979." De acordo com o processo judicial, a Occidental Chemical continuou a vender DBCP ao Panamá até 1979, e a AMVAC continuou a fornecer DBCP a distribuidores panamenhos até 1985. A Occidental Chemical não quis comentar. Mas o diretor administrativo da AMVAC disse à BBC que "as vendas e usos nos quais você está focado datam de mais de 40 anos". E escreveu: "De acordo com os registros que vi, a empresa aparentemente vendeu DBCP a granel para distribuidores que, por sua vez, venderam as mercadorias para vários países da América Latina. O destino final dessas mercadorias muitas vezes não era claro". "Por que a empresa vendeu DBCP durante o período de tempo em questão, após o cancelamento dos EUA, eu não sei. Isso teria sido do conhecimento daqueles que estavam tomando decisões na década de 1970." A Dow acrescentou que "a ciência do DBCP é clara" e que "a dose é o fator determinante". "Exposições em baixas doses, ao ar livre ou intermitentes não vão afetar a fertilidade masculina", afirmou. A declaração deles diz que foi demonstrado que o DBCP "possivelmente afeta a função reprodutiva de alguns trabalhadores do sexo masculino que o manipularam diretamente em doses muito altas nas fábricas". Mas argumenta que "trabalhadores agrícolas teriam potencialmente usado doses significativamente mais baixas, e nenhum estudo de trabalhadores agrícolas mostrou um efeito semelhante ao trabalhar com DBCP". A Dole diz em seu site que "não há evidências científicas confiáveis ​​de que o uso de DBCP pela Dole em fazendas de banana tenha causado qualquer um dos danos alegados em qualquer um dos processos judiciais relativos ao DBCP, incluindo esterilidade". A empresa também afirmou que parou de comprar DBCP em 1979, quando a Agência de Proteção Ambiental dos EUA cancelou o registro para seu uso no país. A Chiquita e a Del Monte não responderam às perguntas da BBC. Depois de quase três décadas, houve apenas um caso em que um tribunal dos EUA considerou se o pesticida causou esterilidade. Constatou-se que seis trabalhadores de plantações de banana da Nicarágua ficaram estéreis por causa do DBCP, mas este julgamento histórico foi anulado após recurso, quando as empresas argumentaram com sucesso que o caso havia sido prejudicado pela corrupção. Até o momento, não houve litígios bem-sucedidos nos EUA movidos por trabalhadores de plantações de bananas. Os processos deles foram indeferidos por questões processuais ou as empresas resolveram o caso fora dos tribunais, fazendo pagamentos a alguns demandantes, mas não aceitando responsabilidade. Atualmente, há apenas dois processos ativos nos EUA. Scott Hendler, o advogado que está processando em nome dos trabalhadores da Guatemala, Costa Rica, Equador e Panamá, diz que as empresas estão "recorrendo a questões processuais repetidamente". Ele quer que um júri veja as evidências. "Não há dúvida de que o DBCP pode causar esterilidade", diz ele. "A questão é se cada uma das partes demandantes sofreu exposição suficiente por si só para ser um fator substancial na causa de sua própria infertilidade." Martínez, no Panamá, é um dos milhares de trabalhadores de plantações de banana cujo caso foi arquivado sem que as evidências fossem ouvidas. Investigações da BBC mostram que o processo dele, junto com as ações de mais de 1.160 panamenhos, foi rejeitado por um juiz da Califórnia em 2010 com base no forum non conveniens — uma doutrina legal que significa que este tribunal em particular não era o melhor lugar para julgar o caso. O tribunal nunca ouviu falar da infertilidade de Martínez ou que ele manuseava DBCP sem luva. O nome de Coba não consta em nenhum dos processos ainda pendentes, então é provável que seu caso também tenha sido indeferido. Coba às vezes imagina como sua vida poderia ter sido: "Meus irmãos que não trabalhavam nas plantações de banana têm filhos. Vejo meus sobrinhos correndo e, às vezes, sinto uma sensação de perda. É triste, é doloroso".
2022-07-25
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62250189
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'É possível ser gorda e feliz': a modelo argentina que luta contra gordofobia
Agus Cabaleiro se define como uma militante do amor próprio. A influenciadora digital argentina de 27 anos, formada em Publicidade, modelo e criadora de conteúdo, é conhecida por seus milhares de seguidores como Online Mami. Cabaleiro é ativista do movimento de positividade corporal, que desafia padrões de estética e incentiva que as pessoas amem seus corpos, independente da forma deles. Ela compartilha mensagens desse tipo em sua conta no Instagram com milhares de seguidores e também em outras plataformas, assim como em seu livro "Te lo digo por tu bien. Sobre ser gordas y ocupar espacios con libertad" ("Te digo para o seu bem. Sobre ser gorda e ocupar espaços com liberdade", em tradução literal). A ativista conversou a BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) sobre a sua luta contra a gordofobia.. Fim do Matérias recomendadas BBC News Mundo - Quero começar pelo seu livro: "Te digo para o seu bem". Por que esse título? Agus Cabaleiro - É uma frase que acredito que todas, todes, escutamos, independente do tamanho do nosso corpo. Obviamente está muito relacionado a viver e crescer com um corpo gordo, onde as pessoas te recomendam coisas, te dão conselhos ou te dão dicas "para seu bem" e muitas vezes com amor, com boas intenções, mas que basicamente denotam gordofobia. BBC News Mundo - Que tipo de coisas eles disseram para você "para seu próprio bem"? Cabaleiro - Quando eu era mais nova, minha mãe e minha avó me falavam muito "coma um pouco menos porque você vai engordar, estou falando isso para o seu próprio bem" e também falavam muito sobre as roupas. "Não use calças brancas, não use algo tão apertado, algo tão curto, estou dizendo isso para seu bem." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast BBC News Mundo - Como você entende a gordofobia em sua experiência pessoal? Cabaleiro - A gordofobia é basicamente aversão, medo de pessoas com corpos gordos e de ser gordo também. Há muita gordofobia internalizada. BBC News Mundo - Você diz em seu livro que quer que as pessoas percam o medo da palavra "gordo". Por quê? Cabaleiro - Somos educados a entender a palavra "gordo" como um insulto, quando na verdade é um adjetivo como magro, alto, baixo etc. Os problemas são todas as noções que associamos à palavra gorda e à palavra magra. Quando pensamos em alguém gordo, ou nos ensinam o que é, pensamos em alguém que não é saudável, que é burro, desajeitado, que é feio, que não faz exercícios, etc. E, ao contrário, quando alguém é magro, pensamos que é saudável, que se ama e que se cuida. Isso é dessa forma porque somos ensinados assim desde que nascemos. Tantas pessoas dão voltas pela palavra gordo e procuram eufemismos como "gordinho" ou "grande" para evitar dizer que alguém é gordo ou não se reconhecer como gordo. BBC News Mundo - Por que a palavra em si é tão importante? Cabaleiro - Para mim é muito importante, justamente para tirar o estigma que existe. Me lembro de ter 14 ou 15 anos, em plena adolescência, e que me dava uma espécie de cãibra no estômago quando ouvia a palavra gorda e não podia nomeá-la, não podia escrevê-la. Ou seja, era nesse nível. É como algo muito forte com a palavra em si, com o som, é muito curioso como fenômeno. Então, no começo do livro, eu digo que um dos objetivos é perder o medo dessa palavra, porque ser gordo não é nada mau, é apenas um adjetivo. É uma descrição do seu corpo. BBC News Mundo - Em sua conta no Instagram, você se define como militante do amor próprio. O que significa isso? Qual é a mensagem mais importante que quer passar? Cabaleiro - A mensagem mais importante é que é possível viver uma vida plena com o corpo que tem, qualquer seja o seu tamanho. E que pode realmente ter uma relação de amor consigo mesmo e com o seu corpo porque você pode ter tolerância, respeito e ter amor próprio. Essa é a minha mensagem, é possível viver uma vida plena e feliz, não importa o tamanho do seu corpo. BBC News Mundo - Voltando à sua adolescência, disse em outras entrevistas que passava o verão morrendo de calor com jeans. Quais coisas deixava de fazer? Cabaleiro - Deixei de fazer milhões de coisas por ter um corpo gordo, porque me ensinaram que não podia fazer. Quando era criança havia um monte de roupas que não podia usar porque não tinha o meu tamanho e hoje ainda há um monte de coisas que tampouco posso usar porque não há o meu tamanho. E hoje em dia, como quando eu era adolescente, há lugares físicos nos quais não posso entrar, por exemplo, há pistas de dança onde eles não te deixam entrar. BBC News Mundo - Como não te deixam entrar? Cabaleiro - Isso aconteceu toda a minha vida, sinto que é algo que acontece em toda a Argentina e em todo o mundo. Há lugares para sair para dançar. Há circuitos de danceteria e bares. E aconteceu comigo toda vez que tentei entrar (em lugares do tipo) e que claramente não era bem-vinda. Eles deixam todas as suas amigas entrarem e te deixam de lado, e te dizem, bem, espere e tenha sua carteira de identidade na mão. Já cheguei a esperar 40 minutos durante a noite na porta de um lugar para que viessem com desculpas para não me deixarem entrar. E há momentos em que eles literalmente dizem "seus amigos não me disseram que uma garota gorda estava vindo com eles". Isso aconteceu comigo quando eu tinha 16 anos e aconteceu comigo há dois anos no período pré-pandemia, essas coisas não mudam. BBC News Mundo - Aconteceu muitas vezes? Cabaleiro - Aconteceu todas as vezes em que fui (a esses lugares). Não vivenciei isso mil vezes, porque não fui mil vezes expor a minha saúde mental e a minha integridade por causa de uma danceteria. Te fazem entender que esse lugar não é para você, porque se você não entra uma, não entra duas vezes e não vai mais, e é assim que eles segmentam. BBC News Mundo - Você já foi capa de uma revista, é modelo, tem sua linha de roupas e comemora dizendo "não ser uma pessoa gorda, mas uma mulher gorda". Porém, diz também que "se é gorda não te classificam como mulher". Ao que você se refere? Cabaleiro - Como mulheres, temos que cumprir basicamente quatro condições, senão você não está cumprindo o seu papel. Essas condições são basicamente ser mães, esposas, bem-sucedidas e sensuais - o que não significa dizer que são fáceis, mas algo bonito de ver, um objeto. Mas as mulheres gordas nem se qualificam para serem solicitadas por essas coisas. Aqui na Argentina, homens que estão com gordas são chamados de "comegordas", eles dizem "você está comendo uma gorda". Isso é muito depreciativo. Ser bem-sucedidas? É impossível, porque todas as mulheres gordas "são desajeitadas". Na verdade, a boa aparência que pedem nos trabalhos é basicamente ser alto, magro e branco. Mãe? Tampouco, porque te dizem que "você vai morrer antes que o garoto chegue ao ensino médio". É incrível, existem ativistas gordas muito famosas nos Estados Unidos que postam uma foto com seus filhos porque foram ao zoológico, e as pessoas dizem "que mau exemplo você é porque está ensinando a eles que não precisa se cuidar" ou "você vai morrer antes que seu filho chegue ao ensino médio". Então, as mulheres gordas estão em um degrau abaixo. Porque basicamente veem uma gorda antes de ver uma pessoa, esse é o problema. BBC News Mundo - Algumas pessoas fazem comentários negativos em suas redes. Como responde às críticas? Cabaleiro - Dos comentários negativos que chegam às minhas redes, 80% têm a ver com saúde. Nos outros 20% te chamam diretamente de "gorda feia", "morre"... Há muita confusão sobre o tema da saúde. Em primeiro lugar, ser gordo não é uma doença. A OMS [Organização Mundial da Saúde] define como fator de risco, não uma doença em si. Mas, por exemplo, brancos são mais propensos a ter câncer de pele do que negros, e não vemos campanhas do dia mundial contra ser branco. Por ser um fator de risco, não colocamos alguém que é branco no Instagram "você está normalizando ser branco e está passando um recado ruim". Por que com corpos gordos sim? Não existe doença que todos os corpos gordos tenham e não existe doença que afete apenas corpos gordos. Diabetes e colesterol alto são sempre mencionados, mas tem muita gente que tem diabetes e colesterol que não é gorda, e nem todo gordo tem diabetes e colesterol. Por outro lado, além do debate se um corpo gordo é saudável ou não, para mim é bom pensar nessa questão de por que uma pessoa gorda feliz é tida como um mau exemplo. Quando as pessoas veem meu conteúdo não pensam que vão comer muito ou deixar de ir à academia para serem gordas. O que as pessoas entendem quando veem meu conteúdo é que você pode ter uma vida plena e feliz com qualquer corpo. BBC News Mundo - Você também falou de experiências ruins quando vai ao médico... Cabaleiro - Os médicos muitas vezes atribuem qualquer coisa que está acontecendo com você à gordura. Então, eles te mandam para casa sem fazer nenhum teste e mandam você emagrecer, caminhar todos os dias e fazer dieta. E você vai para casa pensando que esse é o problema, quando talvez a razão e o gatilho para essa doença ou o que está acontecendo com você seja outra coisa. E isso é muito perigoso. É uma loucura, e ainda está acontecendo muito. BBC News Mundo - Estávamos falando das reações negativas, mas também há muitas reações positivas. A quem você atinge com sua mensagem? Cabaleiro - Felizmente, minha mensagem chega a muitas pessoas de muitos gêneros, de muitos tamanhos de corpo, de muitas idades. Meninas que são 10 anos mais novas que eu, que são adolescentes, que são mães e que talvez tomem meus conteúdos como ferramentas para criar suas filhas, ou meninos ou meninas que são muito magros, mas a mensagem ainda os atinge da mesma forma, o que é ótimo. BBC News Mundo - Você disse que "ninguém está a salvo" de críticas, porque elas podem ser direcionadas a um adolescente porque ele é gordinho ou a uma menina magra porque ela não tem muitos seios e dizem que ela é uma "tábua". Cabaleiro - Não é tudo a mesma coisa. Uma coisa é ser ensinado que você não é atraente e outra coisa é não ter acesso à saúde, não ter acesso à roupa, não ter acesso ao trabalho, que é o que acontece no caso dos corpos gordos, independentemente do gênero. Mas, na realidade, o padrão hegemônico afeta a todos porque sempre falta algo ou sempre sobra alguma coisa, então, você tem que comprar tal produto ou seguir tal dieta e ninguém está salvo disso. Porque o negócio é que ninguém é salvo e que todo mundo tem que comprar algo ou fazer alguma coisa e gastar dinheiro com isso, é uma indústria BBC News Mundo - Há dias em que você ainda acha difícil se ver dessa forma positiva que transmite? Cabaleiro - Óbvio, ser ativista não salva a sua vida. Às vezes eu recebo mensagens que fazem com que eu me sinta mal. Não me acontece uma vez, acontece mil vezes, porque há mensagens tão ofensivas que é muito complexo não se importar. Então, obviamente há momentos em que o que não incomodava em seu corpo vai incomodá-lo ou um comentário vai te pegar mais que o outro. Para mim, se incomodar com o seu corpo não é ser uma ativista ruim, que não gosta de si, mas seria bom começarmos a ter mais tolerância e mais respeito por nós mesmos. BBC News Mundo - Como você faz quando mensagens negativas são enviadas? Cabaleiro - Um passo muito importante para mim e que ajuda muito no diálogo interno é buscar representatividade, buscar pessoas parecidas comigo. Achamos que nosso corpo está errado porque vemos corpos iguais e o nosso é diferente, quando na realidade, dentro da diversidade corporal, existem milhões de pessoas, milhões de corpos, cores, alturas, pesos etc. BBC News Mundo - E além de buscar representatividade? Cabaleiro - Eu acho que um pouco quando você se sente mal e é uma coisa de um dia, uma coisa momentânea, é bom deixar pra lá. Se você está triste ou algo te afeta, não é ruim, é uma emoção normal da vida e é muito difícil desmantelar realmente tudo o que nos foi ensinado. Para mim é bom começar a fazer pequenas coisas para desenvolver nossa autoestima e desenvolver respeito e tolerância por nós mesmos. É começar a se encorajar, a talvez usar uma roupa que você não estava empolgado porque, não sei, eles te ensinaram que fica ruim em você, que não te favorece ou que marca algo que você não gosta. É se olhar diante do espelho. Até os 18 anos, eu não tinha espelhos em minha casa e, agora, minha casa está cheia de espelhos. Porque não queria me ver e agora eu quero me ver. Tem dias que quero muito me ver porque adoro, e tem dias que não quero me ver, e é bom entender que isso é normal e que faz parte do processo.
2022-07-21
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62231340
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O modelo matemático usado para encontrar corpos de desaparecidos nos rios da Colômbia
Como o corpo de um desaparecido se transforma dentro de um rio da Colômbia? Há alguns anos, a microbiologista colombiana Luz Adriana Pérez e a antropóloga forense Ana Carolina Guatame fizeram essa pergunta durante um projeto de pesquisa envolvendo vítimas do conflito armado em território colombiano. E o questionamento surgiu a partir dos depoimentos que coletavam: dezenas deles apontavam os grupos paramilitares como os principais responsáveis pela violência — os corpos sem vida eram jogados nos rios para evitar que fossem encontrados. De fato, um comandante paramilitar, Ever Veloza, mais conhecido como HH, disse certa vez: "Se eles tirassem a água do rio Magdalena, encontrariam o maior cemitério do país". Até agora, as autoridades colombianas informaram que mais de mil corpos de pessoas consideradas vítimas do conflito que afetou o país por mais de 50 anos foram resgatados dos rios colombianos. Fim do Matérias recomendadas "Mas pelas histórias que ouvimos e segundo os dados oficiais, esse número é muito maior", diz a microbiologista Pérez, que trabalha para a fundação Equitas, à BBC News Mundo (serviço de notícias em espanhol da BBC). Então, ela e Guatame começaram a se fazer perguntas: como você procura um corpo em um rio? Como você pode fazer essa busca com uma grande quantidade de água em movimento? "Nosso primeiro esforço ao trabalhar nessas questões é tentar dar respostas a quem procura informações sobre seus entes queridos", diz Pérez. "E descobrimos que, devido à complexidade da busca nos rios e lagoas, não havia um modelo semelhante ao que havia sido feito na busca de pessoas desaparecidas embaixo da terra." E assim nasceu o projeto de criar o primeiro modelo matemático capaz de encontrar os corpos dos desaparecidos nos cursos d'água da Colômbia. No entanto, assim que as duas cientistas começaram a planejar o projeto, perceberam que precisavam formar uma equipe multidisciplinar, incluindo de matemáticos e mecânicos de fluidos a antropólogos forenses e até arqueólogos subaquáticos. "Só com nossas especialidades científicas sabíamos que não conseguiríamos cobrir tudo o que tínhamos como objetivo. Precisávamos de mais pesquisadores de outras ciências." Um dos principais desafios foi medir a água: seu movimento na natureza, mas também aquelas dinâmicas que a afetam e estão relacionadas a eventos sociais e humanos, como um conflito armado. Ou seja, um campo de pesquisa totalmente novo. Assim, decidiram se juntar ao o Instituto de Águas da Universidade Javeriana, na Colômbia, liderado pelo engenheiro e especialista em hidrodinâmica ambiental Jorge Escobar. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Nunca tínhamos trabalhado com isso, mas fomos movidos pela responsabilidade social de fazer algo com nossa capacidade de ajudar a responder a essas perguntas", diz Escobar à BBC News Mundo. "A primeira coisa que tivemos que encontrar foi um rio onde, além de ter relatos de corpos que foram jogados ali, também tinha as condições mínimas de segurança para poder realizar nossas investigações", explica. Depois de vários meses, o rio escolhido foi La Miel. Esse afluente do Magdalena, localizado no departamento (Estado) de Caldas, cerca de 500 quilômetros a oeste de Bogotá, tinha a particularidade de estar em uma área de conflito entre os municípios de Norcasia e Samaná. "Mas também, por fazer parte do afluente de uma represa, nos permitia de alguma forma ter uma corrente controlada por vários meses do ano", explica Escobar. Tanto a equipe liderada por Pérez e Guatame quanto a de Escobar passaram vários meses nas margens do rio, dentro de suas águas e até embaixo delas. "O principal foi fazer uma caracterização do rio", explica. Os rios são geralmente compostos por três acidentes hidráulicos: redemoinhos, jatos (as quedas d'água que podem ser pequenas ou grandes) e remansos (onde a corrente do rio é mais calma). Caracterizar o rio, explica, é ver onde se localiza cada uma desses acidentes. Depois, com esses pontos bem identificados e com a ajuda de fotos de satélite, passaram a medir o que acontecia com um corpo ao percorrer o curso d'água e se deparar com esses acidentes. "Usamos um 'dummy' (manequim ou boneco) que batizamos de Emilio. E medimos tanto o movimento da água nesses pontos como o movimento do 'dummy' para poder estabelecer várias conclusões", destaca Pérez. Todas essas medições e a posterior análise desses dados duraram cerca de dois anos, incluindo o período da pandemia de covid-19, e deixaram um modelo feito a partir da matemática pelo qual o rio e seu "comportamento" podem ser recriados. O estudo mostrou pontos de interesse onde poderiam estar os corpos ou restos mortais dos desaparecidos. Esses locais receberam o nome de unidades geomorfológicas de interesse forense, ou UGIF. "Mas, acima de tudo, isso nos dá certos padrões que podem ser aplicados a qualquer corpo d'água na Colômbia onde for realizado esse tipo de busca", assinala Escobar. No entanto, foi fundamental considerar um detalhe: o corpo humano, ao contrário do manequim, nem sempre flutua. "Ao ter o UGIF com as medições feitas no rio, tivemos que incorporar os dados subaquáticos nesse modelo: o que acontece com o corpo quando ele afunda e, mais importante, quando se decompõe", observa Pérez. Para isso, os membros da equipe fizeram duas coisas: primeiro chamaram o arqueólogo Carlos del Cairo, especialista em exploração submarina, e depois colocaram o corpo de um porco em vários pontos do rio para ver o efeito da água no processo de decomposição de tecidos orgânicos. Para Del Cairo, que havia trabalhado na descoberta de vários naufrágios coloniais na costa caribenha colombiana, o trabalho no rio trouxe várias exigências diferentes. "Você passa de um trabalho em uma superfície de pesquisa de centenas de metros quadrados com boa visibilidade para um rio com visibilidade mínima em algumas partes", explica Del Cairo. No entanto, o que representou um desafio maior foi encontrar padrões para rastrear elementos como ossos ou restos de roupas como cintos ou tiras, pedaços de calças ou camisas. "Tivemos que adaptar nossos equipamentos de medição em superfícies subaquáticas para encontrar objetos um pouco mais incomuns. Não é o mesmo que procurar jarros ou restos de barcos", explica. Todos os dados obtidos — entre a exploração realizada por Del Cairo e os resultados da decomposição do animal — conseguiram completar a fase inicial do projeto, que já havia avançado com a caracterização do rio. "Esses dados primeiro nos permitiram ter maior certeza sobre os possíveis locais de interesse para a nossa pesquisa, mas também ajudaram a consolidar os padrões para ter um modelo de previsão para a busca por restos humanos na água", disse Puerta. Assim, a equipe selecionou vários pontos no leito do rio La Miel. "Com esses pontos, esperamos realizar uma busca real pelos corpos dos desaparecidos no La Miel nos próximos meses, para concluir o desenho do modelo matemático", explica Pérez. Essa pesquisa, apontam os cientistas, destaca a relevância que a água tem no país. "Cerca da metade da área territorial da Colômbia é água: mar, rios, lagos. Portanto, se vamos nos esforçar para buscar a verdade sobre o que aconteceu no país, é fundamental apoiarmos esses processos científicos para dar respostas que possivelmente estão no curso dos rios da Colômbia", explica Escobar. "A Colômbia foi construída a partir de seus rios", conclui Del Cairo. "Por isso não podemos fugir da responsabilidade de procurar maneiras que ajudem a reconstruir o que aconteceu no país."
2022-07-18
https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-62173809
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Brasil é país perigoso para defender meio ambiente, diz relator de comissão que acompanha caso Dom e Bruno
Ao mesmo tempo em que abriga a maior floresta tropical do mundo, o Brasil se converteu em um dos países mais perigosos das Américas para defender o meio ambiente, argumenta o colombiano Pedro Vaca Villarreal, que acompanha a investigação dos assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips. Desde 2020, ele é o relator especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão vinculado à Organização dos Estados Americanos (OEA). Villareal tem acompanhado o caso desde o dia 6 de junho, quando a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) deu o alerta de que Dom e Bruno haviam desaparecido enquanto tentavam chegar de barco ao município de Atalaia do Norte (AM). Eles voltavam de alguns dias de trabalho na região de uma das maiores terras indígenas do Brasil e teriam testemunhado e registrado a ocorrência de crimes ambientais - a suspeita é de que isso representou o fator principal nos assassinatos. Pescadores ilegais da região confessaram o crime e levaram a Polícia Federal até o local onde os corpos foram queimados e enterrados. As investigações ainda não foram concluídas Fim do Matérias recomendadas Villarreal afirma que o caso de Dom e Bruno, que ganhou enorme repercussão internacional, está longe de ser um episódio isolado. Antes, faz parte de uma escalada de violência na região que a CIDH tem denunciado. "O assassinato de Dom Phillips e Bruno Pereira é reflexo do contexto de violência contra os defensores do meio ambiente no Brasil. Os repetidos relatos de violência contra defensores fizeram do Brasil um dos países mais perigosos da região para defender o meio ambiente", disse Villarreal à BBC News Brasil. Em 2021, antes mesmo que o caso de Dom e Bruno ganhasse espaço nos maiores jornais do mundo, a CIDH publicou relatório sobre a situação dos defensores de direitos humanos no Brasil, no qual destacou "incontáveis ​​casos de defensores de direitos humanos ameaçados, perseguidos e até mortos". Segundo Villarreal, "há um quadro de vulnerabilidade persistente dos defensores que alarma a CIDH". A Relatoria Especial sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais do órgão apontou, em monitoramento, que o país está na quarta posição no ranking mundial em número de assassinatos de ativistas ligados a causas ambientais, com 20 homicídios registrados em 2020. A CIDH foi um dos primeiros órgãos internacionais a recomendar que o Brasil aumentasse os esforços para descobrir o paradeiro de Dom e Bruno, diante de denúncias de indígenas sobre os poucos recursos despendidos inicialmente nas buscas. Agora, para Villarreal, o desafio do Estado brasileiro é duplo: fazer uma investigação de excelência, que esgote as possibilidades e chegue a um resultado satisfatório, e alterar as condições que têm permitido a escalada de violência e a deterioração ambiental na Amazônia. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Quanto aos procedimentos investigativos, Villarreal afirma que "os trabalhos parecem estar avançando", mas também admite haver "opacidade" no modo como as informações têm sido repassadas ao público, o que, segundo ele, gera desconfiança. Um dos pontos mais controversos até agora foi o comportamento dos órgãos investigativos em relação à existência ou não de mandantes para os crimes. Em 17 de junho, 12 dias após os assassinatos, a Polícia Federal divulgou uma nota em que excluía a possibilidade de haver um mandante por trás da ação dos pescadores que admitiam culpa pelas mortes até aquele momento. Uma semana mais tarde, no entanto, o superintendente da PF no Amazonas, Eduardo Fontes, recuou e admitiu a possibilidade de que alguma organização criminosa pudesse estar por trás das mortes. O Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos, o que, segundo Villarreal, obriga o país a esgotar a possibilidade de que os homicídios tenham sido encomendados justamente pelas atividades de defensor de direitos humanos e de jornalista dos dois alvos. "Em relação à responsabilidade pelo assassinato de Dom Phillips e Bruno Pereira, as normas interamericanas estabelecem que as investigações sobre os assassinatos de defensores de direitos humanos e jornalistas devem levar em conta a existência de possíveis mandantes. Da mesma forma, a profissão (dos dois) deve ser tomada como possível motivo do crime. Destacamos que estas linhas de investigação devem ser totalmente esgotadas no caso de Dom Philips e Bruno Pereira", afirmou Villarreal. Ainda segundo o relator da CIDH, a investigação precisa ser concluída em "prazo razoável", "sem falhas nas coletas de informações" e "sem descartar possibilidades investigativas lógicas" sobre o crime. "A falta de uma resposta institucional enérgica envia uma mensagem permissiva à violência", alerta Villarreal. Para o relator da CIDH, apenas uma investigação primorosa não deve ser capaz de alterar sozinhas as condições que têm permitido a escalada da violência na Amazônia. "A situação de violência contra pessoas que contribuem para a deliberação pública e a democracia, como jornalistas, ativistas e defensores no Brasil, tem sido agravada por comentários estigmatizantes e erráticos de autoridades públicas de alto escalão, o que em muitos casos pode aumentar os riscos inerentes ao trabalho dessas pessoas", argumenta Villarreal. Em seu relatório de 2021, a Relatoria Especial de Liberdade de Expressão já apontava que "declarações estigmatizantes contra a imprensa, especialmente de altos funcionários públicos do Poder Executivo, incluindo o presidente da República, geram um ambiente de deterioração do debate público e da liberdade de imprensa no Brasil". O presidente Jair Bolsonaro tem histórico de ofensas a jornalistas. Durante uma entrevista coletiva, em 2020, respondeu a um repórter que tinha "vontade de encher a tua boca com porrada". Villarreal também destaca a preocupação com o teor de declarações de Bolsonaro e de seu ministro da Justiça, Anderson Torres, em que atribuem responsabilidade às próprias vítimas pela violência que sofreram. "Ocorreu em torno do caso de Dom Philips e Bruno Pereira, quando funcionários públicos descreveram as atividades das vítimas como 'uma aventura não recomendada em uma região selvagem'." "Autoridades podem enviar uma mensagem revitimizadora [de culpabilização da vítima] e têm potencial para agravar o cenário de violência, o que é especialmente preocupante em uma situação complexa como a deste caso", diz o relator da CIDH.
2022-07-17
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62187030
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A ‘traição’ do Reino Unido por trás de disputa de quase 2 séculos entre Belize e Guatemala
Ao retirar-se da América Central em 1981, o Reino Unido deixou sem resolver uma disputa fronteiriça centenária que segue pendente entre Belize e a Guatemala. O caso chegou a ser levado ao Tribunal Internacional de Justiça de Haia, na Holanda, onde as duas nações apresentaram suas versões de uma questão de fronteiras que já dura mais de 160 anos. Desde o século 19, os dois territórios vivem uma intensa disputa que envolve quase 12 mil quilômetros quadrados, incluindo suas ilhas, grandes e pequenas, além de zonas marítimas reivindicadas pela Guatemala que Belize entende que são parte do seu território. Ao apresentar sua resposta à reivindicação guatemalteca em Haia no início de junho, Belize defendeu que a questão é de integridade territorial e que fará todo o possível para preservar sua soberania sobre o que o país considera seu território nacional. "Os belizenhos podem ter a certeza de que foram apresentados argumentos claros e contundentes em defesa da nossa soberania territorial, bem como sobre as áreas marítimas, conforme determina o direito internacional", afirmou em declaração institucional o primeiro-ministro de Belize, John Briceño. Fim do Matérias recomendadas Os dois países decidiram apresentar o caso ao Tribunal de Haia após dois plebiscitos - o primeiro na Guatemala, em 2018, e o segundo no ano seguinte, em Belize. No final de 2020, o governo guatemalteco levou a Haia o texto da sua reivindicação, composto por oito volumes e um total de 4.813 páginas. Belize apresentou seus documentos em junho e, segundo o cronograma anunciado pelo tribunal, a réplica da Guatemala deve ser enviada em dezembro de 2022. Belize terá então até junho de 2023 para apresentar seus argumentos finais e o Tribunal definirá a data das audiências presenciais. O tamanho da região em disputa representa quase a metade do território atual de Belize. Por estar em litígio, grande parte da região não é adequadamente sinalizada ou vigiada. Por isso, é também uma das áreas fronteiriças mais inseguras da América Central, permeada pelo narcotráfico, tráfico de espécies e outros tipos de contrabando. Mas qual é a origem da disputa entre esses dois países? E por que o Reino Unido é acusado de estar por trás do problema? Na sua reivindicação de 2018, a Guatemala indicou que estava pleiteando "todos os direitos herdados da Espanha" no momento da sua independência, em 1821. Mas as bases do conflito, na verdade, remontam a 1783, quando a coroa espanhola autorizou os ingleses a cortar árvores na parte norte do território, agora ocupada por Belize. A fronteira entre Belize e Guatemala é palco de reivindicações territoriais há mais de 160 anos. Na época, a América Central fazia parte do vice-reino da Nova Espanha, uma entidade territorial integrante do império espanhol. Mas as disputas entre a Espanha e a Inglaterra causavam inúmeros confrontos nos dois lados do Atlântico. No mar do Caribe, piratas ingleses atacavam os navios espanhóis e se refugiavam no litoral que hoje pertence a Belize. Para formar um pacto que evitasse esses ataques, a Espanha outorgou à Coroa britânica duas concessões, em 1783 e 1786, para extrair madeiras valiosas naquele território. Mas, enquanto a Espanha se ocupava com a guerra da independência na América Central, o assentamento britânico foi se ampliando. Até que, em 1821, quando a região deixou de pertencer à Espanha, a colônia britânica já ocupava o território que hoje forma Belize. Dezenas de milhares de ingleses - comerciantes, traficantes de pessoas escravizadas, navegadores e aventureiros, muitos em busca de fortuna - já haviam chegado à região, que foi chamada de "Honduras Britânicas". Foi um período turbulento. Depois da guerra contra a Espanha, a Guatemala enfrentou outra disputa territorial, desta vez com o México, que pretendia ficar com a região onde hoje fica o departamento guatemalteco de Petén, no norte do país. A disputa fez com que o governo guatemalteco deixasse de lado a silenciosa expansão britânica no leste para concentrar-se na manutenção do território reivindicado pelo seu vizinho do norte. Mas, quando o conflito com o México se aproximou do seu final, a Guatemala voltou sua atenção para a região ocupada pela Coroa britânica. Em 1850, britânicos e americanos assinaram o Tratado Clayton-Bulwer, segundo o qual as duas nações comprometeram-se a não ocupar, colonizar nem fortificar nenhum território na América Central. Mas, no seu acordo com os Estados Unidos, o Reino Unido alegou que o território de Belize havia sido concedido em usufruto pela Espanha. E, embora Washington não tenha reconhecido na época os direitos britânicos sobre o território, o status da colônia foi mantido. Foi ali que começou o que a imprensa da época chamou de "traição" britânica: uma série de tratados e compromissos assinados pelo Reino Unido, que nunca foram cumpridos. Em 1859 e depois de inúmeros protestos e ações diplomáticas, Guatemala e Reino Unido assinaram o tratado Aycinema-Wyke. Segundo esse tratado, a Guatemala concordou em ceder uma parte do território ocupado pelos britânicos. Em troca, havia uma compensação: a construção de uma estrada que saísse da capital da Guatemala até o mar do Caribe, a ser paga pelos britânicos. Mas essa promessa nunca foi cumprida. O Reino Unido nunca construiu a estrada, o que provocou mal-estar na Guatemala. As autoridades guatemaltecas convocaram novas rodadas de conversas com os britânicos. Até que, em uma convenção de 1863, o Reino Unido - uma das principais potências mundiais da época - comprometeu-se a pagar o montante de 50 mil libras esterlinas, que era o custo calculado de construção da estrada prevista no acordo de 1859. Mas, novamente, os britânicos não cumpriram o acordo, e nenhum centavo do Reino Unido entrou nos cofres da Guatemala. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A discussão voltou a ser tema de conflito no século 20 e chegou até a Liga das Nações, organização precursora da Organização das Nações Unidas (ONU). Na década de 1930, a Guatemala propôs uma nova solução para a disputa. Ela apresentou uma série de propostas, que incluíam desde a devolução do território cedido pela Coroa espanhola mais o pagamento de 400 mil libras esterlinas, até o mesmo montante em dinheiro e uma faixa de território que garantisse à região de Petén uma saída para o mar. Mas o Reino Unido não aceitou nenhuma das propostas e seguiu postergando por anos qualquer discussão a respeito. Até que, em 1946, durante o primeiro mandato do presidente Juan José Arévalo Bermejo, o Congresso da Guatemala declarou nulo, unilateralmente, o pacto de 1859, já que o Reino Unido "não cumpriu o que foi estipulado". Os dois países decidiram levar a questão ao recém-criado Tribunal de Haia, mas tudo se complicou porque eles não chegaram a um acordo sobre os termos e procedimentos legais a serem seguidos. Por fim, o processo foi suspenso quando Belize tornou-se independente do Reino Unido, em 1981. A Guatemala somente viria a reconhecer a independência do país vizinho uma década depois. Em suas sucessivas constituições, a Guatemala reafirmou ao longo do século 20 que declarava "Belize parte do seu território" e que considerava "de interesse nacional as iniciativas destinadas a conseguir sua efetiva reincorporação à República". Por isso, o reconhecimento da independência do novo país também se tornou uma dor de cabeça. Afinal, o Reino Unido saía de cena e deixava sem resolver um problema iniciado um século antes. O Reino Unido havia mantido na antiga colônia uma força de dissuasão - as forças Britânicas de Belize, ou "BritForBel" - para proteger o território de uma possível invasão da Guatemala e manteve suas tropas no país por mais alguns anos. As Forças Britânicas de Belize somente se retirariam em 1994, mas o país centro-americano até hoje é utilizado pelos britânicos como centro de treinamento para a guerra na floresta. Essa situação delicada fez com que as autoridades guatemaltecas somente reconhecessem a independência do país vizinho em 1991, quando o então presidente Jorge Serrano reconheceu o direito de Belize à autodeterminação, soberania e eleição do seu governo pelos belizenhos. Mas ele não reconheceu o território onde fica o país. De sua parte, Belize aceitou que seu vizinho reivindicava ter direitos sobre o seu território e concordou em prosseguir com as negociações e consultas para levar o caso ao Tribunal de Haia, que agora irá julgar o processo.
2022-07-15
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62068454
america_latina
Vídeo, O novo avanço da esquerda na América Latina (e as diferenças com o passado)Duration, 8,03
Um após o outro, diferentes países latino-americanos elegeram governos de esquerda e uma nova onda política parece estar ocorrendo na região. Desde 2018, líderes à esquerda do espectro político chegaram à presidência do México, Argentina, Bolívia, Peru, Honduras, Chile e Colômbia. O fenômeno pode se completar nas eleições de outubro no Brasil, na qual o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem vantagem nas pesquisas de intenção de voto. Embora outros países da região tenham escolhido governos de diferentes correntes políticas nos últimos anos, uma vitória de Lula deixaria as sete nações mais populosas da América Latina e suas seis maiores economias nas mãos da esquerda. Para alguns, tudo isso evoca o que aconteceu no subcontinente durante a primeira década deste século, quando três em cada quatro sul-americanos passaram a ser governados por presidentes de esquerda. Mas neste vídeo, Nathalia Passarinho explica como o momento é totalmente diferente – tanto por mudanças ocorridas no mundo como nas próprias esquerdas. Confira. Reportagem em texto: https://www.bbc.com/portuguese/topics/c340q430wyvt
2022-07-14
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62170808